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CAPÍTULO 10
Na manhã seguinte, Ian entrou de rompante no quarto de Reyna, acordando-a. Ela pestanejou para espantar o sono e sentou-se na cama, cobrindo-se com os lençóis.
– Estais recomposta? – perguntou ele. – Sir Reginald foi atendido. Não está mutilado. Podeis vê-lo se desejardes, mas só se Gregory ou eu vos acompanharmos.
– Não desejo vê-lo.
A expressão dele endureceu. – Sois fria.
– Cabia-lhe ajudar-me, não ameaçar-me.
– Deveis fazer de todos os homens imbecis se esperais que a sua ajuda nunca tenha um preço. Um homem não ajuda uma mulher a matar o seu suserano para depois a deixar ir sem pagar a sua dívida.
– É isso que pensais? Que Reginald me ajudou a assassinar Robert?
– O preço seria tentador para qualquer homem. Vós, e as terras que herdaríeis.
– As terras… De que falais?
– Do testamento do vosso marido. David e eu encontrámo-lo.
– Não sei nada a respeito do testamento do meu marido. Só uma vez falámos dessas coisas, há sete anos. Ele assegurou-me que eu seria acautelada, é tudo. As terras a oriente.
– Não gasteis inutilmente mais tempo comigo, Reyna. Os vossos esquemas cansam-me. Ides vestir-vos agora e vireis comigo.
Ficareis por perto para que eu saiba onde estais. Não vos quero fora da minha vista.
Fiel à sua palavra, Ian fê-la segui-lo para todo o lado durante o dia. Quando ele saía de uma parte do pátio para trabalhar noutra, procurava-a e chamava-a. À noite, enquanto ele lia cuidadosamente o livro-mestre da propriedade, fê-la sentar-se no quarto principal com ele, e ela lia para passar o tempo. Quando ela se levantou para se retirar, ele acompanhou-a ao quarto e, depois de ela se enfiar na cama, entrou e atou-lhe uma mão à cabeceira da cama.
– É um exagero – reclamou ela.
– Estas pedras já vos engoliram antes. Não correrei o mesmo risco.
– Tratais-me como um prisioneiro.
– Trato-vos como uma mentirosa em quem não se pode confiar.
– Seu canalha. Eu sou mais esperta do que vós e vós castigais-me por isso. Nunca vos menti. Sabíeis que tencionava partir se conseguisse.
– Sim, levastes a melhor de muitas formas. Tanto quanto sei, até a queda da torre estava planeada, para vos poupar à justiça dos Armstrong. Mas eu não deixo que uma mulher faça de mim tolo duas vezes.
Foi assim durante dois dias. Ele raramente lhe falava e mal olhava para ela. Reyna convertera-se num cachorro errante arrastado por uma trela invisível.
No terceiro dia, recolhia ele algumas armas no quarto principal, quando certa agitação no pátio o fez ir até à janela. – O que é? –
gritou lá para baixo.
– Chatices no paul – gritou Gregory. – Homens a cavalo no caminho oeste. Cinquenta, talvez, disse a patrulha.
– Preparai cinquenta para sair, Gregory. Vinte arqueiros.
Chamai os homens dos campos e depois fechai o portão.
Ele voltou-se, a preparar-se para correr, e viu-a ali especada.
– Devo seguir-vos também para o campo de batalha? – inquiriu ela.
Ele olhou em redor, ansioso por se ir embora. – Sentai-vos na cama – ordenou, pegando num cinto pousado num baú.
– Para o caso de me crescerem asas e eu sair a voar por cima da muralha? – continuou ela enquanto ele lhe prendia os pulsos com o cinto e o atava à cabeceira da cama.
– Não. Para o caso de pensardes em vos esgueirar pelo portão na confusão de homens a entrar e a sair.
– E a seguir? Vou a pé para Edimburgo por terras dos Armstrong?
– Talvez tenhais amantes no exército deles que vos ajudem.
Talvez Edmund esteja à espera em Bewton para tomar o lugar do irmão na vossa cama.
– Não passam de devaneios irracionais de um homem teimoso.
– Não, são pensamentos razoáveis de um homem a quem tiraram um véu da frente dos olhos.
Ian saiu a passos largos do quarto acompanhado por uma litania de coloridos palavrões. Tirando Reyna da cabeça, correu pelas escadas abaixo até ao pátio. John segurava o seu corcel e homens a cavalo aguardavam do lado de fora do portão. – Sem armadura?
– perguntou John.
– Não há tempo. – Ian embraçou o escudo. A perspetiva da ação que se avizinhava enchia-o de alegria. Seria bom usar o seu corpo e a sua mente para aquilo em que haviam sido treinados, em vez de estarem a debater o caráter e o destino da mulher lá de cima.
A cinco quilómetros do castelo, Ian ouviu gritos e sons de batalha. Instigou o cavalo a subir e descer uma pequena elevação.
À frente, viu três carroças compridas, rodeadas de guerreiros e arqueiros que se debatiam com os Armstrong a cavalo à sua volta.
Desembainhou a espada e conduziu os seus homens para o combate. As setas pararam quando ele e os seus cavaleiros foram de encontro ao inimigo. Agora em grande desvantagem numérica, os Armstrong começaram a bater em retirada pelo paul norte. Ian indicou a Gregory que levasse os arqueiros e fossem atrás deles.
Rubro de excitação com o breve combate, Ian regressou ao caminho.
David de Abyndon estava a cavalo perto da primeira carroça, embainhando uma espada. – Foi oportuna a vossa ajuda, Ian. De outra forma, poderia ter levado o dia inteiro.
– Que fazeis aqui?
– Íamos ser isco para resgate dos Armstrong, ao que parece. –
Indicou as carroças e os arqueiros. – O navio chegou. Trazia alguma da sua carga para o vosso castelo.
– Porque não ir direto para Harclow? Fica mais perto.
– Morvan pode não querer tudo lá. Fiquei com os arqueiros do rei Eduardo como proteção. O que é bom. Morvan já chegou? Ele planeava visitar-vos.
– Não, não veio. – Ian olhou de relance para a carroça e ergueu o sobrolho, inquiridor. David dirigiu-se para a parte de trás e levantou a lona. O fundo redondo de um comprido cilindro de metal reluziu.
– Armas! – exclamou Ian.
– Sim. De Eduardo também. A questão é se Morvan as usará.
Ian compreendeu o comentário. Morvan conseguia ser antiquado, com o seu sentido de honra. A caprichosa capacidade de destruição destas novas máquinas incompatibilizava-as, aos seus olhos e aos olhos de outros, com os ideais da cavalaria. Ian vira-as a serem usadas em Poitiers e achava-as fascinantes. – Ainda assim, podíeis tê-las levado para Harclow. Ele não era obrigado a usá-las.
– Sim. É verdade, mas há outra carga que ele sem dúvida alguma não quereria receber num cerco. – David dirigiu-se para a segunda carroça e deu uma palmada numa pequena bossa na lona.
– Já podeis sair, querida.
A lona foi atirada para o lado, e uma mulher de cabelo negro e olhos cintilantes ergueu-se, agarrada a um punhal adornado de joias. – Ian! – gritou ela.
Ian inclinou-se para cumprimentar Christiana Fitzwaryn, mulher de David, com um beijo. Enquanto o fazia, ergueu uma sobrancelha na direção de David.
Alguns dos homens estavam em volta dos corpos caídos. Um gritou que tinha encontrado um Armstrong que ainda respirava. Ian e David aproximaram-se do homem.
Ian aninhou-se. – Quem vos liderava? Thomas Armstrong?
O homem assentiu com a cabeça. – Ele procurava prisioneiros.
Para trocar pelas mulheres.
– Se Thomas quer a mulher dele e as outras senhoras, só tem de as pedir. Vamos dar-vos um cavalo para que possais levar-lhe esta mensagem.
Ian olhou para a bela Christiana, elegantemente sentada na carroça. – Ides pedir-me para a alojar em Black Lyne para poderdes ter a vossa mulher por perto, não é assim, David?
– Eu sabia que ela estava de chegada, mas tinha absoluta intenção de a deixar em Carlisle. Contudo, perante as circunstâncias, dificilmente poderia exigi-lo.
– Que circunstâncias?
– As que estão a cavalo por trás de vós.
Ian voltou-se. Aproximavam-se três arqueiros. O do meio, encapuçado, acercou-se a trote, alto e direito, atirando um arco para cima do ombro.
O cavalo avançava, empertigado, e Ian reparou no corpo elegante do arqueiro, as pernas longas que as botas cobriam, os pequenos volumes por baixo da túnica. Apoderou-se dele um mau presságio.
– Não fizestes isto – murmurou ele.
– Fiz, sim, embora Morvan me vá fazer pagar terrivelmente. A chegada dela foi uma surpresa completa. Não obedece a ninguém, e quando insistiu em vir para aqui não tive como argumentar com Christiana.
O arqueiro aproximou-se e colocou-se de frente para Ian. Uma mão esguia subiu ao capuz e tirou-o. Caracóis louros desgovernados, abundantes, caíram sobre o corpo alto. Dois olhos amendoados e azuis olhavam para ele.
– Ian, lembrais-vos de Anna, não lembrais? – perguntou alegremente Christiana, de dentro da carroça.
Sim, ele lembrava-se de Anna de Leon, mulher de Morvan. Não a via há oito anos, antes ainda de ela casar. Pela forma como ela o olhava, ele suspeitou que ela não esquecera o encontro deles. Nem um único pormenor.
– Ian de Guilford – pronunciou ela numa voz grave, aveludada. –
Morvan disse-me que vos havia contratado, e aos vossos ladrões.
Não, ela não esquecera.
Ele lançou-lhe o seu sorriso mais encantador.
Não surtiu efeito algum.
C’um raio! Mais valia empacotar as armas e abalar para França hoje mesmo.
Logo que atravessaram o portão do castelo de Black Lyne, tornou-se bem claro que se Morvan se ia fazer pagar terrivelmente, então o pagamento seria imediato. O pátio estava apinhado de cavalos e homens. No alto dos degraus que davam para o salão, estava a figura imponente de Morvan Fitzwaryn com vários outros homens à sua volta.
Anna voltara a colocar o capuz e deixou-se ficar um pouco para trás. Morvan não reparou nela, mas viu a irmã. Uma centelha de irritação passou-lhe pelos olhos negros e brilhantes e ele desceu as escadas.
– Enlouquecestes, David? Trazeis a minha irmã para uma guerra?
Ian decidiu que não era discussão para ele. Entregou o seu cavalo a John e foi até às escadas procurar um ponto com um bom ângulo de visão. Encostou-se à grade à frente de dois dos homens que tinham vindo com Morvan. Um era um cavaleiro ruivo e o outro um homem mais velho de cabelo e barba brancos que parecia considerar de mau gosto a manifestação pública que acontecia no pátio.
Andrew Armstrong abriu caminho até se encontrar ao lado de Ian. Ian explicou calmamente o parentesco daquelas pessoas que protagonizavam estas estranhas boas-vindas.
– Estais a ser demasiado protetor, Morvan – criticou Christiana, saltando da carroça e abraçando o irmão. – David disse que Ian tinha o castelo seguro, por isso não é como se ficássemos acampadas num cerco.
Morvan lançou um olhar indignado à irmã e outro, irado, ao marido dela.
– Ela sobreviveu à queda de Caen e atravessou duas vezes os Alpes, Morvan. Tudo correrá bem – apaziguou David.
– E assim, podemos ficar perto de vós e de David – rematou Christiana.
– Podemos? – repetiu Morvan, desconfiado. Virou-se para os homens a cavalo. Os seus braços largaram Christiana quando viu o de capuz, com o seu corpo alto e esbelto. – C’os diabos! Que fazeis aqui?
Anna pegou calmamente no arco e prendeu-o à sela. – Que boa receção fazeis à vossa mulher depois de cinco meses.
Morvan foi ter com ela, mas fizera-se silêncio no pátio e todos conseguiam ouvir. – Era de esperar que estivésseis na Bretanha.
– Parece que estou aqui. – Anna desmontou com um movimento ágil.
– Combinámos que ficaríeis em La Roche de Roald.
– Não combinámos tal coisa. Fostes vós que o decretastes. Mas eu aborrecia-me e recordei-me do nosso acordo nupcial.
Prometestes que, se alguma vez voltásseis para aqui, seria minha escolha acompanhar-vos ou não.
– A minha concessão foi que não teríeis de o fazer caso não o quisésseis.
– Então devíeis ter escolhido melhor as vossas palavras quando negociastes o acordo.
– Maldição! Trouxestes as crianças também?
Anna retirou o capuz e passou os dedos pelos caracóis. – Só Roald, mas deixei-o em Hampstead com os filhos de Christiana. –
Virou-se para ele com as mãos nas ancas, uma amazona alta a enfrentar um adversário. – Vejo que vos aborreci. Voltarei imediatamente para Carlisle e tratarei da passagem para Londres e a Bretanha. – Fez menção de voltar a montar no cavalo.
– O diabo que voltareis – Morvan agarrou-a antes de ela erguer a perna. Tomou-a num abraço e num beijo ferozes.
Uma onda de riso varreu o pátio inteiro. Anna devolveu o cumprimento com igual paixão.
– Um belo casal – comentou Andrew. – Ficarão aqui? Devo tratar dos quartos?
– É o mais certo – respondeu Ian. – As senhoras de certeza, durante algum tempo. Morvan e David pelo menos durante uma ou duas noites, diria.
As mãos de Morvan haviam começado a percorrer com intimidade as costas e as ancas da mulher.
– Talvez deva conduzi-los ao quarto principal antes que ele a viole aqui mesmo no pátio – sugeriu Andrew.
Ian começou a rir-se, mas o som ficou-lhe preso na garganta.
Raios. O quarto principal.
– É melhor não. Ela está lá.
– Ela? Referis-vos a Lady Reyna?
– Sim.
– Estou certo de que a senhora se retirará. Além do mais, o pai dela quererá falar-lhe.
– O pai dela?
Andrew apontou por cima do ombro com o polegar. – O velho que está atrás de nós é Duncan Graham. O ruivo é o filho dele, Aymer. Apareceram ao portão pouco depois de terdes partido, mas recusaram-se a entrar antes de Morvan chegar. Parece que Duncan pediu a Morvan para se encontrarem aqui a respeito de Lady Reyna. Conto que os Graham também aqui fiquem esta noite.
Terei de me mudar e a alguns outros para enxergas que colocaremos no salão, para conseguirmos alojá-los, e imagino que possa pedir às senhoras Armstrong para partilharem um quarto…
Ian deixou de ouvir as considerações de Andrew a propósito de dormidas. Olhou de soslaio para os homens que estavam atrás de si, e pensou em Reyna, amarrada no quarto. Tratava-se, suspeitava ele, de parte do ónus do pecado. O destino não tinha misericórdia para com os iníquos.
Considerou a hipótese de subir muito rapidamente até lá e…
Mas David interrompia Morvan, dirigindo-se a ele enquanto apontava para as escadas. Morvan voltou-se com o braço por cima de Anna. – Ian, onde está Lady Reyna? – perguntou, aproximando-se dele.
Andrew respondeu em vez dele. – Está no quarto principal, Sir Morvan.
Ian deu a Andrew uma cotovelada subtil mas violenta. – Eu vou buscá-la – disse, fazendo menção de subir.
– Iremos ter com ela – disse Anna. – Quero muito conhecer a senhora. David regalou-nos com histórias sobre o temperamento dela. Penso que seremos grandes amigas.
– São muitos degraus, minha senhora, e vós viajastes longamente. O meu intendente levar-vos-á um refresco ao salão enquanto eu vou chamar a senhora.
– Disparate. Quero examinar a torre. Nunca vi uma tão alta e estou curiosa. Faz-me lembrar uma torre de catedral – continuou Anna, semicerrando os olhos de uma forma que indicava que a sua insistência nada tinha a ver com torres nem mulheres vivazes, mas com o facto de contradizer um homem de quem não gostava.
Mesmo assim, ele voltou a tentar. – Um pouco de cerveja primeiro, quem sabe…
– C’os diabos! Eu não vim aqui para beber e me divertir. Vim para ver a minha filha – trovejou uma voz por trás dele. A mão pesada de Duncan Graham avançou e agarrou o ombro de Andrew. – Vós, mostrai-nos esse quarto.
O apertão fez Andrew encolher-se e a prontificar-se obedientemente para mostrar o caminho. Duncan e Aymer seguiram-no. Ian tentou captar o olhar de Morvan quando ele passou para lhe comunicar que isto não era aconselhável, mas Morvan e Anna estavam novamente absortos um no outro. Com um suspiro de mártir, Ian acompanhou a pequena procissão que seguia escadas acima.
E lá foram, marchando pelo salão. E pelas escadas acima, nem de longe tão numerosas quanto Ian teria gostado. E pelo corredor, até à porta do quarto.
E lá entraram, Morvan e Anna, David e Christiana, Duncan e Aymer, com Ian na cauda do cortejo. Mal ele atravessou a ombreira da porta, viu os rostos surpreendidos que se alinhavam de olhos postos na cama. Caminhou para a frente deles, abrindo a boca para explicar.
E depois viu-a. Era pior do que esperava. Reyna remexera-se na cama à procura de uma posição confortável. As suas mãos ainda estavam atadas com um cinto – o cinto dele – à cabeceira, os braços estendidos acima da cabeça. Com os movimentos, a saia subira-lhe pelas coxas. A posição dela assemelhava-se terrivelmente àquela em que ele a havia atado na tenda, e transmitia a mesma mensagem de vulnerabilidade e sensualidade.
Reyna, por sua vez, também olhou com surpresa para o ajuntamento. – Pai! – gritou. – Aymer!
David soltou um suspiro sonoro. Morvan lançou a Ian um olhar capaz de matar. Lady Anna franziu os lábios. – Vejo que continuais a cortejar as mulheres com a vossa velha subtileza, Ian – disse.
Duncan Graham pôs-se muito direito à frente da filha, com o corpo tenso de fúria. – Maldição, Fitzwaryn – disse, atroador, lançando a todos olhares irados.
Ian abriu a boca para tentar uma explicação. Antes de ter hipótese, Aymer Graham aproximou-se dele com grandes passadas. – Atreveis-vos a usar a minha irmã como se ela fosse um comum prémio de guerra, seu cabrão inglês? – Com um puxão, Aymer tirou a manopla e atirou-a para o chão, aos pés de Ian.
Um silêncio total encheu o quarto. Ian ergueu os olhos da manopla para os olhos cinzentos de Aymer. – Combate total?
– Sim. De manhã – rosnou Aymer.
– Não, Aymer, não o fareis – gritou Reyna.
– Silêncio, mulher – berrou Duncan.
– Não ficarei calada. Não é o que parece… – Não teve oportunidade de acabar. A mão de Duncan tomou balanço e bateu-lhe vigorosamente na cara.
Ian sentiu-se louco de indignação. Avançou, mas a mão firme de Morvan no seu braço deteve-o.
– Sois mesmo parida de uma bruxa, filha, e sem dúvida tão má quanto a vossa mãe – disse Duncan. – O vosso irmão vingará a honra da família, mesmo que a vossa não possa ser salva.
Ian sacudiu a mão de Morvan e colocou a sua no punho da espada. Se Duncan voltasse a bater-lhe, cortava o homem ao meio e que se danassem as consequências.
Christiana foi até à cama e desatou as mãos de Reyna. – Dado que a hora e os termos do desafio foram acertados, porventura queirais agora refrescar-vos no salão – disse a Duncan. Ela falou com uma calma graciosa que parecia fora de contexto, como se de facto Duncan tivesse vindo pela bebida e para se divertir.
Isto desarmou o velho como uma espada nunca teria conseguido. Duncan ficou um segundo a olhar para ela e depois meneou a cabeça com um ronco. Colocou Reyna em pé com um sacão e empurrou-a na direção do irmão. Medo e raiva inflamavam os olhos de Reyna quando os dois homens a empurraram para a porta. Resistindo, o seu corpo tornou-se tenso e libertou-se da mão de Aymer como se aquilo a enjoasse. Andrew Armstrong aproximou-se para os acompanhar.
– Lady Reyna, posso acompanhar-vos? – perguntou Christiana, ainda a apaziguar o ambiente com uma graciosidade notável. –
Disseram-me que ledes grego. Eu nunca aprendi e esperava que pudésseis ensinar-me durante a minha visita.
– Ela não estará cá depois de amanhã – sibilou Aymer.
– Mesmo assim, estou certa de que temos muito sobre que conversar – disse Christiana com firmeza, colocando-se ao lado de Reyna ao passarem pela ombreira da porta.
Morvan, Anna, David e Ian permaneciam silenciosos. A manopla de Aymer ainda estava no chão.
– Bolas, Ian. Elizabeth não vos ensinou nada? – soltou Morvan por fim, entredentes.
– Como disse a senhora, não era o que parecia. – Ian descreveu a fuga dela e os acontecimentos que a conduziram àquela situação.
– Mesmo que assim seja, eles não acreditarão no que ela diz –
continuou Anna. – As mulheres que são usadas desta forma mentem acerca do sucedido, porque depois são desprezadas apesar do erro não ser delas. Agora, quando regressar a casa do pai, estará coberta de vergonha.
A última coisa que Ian queria era que esta mulher participasse no conselho que precisava de ser feito, especialmente quando fora a sua teimosia a provocar todo o drama. Infelizmente, não parecia provável que Morvan lhe desse ordem para se retirar, e ela não parecia aceitar que devia tomar a iniciativa de o fazer.
Anna empoleirou-se na beira da cama. David ocupou calmamente a cadeira. Morvan foi até à janela e ficou a olhar lá para fora. – Sendo assim, amanhã matareis Aymer Graham – disse, num amargo tom meditativo.
– Espero que estejamos todos a rezar para que assim seja.
– Teremos aquela família em cima de nós durante gerações.
– Estais a sugerir que me sacrifique para evitar essa complicação?
– Sem dúvida que não podemos esperar tanto – comentou Anna. – Recuperamos Harclow agora ou nunca. Se os Graham resolverem sair daqueles montes, tudo pode desmoronar-se.
– Não fui eu quem o desafiou, senhora.
– Aos meus olhos e ouvidos, não parece que tenhais tratado Lady Reyna com cavalheirismo.
– Ela não foi maltratada, e se tivesse obedecido e ficado sossegada…
– Porque obedeceria uma mulher daquelas a um homem como vós?
Morvan transferiu o olhar da mulher para Ian, e de novo para ela. – Deixai-nos, meu amor – disse. – Ide ter com a minha irmã e ajudai a aplacar a ira de Duncan. Se encontrarmos uma solução, precisamos dele recetivo.
Uma centelha de desafio perpassou pelos olhos de Anna. Ian sentiu tanto surpresa como alívio quando ela se levantou e saiu.
Morvan voltou-se para Ian. – Pensais que eu devia impedir a minha mulher de vos falar assim.
Ian encolheu os ombros. – É bem claro que ela não gosta nada de mim e tende a pensar o pior.
Morvan virou-se novamente para a janela. O corpo dele ficou imóvel e emanava dele uma aura, como se um poder feroz estivesse a ser contido. – Eu podia pedir-lhe que refreasse as palavras, Ian.
Mas acontece que talvez não seja do meu interesse fazê-lo –
prosseguiu. – Afinal, sois o único homem vivo, além de mim, que alguma vez lhe tocou.
Ian notou um ênfase inoportuno na palavra «vivo». Também reconheceu o tom, e a corrente de perigo que lhe subjazia. Na cadeira, David ficou muito quieto.
Durante meses, desde que Ian salvara a vida de Morvan, nunca haviam mencionado aquela noite, oito anos atrás, no jardim de Windsor.
– Foi há muito tempo, Morvan, e eu era pouco mais que um rapaz – disse Ian, enquanto calculava a probabilidade que tinha de sobreviver se se defrontasse em duelo com Morvan. A mesma de não sobreviver, concluiu. Se Morvan o matasse primeiro, por conta deste velho insulto, as coisas com os Graham estariam resolvidas.
Pensou para si próprio se Morvan estaria a ponderar essa possibilidade.
– Sim, há muito tempo – concedeu Morvan, voltando-se com um sorriso ténue. – Bom, David, temos aqui um grande problema, não é assim?
– Lá isso temos. A não ser que se dê a conveniência de Ian sucumbir à espada ou ao machado de Aymer, não acabará amanhã, e eu não acho que Aymer lhe leve a melhor.
– Agradeço-vos a confiança – disse Ian.
– Tenho a certeza de que Reyna está a tentar convencer os parentes do seu mau julgamento, mas eles não verão verdade nisso.
Como Anna realçou, é frequente as mulheres que são violadas negarem-no para evitar a vergonha e o desprezo – interveio David.
– Presumamos então que convencer os Graham do seu erro é improvável. Temos de tratar do próprio insulto. – Olhou não para Ian, mas para Morvan.
– Sim – anuiu Morvan. – E há uma solução fácil para um insulto desses.
– Uma solução antiga. Respeitada – concordou David.
– Sem custo real e com uma certa utilidade em outros assuntos –
acrescentou Morvan pensativo.
– Duncan não terá outra escolha senão aceitar. Aymer também.
E se eles esperavam engendrar algum plano danoso no futuro, anula prontamente qualquer opção dessas – prosseguiu David.
Ambos os homens voltaram simultaneamente o olhar para Ian.
Sorriram.
Ian olhou para Morvan e depois para David, e depois de novo para Morvan. Fez-se luz. – Meu Deus! Não.
– Pelo menos pensai no assunto – incitou David.
– Não. Melhor seria pedires-me que me rendesse à espada de Aymer, Morvan.
– Disparate. É uma mulher encantadora.
– É desobediente e conflituosa e manipuladora. Pode bem ser uma assassina.
– Há poucos dias estáveis convencido de que não era –
recordou-lhe David.
– Reconsiderei as provas.
Morvan encostou-se ao vão da janela. – Certamente considerastes que era minha intenção dar-vos terras uma vez terminado tudo isto.
Ian não considerara nada daquilo. A maior parte dos homens veria o facto de o ajudar a regressar a Inglaterra como pagamento suficiente pela dívida da própria vida.
– Tinha pensado em terras para sudeste, mas talvez isto faça mais sentido. Vós tomastes este castelo. Conhecem-vos, e a localização estratégica requer um vassalo forte. As terras dos Graham começam a mero meio quilómetro para este, e a propriedade Armstrong de Clivedale começa a cinco quilómetros para norte. Este castelo foi construído para guardar essas fronteiras.
– Não há nenhuma família a quem estas terras devam ser devolvidas? – inquiriu Ian. O que Morvan dissera espicaçou-lhe a memória.
– O castelo de Black Lyne e as quintas à sua volta nunca foram enfeudados. Era um castelão que as mantinha.
– Presumi que daríeis as terras livres aos vossos filhos mais novos.
– Há propriedades suficientes aqui e na Bretanha. Não, talvez seja um mal que vem por bem, Ian. O testamento de Sir Robert de Kelso pode trazer-nos dificuldades mesmo depois de eu reaver Harclow. O pai ou futuro marido de Lady Reyna pode fazer exigências em nome dela. Se forem para os tribunais, pode arrastar-se durante anos, e se usarem um exército, dará apenas ensejo a mais um longo conflito. Se vos der as terras e vos casardes com a senhora, o título será claro e seguro. Estais disposto?
– E se recusar?
– As terras continuam vossas, se me jurardes fidelidade. Fá-lo-emos logo que Harclow seja reavida.
– E se não recuperardes Harclow?
– Nesse caso ainda serão vossas através da senhora, se vos casardes com ela.
Ian considerou esta proposta formidável. Terra. Dele. Não muito grande nem muito rica, mas sua. E Reyna. A ideia de se ver unido a ela enchia-o de uma alegria estranha e um temor peculiar.
– Estais disposto? – perguntou novamente Morvan.
– Estou disposto. A senhora pode não estar.
CAPÍTULO 11
Reyna entrou no quarto principal, onde Ian, David e Morvan a esperavam. Estava satisfeita por ter uma desculpa para escapar ao pai e ao irmão.
Doze anos não haviam apaziguado o medo que sentia de Duncan, nem as emoções sombrias que Aymer evocava nela, mas não os deixara aperceberem-se disso. A constatação de que já não lidavam com uma rapariga submissa e obediente havia-os enfurecido. Ela tinha a certeza de que, não fora a presença de Anna e Christiana, Aymer a teria agredido em várias alturas da conversa acalorada.
Morvan Fitzwaryn saudou-a com cortesia. – Não nos apresentámos devidamente, senhora. Enquanto rapaz, tinha conhecimento do vosso falecido marido. Era tido com respeito por toda a região como um cavaleiro honrado.
Ela estudou este novo homem. Tinha trinta e poucos anos e dois olhos negros brilhantes como os da irmã Christiana. Ocorreu-lhe que estava rodeada por três exemplos diferentes, mas igualmente irresistíveis, de beleza masculina.
– É uma prerrogativa pessoal, Sir Morvan, só terdes ao vosso serviço homens atraentes? Uma marca da vossa comitiva, um pouco como as cores da libré?
Ele não pestanejou sequer. – Sim, minha senhora. E insisto que todos os arqueiros sejam louros e os peões morenos. A companhia de Ian não se enquadrava, por isso os enviei para aqui.
Ela riu-se e ele devolveu-lhe um sorriso. Apesar dos gracejos, ela sentiu ali uma atmosfera sombria. Emanava de Ian, que estava atrás dela à lareira, fora de vista.
– Lady Reyna, com certeza concordareis que seria melhor se o duelo entre o vosso irmão e Ian fosse impedido – começou Morvan.
– Concordo, de facto. Acabo de passar uma hora a tentar convencer Aymer do seu erro. No entanto, o meu pai e o meu irmão não atentam às palavras de nenhuma mulher, muito menos às minhas.
– Visto que sois viúva, não há, como é evidente, forma de provar que não abusaram de vós. No entanto, se Ian se defrontar com o vosso irmão, matá-lo-á. Conheço a perícia de Ian, por isso o duelo terminará com a morte de Aymer. Nós gostaríamos de o evitar. Vós não?
– Claro que sim. Mas, como disse, eles não me dão ouvidos quando tento explicar.
– Existe uma alternativa que os satisfará.
– Não penso que exista.
– Claro que sim. Se um homem seduz ou viola uma mulher, a honra dela e da família são resgatadas se ele casar com ela.
Num repente, ela sentiu-se pequena e vulnerável e indefesa de uma forma que Duncan e Aymer nunca conseguiriam igualar.
– Não desejo desposar Sir Ian. Lamento se perturbo os vossos planos. – Sentiu o espírito de Ian estremecer atrás dela em reação à sua decisão. – Vocês homens têm as vossas guerras e disputas e nós mulheres tornamo-nos peões para as resolver. Já fui usada uma vez num jogo semelhante, o que é suficiente no decurso de uma vida.
– É o destino das mulheres não controlarem a sua sorte. A minha própria mulher e a minha irmã podem dizer-vos o mesmo.
– Não preciso que nenhuma mulher venha instruir-me numa das grandes verdades da vida, mas recordo-vos que sou viúva. Temos mais controlo do que a maioria. Além disso, Sir Ian e eu não somos compatíveis. Certamente que também ele não vê isto com bons olhos.
– Ele está disposto.
– É curioso. Há dois dias ele estava convencido de que eu conspirara com um amante para assassinar o meu marido. Ainda esta manhã insinuou que eu me tinha deitado com metade do exército dos Armstrong. Porque aceitaria ele casar com uma mulher tão perversa? Certamente que não seria para evitar o duelo com Aymer. Ian pode ser muitas coisas, mas cobarde não é uma delas.
Ela estudou o rosto de Morvan, aguardando resposta.
– Havei-lo subornado – concluiu ela, pensando alto. – Dinheiro ou terra? Terra, acho eu. – As peças encaixaram. – Esta terra.
– Sois astuta, Lady Reyna – concedeu Morvan.
– Sim, este casamento convém sobremaneira aos vossos propósitos, mas não vejo em que me beneficie a mim. Ian não é muito prometedor como marido, e entre nós pouco mais houve do que atrito desde a primeira vez em que nos vimos. Nem ele confia em mim. Um casamento com ele condenar-me-ia a uma vida de inferno.
– Insultais Ian e não lhe fazeis justiça – repreendeu Morvan. – O
nascimento dele é melhor do que o vosso e a sua família é boa.
– Ele está longe de casa, de muitas formas. É um salteador, com muitos feitos ignóbeis na alma. E o apetite que tem por mulheres é notório. Na verdade, penso que cometeis um erro ao dar-lhe estas terras. Não dará bom resultado, matematicamente falando.
– Matematicamente?
– Pensai na reputação dele. Mil noites, é o que se diz. Calculo que tenha necessitado de pelo menos três mulheres por semana.
Contabilizando este castelo e as quintas anexas, e presumindo que algumas das esposas resistirão à sua sedução, estas terras não o satisfarão durante muito tempo. Sem dúvida que com um homem destes a repetição traz enfado. Dentro de um ano, estará desesperado por se ver fora daqui.
Um esgar na boca de Morvan. Uma tossidela por parte de David. Algo parecido com um silvo saiu do homem que estava à lareira.
– Vedes, então, Sir Morvan, que este casamento se revelaria um rotundo desastre.
– Não obstante, é minha vontade.
– Não podeis obrigar-me a aceitar.
– Não. Por isso vos dou a escolher. Ou casais com Ian, ou ele amanhã matará o vosso irmão, após o que o vosso pai vos fará regressar a casa. Não o queríeis antes e não me parece que a vossa situação melhore a seguir. Além da vergonha por conta do que eles pensam ter acontecido aqui, sabe-se que sois estéril, logo de pouco utilidade para um futuro casamento. O facto de estardes sob a autoridade do vosso pai provavelmente nem sequer vos dispensará do julgamento com respeito ao assassinato do vosso marido, uma vez que ele não me parece tão interessado em proteger-vos como eu pensava.
Era um resumo claro e cru da situação dela, mas que não lhe dizia nada que ela não soubesse ainda. Porém, ele abordara um assunto que despertava um medo muito maior do que o que ela sentia pela vida difícil em casa de Duncan. Era um medo que ameaçava sobrepor-se às noções de dever e de promessa sempre que surgia.
– Se vos prestar o serviço de me casar com Ian, ainda me levareis a julgamento pela morte de Robert?
Ela susteve a respiração durante a pausa que se seguiu. Quando, por fim, Morvan falou, foi com resignação. – É melhor que a questão fique resolvida.
– Então este casamento não me traz benefício algum. Não penseis em intimidar-me, Sir Morvan. Aprendi em criança como sobreviver a isso. Se a alternativa é voltar para o meu pai, é o que farei, e mais uma vez sobreviverei. Melhor desta vez, pois Robert de Kelso ensinou-me a ser forte.
Virando calmamente as costas, e sem olhar para Ian, que continuava junto à lareira, saiu do quarto.
*
– Aquela ali não é pateta nenhuma – disse David.
A resposta de Ian foi um chorrilho de palavrões. Ter de ouvir aquela bruxinha desfiar uma série de doestos a seu respeito fora intolerável. Queria ir atrás dela e… Constatou que queria persegui-la e acariciar-lhe o corpo até ela implorar por ele.
– Não posso acreditar que ela está disposta a regressar para as mãos de Duncan – desabafou Ian. – Se o homem a maltrata à nossa frente, sabe-se lá o que fará quando a tiver com ele. – Que o tratamento agressivo de Duncan fosse preferível a casar-se com ele só agravava os insultos.
– Ela não deseja ir para lá. Tenta obter termos que lhe sejam vantajosos – esclareceu David. – Morvan, tereis de lhe garantir que vive no que respeita à questão da morte do marido.
– Não posso ignorar tal crime se for alcaide, tal como vós não pudestes em Senlis.
– Uma solução conciliatória, talvez.
Morvan ponderou a sugestão. – Se ela for culpada, não é necessário que morra. Pode ir para um convento.
– Poderá ser suficiente.
De súbito, Ian pensou noutros termos que não tinham sido propostos mas que poderiam persuadir Reyna.
Dirigiu-se a passos largos para a porta, inabalável na sua determinação.
– Onde ides? – inquiriu Morvan.
– Apanhar uma bruxa. Dizei ao padre e ao intendente para contarem com um casamento amanhã.
Reyna estava aninhada num trilho junto a um canteiro de flores e indicava as plantas medicinais, explicando os seus usos. Num banco próximo, Christiana ouvia com interesse, mas Anna, que pedira a informação, não parava de olhar para a torre.
– Estão a tramar alguma coisa. Pressinto-o – murmurou, franzindo o sobrolho. – Que solução propuseram eles?
Reyna encolheu os ombros. A última coisa que queria era ter estas mulheres a argumentar a favor dos maridos.
– Ó meu Deus, eles querem que vos caseis com aquele ladrão, não é?
– O que ela diz é verdade, Reyna? Foi isso que propuseram? –
continuou Christiana.
– Claro que sim – voltou Anna. – É mesmo de homens. Ian porta-se como um tratante e é a vítima dele que paga. Recusastes, não é assim?
– Sim.
– Fizestes bem. A simples hipótese de estar presa a um homem daqueles é horrível.
– Sempre achei Ian muito simpático – interveio Christiana.
– Só o conhecestes quando já estavas casada com alguém com autoridade suficiente para o manter à distância – prosseguiu Anna.
– Sois gentil de mais com toda a gente.
– Recordo-vos que ele salvou a vida de Morvan. Só por essa razão, penso que deveis ser mais branda nas vossas opiniões.
David disse que ele pediu apenas a oportunidade de voltar para Inglaterra e serviço honrado em troca da sua bravura.
– Provavelmente calculou que conseguiria mais com menos avidez. Não precisava de ter ido para França e juntar-se a uma companhia livre, para começar. Morvan não o fez, e quando era um jovem cavaleiro não possuía mais do que Ian.
– Morvan pelo menos tinha o sonho de recuperar estas terras e a amizade de um rei – observou Christiana. – E depois teve-vos a vós e às vossas propriedades. O que poderia ter feito Ian quando saiu da corte?
– Podia ter voltado para a família. Não tinha de se tornar um criminoso.
– Ele não podia voltar, embora eu não saiba porquê. E muitos cavaleiros respeitados se juntam a essas companhias, e as lideram.
Vi uma cidade ser pilhada por cavaleiros conduzidos por um rei. As vítimas de guerra não discutem a honra relativa de se ser saqueado por um exército real ou cercado por uma companhia livre.
Reyna estava fascinada com esta discussão entre duas mulheres que conheciam Ian melhor do que ela. Perguntou-se qual seria a razão de Ian não poder voltar para a família dele.
– Falando no diabo – disse Anna, olhando para o pórtico do jardim, por onde Ian acabava de entrar. – O que quereis? –
perguntou ela.
Ian aproximou-se com um brilho duro nos olhos negros. –
Pretendo falar com Lady Reyna. É do interesse dela ouvir o que direi. Peço que vós e Christiana nos deixeis.
– Não acho que…
– Falarei com Sir Ian – interrompeu Reyna.
Christiana começou a puxar uma Anna relutante para a saída do jardim.
– Ele tem um ponto fraco por baixo das costelas, à direita, se precisardes de lhe bater – gritou Anna antes de ser arrastada para fora do jardim.
Ian enfrentou Reyna no silêncio súbito do jardim. Ela via que ele estava irritado. Na verdade, não podia censurá-lo.
– O que é que ela quis dizer com aquilo? – disse Reyna.
Ian começou a encaminhá-la para a sombra do pomar. – É uma história antiga.
Reyna olhou para o perfil dele. A sua expressão era enigmática, mas por qualquer razão ela não teve dificuldade em lê-la.
– Não acredito. A mulher de Morvan? A sério, Ian, é demasiado. Ele sabe?
– Sabe. Era essa a ideia. Há muitos anos que Morvan não estava em Inglaterra e levou Anna à corte para se encontrar com o rei a propósito das propriedades da família dela. Ele era apenas um cavaleiro ao serviço de Anna, mas eu vi os seus sentimentos para com ela. Tentei fazer-lhe ciúmes, por isso cortejei-a.
– Cortejar não é a melhor descrição, se ela sabe que tendes um ponto fraco por baixo das costelas.
– Havia uma mulher na corte que fora amante de Morvan antes de ele sair de Inglaterra. Era nela que eu estava verdadeiramente interessado, mas com o regresso dele parecia que ela gostaria de retomar a relação. Por isso, fui atrás da mulher que ele realmente queria.
– E funcionou?
– Sim. Ele encontrou-nos imediatamente depois de ela fazer uso do punho para me resistir, e quase me matou. Mas eu fui atrás da mulher que ele queria, e a que eu queria havia-se deixado distrair pela presença dele, e assim eu avancei a solução óbvia.
– Que foi?
Ele encolheu os ombros. – Fizemos uma troca.
Reyna imaginou-o a ele e a Morvan, anos mais jovens, Ian provavelmente recém-armado cavaleiro. Dois homens confiantes no seu sucesso se aplicassem os seus dotes consideráveis com as mulheres, dividindo o exercício desses encantos.
Ian encostou-se ao tronco de uma árvore e cruzou os braços.
Olhava-a de uma forma franca que lhe recordou com desconforto aquele dia ao pé do rio.
– Não tendes realmente escolha.
– Com certeza que tenho.
– Matá-lo-ei amanhã. Não duvideis que a vitória será minha.
Ides condená-lo à morte por causa deste mal-entendido? E depois, quando Duncan se mobilizar contra Morvan, quantos mais sofrerão? Este castelo vai estar no centro de tudo. As gentes dos Fitzwaryn e as dos Armstrong, que são também as vossas, afinal.
Como farão os agricultores a vida deles com esta região envolta numa guerra entre três famílias?
– Sois desprezível. Como vos atreveis a fazer apelo ao meu sentido do dever para servir os vossos propósitos?
– Morvan não me subornou com estas terras, Reyna. São minhas, com ou sem vós. Mas se o nosso casamento evitar o derramamento de sangue que vos descrevo, casaremos.
– Claríssimo para todos exceto eu, seu tratante. Não vos atrevais a dizer-me o que farei, como se a vossa vontade para mim fosse lei.
Ele agarrou-a pelo braço, deu meia-volta e encostou-a à árvore.
Colocou a mão no tronco, por cima da cabeça dela, e curvou o corpo para o seu. – Será lei para vós muito em breve, e aceitá-la-eis. Se eu não sou o marido ideal, vós também não sois a mulher perfeita, mas é assim que será. Que vos espera se voltardes para casa? Podeis sobreviver aos maus tratos e ao desprezo, mas e o resto?
Ela olhou para o rosto dele. Tinha uma expressão ponderada, determinada e dura. Não era um homem estúpido. Até onde tinha visto ele?
– Qual resto? – rebateu ela.
– O vosso medo da escuridão, Reyna. É pior do que o normal.
O que vos fizeram eles, fechavam-vos quando éreis criança? Numa masmorra? Como castigo?
– Uma cripta. Era uma cripta, por baixo da capela. – E, dizendo-o, veio-lhe o cheiro da humidade daquele espaço pequeno e escuro, o som do silêncio eterno, o toque das mãos dos mortos nela.
– Pensais que o vosso medo foi esquecido por Duncan, por Aymer?
– Eu era uma criança nessa altura, e é um medo de criança.
Agora cresci.
– Pode ser um medo de criança, mas ainda vive dentro de vós.
Sim, enfrentá-los-eis, até à primeira vez em que vos puserem lá dentro. E depois não resistireis, como quase aconteceu naquela noite no castelo antigo.
Ela desviou os olhos daquele olhar implacável. – Sois cruel.
Detesto-vos.
Ele segurou-lhe no queixo. – Não, não me detestais. Sentis medo do que sois comigo, mas é algo completamente diferente de ódio.
Nos olhos de Ian cintilava a memória da paixão que haviam vivido juntos. Reyna ficou sem fôlego quando notou o calor da mão dele, terrível, no rosto dela e a proximidade do seu corpo.
Subitamente, sentiu-se encurralada e débil face ao poder daquela atração que ele acordava nela a seu bel-prazer. Aquele perigo e a forma como ele tão facilmente reduzia a pó o seu sentido do dever, de responsabilidade, do que era bom e necessário, assustavam-na.
– Arriscar-me-ei com Duncan e Aymer – conseguiu dizer. –
Mesmo desfeita, pelo menos viverei, e com o tempo talvez consiga deixá-los.
Ele sorriu. O coração dela sobressaltou-se. Santo Deus, que sorriso. Provocava-lhe um frémito indesejado no âmago do seu corpo. – Não. Ficareis e casaremos. Morvan garantiu a vossa vida independentemente do julgamento da morte do vosso marido. Um convento, antes, mas nem isso será. Eu, como vosso marido, exigirei julgamento por combate. Não perderei.
Uma pontinha de esperança nasceu no seu coração. – Lutaríeis por mim? Mudastes outra vez de ideias e agora achais que sou inocente?
– Deus não interfere em tais combates, Reyna. Não perderei porque sou capaz.
O facto de ele não acreditar na inocência dela enraiveceu-a, especialmente depois de ele ter fingido ser seu aliado. Mas nessa altura ele procurava seduzi-la.
– Que tipo de homem sois vós, Ian de Guilford, que aceitais casar-vos com uma assassina? Ainda por cima uma assassina sem filhos, depois de doze anos de casamento.
– Sou um homem prático que vos faz uma proposta à qual não podeis resistir. Não quereis este casamento? Muito bem. Daqui a três ou quatro anos estará anulado. Porque estas terras voltarão a ser inglesas, será ao bispo de Carlisle que nos dirigiremos, e ele também não quer conflitos nesta região. Aceitará a vossa condição de esposa sem filhos como desculpa, ou ajudar-nos-á a descobrirmos outra. Morvan dar-vos-á algumas terras, com um rendimento decente, e haverá para vós uma casa em Londres.
Christiana apresentar-vos-á à corte. Podeis discutir filosofia a vosso bel-prazer com os homens doutos que andam atrás do rei. É
melhor do que Edimburgo, e oferece-vos mais segurança.
De facto, ele fazia-lhe uma proposta à qual seria difícil resistir.
Viver numa grande cidade, independente, livre para estudar ou fazer o que quisesse… a perspetiva deixou-a logo entusiasmada.
Horizontes e possibilidades confundiam-se na sua mente. Nunca na sua vida se afastara desta região. E a oferta dele de lutar por ela num julgamento, representava muito mais segurança do que a proteção de Duncan.
Havia promessas que podiam ficar comprometidas se ela concordasse, mas se ele dizia que o casamento seria anulado, então nem sequer teria de ser um casamento a sério.
– Prometeis que será assim? – perguntou ela, desconfiada.
– Sim. Dentro de alguns anos ver-vos-eis livres deste filho de uma égua inglês e eu poderei casar-me com uma mulher obediente, dócil, que possa dar-me filhos. Não será um verdadeiro casamento, mas sim um acordo temporário.
– Um casamento de conveniência – disse, pensativa. – Não deve ser muito difícil. Já tive um desses antes.
– Concordais, então?
– Concordo.
A dureza da expressão de Ian foi momentaneamente aplacada pelo triunfo. O coração dela começou a bater mais forte, porque suspeitava que ele a ia beijar.
Em vez disso, mostrando um comedimento apropriado às circunstâncias, ele afastou-se da árvore e estendeu-lhe a mão. –
Então digamos aos outros. O vosso pai e o vosso irmão têm de acreditar que o aceitais de vossa livre vontade. Pode desagradar-lhes, já que, por alguma razão, parecem querer recuperar-vos. Eu ficarei convosco, porém, ou então as senhoras. Não voltareis a ficar sozinha com eles.
Reyna hesitou, e depois aceitou a mão dele. Se iam casar-se no dia seguinte, aquele gesto era o que lhes caberia de mais parecido com um noivado.
CAPÍTULO 12
A boda foi festiva e animada. Alice esmerou-se com a comida variada e abundante, e Andrew desencantou um vinho gascão especial. Retiniam sons de alegre convívio pelo salão. Reyna tentava não se sentir culpada por toda a agitação e despesa em prol de um casamento que o não era e que duraria apenas alguns anos.
A presença de Ian a seu lado só vinha piorar as coisas. Por vezes, deparava com ele a olhar para si com uma expressão velada, como se pesasse a culpa que ela tinha nos acontecimentos que o haviam colocado nesta situação.
Ele estava mais atraente do que nunca. Ela já o vira com as roupas toscas da vida de acampamento e com a armadura de um guerreiro, mas nunca assim. Envergava um gibão cinzento-claro com bordados pretos e calças de um cinza mais escuro. A veste cintada ficava muito bem no seu corpo alto e dava-lhe pelo meio da coxa, acima de umas botas pretas altas. Ian, o cortesão, pensou, espreitando por um instante a vida que tinha antes de ir para França. Esguio, forte e belo. Não admira que tivesse feito tantos estragos entre as mulheres de Windsor e Westminster.
À medida que da tarde se fazia noite, e com o correr da cerveja e do vinho, a razão da celebração começou a tornar os casais amorosos. Christiana afetuosamente empoleirada no colo de David, envolta nos braços dele. Morvan a dar a Anna um acepipe como se de uma conversa silenciosa e erótica se tratasse. O amor evidente que as suas novas amigas tinham pelos maridos perturbava Reyna.
Abria-lhe penosamente os olhos para o que não se realizara na sua própria vida.
Ela olhou para si, para o casaco solto e vestido rosas que envergava. Sentia o aroma das flores que lhe adornavam a cabeça.
Recordou-se de outro dia, há muito passado, e de outro casamento. O vestido não tinha sido tão vistoso nem o jantar tão animado. Os homens que enchiam a torre estavam mais interessados nas tréguas que se negociavam do que na criança que era objeto de troca. Ela aguardara o casamento com verdadeiro pavor, mas naquele dia conhecera o seu paternal marido e vira a benevolência e a salvação que ele representava.
Memórias e arrependimentos arrebataram-na, recrudescendo em si a dor pela morte de Robert, com uma intensidade que não sentia há um mês.
Uma mão tocou-lhe no ombro e Christiana falou-lhe suavemente ao ouvido. – Nunca se sabe o que sai destas coisas. Não há ainda pegadas na neve que cobre o campo que atravessareis.
Perante o otimismo da sua nova amiga, Reyna sorriu. Mas claro que havia pegadas, e muitas, lá deixadas por pessoas vivas e mortas, e as mais frescas haviam sido deixadas por Ian e ela própria no jardim, no dia anterior.
Decidiu que era boa altura para sair do salão, ir ter com Alice e os criados. Libertou-se da companhia perturbante do homem com que supostamente casara, passando as horas seguintes na companhia dos seus velhos amigos.
O sol punha-se quando se sentiu agitação no portão. Gregory abriu caminhou pelo salão e voltou com Ian. Desapareceram pelo portão. Momentos depois regressaram e correu a notícia de que chegara um mensageiro de Thomas Armstrong, que solicitava o regresso das senhoras de Black Lyne. Reyna ouviu Ian indicar a Gregory que aprontasse para a manhã seguinte cem homens a cavalo, para ir para a fronteira. Quando terminou, dirigiu-se a ela.
– Christiana procurava-vos. É altura de recolher, senhora.
Reyna olhou para o crepúsculo que se instalava. Sim, altura de desempenhar a parte seguinte da farsa. – Dizei a Christiana que Alice me ajudará.
Ele lançou-lhe um olhar peculiar e em seguida foi-se embora.
Alice ouviu a conversa e acercou-se dela, sem fôlego. – Conseguis subir os degraus todos, Alice? – cuidou Reyna.
– Claro que sim. Pensais que deixo mais alguém fazer isto?
Reyna ajudou Alice a subir as escadas. No quinto piso, Alice fez menção de entrar no quarto principal, mas Reyna desviou-a.
Alice seguiu Reyna à câmara dela. – Ah, não quereis dormir na mesma cama que usastes com Sir Robert.
Reyna não respondeu. Alice levou as mãos às ombreiras do casaco dela e fê-lo descer. – Não vos sentis culpada nem nada que se pareça, pois não? Algumas viúvas sentem-se assim quando voltam a casar, se tinham afeição pelo primeiro marido. Mas Robert não teria querido que vivêsseis sozinha.
Juntas soltaram os botões murchos do cabelo e tiraram a coroa de rosas. Alice penteou as compridas madeixas sedosas e depois desapertou e despiu o bonito vestido.
A cozinheira foi preparar a cama.
– Deixai-me agora, Alice – pediu Reyna.
Alice olhou para ela desconfiada – Que estais a tramar, criança?
– Queria ficar algum tempo sozinha, só isso.
– Vejo que estais infeliz. Sinto. Tendes estado estranha o dia todo. Planeastes continuar-lhe fiel, mesmo na morte?
– Se tenho estado estranha, é por ter sido tudo tão rápido e inesperado. Deveria estar a dançar de alegria?
– Talvez não, mas não terdes o aspeto de quem está a caminho da forca pode ajudar-vos com este cavaleiro.
Foi uma escolha de palavras infeliz, mas não totalmente acidental. Alice lembrava-lhe a proteção que Ian lhe proporcionava e aquilo que ela lhe devia em troca. – Deixai-me agora – repetiu Reyna.
Alice resmungou e abanou a cabeça. Deu uma palmadinha no rosto de Reyna e saiu.
Reyna suspirou profundamente. Foi até aos seus baús, pegou num dos seus vestidos simples e vestiu-o. De seguida, compôs rapidamente o cabelo numa longa trança. Atirando-a sobre os ombros, aproximou as três velas da escrivaninha. Sentia-se agitada de mais para ir dormir já. Começaria a carta para Lady Hildegard, da Suécia.
Compôs cuidadosamente a primeira linha em latim para a abadessa letrada com quem se correspondia. Da última vez, a abadessa enviara-lhe uma argumentação detalhada provando que as mulheres tinham alma, um ponto que os teólogos por vezes discutiam. Reyna havia encontrado algumas falhas de lógica, que queria assinalar-lhe para Hildegard as corrigir antes de fazer circular a sua tese.
Preparava-se para aprofundar a sua análise, quando a porta do seu quarto se abriu. Ian entrou, fechando a porta atrás dele.
– Que fazeis? – perguntou ele.
– Escrevo uma carta – respondeu, arranhando o papel com mais uma palavra.
Reyna tentou concentrar-se numa difícil construção latina que precisava de formar. O que não era fácil. Ian conseguia de algum modo distraí-la sempre que estava por perto. Queria mesmo que ele saísse.
– Tendes uma atitude peculiar face aos casamentos, Reyna.
Passais o dia a ignorar o vosso marido e retirais-vos para escrever filosofia.
Face ao tom de voz, Reyna fez má cara, mas não olhou para ele.
Ela ignorara-o. Ela não esperara que ele reparasse, ou que, reparando, se importasse muito com isso. Sendo um homem orgulhoso e vaidoso, ele provavelmente pensava que ela devia ter desempenhado melhor o seu papel, tê-lo tratado com mais consideração, e fingido algum interesse.
Ela redirecionou os pensamentos para o seu latim.
Um movimento e um som chamaram a sua atenção. Ergueu os olhos uma fração de segundo. O cinto de cavaleiro de Ian estava no chão ao lado das botas altas que usava.
Ela fitou aquele cinto e sentiu dentro dela um espasmo de mau prenúncio.
O olhar dela subiu por ele acima. Ele desapertava a parte da frente do gibão.
– O que fazeis? – perguntou ela, a medo.
– Dispo-me. Uma esposa atenciosa viria ajudar-me.
O mesmo espasmo.
– Esqueceis que não sou uma esposa atenciosa. Sou uma conveniência temporária.
– É temporariamente conveniente para vós serdes minha mulher.
Como tal, cumprireis todos os deveres que vos destinar. – Olhou para ela, com os olhos negros e grandes à luz das velas. – Porque estais ainda de vestido? Porque é que Alice não vos preparou?
– Preparar-me?
– Preparar-vos. Para a cama. Para mim.
Ela pousou a pena. Manifestou-se dentro dela uma estupefação pavorosa. – Não podeis pensar… não podeis ter intenção de dormir aqui.
– Era minha intenção dormir no quarto principal, mas, como vós não estáveis lá, presumi que não quereríeis dormir comigo na mesma cama que usastes com o vosso falecido marido. Tolerarei isso, por um tempo.
– Dormirmos na mesma cama não seria apropriado, seja ela qual for.
As mão dele estacaram em cima do gibão. – Será mais do que apropriado. Somos casados.
– Não um verdadeiro casamento, dissestes. Um acordo temporário. – Agora ela sentia verdadeiro desespero, misturado com uma raiva crescente. Ele sabia as implicações do acordo deles.
Era incrivelmente desonroso da parte dele fingir que não.
Ian pousou as mãos na escrivaninha. Dois poços negros cintilantes de raiva caíram sobre ela. – Sim, um acordo vantajoso para todos. Vantajoso para Morvan, que assim mantém a neutralidade do vosso pai. Vantajoso para a vossa própria proteção. Dado que esta terra teria sido minha de qualquer forma, a única vantagem que me caberá será a de ter uma mulher disponível quando quiser uma.
Ela chamou a si cada pedacinho de coragem para enfrentar aquela fúria ameaçadora. – Se quereis uma mulher, ide à procura de outra. Aqui, há pelo menos uma dúzia que vos receberá de braços abertos.
– Mas eu não, Reyna, não na minha noite de núpcias. – A voz dele era grave e franca. – Além do mais, a meu ver, ainda temos assuntos por resolver.
Reyna ficou sem fôlego. – Seu sacana, enganastes-me deliberadamente. – Ela colocou-se à frente dele. – Dissestes que seria um casamento de conveniência. Temporário. Não real.
– Real o suficiente até ser anulado.
– E contais que depois minta a um bispo para obter a anulação?
– Eu conto que o vosso estado de infertilidade se pronuncie eloquentemente a nosso favor. Disse que essa seria a base da anulação, não a não-consumação.
A mente dela revirava-se à procura de uma solução para este horrendo mal-entendido. Era terrível. Pavoroso.
Talvez a lógica ajudasse. – Ian, o objetivo do casamento é produzir crianças. Firmámos este acordo sem a mínima intenção de o fazer. Logo, não estamos casados.
– Um silogismo elegante, se bem que imperfeito. Experimentai este. Os votos fazem os casamentos e só os bispos os podem desfazer. Acabámos de pronunciar os nossos votos. Logo, até que um bispo os desfaça, estamos casados. Se procuráveis um casamento que só o fosse no nome, deveríeis tê-lo dito.
Ela reparou com desalento que a lógica dele não tinha mácula.
Ele começou a dar a volta à mesa, em direção a ela. Ela afastou-se com passinhos rápidos, mantendo a mesa entre os dois. O seu coração batia como um tambor e ela tentou encontrar alguma explicação que terminasse o pesadelo. Não havia nenhuma. Nada do que ela pudesse dizer faria algum sentido.
Olhando suplicante para ele, como se as palavras silenciosas que tinha dentro da cabeça pudessem viajar, subterrâneas, na sua voz, sussurrou – Não posso.
O olhar fulminante que ele lhe lançou quase a derrubou. – Não podeis?
– Não.
– Pensastes mesmo que viveríamos como irmão e irmã? Não conheceis bem os homens, pois não?
– Bem que chegue, mas isto é impossível.
– Então não podeis viver aqui. Nem iremos gorar os planos de Morvan por causa dos vossos caprichos. Proponho-vos outro acordo, que é o único que importa esta noite. Nunca forcei mulher alguma e nem pensar em deixar que vós me levásseis a fazê-lo. Se não podeis ser minha mulher, ireis para um convento. Um na Bretanha, imagino, onde não possais causar mais problemas. Com anulação ou não, podereis ficar lá a apodrecer.
A raiva dele corria em ondas pelo ar. A sua expressão era perigosa e determinada. Falava a sério. Fá-lo-ia.
Ian encaminhou-se para a porta. – Tomai a vossa decisão, Reyna. Sujeitai-a a toda a filosofia que quiserdes.
Reyna afundou-se na cadeira e ficou com o olhar vazio posto nas velas que bruxuleavam à sua frente. Reviveu apaticamente o dia e admitiu que, se tivesse prestado atenção, poderia ter previsto isto.
Os olhares demorados. A tensão que se cerrava à volta deles e a perturbava tanto. A sua satisfação petulante por ter gerido tão bem a situação tornara-a cega aos pressupostos de Ian.
Olhou para o anel que tinha no dedo. Deus meu, o que fizera?
Ele não lhe dera grande escolha. A cama dele, a espaços, durante vários anos, ou emparedada para sempre num qualquer convento bretão. Ninguém tinha direito de lhe pedir este último sacrifício.
Pensou no homem paternal e bondoso que lhe mostrara que alguns homens conseguiam ser bons e generosos. Relembrou as promessas que havia feito. Não as trairia. Não podia. Mas se ela compactuasse, ele seria traído tal como se tivesse sido ela a planear tudo deliberadamente. Ainda assim, ela deixaria as circunstâncias tratarem do assunto, não as suas palavras, e tentaria salvar alguma coisa, de alguma forma. Devia-o a Robert, mesmo que ele tivesse insistido que não.
Foi até à porta, imaginando o cavaleiro orgulhoso e ofendido que esperava por si. Duvidava que nesta noite Ian demonstrasse grande bondade ou generosidade.
Ia ser horrível. Perfeitamente horrível.
Reyna abriu a porta do quarto principal e entrou silenciosa. A noite esfriara, e os criados haviam preparado a câmara com um lume fraco na lareira. Três velas reluziam ao lado da cama nos seus altos candelabros, e ela perguntou-se se, lembrando-se do medo que ela tinha do escuro, Ian teria providenciado aquela luz adicional.
Ele estava sentado num dos vãos das janelas, uma perna levantada e dobrada lá dentro e o outro pé pousado no chão. A princípio, com os olhos na noite, ele não reparou nela.
Ainda estava irritado, ela sentia-o. Reyna ficou ao pé da porta.
Toda ela, até os próprios braços e pernas, cheios de um medo que volteava como água.
Ele apercebeu-se dela. A sua cabeça voltou-se. Ela não conseguia ver-lhe claramente o rosto por entre as sombras.
– Vinde aqui.
Ela respirou fundo e foi até ele. Não conseguia olhar para ele, mas sentia-o a observá-la. Reyna ficou uma eternidade terrível em silêncio, com o olhar quente dele posto nela e aquele poder a abalar o espaço à sua volta.
Os dedos dele deslizaram pela trança abaixo. Os seus olhos baixos viram-no agarrar na ponta. A mão dele começou a rodar lentamente, fazendo a trança enrolar-se à sua volta. Ela sentiu uma puxadela na nuca e baixou a cabeça, mas a mão continuou a rodar.
Sim, irritado, e nada generoso.
Fechando os olhos de humilhação, não teve outra escolha senão dobrar os joelhos à medida que a trança a fazia baixar-se. Mais.
Mais ainda, até por fim se ajoelhar no chão ao lado dele, com a trança enrolada como uma cobra no seu antebraço. Ele endireitou o braço, fazendo a cabeça dela descer até ela estar dobrada. O
coração de Reyna ribombava de indignação, mas manteve-se calada.
– Parece que podeis, afinal.
– Sim – sussurrou ela.
– Sim, meu senhor – corrigiu ele.
Ela cerrou os dentes – Sim, meu senhor.
Aqui, pensou que ele ia soltá-la, mas ele não o fez.
– Amáva-lo?
A pergunta inesperada surpreendeu-a. – Amava quem, Ian?
Robert? Reginald? Edmund? Fizestes-me amante de muitos.
Ele apertou a mão, como aviso. – O vosso marido. Amáva-lo?
Ele oferecia-lhe uma desculpa, uma explicação para as suas repetidas rejeições. Ela suspeitou que a resposta não mudaria nada, por isso falou honestamente. – Robert era tudo para mim. Construí a minha vida à volta dele e a sua morte deixou-me sem um centro.
Ele era o meu salvador, meu professor, meu pai. – Fez uma pausa.
– Era meu amigo.
Ian olhava para ela, furioso, abismado com a emoção irracional que a resposta dela evocava. Ter-lhe-ia sido mais fácil ouvir a confissão de uma paixão imortal. Com a paixão ele podia competir, mas as palavras dela deixavam claro que, acontecesse o que acontecesse esta noite, o velho possuíra uma parte dela que ele nunca teria.
Sentia ciúmes de um morto, pensou, com uma raiva pesarosa. O
seu rei Alfredo.
Ian desenvolvera uma imagem mental de Robert de Kelso, baseada no pouco que ela e outros haviam dito. Não era um homem alto nem possante, mas seco e forte. Um bom guerreiro, mas aí a sua inteligência provavelmente contava tanto como a sua perícia com as armas. Cabelo branco na altura da morte, e provavelmente uma barba. Não seria um homem belo, mas teria olhos bondosos e inteligentes, especialmente quando olhava para ela.
Ela chegara a Robert ainda criança e vivera como uma pessoa da casa durante muitos anos. O que lhe teria passado pela cabeça quando finalmente a levou para a cama? Ele cuidara dela e amara-a como a uma filha. Ajudara-a a ultrapassar os seus medos e dera ao seu espírito a liberdade de se desenvolver. Reconhecera a sua mente incisiva e conduzira gentilmente o seu desenvolvimento.
Provável era que tivesse adiado longamente a ocasião de a possuir e aí aquela cama teria estado repleta de carinho e cuidado, mas não de paixão. A proximidade provavelmente contava mais do que o prazer. As suas verdadeiras uniões haviam acontecido de outras formas, à lareira enquanto discutiam aqueles livros, à mesa enquanto ele comia da comida dela, no pátio enquanto ele a observava brincar.
Ian olhou para o corpo dela, curvado em submissão ao seu lado.
Ela não se mexia, nem falava, mas ele sentia o medo complexo que se derramava dela. Imagens dela nua por baixo dele à beira-rio, do seu prazer perplexo e resistência desconfiada, misturavam-se na sua mente. Uma ideia estranha espicaçava-o, e mais palavras e imagens vinham ao seu encontro. Ele era o meu salvador, meu professor, meu pai, meu amigo.
Soltando a mão do cabelo dela, desenrolou a trança. – Despi-vos e entrai na cama, Reyna.
Ela pôs-se em pé e dirigiu-se para a cama, usando a respiração para controlar o pânico. Virando-se, para não ter de o ver a olhar para ela, desfez a trança, esperando que o cabelo a tapasse um pouco. Começou a despir o vestido, sentindo o olhar impaciente dele fixo em si.
Ela tirou a combinação, enfiou-se na cama e cobriu-se com o lençol. Fechando bem os olhos, ficou deitada, à espera.
Pulsação a pulsação, o tempo passava. Muito tempo. Na verdade, começou a sentir-se sonolenta. Abrindo um pouco um olho, viu Ian, ainda sentado no vão da janela, a olhar para ela.
Tinha a cabeça inclinada, como se ponderasse se ela valia o esforço.
Ele deixou-se escorregar da janela, e ela voltou a fechar os olhos. Já sem sono, escutava os sons dos seus movimentos. Botas a caírem ao chão. Tecido contra tecido. Um grande peso afundou o colchão ao seu lado. O cheiro e o calor dele invadiram-lhe os sentidos e o seu coração começou a bater com força.
A mão dele pegou-lhe no queixo, virando para si o rosto dela.
Ela sentiu-o aproximar-se. Uns lábios roçaram os dela e depois ele afastou-se.
– Não achais que deveis dizer-me agora?
Ela abriu os olhos de surpresa. O seu tronco nu estava apoiado num braço. O lençol cobria-o até à cintura.
– Daqui a nada descobrirei a verdade – acrescentou.
Ele sabia. Dentro dela colidiram uma série de reações. Não disse nada. Não havia nada que pudesse dizer.
– Não, se não falastes para salvar o vosso pescoço nem a vida do vosso irmão, não o faríeis agora para vos poupar ao meu orgulho irritado. – A mão dele arrastou-se, pensativa, pela beira do lençol que cobria os ombros dela. Ela susteve a respiração perante as sensações que aquele toque lento despertava. Talvez tivesse sido assim que ele ficara a saber. Talvez ele tivesse visto a sua fome desavergonhada por aquilo que era.
– Fiquei ali sentado a pensar no que dissestes sobre Robert –
retomou ele. – E depois pensei neste mal-entendido, e no que dissestes ontem no jardim, sobre já ter tido um casamento de conveniência. Ocorreram-me outras coisas. A ignorância da cortesã Melissa, por exemplo. Mais tarde disse para comigo que havíeis fingido inexperiência quando fiz amor convosco ao pé do rio, mas naquela noite, na minha tenda, não era do vosso interesse fazê-lo.
Ele olhou-a nos olhos. – Robert de Kelso foi de facto muitas coisas para vós, Reyna. Tudo aquilo que mencionastes. Mas não penso que ele fosse verdadeiramente vosso marido. Ainda sois virgem, não sois?
Ela virou a cabeça para o lado. Ele forçou-a a encará-lo. – Não podeis falar disso, mesmo agora que eu já sei? Se prometestes silêncio, não quebrastes a vossa promessa comigo. Ele fez-vos prestar juramento?
Desesperada, ela examinava as emoções que a assoberbavam.
Debateu o valor do silêncio perpétuo e não lhe encontrou nenhum.
Suspirando profundamente, soltando uma expiração retida durante anos a mais, abanou a cabeça. – Ele não me fez jurar nada. Apenas me pediu para manter silêncio enquanto ele vivesse. Ele não sabia que jurei fazê-lo depois da sua morte.
– Então porque o fizestes?
– Não queria que as pessoas a falassem dele. A ridicularizá-lo.
A adivinhar razões. Ele era um homem bom, respeitado e honrado.
Se se soubesse, fariam dele um louco, ou pior.
– Ele está morto.
– Sim, ele está morto, e tudo o que deixou foi a sua memória.
Não deixarei que seja destruída.
Ela perguntou a si própria se ele a acharia completamente desvairada. Talvez para um homem destes, ninguém valesse os riscos que ela correra.
– Ele era incapaz? – perguntou ele. – Preferia outros homens?
– É esse o tipo de especulação que eu pretendia evitar, Ian. A resposta é, não sei. Só falámos disso uma vez, quando eu tinha dezassete anos. Por essa altura eu já compreendera que o nosso casamento não era normal.
Lembrando-se daquela noite, sete anos antes, quando Robert voltava de uma visita a Clivedale, ela pestanejou. Havia decidido que o problema talvez fosse ele ainda a ver como uma criança e portanto, desta vez, decidira recebê-lo como uma mulher. Com quanto esmero cuidara do seu cabelo e da rua roupa. Com quanta audácia tentara beijá-lo à sua chegada. Funcionara. Ela viu o assombro da constatação nos olhos dele e reparou na forma como ele olhava para ela à refeição. Mas naquela noite, ele deixara-a à porta do quarto principal, como sempre fazia.
– Ele não explicou as razões. Pediu-me para não pedir a anulação porque destruiria as tréguas a par do casamento. Claro que eu concordei. Não desejava voltar para Duncan, e amava Robert e queria ficar com ele.
– Mais alguém sabe?
Veio outra memória, de uma voz no quarto principal naquela noite, repreendendo Robert. Ela acha que a culpa é dela e tem direito a saber. – Andrew, penso eu. Se outros há, não sei da existência deles. – Ela apoiou-se num cotovelo, segurando o lençol à sua volta. – Tendes de prometer não contar a ninguém.
– Não prometo nada. Isto muda tudo.
Ela deixou-se cair na almofada e cobriu o rosto com o braço.
Sim, mudava tudo. Não podia pedir a Ian que continuasse com o casamento nos termos que ela presumira, deixar o mundo pensar ainda que ela era estéril, procurar a anulação. Porque iria ele esperar e dar-se a tanto trabalho? Se ela tivesse admitido a verdade, nunca teria havido casamento, para começar. A prova de que ela não fora abusada estava no seu interior e um exame simples revelá-la-ia. Então Aymer não o desafiaria e não haveria necessidade de evitar as consequências de tal desabafo através deste acordo.
Ela sabia que Ian não lhe tocaria esta noite. Ele não destruiria a prova que o libertaria da assassina com que se vira forçado a casar.
E imediatamente, também, uma vez que ela supunha que assim que ele traísse o seu segredo, todos, até o padre, concordariam em rasgar o acordo e declarar os votos inválidos.
Eu tentei, Robert. Se não tivésseis morrido quando morrestes, se Morvan Fitzwaryn não tivesse escolhido este ano para regressar, se Reginald tivesse sido fiel e me tivesse levado para Edimburgo… Suspirou com a inutilidade de todos aqueles
«ses».
Ela atirou o lençol para trás e sentou-se, pegando na combinação, indiferente agora à sua nudez.
– Onde ides, Reyna?
– Para o meu quarto.
– A noite está fria e lá não há nenhum fogo aceso. Ficareis aqui.
– Dificilmente morrerei congelada.
– Ficareis aqui. De outra forma, os criados falarão. – Ele levantou-lhe o lençol.
Os criados e todos os outros falariam que bastasse daí a um dia ou dois. Voltou a deitar-se e puxou o lençol.
Ian deitou-se de costas ao lado dela. Os seus olhos estavam fechados, mas uma expressão pensativa enrugava-lhe um pouco a testa. Ela sentiu o calor da pele dele ao lado da sua. A intimidade de estar assim deitada, nua, ao lado da força e da beleza dele, arrebatou-a. Perguntou-se se ele o teria feito tantas vezes que se tornara imune à envolvência perturbante, sedutora, que criava.
Se ela soubesse o mínimo que fosse sobre sedução, poderia resolver o dilema agora mesmo. Claro, teria de passar o resto da vida com um homem que nem confiava nela nem a queria, que a detestava porque ela o encurralara. E ele podia continuar irritado o suficiente para falar a todos de Robert. No entanto…
– Não resultará, Reyna – disse ele. – Penseis vós o que for, não sou escravo dos meus sentidos quando as circunstâncias o requerem.
CAPÍTULO 13
Ian esgueirou-se da cama antes do amanhecer e vestiu-se. Aquela afirmação pomposa que fizera a Reyna na noite anterior não passara de gabarolice. Passara a maior parte da noite a olhar para ela, lutando contra a tentação de a acordar com a sua boca e as suas mãos, silenciosamente incitando-a a virar-se para ele e a tocar-lhe com o toque que despedaçaria a sua determinação.
Riu-se interiormente com a ironia. Passara dias a sonhar tê-la na sua cama e quando ela finalmente lá se encontrava, porque ele se casara com ela, não podia tocar-lhe.
Olhou de novo para ela. Ele dissera que a noite anterior mudara tudo, e de facto assim fora. Durante a noite, enquanto olhava para o seu rosto adormecido, fora capaz de colocar de lado o seu orgulho e ver o amor que ela tinha a Robert como o sentimento puro que era. Ela não o traíra com amantes em vida e não tencionara fazê-lo na morte, e certamente que não o matara. Não havia razão para tal, para começar. Robert seguramente não planeara livrar-se dela, muito menos por ser estéril. Mas também porque, tal como dissera, Reyna construíra a sua vida à volta dele, e não teria destruído isso.
Teria ela permanecido silenciosa mesmo quando lhe apertassem o laço à volta do pescoço, ou teria finalmente rejeitado o seu imprudente juramento e revelado a prova em sua defesa? Ian olhou longamente o seu corpo frágil, indefeso, maravilhado com a força e a devoção que a haviam sustido nestes últimos meses. Apesar do que ela dizia, Robert de Kelso não a havia deixado sem centro. Ele havia-a ajudado a construir um âmago de honestidade e bondade que suportava a sua alma como um pilar de aço. Uma mulher admirável, forte e astuta e verdadeira. Ele conhecera poucos homens que se lhe comparassem, em mente e espírito.
Um caminho era claro. Não havia de facto escolha, mas ela dificilmente lhe agradeceria por isso.
Ian saiu do quarto e foi até à penumbra do salão. Criados já dispunham pão e cerveja. Ele detetou a figura de Andrew Armstrong numa das mesas e sentou-se no banco à sua frente. O
intendente de cabelo grisalho parou de mastigar por um momento, e depois continuou, impassível. Ian viu resignação nos olhos de Andrew durante aquela pausa breve, e soube que Reyna estava certa, e que Andrew sabia e que agora presumia que Ian também.
– Sir Robert já era casado quando desposou Reyna? –
perguntou Ian, enchendo o copo de cerveja.
Andrew pousou o copo dele. – Não que eu soubesse.
– Ele viajou largamente. Podia ser.
– É possível. Mas daquilo que eu conhecia dele, Robert não violaria assim um sacramento, desposando uma mulher quando já tinha outra.
– O homem era impotente?
As pálpebras de Andrew baixaram-se. – Não acho.
– Soubestes de alguma mulher que ele tenha levado para a cama?
– Não. – Andrew olhou para ele com franqueza, como que desafiando-o a continuar.
Ian devolveu o olhar, com a mesma franqueza. – Preferia homens e rapazes?
– Não. Esses homens conseguem cumprir com os deveres do casamento quando a isso se veem obrigados, para começar. Vários dos vossos reis ingleses o provaram.
– Esta obrigação não era tão custosa assim.
– Qualquer que seja a história que vós façais acerca disto, essa é a errada. – Fez uma pausa e acrescentou calmamente: – Esses homens sabem uns dos outros quando se encontram.
– Talvez. Talvez não. – Ian aguardou que o intendente avançasse uma explicação alternativa. O silêncio plácido do homem enervava-o. – Não ides dizer-me a verdadeira razão, pois não? Também fizestes juramento de proteger a sua memória?
O intendente não respondeu e a raiva de Ian disparou. – Tê-los-ias deixado julgá-la sem dizer palavra? Teríeis permitido que a matassem? O honrado Sir Robert esperava muito dos seus amigos.
– Ela planeava ir para norte. Eu tê-la-ia ajudado a fazê-lo. Mas se fosse preciso, eu teria dito o suficiente para que fosse necessário alguém procurar a prova de que ela não era estéril.
Ian sabia que não conseguiria arrancar nada de mais concreto do intendente, por isso levantou-se e atravessou o salão. Precisava de falar com Christiana Fitzwaryn antes de levar os seus homens até à fronteira para fazer a troca das mulheres Armstrong.
Um grupo de trinta Armstrongs aguardava no alto de uma colina.
Detendo a sua hoste, Ian indicou a David que trouxesse para a frente os cavalos que transportavam as mulheres.
Thomas Armstrong e dez homens desceram a colina. Ian e David avançaram, com as mulheres errando atrás deles. Pararam a cinquenta passos de Thomas, e as mulheres começaram a atravessar a linha divisória.
Thomas olhou para as mulheres. – Onde está Lady Reyna? –
gritou.
– Ela não deseja vir – respondeu Ian.
– Eu exijo…
– Não tendes o direito de exigir nada. Pela minha generosidade, estas senhoras estão aqui, mas a outra fica comigo.
As mulheres alcançaram os seus salvadores. Margery foi até ao marido. Thomas mal a cumprimentou. E depois, num gesto desprovido de qualquer subtileza, Margery virou-se para trás no seu cavalo e lançou a Ian um pungente olhar de despedida.
Thomas olhou, carrancudo, para a mulher e depois para Ian. O
seu rosto ficou vermelho. Seguiu-se uma ríspida discussão com Margery.
– Credo, Ian – sussurrou David entredentes. – Não admira que tivésseis trazido cem convosco.
– Ela não parava de se atirar a mim. Asseguro-vos que a minha contenção foi admirável.
– Um destes maridos ou irmãos acabará por vos matar.
– É provável.
– Aqui vem ele.
Thomas trotou em direção a eles. – Não penso que tenhais devolvido a minha mulher tal como a deixei – rosnou.
– É isso que ela diz?
– Será um prazer matar-vos quando tivermos escorraçado Fitzwaryn destas terras.
– Não há por que esperar. Se desejardes tentar agora, estou recetivo.
Irado, Thomas falou atabalhoadamente. – Ela diz que desposastes a viúva de Robert.
– Sim, é verdade.
– Ela matou um homem bom!
– Se assim foi, responderá por isso, mas não a vós.
– Duncan Graham está por detrás disto?
– Se assim fosse, ele estaria a cortar-vos em pedaços neste momento.
Thomas fez um ar de desprezo e deu a volta com o cavalo. – Se sobreviverdes a este verão, encontrar-nos-emos. Entretanto, acautelai-vos com o que comeis.
*
Christiana saiu do salão para saudar Ian e David, que estavam de regresso. Ian olhou para ela, inquiridor. Ela devolveu-lhe um aceno de cabeça mínimo.
– Onde está ela? – perguntou ele.
– No jardim.
– Lamento ter-vos envolvido nisto, senhora.
– Melhor eu do que Duncan e Aymer, apesar de ela estar perturbada por achar que eles não aceitarão a minha palavra e exigirão… – As palavras dela esmoreceram e ela fez um esgar. –
Eu não pude prometer poupá-la a esse suplício.
Ele deixou a companhia dela, mas não foi procurar Reyna ao jardim. Primeiro precisava de verificar uma coisa. Pedindo a David que o acompanhasse, tirou um archote de um facheiro e subiu os degraus que conduziam ao quarto principal.
– O que estamos a fazer? – perguntou David, quando Ian parou no quarto a olhar pensativamente para as paredes.
– São paredes espessas, David. É comum cavarem-se nelas quartos e coisas parecidas, em torres como esta. Há um vão no quarto de Lady Margery, que ela utilizava como guarda-vestidos.
Tem uma porta e a sua existência é óbvia. Acho estranho que este quarto não tenha um também.
– Achais que está escondido?
– Sim. Um sítio seguro, para dinheiro e coisas do mesmo jaez. –
Passou cuidadosamente o archote pela parede este sem ter sorte, mas também já o havia feito sem encontrar nada. Virou-se pensativo para sul.
– As escadas que conduzem ao túnel da poterna sobem até aqui
– explicou ele. Passou o archote a David e dobrou-se, para puxar as pedras. A entrada baixa abriu-se.
David examinou as dobradiças interiores e a barra de ferro que unia as pedras. – Engenhoso.
– Sim. Quase impossível de notar se não se souber que cá está.
Penso que o autor foi Robert de Kelso. Tem a marca da inteligência dele. Mas esta é a única parede externa para além da outra, e com estas escadas… – Ian aninhou-se e entrou na parede.
O teto abobadado acima dele era demasiado baixo para conseguir pôr-se em pé. Descendo alguns degraus, virou-se e fingiu subir a escada, procurando a entrada.
– Passai-me o archote.
David passou-lhe a tocha. As escadas e as abóbadas iluminaram-se. Endireitando-se, Ian olhou para a parede defronte do cimo das escadas. Era cavada lá em cima. Não era um quarto, mas mais um nicho profundo. Um homem mediano, ao subir as escadas, só veria uma sombra à luz do archote, se nela chegasse a reparar.
Aproximando o archote, espreitou lá para dentro. Viu o brilho de metal lá atrás. Identificou uma velha armadura e a ponta de um tecido. Mais perto, à distância de um braço, estavam dois objetos mais pequenos.
Pegou no primeiro. Um livro. Virou algumas páginas com uma mão. O herbário desaparecido. Voltou a colocá-lo no sítio e puxou para si o outro objeto. Uma caixa para moedas, mas adivinhou que não continha dinheiro.
Enfiando-a por baixo do braço, regressou ao quarto. David ergueu as sobrancelhas quando viu o objeto.
– Tinha de estar nalgum lado – disse Ian. Levou-a para a secretária e pousou-a em cima dos livros. Abriu-lhe a tampa.
Continha pergaminhos.
– Os documentos – constatou David.
– Concluí que Thomas Armstrong não os teria levado, mesmo se soubesse onde estavam. Teve de sair depressa quando o castelo sucumbiu.
David começou a desenrolar os pergaminhos.
– Procurai o acordo nupcial – pediu Ian.
– Aqui está.
– Procurai a descrição do dote dela. Terras a este? Que lhe foram garantidas como arras quando ele morresse?
– Sim. Como sabíeis?
– Ela mencionou as terras uma vez, mas Morvan disse que a propriedade dele acabava a apenas um quilómetro para este, ainda antes dos baldios. Aquele velho castelo estava então originalmente em terras dos Graham, mas foi dado a Robert como parte do dote dela.
David pegou num pequeno pedaço de pergaminho, tinta e uma pena. Começou a desenhar. – Temos aqui Clivedale a norte e Harclow a sul, com o castelo de Black Lyne entre eles. As terras dos Graham ficam a este. – Desenhou três retângulos horizontais, empilhados, num lado do papel, e um comprido, vertical, do lado direito daqueles. – Daquilo que consigo perceber, o dote de Reyna transferiu estas terras aqui. – Cortou uma pequena tira das terras dos Graham.
Ian estudou a nova configuração. A terra dotal não se limitava a estender os domínios de Black Lyne em alguns quilómetros para este. Crescia para cima e para baixo, finos braços que separavam as fronteiras dos Graham e dos Armstrong tanto a norte como a sul. Foi assim que o casamento criou uma área neutra.
– Não admira que Duncan a queira de volta – disse David pensativo. – Só as terras do dote colocam os Graham outra vez em cima dos Armstrong. Como originalmente não faziam parte de Harclow, Morvan deixá-lo-ia ficar com elas.
– Voltai a olhar, David. Se o testamento final for conhecido, e Black Lyne e respetivas terras forem com ela, Duncan Graham cerca os Armstrong, em Clivedale, de dois lados.
A expressão de David endureceu. – Também cerca Harclow de dois lados. Maccus Armstrong tinha muita fé em Robert de Kelso para deixar o homem ficar com uma propriedade tão estratégica.
Se tanto os Graham como os Armstrong reivindicarem Black Lyne ou até mesmo as terras dotais através dela, não são boas notícias para Morvan, e não augura nada de bom para uma paz futura.
Ian estudou o desenho de David, mas as suas implicações estratégicas na verdade não fariam diferença alguma. Naquela madrugada, ele já decidira o destino da viúva de Robert de Kelso.
CAPÍTULO 14
Reyna ouviu os passos a percorrer o caminho que atravessava o pomar. Sabia quem seria. Continuou a escavar o solo do jardim até aqueles se deterem por detrás dela.
– Seu canalha – disse ela sem se virar. Aproximou os joelhos da camomila, empurrando a caixa de terra para a qual transplantava as ervas. – Podíeis ter-me avisado.
– Teria sido mais fácil assim? – perguntou Ian.
Na verdade, Christiana tornara o exame o mais fácil que se podia pedir, distraindo-as a ambas daquilo que se passava contando histórias humorísticas da corte inglesa. – Não. No entanto, podíeis ter aceitado a minha palavra.
– Eu não precisava de prova nenhuma, mas outros precisarão. A vossa palavra e a minha não serviriam de muito.
– Porquê acreditar em Christiana, então?
– Morvan e David nunca duvidarão dela, e é a condessa de Senlis, portanto nenhum padre lhe chamará mentirosa.
Morvan, David e o padre. Menos homens da próxima vez, pelo menos.
Ela ergueu-se e esfregou as mãos para limpar a terra. Na sua caixa, as ervas transplantadas faziam dó. Era uma perda de tempo.
Duncan nunca a deixaria levá-las com ela. Tudo o que era a sua vida aqui acabaria dentro de algumas horas, quando se fosse embora com o pai para regressar à sua casa de infância.
Virou-se para Ian. Ele retirara a armadura que usara para ir à fronteira e envergava um gibão azul. Estava tão belo, a expressão austera, aquelas pestanas espessas descidas para proteger da luz os dois poços negros.
– Tenho apenas dois pedidos – continuou ela. – Duncan e Aymer provavelmente não aceitarão a palavra de Christiana. Se tenho de passar por isto com eles, quero fazê-lo de uma vez.
Também vos peço para inquirirdes junto de Morvan se posso levar os meus livros. Se pelo menos pudesse levar os que me foram dados por Robert…
– Os livros ficarão aqui, Reyna.
– São tudo o que tenho, Ian. Deixai-me ficar com alguma coisa desta vida.
– Os livros ficarão. E vós também.
O choque foi tão avassalador que ela começou por achar que tinha ouvido mal. – Não compreendo.
– Estamos casados. Ficaremos casados. Sem anulação, nem agora nem nunca. Quando estiverdes de esperanças, terá sido pela graça de Deus.
– Então porque… Christiana…
– Não é para Duncan. Tal como dizeis, ele não acreditaria nela.
Mas a vossa virgindade sustenta a vossa inocência na morte de Robert, visto que elimina o motivo que todos vos atribuíram. Só Morvan precisa de saber disso quando chegar a altura, e ele não duvidará da irmã.
Ela olhou para o seu jardim de ervas. Estava cheio de plantas colhidas em passeios com Robert, ou trazidas por ele para ela após visitas a mercados distantes. O círculo de pequenos canteiros alargara-se ao longo dos anos, com a adição de novas plantas. De certa forma, estas plantas representavam a história da sua vida com ele.
Percorreu-a uma ternura para com Ian. Ele dava-lhe isto.
Oferecia-lhe a proteção da memória de Robert. Ninguém a não ser Christiana e Morvan tinha alguma vez de saber. Era um gesto incrivelmente nobre da parte dele, em prol da reputação de um homem que ele nunca conhecera.
– Não tendes de fazer isto. Robert está morto. As pessoas falarão, e depois esquecerão, especialmente se eu aqui não estiver.
Ele aproximou-se dela, passou-lhe os dedos pela face e pelo queixo, e aproximou o seu rosto. – Escolho fazê-lo.
– Porquê?
– Podia dizer que cumpro a promessa de proteção que vos fiz junto ao rio. Podia dizer que é porque o nosso casamento me dá mais garantia desta propriedade. Mas a verdade não é tão nobre nem tão prática. – Roçou os lábios dele nos dela. – Desde o início que não vos autorizei a partir, e não o farei agora.
Beijou-a. Um beijo terno, mas cativante, sedutor. Fê-la sentir-se leve e aérea, como se ele lançasse um feitiço sobre ela.
– Quero-vos. Tão simples quanto isso – disse ele. – Não ides.
Ela fitou o seu rosto perfeito. Não viu nenhuma da raiva dos últimos dias, mas sim uma expressão tensa e determinada, como se ele esperasse uma discussão. Ela perguntou-se se ele esperaria que ela repetisse os insultos que desfiara sobre ele, e declarasse que preferia ir com Duncan a ser esposa dele, sem atender ao que pudesse acontecer ao nome de Robert. Ele não podia saber que ela se refugiara naquela animosidade para se proteger destes outros sentimentos que ele evocava.
Por outro lado, talvez ele suspeitasse. Sentis medo do que sois comigo, mas é algo completamente diferente de ódio.
Ele beijou-a novamente e todo o seu corpo fervilhou. Era uma sensação maravilhosa. Ela não a repeliu, porque já não tinha de o fazer. – Pensei que isso tivesse mudado – replicou ela.
– Não. Querer-vos nunca mudou. – As mãos dele acariciaram-lhe o rosto, e depois pousaram, possessivas, nos seus ombros. O
polegar dele acariciava-lhe o pescoço, originando uma pequena linha de contacto, quente, pulsante.
– Fazeis um mau negócio, Ian. Depois de essa fome ser saciada, ficareis amarrado a mim. Para sempre.
– Sim.
– Não se pode dizer que seja a mulher dócil que planeáveis desposar depois de nos separarmos.
– É verdade. Mas conto que o vosso temperamento melhore depois de eu vos dar o que precisais.
– É isso que pensais? Que eu…
– Penso que Robert vos pediu para viverdes uma vida antinatural. É uma vida que convém a algumas mulheres, e por isso é irrelevante, mas não a vós.
– E pensais mostrar-me a minha verdadeira natureza?
– Se alguma vez conheci uma mulher que ficou donzela durante tempo de mais, fostes vós.
Podia ser a verdade, mas soava-lhe a um insulto. A raiva dela deflagrou. – A minha vida era alegre e plena.
– Durante muito tempo, mas há já alguns anos que não, penso eu. Não desde que a rapariga virginal se tornou na mulher virginal.
Negais o vosso ressentimento por o salvador e professor não conseguir ser homem convosco?
Libertando-se, Reyna lançou-lhe um olhar furioso. – Não troceis dele. Nunca. Se provardes ser metade do homem que Robert era, posso não me arrepender muito deste casamento.
Ele voltou a puxá-la para si, para os seus braços, contra o seu corpo vigoroso. – E se me mostrardes um décimo da lealdade que mostrastes para com aquele velho, eu também não – disse ele com firmeza, reclamando a boca dela com um beijo voraz.
Ele tomou os lábios dela completamente nos seus. Um arquejo de surpresa sumiu na boca dela, e o desejo com que ele vinha brincando jorrou em catadupa, desconcertando-a. A paixão dele esperava por ela, elevando a dela no seu crescendo, temerosa pela sua força e perigo. Não havia nada de meigo na forma como a língua dele roçava os seus dentes e palato, para logo investir de forma selvagem, insistente. Todo o seu corpo respondeu àquela ordem com uma urgência frenética.
Ele suavizou o beijo, substituindo o arrebatamento pela sedução.
Era igualmente devastador, à sua maneira, tê-lo a provocar-lhe a boca, quase com delicadeza, e a acariciar-lhe o corpo, quase com castidade. Ele brincava com a fome que despertara, e magníficos arrepios de prazer espalhavam-se por ela até ela praticamente gritar que ele lhe desse mais.
Ele envolveu-a com os braços. – Quero tomar-vos agora, aqui, mas esperarei pela noite. Uma virgem merece alguma corte.
Ela reclinou-se na sua força, o ouvido contra o peito dele, a necessidade que ele tão facilmente convocava atormentando-a de frustração. Fora uma demonstração eloquente do conhecimento que ele detinha sobre esta parte oculta dela, e do que ele esperava deste casamento.
– Gostais disto, não gostais? De eu ser uma donzela de idade.
– Constato que me alegro com isso.
– Porquê? Por ser um prémio tomado uma vez só?
– Talvez. Ou um presente ofertado uma só vez.
Ela fez-lhe uma careta. – Não penso que seja tão bom como os vossos beijos sugerem.
– Não me digais que ainda sentis medo como uma rapariguinha.
– Tive mais tempo do que a maioria para me preocupar.
– Tendes sorte, Reyna – disse ele suavemente. – Afinal, dais-vos ao Senhor das Mil Noites. Mostrar-vos-ei um prazer tal que não volvereis a preocupar-vos de todo com coisas dessas.
Ela olhou-o nos olhos. Na verdade, não lhe cabia grande escolha. A decisão fora dele, não dela. Reyna perguntou-se se a volúpia temporária dele não os conduzia a um penoso erro, e se esta vida não se revelaria o inferno que ela havia declarado dois dias atrás. Ele não era um Robert de Kelso, pensou ela, e constatou, perplexa, que estava contente por isso. Com Robert, a noite de hoje teria de alguma forma sido obscena.
– Para onde olhais? – inquiriu Ian.
– Para vós.
– E o que vedes? – perguntou algo tenso, como se previsse uma resposta ofensiva.
– Não estou certa. Contrastes curiosos. Um homem que consegue ser bondoso mas também cruel.
– Não leiais complexidade onde não existe nenhuma, Reyna.
Sou muito simples. Quando estou satisfeito, sou bondoso. Quando estou irritado, sou cruel. – Conduziu-a para o trilho do pomar. –
Dou-vos agora um conselho para evitar a última parte. Podeis chamar-me Ian, ou marido, ou vosso senhor, ou qualquer outra amabilidade que quiserdes. Mas chega de filhos de uma égua, canalhas, sacanas e rebentos do diabo.
Ele sorria ao dizê-lo, mas ela sabia que ele não estava a brincar.
Ele mentira. Não a cortejou durante o dia. Seduziu-a.
Reyna suspeitou que, com Ian de Guilford, uma coisa e outra iam dar ao mesmo.
Nada de palavras bonitas e lisonjas. Nada de poesia e gestos cavalheirescos. Apenas uma presença constante e uma atenção cuidadosa repleta da lembrança silenciosa de que ele a queria e a teria muito em breve.
Uma confusão de festividades criou um cenário colorido para a expectativa que pulsava entre eles. Ao longo do torneio e do jantar e da caçada, até durante a despedida de Duncan, cada olhar caloroso, toque descontraído e beijo ocasional que ele lhe dava aceleravam a cadência da excitação para um ritmo mais expectante.
E ela, indefesa perante tudo isto. O seu espírito havia-se já rendido, e não conhecia resistência ao talento experiente dele. O
corpo dela sabia ainda menos. A excitação que sentira no jardim não chegara a apaziguar-se completamente, e a sua condição tornava-a muito alerta a ele, muito consciente do braço no seu ombro ou na sua cintura, dos lábios que afagavam o seu rosto, da mão que pegava na sua. Aqueles toques possessivos dedilhavam as cordas do seu desejo. Deliciosos. Devastadores.
Ao fim do dia, uma estranha tensão alojara-se já no fundo do seu ventre, e todo o seu corpo se sentia alerta e curiosamente vivo.
A sua excitação, e a consciência subtil que ele dela tinha, tornavam-na inquieta e silenciosa. Ele, por outro lado, parecia completamente à vontade. Como se já o houvesse feito, bem, umas mil vezes antes.
Morvan e David planeavam partir para Harclow de manhã, portanto a refeição da noite durou mais do que o habitual. Todos pareciam preparados para continuar à mesa, na conversa, com uma caneca de vinho, mesmo depois de a comida desaparecer. Por isso, Reyna assustou-se quando sentiu a mão de Ian subir-lhe pelas costas.
– Vamos retirar-nos agora – indicou ele.
Ela varreu a mesa com o olhar. – Todos saberão.
– Já sabem, Reyna. Somos recém-casados. Na verdade, Morvan já me lançou vários olhares peculiares, como se achasse tremendamente estranho que tenhamos sequer saído do quarto hoje.
– Estou certa que sim, considerando o pouco que sai do dele desde que chegou.
Ele ergueu-se, tomando a mão dela e conduzindo-a para as escadas. Reyna tentou retirar-se como uma viúva experiente.
Logo que saíram de vista, a mão que estava pousada na sua cintura puxou-a de repente e uma boca abrasadora tomou-lhe o pescoço. Com um sobressalto, deu por si empurrada contra a parede das escadas, enfrentando um rosto severo e olhos ferozes.
Ele segurava-lhe na cabeça e apossava-se da sua boca com um beijo que fazia o do jardim parecer brando. Era maravilhoso. E
aterrorizador.
– Parecia que o dia nunca mais acabava – sussurrou ele, descendo a mão numa carícia possessiva pelas suas costas e ancas.
– Eu devia ser canonizado pelo comedimento que mostrei para convosco.
Agarrou-lhe na mão e puxou-a pelas escadas acima, galgando os degraus dois a dois. Ela saltitava para evitar ser arrastada, temendo que a impaciência dele significasse que ele simplesmente a atiraria para a cama e faria o que tinha a fazer. Na verdade, contara que as coisas se desenrolassem mais lentamente, como no rio.
Ele puxou-a para dentro do quarto principal, fechou a porta com um pontapé e tomou-a nos seus braços. Ela estava apavorada com o seu aspeto perigoso. Instintivamente, afastou-o um pouco.
Ele reparou. – Assustei-vos.
– Um pouco – balbuciou ela, sentindo-se absurdamente ridícula.
– Não muito.
– Demasiado.
Ele afastou-se, parando na mesa. Tinham deixado lá vinho e ele serviu um copo. Gastou tempo de mais a fazê-lo e ela perguntou-se se o facto de ela não ter conseguido corresponder à paixão dele o aborrecera. Ele regressou parecendo muito menos ameaçador, e ofereceu-lhe o vinho. Ela abanou a cabeça.
– Penso que talvez devêsseis. – Levou-a para a cadeira, para o colo dele, e voltou a oferecer-lhe o copo. Ela bebeu pequenos goles diligentes. Ele observava-a, acariciando-lhe as costas num movimento reconfortante.
– Como vos sentis agora? – perguntou ele.
– Estúpida.
Ele riu-se. – Estúpida? Lá se vai a minha reputação.
Ela mordeu o lábio inferior. – Não, não é só estúpida, como bem sabeis, mas estúpida que chegue. Tenho vinte e quatro anos, Ian, e aqui estamos os dois, convosco a acalmar-me como se eu fosse uma rapariguinha.
Ele pegou no copo e pousou-o no chão. – Eu deveria ter sido mais cuidadoso convosco. Dissestes que vos preocupastes mais do que a maioria.
– Sim. Quando era mais jovem convenci-me de que era muito afortunada por ter um marido como Robert, e nunca ter tido uma noite de núpcias como devia ser.
Ele afagou-lhe o braço. – E com o passar do tempo?
Ela olhou os dedos que a acariciavam através da manga de seda do guarda-cós. As linhas cálidas, leves, de prazer eram-lhe incrivelmente calmantes e tentadoras.
– E com o passar do tempo? – voltou ele.
Embaraçava-a que ele o tivesse adivinhado. Mas também ele compreendia o mundo dos sentidos muito melhor do que ela.
– E com o passar do tempo continuei a pensar o mesmo. Mas por vezes… à noite…
– Quem estava nos vossos sonhos, à noite? Robert? Um dos seus cavaleiros? – perguntou ele suavemente, transpondo a mão para o cabelo e o rosto dela. Toques suaves. Subtis e excitantes.
– Ninguém conhecido. Uma presença, mais do que uma pessoa.
– Ela havia-se tornado muito consciente de si mesma no colo dele, do braço à volta dela, e daquela outra mão que ao de leve lhe acariciava a face e os ombros, reavivando com perícia a expectativa do dia, que o seu medo suprimira temporariamente.
Dentro dela, circulavam sensações pulsantes. Falar sobre aquelas noites, aquele desconforto temeroso e absorvente, só vinha aumentar a expectativa titilante.
– E preferíeis o beijo desse fantasma ao meu, Reyna?
– Ides ter ciúmes de um espectro, agora?
– Quem sabe.
A atmosfera mudara subtilmente. Ela fechava-se num silêncio pesado, observando a mão dele acariciar-lhe o braço com mais firmeza e depois deslocar-se para a coxa e a perna. Aquele poder sensual emanava dele, cercando-a, invisivelmente recordando-lhe o prazer que ela havia sentido com ele antes.
– Quase enlouqueci, convosco ali deitada a meu lado ontem à noite – confidenciou ele, beijando-lhe a face, mantendo o seu rosto perto do dela, inspirando e fechando os olhos, como se saboreasse o que cheirava e sentia.
– Devíeis ter-me deixado partir.
– Não podia. Vi pela forma como vos despistes que nunca o havíeis feito. Deitaste-vos tão rígida que eu soube que nunca havíeis partilhado a cama com um homem. Foi assim que soube com certeza do vosso segredo. Não deveria importar que eu seja o primeiro para vós em todas estas coisas, mas o certo é que importa, e conservei-vos comigo para poder saborear o prazer que tenho nisso. Estáveis tão bela, dormindo, que não conseguia tirar os olhos de vós.
As suas palavras doces iam-lhe diretas ao coração. Aludiam vagamente a outras emoções que não a volúpia. Ela endireitou-se e olhou para ele.
Deparou com dois olhos cheios de ternura. Numa carícia, a mão dele introduziu-se no seu cabelo e amparou-lhe a cabeça. – Beijai-me, Reyna.
Ela inclinou-se, hesitante, e encostou a boca à dele, sentindo, constrangida, os próprios lábios a tremer. Ele respondeu com suavidade, incitando-a cuidadosamente. Quando a língua dele os uniu e a dela foi ao seu encontro, o toque criou uma ligação pungente.
Ele abraçou-a mais, fazendo-a sentir-se muito pequena naquele círculo de força. Já sem impaciência, ele conduziu-a lentamente à sua paixão, seduzindo-a para o prazer expectante com beijos lânguidos na boca e pescoço e carícias lentas nas coxas e no ventre. Depressa ficou ela impaciente, seus seios ansiando pelo toque dele. Audaz, mergulhou a língua na boca dele e puxou a sua cabeça mais para si, experimentando uma exaltação especial quando ele a beijou com mais veemência.
Sentia uma liberdade gloriosa à medida que as estonteantes sensações se apoderavam dela. Eram fantásticas e maravilhosas quando não existia preocupação, culpa ou vergonha. Ele puxou para cima a saia da combinação dela, e então aquele afago torturante era de pele sobre pele. Algo dentro dela cantava de euforia e alívio. O seu corpo fazia-se vivo de uma forma sobrenatural, como se possuísse uma consciência separada que acordava ao toque íntimo daquela mão forte. Ela emergiu sem fôlego dos beijos dele, os braços estreitados ao redor do seu pescoço, fitando os olhos sabedores que a absorviam para dentro dele.
Ela tocou naquela boca sensual, acariciando os lábios com as pontas
dos
dedos.
Beijou-os
suavemente,
mordeu-os
delicadamente, imitando-o, tentando dar-lhe o doce prazer que ele lhe dera a ela. O maxilar dele contraiu-se e os braços retesaram-se e ele aceitou aquela pequena sedução por um tempo. Depois, algo se soltou dentro dele e ele curvou-a com um beijo dominador de posse primitiva.
Sem quebrar ou afrouxar a ligação que os unia, ergueu-se, e a ela consigo, cuidadosamente, tomou as nádegas dela nas suas mãos e puxou-a contra o seu corpo. Esticada e curvada sobre ele, tinha os seios ansiosos comprimidos contra o seu peito e o centro da sua feminilidade latejava com um vazio anelante.
Como conservava ele a sanidade quando ela conhecia apenas o desvario? Como podia ele apartar-se quando as pulsações, a respiração, e cada centímetro deles implorava a continuação, a completude? Quando ele se afastou ela quase o insultou, mas depois sentiu os seus dedos a desatar o laço do vestido.
– Não me ajudais a ir devagar, Reyna – disse ele, ofertando-lhe aquele sorriso devastador enquanto fazia deslizar pelos ombros dela o vestido. Ele apoiou-se num joelho para lhe desapertar a liga junto aos joelhos e lhe tirar as meias.
– Já não tenho medo – disse ela, baixando os olhos para ele, esticando os dedos por entre o cabelo dele. – Não quero ir devagar.
Ele ergueu-lhe um pé, e depois o outro, tirando-lhe o vestido. –
Mas eu quero – disse ele. – Quero olhar para vós enquanto o prazer se avoluma. Quero ver o vosso corpo tremer ao meu toque e implorar alívio. Quero ouvir os vossos gritos quando o delírio vos fizer entregar-vos a mim. – Ele ergueu-se e percorreu-a com o olhar. – Despi a combinação, Reyna.
As palavras dele acenderam um relâmpago no seu corpo, direito àquele fundo pulsante. A combinação deslizou-lhe pelos braços, pelos seios, pelas pernas.
Ele tomou os seios nas mãos, acariciando-os ao de leve, ao que eles se avolumaram ainda mais, desejosos. Ela soube sem demora o que ele quis dizer com ter o corpo dela a tremer ao toque dele e a implorar alívio.
– Sois tão bela. Perfeita. – Os polegares dele roçavam os botões intumescidos. Ela baixou os olhos para as mãos bronzeadas que a envolviam, convocando sensações incríveis.
Ela não duvidava que acabaria por ser como ele dissera, mas não deixaria que fosse ele a fazer tudo. Começou a desapertar-lhe o gibão.
A audácia dela agradou-lhe. Continuou a acariciá-la, a puxá-la mais para perto, passando a mão pela sua nudez enquanto ela o despia. Aquele toque ardente distraía-a, por isso avançava desajeitada e lentamente, mas por fim tirou-lhe a parte de cima. Ele puxou-a contra si e ela deleitou-se com a intimidade inebriante que era abraçar as suas costas e o seu peito nus.
Ele pegou nela e deitou-a na cama, e depois sentou-se para tirar as botas e vestes inferiores. Ela olhava o movimento dos músculos das costas e dos ombros e não conseguiu desviar o olhar quando ele se levantou para deixar a roupa cair pelas suas ancas fortes. Ele virou-se, magnificamente nu. Ela examinou o seu peito, o seu tronco e o seu falo esculpidos, maravilhada com o novo calor que a visão dele despertava.
Ele deitou-se ao lado dela. Apoiado no antebraço, desenhou os lábios dela com um dedo, acompanhando o gesto com uma expressão pensativa.
– Não tivestes grande escolha nisto – disse ele. – Quero saber agora a vossa vontade. Querei-lo?
A pergunta deixou-a estupefacta. Ele devia certamente ter percebido que ela já quase gritava por ele tal como ele havia dito que ela faria.
Ele leu a expressão dela e abanou a cabeça. – Não me refiro a isso. Soube desde o primeiro momento que conseguia fazer o vosso corpo querer-me.
Ele fazia-lhe uma pergunta mais difícil. Surpreendia-a que ele procurasse sabê-lo, espantava-a que lhe importasse sequer. – Sim, quero.
– Comigo? – Aquela palavra não podia ser mais eloquente, pois incluía todas as menções às suas arruaças e desonras, todos os insultos. Mas a mente dela não se demorava agora nessas rejeições defensivas. Em vez disso, lembrou-se da justiça célere que coube ao pobre rendeiro, do braço forte que a salvou da escuridão na velha fortificação, da sua decisão de persistir num casamento que era a única hipótese que ela tinha de um futuro decente.
– Convosco.
Ele inclinou-se e beijou-a com tanta doçura que ela acreditou que o seu coração desfaleceria. – Então, vejamos o que é possível entre nós, Reyna. – Ele puxou-a para si até a moldar à sua carne, cada centímetro da pele dela ligado à dele.
Fez amor com ela como se não houvesse limites para o seu controlo. Bastaram os beijos e as carícias dele para a deixarem sem fôlego e sem visão, e o corpo dela ia ao encontro do dele, enquanto os seus dedos exploravam a pele e os músculos firmes das suas costas e dos seus ombros. Ele brincou com os seios dela, criando uma angústia deliciosa, afagando-os com um toque suave e provocando-os com a língua até ela arquejar uma vez e outra, arqueando as costas, implorando mais.
Ele deu-lhe mais depois de um bom bocado, chupando-a mais enquanto a sua língua prosseguia o seu tormento devastador, lançando-a num frenesim. A coxa dele pôs-se entre as dela e ela foi de encontro àquela dureza, tentando aliviar a necessidade que se tornava fonte e destino de todo o intenso prazer. As mãos dele não pararam de explorar, excitar e encontrar inesperados pontos de prazer.
A perna dele mexeu-se e ele deitou-a de costas. Pôs-lhe a palma da mão entre as coxas e ela arqueou-se. Afastou-lhe as pernas e ela voltou a arquear-se e gritou quando ele a acariciou suavemente. O dedo que lhe tocava explorava. Ela sentiu uma tensão invasiva, assombrosa mas curiosamente oportuna, no sítio da sua necessidade absorvente.
Doeu. Ele levou a boca aos seios dela e doeu um pouco menos.
Ele retirou a mão e acariciou-lhe as coxas. – Sois muito pequena, Reyna. – Libertou-se cuidadosamente dos braços dela e rolou sobre si.
Ele chegou-se para trás, sentando-se contra a cabeceira, e depois pegou nela, virando-a para si. – Sentai-vos aqui – indicou, afastando-lhe os joelhos, para que se sentasse sobre ele. – Será mais fácil para vós.
Pestanejando para afastar a paixão que a toldava, ela acomodou-se, mesmo frente a ele, a sua humidade afogueada deslizando na dureza insistente dele. A sensação era incrivelmente erótica e ela contorceu-se um pouco, retesando o corpo dele inteiro. Ele puxou-a para um beijo enquanto as suas mãos se apoderavam dos seios dela.
Ela enlouqueceu completamente. Nesta posição, ele conseguia acariciá-la livremente e ela também podia tocá-lo e beijá-lo. Ela delirou com os suspiros dele quando lhe passou a boca pelo peito, e com o beijo abrasador que ele lhe deu quando as mãos dela lhe desceram pelo corpo, dos ombros às ancas. Deliberadamente, agora, com mãos que se passeavam por todo o seu corpo, agarrando-lhe a espaços nas nádegas para lhe erguer os seios até à sua boca, ele deixava-a cada vez mais fora de controlo. Saídos dela, sons graves de anseio ecoavam em redor deles, à medida que o prazer se tornava mais e mais desesperante.
– Para cima – disse ele, voltando a levantá-la, pondo a mão entre as coxas dela, afagando-a e tocando-lhe, arrancando-lhe uma série de gritos desvairados. Disparou-lhe pelo baixo-ventre uma ânsia assombrosa. Era glorioso, maravilhoso, arrebatador. Ela sentiu o seu corpo aproximar-se da enxurrada de sensação que experimentara ao pé do rio, e nada mais importava senão aquela libertação iminente.
Ele afastou-lhe mais os joelhos. Agarrando-lhe na anca, fê-la descer.
Uma dor atravessou o delírio. Ficou sem fôlego. Abriu os olhos e viu a expressão austera do controlo tenso dele.
– Quereis que pare?
– Não – sussurrou ela, encostando a testa ao seu ombro tenso, enterrando-lhe os dedos nos braços.
Ele parou, ainda assim, um instante, acariciando-a até o choque inicial passar, a dor acalmar um pouco, e o prazer ressurgir.
A mão dele foi até ao sítio onde eles estavam unidos, e ela estremeceu quando ele encontrou um ponto de sensação intensa.
Ele esfregou delicadamente, e o delírio dela regressou, atingindo novos cumes, fazendo-a querer a união apesar da dor, obrigando-a a gritos suplicantes que se misturavam com os arquejos de choque quando ele a penetrava mais fundo. O céu de sensação atingiu o auge, estilhaçando-se e espalhando-se, raiando a essência dela, e ela gritou com o seu poder. Teve a sensação vaga de haver uma agonia submersa naquela euforia.
Ela sucumbiu no abraço dele, contra o seu peito, sentindo-se mole e dorida, unida a ele pelo que a preenchia. Ele ergueu-lhe o queixo e deu-lhe um beijo terno.
Com cuidado, ele deixou-se escorregar e rolou até ficar acima dela, apoiado nos braços. Suavemente, recuou e voltou a entrar nela. Doeu, mas doeu menos na vez seguinte, e ela logo deixou de se importar com isto. Algo como aquela subida ao céu recomeçou, só que desta feita a sensação era mais ampla e rica, e centrava-se no ponto onde se uniam. O ritmo lento de Ian acicatava-a, e ela agarrou-se desesperada a ele, erguendo as ancas ao seu encontro.
Ele deteve-se. – Assim fazeis-me magoar-vos mais, Reyna.
Ela olhou para dentro dos olhos negros, absorventes. Aquela sensação convidativa fê-la abanar a cabeça.
Ele voltou a mover-se. As tremuras intensificaram-se, e ela viu que ele as sentia, as reconhecia, sabia o seu significado mais seguramente do que ela. De olhos fitos nos dela, lendo as suas reações à paixão reacendida, levou-a com ele, até o prazer se tornar uma emoção partilhada por dois, e a consciência mútua criar uma ligação que a surpreendeu. Ele conservou-os assim unidos durante muito tempo, deixando-a subjugada, vazia de vontade e pensamento, flutuando num espaço em que o tamanho, o poder e o desejo dele dominavam os seus. Só no final arrebatador é que ela fechou os olhos.
Ela ainda o apertava contra si muito depois de os tremores passarem. A sua respiração profunda enchia-lhe o ouvido. A alma dela sentia-se exposta e o seu corpo invertebrado. Ele não parecia ter vontade de se mexer nem de falar, e ela sentiu-se grata por isso.
Queria estar agarrada a ele um pouco mais, no silêncio. O peso dele era reconfortante e protetor, uma barreira contra o mundo que dentro em breve se abriria para a realidade.
Ele levantou-se. – Estou a esmagar-vos.
Ela começou a protestar, mas ele colocou-os a ambos de lado, com braços e pernas ainda entrançados e os corpos ainda unidos, e puxou-a para si. Ela sentiu-se grata pela prova de que ele também não queria terminar este doce momento. Prémio tomado ou presente ofertado? Fora ambas as coisas.
Um estrondo vigoroso rompeu o feitiço, sobressaltando-a.
– São apenas trovões – sossegou Ian. – Formou-se uma tempestade.
Ela não reparara. Ouviu a chuva e viu os relâmpagos iluminar o rosto dele. Os seus olhos, a centímetros dos dela, estavam fechados.
– É sempre assim? – perguntou ela.
– Não voltarei a magoar-vos.
Ela desviou o olhar. Não foi isso que quis dizer.
A mão dele tocou-lhe no rosto, e ela volveu a cabeça para deparar com ele a olhar para si. – Não, não é sempre assim, mas por vezes é. Depende de vós e de mim. – Ele desenredou as pernas dela das ancas dele, para ela ficar mais confortável, e puxou-a para um abraço sonolento.
Horas mais tarde, Ian deu por si acordado e de novo a olhar para ela. O vento tempestuoso apagara as velas, e apenas o mais ténue dos luares lhe delineava a forma. Parecia muito pequena e vulnerável, com o corpo esguio encostado ao dele. Queria-a outra vez, mas não fez nada para a acordar.
Como se sentisse o olhar dele, ela mexeu-se. Os seus olhos abriram-se. De repente ficou rígida, e ele percebeu que a escuridão a assustara.
– Estou aqui, Reyna. Não há por que terdes medo.
Ela virou-se para ele e o seu corpo relaxou. Ele aproximou-a de si e acalmou-a com carícias até ela se espreguiçar molemente.
– E agora, Ian? – balbuciou, sonolenta.
– E agora?
– Sim. E agora, com este casamento imprudente que vós mantivestes porque queríeis levar-me para a cama? Já me tivestes.
E agora?
Ele ouviu os pressupostos que a pergunta dela encerrava, e os medos que revelava. Não a censurava. Ela não podia saber que os sentimentos dele por ela eram mais complexos e confusos do que a simples volúpia, nem que o que acontecera esta noite não acontecia com muita frequência. A opinião dela a respeito da sua constância, do seu valor como marido, tinha todo o direito de ser fraca.
– Agora damos prazer um ao outro nesta cama, e temos filhos e, queira a sorte, envelhecemos juntos. É assim que se passam os casamentos, não é verdade? – respondeu ele.
E o resto depende de vós e de mim, acrescentou silencioso.
Pensou na abertura e na entrega dela durante a noite.
Principalmente de mim.
CAPÍTULO 15
Lábios na sua face acordaram Reyna. – Temos de nos levantar, mulher. Morvan logo estará de partida.
Mulher. As suas pálpebras abriram. Respondeu ao beijo dele um tanto frouxamente, sentindo-se constrangida por se ver nos seus braços. Procurou algo inócuo que dizer para esconder a sua desconcertante timidez. O que se dizia a um homem com quem se fizera coisas daquelas?
Ele atirou o lençol para trás e pôs-se em pé. O olhar dele recaiu na roupa da cama. – Há aqui alguns limpos? Devemos tirar estes.
Ela viu as manchas de sangue. Ele tinha razão, não quereriam que os criados vissem aquilo. Enfiou a combinação e foi buscar roupa de cama limpa a um baú. Prendeu-a ao colchão enquanto Ian se lavava e vestia.
Cumprirem aquelas tarefas rotineiras juntos criava uma intimidade quase tão inebriante como o amor que haviam feito.
Enfatizava a realidade de que a sua vida havia mudado para sempre de formas ainda desconhecidas, e de que este homem que dominava o quarto agora a possuía.
Ela não lamentou quando Ian saiu para lhe chamar uma criada.
Deixou a mulher aquecer-lhe água e pentear-lhe o cabelo, mas fê-la ir-se embora antes que ela lavasse a prova da sua virgindade.
Mulher. Não foi querida, nem amor, nem outro carinho qualquer, mas, a bem ver, ela também não o esperava. Ela compreendia as razões dele para fazer e manter este casamento.
Havia-o deixado bem claro no jardim, e de novo na noite anterior, quando ela lhe perguntou. Queria ter a comodidade de uma mulher que ele desejava quando ansiasse por prazer, e, a seu tempo, filhos.
Era o que a maior parte dos homens procuravam, e ela devia estar-lhe grata por ele a querer o suficiente para o levar a cabo. Ian salvara-a de Duncan e Aymer, e protegê-la-ia da injustiça quanto à morte de Robert. Ela aprendera na noite passada que o que ele esperava em troca não seria propriamente custoso de dar. E
contudo, lavando-se, ela sentia-se triste, como se o amor que fizeram tivesse exposto um canto escondido da sua alma que desejava ardentemente algo que ela sabia que nunca teria.
Chegou ao salão no momento exato em que Morvan e David se preparavam para sair. Observando a forma como estes se despediam das mulheres, sentia o coração apertado. As expressões dos rostos dos dois casais mostravam emoções inconfundíveis –
confiança completa, desejo eterno, e uma satisfação feliz.
Subitamente, compreendeu a sua incómoda melancolia. Amizade profunda e paixão arrebatada concertavam-se num amor poderoso nas uniões que se encontravam à sua frente. Ela própria conhecera a primeira com Robert e provara finalmente a última com Ian. Mas nunca as conheceria a ambas com um só homem. Ela não devia sentir ciúmes, mas a dor dilacerava-a cruamente e ela teve de desviar o olhar.
Reyna começou de imediato a assumir a sua posição de senhora da casa. O seu casamento com Ian não viera propriamente aplacar as suspeitas a seu respeito, e as expressões firmes que via na maior parte dos criados sugeriam que apenas piorara as coisas. Ela sabia que este casamento lhes pareceria deveras conveniente, e não de formas previstas por Morvan. Ninguém se atrevia a desafiá-la, mas obedeciam com uma rigidez e um silêncio que deixavam transparecer as suas opiniões.
A seguir à refeição do meio-dia retirou-se para o quarto principal para passar algum tempo sozinha. Procurou a Summa de Aquino que estava a reler, deparando com ela na escrivaninha, e não na prateleira onde a deixara. Em cima dela viu uma caixa de metal que não reconheceu. Estava ali na noite anterior, recordou.
Curiosa, abriu-a. Lá dentro, uma pilha de documentos dobrados. Levantou despreocupadamente o de cima e leu-o. Era o acordo nupcial dela para com Robert e descrevia as arras de cuja existência ele a havia assegurado.
O documento seguinte descrevia a carta de direitos de Robert, por parte de Maccus Armstrong, e por baixo dele encontrava-se uma folha dobrada, grande e volumosa. Abriu-a e viu o testamento de Robert.
Leu-o com assombro. Na falta de herdeiro, ele deixara-lhe tudo a ela.
Era a isto que se referia Ian naquela manhã em que falou das terras que ela herdaria. Também compreendeu a referência que ele fez no jardim ao facto deste casamento lhe garantir as terras com mais segurança. Se Morvan falhasse em Harclow, Ian podia reivindicar Black Lyne através dela.
Aquela dor sombria voltou a dilacerá-la. Era esta a verdadeira razão pela qual Ian dera continuidade ao casamento, não o desejo que sentia por ela.
Ela reprimiu o seu desapontamento e fitou o pergaminho num estado de confusão. Onde encontrara Ian os documentos? Quem sabia deste testamento? Examinou as assinaturas das testemunhas.
Uma era do padre de Bewton; a outra ela não reconheceu. Nada de criados nem habitantes do castelo, sendo assim.
Acabava de devolver os pergaminhos à caixa, quando Ian entrou no quarto.
– O dia está a ficar mais quente, Reyna. Iremos para o rio, banhar-nos.
Montaram os cavalos que aguardavam no pátio, e trotaram para o sítio resguardado onde as mulheres iam lavar numa piscina plácida formada por algumas rochas perto da margem.
Ian desamarrou uma trouxa da sela. Reyna reconheceu os lençóis que retirara da cama deles. Ian lastrou-os com pedras, e depois lançou-o para o meio do rio. Ela observou a água engolir a prova do segredo de Robert, constatando que a generosidade de Ian naquele aspeto não havia sido de todo tão altruísta quanto ela pensara. Se o mundo descobrisse que ela e Robert não haviam tido um verdadeiro casamento, o valor daquele testamento e da convenção nupcial poderia reduzir-se a zero.
Ian, sentado na relva alta e pisada, começou a tirar as botas. –
Decidi que ides ensinar-me a nadar. Tínheis razão. É útil para um soldado sabê-lo.
Reyna despiu-se. Sentiu-se exposta e constrangida, caminhando nua para a piscina natural ao lado de Ian, e sentiu-se grata quando chegaram a água profunda o suficiente para lhe cobrir a maior parte do corpo.
Ponderou como ensinar alguém a nadar. Não se lembrava de aprender. Simplesmente acontecera enquanto brincava nos lagos em criança. – Não conseguis nadar sem aprender a deixar o vosso corpo flutuar – explicou. – Eu seguro-vos, para começar. Tudo fica mais leve dentro de água. Agora esticai-vos. – Ela colocou os braços por baixo das costas e ancas dele, um pouco consciente de mais da pele e dos músculos em cima das suas mãos e da beleza magnífica do corpo que suportava.
Ela afastou-se. Ele submergiu alguns centímetros, mas nada mais.
– É uma sensação agradável – disse ele. – Um pouco imaterial.
Reyna olhou para o corpo estendido reluzindo sob a ténue ondulação. Flutuar assim era uma experiência agradável e imaterial.
Por um breve momento a pessoa sentia-se desprendida da terra.
Era próprio de Ian, com a consciência aguçada que tinha dos sentidos, reconhecer e designar a pequena alegria por aquilo que era.
No espaço de uma hora, Ian converteu-se num nadador razoável. Descobriu que podia nadar debaixo de água e começou a aproximar-se furtivamente para a levantar da água e a atirar para a frente numa confusão de braços e pernas e salpicos. Brincaram como crianças, e o seu riso baniu o constrangimento que ela sentira com ele ao longo do dia. Por fim, cansado e saciado, ele pegou na mão dela e levou-a para a margem.
O sol morno e a brisa ligeira depressa os secaram. Ian estava deitado de olhos fechados, um deus do rio desfrutando dos seus domínios. Não esboçou movimento algum para se vestir, mas Reyna enfiou a combinação dela.
O movimento fê-lo abrir uma nesga de olho. – É um bocado tarde para modéstias, Reyna. Além do mais, se eu pretendesse tomar-vos de novo já o teria feito, dentro de água. – Puxou-a para junto de si. – Descansai comigo. O sol e a brisa são deliciosos.
Eram deliciosos, criando dedos frescos que adejavam na sua pele quente. Reyna fechou os olhos e saboreou a sensação, concentrando-se nela. Os seus braços e pernas fizeram-se lânguidos com as suaves carícias da natureza.
– Andais sempre a mudar o meu livro de sítio – disse ela. – O
Aquino. Quando vou buscá-lo, nunca está onde o deixei.
– É demasiado grande e atrapalha.
– Talvez deva levá-lo para o meu quarto, então.
– Ficarei com os livros no quarto principal. Se insistis em ler filosofia, podeis fazê-lo lá.
– Insistir? Não aprovais que leia filosofia?
– Não aprovo nem deixo de aprovar, mas penso que sois demasiado jovem para isso. A filosofia não tem sentido sem a sabedoria da experiência. Como podeis concordar ou discordar se ainda não sabeis nada da vida?
– O pensamento racional pode conduzir à verdade, separado da experiência, Ian.
– Eu não descarto a filosofia, Reyna. Apenas decidi há muito tempo que tem limitações. E eu não tenho paciência nenhuma para os filósofos e os teólogos que viram as costas ao mundo. – Ele falava com indolência, como se as suas conclusões fossem tão óbvias que pouco fosse necessário pensar.
Ela ergueu-se sobre os braços. – Eles não se afastam do mundo, apenas avisam que é uma distração.
Ele colheu uma flor selvagem da erva. – Cheirai isto – disse ele, colocando-a à frente do nariz dela. Ele passou-lhe o botão pelo rosto para ela sentir a sua carícia de veludo. – Como vos faz sentir, Reyna? Desviada do verdadeiro caminho? Os antigos nunca pensaram assim. Coube aos nossos filósofos cristãos rejeitar o mundo por ser corrompido, refugiando-se nas suas teses racionais.
Ela pegou na flor e inspirou. – Não tendes respeito pelas lições deles, Ian?
Ele riu. – Tenho grande respeito por eles, com os limites que têm.
Ela voltou a aninhar-se perto dele. Enquanto o sono vinha, ocorreu-lhe que acabava de ter uma discussão filosófica com Ian de Guilford.
Ao acordar deparou-se com ele de barriga para baixo, apoiado nos braços, a brincar com um bocado de madeira. Percorreu com o olhar o seu corpo nu, sólido e robusto, com músculos esculpidos, as nádegas e as coxas firmes mais pálidas do que o resto do seu corpo bronzeado. Um calor veloz correu dentro dela. Ela virou-se e examinou o pequeno brinquedo que ele fizera.
– O que é isso? – perguntou, o rosto próximo do ombro dele.
Rebateu a vontade de lamber aquela pele firme.
– Uma arma – respondeu ele, apontado para o ramo de cima. –
São muito grosseiras. Se se conseguisse torná-las mais móveis seria um grande passo para serem mais eficazes.
Subitamente compreendeu. Ian experimentava formas de colocar uma bombarda numa carroça. Andava com o pedaço de madeira atarracado e com rodinhas para a frente e para trás.
– Ian, sobre os livros. Com certeza seria melhor que eu levasse para o meu quarto aquele que estou a utilizar.
– E porquê?
– Ides com certeza querer a vossa privacidade em algumas noites. Não gostaria de vos incomodar.
A pequena carroça parou abruptamente.
– Se alguma vez não quiser a vossa companhia à noite, dir-vos-ei, Reyna.
Fê-la baixar-se, virando-a de costas. Pôs-se sobre ela e passou-lhe os dedos pelo rosto. O toque dele aquecia e titilava a pele dela, muito como o sol e a brisa haviam feito, só que as sensações introduziam-se no seu corpo, espalhando-se pelo seu sangue.
– Penso que passará muito tempo até eu me cansar de vós, Reyna. – Ele baixou os olhos e desenhou-lhe os ossos do pescoço e da clavícula. – Planeio ensinar-vos tudo o que sei sobre prazer.
Logo que estiverdes recuperada de ontem à noite, iniciaremos as nossas lições.
Olhar para ele e sentir o seu odor preenchia-lhe os sentidos. O
seu coração começou com aquela batida pulsante, primitiva. De súbito, os receios que ela tinha a respeito dele já não existiam, como também não existia qualquer pensamento racional.
– Eu não sinto qualquer necessidade de recuperar – sussurrou ela.
Ele mordeu-lhe o lábio inferior com brandura. – Esperava que dissésseis isso.
Beijou-a lentamente, saboreando o seu gosto com os lábios e a língua. Todo o corpo dela flutuava na maré de paixão que ele levantava. Pequenas ondas de desejo começaram a marulhar dentro dela. Era diferente da fome febril da noite anterior, mas era-o deliciosamente.
– Despi a combinação, Reyna.
Ela sentou-se e tirou-a pela cabeça, ciente do arrepio empolgante que uma ordem sempre provocava, reparando na exigência dele de ser sempre ela a fazê-lo. Enquanto o tecido leve flutuava e caía no chão ao seu lado, ela compreendeu que este gesto era um gesto de submissão consentida, símbolo de que ela se oferecia a ele, mas a pedido dele. Prémio tomado ou presente ofertado?
Ele fê-la pôr-se de lado e colocou-se perto, de frente para ela. –
Tocai-me e beijai-me, Reyna. Usai aos vossas mãos e a vossa boca, como eu faço.
Ele conduziu-a numa longa e voluptuosa lição, mostrando-lhe como lhe dar prazer a ele dando-lho a ela primeiro. Ele beijou e brincou com a sua orelha até ela começar a rir baixinho e lhe fazer o mesmo. Ela tentou imitar a forma como ele lhe explorava o pescoço com os lábios e os dentes. Quando ele lhe acariciou e lambeu os seios, ela precisou de um bocado para compreender que ele queria o mesmo.
Passo a passo, ele guiou-a nas explorações ao seu corpo através do exemplo. Dominava-a uma sensualidade lânguida e apaziguadora que não permitia vergonha, e ela seguia as indicações dele, acariciando ancas, nádegas e coxas. Quando ele acariciou suavemente a carne tenra da sua feminilidade, ela não teve problemas em traduzir o pedido e percorreu cuidadosamente o falo dele com os dedos, baixando os olhos para ver, fascinada com a suavidade da pele esticada sobre o poder, surpreendida por ele não a ter magoado mais na noite anterior.
Desenhou-lhe círculos na ponta, curiosa por saber se conseguia criar sensações concentradas semelhantes às que ele retirava dela.
Um suspiro profundo disse-lhe que sim. Pouco depois, ele estava a colocá-la de costas, a afastar-lhe as pernas com os joelhos, e a entrar nela lentamente.
Ela ainda não recuperara por completo, mas a plenitude tensa agiu mais como um bálsamo do que como um agressor, e logo perdeu noção de tudo exceto daquela união jubilosa. O seu corpo distendeu-se para o aceitar, o absorver, o prender a ela breve e totalmente. Ela não compreendia a emoção que a saciava, mas esta reverberava com a ânsia pungente que colorira a sua alma durante o dia inteiro.
Era tão diferente aqui, ao sol, com o cheiro da erva e os sons próximos dos pássaros e da água. Nenhuma sombra obscurecia o corpo que se movia sobre e dentro dela, nenhuma luz bruxuleante diminuía o desejo tenso patente no seu rosto. Ela soube muito antes de acabar que, depois disto, aquela estranheza partiria para sempre.
Ele retirou-se e regressou cuidadosamente uma vez e outra, como se apreciasse a sensação tanto quanto ela. Enlaçando as pernas dela sobre as suas ancas para a ligação ser mais profunda, inclinou a cabeça para lhe lamber e chupar os seios.
Um dilúvio de prazer preencheu-lhe o ventre, afluindo-lhe aos braços e pernas, tocando-lhe a alma, espiralando lentamente todos os seus sentidos na direção de um único centro. Quando veio a libertação, esta não lhe obliterou as perceções como havia acontecido na noite anterior, mas irrompeu maravilhosamente e serenou magnificamente, aumentando-lhe a consciência do homem que tinha nos seus braços. E assim ela pressentiu a tensão apoderar-se dele, sentiu os músculos endurecerem-lhe nas mãos, aceitou com alegria o tremor da sua finalização.
Ele pousou os lábios na testa dela. – É bom contigo, mulher.
Passado algum tempo, regressaram ao rio para se lavarem, e em seguida secaram-se ao sol, para depois se vestirem e regressarem ao castelo.
– Como sabeis de filosofia? – perguntou Reyna quando os seus cavalos atravessavam o paul.
– Os cavaleiros ingleses recebem alguma instrução. Não somos completos bárbaros criados com o único propósito de subjugar os escoceses.
– Receber instrução de cavaleiro e saber o suficiente de filosofia para a rejeitar são duas coisas diferentes. Falastes como se tivésseis lido estas coisas.
– Quando jovem, li-as. O meu pai designou-me um precetor excelente. Tencionava que eu me fizesse padre.
Ele olhou para ela de soslaio e viu que estava chocada. Os olhares cruzaram-se, e ambos desataram a rir.
– É bastante comum. Um filho mais novo torna-se clérigo e serve um grande nobre como padre ou como administrador –
explicou ele. – Dá poder a uma família. Chegado aos doze anos, tornou-se claro para mim, porém, que não se ajustava. Queria ser cavaleiro, e comecei a treinar em segredo. Gostava demasiado de mulheres, e comecei a treinar-me nisso também. O meu pai acabou por reconhecer a inutilidade do seu querer, e colocou-me ao serviço de um lorde vizinho para me fazer cavaleiro. Na altura, considerei isso um grande triunfo.
– E agora não considerais? Certamente nunca poderíeis ter vivido uma vida de padre.
– Não, não poderia. Mas toda a mudança acarreta consequências, e a ida para a propriedade vizinha trouxe mudanças que nem o meu pai nem eu podíamos prever.
Disse-o com ar pensativo, como se distraído por memórias. Ela esperou que ele continuasse e explicasse, mas ele limitou-se a cavalgar silencioso, com um leve franzir de sobrolho.
– Quem achais que o envenenou? – perguntou ele, surpreendendo-a com a mudança de assunto. Ele não estivera a contemplar o passado dele, mas o seu.
– Não consigo pensar em ninguém que quisesse a morte de Robert.
– Se ele foi morto, foi em benefício de alguém. Quem poderia tê-lo feito? Tinha oportunidade para o fazer?
– Qualquer pessoa. Imaginai que ele estava no quarto dele e bebia vinho. Qualquer criado ou cavaleiro ou guarda podia pedir para falar com ele e encontrar uma maneira de colocar alguma coisa no vinho.
– O que achais que lhe deram?
Ela encolheu os ombros. – Eu não percebo destas coisas, Ian.
Nunca procurei aprender, apesar de em toda a terra haver sempre velhas que pretendem saber disso.
– Não tendes livros que descrevam poções dessas?
– Tenho um herbário que menciona algumas plantas com essas propriedades, mas o escritor absteve-se de explicar as receitas, tendo apenas alertado para o perigo de se confundir umas plantas com outras.
– Onde está o herbário?
– Não o consulto há vários anos porque o memorizei, até as imagens. Presumo que esteja na prateleira com os outros. – O
escrutínio dele estava a deixá-la desconfortável. – Porque continuais com isto, Ian? Ainda achais que eu…
– Claro que não. Mas Morvan está certo. É melhor o assunto ficar arrumado. Vós continuareis a viver aqui com estas pessoas.
Aconteça o que acontecer, elas conjeturarão e suspeitarão sempre.
Não quero que passeis por isso. Nem nós queremos um assassino na nossa casa. Devíamos tentar descobrir a verdade para bem de todos.
– E se a verdade apontar para mim?
– Então saberemos que não se trata de todo da verdade.
Ela não ficou completamente descansada com a resposta dele.
Na cabeça de Ian, a virgindade dela destruíra o motivo que todos atribuíam ao seu crime, mas outros motivos podiam sempre ser apontados por um homem inteligente que analisasse as provas.
Ele estava certo. Ela devia tentar descobrir o que acontecera a Robert, e porquê. Para bem de todos, especialmente dela própria.
À noite, Ian desceu à cozinha e ficou satisfeito por ver que Reyna não estava a ajudar Alice. Na lareira, criadas tiravam o caldeirão da sopa do gancho, e ele aguardou que entre elas o levantassem para iniciarem o trajeto cuidadoso até ao salão. Alice cortava queijo placidamente para tábuas de madeira, olhando apenas uma vez para o sítio onde ele estava parado.
– Dizem-me que vós viestes com Reyna da casa de Duncan.
Falai-me da mãe de Reyna – disse ele quando ficaram finalmente sós.
Alice esboçou um esgar. – Estava a pensar no que quereríeis vós. É melhor deixar esse assunto sossegado.
– Vós estáveis na casa. Deveis saber o que aconteceu.
– E sei. Mas pergunto-me porque precisais vós de saber.
Ele não tinha uma boa resposta para lhe dar. Decidira apenas que a forma mais razoável de saber da morte de Robert era colmatar todas as falhas das várias histórias que ouvira.
– Preciso de saber pelas minhas próprias razões – disse ele, decidindo que ser o senhor contaria alguma coisa no trato com uma criada.
Alice agraciou-o com um olhar que indicava que nunca se sentira muito intimidada pelos senhores, e que ele não seria exceção. –
Duncan renegou a mãe de Reyna, colocando-a num convento a norte das suas terras. E com uma renda, para a abadessa lhe ficar obrigada e atender a que ela lá ficasse. Reyna só tinha quatro anos na altura.
– Anulou o casamento?
– Não, não que eu saiba – respondeu Alice. – Jordana era a sua segunda mulher, uma bela rapariga do clã Eliot. A sua primeira mulher morrera a dar Aymer à luz, e ele esperou seis anos para voltar a casar. Jordana tentou dar àquela casa alguma graça e maneiras, mas Duncan é um homem duro, e não era um marido meigo.
Chegaram mais criadas para levar o queijo e o pão para as mesas. Ian aguardou que se despachassem e saíssem. – Porque é que ele a renegou? – perguntou ele por fim.
Alice estudou-o atentamente, como se debatesse o seu valor. –
Eu digo-vos, mas não deveis falar disto a Reyna. Para ela pertence ao passado, e é melhor assim. – Alice passou a língua pelos lábios.
– Estavam casados há seis anos, mais coisa menos coisa. Tinha nascido Reyna, mas mais nenhum filho. As coisas estavam más entre eles, ainda antes de Reyna ter chegado. Nós sabemos sempre, claro.
Ian sabia que «nós» se reportava aos criados.
– Jordana era uma boa mãe, e carinhosa com Reyna. Quando o tempo estava bom, levava-a para os montes, para a tirar daquele sítio. Um dia saíram e demoraram muito a voltar. Por fim, dez dos homens de Duncan regressaram com Reyna, mas não com Jordana.
– O que aconteceu?
O rosto redondo de Alice esmoreceu. – Duncan andava a suspeitar dela. Naquele dia, saíra antes dela com alguns homens e depois aguardara e seguira-a. Encontrou-a com o amante, a tentar partir de vez, disseram. Tinha com ela os seus valores e mais coisas para ela e a rapariga. Ele alcançou-os perto da fronteira, ao pé do velho castelo. – Alice abanou a cabeça. – Ela estava com um Armstrong. O filho de Maccus, James. Ele era amante dela há mais ou menos um ano, diziam alguns.
Ela fez uma pausa enquanto Ian absorvia a história surpreendente.
– Duncan enforcou James Armstrong logo ali – prosseguiu Alice.
– No velho torreão. Depois levou Jordana imediatamente para o convento, e nunca mais a vimos.
– A disputa de famílias a que o primeiro casamento de Reyna pôs fim – concluiu Ian. – Foi assim que começou?
– Sim. Os primeiros anos foram como uma guerra entre reis.
Muitos morreram. Acalmou depois disso, mas não parava de haver represálias de ambos os lados. A região ressentiu-se.
– E ela sabe disto? O porquê da mãe se ter ido embora para sempre?
– Com Duncan a chamar rameira à mãe nos oito anos seguintes, soube da razão do convento, e provavelmente do resto. – Os seus velhos olhos ficaram vítreos enquanto revia memórias diáfanas. –
Depois disso, Reyna foi tratada como uma criada. Ela era parecida com a mãe, e Duncan não suportava vê-la. Todos sabiam que não havia castigo se lhe batessem ou abusassem dela. Ela aprendeu a ficar quieta e invisível, como faz um cão maltratado. Tentei ser uma mãe para ela, mas não tinha autoridade para a proteger. Ainda assim, na cozinha eu era rainha e lá, comigo, ela estava em segurança.
E então o acordo nupcial pôs fim à disputa, e Robert de Kelso recebeu terras para separar os dois clãs e tornou-se o salvador de Reyna, concluiu Ian. A falta de afeto de Duncan fazia certamente mais sentido agora.
– Agradeço-vos pelo amor e cuidado que tivestes para com a minha mulher nesses anos – disse ele, virando-se para a entrada.
– Mataria quem quer que fosse que tentasse prejudicá-la – disse Alice rispidamente.
Ele olhou para ela por cima do ombro e soube que acabava de receber um aviso de uma mulher idosa com todas as oportunidades de pôr em prática a sua ameaça. Enquanto subia as escadas para o salão, perguntou-se se Alice teria ouvido rumores sobre a carta de Robert ao bispo e teria temido o suficiente pelo futuro de Reyna para decidir pôr mãos à obra.
Andrew Armstrong acertou o passo com o dele quando Ian atravessava o salão. Um intendente era outra pessoa com larga oportunidade de usar veneno, mas Ian não conseguia pensar em nenhum motivo.
– Tenho boas novas – anunciou Andrew. – A água regressou ao poço. Vou lá ver com frequência, e hoje, depois do jantar, fui lá abaixo e tudo estava como antes.
– Um milagre – comentou Ian.
– Assim parece. Talvez ontem à noite tenha ajudado. Com a chuva e tudo.
– Nesse caso, só podemos esperar que continue a chover.
Nisto, Reyna entrou no salão. Estava tão encantadora como um céu primaveril no seu vestido azul, com o seu cabelo louro-prateado cintilante como a luz do sol.
Memórias dela no rio, do seu corpo luzidio e molhado, fizeram o corpo dele retesar-se. Atendendo à condição em que ela sempre o deixava, choveria mais do que suficiente durante largo tempo.
CAPÍTULO 16
– Robert de Kelso geriu bem estas terras. Reyna ergueu os olhos da mesa onde lia o seu Aquino à luz das velas. Ian estava sentado num banco, à lareira, com o livro-mestre aberto no colo.
– O grosso do rendimento provém das ovelhas, e os negociantes ingleses querem sempre mais lã – continuou ele. – Há um segundo moinho mais a oeste, o que faz sentido, considerando a extensão das terras.
– Esse foi ele que construiu. Viu um homem idoso que viajou dois dias para trazer aqui o grão, e concluiu que não era caridoso esperar isso dos fracos – explicou Reyna.
– É também devido à sua caridade que a maior parte dos agricultores são rendeiros livres e não servos?
– Se uma família pedisse para comprar a liberdade, Robert concordava sempre. Dizia que qualquer homem expedito o suficiente para conseguir juntar moeda daria certamente um bom rendeiro.
Ian anuiu com a cabeça e mergulhou de novo nas páginas. Reyna regressou à sua filosofia, mas olhava para ele de vez em quando para observar o efeito da luz fugidia do lume no seu belo rosto. A chegada dele, esta noite, surpreendera-a. A maior parte do tempo que haviam passado juntos nesta primeira semana de casamento tinha sido às refeições ou na cama. Nas primeiras eram o senhor e a senhora, na última marido e mulher. Este serão, contudo, lembrava-lhe horas semelhantes com Robert, e o conforto da amizade entre os dois.
Seria sequer possível ter aquilo com um homem que era um verdadeiro marido? As emoções e intimidades que ela sentia quando ela e Ian faziam amor eram muito diferentes das que havia conhecido com Robert. Mais intensas e absorventes, mas também mais perigosas, de formas que ela não conseguia explicar. Apesar de potentes na altura da paixão, pareciam coisas fugidias e imateriais que lutavam para sobreviver à luz do dia.
Ela tentou concentrar-se na sua leitura. Mais uma vez, o livro não estava onde o deixara na noite anterior, mas na prateleira. Em seu lugar, ela encontrara o tratado meio desfeito de Bernardo de Claraval. Ficou curiosa por saber se Ian tinha estado a lê-lo.
Rechaçou o impulso de perguntar a Ian a opinião dele sobre as ideias de Bernardo. O mais certo era ele estar a confrontar a biblioteca com o livro-mestre, para ver se encontrava entradas que indicassem o seu valor. Além do mais, ele dissera que não se interessava por filosofia.
A sua mente vogou para a conversa daquele dia ao pé do rio, e para a surpreendente revelação de Ian de que, quando jovem, havia sido preparado para ser padre. Fora uma referência rara à sua história de vida. Ele nunca falava da família dele, nem de acontecimentos do passado.
Andava a pensar muito nele nestes últimos dias, observando-o enquanto se acostumava ao casamento. Era um homem incansável, sempre de volta de novos projetos ou ideias, já a planear melhorias no castelo. Os seus longos surtos de atividade por vezes interrompiam-se na altura mais improvável, contudo, e então ele procurava silêncio e reflexão, geralmente no jardim. Ela interrogava-se sobre que pensaria ele nessas alturas.
Reparara gradualmente também que ele não possuía amigos próximos na companhia dele. Tinha uma camaradagem próxima com os homens, tanto cavaleiros como peões, mas não havia um homem que fosse seu companheiro especial. Habitualmente estava com um grupo, ou com ela, ou sozinho. Isso pareceu-lhe estranho, para um homem com tanto à-vontade.
A vela sacudia-se mais à medida que o pavio queimado crescia.
Ela pegou na pequena faca que estava ali por perto e esticou-se para cortar a ponta queimada. Ian olhou-a de relance, e depois regressou ao seu livro-mestre.
– O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? –
perguntou ela.
Ela não planeara a pergunta. Esta apenas emergiu, fruto dos seus pensamentos.
Ele reagiu como se se tratasse de uma impertinência indiscreta.
Ela viu a tensão subtil, as pálpebras baixas, o movimento dos olhos que indicava que ele já não lia. Mas nem sequer acusou ter ouvido a pergunta.
Esta pairava entre eles. Ela ficou muito quieta, chocada com a sua rejeição ostensiva.
O silêncio adensou-se de palavras não ditas. Ela fingiu regressar ao livro. O serão agradável estava arruinado.
Ela desejava poder acreditar que estava a dramatizar o que era apenas uma pequena reivindicação de privacidade, mas a atmosfera cerrada do quarto dizia o contrário.
O silêncio dele era uma declaração quanto aos limites do que eles teriam. Era uma rejeição contundente de um homem que escolhia limitar-lhe o conhecimento do seu eu mais profundo.
Sentiu-se surpreendida com o quanto isto a magoava. Quando faziam amor, ela pensava ter sentido laços a formar-se. Este silêncio revelava que ele não os queria.
De olhos fitos na página, um sentimento pesaroso espalhou-se no seu coração. Ela admitia com tristeza que a novidade da paixão havia obscurecido os factos sobre este casamento. A sua mente racional reconhecera-os quando descobrira o testamento, mas o seu coração, apanhado na falsa intimidade da última semana, e no dia feliz à beira-rio, incitara-a a ignorá-los.
Ela pensara… ela não queria nomear o que havia pensado. Só viria acrescer humilhação à resignação triste que lhe enchia o coração.
Ela ouviu Ian levantar-se e vir na sua direção. Sentiu-o atrás dela. As mãos dele vieram pousar-se nos seus ombros.
As mãos de um estranho. E ele sempre o seria.
– Vinde para a cama, Reyna.
Na sua desilusão, ficou ligeiramente tensa e hesitou. As mãos dele pousaram-lhe no peito e uma desceu para lhe acariciar um seio. Com uma perícia sem mácula, ele obliterou a sua breve resistência até ela erguer o rosto e os braços para ele com uma entrega que desmentia a sua confusão.
Mas não foi a mesma coisa. A melancolia que ela experimentara na manhã que se seguiu à primeira noite deles pulsava, aguda, no centro do seu desejo. Embora o seu corpo respondesse como sempre havia respondido, o seu espírito resistia ao fluxo da paixão.
A sua libertação aconteceu como uma viagem solitária.
Ela emergiu do êxtase para descobrir que Ian também acabara, ainda que ela não tivesse memória disso. Ele adormeceu, deixando-a a braços com a triste lição que havia aprendido esta noite.
Na manhã seguinte, bem cedo, irromperam batedores pelo portão a avisar que uma tropa Armstrong se reunia perto da fronteira norte das terras de Black Lyne. Tinham visto homens a encaminhar-se de aldeias e quintas para lá. Os batedores avaliaram o exército em trezentos homens e a crescer.
– Parece que Thomas Armstrong está a convocar todos os homens capazes das terras de Clivedale – disse Ian aos homens que se juntaram para ouvir o relato.
Reyna estava a seu lado, quebrando o jejum. Havia frieza entre eles desde que se levantaram. Tratavam-se um ao outro da forma afetada, cuidadosa, que as pessoas se tratam depois de terem tido uma discussão mordaz.
– Seria de esperar que ele os pusesse mais para oeste, ou pelo menos mais perto da estrada para Harclow – disse um dos cavaleiros.
– Não penso que ele vá para Harclow. Penso que vem para aqui. É uma estratégia engenhosa. Não dei a Thomas crédito suficiente.
Para Reyna, aquilo não fazia sentido nenhum. Falou, apesar de não lhe caber fazê-lo. – Maccus requer auxílio em Harclow. O que pode Thomas conseguir ao defrontar-vos?
– Anna de Leon está cá. A esta altura, já Margery descreveu o amor que Morvan tem pela mulher. Talvez Thomas espere que Morvan disponha de uma secção do exército do cerco e venha para aqui ao saber que ela está em perigo. Serão números mais equilibrados, e provavelmente será Morvan a liderá-los. O plano é arriscado, mas é a melhor hipótese que Thomas tem. Se ele conseguir derrotar Morvan em Black Lyne, toda a situação muda em Harclow.
– Aguardar faz sentido, então – replicou ela. – Se Morvan tiver de vir, trará homens suficientes para tratar de Thomas. O plano deles falhará.
– Provavelmente, mas não quero aguardar. Além disso, há despojos à espera na fronteira, e esta companhia tem sido muito paciente. Depois de um verão de indolência, a todos nos faria bem alguma ação. – Virou-se para os seus homens. – Espalhai palavra que avançamos dentro de uma hora.
Enquanto os soldados se apressavam a preparar-se, Reyna olhava furiosa para Ian. – Os batedores disseram que há mais de trezentos à espera na fronteira. É insensato enfrentar tal número quando não é necessário.
– Quer Thomas tencione montar-nos cerco ou continuar e atacar Morvan, é meu dever detê-lo.
– Não é lógico defrontar-vos com tal força num campo de batalha. Morvan nunca esperaria que o fizésseis.
– Não venhais agora falar-me de lógica.
– Sem dúvida que pensais que isto é um nobre gesto cavalheiresco, mas anda perto do suicídio.
A expressão dele endureceu. – Não sabia que a fraca opinião que tendes de mim se estendia às minhas aptidões de combate, Reyna.
– Não confundais preocupação com insulto, Ian. O guerreiro mais corajoso torna-se vulnerável face a tais probabilidades.
Ele lançou-lhe um olhar perscrutador. – Receais pelo vosso bonito pescoço, se eu cair em campo? Mesmo se eu morrer, Thomas nunca tomará este castelo, e Morvan nunca deixará os Armstrong levarem-vos. Não vos preocupeis.
Mas ela preocupava-se, horrivelmente, e passou as horas seguintes a oscilar entre a fúria e o desespero. Constatou que era mais um ponto em que o seu segundo casamento diferia do primeiro. Robert envergara a sua armadura pela última vez há dez anos. Ela era criança nessa altura, e quando o viu passar o portão nunca lhe ocorreu que ele pudesse não regressar.
Reyna era continuamente acometida por imagens mentais de Ian atingido, morrendo dolorosamente, o seu sangue correndo na terra dos montes.
Tentou distrair a mente com os preparativos para o jantar, mas soube instintivamente quando chegou a altura da partida. Limpando as mãos, correu para o salão e dali para as escadas.
Ian encontrava-se no centro do pátio, a sua armadura como água cinérea na luz prateada do dia carregado. Estavam por perto habitantes do castelo, a ver os cavaleiros e cavalos serem aprontados.
Enquanto Reyna descia as escadas, uma criadita chamada Eva aproximou-se de Ian. Falaram, próximos, Ian olhando para ela com o seu sorriso devastador. Por fim, para consternação de Reyna, ele esticou o braço e acariciou a face e queixo de Eva com o mesmo gesto afetuoso que tantas vezes usara com ela.
Reyna lançou-se, ameaçadora, na direção da conversa íntima que tinha lugar à frente de todas as pessoas do castelo. Eva viu-a chegar, disse algo rapidamente, e esgueirou-se.
– Onde tendes estado? – perguntou Ian, nada constrangido por a sua nova mulher estar a vê-lo cativar a sua rameira.
– Não quis atrapalhar. Não estou bem formada a respeito do comportamento de uma esposa nestas alturas. Se era esperado que vos assistisse, peço desculpa pelo meu descuido. – A sua mirada apanhou Eva junto da muralha, a falar com um jovem arqueiro.
Uma jovem bonita, com grandes seios que lhe avolumavam o vestido. De todo fracota e escanzelada.
– Nunca será necessário assistirdes-me se não escolherdes fazê-
lo – devolveu Ian. Reyna ouviu uma alusão a mais que meros preparativos para o combate. Não, obviamente não era necessário.
Uma mulher era tão útil quanto outra ao Senhor das Mil Noites.
Ela fez uma expressão de indiferença. Haviam sido uma noite e uma manhã cheias de desalentadoras descobertas, mas ela era de bom berço e sabia como comportar-se com dignidade.
Cavaleiros montaram a cavalo e começaram a atravessar o portão com os seus escudeiros. Ela esticou-se e beijou Ian na face.
– Deus esteja convosco.
Ele baixou os olhos, com uma expressão especialmente cismática, depois deu meia-volta e partiu. A meio do caminho até ao cavalo, virou-se abruptamente e regressou em passos largos.
Puxou-a para si num abraço selvagem, apertando-a contra o aço, reivindicando a sua boca com um beijo furioso. – Aguardai o meu regresso como convém a uma esposa – ordenou asperamente.
Ian conduziu os homens em direção à fronteira, tentando ignorar o estranho desassossego que lhe alfinetava o espírito. Tentou culpar Reyna por o ter abalado com as suas discussões e frieza. Sabia, todavia, que a causa não estava nela. Suspeitava do que esta sensação realmente era, pois sentira algo semelhante há muito tempo, mas recusava-se a nomeá-lo.
Metade da sua mente mantinha-se ocupada a reexaminar a estratégia que executariam quando se confrontassem com o exército de Thomas. A outra metade, porém, estava repleta de Reyna, como sempre estivera desde que a conhecera.
Importunava-o que possuí-la não tivesse resolvido a forma como ela se intrometia na cabeça dele. Era outra coisa que ele sentira apenas uma vez, há muito tempo – com consequências desastrosas.
Ela considerara a hipótese de se negar a ele na noite anterior. Ele percebera a sua hesitação, mas não lhe permitira contemplá-la longamente. Contudo, o seu afastamento podia bem ter sido físico, tão claro fora o muro invisível que aparecera entre eles. Apesar de o corpo dela se ter unido ao dele com acentuado abandono, a parte essencial dela permanecera alheada.
Pela primeira vez, fazer amor com Reyna fora como sempre havia sido para ele ao longo dos anos, duas pessoas a usarem a paixão e a libertação em seu próprio benefício. A morte da inocência de Reyna, que lhes permitira uma partilha jubilosa sem atender aos custos, magoava-o mais do que ele pensava.
Era inevitável, pensou. Ela não era nenhuma idiota. Teria de chegar o dia em que ela começaria a examinar o que encerrava aquela atmosfera de prazer. E aí ela pesaria o valor do que vinha dando e julgaria o valor do homem a quem o ofertava.
A sua tentativa final de se antecipar a esse juízo, na noite passada, fora vã e, suspeitava, só a fizera abrir mais depressa os olhos.
O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? A pergunta era tão simples. Talvez uma resposta simples houvesse bastado, mas ele tinha dúvidas. Esta pergunta levaria a outras, como era hábito nestas coisas. Não tinha sido o encontro deles a trazê-lo ao mundo, e ela acabaria por procurar a história dos anos que o tinham levado até lá.
Mal podia ela saber que a desonra dos últimos quatro anos, a parte que ela já conhecia, fora o menos mau.
Ele ponderara responder à pergunta, mas concluíra que não podia arriscar-se a fazê-lo. Não se atrevia a testar os laços delicados que se formavam entre eles, pois a sua alma isolada comprazia-se com aquelas ténues ligações mais do que ele pensara possível. Mas no silêncio tenso da sua recusa, e mais tarde na cama, ele sentira algumas dessas ligações partirem na mesma, tão certo como se ela as tivesse cortado com uma tesourada.
Vinha o crepúsculo sobre os homens que avançavam a custo pelo caminho para Black Lyne. A progressão era lenta, em razão das carroças carregadas com os despojos de armaduras e a fila a reboque de cavalos Armstrong.
Fora uma batalha breve, após um ataque surpresa, e findara mais cedo do que poderia ter acontecido, quando Ian desafiou Thomas Armstrong para um combate individual. Derrotar o homem não oferecera grande dificuldade, e Ian poupara a vida a Thomas em troca de um juramento para manter os Armstrong em Clivedale, a norte da fronteira com o castelo de Black Lyne e longe do cerco em Harclow.
A companhia estava animada. Por si próprios, os soldados comuns decidiram partilhar os despojos com os outros que tinham perdido a diversão por terem sido enviados para Harclow. Ian trocava gracejos e deixava-se envolver na camaradagem e amizade. A maior parte destes companheiros sairia em breve da sua vida, reparou. Dentro de seis meses, a companhia estaria de regresso a França, montando cerco a uma qualquer povoação exausta. A maioria eram salteadores no seu âmago e não lhes era possível ter outra vida.
Ficou no acampamento, do lado de fora das muralhas, durante muitas horas, compartilhando a cerveja e a comida trazida ao portão por alguns criados. Ouviu histórias de campanhas e aventuras passadas, deixando a boa disposição circular ao seu redor. Caía há algum tempo uma chuva miudinha, quando por fim ele se levantou e se afastou.
Retirara a armadura e envergava apenas uma capa e túnica compridas e umas botas baixas suaves. Aproximou-se do portão com o aspeto de um mendigo, e teve de gritar para o guarda o reconhecer à luz do archote.
A grade levantou-se. Ele parou e olhou para as fogueiras por cima do ombro. Em seguida entrou no pátio deserto. Com um estrondo, o portão de ferro cravou-se no chão atrás dele, calando os sons da companhia.
Aproximava-se da torre. À porta, um archote solitário crepitava à chuva miudinha, e à sua luz moribunda ele viu uma figura encolhida no meio das escadarias de madeira. Subiu lentamente os degraus em direção a ela. O rosto pálido de Reyna espreitava de um manto que envolvia o seu corpo sentado.
Ele esquecera-se de que lhe ordenara que esperasse por ele.
– Podíeis ter ficado no salão. Está húmido e frio cá fora.
– Estou quente e seca que chegue. Tenho pouca experiência em receber um homem a seguir a uma batalha, mas recebia Robert aqui quando ele regressava de uma viagem. Há lá dentro quem se lembre disso. Não quereria que pensassem que vos honro menos.
Ele aceitou a afirmação de dever sem comentários. Não conseguia ver a expressão dela, mas o tom de voz fora suave e cuidadoso. Como é que se acaba uma discussão que nunca começou? Nenhuma palavra se pronunciara que pudesse ser retirada, nenhum insulto gritado pelo qual pedir perdão. Ela pedira apenas uma pequena coisa, mas, mesmo assim, era mais dele próprio do que se atrevia a dar. Ele sabia, porém, que ela se resignara a não voltar a perguntar-lhe o que quer que fosse.
– Podeis ter pouca experiência em receber um homem a seguir a uma batalha, Reyna, mas tendes muitos mais anos como mulher do que eu tenho como marido.
Ela inclinou pensativamente a cabeça, e quando voltou a falar a sua voz parecia mais natural. – Sim. E a mulher vai repreender-vos agora, por demorardes tanto tempo a atravessar aquele portão.
Soube do vosso combate com Thomas, e tendes ferimentos que é necessário limpar. Há água quente a aquecer à lareira, no quarto principal, e colocarei unguento nos vossos cortes.
Saber que Reyna se preocupava com os seus ferimentos agradou-lhe. Abriu a capa com um braço para acolher aquele corpo pequeno ao seu lado. Ela não estava nem quente nem seca como dissera, mas ele trataria disso muito em breve. Ele queria-a, e aceitaria o que quer que ela lhe desse, e talvez com o tempo tudo voltasse ao que era antes da noite anterior.
– Disseram que deixastes Thomas viver – disse ela.
– Não havia vantagem em matá-lo. Se eu pensasse que a morte dele terminava com as acusações contra vós…
– Não, não… agrada-me que não o tenhais feito. As pessoas diriam que foi porque… – A voz dela apagou-se.
Porque eu desejava a mulher de Thomas e procurava desembaraçar Margery do seu marido. Ele não se importava com o que as outras pessoas pensavam, mas não aceitaria que Reyna ficasse a matutar no assunto. Pelo menos isto, ele podia dar-lhe.
– Nunca houve nada entre mim e Margery – afirmou ele. – E agora, chega de chuva.
Com a capa dele flutuando ao redor dos dois, conduziu-a para casa.
CAPÍTULO 17
Da sua posição na curva do adarve a sudeste, Ian perscrutava o paul. Em baixo, multiplicavam-se as flores selvagens e urzes, e mais à frente serpenteava a linha cavada na terra pelo rio. Ao seu lado estava Giles, o seu sapador mais experiente.
Ian apontou para a terra diretamente a sul. – Andrew Armstrong disse que houve uma altura em que o rio corria mais perto do castelo, anos atrás, e era mais largo, chegando a cobrir aquele pântano além.
Giles assentiu com a cabeça. – Já vi acontecer. O curso de um rio por vezes muda de sítio ou estreita.
– Interrogo-me se pode ser novamente mudado. Porque não escavar e trazer o rio mais para perto da muralha?
– É assim que se cavam fossos, claro.
– Não falo de desviar parte do rio para um fosso, mas o curso todo. Quero saber quantos homens e quanto tempo.
– Digamos uns cem homens das quintas. Não dá para os usar durante o plantio e a colheita, por isso são só os meses de crescimento e uns poucos antes do inverno. Se não derem com pedra, e se correr bem, talvez três temporadas.
Há dois meses, se alguém lhe tivesse proposto um projeto que levasse tanto tempo, Ian teria recebido a sugestão com uma gargalhada. Agora, três anos pareciam um pequeno investimento no tempo de uma vida.
Deu ordens a Giles para desenhar os planos para o projeto e depois caminhou pela muralha até às escadas. Descendo para o pátio, viu passar Reyna. Ela trazia o cabelo numa trança espessa enrolada à volta da cabeça, mas ele sabia que ela chegaria para jantar com o cabelo solto, como era a preferência dele. Fazia-o para lhe agradar, apesar do mau jeito.
Ficou a observá-la caminhar tranquilamente até ao jardim com um cesto no braço para apanhar as flores e ervas com as quais temperar a comida. Agora ajudava Alice em todos os jantares, porque ele preferia a comida dela. À refeição, ela conversaria sobre os planos dele para o castelo e as notícias do cerco em Harclow. Ao fim do dia, retirava-se para ler ou escrever a sua filosofia, e à noite os seus braços e o seu corpo recebiam-no com agrado. Nestas intimidades não faltava prazer, mas estavam sempre marcadas de formas silenciosas por fronteiras que ela já não se permitia atravessar.
Era linda. Não tinha um rosto ou um corpo perfeitos, mas aos olhos dele era linda de qualquer maneira. Zelosa e animada, obsequiosa e adorável. Mais do que ele alguma vez esperara.
Então porque dava por si a ranger os dentes ao ouvir os seus ditos corteses, com saudades dos dias em que ela lhe chamava canalha e filho de uma égua? Pelo menos os seus anteriores atritos com o desprezível Ian de Guilford possuíam sangue e vida, e uma amizade peculiar. Em contrapartida, este polido obséquio marital prometia estagnar muito rapidamente numa entediante rotina.
Ian começou a galgar os degraus para a torre. Movimento e barulho ao portão detiveram-no. Um guarda anunciou que se aproximava um cavaleiro solitário.
A grade levantou-se e um cavalo atravessou o portão da muralha. O cavaleiro virou-se e estudou os galhardetes brancos e verdes que esvoaçavam das torres, para em seguida lançar um olhar pelo pátio. Sentava-se direito e orgulhoso no seu corcel, envergando uma armadura completa, com um longo manto negro caindo-lhe pelas costas.
O homem teria talvez uns trinta anos, de cabelo dourado que lhe ondeava pelo rosto e pelo pescoço. Volveu o seu rosto estreito e de feições delicadas para a torre, e os seus olhos azuis e brilhantes recaíram sobre Ian. Alçando-se do garanhão, o manto negro caiu para a frente, estendendo-se.
Ian percebeu a cruz branca no ombro do manto e soube de imediato quem havia chegado. Edmund, o hospitalário. Ficou ali de pé como a personificação de um arcanjo, tão perfeito e limpo como se houvesse descido de um vitral colorido de uma catedral.
Um gritinho irrompeu do portão do jardim. Ian viu Reyna deixar cair o cesto e correr como uma lebre para os braços abertos do sorridente cavaleiro louro. Agraciou Edmund com um beijo de saudação e sorriu para ele com uma expressão deliciada, cheia de confiança.
Forçando um sorriso de boas-vindas que não sentia, Ian acercou-se do monge-cavaleiro. Reyna deu um passo atrás, voltando-se no braço que lhe envolvia os ombros. – Ian, este é Edmund, de quem vos falei.
– Sede bem-vindo, Edmund. Honra nos faz recebermos a visita de um cavaleiro de S. João.
– Diligências para o precetor trouxeram-me até estes lados.
Agradeço-vos as boas-vindas, já que nos últimos dias ouvi dizer que várias mudanças houve por aqui.
Sim, Edmund teria ouvido as novas do cerco a Harclow e da tomada de Black Lyne enquanto cavalgava pelos montes. Que mais, porém? Ian decidiu clarificar a situação. – A nossa hospitalidade estará sempre disponível para os amigos da minha mulher.
O homem era bom, Ian tinha de admiti-lo. A sua expressão quase não mudou. Apenas um pestanejar de vaga surpresa.
O braço de Edmund apartou-se de Reyna. Ian percebeu que o cavaleiro tinha muitas perguntas para lhe fazer, e que ela sentia alguma necessidade de se explicar, mas claro que não podiam ter essa conversa agora. Acabariam por conseguir algum tempo a sós para o fazer, e Ian imaginou a parte de Reyna na conversação, não gostando muito do que a ouvia dizer.
– Travei conhecimento com o vosso irmão, Reginald, claro –
disse Ian.
– Ouvi dizer que o tendes prisioneiro.
– Ele disse que jurou a Robert proteger-me, Edmund, mas antes de me levar até vós ia forçar um casamento – explicou Reyna tristemente. – Parecia um homem diferente. Não compreendi.
– Foi ferido, mas recupera bem – acrescentou Ian.
– Gostaria de o ver, se o permitirdes.
– Claro. Levo-vos agora até ele. Mulher, mandai as criadas preparar um quarto para o nosso convidado, enquanto levo Edmund a seu irmão.
– Eu sei dos meus deveres, Ian – devolveu ela. – Falaremos ao jantar, Edmund. É bom voltar a ver-vos, querido amigo.
– O meu irmão não é muito inteligente – disse calmamente Edmund quando Reyna se afastou.
– Discordo. Forjou um plano brilhante e teria a posse tanto das terras como da senhora, se tivesse funcionado.
– Não sei nada a respeito de suas terras, e se Reginald lhe ofereceu casamento foi apenas para a proteger.
– Vós podeis estar votado à castidade, mas o vosso irmão não.
Decerto foi mais do que cavalheirismo a incitar o homem, e estranha oferta é a que não permite recusa.
O rosto de Edmund tingiu-se. – Uma vez que agora está votada a vós, é óbvio que sabeis tudo sobre ofertas aceites sob constrangimento.
– Pelo menos, podemos presumir que ofereci mais cortesmente do que Reginald.
– Ou mais violentamente.
– Ou mais persuasivamente.
Ian conduziu-o até à câmara na cave onde Reginald penava.
Destrancou a porta pesada e afastou-se.
Vendo os dois homens juntos, Ian pôde notar as suas parecenças. Edmund era uma versão mais pequena, mais burilada, do irmão mais velho. Tinha um rosto mais belo e, sabia-o de Reyna, uma mente muito mais afiada. Ainda assim, o parentesco deles era óbvio.
– Deixar-vos-ei juntos um instante. – Fechou a porta e trancou-os aos dois lá dentro. A tentação de lá deixar Edmund de vez, para garantir que Reyna nunca mais via este amigo, bailava-lhe no espírito.
A passagem estreita era parcamente alumiada pela luz que se infiltrava do cimo dos degraus, por isso não reparou na outra porta até se encostar a ela.
Virou-se e tateou as tábuas pesadas, deparando com as dobradiças de ferro e por fim com a maçaneta grosseira. A porta abriu sem impedimento e luz bateu-lhe nos olhos vinda de uma janelinha alta. Foi invadido por uma confusão de aromas complexos.
O seu olhar deteve-se numa mesa tosca coberta de taças de terracota e em feixes de plantas várias pendurados no teto baixo.
Enfiou um dedo no conteúdo esmagado, seco, de um dos recipientes.
Ervas.
Às voltas na cela, dizia para si próprio que Reyna não lhe escondera deliberadamente a sua localização. Não estava trancada, e o castelo inteiro devia saber da sua existência.
Recordou uma visita à construção que pedira a Andrew Armstrong no dia que se seguiu à tomada da fortaleza. O intendente esboçara apenas um gesto na direção das escadas, dizendo que lá em baixo se encontravam as celas, e Ian não duvidara da sua previsível localização. Se algum engano deliberado houvera, fora de Andrew.
Entre a floresta de folhas quebradiças, Ian notou uma tábua larga deitada contra a parede da janela. Baixou-se para lá chegar e analisou-lhe a forma estreita e plana. Examinando a parede direita que não era contígua à cela de Reginald, viu uma falha discreta da largura de um braço entre algumas pedras.
Baixando-se, encaixou a tábua na falha e empurrou-a. Esta foi-se introduzindo na parede, e depois deslizou sem dificuldade até embater numa barreira sólida. Adivinhou que, se não a puxasse para fora, o castelo ficaria uma vez mais sem água no poço.
A poterna e a escadaria cavada na muralha, e agora esta oportunidade de sabotagem caso a torre fosse ocupada. Robert de Kelso fora um homem muito inteligente.
Retirou a tábua e deixou-a perto da falha, para que Reyna soubesse que ele a havia descoberto.
Regressando à cela, abriu a porta. Edmund exibia uma expressão azeda e Reginald parecia tão vexado como uma criança a quem acabava de ser aplicado um corretivo. Sem uma palavra de despedida para o irmão, Edmund juntou-se a Ian no corredor.
– Devo desculpar-me por ele à senhora – disse-lhe em voz baixa. – O meu irmão consegue ser teimoso nos seus modos simples. Interpreta o seu dever e depois avança, e ninguém consegue detê-lo. É útil em batalha, mas de outra forma…
Ian acompanhou-o ao salão, onde Andrew supervisionava a disposição dos pratos de prata do castelo na mesa principal.
Parecia que Reyna decidira honrar o seu amigo com o aparato de um festim. Ian disse para consigo que não se devia importar, já que tiraria partido das iguarias, pelo menos. Além disso, os preparativos ocupariam Reyna e impediriam conversas privadas com o seu cavaleiro puro durante algumas horas. Muito abruptamente, Ian decidiu que uma longa caçada para entreter o seu convidado durante a tarde era uma boa ideia.
– É vossa intenção conservar Reginald aprisionado? – indagou Edmund.
– Até a situação de Harclow estar determinada e se chegar a acordo com os Armstrong, não vejo outra escolha.
– Ele era vassalo de Robert, mas se houverdes estipulado um resgate, verei se os Armstrong o pagam. Se não, tentarei obter eu o dinheiro. Se achardes por bem ser generoso neste assunto, levá-lo-ia comigo, para longe daqui. Ele juraria não regressar.
– Já quebrou um juramento antes.
– Ele não achou que o fazia, mas se preferirdes, farei eu o juramento, e prometerei tê-lo sempre comigo.
– Irei ponderá-lo – disse Ian. – Agora o intendente mostrar-vos-
á o vosso quarto. Passastes muitos dias em cima de um cavalo e tenho a certeza de que gostaríeis de vos refrescar.
O jantar era quase tão requintado como o banquete de núpcias, e Ian tentou debelar o ressentimento teimoso que sentia sempre que imaginava Reyna atarefando-se, excitada, enquanto cozinhava a refeição. Ela manteve uma conversa animada com o amigo com ele de permeio, mas Ian conseguia sentir a tensão com a qual ambos evitavam os assuntos sobre os quais mais queriam conversar. A morte de Robert. A sua tentativa de fuga. O casamento forçado de Reyna com o conspicuamente ímpio Ian de Guilford.
Ian sucumbiu finalmente a uma vontade endiabrada de alfinetar a perfeição autocomplacente deste arcanjo.
– Costumais trabalhar no hospital, em Edimburgo, Edmund?
– Fi-lo, como todos o fazem, durante o meu treino. Tratar dos doentes é uma das missões da ordem.
– Sim, e libertar Jerusalém é a vossa outra grande missão, não é verdade? Passastes tempo na Terra Sagrada?
Edmund franziu os lábios. – A ordem não tem feito lá campanhas durante o meu tempo, lamento dizê-lo.
– Na verdade, os cavaleiros sagrados não lutam no Oriente desde que os Templários foram extintos, penso eu – acrescentou Ian.
– Tem-se falado numa nova cruzada.
– Sim, sempre se fala. Dizei-me, o que faz um hospitalário que nem cuida dos doentes nem luta por Deus? Que diligências vos trazem a sul?
– Sou escrivão do precetor e ajudo a tratar das propriedades da ordem.
– Ah! Então viajais para recolher rendas e coisas tais? Como um bailio?
O insulto foi subtil, mas não escapou a Edmund. – Os meus deveres são um pouco mais elaborados.
– Como assim? – perguntou Reyna, curiosa.
Ela nunca falara com Edmund sobre a vida dele, compreendeu subitamente Ian. Nunca se perguntara. Ele era um monge virtuoso que falava de filosofia com ela e que se tornara amigo de Robert, e era tudo o que ela precisava de saber.
– Ocupamo-nos da questão de certas propriedades que nos foram concedidas pelo Santo Padre há vários anos, mas que nunca recebemos. Fui formado em direito canónico e civil e tenho-me ocupado deste assunto.
A mente inquiridora de Reyna havia sido estimulada. –
Propriedades que estão na posse de outros? Então, se as vossas demandas forem atendidas, desalojareis famílias.
– Essas famílias sabiam, quando obtiveram as propriedades, que não tinham direito a elas, que o Santo Padre as havia dado à minha ordem.
– Falais de terras templárias, não é verdade? – inquiriu Ian, deliciado com a oportunidade de levantar outro assunto que seguramente faria o hospitalário sentir-se desconfortável.
Edmund lançou-lhe um olhar severo.
– A dissolução dos Templários foi pronunciada pelo Papa há mais de quarenta anos – explicou Ian a Reyna. – O seu senhorio devia ter sido transferido para os Hospitalários, mas em Inglaterra o que o rei fez foi dar grande parte a amigos. O Parlamento aprovou finalmente leis para garantir que fosse para a Ordem de S. João, mas houve muitas petições, visto que as famílias rebatiam as transferências. Presumo que o mesmo se passou na Escócia, Edmund?
– Sim.
– Porque foram eles dissolvidos? – perguntou Reyna.
Edmund fez um esgar. – Foram acusados de blasfémia e práticas demoníacas, senhora, e outros crimes desapropriados aos vossos ouvidos.
– E o Papa e os reis ficaram-lhes com o ouro, e os Hospitalários com as terras – acrescentou Ian.
Reyna ergueu uma sobrancelha, mostrando que não lhe tinham escapado as possibilidades de uma perseguição injusta. Ian retirou alguma satisfação de ter maculado um bocadinho o halo de Edmund.
Reyna e Edmund lançaram-se numa discussão a propósito de um filósofo qualquer. Enquanto ouvia distraidamente, Ian observava os seus outros convidados. Anna de Leon interpelava Andrew a propósito do estábulo, decidindo que cavalo requisitaria para a caçada da tarde.
Ian decidiu que encontraria forma de Edmund caçar com Anna.
Ouvira dizer que ela cavalgava melhor do que a maioria dos homens e que tinha um olho para o arco que poucos conseguiam igualar. Ele sorriu com a imagem de Anna a deixar para trás o homem que a escoltava, e trazendo mais caça do que o cavaleiro puro e perfeito. Ele deixaria a mulher de Morvan tratar do hospitalário e pô-lo no lugar dele.