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O caíque era um barco de escravos, empregado no transporte de sua carga de angústia desde o continente, através do canal, para os mercados de Zanzibar. Cheirava a excreções do corpo e agonia do espírito humano. Era um miasma terrível que impregnava a pequena nau e permeava o cabelo e as roupas de todos a bordo dela. Entrava pelos pulmões de Dorian a cada respiração, e parecia lhe corroer a própria alma.
Ele estava acorrentado no convés inferior. Os grampos de ferro penetravam pela estrutura principal de madeira pesada e as cabeças eram cravadas. As cadeias de suas pernas eram forjadas à mão e a corrente passava pelo olhai de seus grilhões. Havia espaço para uma centena de cativos na longa prisão baixa, mas Dorian se encontrava sozinho. Agachou-se sob as vigas da estrutura do caíque, tentando manter os pés longe do barulhento madeirame de bojo que deslizava para trás e para a frente a cada arfada e jogo do casco estreito, cheio de escamas de peixe e de pedaços encharcados de polpa de coco seco - a carga alternativa do caíque.
A cada hora ou pouco mais, o alçapão acima de sua cabeça era aberto e um dos árabes da tripulação o espiava com ar ansioso. Seu carcereiro lhe passara, vez ou outra, uma tigela de arroz e peixe cozido ou um coco verde cujo topo fora cortado. A água do coco era doce e levemente efervescente, e Dorian a bebera ávido, embora rejeitasse o cozido feito de peixe seco ao sol, meio podre.
A parte seus grilhões e o terrível confinamento da cabina, seus captores árabes o tinham tratado com absoluta consideração. Mais que isso, estavam evidentemente preocupados com seu bem-estar e procuravam certificar-se de que não ficasse nem com fome nem com sede.
Por quatro vezes nos últimos dois dias, o capitão do caíque descera o convés de escravos e se postara diante dele, a encará-lo atentamente, com uma expressão difícil de decifrar. Era um homem alto com pele muito escura, marcada de pústulas de varíola, e nariz adunco. Fora ele quem puxara Dorian do mar e apertara a adaga em sua garganta. Em sua Primeira visita, tentara interrogar o menino.
- Quem é você? De onde vem? É um crente verdadeiro? O que estava fazendo num navio infiel?
O sotaque do capitão era estranho e sua pronúncia de algumas palavras muito diferente da maneira ensinada por Alf Wilson, porém ele pudera compreender o homem sem dificuldade e teria como responder fluentemente. Em vez disso, deixara pender a cabeça e se recusara a encará-lo. Ansiava desesperadamente por dar vazão a seu medo e sua raiva sobre o árabe. Queria avisá-lo de que era o filho de um homem poderoso e rico, mas sentiu que isso seria suprema tolice. Queria esbravejar:
- Meu pai logo virá me buscar e, quando chegar, não terá piedade alguma de você ou de qualquer um dos seus homens.
Limitara-se, ao contrário, a morder a língua dolorosamente, para impedir-se de responder àquelas perguntas.
Por fim, o capitão desistira de tentar fazê-lo falar e se acocorara ao lado dele. Tomara um punhado de seus cabelos na mão. Então, os acariciara quase com ternura. Para surpresa de Dorian, havia murmurado uma prece.
- Alá é grande. Não há outro Deus, somente Alá, e Maomé é seu Profeta.
Em suas visitas subseqüentes ao convés dos escravos, ele não se esforçara mais para interrogar Dorian. Contudo, a cada vez, cumpria o mesmo ritual de lhe alisar e acariciar a cabeça e resmungar uma prece.
Na última visita, o homem puxara de repente a adaga da bainha do cinto. Dorian, que havia se acalmado com seu comportamento anterior, ficou chocado quando a lâmina afiada luziu em sua face. Fez um esforço para não chorar, mas saltou para trás, apavorado.
O árabe mostrara seus dentes tortos e manchados num horrível sorriso, com a intenção de ser apaziguador e, em lugar de machucar Dorian, simplesmente cortou um longo cacho de seus cabelos louros acobreados antes de enfiar de volta o punhal na bainha.
Dorian ficara intrigado e confuso com aquele comportamento e teve muito tempo para ponderar sobre aquilo na prisão escura e fedorenta dos escravos. Percebeu que era a cor e a textura de seu cabelo que fascinavam seus captores, e tinham um significado especial para eles. Assim que foi arrancado das águas do mar, parecia certo que os árabes descarregariam sua raiva e maldade sobre ele. Conseguia lembrar vividamente da pressão da adaga apertada em sua garganta e, mesmo agora, quando corria os dedos pelo local, sentia a crosta da ferida que a lâmina deixara em sua pele.
Fora apenas quando o capitão lhe arrancara o barrete de Monmouth da cabeça e os longos cabelos de Dorian tinham se espalhado ao vento, o homem tirara a faca do pescoço do menino. No terror daqueles momentos, Dorian não se deu conta da algazarra e das discussões aos brados de seus captores, enquanto o carregavam para o convés inferior e o acorrentavam na prisão dos escravos, porém se recordava que todos no caíque se aproximaram para lhe tocar ou afagar a cabeça. Agora retalhos das conversas excitadas lhe voltavam à memória.
Muitos tinham mencionado uma "profecia", e alguns gritaram um nome que era obviamente reverenciado por eles, pois todos entoavam: "Possa Alá apiedar-se dele" depois de qualquer um o pronunciar. Para Dorian, o nome soava como "Taimtaim". Com medo e tão sozinho, ele se agachou no rústico assento, na escura e fedorenta prisão, e pensou em Tom e em seu pai com tamanha saudade que ameaçou lhe esmagar o coração no peito. Cochilou algumas vezes por uns poucos minutos, mas a cada vez era acordado em sobressalto pelo casco instável, ao caíque ser atingido por uma onda mais forte, e ele caía de seu precário poleiro. Conseguiu manter uma contagem da procissão de dias e noites quando o alçapão acima de sua cabeça era aberto, e comida e bebida passadas a ele, ou quando o capitão descia para se regozijar com sua presa.
Ao décimo segundo dia depois de sua captura, os grilhões foram retirados de seus tornozelos. Dorian foi alçado pelo alçapão para o convés, onde a luz do sol era tão forte depois da penumbra lá de baixo, que ele teve de proteger os olhos. Demorou alguns minutos até ajustar-se ao brilho e então, ainda a pestanejar penosamente, olhou ao redor. Descobriu que metade da tripulação se reunira em torno dele num círculo de semblantes fascinados. Dessa vez, prestou atenção ao que diziam:
- Isso é verdadeiramente parte da profecia, Deus seja louvado.
- Não pode ser, pois al-Amhara não fala a língua do Profeta.
Dorian compreendeu que por al-Amhara, que traduzido significava o Vermelho, se referiam a ele.
Atente para não falar blasfêmia, ó Ismael. Não lhe cabe julgar se ele é a criança da profecia ou não.
Os caminhos de Deus são prodigiosos e não podem ser penetrados disse outro, e todos entoaram em coro: - Graças a Deus!
Dorian correu os olhos pelo círculo de faces escuras e barbadas e Por sobre a proa. As ondas adiante eram arrepiadas pelo vento e as Cristas curvas reluziam prateadas à luz do sol, mas no horizonte se avisava uma nuvem negra, incomum. Firmou o olhar de tal forma que seus olhos lacrimejaram. Parecia ser fumaça que rodopiava e fluía, mas em seguida, com mais atenção, divisou as formas diminutas de palmeiras abaixo daquela massa mais densa, e percebeu que o que via era um enorme bando de aves.
Mesmo enquanto observava, bandos menores de dez ou vinte aves marinhas passaram pelo caíque, apressadas em se juntar àquela imensa aglomeração. Dorian gostaria de enxergar mais daquilo que havia adiante e, ao mesmo tempo, de tentar testar o humor de seus captores para ver quanta liberdade lhe permitiriam. Avançou, e o círculo de árabes abriu caminho: respeitosamente, deram um passo para o lado como se temerosos ou relutantes em confrontá-lo. Um tocou-lhe a cabeça quando ele passava, porém Dorian o ignorou.
- Vigiem-no bem - o capitão do caíque berrou do leme. - Ele não pode escapar.
- Ah! Ora, Yusuf - um lhe respondeu -, al-Amhara é assim tão abençoado que pode voar como o arcanjo Gabriel? - Todos riram, mas nenhum fez menção alguma de cercear Dorian. Ele continuou em frente e recostou-se contra o único mastro curto e grosso.
Gradualmente, a fímbria das palmeiras abaixo da nuvem de aves marinhas tornou-se mais nítida, e então Dorian pôde ver o contorno de um promontório ao norte do que era claramente uma pequena ilha. Quando mais próximos, as paredes de uma edificação quadrada, feitas de blocos brancos, luziram ao sol. Depois, enxergou os canhões nas muralhas e uma flotilha de navios atracados na baía, abaixo do forte.
- O Minotauro! - exclamou, de súbito, ao reconhecer os altos mastros e o formato do navio contra o qual o Seraph se confrontara apenas dias antes.
Com sua velocidade superior, devia ter chegado bem adiante do pequeno caíque. Estava ancorado no meio da baía com as vergas nuas, e assim que passaram mais perto, Dorian conseguiu ver claramente o dano que a artilharia do Seraph infligira à nau. Mais perto ainda, pôde ler o novo nome que fora pintado em caracteres arábicos na viga de popa, para substituir sua identificação inglesa: Bafejo de Alá.
Não era o único navio de velas redondas na baía: havia quatro outros, um maior e três menores que o Minotauro. Dorian deduziu que deviam também ter sido capturados pelos corsários dos comboios das frotas mercantes européias no Oriente. Cinco grandes embarcações levando carga preciosa eram um butim enorme. Não era de admirar que o nome de al-Auf fosse tão temido pela extensão e largura daquele oceano.
Seus pensamentos foram interrompidos por um grito de "A postos!" de Yusuf, o capitão ao leme, e pelo arrastar de pés descalços pelo convés quando a tripulação saltou para manobrar o caíque. A longa verga foi corrida para trás e depois para a frente, do lado oposto do mastro. A única vela inflou-se a estibordo, e o capitão entrou pela estreita passagem através do recife que guardava o acesso à baía.
Leve al-Amhara para dentro da cabina da frente. Esconda-o dos olhos dos guardas nas muralhas do forte - berrou Yusuf, e dois dos homens pegaram Dorian pelos braços e o conduziram gentilmente para a pequena cabina no convés de proa e o empurraram para dentro.
Embora a porta fosse de madeira sólida, havia vigias de ambos os lados da cabina. Dorian espiou para fora: teve uma boa visão da baía quando o caíque entrou por ela.
O canal fazia um cotovelo pelo recife de coral e, em seguida, passava perto das muralhas da fortaleza. Dorian olhou para os canhões que apontavam pelos balestreiros e viu atrás deles as faces morenas dos atiradores. A tênue fumaça azulada de suas mechas de combustão lenta flutuava no topo da muralha de pedra, e os gritos abafados de boas-vindas da guarnição eram respondidos com euforia pela tripulação do caíque. O capitão lançou âncora perto da popa do Bafejo de Alá, nas águas calmas e claras, e chamou uma das chatas atracadas na praia abaixo do forte. Três homens empunharam os remos e a trouxeram até o caíque. Instalou-se uma longa e ferrenha discussão entre a tripulação, cujo conteúdo Dorian pôde apenas acompanhar pelas frestas da grossa madeira da cabina. Discutiam sobre quem acompanharia o capitão e al-Amhara em terra. Finalmente, Yusuf acalmou os ânimos e escolheu três homens, ordenando que descessem à chata para servirem de acompanhantes. Em seguida entrou na cabina e exibiu seus dentes amarelados naquele horrível sorriso falso.
- Vamos a terra para encontrar al-Auf.
Dorian encarou-o, mudo, ainda sem dar indicação de ter entendido, e Yusuf apontou e gesticulou para se explicar.
Devemos cobrir seus belos cabelos. Quero surpreender al-Auf.
Pegou uma imunda túnica cinza de um pino de madeira ao lado da Porta e fez sinal a Dorian para que a vestisse. Embora cheirasse a suor azedo e peixe podre, Dorian obedeceu. Yusuf arranjou o capuz da túnica para cobrir-lhe a cabeça e ocultar-lhe a face e, em seguida, pegou Dorian pelo braço e o empurrou para que descesse até a chata à espera.
Remaram para a praia, onde saltaram sobre a areia de coral branco moído. Os três árabes apertaram-se em torno de Dorian, e Yusuf conduziu-os para cima, pelos palmeirais, e ao longo da trilha em direção às muralhas do forte. Passaram por um pequeno cemitério em meio ao arvoredo. Alguns dos túmulos eram antigos, o reboco de coral rachado e descascado aos pedaços em seu revestimento. As cruzes cristãs nas cabeceiras estavam quebradas e caídas. Ao fundo, havia tumbas mais novas, sem pedras, os montes de terra recentemente escavada marcados apenas por bandeiras brancas em postes curtos, cobertos de preces e citações em caracteres arábicos. As bandeirolas dos túmulos flutuavam desfraldadas à monção.
Saíram do cemitério, e a trilha seguiu sinuosa através do arvoredo em direção ao forte, até que, abruptamente, entraram noutra clareira. Dorian estacou de susto e pavor: corpos nus pendiam de tripés de madeira crua ao longo dos dois lados da picada. Aquele era evidentemente um campo de execução.
Algumas das vítimas nos tripés ainda estavam vivas. Respiravam, fazendo pequenos movimentos dolorosos. Um enrijeceu o corpo todo e gemeu alto antes de cair de costas contra seus liames. Muitos dos demais estavam mortos, e alguns o tinham sido havia vários dias, suas feições congeladas no ricto da derradeira agonia, os ventres protuberantes de gases, as carnes avermelhadas e ressequidas pelo sol. Todos, vivos e mortos, tinham sido cruelmente torturados. Dorian olhou com horror para um que tinha tocos carbonizados e negros em lugar de mãos e pés. Outros mostravam órbitas vazias em suas faces, onde seus olhos haviam sido arrancados com ferros em brasa. Línguas tinham sido cortadas das bocas, e moscas voavam numa nuvem azul pelas gargantas abertas. Alguns que ainda viviam imploravam em murmúrios roucos por água, e outros clamavam por Deus. Quando o menino passou, um deles olhou para Dorian com os negros olhos arregalados, a repetir, num murmúrio monótono: "Deus é grande, Deus é grande". Sua língua estava tão negra e inchada pela sede que as palavras eram quase inaudíveis.
Um dos guardas de Dorian riu e saiu da trilha. Olhou para o homem agonizante e lhe disse:
- Em seus lábios, o nome de Alá é blasfêmia! - Tirou a cimitarra e, com a outra mão, pegou a penca encolhida da genitália do moribundo. Com um único golpe da lâmina, decepou-a e a enfiou dentro da boca escancarada da vítima. - Isso o manterá quieto! - Riu com deboche. O homem torturado não mostrou sinais de dor, sua angústia ja acima do suportável.
- Você sempre foi um bufão, Ismael - Yusuf o recriminou com ar pudico. - Vamos, agora, está perdendo tempo com a sua palhaçada.
Os guardiães de Dorian o arrastaram até que chegaram à entrada da porta, na muralha traseira do forte. Estava aberta, e havia alguns poucos guardas de túnica acocorados à sombra do arco, seus arcabuzes encostados na parede.
Tom sempre insistira com Dorian sobre a necessidade de perceber e relembrar cada detalhe de qualquer novo ambiente. O capuz ocultava a face de Dorian, porém não lhe encobria os olhos, e ele viu que as portas principais do forte eram antigas e corroídas, seus gonzos quase carcomidos pela ferrugem, mas que as paredes eram muito grossas. Seriam à prova do mais pesado bombardeio.
Os guardas conheciam bem o capitão do caíque: não se deram ao trabalho de se levantar, mas apenas trocaram as costumeiras saudações floreadas com ele e, em seguida, acenaram para que o grupo passasse. Os recém-chegados entraram no pátio do forte, e de novo Dorian olhou ao redor atentamente. Viu que as edificações originais eram bastante antigas. Os blocos de pedra de coral mostravam a ação do tempo e, em alguns locais, tinham desabado. Entretanto, eram visíveis os reparos recentes, e mesmo agora um grupo de pedreiros trabalhava na escada que conduzia aos balestreiros. Os telhados antigos haviam sido substituídos por uma cobertura de palmas trançadas ainda não totalmente secas. Ele estimou que perto de duzentos homens perambulavam à sombra ao longo da base das muralhas. Alguns tinham estendido seus tapetes de oração e esticavam-se sobre eles. Outros estavam reunidos em pequenos grupos, jogando dados ou partilhando compridos narguilés, ou entretidos em conversas enquanto limpavam seus mosquetes ou afiavam as bordas de suas cimitarras. Alguns fizeram a tradicional saudação: Salaam aliekuml, a que os captores de Dorian responderam: Aliekum ya salaam.
Sob um beiral coberto e com os lados abertos, que ficava no centro do grande pátio, havia uma fila de fogueiras que serviam como precários fogões a lenha. Mulheres veladas trabalhavam ali, assando pão em grades de ferro ou a cozinhar o conteúdo de potes enegrecidos sobre as brasas. Ergueram o olhar quando Dorian e seus guardas passaram, mas seus olhos eram imperscrutáveis atrás de seus véus, e elas não fizeram nenhum cumprimento.
Cômodos haviam sido construídos nas muralhas externas do forte, suas portas abertas para o pátio. Alguns estavam sendo utilizados como despensas ou paióis de pólvora, pois tinham guardas em cada compartimento.
Yusuf voltou-se para seus homens e falou:
- Esperem por mim aqui. Talvez possam pedir comida às mulheres para encherem as barrigas vazias.
Pegou Dorian com firmeza pelo braço e arrastou-o em direção à porta no centro das fortificações.
Dois guardas lhes barraram o caminho.
- Qual é seu assunto, Yusuf? - Um deles perguntou. - O que o traz sem ser convidado à porta de Musallim bin-Jangiri?
Discutiram por um momento, Yusuf a protestar por seu direito de acesso, e o guarda a exercer seu poder de negar isso a ele. Então, por fim, o guarda deu de ombros.
- Escolheu uma hora imprópria. O mestre já ordenou a morte de dois homens hoje mesmo. Agora, está em conferência com os mercadores do continente. Você, porém, sempre foi um homem ousado, Yusuf, um que gosta de nadar com o tubarão-tigre. Entre, por sua própria conta e risco. - Baixou sua espada e deu um passo para o lado com um sorriso insolente.
Yusuf agarrou o braço de Dorian com um aperto mais firme, mas seus dedos tremiam. Puxou o menino pela porta, para a sala em frente, e sussurrou em seu ouvido:
- Deite-se! Deite-se de barriga no chão!
Dorian fingiu ignorar o significado das palavras e resistiu aos esforços do homem em empurrá-lo para o chão. Lutaram por um momento no limiar da porta e, então, Yusuf soltou-o e permitiu que ficasse de pé, enquanto ele próprio rastejava pela sala em direção ao grupo de quatro homens sentados ao fundo.
Ainda de pé, Dorian tentou controlar a ansiedade e olhou ao redor. De um relance, viu que, embora as paredes da sala fossem de blocos de pedra de coral, nus e sem reboco, eram cobertas de tapetes de cores vivas e desenhos agradáveis. As outras peças estavam esparsas: o chão rústico era bem varrido, porém despido de qualquer mobiliário, exceto por uma única mesa baixa e um arranjo de almofadas sobre as quais os quatro homens se sentavam. Olharam com aparente desdém quando Yusuf seguiu em direção a eles, entoando uma litania de preces e desculpas.
- Grande senhor! Amado de Alá! Espada do Islã! Matador dos infiéis! Que a paz esteja sobre ti!
Dorian reconheceu o homem que o encarava. Ele o vira da última vez sobre o convés de popa do Minotauro. Sabia que jamais esqueceria aquela face.
Debaixo de um turbante verde, parecia esculpido em teca ou outro material qualquer, duro e inflexível. A pele era repuxada sobre o crânio de maneira que os ossos da face apareciam à superfície. Sua testa era alta e lisa, seu nariz, estreito e ossudo. A barba que pendia até sua cintura era penteada num formado de garfo, e tingida de hena, de uma brilhante tonalidade castanho-alaranjada, porém mechas grisalhas mostravam-se entre a tintura. Debaixo do bigode pendurado, sua boca era uma linha fina e tensa.
Aquela boca reptiliana e desprovida de lábios abriu-se então, e a voz que brotou dela era macia e melodiosa, sua suavidade em contraponto com os cruéis olhos negros como piche, acima.
- Você deve ter um bom motivo para perturbar nossas deliberações - disse al-Auf.
- Poderoso senhor, sou um monte de bosta de camelo a secar ao sol de tua complacência. - Por três vezes, Yusuf tocou o chão de pedra com a testa.
- Isso, pelo menos, é verdade - concordou al-Auf.
- Trouxe-te um grande tesouro, Amado do Profeta. - Yusuf ergueu a cabeça apenas o suficiente para indicar Dorian.
- Um escravo? - perguntou al-Auf. - Tenho enchido os mercados do mundo com escravos. Trouxe-me mais um?
- Um rapaz - confirmou Yusuf.
- Não sou pederasta! - exclamou al-Auf. - Prefiro o pote de mel à pilha de excremento.
- Um rapaz - gaguejou Yusuf, nervoso. - Porém não um rapaz comum. - Comprimiu a testa mais uma vez nas pedras. - Um menino valioso, mais precioso que ouro.
- Você fala em rodeios e círculos, seu filho de um porco-do-mato doentio.
- Posso ter tua permissão para exibir esse tesouro a teu olhar benevolente, ó Poderoso? Então, verás a veracidade do que te digo.
Al-Auf concordou e coçou sua barba pintada.
Depressa, então. Já estou cansado das suas imbecilidades.
Yusuf levantou-se, mas com as costas quase dobradas e a cabeça inclinada em profundo respeito. Seguiu sem se voltar até a porta, pegou Dorian pela mão e puxou-o para a frente. Suava de pavor.
Faça o que lho digo agora - murmurou com ferocidade, tentando ocultar o próprio medo - ou o mandarei castrar e o darei à minha tripulação como prostituta. - Arrastou Dorian para o centro da sala e Se postou ao lado dele. - Grande senhor, Musallim bin-Jangiri, eu te mostrarei algo que nunca viste antes! - Parou para deixar que a expectativa crescesse e, depois, com um floreio, puxou o capuz que cobria a cabeça de Dorian. - Vê! A coroa do Profeta predita na profecia!
Os quatro homens sentados encararam Dorian em silêncio. Dorian já se acostumara a essa reação de qualquer árabe que pusesse os olhos sobre ele pela primeira vez.
- Tingiu os cabelos dele com hena - disse al-Auf por fim -, como eu tingi minha barba. - Mas sua voz era indecisa, e sua expressão aturdida.
- De forma alguma, senhor. - Yusuf ganhava confiança. Havia contradito al-Auf sem nenhum resquício de medo, uma transgressão pela qual muitos homens haviam morrido. - Foi Deus quem tingiu seus cabelos, assim como tingiu os cabelos de Maomé, seu único e verdadeiro Profeta.
- Graças a Deus - os outros murmuraram automaticamente.
- Traga-o aqui! - ordenou al-Auf.
Yusuf segurou Dorian pelo ombro e quase o arrancou do chão em sua ânsia de obedecer.
- Com gentileza! - al-Auf o avisou. - Trate-o com cuidado!
Yusuf regozijou-se com aquela reprimenda, pois demonstrava que al-Auf não rejeitara inteiramente a validade de seus reclamos para com o menino-escravo. Empurrou Dorian para a frente com mais cuidado e forçou-o a se ajoelhar em frente ao corsário.
- Sou inglês. - Infelizmente, sua voz infantil saiu trêmula e esganiçada, roubando-lhe a força. - Mantenha suas mãos sujas de sangue longe de mim.
- O coração do leão de juba preta em uma cria que ainda mama - al-Auf concordou com aprovação. - Mas o que foi que ele disse? - Ninguém soube responder-lhe, e al-Auf olhou de volta para Dorian. - Fala árabe, pequenino?
Uma resposta irada na mesma língua subiu aos lábios de Dorian, porém ele a conteve e retrucou em inglês:
- Você irá direto para o inferno e apresentará meus cumprimentos ao demônio quando chegar lá! - Era uma das expressões de seu pai, e Dorian sentiu a coragem lhe voltar. Tentou erguer-se dos joelhos, mas Yusuf o empurrou para baixo.
- Ele não fala árabe - disse al-Auf, e havia um toque de desapontamento em sua voz. - Isso era parte da profecia do sagrado sao Taimtaim, possa seu nome ser abençoado para sempre.
- Ele pode aprender - sugeriu Yusuf, com um acento de desespero. - Se o deixares comigo, eu o farei recitar o Alcorão inteiro dentro de um mês.
- Não é a mesma coisa. - Al-Auf meneou a cabeça. - A profecia diz que a criança viria do mar, usando o manto vermelho do Profeta em sua cabeça, e que falaria a língua do Profeta. - Olhou para Dorian em silêncio.
Lentamente, a inacreditável proposição de que nenhum dos árabes mais vira alguém de cabelos vermelhos em suas vidas penetrou dentro de Dorian. Começou a compreender que encaravam o fato como algum sagrado estigma religioso: falavam de seu Profeta, Maomé, ter a mesma cor de cabelos. Relembrou-se vagamente de Alf Wilson também haver mencionado isso durante uma de suas longas preleções sobre as crenças do islã. Obviamente, al-Auf tingira sua própria barba numa imitação do Profeta.
- Talvez seus cabelos sejam apenas habilmente tingidos, afinal - disse al-Auf com voz sombria. - Se assim for... - de súbito, encarou Yusuf com o semblante carregado -, mandarei ambos, você e a criança, para o campo de execução.
Dorian sentiu um terror renovado cortar-lhe a respiração diante da idéia. A lembrança dos miseráveis torturados no palmeiral estava fresca de forma doentia em sua mente.
Yusuf caiu de joelhos mais uma vez, a balbuciar sua inocência, e tentou beijar os pés de al-Auf. O corsário chutou-o para longe e ergueu a voz:
- Tragam já Ben Abram, o médico.
Dentro de minutos, um árabe venerável chegou apressado para postar-se em obediência diante de al-Auf. Tinha a barba e as sobrancelhas prateadas. Sua pele era pálida como a casca do ovo, e seus olhos, brilhantes e inteligentes. Mesmo al-Auf dirigiu-se a ele num tom gentil.
- Examine este rapaz, velho tio. E seu cabelo de cor natural ou foi tingido? Diga-me se é saudável e bem formado.
As mãos do doutor pousaram suaves, porém firmes, na cabeça de Dorian, e o menino submeteu-se a seu toque de mau grado, mantendo o corpo todo rijo e evidenciando claramente a má vontade. Ben Abram esfregou os sedosos cachos vermelhos entre os dedos, deixando escapar pequenos sons sibilantes entre os dentes. Em seguida partiu a cabeleira e examinou atentamente o couro cabeludo de Dorian, virando-lhe a cabeça para que apanhasse a luz das altas janelas gradeadas. Cheirou-a depois, na tentativa de detectar qualquer odor de produtos químicos ou ervas.
Nunca vi nada igual em cinqüenta anos de medicina, nem em homem ou mulher, embora tenha ouvido falar de pessoas ao norte da Pérsia que são coroadas assim - Ben Abram falou, por fim.
- Não é tintura, então. - Al-Auf debruçou-se para a frente em suas almofadas, seu interesse novamente aceso.
- É sua cor natural - Ben Abram confirmou.
- E o resto do corpo?
- Vamos ver. Diga-lhe para tirar a túnica.
- Ele não fala a língua do Profeta. Deve desvesti-lo você mesmo.
Mesmo com Yusuf a pressioná-lo para baixo, não puderam executar a ordem. Dorian lutou com eles como um gato forçado a enfiar a cabeça num balde de água fria. Unhou, chutou, mordeu e, por fim, tiveram de chamar dois guardas da porta para segurá-lo. Finalmente, ficou nu diante deles, um guarda a segurar cada pulso para impedir que Dorian se cobrisse com as palmas em concha.
- Veja a cor e textura de sua pele - Ben Abram admirou-se. - É tão bela como a mais fina seda branca, a mesma da pelagem do corcel do sultão. É sem manchas. Complementa o vermelho de seus cabelos com exatidão e comprova indubitavelmente que o que digo está correto. Sua cor é natural.
Al-Auf concordou.
- E o resto do corpo?
- Segurem-no! - Ben Abram disse aos guardas. A mordida em seu pulso ainda doía. Adiantou a mão com cautela e começou a apalpar a pequena genitália branca de Dorian. - Seus ovos não desceram ainda para dentro de seus sacos, mas estão intactos. - Tomou o pálido pênis infantil entre os dedos. - Como pode ver, ele ainda não é circuncidado, mas... - puxou para trás o prepúcio, e a glande cor de cereja saltou para fora.
Dorian debateu-se nas mãos dos guardas e toda a sua resolução de silêncio submergiu diante da vergonha e da humilhação.
- Seu porco nojento! - gritou em árabe. - Tire suas mãos imundas das minhas partes, Òu eu juro por Deus que o matarei!
Al-Auf encolheu-se em suas almofadas, o choque e o temor religioso a se espalharem por suas feições encovadas.
- Ele fala! É a profecia!
- Alá é misericordioso! Graças a Seu glorioso Nome! - os homens de cada lado dele cantaram em coro. - É a profecia de são Taimtaim.
- Tombadilho! - Tom gritou de seu poleiro no alto do mastro de proa, as mãos em concha em torno da boca, contra o vento. - Vela à vista!
Onde? - Ned Tyler berrou de volta.
Bem a bombordo. A duas léguas de distância.
Hal ouviu os gritos de sua cabina e saltou de pé tão violentamente que gotas de seu tinteiro se espalharam pela carta náutica. Secou-as com pressa e correu para a porta. Chegou ao convés em mangas de camisa.
- Mastro! O que vê? - indagou.
- Um pequeno barco de velas latinas. - A resposta de Tom flutuou até embaixo. - Ah! Eles nos avistaram. Estão dando a volta.
- Só alguém culpado foge. - Daniel Grande chegara ao tombadilho e se postava ao leme.
- Ou alguém prudente! - disse Ned Tyler.
- Aposto um guinéu em troco de um monte de bosta que o barco está vindo da ilha de al-Auf - disse Daniel Grande.
Hal o encarou.
- Vamos perguntar, sr. Tyler. A todo pano e manobre o navio num curso para interceptá-lo, seja quem for.
Ao tentar fazer o retorno a barlavento pelo mar revolto, o pequeno caíque não era páreo para o Seraph. Em meia hora foi alcançado e o grande navio de velas redondas o sobrepujava sem remorso.
- Dê-lhe um tiro, sr. Pescador - ordenou Hal, e Daniel Grande correu para os canhões de proa.
Minutos depois, um único tiro de canhão ribombou. Hal olhava com sua luneta e uns poucos segundos depois do disparo avistou um jato breve de água irromper da superfície a meia amarra de um dos lados do caíque em fuga.
Acho que mesmo o infiel entenderá essa linguagem - resmungou, e de imediato mostrou estar correto quando o caíque se rendeu ao evitável. Arriou sua única vela e rodou ao vento.
Mande um grupo armado de abordagem até lá - Hal ordenou a Daniel Grande, ao avançarem sobre o pequeno barco.
Daniel Grande tomou o escaler com sua equipe. Saltou para o convés do caíque e desapareceu em seu interior. Enquanto isso, seus homens prendiam a nau e rendiam a pequena tripulação sob a ameaça das adagas. Em questão de dez minutos, Daniel Grande estava de volta ao convés e berrou para o Seraph:
- Capitão, eles têm um carregamento de seda, todos os fardos estampados com o selo da Companhia John.
- Butim de pirata, por Deus! - Hal sorriu pela primeira vez em dias e, depois, gritou em resposta:
- Deixe o sr. Wilson e cinco homens para manobrarem o barco. Traga o capitão e toda a tripulação para o Seraph sob guarda.
Daniel Grande levou os confusos e apavorados árabes a bordo, enquanto Alf Wilson colocava o caíque sob a vela e seguia a esteira do Seraph, que reassumira seu curso anterior ao vento.
O capitão árabe precisou de pouca persuasão para falar.
- Sou Abdulla Wazari, de Lamu. Sou um mercador honesto - protestou, em parte desafiante, em parte servil.
- Onde conseguiu sua carga atual, Wazari? - perguntou Hal.
- Paguei por ela com dinheiro honesto e em boa-fé, como Alá é testemunha - disse o capitão, já evasivo.
- Sem dúvida, escapou da sua observação que os fardos em seu poder levam o lacre da Companhia Inglesa das índias Orientais.
- Não sou ladrão. Não roubei nada. Comprei-os no mercado livre.
- Quem os vendeu a você então, ó Wazari, o Honesto Mercador? E onde?
- Um homem chamado Musallim bin-Jangiri os vendeu a mim. Eu não tinha como saber que eram propriedade dessa companhia inglesa.
- Nada, a não ser a evidência de seus próprios olhos - disse Hal, secamente, em inglês. Então, prosseguiu em árabe: - E onde encontrou Jangiri?
- Na ilha de Daar Al Shaitan.
- Onde fica essa ilha? Quando partiu de lá?
- Está a cinqüenta léguas de distância, talvez. - Wazari deu de ombros. - Partimos com o vento da madrugada no dia de ontem.
Aquela estimativa da posição da ilha estava de acordo com as coordenadas do diário de bordo de seu pai. Hal afastou-se e começou a andar lentamente de um lado para outro enquanto ponderava sobre a nova informação. Parecia evidente que al-Auf conduzia um mercado aberto na ilha Flor do Mar, vendendo seu butim. Provavelmente, mercadores árabes de todos os mares ocidentais eram arrebanhados até ele para encher seus porões com mercadorias roubadas a preços de barganha. Voltou para o lado de Wazari.
Viu Jangiri em pessoa ou algum de seus lugares-tenentes?
Eu o vi. Tinha acabado de retornar de uma terrível batalha contra um navio infiel. Sua nau jaz na baía e está terrivelmente danificada... - Wazari calou-se diante da possibilidade que lhe assomou de que poderia estar no convés daquele mesmo navio infiel que descrevera. Sua expressão tornou-se dúbia.
Jangiri lhe disse se havia feito algum prisioneiro infiel naquela batalha? - Hal perguntou. Wazari negou com a cabeça. - Ele não se vangloriou e você não ouviu falar que ele tinha capturado uma criança como escrava? Um menino de onze ou doze verões? - Hal tentou fazer parecer uma pergunta casual, mas viu um súbito luzir de interesse na expressão de Wazari, que o homem mascarou rapidamente como faria um bom mercador.
- Sou um homem velho e minha memória é falha - disse Wazari. - Talvez algum ato de hospitalidade ou gentileza possa refrescar minha memória.
- Que tipo de gentileza? - perguntou Hal.
- Que permita, meu senhor, que eu e meu navio continuemos nosso caminho sem mais delonga. Isso seria uma gentileza que inscreveria seu nome no livro dourado.
- Uma gentileza merece outra - disse Hal. - Seja gentil comigo, Wazari, e talvez eu o seja com você. Ouviu falar de uma criança infiel quando esteve com Jangiri, que é também conhecido como al-Auf?
O árabe coçou a barba, indeciso, e então suspirou.
- Ah, devo dizer que me recordo agora de algo dessa natureza.
- Do que se lembra? - perguntou Hal e, instintivamente, tocou o cabo da adaga no cinto.
Foi um gesto que não passou despercebido ao árabe.
- Lembro-me que dois dias atrás, Jangiri ofereceu-me um escravo, uma criança européia, mas que falava a linguagem do Profeta.
Por que não o comprou dele? - Hal debruçou-se tão perto dele que poderia sentir no hálito de Wazari o odor de sua última refeição de Peixe seco.
Wazari soltou uma risada.
Seu preço era um lakh de rupias. - Repetiu, admirado. - Um lakh de rupias por um menino escravo!'
"- Esse é o resgate de um príncipe, não de um escravo - concordou Hal. - Viu o menino?
- A um lakh? - Wazari pareceu incrédulo. - Ele disse que eu precisava lhe mostrar o ouro antes de poder ver o garoto. Sou um homem pobre, e eu disse isso a Jangiri. Onde eu encontraria um lakh?
- Como ele se atreveu a pedir um tal preço? - insistiu Hal.
- Disse que era a criança da profecia de Taimtaim - respondeu Wazari.
- Não conheço essa profecia.
- O santo profetizou que uma criança com cabelos de cor estranha viria do mar.
- Que cor?
- Vermelha! - exclamou Wazari. - A Coroa Vermelha do Profeta. Jangiri diz que essa sua criança tem cabelos da cor do pôr-do-sol.
Hal sentiu seu coração saltar como se estivesse solto em seu peito, e seu espírito pairou nos ares. Afastou-se para que Wazari não visse isso em sua face. Caminhou até a amurada. Ficou ali por um longo instante e deixou que o vento lhe emaranhasse os negros cabelos em torno de sua face. Então, afastou-os para trás com ambas as mãos e retornou para encarar Wazari.
- Foi bastante gentil, na verdade - disse, e quando se voltou para Ned Tyler, estava sorrindo. - Leve este homem e toda a sua tripulação de volta ao caíque. Deixe que sigam caminho.
Ned espantou-se.
- Deixá-los ir? Peço perdão, capitão, mas... e a seda roubada?
- Que fiquem com ela! - Hal riu alto, e cada homem dentro do alcance do riso voltou-se para ele, estupefato. Não o ouviam rir havia dias. - É recompensa pequena para o que ele me deu.
- O que ele lhe deu, capitão? - perguntou Ned. - Embora não seja da minha conta.
- Esperança! - exclamou Hal. - Ele me deu esperança.
A pinaça contornou a ponta sul de Flor do Mar durante a noite. A lua não nasceria até transcorrer outra hora, e estava muito escuro. Hal conseguia avaliar sua aproximação apenas pela fosforescência do quebra-mar na praia. Tinha baixado a vela, pois ainda que o pano estivesse pintado de negro, queria minimizar as chances de ser avistado da ilha.
Hal mantivera o Seraph além do horizonte durante as horas de dia claro, para não alertar al-Auf. Lançara a pinaça ao mar apenas depois que o sol se pusera, e seu navio esperava por eles agora a duas milhas da costa. Hal combinara uma série de sinais de foguete com Ned Tyler. Se ocorressem problemas, o Seraph avançaria para recolhê-los. Até então, não tinham encontrado nenhuma dificuldade, e a ponta sul da ilha parecia deserta, embora, ao passarem, pudessem ver as luzes bruxuleantes de lanternas e fogueiras na extremidade norte.
Se os desenhos de seu pai fossem precisos, Hal esperava encontrar uma enseada protegida enfiada atrás da cauda sul da ilha, e procurava por ela agora. Havia vinte homens na pinaça, mas ele pretendia levar consigo apenas o grupo menor a terra. Não tinha planos de um ataque ao forte ou às embarcações ancoradas na baía: aquela era uma incursão de exploração, para avaliar a força dos corsários muçulmanos e para tentar localizar onde Dorian estava sendo mantido. Hal esperava se esgueirar em terra e sair de novo sem alarmar a guarnição ou dar a eles quaisquer indícios de sua presença.
Ouviu o esparrinhar da sondareza e depois, momentos mais tarde, o murmúrio que vinha da proa:
- Pela marca quatro.
Daniel Grande fazia as sondagens ele mesmo, não confiando em nmguém para uma tarefa de importância tão vital. O fundo era coalhado de conchas. Uma grande vaga colheu o barco por baixo e ergueu-o no ar, e Hal desejou ter mais luz para guiá-los. O quebra-mar estava Próximo, adiante.
Nota de Rodapé: Antiga embarcação, a vela ou a remo, utilizada em pesca e transporte.
Fim da Nota.
- Em prontidão agora, camaradas - Hal disse baixinho aos rema dores, e depois, ao sentir a popa começar a se erguer com a próxima vaga: - Força!
A pinaça pegou a onda e avançou. Gentilmente, Hal a obrigou a ficar em seu embalo com pequenos ajustes no leme. A crista espumava em torno deles, mas o bote deslizou pelas águas cremosas até que, de repente, raspou na areia.
Os três saltaram com água pela cintura e, segurando alto suas pistolas, vadearam até a praia. Atrás deles, Daniel Grande levou a pinaça para águas mais profundas, além da linha do quebra-mar, para lhes aguardar o retorno.
Pararam na linha de marca da maré alta.
- Aboli, deixe os foguetes aqui - disse Hal, e Aboli colocou no chão o pesado pacote enrolado em panos. - Esperamos não precisar deles - resmungou. - Agora, verifiquem seus gatilhos.
Ouviram-se ruídos metálicos e estalidos quando Tom e Aboli armaram suas pistolas. A longa caminhada pela praia e pela linha da arrebentação daria à água salgada uma ampla possibilidade de degradar o explosivo. Não haviam se armado com os mosquetes de cano longo, que eram pesados e desajeitados de carregar e de pouca vantagem à noite.
- Está tudo bem, Tom? - Hal baixou a voz mais ainda. Sentia-se agoniado pela decisão de levar consigo o rapaz a terra.
- Tudo bem - Tom murmurou de volta.
Hal desejou não ter feito aquele juramento em conjunto com Tom. Seu filho o usava contra ele sempre que Hal tentava protegê-lo do perigo. E ele não fora capaz de negar a Tom um lugar naquele grupo avançado, mas se consolava agora com o fato de que a visão noturna de Tom ultrapassava de longe a dele ou mesmo a de Aboli. Poderiam ser gratos àqueles olhos jovens e aguçados antes que a noite acabasse.
- Assuma a liderança - ordenou a Tom, e avançaram em fila indiana, com ele em segundo lugar e Aboli atrás. O terreno era aberto, desprovido de qualquer moita ou vegetação marinha, mas tinham de seguir com cuidado nos calcanhares de Tom. Os ninhos das aves eram tão próximos uns dos outros na areia de coral que mal havia espaço para os pés entre eles, e os dorsos das aves eram tão negros que as tornavam quase invisíveis. Puseram-se a cacarejar e a guinchar com irritação quando os homens esbarraram nelas, mas seu barulho foi absorvido pelo sussurro surdo que permeava a vasta colônia. Ocasionalmente, uma bicava um tornozelo desnudo, arrancando sangue, mas não houve um alvoroço geral e, por fim, o grupo chegou ao palmeiral no extremo da colônia.
Tom os conduzia em passo rápido, mantendo-se na sombra do arvoredo, porém logo acima das areias brancas de coral da praia. Depois de meia hora, fizeram uma nova parada e, quando Hal postou-se a seu lado, Tom apontou adiante:
Lá está a ponta da baía - murmurou. - Posso avistar os navios ancorados, embora não consiga dizer com certeza qual é o Minotauro.
Para os olhos de Hal, a escuridão à frente era inacreditável. Entretanto, Wazari lhe assegurara que o Minotauro se encontrava na baía quatro dias antes e, com o dano que o Seraph infligira a ele, parecia improvável que pudesse ter se feito ao mar desde então.
- A lua nascerá muito em breve - murmurou Hal. - Poderemos ter certeza então. Mas, nesse ínterim, leve-nos para mais perto.
Avançaram pelo denso matagal abaixo das árvores.. O chão era recoberto de frondes de palmas caídas, secas e barulhentas sob os pés. Tinham de se fiar em Tom para guiá-los em meio àquele perigo. Hal torceu o nariz ao sentir a fumaça das fogueiras e outros odores menos agradáveis do acampamento dos corsários, de cabeças e vísceras de peixe podre, de lixo e montes de excrementos descobertos. Então, parou de novo ao perceber o cheiro inconfundível de corpos humanos em decomposição. Estivera em muitos campos de batalha para não reconhecê-lo. Imediatamente pensou em Dorian, e fez um esforço para expulsar da mente a idéia da vulnerabilidade de seu filho, e em vez disso concentrou-se na tarefa do momento. Prosseguiram devagar.
Um faiscar de luzes apontou através das árvores e, quando pararam de novo, puderam ouvir o murmúrio abafado de vozes. Alguém começou a cantar uma prece islâmica, e outro cortava lenha. Mesclados a esses sons, ouviam-se o bater e o suave crepitar de enxárcias e vergas, o baque de uma corrente de âncora dos navios atracados na baía. Chegaram à beira do arvoredo e, diante deles, divisaram a curva escura da baía.
- Lá está o Minotauro - disse Tom, baixinho. - É ele, sem dúvida.
Para Hal, era meramente um borrão mais escuro na escuridão.
A lua vai aparecer logo - disse, e se acomodaram para esperar.
Por fim, envolta em suave radiância prateada, a lua surgiu, e os contornos das embarcações na baía materializaram-se diante deles até que puderam avistar as vergas nuas do Minotauro contra as estrelas. Hal percebeu que havia outras três naus de velas redondas na ancoragem, o que coincidia com o que Wazari lhe descrevera. Todos aqueles navios tinham sido capturados por al-Auf.
- Tom, você fica aqui - Hal murmurou.
- Pai... - protestou o rapaz.
- Sem discussões! - Hal retrucou com firmeza. - Cumpriu muito bem a sua tarefa, mas ficará aqui, longe do perigo, até que retornemos.
- Mas, papai... - Tom sentia-se ultrajado.
Hal o ignorou.
- Se alguma coisa acontecer... se nos separarmos, você deve voltar à praia onde descemos e chamar a pinaça.
- O que vai fazer? - Tom perguntou.
- Aboli e eu vamos chegar o mais perto possível para examinar o ancoradouro na baía. Não há mais nada que você possa fazer para ajudar.
- Eu quero... - Tom começou de novo, porém Hal o interrompeu.
- Basta! Nós nos encontraremos na volta aqui! Venha, Aboli.
Os dois levantaram-se em silêncio e, em segundos, tinham desaparecido, deixando Tom sozinho na beira da floresta. Ele não teve medo, estava muito zangado para isso. Fora ludibriado, tratado como uma criança quando já provara muitas vezes que não era.
Estou sob juramento, remoeu-se, fervendo de raiva. Não posso sentar-me aqui quando existe esta mínima chance de poder ajudar Dorry. Ainda assim, precisou de toda a coragem para desafiar seu pai, para desobedecer deliberadamente às suas ordens incisivas. Levantou-se hesitante. - É meu dever. Revestiu-se de determinação. Não iria atrás de seu pai e Aboli. Ao contrário, seguiria para longe da praia. Seu pai lhe mostrara o mapa da ilha e os desenhos do velho forte que seu avô fizera cinqüenta anos antes, de maneira que tinha uma boa idéia do terreno adiante e para onde iria.
A lua estava sobre a copa das árvores a essa hora, de modo que Tom podia andar depressa. Viu o luar refletido nas pálidas ameias do forte adiante e, quando seguiu por aquele caminho, deparou com uma trilha que enveredava naquela direção. O fedor de carne humana em decomposição tornava-se mais forte à medida que ele avançava, até que, por fim, chegou a uma clareira na floresta e parou, alarmado.
Um campo de corpos putrefatos surgiu diante de seus olhos. Cadáveres nus pendiam suspensos numa série de armações rústicas, fantasmagóricos e aterrorizantes ao luar. Tom sentiu um calafrio de pavor supersticioso e não conseguiu reunir forças para seguir em frente por entre os mortos. Recuou e contornou a clareira, mantendo-se entre as árvores. Foi sua sorte, pois, de repente, avistou uma fila de figuras envoltas em túnica que seguiam a trilha pela floresta, vindas do forte.
Tivesse ele permanecido no caminho, fatalmente haveria de deparar com aqueles homens de frente.
Depois que o grupo passou, Tom continuou a avançar sob a cobertura do palmeiral e, em questão de minutos, estava agachado debaixo das grossas paredes do forte, banhado pelo luar. Já então sua raiva havia se dissipado e Tom se sentiu sozinho e desprotegido. Sabia que o que deveria fazer agora era admitir a própria estupidez e esgueirar-se de volta até o ponto de encontro, antes que seu pai descobrisse que ele havia sumido. E isso não demoraria a acontecer. Podia racionalizar as conseqüências de sua desobediência. Com cautela, começou a circundar o forte até que chegou quase aos portões principais, que estavam abertos, mas onde guardas se amontoavam sob o arco. Pareciam adormecidos, porém ele não poderia se arriscar a chegar mais perto. Acocorou-se nas sombras por uns poucos minutos a mais. Uma tocha queimava num suporte de um lado da abertura da passagem. Sob sua luz, ele podia ver as madeiras maciças e robustas da porta.
Recuou e começou a retraçar seus passos em torno do perímetro das muralhas. Do lado oeste, a luz incidia em cheio sobre os pálidos blocos de coral, e Tom pôde ver os pontos onde as paredes estavam em ruínas: alguns dos revestimentos externos haviam desmoronado e o mato tomava conta. As figueiras tinham fincado fundo suas raízes nas juntas entre os blocos, e os tentáculos de cipó silvestre subiam pelas muralhas, parecendo monstruosos pítons negros ao luar.
Uma idéia despropositada lhe veio à cabeça: poderia escalar o forte usando um cipó como escada, para procurar por Dorry. Considerava a possibilidade, quando ouviu alguém tossir. Escondeu-se por entre o mato, tentando descobrir de onde viera o som. Então, divisou a silhueta de um homem de turbante num canto do balestreiro. E se deu conta de que havia guardas postados a intervalos ao longo do topo das muralhas. Seu coração deu um salto quando percebeu quanto estivera perto de sucumbir ao desastre. Moveu-se sub-repticiamente pelo lado de fora do forte e contornou o canto na extremidade noroeste.
Notou que, ao longo daquele setor, havia seteiras abertas para o lado externo das muralhas, no alto, estreitas demais para alguém, a não ser uma criança, se esgueirar por elas. A maioria dessas fendas estava as escuras, porém por trás de uma ou duas luzia o brilho amarelado de uma lamparina a óleo. Havia celas ou cômodos atrás daquelas janelas.
Agachado aos pés da muralha, ele fitou as aberturas, pensativo.
Por trás de qualquer uma daquelas janelas, Dorian poderia estar em sua cela de escravo. Tom imaginou o terror e a solidão de seu irmãozinho e sentiu-se compartilhar aquelas emoções com a plenitude do amor que devotava ao menino.
De súbito, quase inconscientemente, franziu os lábios e assobiou as estrofes de abertura de Espanholas:
Adeus, adieu a vós, belas espanholas,
Adeus, adieu a vós, damas da Espanha.
Pois recebemos ordens de partir para a velha Inglaterra...
Depois, ficou quieto e esperou por alguma resposta. Não houve nenhuma. Passados alguns instantes, levantou-se e moveu-se silenciosamente um pouco mais ao longo da muralha. De novo assobiou a canção e aguardou.
Então, captou um movimento. Atrás de uma das altas e estreitas janelas, alguém movera a lamparina. Viu o ângulo das sombras se alterar. O coração de Tom disparou contra suas costelas e ele chegou mais perto. Ia assobiar de novo, quando a silhueta escura de uma cabeça interpôs-se entre a lamparina e a janela. Alguém espiava pelo buraco, mas ele não lhe conseguia ver a face. Foi naquele momento que uma voz firme elevou-se docemente dentro da noite:
Aos brados, remaremos por todo o bravio oceano,
Aos brados, remaremos por todos os mares bravios...
- Dorry!
Tom quis gritar alto, mas se conteve antes que o nome do irmão lhe chegasse aos lábios. Aproximou-se mais do pé da muralha, abandonando a densa cobertura da floresta. Viu que uma corda de cipó retorcido subia pelos blocos de coral e passava à distância de um braço da seteira iluminada onde à sombra da cabeça de Dorian se mostrara. Segurou o ramo e testou-lhe a rigidez, pendurando-se com todo o seu peso. Suas mãos tremiam de excitação e ansiedade: a liana era firme e solidamente enraizada. Tom tirou o cinto da espada e depositou-o no chão, com sua pistola, ao pé da trepadeira.
Então, pendurou-se no cipó. Seu corpo e cada músculo nele tinham se fortalecido nos cordames do navio, e Tom subiu com a agilidade de um macaco. Chegou ao nível do buraco e inclinou-se em direção à abertura.
- Dorry? - murmurou.
A resposta foi instantânea.
Tom! Oh, eu sabia que viria. Sabia que manteria sua promessa.
- Psiu, Dorry! Não fale alto. Pode passar pela janela?
Não, estou acorrentado à parede.
Não chore, Dorry. Vão escutar.
Não estou chorando. - Os soluços de Dorian soaram dolorosos, embora ele cobrisse a boca com ambas as mãos para abafá-los.
Acha que pode subir até a janela? - perguntou Tom. - Eu entrarei e o libertarei.
Não sei, Tom. É muito pequena e você é muito grande.
- Não há ninguém mais que possa fazer isso. Vou tentar.
Tom avançou, mão após mão, pendurado no galho do cipó que passava mais próximo da seteira. Sentia que a trepadeira cedia a seu peso, mas continuou a se mover com cuidado até que chegou ao fim. Estava a cerca de um metro do parapeito da janela e a uns seis metros do chão. Soltou uma das mãos e, com a outra, tateou a parede à frente.
- Tom, cuidado!
Tom achou uma fenda entre as pedras que lhe deu um sólido apoio. Segurou-se e tirou a outra mão da trepadeira. Balançou-se no ar pendurado pela mão direita e, com a esquerda, procurou desesperadamente por outro apoio. Seus pés raspavam o coral abaixo, mas não encontraram suporte.
- Aqui! - Dorian estendeu as duas mãos pela seteira. - Dê-me sua mão.
Agradecido, Tom fechou a mão nas dele à maneira do aperto sobreposto dos marujos. Seu peso puxou o garoto menor para a frente e comprimiu os ombros do menino contra a abertura. Tom percebeu de imediato que, se a fenda era muito estreita para a compleição de Dorian, então os seus ombros mais largos, musculosos agora dos exercícios como gajeiro, nunca passariam pela abertura. Estava num beco sem saída. Não havia entrada para ele através da janela, e o cipó se encontrava a um metro de distância, longe demais de sua mão esquerda.
- Não vai dar, Dorry. - Suas faces estavam separadas apenas por centímetros. - Em breve voltaremos para buscá-lo.
Por favor, não me deixe aqui, Tom. - A voz de Dorian elevou-se numa entonação histérica.
- O Seraph está esperando ao largo. Papai, Danny Grande, Aboli e eu estamos todos aqui. Voltaremos para buscá-lo. Logo.
- Tom!
Dorry, não faça tanto barulho. Juro que voltarei para buscá-lo.
Tom tentava alcançar a trepadeira, mas Dorian agarrava-se a seu outro pulso como um homem a se afogar.
- Tom! Não me deixe sozinho, Tom!
- Solte minha mão, Dorry! Vai-me fazer cair!
Um grito ecoou nas ameias acima deles. Uma voz exclamou, em árabe:
- Quem é? Quem está aí embaixo?
- Os guardas, Dorry! Solte-me!
Tom ergueu os olhos e viu duas cabeças delineadas contra o céu estrelado a espiá-lo das ameias. Ele se esticou pendurado na parede uma das mãos num aperto precário no cipó, a outra presa nas de seu irmão. Viu um dos homens passar um arcabuz de cano longo sobre o topo da muralha e mirá-lo diretamente em sua face.
- Solte-me, Dorry!
Tom apoiou os pés contra os blocos de coral e arrojou-se de costas no ar no preciso instante em que o arcabuz rugiu e uma brilhante língua de fogo e as fagulhas de pólvora explodiram pelo cano.
Ouviu a bala zunir ao passar por sua cabeça, mas caía em queda livre, num mergulho de seis metros parede abaixo, com as tripas lhe subindo por entre as costelas, até que se esborrachou no chão com um baque forte. O ar escapou de seus pulmões por um instante, e ele ficou largado, tentando recuperar o fôlego.
Outro tiro do topo da muralha o reanimou. Não ouviu a bala dessa vez, pois se ergueu de pé, ainda atordoado e ofegante por ar. Tentou correr de volta para o bosque, mas quando se apoiou sobre o pé esquerdo, a dor lhe subiu pelo tornozelo até a virilha como a estocada de um arpão gigantesco.
Forçou-se a continuar correndo, apesar da dor. Achou sua espada e a pistola e apanhou-as. Aos saltos e pulos para livrar o peso do tornozelo machucado, correu para a borda do arvoredo. Às suas costas, podia ouvir os gritos desesperados de Dorian, cada vez mais abafados mas de cortarem o coração de tão desolados e aflitos, gritos em que apenas o nome de Tom soava coerente. Antes que ele tivesse coberto uma centena de metros, os tiros e os berros de alerta já haviam alvoroçado toda a guarnição dos corsários.
Tom parou e recostou-se contra o tronco de uma árvore. Enquanto afivelava seu cinto da espada, tentou reorientar-se e decidir o que fazer. Sabia que não chegaria sem ajuda ao ponto sul, onde o bote os aguardava. Só tinha a esperar que seu pai e Aboli houvessem sido alertados pelo tumulto e acorressem para localizá-lo. Na escuridão, isso parecia uma remota esperança.
Não teve muito tempo para chegar a uma decisão, pois, de repente, o bosque pareceu ganhar vida. Homens gritavam uns com os outros e, a cada poucos minutos, havia uma rajada de tiros, quando disparavam nas sombras.
Quem é? O que está acontecendo? - Muitos chegavam da praia, cortando o caminho de Tom para o ponto de encontro.
É um infiel. Eu vi a sua cara.
- Onde está agora?
- Foi na direção da baía.
De onde veio? Não há nenhum navio infiel aqui.
As vozes se aproximavam e Tom podia ouvir os homens a correrem pelo matagal, o som de folhas pisadas e galhos quebrados. Desencostou-se do tronco de árvore, apoiou o peso no tornozelo machucado outra vez e avançou manquitolando. Não percorrera cinqüenta metros quando ouviu um grito atrás de si:
- Lá está ele! Não o deixem fugir!
Outro tiro explodiu, e Tom ouviu a bala estourar no tronco de uma das palmeiras a seu lado. Apoiou por completo o pé no chão e se obrigou a correr.
Suava em bicas com o suor da agonia, que lhe porejava pela face e lhe entrava pelos olhos, quase o cegando. Cada passo era um tormento que fazia sua vista faiscar em estrelas brilhantes. Continuou a correr. Seus perseguidores ganhavam terreno; olhou para trás por sobre o ombro, e viu suas túnicas brancas a passarem esvoaçantes por entre as árvores, em seu encalço.
Desviou-se de uma moita de arbustos muito espessa e, ao sair do outro lado, com um susto, sentiu-se de repente agarrado pelos ombros por detrás e empurrado para o chão. Debateu-se violentamente nas mãos de seu captor, mas o aperto em seu punho era como um aro de ferro. O peso do homem em suas costas afundou-o na terra arenosa e macia.
Tom! - A voz de seu pai soou em seu ouvido. - Não se debata. Não emita um som. - Sentiu uma imensa onda de alívio. - Está ferido? - Hal perguntou, aflito. - Por que está mancando?
Meu tornozelo: - Tom exclamou. - Eu caí. Acho que está quebrado.
Os sons da perseguição estavam mais próximos agora.
- Você o viu? - um árabe berrou. - Para que lado ele foi?
- Foi naquela direção - alguém respondeu.
Estavam fechando o cerco.
Então, a voz de Aboli resmungou:
- Vou atraí-los para longe para que possam ter a chance de voltar ao bote. - Levantou-se de onde se encontrava, ao lado de Hal e correu como um raio pela noite. Quando estava a uns vinte metros de distância, berrou, em árabe: - Lá vai ele! Está indo em direção ao ponto extremo da ilha! Peguem-no! - Disparou a pistola e meteu-se pela floresta.
Imediatamente, houve uma balbúrdia de gritos e tiros.
- Lá vai ele!
- Por ali! Peguem-no!
Hal empurrou a face de Tom para baixo, contra as folhas mortas.
- Fique quieto! Não se mexa!
Passos ecoaram perto da cabeça de Tom, mas ele não tentou olhar para cima. Ouviu os sons da perseguição se afastarem e avançarem pelas moitas em direção ao lado leste da ilha, e os berros de Aboli cada vez mais fracos.
Gradualmente, o silêncio retornou e Hal soltou seu aperto da nuca de Tom.
- Você poderia ter feito com que todos fôssemos mortos. Sua tremenda estupidez colocou Aboli em terrível perigo.
- Sinto muito, mas eu tinha de fazer isso - Tom desculpou-se e então, de um só fôlego, emendou: - Achei Dorry.
As mãos de Hal se congelaram e ele olhou para Tom, sua face pálida ao luar que se filtrava por entre as árvores.
- Você o achou? Onde?
- No forte. Falei com ele pela janela.
- Meu Deus! - Hal murmurou, sua raiva a dissipar-se. - Como ele está?
- Muito assustado,mas não o machucaram. Eles o prenderam com correntes numa das celas do lado noroeste.
Hal considerou a informação. Então, soltou um suspiro.
- Não há nada que possamos fazer por ele agora. Temos de voltar ao navio. - Apertou o ombro de Tom com força. - Fez bem, Tom, mas nunca mais me desobedeça de novo. Seu tornozelo está inchando muito depressa e precisamos voltar à praia. - Levantou-se e ajudou Tom a ficar de pé. - Apóie-se em mim. Vamos.
Tomou-lhes quase o restante da noite atravessar a floresta até o ponto sul da ilha. Mesmo com a dor agonienta em seu tornozelo, Tom se corroía de aflição por Aboli. Paravam mais ou menos a cada meia hora para tentar ouvi-lo ou ao som da perseguição, mas não escutaram nada.
A lua declinava em direção ao continente africano quando, por fim, chegaram ao campo aberto da colônia de aves marinhas. Já então, o tornozelo de Tom estava inchado como um pernil de porco, e Hal tinha de carregá-lo ou arrastá-lo para seguirem avante.
Os ovos estalavam e pululavam esmagados sob seus pés, e as aves voavam ao luar numa nuvem negra sobre os dois, a grasnarem e a circularem em torno deles. Mergulhavam para bicá-los nas cabeças, mas tanto Tom como Hal usavam barretes.
- Cubra seus olhos - Hal resmungou, ao tentarem espantar as criaturas com as mãos. - Seus bicos são como arpões.
- Os homens de al-Auf vão ouvir esse alarido a milhas daqui.
Finalmente, mesmo com a cacofonia das aves, ouviram as ondas quebrando na praia da enseada, e avançaram pelos últimos poucos metros. Hal viu o monte escuro sobre a areia onde deixara o pacote de foguetes.
- Graças ao Senhor! - exclamou, ofegante, pois estavam ambos quase no fim de suas forças. Então gritou, alarmado:
- Olhe! É uma emboscada!
Uma enorme forma negra surgiu da escuridão diante deles. Hal empurrou Tom para a areia e sacou a espada.
- O que os reteve por tanto tempo, Gundwane? Estará claro em uma hora - Aboli falou das sombras.
- Aboli? Deus o ama!
- O bote está à espera logo além da linha do quebra-mar - Aboli lhe disse, e ergueu Tom nos braços como se fosse um bebê. - Não dispare um foguete. Alertará o inimigo. Vamos, é hora de deixar este lugar.
Assobiou uma vez, alto e agudo, e a resposta veio do mar escuro. Então, Tom ouviu o bater de remos cadenciados quando Daniel Grande trouxe a pinaça para apanhá-los.
No quarto minguante, o Seraph seguiu na direção da terra. Duas noites depois do desembarque e da inopinada fuga de Tom e Hal da ilha.
Silenciosamente, a nau singrou a última milha e então, sob o comando de Hal ao leme, voltou-se para a brisa leve e colocou a proa ao vento e ao mar. Hal caminhou até a amurada do convés de manobra e apurou os ouvidos. O quebrar das ondas nas praias externas da ilha Flor do Mar era fraco, porém inconfundível.
- Estamos a cerca de uma milha ao largo - Ned Tyler confirmou a própria estimativa de Hal.
- Lance os botes - ordenou Hal. - Deixo-o como responsável pelo navio, sr. Tyler. Mantenha postos aqui e aguarde o nosso sinal.
- Sim, capitão. E boa sorte, senhor.
Os botes estavam enfileirados no convés aberto. Um depois do outro, foram passados pelo costado e baixados até a superfície da água ao lado. Então, os homens armados desceram para dentro deles e, rápida e silenciosamente, tomaram seus lugares nos bancos de remo.
Quando Hal chegou à amurada perto da escada, Tom esperava por ele. Apoiava-se sobre a muleta que um dos carpinteiros lhe fizera.
- Gostaria de ir com o senhor, papai! - exclamou. - Cortaria fora esta minha perna com alegria para fazer isso. - Bateu com a muleta no convés, de frustração. O dr. Reynolds havia determinado que, embora o osso não estivesse fraturado, Tom não poderia forçar o tornozelo lesionado por muitas semanas.
- Teríamos uso para o seu forte braço direito, Tom - Hal lhe disse. Perdoara a desobediência do filho, que os colocara a todos em tão grande perigo.
- Vai tentar localizar Dorry?
- Você sabe que vamos apenas atacar as embarcações na baía. Depois da outra noite, al-Auf deve saber que estamos ao largo, e seus homens estarão em alerta. Sem a vantagem da surpresa, não poderemos jamais esperar tomar de assalto o forte com tão poucos homens.
- Estou louco de preocupação com o que aqueles porcos possam estar fazendo ao pobre Dorry.
- Nós também, mas assim que tenhamos capturado ou queimado os navios de al-Auf, ele estará preso na ilha. Não poderá escapar com Dorian. Depois, quando o capitão Anderson chegar com o Yeoman, teremos força suficiente para atacar o forte. Até então, precisamos nos conter.
Peço a Deus que o Yeoman chegue logo.
Sim, rapaz, reze! Isso nunca fez mal a ninguém. Mas, nesse ínterim, reforçaremos nossas preces com um pouco de pólvora e aço - disse Hal, muito sério, e desceu para a pinaça à espera.
Remaram para longe do Seraph, com Hal no comando da flotilha na primeira pinaça. Daniel Grande comandava a segunda, e Alf Wilson assumira o encargo de dois escaleres. Atrás, o Seraph deixou-se quedar ao vento sob velas encurtadas, preparado para esperar por longas horas, até que os homens retornassem.
Os remos dos pequenos botes estavam amortecidos, e as equipes de assalto, mergulhadas em profundo silêncio, ao seguirem em direção à ilha. Hal navegava pela orientação da bússola, parando por algumas vezes para escutar o som do quebra-mar. A cada vez era mais alto, e logo o homem na proa apontou a vante. Hal saltou para os assentos de popa e avistou o ponto brilhante das fogueiras que marcava o acampamento abaixo das muralhas do forte. Percebeu de imediato que a corrente os puxara em direção ao sul, e alterou o curso para seguir pela passagem através do recife de coral, para dentro da baía.
Hal quase podia sentir a tensão nervosa da tripulação da pinaça. Para todo marujo guerreiro, havia uma peculiar fascinação na supressão de um navio inimigo de uma ancoragem protegida. Era uma especialidade inglesa "fazer a barba do leão", uma inovação de homens como Drake, Frobisher e Hawkins.
Hal tinha apenas homens o bastante para se apossar de dois dos navios que vira na baía. Ele e Aboli haviam estudado todos com cuidado da praia e, embora estivesse escuro, a lua lhes dera luz suficiente para fazerem a escolha. O primeiro, é claro, fora o Minotauro. Ainda que bastante negligenciada nas mãos dos corsários, e severamente danificada no curto encontro com o Seraph, era ainda uma nau de grande valor.
Notas de Rodapé: Francis Drake: almirante.: inglês (1540-1596). Teve notável participação na derrota da Invencível Armada" espanhola e foi um dos favoritos da rainha Isabel I.
2ª Nota: Martin Frobisher: navegador inglês (1535-194). Explorou a Groenlândia, o Labrador, a Terra de Baffin (Canadá).
3ª Nota: John Hawkins: almirante inglês (1532-1595). Lutou contra a armada espanhola e foi o primeiro inglês a praticar o tráfico de negros africanos.
Fim das Notas.
Hal estimava que valeria 10 mil libras quando a rebocasse para Londres. Não tinha como saber quanto de sua carga permanecia a bordo, mas poderia ser considerável.
O outro navio que escolhera era um holandês que, evidentemente fora pirateado da VOC. Era uma nau de fundo largo, construída ao estilo de Roterdã, que valia tanto quanto o Minotauro. Se conseguisse se apossar de ambas, isso significaria 20 mil libras pela noite de trabalho.
Inclinou-se para a frente em seu assento no leme e murmurou aos homens mais próximos:
- Há vinte libras por homem esperando para ser pegas na baía. Passe adiante.
Todos riram ferozmente e se viraram nos assentos para passar o recado pela extensão da pinaça.
Nada como o cheiro de ouro para despertar a sede de sangue num marujo inglês, pensou Hal, e sorriu consigo mesmo no escuro. Era uma grande pena não poder tomar as outras embarcações. Duas outras naus e uma dúzia de caíques de formatos e tamanhos variados poderiam ser acrescidos ao pacote, mas ele teria de se contentar com o perfume da fumaça de suas piras funerárias.
Ao se aproximarem da passagem através do recife, os outros botes se colocaram numa única coluna atrás de Hal, para segui-lo. Era ali onde a expedição toda poderia terminar antes de começar, num desastre sangrento. Hal tinha apenas o mapa de seu pai e seu próprio instinto de homem do mar para levá-los pela travessia.
Levantou-se tão alto quanto pôde no assento e olhou adiante. Observava o ronco das ondas a se encapelarem nas pontas aguçadas e assassinas do recife, e procurou divisar o ponto escuro em direção ao norte, onde as águas mais profundas permaneciam calmas.
- Jogue a sondareza - murmurou, e ouviu o chapinhar quando a chumbada foi lançada da proa.
Segundos mais tarde, veio a resposta em voz baixa do oficial:
- Sem fundo com esta linha.
Estavam ainda além do desnível. De súbito, veio um grito assustado da proa, e Hal olhou adiante. Avistou um grande caíque descendo o canal diretamente em direção a eles, sua vela triangular banhada pelo luar, e sua esteira, um longo traço lustroso através da passagem. Estava em curso de colisão com a pinaça.
Hal sentiu uma tentação momentânea. Era uma nau de grande porte, e certamente recheada de tesouros que comerciara com al-Auf. Seguia confiante e vulnerável. Seria questão de minutos abordá-la e render sua tripulação. Cinco de seus homens poderiam manobrá-la para o local onde o Seraph esperava.
Hal hesitou. Se pudessem apossar-se dela sem problemas, haveria ouro no bolso de cada pessoa no Seraph, mas, se encontrassem resistência e houvesse luta em seu convés, os sons do conflito seriam levados até os corsários na praia.
Tomá-la ou deixá-la ir! Hal tinha apenas segundos para se decidir. Olhou para além do caíque que se aproximava ao coração da baía, e viu os mastros nus do Minotauro a se destacarem altos e elegantes contra as estrelas. Então, olhou de novo para o caíque que assomava cada vez mais perto. Que se vá. Tomou a decisão fatal e, em voz alta, murmurou para a tripulação:
- Suspender avanço.
Os remadores contiveram seus esforços, e as pás dos longos remos apontaram sobre a superfície, até que o barco quedou lento nas águas escuras. Atrás dele, os outros botes seguiram-lhe o exemplo.
O grande caíque fez seu contorno final através da passagem. Uma sentinela os avistou do tombadilho e gritou, em árabe:
- Que botes são esses?
- Barcos de pescadores com a safra de peixes da noite - Hal modulou sua voz para que não fosse ouvida da praia. - E o seu barco?
- O navio do príncipe Abd Muhammad al-Malik.
- Vá com Alá! - Hal exclamou, quando a embarcação já se afastava para oeste e desaparecia nos planos escuros do oceano. - Avante! - ordenou, e observou os longos remos girarem para a frente e afundarem, puxarem e subirem em uníssono, pingando água de suas pás. Orientou a proa para o ponto exato em que o grande caíque passara.
- Pela marca dez.
O chumbo havia tocado o fundo. O mapa de sir Francis mostrava ser precioso outra vez, fato confirmado por Hal pela passagem do caíque. Remaram pela abertura. De súbito, as águas quebravam de cada lado deles.
- Pela marca cinco.
Entravam pela garganta.
Lance a bóia número um! - ordenou Hal.
O marujo jogou a chumbada pela borda, e a linha amarrada ao pequeno flutuador pintado de branco afwndou. Hal olhou ao redor e viu o flutuador boiando em posição. Aquilo lhe daria a indicação necessária quando trouxesse para fora da baía o Minotauro capturado. Virou-se e examinou as muralhas do forte, que se mostravam pálidas ao luar, alinhando-se acima da borda dos recifes.
- Agora! - resmungou, e fez a primeira volta em cotovelo. Os outros botes o seguiram.
- Pela marca quatro e quatro e meio.
- Perto demais do recife externo. - Hal alterou o curso ligeiramente para se manter no centro do canal.
De repente, houve uma entonação de urgência na voz do homem com a sondareza.
- Pela marca dois!
Com aquele alerta, Hal avistou o vulto do recife de coral, negro e ameaçador como algum monstro, precisamente à frente. Girou o leme, levando o barco a fazer uma volta em tempo apenas de não ultrapassarem o canal.
- Pela marca sete! - Havia alívio na voz do marujo com a sonda.
Tinham passado pelas mandíbulas do recife e entravam no porto aberto, onde os navios inimigos repousavam confiantes.
- Lance a bóia número dois! - Hal murmurou, e a deixaram boiando no meio da passagem para marcar seu caminho para fora.
Olhou por sobre o ombro. Os outros botes tinham passado e se afastavam em formação de leque.
Ele dera a cada um deles os respectivos alvos. Hal tomaria o Minotauro. Na segunda pinaça, Daniel Grande se apossaria do barco holandês, e os demais atacariam e queimariam todos as outras naus na ancoragem. Hal seguiu para o grande navio ancorado em águas mais profundas, em sentido oposto ao forte. Vamos ver quanto está aceso o olho da sentinela da âncora, pensou, ao esperar o primeiro alarme. Porém o Minotauro continuava imponente, negro e silencioso, quando chegaram sob a popa e lançaram os arpéus para prendê-lo.
Aboli subiu primeiro e pulou a amurada. Com o machado de cabeça dupla numa das mãos, aterrissou no convés, seus pés nus quase sem fazerem ruído, e correu em frente, enquanto um grupo de assalto o seguia desde a pinaça. A meio caminho do tombadilho, um vigia saltou de pé do lugar onde estivera adormecido, debaixo do talabardão. Estava cambaleante e, obviamente, apenas meio acordado.
- Quem é você? - Sua voz soava aguda de susto. - Não o conheço! - Buscou o mosquete que deixara apoiado contra o pranchão, a seu lado.
- Vá com Deus! - exclamou Aboli e girou o machado num largo e faiscante arco.
Acertou o homem em cheio do lado do pescoço, seccionando-o por completa A cabeça tombou para a frente e rolou por sobre o peito, enquanto o tronco permanecia ereto antes de desabar sobre o convés. O ar escapou dos pulmões, num sibilante jato de sangue espumoso, pela traquéia aberta.
Aboli saltou sobre o cadáver e, com uma dúzia de longas passadas, chegou ao cabo da âncora que se esticava tenso pelo escovém. Olhou para trás por sobre o ombro e viu que Hal já se encontrava ao leme. O resto da reduzida tripulação do Minotauro fora dominado sem um grito, e seus corpos em túnicas estavam espalhados ao longo do convés. Ao olhar para cima, viu que a maioria dos marujos do Seraph infestava os cordames e se balançava pelas vergas. O Minotauro fora construído no mesmo estaleiro que o Seraph, e o cordame de seus mastros era quase idêntico. Não havia nenhuma hesitação na maneira com que os gajeiros faziam seu trabalho.
Assim que o velame principal desdobrou-se como as asas de uma borboleta a emergir do casulo da crisálida, Aboli girou o machado para o alto, acima da cabeça, e, com ambas as mãos, trouxe a lâmina a faiscar para baixo. O machado enterrou-se com um baque na madeira do convés, e o cabo da âncora se partiu com um tranco.
O Minotauro deslizou a sotavento ante a brisa noturna até que o timão e o empuxo das velas enfunadas o detiveram. Hal girou a roda do leme totalmente para bombordo e, gentil como um amante, o Minotauro se fez ao vento.
Só então Hal pôde dispensar um olhar para os outros botes da flotilha. Havia luta no convés do navio holandês, e ele ouviu o retinir das lâminas de espadas e cimitarras e, em seguida, o débil grito de agonia de um homem ferido de morte no coração. Pouco depois, as velas se inflavam nas vergas e o grande navio voltou-se para a entrada da baía.
Naquele momento, houve um lampejo de luz que cresceu rapidamente em intensidade até que iluminou o convés do Minotauro. Hal podia distinguir as feições de Aboli com clareza ao caminhar pelo tombadilho em direção a ele. Fez meia-volta e viu que o navio de velas redondas mais próximo estava em chamas. Os homens do escaler comandados por Alf Wilson o tinham abordado, matado a tripulação e jogado tochas embebidas em piche em seus porões e cordames.
As chamas tomaram conta do casco e saltaram para os cordames. O fogo alastrava-se como se fosse uma competição de artilharia, traçando listras feéricas contra o céu escuro. Chegou aos panos encolhidos em suas vergas e explodiu numa coluna de luz retorcida, mais alta que as palmeiras na praia.
Os homens de Alf pularam para o escaler e remaram furiosamente para o próximo navio, na ancoragem, cuja tripulação os viu chegar e não demorou em saudá-los. Dispararam uns poucos tiros incertos e depois jogaram suas armas de lado, saltaram pela amurada do navio e atingiram a água numa série de borrifos brancos. Nadaram freneticamente para a praia.
Um após outro, os navios ancorados explodiram em chamas e iluminaram a baía como se fosse meio-dia. Sombras e luz brincavam em jogos vívidos sobre as muralhas do forte, e o primeiro tiro de canhão irrompeu dos balestreiros. Hal não viu onde a bala atingiu, pois trazia o Minotauro a uma volta e o alinhava para a entrada. A bóia que deixara flutuando para marcar a passagem destacava-se claramente com o incêndio, e as chamas eram tão brilhantes que ele poderia até mesmo avistar a massa do recife sob a superfície.
- A postos! - Hal berrou, e começou a delicada manobra de dirigir o navio com tão poucos homens para os confins da baía. Não havia nenhum espaço para enganos ali. Um giro em falso poderia lançá-los na praia ou enviar o Minotauro para encalhar no recife de coral. Rebocava a pinaça atrás do navio, e seu peso e arrasto afetavam o manejo do Minotauro. Teria de atentar para isso quando fizesse o contorno pelo arrecife.
O Minotauro rumava diretamente em direção ao forte e, às luzes dançantes das chamas, Hal podia ver os atiradores às voltas com suas armas. Antes que alcançasse a bóia que marcava a entrada, um canhão disparou, depois outro. Ele viu um claro buraco redondo aparecer na vela mestra quando uma bala a transpassou, e percebeu que os atiradores não faziam esforço em abaixar a mira: todos os tiros passavam alto. Relanceou o olhar para à popa e viu que Daniel Grande, no navio holandês, seguia apenas a uma amarra de distância a ré. Também rebocava sua pinaça; não deixariam prêmio de consolação para o inimigo.
Mais ao fundo na baía, os escaleres tinham completado seu trabalho de destruição, e cada embarcação inimiga estava em chamas. O cabo de âncora de uma das grandes naus de velas redondas ardia em brasas, e o navio começou a derivar em direção à praia, uma fogueira em movimento. De súbito, o fogo chegou a seu paiol de pólvora, e o barco explodiu com um rugido ribombante. Seu mastro principal foi arremessado ao ar como uma lança e, ao cair, espetou-se num dos pequenos caíques, transpassando de tal forma seu convés que o fundo rasgou-se e o barco afundou de popa. A onda de choque da explosão emborcou dois dos caíques mais próximos e desencadeou uma torrente irresistível que varreu a ancoragem.
Hal procurou por sinal dos escaleres, preocupado que tivessem sido tragados pela força da explosão, mas então os avistou, a jogarem e a rolarem nas águas turbulentas, mas com boa velocidade para alcançarem o Minotauro, eis que a tripulação remava freneticamente. Hal voltou toda sua atenção em conduzir o navio pelo canal.
Passou pela bóia de sinalização à distância de um remo a bombordo, e entraram pela boca da passagem em velocidade, logo abaixo da artilharia das ameias do forte. Hal tinha uns poucos segundos antes que o próximo tiro fosse desferido sobre eles, e ergueu os olhos para as baterias acima.
Alguns dos atiradores pareciam ter se dado conta de seu erro e empurravam as carretas para um ângulo mais baixo. Hal viu a inclinação dos canos protuberantes ser deprimida quando ajustaram o equipamento de mira.
- Atenção para a vela mestra - Hal disse à diminuta tripulação.
Cada homem era forçado a fazer o trabalho de três, mas quando ele aprumou o leme e gritou: "A sotavento!", todos saltaram para lá a um só grito e uma vontade, e o Minotauro rodopiou gentilmente e deslizou pela passagem entre os braços ameaçadores do recife de coral, o desastre a espreitar ao alcance da mão. Hal olhou para trás e viu que Daniel Grande fazia o mesmo giro na trilha lustrosa da esteira do Minotauro.
- Camarada esperto! - Hal o elogiou num murmúrio.
A bateria nas muralhas atrás dele disparava furiosamente: a fumaça era um banco espesso enovelado que era rasgado pelos lampejos do bombardeio. Os atiradores tinham conseguido baixar suas carretas agora, e uma bala fez irromper uma fonte luzidia de borrifos, perto do costado inferior do Minotauro.
Hal sorriu com ar feroz. O contorno levara o navio para longe do forte e, agora, os tiros de canhão voavam muito baixo. Levaria algum tempo até os atiradores se darem conta disso e, até então, Hal esperava estar livre da passagem e rumo ao mar aberto.
A postos! - berrou ao ver a bóia de sinalização número um dançando à luz do incêndio, bem à frente.
Um de seus marujos correu para tomar seu lugar na escota principal. Ao passar a um braço de distância de onde Hal se postava, um tiro fortuito da bateria o atingiu. Houve uma rajada de ar deslocado que quase derrubou Hal. Ele teve de se agarrar com ambas as mãos nas travessas do leme para buscar apoio. A bala de pedra, recendendo aos fumos da pólvora que a arremetera pelos ares, atingiu bem nas costas o marujo que corria. Esfacelou-lhe o corpo e explodiu seu crânio de tal sorte que metade do cérebro foi lançada no rosto de Hal como uma porção de creme morno. Hal ofegou e se encolheu de horror, tão perturbado que quase calculou mal a última volta. Conseguiu recompor-se, limpou a massa amarela que escorria de sua face e gritou, sentindo o gosto execrável em sua boca:
- Soltem as velas! - E girou todo o leme.
O Minotauro rodou a proa, desviou-se da borda do recife de coral e ergueu a quilha à primeira vaga de mar aberto. Quando o recife ficou atrás de si, Hal se virou, ansioso para observar Daniel Grande enfrentar a última curva. Ele fazia um serviço mais limpo que aquele que Hal fizera. O navio holandês girou seu casco largo, pendeu ligeiramente para o lado para a mudança no ângulo do vento e, então, com o aplomb e a dignidade de uma nobre senhora a seguir sua filha, mais lépida e ágil, seguiu na esteira do Minotauro para as águas profundas do mar aberto.
- Passamos! - Hal murmurou e, em seguida, elevou a voz num grito de triunfo: - Conseguimos, rapazes! Viva!
Todos se puseram a gritar e a uivar como cachorros loucos e, no navio que os acompanhava, os homens de Daniel Grande comemoravam com a mesma selvagem alegria. Nos escaleres, todos pulavam e saltavam nos assentos de remos numa dança maluca, até que estavam em perigo de emborcar. Os canhões da bateria do forte atiravam ao acaso, frustrados, num inútil e débil acompanhamento, e as chamas da flotilha incendiada começaram a sumir ao longe, enquanto eles navegavam para ir ao encontro do Seraph.
Assim que a aurora irrompeu na manhã seguinte, o esquadrão de navios de Hal flutuava tranqüilo, a dez milhas a sudoeste da ilha Flor do Mar. Hal chegou ao convés depois de trocar apenas de camisa, e engoliu depressa o desjejum matinal, assim que o sol apontou seu halo superior acima do horizonte.
Quando olhou para o outro barco, do convés de popa do Seraph, as feridas do Minotauro eram visíveis ao brilhante sol da manhã. A nau se mostrava bastante machucada pelos tiros, e negligenciada ao extremo, velas rasgadas e descoloridas, casco manchado e arruinado. Deslizava, solta e leve, nas águas. Um exame de inspeção na noite anterior revelara que seu porão estava vazio de toda a carga, mas seu paiol, repleto de munições, e as barricas de pólvora pareciam em boas condições. Aquele estoque seria de boa valia para Hal quando chegasse a hora de desferir seu ataque final ao baluarte sitiado de al-Auf.
Entretanto, malgrado sua aparência, o Minotauro precisava apenas de um pouco de atenção e trabalho para recuperar sua condição de primeira classe. Hal não tinha motivo para reavaliar sua opinião com relação ao seu valor. A nau valia pelo menos 10 mil libras de recompensa, das quais a parte de seu pessoal estaria perto de 3 mil. Sorriu satisfeito e voltou a sua luneta para o outro prêmio que haviam ganhado na noite anterior.
Não havia dúvida alguma de que era um navio da VOC, tal como supusera. Pelas lentes, leu seu nome em letras douradas, na trave de popa: Die Lam, que se traduzia como Cordeiro. Hal julgou que o descrevia bem: a nau parecia rechonchuda e dócil, contudo suas linhas eram sólidas e esmeradas, tentadoras a seu olho de navegante. Era de construção recente e não ficara por muito tempo nas mãos dos corsários para sofrer degradação. Os porões ainda continuavam trancados, mas a deduzir de sua profundidade na água, era evidente que ainda estavam totalmente carregados; sua carga não fora desembarcada por al-Auf.
- Chame o escaler, sr. Tyler. Hal fechou sua luneta com um estalo. - Vamos visitar o sr. Pescador no Cordeiro, para ver o que capturamos.
Daniel Grande o recebeu na porta da amurada do navio holandês com um largo sorriso desdentado.
- Parabéns, capitão. É uma bela nau.
- Muito bem-feito de sua parte, sr. Pescador. Eu não poderia pedir nada mais ao senhor e aos seus homens. - Sorriu para os risonhos marujos que se apertavam em torno de Daniel Grande. - Todos terão os bolsos recheados quando pisarem em terra, em Plymouth.
A equipe irrompeu em vivas.
- Quantos dos seus bravos camaradas foram mortos? - Hal baixou a voz ao tocar em tão mórbido assunto.
Daniel respondeu em voz alta:
- Nenhum, graças a Deus. Embora o jovem Peter aqui tenha perdido um dedo, arrancado por uma bala. Mostre ao capitão, rapaz.
O jovem marujo ergueu o toco do dedo indicador, enrolado num trapo sujo.
- Acrescentarei um guinéu de ouro extra ao seu prêmio em dinheiro - Hal prometeu a ele -, para ajudar a aliviar a dor.
- Por esse preço, pode ter os outros quatro dedos também, capitão. - O marujo abriu um sorriso largo, e seus colegas irromperam numa gargalhada ao voltar para seus postos.
Daniel Grande conduziu Hal adiante.
- Encontramos aqueles prisioneiros ainda acorrentados no castelo de proa. - Indicou o grupo de estrangeiros em farrapos que se acocorava ao pé do mastro de proa. - São os sobreviventes da tripulação holandesa. Vinte três adoráveis cabeças de queijo, todos consignados por al-Auf para os mercados de escravos.
Hal correu o olhar por eles rapidamente. Estavam magros porém não emaciados, e embora os grilhões das correntes fossem óbvios nos tornozelos e pulsos e vergões retalhassem suas costas e pernas, deixadas pelo kiboko árabe, pareciam com razoável saúde. Como o Cordeiro, eles não tinham permanecido por longo tempo em cativeiro para sofrer mais severamente.
- É seu dia de sorte, Jongens - Hal saudou-os em holandês. - São homens livres agora. - Diante disso, as faces se iluminaram. Hal estava feliz em tê-los a bordo. Com dois navios extras de prêmio para manejar, precisaria de cada homem que pudesse encontrar. - Assinarao contrato comigo pelo resto da viagem por um guinéu por mês e uma participação no prêmio? - perguntou. Os sorrisos se expandiram e a aceitação era incontestável.
- Algum dentre vocês é oficial? - Hal indagou.
- Não, mijn heer - o porta-voz respondeu. - Nosso capitão, Van Orde e todos os seus oficiais foram mortos por aquela escória pagã. Eu era o timoneiro da embarcação.
Vai conservar o seu posto - Hal lhe disse. - Todos esses homens estão sob o seu comando. - Se mantivesse todos os holandeses juntos, o problema do idioma estaria resolvido. Por outro lado, Daniel Grande aprendera a falar holandês enquanto estivera em cativeiro em Boa Esperança...
São seus cordeirinhos, sr. Pescador - disse Hal. - Deixe-os apor suas assinaturas ou marcas no registro de bordo, e lhes dê roupas limpas do baú de petrechos da tripulação. E agora vamos ver o que capturamos aqui.
Desceu para as acomodações do capitão, na popa. A cabina principal fora saqueada pelos corsários. A mesa e os cofres do capitão tinham sido arrebentados e pilhados. Cada objeto de valor fora roubado. Os livros e documentos do navio estavam espalhados sobre a mesa, amassados e rasgados, embora muitos ainda fossem legíveis. Hal recuperou o diário de bordo e o manifesto de carga dentre a bagunça. Um olhar para o manifesto o fez assobiar de surpresa e prazer.
- Por Deus, se tudo isso ainda estiver em seus porões, então o Cordeiro é na verdade um tesouro! - Estava prestes a mostrar a Daniel Grande a folha dura de pergaminho, mas recordou-se de que ele não sabia ler, era sensível quanto a isso e, então, disse: - Chá da China, sr. Pescador. Está cheia de engradados disso - o bastante para inundar cada café de Londres. - Riu e repetiu o anúncio que vira acima da porta da frente do Café Garway, na rua Fleet: - "Esta Excelente Bebida da China e por Todos os Médicos Aprovada, o Chá".
- Vale alguma coisa, capitão? - Daniel Grande perguntou num tom lúgubre.
- Vale alguma coisa? - Hal caiu na risada. - Provavelmente, mais que o próprio peso do carregamento em barras de prata, Danny.
Seguiu pelo inventário até a soma total do manifesto. - Para ser preciso, vale 123.692 florins no cais em Jacarta, e duas vezes mais em Londres. Digamos 30 mil guinéus numa estimativa aproximada. Mais que o Cordeiro, em si.
Ao meio-dia, Hal chamou todos os seus oficiais a bordo do Seraph Para lhes passar as ordens.
Teremos de nos esforçar ao limite para cumprir o trabalho em todos os três navios - disse-lhes quando se reuniram na cabina de popa.
Mandarei o Minotauro e o Cordeiro com tripulações reduzidas ao sul, para as ilhas Glorieuses, ao encontro do capitão Anderson, do Yeoman. O sr. Pescador assumirá o comando geral do Cordeiro. - Relanceou os olhos para Daniel Grande e pensou: Por Deus, sentirei saudades dele.
- A Grande Glorieuse está a 230 milhas marítimas daqui. Não muito longe. Ha uma ancoragem segura na extremidade sul da ilha, e água fresca de riacho. Darei a você quatro dos carpinteiros para procederem aos reparos do Minotauro e colocá-lo em condições de combate. Essa será sua primeira preocupação.
- Sim, capitão - concordou Daniel Grande.
- Pelos meus cálculos, o Yeoman deve chegar ao ponto de encontro dentro das próximas três semanas. Tão logo o faça, você deve deixar o Cordeiro ancorado na Grande Glorieuse com uma tripulação mínima a bordo, e se o Minotauro estiver reparado até então, você o trará e ao capitão Anderson de volta para cá, para tomarem parte no assalto a Flor do Mar.
- Compreendo, capitão - respondeu Daniel Grande. - Quando quer que eu parta, senhor?
- Tão logo lhe seja possível, sr. Pescador. O capitão Anderson já pode estar à espera no ponto de encontro. Com Dorian prisioneiro em Flor do Mar, cada dia é precioso. Ficarei aqui para manter o cerco a al-Auf.
Ao ficar a sós no convés de popa do Seraph, enquanto o pôr-do-sol tingia de encarnado o céu ocidental, Hal ficou a observar o Minotauro e o Cordeiro se desgarrarem e rumar para o sul. Quando as silhuetas dos dois navios diluíram-se a distância e foram por fim engolfadas pelas sombras do crepúsculo, Hal deu a ordem para levar o Seraph de volta a seu posto, ao largo da ilha Flor do Mar.
Aos primeiros raios do alvorecer do dia seguinte, Hal conduziu seu navio numa atitude acintosa pela entrada da baía, apenas fora do alcance dos canhões nas muralhas do forte. Seu propósito era avisar al-Auf de que estava sob bloqueio e, ao mesmo tempo, vistoriar meticulosamente a ilha. Com sua luneta, a consternação no acampamento árabe era fácil ser vista. Uma multidão de corsários abandonara as choças e abrigos entre as palmeiras e buscara a proteção do forte. As grandes portas de teca haviam sido fechadas antes que todos tivessem passado, e aqueles deixados de fora clamavam e batiam nelas com punhos e mosquetes. Hal ficou feliz em ver quanto eram indisciplinados; sua falta de treinamento e controle era tão aparente como sua tresloucada artilharia.
Hal conseguiu avistar os turbantes dos atiradores acima do topo da muralha, ao correrem para manejar os canhões. O primeiro tiro ribombou, e a bala atingiu a superfície do mar a meio caminho entre a praia e o Seraph. Bateu na água e saltou adiante, perdendo impulso a cada ricocheteio. A meia amarra de distância do Seraph, afundou e desapareceu.
Então, o resto da bateria abriu fogo. Logo, as muralhas do forte estavam enevoadas com a fumaça dos disparos, e colunas de água se erguiam entre a praia e o navio. O Seraph ainda se encontrava bem fora de alcance - Hal superestimara a amplitude da artilharia árabe.
Voltou a atenção para a ancoragem. Nenhum navio restava na baía, nem mesmo o menor caíque de pesca. Seu ataque os varrera por completo. Destroços carbonizados vagavam à deriva e se amontoavam em grande parte ao longo da marca da maré alta na praia. O casco queimado do navio de três mastros jazia no alto e em seco, emborcado e a expor seu fundo, os mastros reduzidos a tocos.
- Nunca se fará ao mar de novo - Ned Tyler comentou com satisfação. - O rato está enfiado no seu buraco, capitão.
- Nosso próximo truque é atraí-lo para fora - declarou Hal. - Mande chamar Tom.
Tom desceu escorregando pelo brandal do mastro de proa e mancou ao se apoiar no tornozelo machucado. Parecia estar se recuperando mais rapidamente do que o dr. Reynolds presumira. Hal ficou a observá-lo aproximar-se com um olhar crítico. Tom estava mais alto agora que a maioria dos demais homens a bordo, com os ombros largos e braços musculosos de um espadachim. Seus cabelos não viam tesoura desde que haviam partido da Inglaterra e lhe caíam pelas costas, fartos e cacheados, negros como um rabo de cavalo. Havia bem pouco tempo, Hal lhe dera uma navalha, e assim suas faces estavam barbeadas, porem com um bronzeado pronunciado. Tinha o nariz dos Courtney e penetrantes olhos verdes. Um rapaz promissor, pensou Hal. Parecia que desde que perdera Dorian, seus sentimentos paternais haviam se tornado mais agudos, mais intensos, e ele teve de represar o fluxo de emoções que ameaçavam engolfá-lo. Estendeu a luneta a Tom e disse com certa rudeza:
Aponte-me o local exato onde escalou as muralhas do forte, e a abertura da cela de Dorian.
Olharam pela extensão de água para a ilha. A barragem de artilharia ainda esbravejava, e o espesso banco de fumaça flutuante dos calões resistia aos esforços da monção em se deixar varrer para longe.
- O canto noroeste - apontou Tom. - Vê aquele feixe de três palmeiras? Exatamente acima delas, há um ressalto na muralha, onde a vegetação cresce e, à esquerda, fica a primeira seteira. Acho que é aquela, embora não possa ter certeza absoluta.
Hal pegou de volta a luneta e inspecionou as fortificações com as lentes. Com a luz do sol da manhã a incidir nas muralhas, as fendas das seteiras faziam um contraste sombrio com os brancos blocos de coral Fixou-se naquele que Tom indicara e sentiu que sua perda era quase dolorosa demais para ser suportada.
- Se me deixar voltar à ilha de novo, com Aboli e um pequeno grupo de bons homens... - Tom começou, impaciente.
Hal interrompeu-o com um seco menear da cabeça.
- Não, Tom. - Tinha perdido um filho, não se arriscaria a perder outro.
- Eu sei exatamente onde encontrar Dorian - implorou Tom. - Há vários locais em que poderíamos escalar as muralhas.
- Estariam à sua espera.
- Não podemos ficar sem fazer nada. - A voz de Tom alterou-se de emoção. - Só Deus sabe o que será de Dorry se não o livrarmos das garras do inimigo.
- Iremos tão logo possamos ter certeza de sucesso. Enquanto isso, al-Auf não fará mal a Dorian. Parece que alguma lenda religiosa o protege, uma profecia de um santo islâmico.
- Não compreendo. Uma profecia e Dorry? Como sabe disso, papai?
- De Wazari, o capitão árabe que interceptamos. É o cabelo ruivo de Dorian. A lenda diz que o Profeta Maomé tinha cabelos vermelhos. É raro entre os povos do Oriente, e eles têm por isso um respeito supersticioso.
- Não podemos nos fiar na cor dos cabelos de Dorry!
- Basta por ora, Tom. Volte para o seu posto de combate. - A expressão de Hal não era hostil, e lhe custou todo o bom senso e a determinação para resistir aos argumentos do rapaz.
O Seraph afastou-se do forte e, gradualmente, os canhões silenciaram, enquanto a fumaça se dissipava ao vento. Hal virou a nau de bordo e rodeou a ponta norte, começando a cumprir um lento circuito em torno da ilha. Esquadrinhou cada característica de terra, numa aproximação dentro dos limites da prudência da beira do recife.
Hal tinha feito uma cópia fiel do velho mapa de sir Francis, e esta estava agora aberta ao lado da bitácula. Nela, tomou nota de suas próprias observações ao lado daquelas anotadas por seu pai cinqüenta anos antes. Colocou um homem a postos com a sondareza para fazer as sondagens, e uma vez lançou um escaler e despachou Aboli em terra para investigar uma chumbada através do coral. Aboli quase chegara à praia do lado mais distante da lagoa, antes que um grupo de uns cem ou mais árabes surgisse da floresta e palmeirais e, de tão próximo alcance abrisse uma fuzilaria pesada contra o escaler. Um dos remadores ficara ferido no ombro, antes que Aboli pudesse levá-los pela passagem outra vez.
Na ocasião em que completaram o circuito completo da ilha, Hal havia divisado uma dúzia de locais onde poderia desembarcar um grupo em terra, e os marcara cuidadosamente no mapa. Ao chegarem à posição oposta à baía, mais uma vez ele manobrou uma parada ao vento e fez um exame detalhado de tudo que conseguiu avistar da fortaleza e das fortificações antemuro que os árabes haviam erguido em torno do pé das muralhas.
Tentou fazer uma estimativa do número de homens que al-Auf tinha sob seu comando. Finalmente, decidiu que era pelo menos de um milhar, mas sabia que a quantia exata poderia ser duas vezes isso.
A cada poucos minutos, a luneta em suas mãos parecia ganhar vida própria e se desviava de volta para a seteira, nas espessas muralhas brancas que Tom lhe apontara.
- Será uma longa e cansativa espera até que Edward Anderson chegue aqui - anteviu com tristeza, e cada homem no Seraph submeteu-se à rotina monótona do bloqueio.
Hal tentou manter os homens em alerta com treinamento constante com mosquete e adagas e canhão, mas, ainda assim, os dias se arrastavam. Por quatro vezes, durante as semanas que se seguiram, a monotonia foi quebrada quando avistaram naus a se aproximarem de Flor do Mar pelo oeste. De cada vez o Seraph içou todo o velame e, com a monção por trás, correu para interceptá-las.
Três mostraram ser presa fácil, e foram tomadas de assalto e abordadas sem nenhuma perda. Contudo, a quarta era um belo caíque de quarenta metros, não muito menor que o próprio Seraph. Obrigou o Seraph a uma gloriosa caçada, demonstrando uma espantosa mudança de velocidade, e era manejado habilmente por sua apavorada tripulação. O Seraph quase o perdeu quando a escuridão caiu. Hal, entretanto, adivinhou a estratégia do capitão do caíque e retornou à ilha sob a proteção da noite. Ao raiar do dia, o caíque foi descoberto ao tentar se esgueirar para dentro da baía em Flor do Mar. O Seraph precipitou-se sobre a presa e a interceptou apenas a uma milha de distância de seu objetivo. Sua tripulação empenhou-se em corajosa luta, e um dos homens de Hal foi morto com um tiro enquanto três outros foram feridos antes que tomassem de assalto o convés. Descobriu-se então que a nau era de propriedade do príncipe Abd Muhammad al-Malik.
O príncipe não se encontrava a bordo, mas sua cabina pessoal era mobiliada como a sala do trono de um potentado oriental. Hal mandou que os tapetes e o mobiliário fossem retirados dos tabiques e levados para a sua própria cabina no Seraph.
O nome do príncipe era familiar a Hal. Recordava-se claramente do outro navio que haviam encontrado na noite que retiraram o Minotauro e o Cordeiro da baía de Flor do Mar, e que tomara a resolução de deixar que fosse embora. Pertencia ao mesmo homem, e agora que Hal fora apresentado a uma tal evidência de grandes posses, ele duvidava da sabedoria daquela decisão. Ordenou que uma corda fosse içada à verga do mastro, e o laço, passado pela cabeça do capitão do caíque. Postado ao lado do homem condenado, Hal iniciou o interrogatório.
- Sim, efêndi - O homem temia por sua vida e resolvera colaborar voluntariamente -, al-Malik é um homem rico e poderoso. É o irmão mais novo do califa de Mascate. Tem mais de uma centena de navios mercantes em sua frota. Faz percursos regulares para todos os portos da África e da índia e às terras do Profeta. Vem com freqüência a Daar Al Shaitan para comerciar com Jangiri.
- Você sabe muito bem que al-Auf é um corsário, que todas as mercadorias que vende foram roubadas de navios cristãos, que muitos marujos inocentes foram assassinados pelo corsário em combate e que aqueles que sobreviveram são vendidos como escravos, não é mesmo?
- Sei apenas que o meu mestre me mandou comerciar com Jangiri porque os preços das suas mercadorias são atraentes. Como ele as obtém, isso não é da minha conta ou da do meu mestre.
- Farei com que seja da sua conta agora - Hal lhe disse com dureza. - Por comerciar com o corsário mercadorias roubadas, voce se impôs culpa igual. - Voltou-se para Aboli: - Reviste o navio com cuidado.
Os três caíques que eles tinham capturado anteriormente também tencionavam fazer negócios com al-Auf, assim como o daquele capitão. Parecia que as notícias das magníficas transações que aconteciam em Daar Al Shaitan haviam se espalhado do golfo Pérsico à Costa de Coromandel. As três outras naus carregavam moedas e dinheiro em espécie para pagamento dos bens que esperavam adquirir.
Vamos ver se este rufião pode fazer uma contribuição a mais a despesa de manutenção do bloqueio à ilha.
Hal se pôs a andar de um lado para outro do convés enquanto seus homens saqueavam o caíque. Em meia hora, tinham descoberto o lugar do esconderijo dos baús de dinheiro do capitão. O homem torceu a barba e esgarçou a túnica de angústia quando os quatro baús foram arrastados para o tombadilho do caíque. Eram pesados demais para carregar.
Tenha piedade, efêndi - o capitão gemeu. - Isso não me pertence. Pertence ao meu mestre. - O homem caiu de joelhos. - Se os tomar de mim, então estará me condenando à morte.
- O que você bem merece - Hal lhe disse secamente, e então se voltou de novo para Aboli: - Há alguma outra coisa de valor nos porões?
- Estão vazios, Gundwane.
- Muito bem, leve o butim para o Seraph. - Hal encarou o choroso capitão do caíque. - Aqueles baús são o preço da sua liberdade e do seu navio. Alerte seu mestre de que esta é apenas uma pequena parcela do preço que lhe arrancarei se alguma outra vez ele for estúpido o bastante para traficar com corsários. Agora, vá com Deus, e obrigado pela sua cooperação.
Do convés do Seraph, Hal assistiu ao caíque se afastar de volta ao continente africano. Então, desceu para a sua cabina onde Aboli havia guardado os baús apreendidos, encostados ao tabique.
- Abra-os - ordenou Hal e, com uma cruzeta, Aboli arrebentou os cadeados.
As três naus que Hal capturara anteriormente haviam rendido ricas pilhagens, mas eram insignificantes em comparação ao que se revelou quando as tampas dos quatro baús foram abertas.
O dinheiro que continha estava empacotado em pequenos sacos de pano grosso. Hal cortou um deles com seu punhal, e um jorro de ouro reluzente escorreu por sobre a mesa. Viu de imediato que a maioria das moedas era de mohurs, cada uma cunhada com as três montanhas e o elefante do Império do Grão-Mogol. Porém havia outras entre elas: dinares de ouro dos sultões islâmicos, com texto religioso gravado; umas Poucas tetradracmas, antigas moedas gregas de prata cujo valor em raridade ultrapassava o valor intrínseco do metal.
- Levará uma semana para contar este tesouro - disse Hal. - Em vez disso, vamos pesá-lo. Peça ao sr. Walsh para trazer para baixo as balanças do navio e destaque dois homens para ajudá-lo.
Walsh trabalhou pelo resto daquele dia e metade da noite antes de poder entregar a Hal a avaliação final.
- É difícil obter uma medição correta num navio em movimento.
- Walsh lhe disse, com seu jeito afetado -, já que os braços da balança nunca param de se mexer.
- De qualquer maneira, não o acusarei de não saber fazer contas por causa de uma diferença de 25 ou 50 gramas - Hal lhe assegurou.
- Faça-me uma estimativa honesta, e ficarei feliz com isso, até podermos pesar os sacos no Tribunal de Julgamento na Inglaterra.
- O peso é de aproximadamente 270 quilos, para ser preciso, ou melhor dito, para ser impreciso. - Walsh riu da própria piada, enquanto Hal o fitava com espanto.
Não esperava tanto. Por Deus, estava muito próximo de um lakh de rupias. Uma imensa fortuna em qualquer moeda. A isso se deviam acrescentar as moedas de ouro e prata que tomara dos outros três caíques capturados. Seu valor total ultrapassava de longe o valor dos outros dois grandes navios dos quais se apossara como prêmio.
- Um lakh de rupias - Hal resmungou alto, e seus olhos se voltaram para os quatro baús com seus cadeados quebrados, enfileirados ao longo do tabique. Havia algo naquela soma em particular que lhe acudiu à memória. - Um lakh de rupias! Foi esse o preço que Wazari disse que al-Auf estabeleceu para a cabeça vermelha da criança da profecia. O preço de Dorian como escravo.
Quanto mais ponderava sobre isso, mais lhe parecia exeqüível. Aquele era o dinheiro da compra de Dorian. O prazer que essa idéia lhe trouxe ultrapassava em muito a satisfação em ter conseguido o ouro em si. Se al-Malik mandara toda aquela soma fabulosa a al-Auf para comprar Dorian, isso provava que seu filho ainda estava na ilha, retido dentro do bloqueio.
- Obrigado, sr. Walsh. Fez um bom trabalho.
- Nunca pensei que a vista de tanto ouro pudesse ser tão detestável. - Walsh refletiu ao olhar para o resultado de tanto trabalho, e Hal voltou ao convés para continuar em sua vigília interminável.
- Por favor, Deus, faça com que Anderson chegue logo - murmurou, olhando pelas reluzentes águas azuis para a ilha verde-esmeralda debruada de areias de branco coral. - Ou, pelo menos, dê-me forças para me controlar.
Outra semana arrastou-se. Então, numa manhã enevoada em que o mar jazia lustroso e sereno sob o assalto fulgurante do sol, a balançar num ritmo lento como *se a fazer amor consigo mesmo ao calor sufocante ouviu-se um brado alegre do cesto da gávea:
Velas à vista! - Tom gritou.
Por demais impaciente para esperar pelas notícias do gajeiro, Hal subiu os cordames e espremeu-se no cesto da gávea, ao lado do filho.
Lá! - Tom apontou para o sul.
Por muitos minutos, Hal pensou que ele devia ter se enganado, pois o horizonte estava deserto; então, divisou um vulto efêmero que desapareceu de novo quase de imediato. Ajustou a lente no ponto e, de súbito, lá estava a mancha outra vez, uma silhueta minúscula, branca como a neve.
- Tem razão - rejubilou-se. - Um navio de velas redondas.
- Dois! - Tom o corrigiu. - Dois navios. Só podem ser o Yeoman e o Minotauro.
- Vamos descer para encontrá-los e lhes dar as boas-vindas.
Em breve, os dois navios que se aproximavam revelaram ser mesmo o Yeoman e o Minotauro. Hal examinou-os atentamente com a luneta e mal reconheceu o Minotauro. Daniel Grande fizera maravilhas no curto tempo que lhe fora dado para reequipá-lo. A nau esplandecia sob a nova camada de pintura, e mesmo quando chegou mais perto, não havia sinais dos danos de tiros em seu casco ou no cordame. Por outro lado, o velho Yeoman parecia desgastado e mostrava todos os sinais denunciadores de sua longa viagem.
Hal trocou os sinais convencionais de bandeiras para saudá-los e, quando se encontravam lado a lado, os dois navios estacionaram ao vento e o Yeoman lançou um bote à água. A face rubicunda de Edward Anderson brilhava na popa como uma lamparina de vigia, enquanto ele remava para cruzar a distância entre as naus; em seguida subiu a escada com surpreendente agilidade para um homem tão robusto. Agarrou a mão estendida de Hal.
- Ouvi do sr. Pescador que trabalhou duro na minha ausência, sir Henry, e que se apossou de um grande prêmio. - O despeito era evidente em seu timbre e expressão: somente os capitães envolvidos diretamente na ação tinham direito de partilhar o prêmio pela captura.
Tenho emprego urgente para o seu navio, senhor, e a promessa de tesouro ainda maior é iminente - Hal lhe assegurou. Julgou que seria demasiado cruel mencionar o butim tomado dos caíques árabes. ~~ Vamos até a minha cabina.
Assim que se sentaram, o criado de Hal serviu um cálice de vinho da Madeira para cada um e, então, deixou-os a sós.
- Tenho cartas para o senhor do sr. Beatty e de seu filho Guy
capitão Anderson lhe disse, e tirou o pacote, envolto em pano grosso 1 das dobras de sua capa.
Hal deixou-as de lado para serem lidas mais tarde.
- Como está Guy? - A pergunta foi casual, pois ele estava ansioso para tratar de questões mais urgentes, mas, ainda assim, a resposta de Anderson o pegou de surpresa.
- Ele vendia saúde da última vez que o vi. Julgo que está para se casar muito em breve.
- Por Deus, homem! Guy tem apenas dezessete anos. - Hal encarou-o, carrancudo. - Não fui consultado a respeito. Deve estar enganado, senhor.
- Asseguro-lhe que não há engano, sir Henry. - Anderson estava mais vermelho do que o normal, e se remexeu inquieto na cadeira.
- Quem é a mulher? - perguntou Hal. - Certamente deve haver carência de rapazes em Bombaim - Ficou de pé, tomado de agitação, e começou a andar de um lado para outro, frustrado com a falta de espaço na minúscula cabina, agora ainda menor com a extravagante mobília saqueada do caíque de al-Malik.
- Fui informado de que é a srta. Caroline Beatty. - Edward Anderson puxou um lenço de cores vibrantes do colete e enxugou o suor da face com embaraço, antes de poder continuar: - Sou levado a crer que há alguma urgência no casamento. Na verdade, estava marcado para ter lugar um ou dois dias depois que parti de Bombaim. Portanto seu filho é quase com certeza um homem casado por esta hora.
Hal estacou assim que a intragável verdade tomou conta de si.
- Tom! - exclamou.
- Não, sir Henry, entendeu mal. Guy, não Tom.
- Perdoe-me, eu estava pensando em voz alta - Hal se desculpou. O choque o desviara de assunto mais urgente, mas Anderson o trouxe de volta com o próximo comentário.
- O sr. Pescador me contou a horripilante notícia de que seu filho mais novo caiu em mãos do inimigo. Tem a minha mais profunda simpatia, sir Henry.
- Obrigado, capitão Anderson. Precisarei muito da sua ajuda para resgatar meu menino.
- Meu navio e tripulação estão inteiramente à sua disposição. Nem é preciso dizer.
- Então, vamos examinar nossas condições.
Hal dispusera de semanas para fazer seus planos para o assalto a Flor do Mar, e agora os expunha em detalhes para Anderson. Passaram reSto daquele dia na cabina de popa do Seraph a examinar cada detalhe da campanha, do sistema de sinais com bandeiras que usariam de navio a navio e de navio para terra à disposição dos marujos a serem utilizados no assalto e à delegação dos comandos inferiores aos vários oficiais. Em seguida debruçaram-se por outra hora sobre os mapas que Hal havia preparado. O sol já se punha quando Anderson aprontou-se para voltar ao Yeoman.
Tenha em mente, capitão Anderson, o que eu lhe disse. Al-Auf tem se abrigado no forte desde alguns anos. Em todo esse tempo, os mercadores árabes de cada canto do oceano buscam vir à ilha, atraídos como moscas ao monturo de esterco. Trouxeram com eles vasta quantidade de barras de ouro, para comprar escravos, e mercadorias roubadas. Os prêmios que capturei antes da sua chegada desaparecerão como insignificantes em comparação. Creio que encontraremos em Flor do Mar um tesouro para ultrapassar qualquer coisa que Drake ou Hawkins tenham levado para casa de suas aventuras.
Os olhos azuis de Edward Anderson faiscaram com a idéia, e Hal prosseguiu, para animá-lo ainda mais:
- Merecerá o grau de cavaleiro pela sua participação nesta aventura, e eu usarei de toda minha influência com a Honorável Companhia para fazer com que o obtenha. Com sua parte do prêmio, terá condições de adquirir uma bela propriedade rural. Depois disso, nunca mais precisará se fazer ao mar novamente.
Apertaram-se as mãos.
- Até amanhã. - As feições rubicundas de Anderson abriram-se num largo sorriso, e o aperto de sua enorme mão foi fraternal.
- Alerte seus homens que meu filho está na fortaleza. - Hal reforçou com uma entonação mais dura. - No calor da batalha, cuide para que não cometam enganos.
Mal deu as ordens para colocar o Seraph em curso para prosseguir em seu bloqueio à ilha, e retornou de imediato à sua cabina. Cortou os liames do pacote de cartas que Anderson lhe trouxera de Bombaim. Reconheceu a caligrafia comprida e fina de Guy em uma das folhas dobradas e colocou-a de lado para ler depois. Desdobrou a carta de Beatty e franziu o cenho ao lê-la.
A Residência Bombaim
6º Dia de Novembro
Sir Henry,
O prazer que experimento em me dirigir ao senhor é de certa forma mitigado pelas circunstâncias que tornam esta carta necessária. Para não me alongar muito, descobrimos que minha filha Caroline Beatty está esperando um filho. O dr. Goodwin, o médico da feitoria aqui em Bombaim, avalia a duração da gravidez em três meses. Isso estabeleceria a data da concepção no tempo em que minha família estava alojada em terra, em Boa Esperança. Deve recordar que seu filho, Guy Courtney, encontrava-se conosco na casa de hospedagem.
Estou feliz em poder lhe informar que seu filho, Guy Courtney, comportou-se de uma maneira bastante cavalheiresca nessa questão. Admitiu a paternidade da criança e perguntou se poderia ter permissão para desposar minha filha. Como ele está agora acima da idade de dezessete anos, enquadra-se dentro dos preceitos legais para contrair um casamento. Minha filha Caroline faz dezoito anos na sexta-feira próxima, de maneira que não haverá dificuldade, já que ambos podem ser considerados maiores.
Minha esposa e eu julgamos político dar nossa permissão para o casamento, e a data foi marcada para a próxima sexta-feira, mesmo dia do aniversário de dezoito anos de minha filha. Portanto é provável que o problema esteja encerrado na época em que esta epístola chegar a suas mãos.
Tenho condições de prover minha filha com um dote de 500 libras esterlinas. A Companhia colocará uma casa no acantonamento à disposição do jovem casal. Conseqüentemente, suas imediatas necessidades serão levadas em conta. Sem dúvida, o senhor ajustará prover seu filho com uma importância adequada para lhe complementar o salário, e usará de sua considerável influência junto ao Conselho da Honorável Companhia para fazê-lo progredir na carreira.
A esse respeito, posso informar que Guy acomodou-se bem em seu novo emprego, e tem recebido comentário favorável com relação a seus esforços por parte do governador Aungier.
Minha esposa se junta a mim em lhe assegurar nossa mais alta estima e consideração. Seu criado, Thurston Beatty
Hal amassou a carta e olhou com uma carranca para a missiva de Guy, que jazia fechada sobre a mesa.
- O idiota! Reclamou o pássaro derrubado pela flecha de Tom. Que demônio o possuiu?
Rasgou a carta de Beatty em tiras e jogou-a pela vigia da cabina. Então, com um suspiro, voltou a atenção para aquela de Guy.
Não acrescentava nada ao que Beatty já escrevera, exceto para expressar a alegria enlevada de Guy por sua boa sorte em ter recebido a mão da adorável Caroline.
- Seu irmão Tom fez toda a escavação para desenterrar esse diamante para você - Hal resmungou, com desgosto, e pensou em mandar chamar Tom, para informá-lo dos frutos de seus esforços e para descarregar seu desgosto sobre o gêmeo mais velho. Então, suspirou de novo. - Para quê? - perguntou a si mesmo. - O fato está consumado e todas as partes parecem bastante felizes com o desfecho, embora ninguém deva ter querido saber o ponto de vista da noiva quanto ao assunto. Embolou a carta de Guy, jogou-a pela vigia de popa e ficou a observá-la boiar para longe e por fim afundar sob a superfície.
Naquele instante, ouviu-se uma batida discreta na porta da cabina, e um marujo exclamou através do painel:
Peço desculpas, capitão, mas o sr. Tyler lhe envia seus cumprimentos, e Flor do Mar está à vista bem a vante.
Os problemas domésticos de Hal submergiram no mesmo instante, tão profundamente como a missiva de Guy. Ele afivelou o cinto da espada e correu para o convés.
O Seraph conduziu o Minotauro em fila, a ré, através da entrada da baía. Ned Tyler detinha o comando do Seraph, pois Hal não se encontrava a bordo. Quando as duas grandes naus se colocaram dentro do raio de ação, abriram um pesado bombardeio contra as posições árabes entre as palmeiras e nas muralhas do forte. Os meses de treinamento que os atiradores tinham suportado mostravam-se agora de boa vantagem, e mesmo que em número fossem bastante inferiores, seus disparos eram rápidos e precisos. Confiante na inaptidão demonstrada pela artilharia árabe, Ned levou o Seraph perto o bastante para bordejar o recife exterior. Estava sob o raio de ação dos pesados canhões nas muralhas do forte, mas o fogo do Seraph arrancara nacos do coral das ameias e desbaratara os defensores. Seus disparos de retorno eram espasmódicos e erráticos. Os navios de combate estavam bem debaixo de suas armas e, embora umas poucas balas de pedra que lançavam caíssem bem próximas para lançar borrifos sobre os conveses do Seraph, a maioria voava para o mar.
O acampamento árabe entre os palmeirais situava-se dentro da mira dos longos mosquetes dos dois navios, e metade dos disparos era direcionada para as choças de sapé e abrigos nos beirais. As armas haviam sido carregadas com metralha, e as balas de chumbo varriam a multidão de homens e mulheres que corriam em disparada para as muralhas protetoras do forte. Deixavam renques de corpos morenos a jazerem pela trilha, como espigasMe milho por trás dos ceifadores.
Depois da primeira passagem, os navios mudaram o curso em sucessão e, em seguida, voltaram atrás novamente, tão perto quanto o recife permitia, a artilharia incessante. Já então os atiradores árabes tinham se recobrado em muito de sua inicial confusão. Suas balas de pedra caíam perto do Seraph, e uma atravessou o frágil parapeito de madeira. Decepou ambas as pernas de um dos rapazes encarregados da munição, quando corria pelo corredor vindo do paiol, carregado com os sacos de seda de pólvora negra.
Ned olhou para o torso sem pernas do infeliz rapaz que se retorcia numa poça de sangue perto de onde ele estava, ao leme. O moribundo chamava pela mãe em uivos dolorosos, mas os dois ramos de sua artéria femoral esguichavam como válvulas abertas, e ninguém poderia afastar-se de seus deveres para lhe prestar socorro. A idéia de uma retirada para além do alcance dos canhões do forte, a fim de evitar maiores perdas, não ocorreu a Ned. Hal lhe dissera que mantivesse o navio próximo de terra, em combate às baterias da praia e aos árabes refreados na fortaleza, por tanto tempo quanto pudesse. Ned não se furtaria à tarefa, embora lamentasse a perda de um de seus bravos camaradas.
Do extremo oposto da ilha, Hal ouvia a artilharia controlada e regular dos dois navios, e enxugou o suor da face com as costas de seu braço.
- Gente valente!
Elogiou a determinação de Ned, e então voltou toda a sua atenção em desembarcar o resto dos homens do Yeoman. Os botes seguiam pela passagem que ele marcara no recife tantas semanas antes. As quatro pinaças lotadas de homens deslizavam pesadas pela água. Mal havia espaço para se mexerem.
Quando a quilha de cada barco tocou a areia, os marujos saltaram com água pelos joelhos para a lagoa de águas claras e mornas e vadearam até a praia. Daniel Grande e Alf Wilson os lideraram em colunas e os conduziram para longe da areia até o abrigo dos palmeirais.
Mesmo com todos os homens que Anderson pudera dispor do Yeoman, Hal contava com menos de quatrocentos combatentes em sua força de terra para enfrentar a horda de al-Auf. O inimigo poderia ser mais de um milhar, ou dois, Hal estimava, mas até então não houvera confronto no desembarque. Parecia que o bombardeio desencadeado pelo Seraph e pelo Minotauro produzira o efeito desejado de mandar todos os defensores para dentro da proteção da fortaleza.
O último batelão de marujos desembarcou e o grupo seguiu em passo marcial pela praia, todos pesadamente carregados de armas, recipientes com pólvora e cantis, pois lutar naquele calor seria coisa de deixar qualquer um sedento. Hal observou os botes vazios voltarem com os remadores em direção ao Yeoman, que estacionara ao largo a não mais que meia milha do exterior do recife, e então acompanhou a coluna em marcha para a floresta.
A ordem de marcha havia sido cuidadosamente planejada. Daniel Grande tinha o comando da vanguarda com batedores lançados à frente para evitar que caíssem numa embwscada. Havia mosqueteiros nos flancos de ambos os lados da coluna. Hal detinha o comando do corpo Principal de homens a seu próprio encargo.
A fortaleza, no extremo norte, encontrava-se a menos de cinco quj. lômetros da enseada na qual tinham desembarcado, e Hal impulsionou os combatentes com firmeza, mantendo a coluna num trote pelo solo fofo e arenoso. Não haviam coberto dois quilômetros quando se ouviu uma saraivada de disparos de mosquetes na floresta, e gritos e berros pavorosos. Hal avançou depressa, receoso de que Daniel Grande tivesse sido pego numa armadilha, e temeroso do que pudesse encontrar Nove árabes mortos estavam esparramados dos dois lados da larga trilha, abatidos pela coluna avançada, e os sons do combate dissipavam-se entre as árvores, enquanto os inimigos restantes fugiam em direção ao forte, com os marujos de Daniel em furiosa perseguição. Um único marinheiro estava sentado com as costas apoiadas no tronco de uma palmeira, enrolando uma tira de pano em torno do ferimento de bala de mosquete em sua coxa. Hal destacou um homem para ajudá-lo a voltar à praia a fim de ser recolhido pelo Yeoman, e, em seguida, correu atrás de Daniel Grande. Os tiros ainda ecoavam e ribombavam no extremo oposto da ilha e, agora que se encontravam mais próximos do forte, podiam ver as nuvens de fumaça dos canhões a volutear em rolos densos sobre os topos das árvores, não muito distante dali.
- Ned Tyler está impedindo os filhos do Profeta de rezar - resmungou Hal, o suor a lhe escorrer da face para a barba e ensopando sua camisa como se ele estivesse debaixo de uma cachoeira.
Havia vários minutos já vinham sendo assolados por um fedor pavoroso que se tornava cada vez mais insuportável com o calor úmido da floresta. Quando irromperam em campo aberto, Hal estacou tão de repente que os homens que o seguiam chocaram-se contra suas costas. Mesmo com sua pressa e urgência, foi-lhe impossível não se impressionar com os horrores do campo de execução de al-Auf. Os cadáveres enegrecidos pelo sol, que pendiam de tripés, mostravam-se grotescamente inchados com os ases do próprio ventre, e uns poucos haviam estourado como fruta podre. Uma nuvem iridescente e movediça de moscas azuis os recobria.
Hal não conseguiu conter o impulso de procurar, pelas fileiras de corpos, um menino com brilhantes cabelos vermelhos, e sentiu um influxo de alívio a lhe subir pela boca do estômago revoltado quando não achou o que buscava. Forçou-se a seguir por entre as figuras dependuradas e a ignorar as nuvens de insetos zumbidores que se lhe amontoavam em torno e lhe roçavam as faces.
Aboli e Tom esperavam por ele na linha das árvores do lado oposto da clareira.
- Podemos prosseguir agora? - Tom berrou de uma distância de trinta passos.
Ele, Aboli, e os três homens que os acompanhavam estavam vestidos com túnicas árabes e suas cabeças eram cobertas. Hal viu que a face de seu filho estampava determinação e impaciência, e que seu sabre estava desembainhado na mão direita. Sentiu outra ponta de tristeza por ter cedido à insistência de Tom e permitido que o rapaz viesse com Aboli. Apenas uma ponderação o influenciara: Tom era o único entre os combatentes que estivera nas muralhas e sabia onde elas poderiam ser escaladas por um pequeno grupo de homens determinados. Também sabia em que cela Dorian era mantido prisioneiro. Vestidos como corsários, tentariam chegar a Dorian e protegê-lo da luta e da matança que se seguiria à tomada do forte.
Hal agarrou o braço de Aboli e sibilou:
- Não tire os olhos de Tom. Não o deixe cometer alguma estupidez. Dê-lhe cobertura o tempo todo.
Aboli olhou para trás, para Hal, com olhos mortiços, e não se dignou de responder. Hal insistiu:
- Não o deixe começar a escalada até que tenhamos arrastado cada homem no topo da muralha para longe do lado leste.
Aboli resmungou baixinho, num tom feroz:
- Faça seu trabalho, Gundwane, e eu farei o meu.
- Vá em frente, então. - Hal o empurrou e ficou a observar o pequeno grupo que avançava, Tom e Aboli a correrem ombro a ombro na dianteira. Mudaram de direção e contornaram a floresta para chegar ao lado extremo da fortaleza.
Assim que desapareceram, Hal ergueu os olhos para o topo das muralhas que se mostravam acima das copas das árvores, e apurou os ouvidos para escutar o som do bombardeio. Embora aquela ponta da ilha estivesse envolta em espessas nuvens de fumaça, e o gosto de pólvora queimada lhe ardesse no fundo da garganta, o estrondo dos canhões diminuía. Ned levava o Seraph e o Minotauro para águas mais seguras.
Hal olhou para trás, por sobre o ombro, e viu que, mesmo depois da longa e extenuante corrida pela floresta, a coluna de marujos vinha logo atrás, com poucos extraviados. Conduziu-os em frente e encontrou Daniel Grande à espera, na fímbria da floresta.
A cerca de 150 passos de campo aberto, as brancas muralhas do forte se erguiam em quinze metros de'altura. Os portões em arco estavam fechados com pesadas travessas de mogno reforçadas por trancas de ferro. Não havia defensores à vista nas ameias. Deviam todos estar na muralha oeste, de frente para o mar. Enquanto os últimos tiros do bombardeio feneciam, Hal ouviu os gritos agudos e distantes dos atiradores a saudarem a retirada do esquadrão de navios atacantes.
- Nós o temos em desvantagem - Hal disse a Daniel Grande mas precisamos trabalhar rápido se quisermos manter o elemento surpresa.
Atrás dele, os homens da coluna ainda chegavam, curvados sob suas cargas. Suados e doloridos, deixavam-se cair sentados e pegavam seus cantis para saciar a sede em goles ávidos. Hal caminhou entre eles, exortando-os a se animar e a tomar suas posições junto à fímbria das árvores.
- Mantenham as cabeças baixas. Fiquem fora da vista. Empenhem-se no melhor de si, mas não atirem até que eu dê a ordem!
As equipes que carregavam as cinco pesadas barricas de pólvora tinham ficado na retaguarda da coluna, mas por fim chegaram, cambaleantes, com cada uma das barricas de 25 quilos penduradas num varal entre dois homens. Pararam sob as palmeiras, e Daniel começou a preparar os estopins.
Hal cortara as mechas de combustão lenta tão curtas quanto se atrevera, e aquele era um assunto delicado, pois nenhuma das duas partes do estopim queimaria na mesma velocidade. Socaram cada extensão do estopim com o cabo de uma faca para tentar espalhar o explosivo igualmente, e, em seguida, enfiaram uma mecha no orifício de cada barrica. Agora, todo segundo era precioso e não poderiam perder tempo em certificar-se de que cada estopim estivesse perfeito. Se um falhasse, haveria quatro outros para detonar os explosivos.
- Pronto? - Hal ergueu os olhos de sua tarefa.
Daniel Grande adaptou o estopim final no lugar, com uma pequena porção de breu macio.
- Prontos como sempre estaremos.
- Acenda os pavios de combustão lenta! - ordenou Hal, e Daniel bateu na pederneira com o bastão de aço.
A fagulha acendeu a mecha. Um após outro, eles encostaram os pavios de combustão lenta à chama e os viram fumegar e queimar.
- Barricas nos ombros! - Hal ordenou, e cinco homens descansados, cada qual escolhido por sua força, levantaram-se de onde estavam acocorados e se aproximaram.
Outra fileira postou-se atrás deles, pronta para correr em frente e pegar uma barrica caso algum dos portadores fosse abatido pelo fog° de mosquete do inimigo atocaiado nas muralhas do forte.
Hal sacou sua espada e caminhou até a orla da floresta. Espiou pelo campo aberto. Não havia ainda sinal de quaisquer defensores nas muralhas Respirou fundo e encheu-se de coragem.
Em silêncio, camaradas! Sigam-me!
Sem um grito ou brado, correram em frente num só grupo. Os pés nus dos marujos curvados sob o peso da carga afundavam-se no solo arenoso a cada passo, mas todos cobriram a distância com rapidez e estavam quase às portas da cidadela quando se ouviu um berro e um tiro vindos das ameias acima dos portões. Hal divisou uma cabeça com turbante na abertura de pedra e o cano de um arcabuz fumegante apontado para baixo. O alcance era curto e a bala acertou em cheio o peito nu de um dos marujos que corriam. O homem esparramou-se na areia e a barrica rolou de seu ombro.
Daniel Grande corria apenas a um passo atrás dele, e ergueu a barrica como se fosse um quartilho. Com ela enfiada debaixo do braço, saltou sobre o morto e foi o primeiro a chegar aos portões. Deixou cair a barrica contra os gonzos e berrou aos homens que se aproximavam:
- Aqui! Tragam as outras aqui!
Assim que o primeiro marujo chegou, ofegante e bufando com o esforço, Daniel Grande arrancou a carga dele.
- Volte para as árvores! - resmungou e depositou a barrica ao lado da outra. - Bom trabalho, rapaz. - Apanhou a próxima barrica e colocou-a numa pirâmide sobre as duas primeiras.
Já a esse tempo, uma multidão de árabes ululantes se aglomerava no topo das ameias, e uma fuzilaria de mosquetes varria a área, enquanto os homens de Daniel tentavam alcançar a cobertura da linha das árvores. Outro fora abatido e jazia a gemer no campo aberto, a poeira saltando em jorros em torno dele, pois os mosqueteiros na muralha tentavam liquidá-lo. Das árvores, os marujos ali escondidos abriram fogo. As balas de seus mosquetes cravavam-se nos blocos de pedra, e uma chuva de fragmentos de coral caía sobre os homens agachados ao pé dos portões maciços.
Hal ajoelhou-se ao lado de Daniel Grande, que colocava a quinta barrica de pólvora no topo da pilha. Soprou a ponta fumegante da mecha na mão, e o pavio avermelhou-se.
Saia daqui, Danny - disse ao homenzarrão. - Eu cuidarei do resto.
Daniel, porém, tinha outra mecha na mão.
- Peço desculpas, capitão, mas lhe darei uma ajuda para beijar filha do demônio. - Ajoelhou-se ao lado de Hal e encostou o estopim no pavio de uma das barricas de pólvora.
Hal não perdeu tempo em discussões e dedicou-se à mesma tarefa Trabalhando sem pressa, acenderam cada um dos cinco estopins e esperaram para ter certeza de que queimavam por igual.
Já então, metade da guarnição do forte apinhava-se ao longo das muralhas, atirando tão rápido quanto podiam recarregar as armas e com a mira apontada para a fímbria da floresta. Quatrocentos marujos britânicos berravam e incitavam uns aos outros, a dispararem uma saraivada de tiros contra os balestreiros.
Hal e Daniel estavam protegidos do fogo dos homens acima deles pela ligeira saliência sob as ameias, mas tão logo deixassem seu abrigo, estariam totalmente expostos durante o retorno pelo campo aberto. Hal deu uma última olhada aos pavios fumegantes (apenas a uns dois centímetros, se tanto, do orifício de cada barrica) e levantou-se.
- Acho que chegou a hora de sairmos daqui.
- Não vejo razão para demorar, capitão. - Daniel Grande sorriu para ele com as gengivas desdentadas, e os dois se lançaram numa corrida lado a lado pela clareira.
Imediatamente, os tiros dos balestreiros redobraram, e cada árabe nas muralhas voltou seu fogo contra o par de homens a correr. As pesadas balas de chumbo assobiavam por sobre suas cabeças e se afundavam na areia macia a seus pés alados. Das árvores, os marujos gritavam exclamações de encorajamento e revidavam a violenta saraivada de balas dos árabes nas muralhas.
- Seraph! - bradavam. - Vamos lá, Danny! Corra, capitão!
O tempo pareceu transcorrer lento para Hal. Era como se estivesse sob a água, cada passada a dar a impressão de demorar muitos minutos. A linha da floresta parecia afastar-se, e as balas de mosquete voavam ao redor de ambos tão pesadas como granizo.
Então Daniel Grande foi atingido, não uma única vez, mas quase simultaneamente por duas balas. Uma o atingiu no verso do joelho, quebrou o osso, e sua perna dobrou-se sob ele como uma régua de carpinteiro. A segunda o feriu no quadril e lhe arrebentou a cabeça do fémur. Ele desabou na areia com ambas as pernas torcidas e inúteis sob o corpo.
Hal correu umas quatro passadas antes de se aperceber de que estava sozinho. Então, parou e olhou para trás.
- Continue! - Daniel Grande gritou para ele. - Não pode me ajudar. Minhas pernas se foram. - Sua face estava enterrada no chão,e seus olhos e a boca, cheios de areia. Hal girou nos calcanhares e correu f devolta sob uma temPestade de tiros.
- Não! Não! - Daniel Grande berrou, a areia e saliva espirrandode sua boca numa nuvem . - Volte, seu idiota! Volte!Hal o alcançou, se ajoelhou e o segurou pelos ombros. Tentou erguê-lo e se viu travado pelo peso do enorme corpo. Com as pernas inutilizadas, Daniel não conseguia ajudá-lo. Hal respirou fundo, firmou as mãos e, em seguida, puxou-o para cima. Dessa vez, ergueu a metadesuperior do torso de Daniel do chão e tentou colocar o próprio ombro debaixo da axila do velho amigo.
É... inútil! - Daniel gaguejou em seu ouvido, sufocado de agonia ao que os ossos fraturados em seu quadril raspavam um contra o outro. - Vá embora, salve-se!
Hal não tinha fôlego para retrucar e, então, reuniu as últimas de suas energias e se ergueu, todos os músculos e fibras de seu corpo mobilizados no esforço. Sua vista escureceu e uma miríade de fagulhas luminosas fulgurou diante de seus olhos como cometas de luz. Lentamente, porém, o imenso corpanzil de Daniel Grande ergueu-se do solo arenoso e ele apoiou o braço direito em torno dos ombros de Hal. Ficaram imóveis por um longo momento, agarrados, incapaz de mover um pé.
- Você é louco - Daniel Grande murmurou, seus lábios a centímetros do ouvido de Hal. - A pólvora vai explodir...
No alto do balestreiro atrás deles, um mosqueteiro árabe socou uma mão cheia de pólvora negra de grãos grossos do cano de seu arcabuz, e enfiou um trapo por cima. Segurava uma bala entre os dentes. Era um projétil irregular de ferro-gusa macio que ele forjara à mão para se ajustar rusticamente ao cano. Encaixou a bala no cano e usou a longa vareta de madeira para empurrá-la para dentro. Em seguida inverteu a arma e pousou o cano com a boca para fora da fenda de pedra. Com dedos trêmulos, despejou uma fina camada de pólvora na caçoleta de escorva, fechou a cavidade com a placa de aço e puxou o cão para armar o gatilho.
Quando ergueu o mosquete ao ombro e espiou pelo cano longo, viu que, lá em campo aberto, os dois infiéis ainda procuravam inutilmente ficar de pé, agarrados um ao outro como amantes.
Mirou cuidadosamente em suas cabeças, que estavam bem próxi-mas'e então puxou o duro gatilho. O cão saltou para a frente e a pederneira arrancou uma chuva de fagulhas do aço. A pólvora na caçoleta mcendiou-se numa nuvem de fumaça branca e, por um instante, parecia que o arcabuz iria negar fogo, mas então, com um berro ensurdecedor, saltou em suas mãos, jogando a ponta do cano para cima.
O projétil malhado de ferro-gusa partiu e girou no ar tão logo saiu pelo cano. Voou para onde Hal e Daniel Grande se arrastavam com imensa dificuldade. Fora apontado para a cabeça de Hal, mas caíra tanto em inclinação que quase se perdeu completamente. Ao final, atingiu-o com um baque surdo do lado do tornozelo, arrancou-lhe o calcanhar e lhe esmagou os frágeis ossos do pé esquerdo.
Com o pé destroçado, Hal caiu sob o peso de Daniel Grande, e os dois desabaram, lado a lado, deitados no chão.
- Corra! Em nome de Deus! - Daniel Grande berrou na face de Hal. - As barricas vão explodir a qualquer momento!
- Não posso! - Hal exclamou, atordoado de dor. - Estou ferido! Não posso me levantar!
Daniel Grande soergueu-se sobre um dos cotovelos e olhou para o pé de Hal. Viu de imediato que o ferimento era incapacitante, e, em seguida, relanceou os olhos para a pirâmide de barricas de pólvora sob o arco do portão, a apenas trinta metros de onde se encontravam. Um dos estopins aproximava-se do buraco e faiscava na rolha de breu macio. Estava a ponto de explodir.
Daniel Grande envolveu Hal num abraço de urso e rolou por sobre ele, enterrando-lhe a face na terra macia, cobrindo-o com seu próprio corpo imenso.
- Solte-me, maldito! - Hal se debateu debaixo dele, mas, naquele instante, a barrica inferior explodiu e acionou uma explosão concomitante e instantânea de cada uma das outras quatro empilhadas em seu topo.
Cento e vinte e cinco quilos de pólvora negra foram consumidos num único lampejo, e a explosão foi cataclísmica. Arrancou as pesadas portas de seus gonzos e lançou suas travessas despedaçadas pelo pátio adiante. A sustentação de pedra do arco desabou e trouxe consigo as ameias, que esboroaram numa avalanche de blocos de coral, argamassa e poeira. Uma vintena ou mais de árabes nas muralhas foi tragada pelo desabamento, esmagada e enterrada nas ruínas.
Fumaça e poeira subiram a setenta metros numa coluna reta para o ar e então se revolveram a se torcer como uma nuvem de tempestade. A onda de choque varreu a clareira em frente às muralhas e atingiu a fímbria da floresta, fazendo com que galhos se partissem, vergando as palmeiras e arrancando suas frondes como os ventos de um furacão.
Daniel Grande e Hal jaziam deitados em pleno trajeto da explosão, desabou sobre os dois numa onda de poeira e fragmentos a rolar sobre si mesma. Sugou-lhe o ar dos pulmões e os pisoteou como as atas de uma manada de búfalos desembestados. Hal sentiu seus ouvidos estourarem, e o choque repercutiu-lhe no cérebro. Seus sentidos se esvaíram, e ele pareceu ser arremessado a um espaço negro, com estrelas a fulgurarem em sua cabeça.
Voltou a si lentamente daquele longínquo espaço tenebroso, e seus ouvidos danificados zumbiam e cantavam com a lembrança daquela terrível explosão, mas mesmo assim ele ouviu os gritos débeis de seus marujos quando partiram para o ataque, vindos da floresta. Num grupo cerrado, correram e passaram por onde ele jazia e alcançaram a passagem destruída. Escalaram-na com pés e mãos, lançaram-se sobre as pilhas de ruínas que bloqueavam o caminho, em seguida abriram caminho através da poeira e da fumaça e invadiram o pátio do forte. Com as adagas nas mãos, aos uivos como um bando de cães de caça quando o alce se encontra acuado, caíram sobre os aturdidos defensores numa orgia selvagem, completamente tomados pela luxúria da batalha.
Cego pela poeira, Hal tentou sentar-se, mas havia um peso imenso em seu peito que o sufocava e o comprimia no chão. Tossiu, engasgado, e pestanejou para limpar a areia dos olhos lacrimosos. Embora agarrasse e empurrasse febrilmente o pesado corpo inerte sobre o seu, não tinha forças para livrar-se.
Gradualmente, a visão de Hal clareou e o ronco em seus ouvidos diminuiu para um zumbido de um enxame de moscas aprisionadas em seu cérebro. Viu a face de Daniel Grande sobre a sua: seus olhos estavam arregalados e fitavam o nada, e sua cabeça rolava de um lado para outro quando Hal tentou se soltar. Sua boca desdentada jazia aberta, escancarada, e a língua pendia solta. Uma mistura de seu sangue e saliva pingava quente sobre a face de Hal.
O horror de tudo aquilo o revoltou, e ele fez um esforço supremo e conseguiu escorregar de sob o enorme corpo sem vida. Atordoado, ergueu-se para uma posição sentada e olhou para o outro homem. Para lhe servir de anteparo, Daniel Grande havia recebido o impacto total da explosão. Ela lhe arrancara as roupas, de maneira que agora estava nu exceto pelas botas e o cinto da espada. A areia em alta velocidade lhe consumira a pele das costas e das nádegas, de tal forma que ele Parecia um cervo recém-esfolado. Pedaços de pedra e cascalho tinham rascado suas costas e os flancos, expondo os ossos brancos de suas costelas e da espinha quebrada.
- Danny? - Hal chamou. - Danny? Pode me ouvir?
A pergunta era inútil, nascida de seus próprios sentidos aturdidos Ele tentou se aproximar, mas descobriu que suas próprias pernas não obedeciam à sua vontade. Olhou para baixo. Era a única parte de seu corpo que não fora protegida pelo de Daniel. Ambas tinham as roupas em tiras até as ceroulas, e Hal viu que a carne estava mastigada como se apanhada pelos dentes de aço de um cabrestante. Fragmentos de osso branco apontavam por entre a massa sangrenta. Não sentia dor, e sua mente não fazia conexão com a evidência diante de seus olhos. Não conseguia acreditar que tivesse perdido ambas as pernas. Negou-se a continuar a ver tamanha destruição.
Hal usou os cotovelos para arrastar-se para mais perto de Daniel Grande; enterrou-os na areia fofa, e suas pernas destruídas deslizaram atrás de si com o impulso. Deitou-se ao lado do corpanzil e o abraçou. Embalou-o gentilmente como certa vez embalara seus filhos crianças para dormir.
- Vai ficar tudo bem. Passaremos por isso juntos, como sempre fizemos - murmurou. - Vai ficar tudo bem, Danny.
Não se deu conta de que estava chorando até que viu as próprias lágrimas a escorrerem pela face de Daniel voltada para cima, como gotas cálidas da chuva tropical lavando os grãos brancos de areia que lhe cobriam os glóbulos oculares estáticos.
O dr. Reynolds, ao sair do arvoredo com seus dois assistentes, encontrou-os deitados ali.
- Cuide de Danny primeiro - Hal pediu.
- Deus já o tomou a seus cuidados - o médico respondeu gentilmente e, com a ajuda dos dois outros homens, ergueu Hal para a maca, as pernas dependuradas.
Tom olhou para trás, para a baía. De onde se encontrava, no topo de uma duna branca, podia ver os dois navios de velas redondas a uma milha além do recife: o gracioso Seraph na liderança, e o Minotauro, com suas velas negras, parecendo ameaçador e poderoso. Enquanto ele os observava, fizeram uma manobra de mudança de curso em sucessão e voltaram para o sul, para assumir seu posto de bloqueio à boca da baía.
Tom ergueu-se sobre um joelho e firmou o olhar nas muralhas do forte, a duzentos passos de distância. A pesada névoa da fumaça dos canhões se dissipava, soprada pela monção, e flutuava agora na direção do mar. O topo da muralha era uma fileira de centenas de cabeças, faces escuras barbadas debaixo de seus keffiya e turbantes. Os defensores brandiam seus mosquetes e dançavam nos parapeitos, em triunfo. Tom podia ouvir a algazarra excitada de suas vozes e mesmo compreender alguma coisa dentre os insultos gritados e dirigidos aos dois navios ingleses:
- Possa Deus enegrecer a face do infiel!
- Deus é grande! Ele nos deu a vitória!
Tom começou a se levantar.
- Alguma coisa saiu errada. Já deveriam ter explodido os portões a esta hora.
Aboli estendeu a mão e segurou-o pelo pulso. Puxou-o para o seu lado.
- Calma, Klebe! Algumas vezes a parte mais cruel da batalha é o esperar.
Então, ouviram disparos de mosquetes que vinham do lado extremo da fortaleza, e todas as cabeças árabes ao longo das ameias se voltaram para aquela direção. Seus gritos e fanfarronadas se desvaneceram.
O infiel está atacando os portões! - uma voz esgoelou em árabe, e houve uma imediata debandada.
Mesmo os atiradores desertaram de seus canhões e correram pelo passadiço para confrontar sua nova ameaça. Em segundos, os parapeitos estavam desertos, e Tom saltou em pé novamente.
Agora é a nossa chance! Sigam-me!
Aboli puxou-o para baixo outra vez.
- Paciência, Klebe!
Tom debateu-se para se livrar de seu aperto.
- Não podemos esperar mais. Temos de chegar a Dorry!
Aboli meneou a cabeça.
- Mesmo você não consegue lutar com mil homens sozinho.
Tom olhou para a seteira no topo da muralha onde sabia que Dorian estava encarcerado.
- Ele deveria ter o bom senso de fazer um sinal, de nos mostrar onde está. Deveria acenar com a camisa ou com alguma outra coisa.
Então, mais que depressa, procurou desculpas para o irmão: - Mas ele é apenas uma criança. Nem sempre sabe o que fazer.
Do lado extremo do forte, o som sincopado dos mosquetes aumentou num crescendo para uma furiosa fuzilaria.
- Escute, Klebe - Aboli o conteve. - Danny e seu pai estão colocando as cargas sob os portões. Agora não vai demorar.
Então, a explosão ensurdeceu-lhes os ouvidos, e o estrondo os aturdiu. Uma coluna de poeira e fumaça avançou para o céu e fervilhou em sua crista, para em seguida espalhar-se num cúmulo imenso. A nuvem de poeira era espessa devido ao cascalho arremessado e aos pedaços de rocha e fragmentos em chama que riscavam trilhas de névoa contra o azul. Tom viu um canhão de bronze ser lançado a uns trinta metros no ar. Corpos humanos e membros decepados eram jogados ainda mais alto, junto com pesadas traves de madeira e outros destroços.
Antes que Tom pudesse recobrar-se do espanto, Aboli estava de pé e saltava para o campo aberto em direção ao forte. Tom levantou-se e saiu correndo atrás dele, mas os panos de sua túnica o atrapalhavam e ele não conseguiu alcançar Aboli antes que chegasse ao pé da muralha.
Aboli ajoelhou-se e fez um apoio com os dedos entrelaçados. Sem parar, Tom colocou o pt no suporte improvisado e Aboli o impulsionou para o alto, para os ramos de uma figueira morta cujas raízes se enterravam entre as juntas dos blocos de pedra. Tom subiu como um macaco: nem a bainha da espada pendurada a roçar contra suas pernas, nem o par de pistolas enfiadas em seu cinto o retiveram. Aboli e os três outros homens o seguiram para cima, mas Tom chegou ao topo do parapeito na frente deles. Escalou a abertura onde a parede começava a desmoronar e jogou as pernas por sobre o topo.
Uma espantada face morena o confrontou. Um dos árabes não se afastara de seu posto, mesmo com todo o tumulto do assalto aos portões. Com um grito de surpresa, recuou diante da súbita aparição de Tom e tentou erguer o mosquete, porém os percussores curvos de sua arma enroscaram-se numa dobra de sua túnica e, enquanto ele lutava para livrá-loS o sabre voou da bainha de Tom com se fosse um passarinho. Seu olpe pegou o homem na garganta e lhe cortou as cordas vocais, de modo que seu próximo grito morreu no nascedouro. O árabe cambaleou para trás e caiu, braços a se agitarem como asas, por quinze metros até o pátio.
Enquanto Aboli e os três marujos escalavam as ameias, Tom relanceou os olhos pelas muralhas e pelo pátio do forte. Através dos espessos rolos de poeira e fumaça, viu as formas indistintas dos árabes a cambalearem entre as ruínas da passagem. Ao longo dos passadiços, no topo do parapeito, uma multidão chorosa lutava para livrar-se dos destroços fumegantes que haviam sido os portões da fortaleza.
Então, pela passagem destruída, um exército ululante de marinheiros ingleses avançou. Passou por sobre os destroços e correu para as rampas, ã caça dos árabes que procuravam alcançar proteção. Ouviram-se uns poucos tiros dispersos de mosquete, e Tom viu um marujo cair de costas pela rampa. Então, os dois lados oponentes se defrontaram, já agora uma massa confusa de homens em luta, gritos e golpes a ecoarem num ruído pavoroso.
Tom procurou por seu pai na multidão. Normalmente, a altura e a barba preta o distinguiam mesmo na pior aglomeração, mas Tom não conseguiu localizá-lo. Não podia, entretanto, perder tempo numa busca mais longa.
- Por aqui! - berrou e conduziu o grupo ao longo do passadiço para a rampa mais distante do portão. Suas túnicas os disfarçavam, e os árabes por ali os deixaram passar sem um segundo olhar.
Tom desceu a rampa numa corrida e chegou a meio caminho do chão sem problemas. Dali, um portal em arco se abria para o interior da cidadela.
Dois guardas estavam na entrada. Um se deu conta dos olhos claros de Tom e de suas feições européias, então ergueu a cimitarra acima da cabeça.
Ferenghi! - gritou e desferiu um golpe para a cabeça de Tom com a lâmina recurva.
Tom abaixou-se e reagiu com uma investida firme acima da linha da cintura que colheu o peito do árabe. Ao retirar sua lâmina, o ar dos Pulmões perfurados do guarda saiu num assobio pelo ferimento, e o homem caiu de joelhos. Aboli matou o outro guarda também rapidamente. Em seguida os dois saltaram sobre os corpos e correram para a estreita passagem escura que se entrevia adiante.
- Dorry! - Tom berrou. - Onde está você? - Afastou os panos da face e tirou o turbante da cabeça. Não precisava mais do disfarce e queria que Dorian o reconhecesse. - Dorian! - gritou outra vez. Sua voz ecoou estranhamente pela passagem, seguida por gritos selvagens numa balbúrdia de diferentes idiomas.
Pela extensão da passagem, de ambos os lados havia entradas para uma dúzia ou mais de celas. As portas originais deviam ter apodrecido havia meio século, pois tinham sido trocadas por outras de madeira crua e barras de ferro. Tom viu rostos ossudos e faces claras barbadas a espiarem pelas aberturas, mãos em garra a avançar em sua direção num gesto de súplica. Percebeu de imediato que eram os prisioneiros dos navios capturados por al-Auf. Dorian devia estar entre eles, e seu ânimo soergueu-se.
- Dorian!
Uma voz em inglês respondeu:
- Jesus o ama, senhor, rezamos por sua vinda.
Aboli ergueu a pesada barra de tranca de seus suportes, a porta se abriu e os prisioneiros forçaram sua passagem para fora da minúscula cela para o corredor. Tom quase se viu prensado pela onda de gente rasgada e fedorenta, e lutou para desvencilhar-se. Correu para espiar as outras celas.
- Dorian! - bradou, acima da algazarra. Tentava adivinhar em qual das celas vira o irmão, mas estava incerto de sua localização.
Agarrou um dos prisioneiros libertos e gritou com ele, sacudindo-o pelos ombros:
- Há um menino branco aqui, de cabelos ruivos?
O homem o encarou como se ele fosse louco e então se livrou com um safanão, correndo em seguida para se juntar ao fluxo de prisioneiros libertados que seguiam em debandada para o pátio. Tom chegou ao fim da passagem e à última cela. A porta estava entreaberta e ele entrou no minúsculo cômodo de paredes de pedra. Estava vazio. Havia um catre de folhas secas de palmeira contra a parede, mas nenhuma mobília. O sol se infiltrava através da seteira aberta na parede do fundo, e Tom caminhou até lá em poucos passos. Olhou para fora, para o retalho da baía e para os dois navios estacionados ao largo.
- É esta - murmurou. Saltou para o degrau abaixo da seteira e enfiou a cabeça pela abertura. O cipó crescia do lado de fora da muralha, quase tão perto que poderia ser tocado. - Esta é a cela onde mantinham Dorian. Mas onde está ele agora?
Desceu do degrau e olhou pela cela vazia. Argolas de ferro estavam cimentadas nos blocos de pedra, nas quais os homens ficavam acorrentados. As paredes eram cobertas de inscrições, arranhadas no coral macio Podia ler nomes portugueses e datas de cem anos antes, desgastadas e recobertas de musgo e fungos. Havia anotações mais recentes em caracteres árabes, e ele viu uma exortação religiosa, uma linha da sura117 do Alcorão, que reconheceu porque Alf Wilson o fizera decorá-la. "Os setes céus e a Terra e todas as coisas ali existentes proclamam Sua glória". Abaixo, havia uma outra inscrição feita com a fivela de um cinto ou outro metal. Era recente e fresca, em letras alongadas infantis: "DORIAN COURTNEY - 3 DE FEVEREIRO DE 1691".
Ele esteve aqui! - Tom gritou alto. - Aboli, Dorry estava aqui!
Aboli apareceu na soleira, bloqueando-a com seu maciço corpo negro.
- Onde ele está agora, Klebe?
- Vamos encontrá-lo.
Tom parou apenas para se livrar da túnica, que lhe impedia os movimentos, e jogá-la contra a parede. Então, os dois correram juntos pela passagem e para o sol. Os combates ainda eram travados pelo pátio abaixo e sobre as rampas da fortaleza, porém era claro que os defensores estavam em retirada. Centenas tinham escapado através do portão destroçado. Haviam se desfeito de suas armas e corriam para dentro da floresta. Outros estavam encurralados dentro das muralhas. Muitos jaziam de joelhos a implorar por misericórdia, mas Tom avistou outros ainda que preferiam pular dos parapeitos a se defrontar com as adagas inglesas. Com suas túnicas brancas infladas em torno de seus corpos, soltavam berros de horror ao se chocar contra o chão.
Contudo, uns poucos ainda lutavam. Um grupo isolado de cerca de doze homens mantinha o bastião leste aos brados de desafio: "Allah akbar! Deus é grande", mas enquanto Tom observava, os ingleses avançaram sobre eles, abateram-nos a golpes de adagas e lançaram seus corpos por sobre os balestreiros.
Tom procurou desesperadamente por uma figura pequena e uma cabeça avermelhada na confusão, mas não havia sinal de seu irmãozinho. Uma mulher subiu correndo a rampa em direção a ele. Seu véu negro fora arrancado, e sua face estava descoberta. Tom viu que ela era Pouco mais que uma criança. Os longos cabelos negros esvoaçavam em torno de sua face apavorada e seus olhps contornados de kolh eram de quem fosse perseguido por cães de caça.
Nota de Rodapé: Versículo ou capítulo do Alcorão.
Fim da Nota.
A berrarem, entre risadas ex citadas, quatro marujos a seguiam, as roupas ensopadas do sangue dos homens que haviam matado, as faces salpicadas de vermelho, suadas e inflamadas pela luxúria.
Alcançaram a garota no topo da rampa e a jogaram no chão. Três a amarraram às lajes de pedra e, embora ela se debatesse, ergueram-lhe os panos da túnica e expuseram suas esguias pernas morenas e o macio ventre nu. O quarto marinheiro abriu a calça e jogou-se sobre a moça.
- Engraxe a passagem cor-de-rosa para nós - seus colegas o encorajaram.
Tom jamais imaginara alguma coisa tão horrível. Como um noviço da Ordem de São Jorge e do Santo Graal, fora-lhe ensinado que guerrear era nobre e que todos os verdadeiros guerreiros eram galantes. Avançou disposto a intervir, mas Aboli segurou-o pelo braço e o prendeu com garras de ferro.
- Deixe-os, Klebe. É o direito dos vitoriosos. Nosso dever é agora para com Bomvu. - Usava o apelido que dera a Dorian, que significava Vermelho na linguagem das florestas.
- Não podemos permitir uma coisa dessas! - Tom esbravejou.
- Não podemos impedi-los - Aboli retrucou. - Vão matá-lo se tentar. Vamos encontrar Bomvu em vez disso.
A garota soluçava dolorosamente, porém Aboli arrastou Tom pela rampa até o nível do chão.
Naquele canto do pátio, descobriram um labirinto de velhas paredes e portais. Algumas das portas estavam abertas, porém a maior parte era fechada com barras e com janelas cerradas. Dorian podia se encontrar atrás de qualquer uma delas. Tom sabia que seu irmãozinho devia estar apavorado e se sentindo perdido. Tinham de encontrá-lo antes que fosse ferido nà luta e na pilhagem.
- Fique com a parte do fundo - gritou a Aboli, apontando para o terraço coberto. - Eu começarei daqui.
Não olhou para trás, para ver se Aboli lhe obedecera, e correu para a porta mais próxima. Estava trancada. Tentou arrombá-la com o ombro e então recuou e chutou a pesada trava de ferro. A fechadura continuou firme, resistindo às suas tentativas. Tom olhou ao redor e reconheceu um dos gajeiros do Seraph, que descia correndo o terraço com um machado de cabo longo na mão e uma pistola na outra. Seus braços estavam ensangüentados até os cotovelos, e sua expressão, contorcida de excitação pelo prazer da batalha.
Charley! - Tom lhe gritou, e mesmo entre as brumas da loucura do combate, o homem o escutou. - Derrube esta porta.
Charley sorriu ao convite para mais destruição.
- para trás, Tommy, meu camarada - ele gritou e avançou para a porta.
Com duas potentes pancadas do machado, arrebentou os painéis e arrancou a porta de seus gonzos. Tom chutou o resto da madeira do caminho e saltou em frente. Descobriu-se num labirinto de pequenos cômodos e corredores. Correu adiante, a olhar em cada quarto por onde passava. Era evidente que tinham sido abandonados rapidamente: camas reviradas e roupas abandonadas estavam por toda parte, em confusão.
De repente, ele ouviu um baque surdo sobre a cabeça e ergueu os olhos para uma escada quase a cair no fundo da passagem. Soava como se alguém tentasse escapar de um quarto trancado. Talvez fosse Dorry! Seu coração saltou no peito. Sem outro pensamento, Tom correu para a escada e subiu os degraus de dois em dois. Chegou ao topo e encontrou uma pesada porta aberta, a enorme chave de ferro ainda na fechadura. Entrou num comprido quarto estreito. As janelas estavam fechadas, e o cômodo, na obscuridade.
- Dorry! - gritou e correu os olhos ao redor rapidamente. Viu de imediato que não era uma prisão. Ao longo da parede oposta às janelas fechadas, havia um conjunto de pequenos baús de madeira. Eram muito semelhantes aos baús que haviam capturado do caíque de al-Malik, aqueles que continham o dinheiro do resgate de Dorian. Percebeu que aquele devia ser um dos depósitos de al-Auf, provavelmente um onde guardava seus butins mais valiosos.
Quatro dos baús estavam abertos, as tampas jogadas para trás. Mesmo com sua preocupação com o irmão, Tom se viu fascinado pelo conteúdo que eles revelavam. Reconheceu os sacos típicos das moedas árabes que os recheavam. Pegou um deles e o sopesou na mão. O peso e o formato das moedas através do pano dissipavam quaisquer dúvidas que ele pudesse ter.
Ouro - murmurou.
Percebeu então que alguém deixara um alforje de couro no chão de Pedra, ao lado do baú, parcialmente cheio de sacos de ouro. Tom devia ter interrompido alguém no ato de enchê-lo, antes que tal pessoa empreendesse sua escapada da fortaleza sitiada. As batidas que escutara haviam sido dos baús sendo abertos.
Quem quer que fosse poderia ainda se encontrar ali. Enquanto constatação o perpassava, Tom ouviu o escorregar de passos leves nas lajes de pedra da porta, atrás de si. O som o galvanizou, e ele virou-se para a soleira.
Al-Auf se escondera atrás da porta aberta quando ouvira os passos velozes de Tom a subirem as escadas, e, ao voltar-se, Tom o reconheceu no ato. Vira-o no convés do Minotauro quando o Seraph cercara o corsário. Era mais alto do que Tom havia pensado, e seus olhos de predador nas órbitas profundas, escuros e ferozes como os de um abutre. Sua cabeça estava nua, não usava turbante. As grossas madeixas negras entrelaçadas de fios grisalhos, caíam-lhe até os ombros e se misturavam aos cachos da barba. Seus lábios estavam repuxados num sorriso selvagem quando ele ergueu a pistola na mão esquerda e mirou a cabeça de Tom.
Por um fugidio momento, Tom olhou bem dentro da boca escancarada do cano e, em seguida, para os olhos brilhantes de al-Auf a encará-lo pela mira da pistola. Com um estalar metálico que soou ensurdecedor no confinamento do pequeno quarto, o percussor caiu e a pederneira faiscou num bafo de fumaça branca. Tom se encolheu à espera da bala que se enterraria em sua face, mas isso não aconteceu. A pistola negara fogo.
Por um instante, al-Auf se viu cego pela fumaça e pelo lampejo da pederneira e, naquele breve momento, Tom cobriu o espaço que havia entre os dois. Vira que a pistola era de cano duplo, e que o dedo indicador de al-Auf se enroscava em torno do segundo gatilho. Sabia que a sorte poderia não favorecê-lo por duas vezes e que o segundo disparo lhe seria fatal.
Desferiu um golpe de sabre direto sobre a mão que empunhava a arma, e a lâmina apanhou a parte interna do pulso de al-Auf. Como uma navalha, abriu o aglomerados de veias e artérias debaixo da pele morena, e a pistola caiu dos dedos desenervados. O cabo primeiro, atingiu o chão de pedras e, com um terrível ronco, o segundo cano disparou. A bala enterrou-se na madeira de um dos baús de ouro, e al-Auf recuou, procurando pela cimitarra no cinto incrustado de pedras preciosas em torno de sua cintura. Desembainhou a espada em tempo de conter o golpe que Tom desferiu ao centro de seu esterno.
Tom não esperava que ele fosse tão rápido. As mechas grisalhas nos cabelos e na barba de al-Auf o tinham feito avaliá-lo mal. O corsário era ágil como um leopardo, e a potência de sua lâmina era de um homem com metade de sua idade. Quando Tom se recobrou de sua investida, al-Auf dobrou um dos joelhos e desferiu um golpe com ambas as mãos para os tornozelos do oponente, um ataque que poderia incapacitá-lo para sempre. Tom não tinha tempo para recuar. Em vez disso saltou para o ar, e a lâmina curva lhe raspou as solas das botas. Ainda em suspenso, Tom golpeou em direção à cabeça escura do árabe, mas al-Auf desviou-se como uma serpente a deslizar sob uma rocha. A seus pés, havia uma poça de sangue e seu pulso sangrava bastante. Tom já deslizava pelo chão e aparou o contragolpe que se seguiu com uma finta de corpo, mas al-Auf percebeu a jogada e curvou-se, a lâmina endereçada ao estômago do adversário. Tom saltou para trás, e o golpe atingiu o vazio. Olhos nos olhos, começaram a se rodear, cada um tentando adivinhar os pensamentos do outro. Suas lâminas se entrechocavam e retiniam enquanto exploravam uma possível fraqueza.
O pé de Tom escorregou no sangue e, no instante em que se desequilibrou, al-Auf avançou como uma seta de um arco, num novo golpe baixo, mirando seu quadril. Tom esquivou-se e forçou-o a recuar. Começava a entender aquele homem agora. Era rápido e fugidio, e a idade não lhe desgastara a força do pulso. Se continuassem com o enfrentamento, então a experiência de al-Auf iria contar no final. Tom sabia que deveria mudar a situação para um teste de força.
Gingou o corpo para o lado mais forte do árabe, oferecendo-lhe uma abertura, mas quando al-Auf aceitou o desafio e desferiu um golpe baixo outra vez, Tom bloqueou-lhe a espada com uma estocada feroz e a prendeu com a sua própria. Agora, estavam quase peito a peito, as lâminas cruzadas à altura dos olhos. Tom colocou todo o peso de seus ombros largos contra o adversário, e al-Auf recuou um passo. Tom podia sentir a força a se esvair do oponente, drenada pelas veias abertas em seu pulso esquerdo. Tom o empurrou de novo, mas al-Auf não estava tão fraco como deixara parecer. Cedeu caminho tão depressa que Tom cambaleou para a frente ao não encontrar resistência, e de novo al-Auf se abaixou para desferir o golpe. Tom deveria ter percebido, pois já então conhecia bem aquele homem para se resguardar de seus golpes baixos. Foi apenas por um milagre de velocidade e equilíbrio felino que ele conseguiu desviar a parte inferior do corpo para o lado. O golpe raspou-lhe a coxa. Abriu um rasgo em sua calça e um talho no músculo rijo de sua perna.
Não era um ferimento extenso e, no final daquela investida, al-Auf uuha os braços esticados em total extensão. Ao que ele tentava desesperadamente recobrar-se, Tom bloqueou-o com sua espada e forçou-o a cruzar as lâminas. As duas armas se enroscaram, o som do aço contra aço a retinir com estridência até deixá-los com os nervos à flor da pele as empunhaduras a vibrarem em suas mãos.
Tom teve sucesso por fim em fazer daquilo um confronto direto de forças, pois al-Auf não se atreveu a desembaraçar as espadas. Fazer isso o deixaria de guarda aberta, e ele sabia que o contragolpe chegaria como um raio fulminante. Aquele era o clássico confronto prolongado que Tom aprendera com Aboli. "Com esse ardil, seu pai matou Schreuder", Aboli lhe dissera, e "aquele holandês era o melhor espadachim que eu já tinha visto empunhar uma espada, isto é, depois de seu pai".
Tom aplicou todo seu peso no punho, e al-Auf recuou um passo. Aos rodeios, as duas lâminas se enroscavam. O suor brotava da testa morena, agora franzida com o esforço, e escorria pelos olhos e pela barba do corsário. Triunfante, Tom sentiu que o homem fraquejava. O sangue ainda pingava em pesadas gotas de seu ferimento, e os lábios de al-Auf se retorciam num horrível ricto de desespero. Desalento e morte assomaram numa nuvem em seu olhar.
De súbito, Tom mudou o ângulo de seu pulso, a ponta de sua espada a luzir a centímetros dos olhos de al-Auf, e o dobrou. Contra a vontade do árabe, seus longos dedos morenos se abriram e o punho da cimitarra escorregou de seu aperto. Tom usou sua própria lâmina para lhe aparar a queda e, com um meneio, jogou-a contra a parede do fundo, onde a arma caiu retinindo sobre o chão de pedra.
Al-Auf tentou se curvar e esgueirar-se para o corredor, mas Tom tinha agora a ponta de sua espada a espetá-lo no meio da barba, comprimida levemente contra o queixo, e forçou-o a recuar até a parede. Tom ofegava e lhe custou um instante para recobrar o fôlego, o suficiente para conseguir falar:
- Há apenas uma única coisa que pode fazer agora para salvar sua vida - disse, entre haustos opressos de ar. Os olhos de al-Auf se estreitaram ao ouvir o infiel falar seu próprio idioma com tanta fluência. Pode me entregar o menino europeu que mantém preso aqui.
Al-Auf o encarou. Ergueu o braço ferido até o peito e tentou estancar o sangramento comprimindo o pulso aberto com a outra mão.
- Responda-me - disse Tom e pressionou a ponta da espada com mais força em sua garganta. - Fale comigo, seu filho de uma porca doente. Dê-me o garoto e eu o deixarei viver.
O árabe encolheu-se com a picada do aço.
- Não conheço essa criança de quem fala.
- Conhece muito bem. Aquela de cabelos vermelhos - Tom lhe interrompeu os protestos.
Al-Auf retorceu os lábios num sorriso sarcástico.
Por que quer al-Amhara, o Vermelho? - indagou, e havia um ódio terrível em seus olhos. - Era o seu traseiro de estimação?
A mão da espada de Tom tremeu de raiva com o insulto.
Al-Amhara é meu irmão.
Então chegou tarde - al-Auf se gabou. - Ele se foi para onde jamais o encontrará.
Tom sentiu como se um gancho de ferro se apertasse em torno de seu peito. Sua respiração tornou-se entrecortada. Dorian se fora.
Está mentindo! - Em sua aflição, as palavras em árabe lhe enrolaram a língua. - Sei que ele está aqui. Eu o vi com os meus próprios olhos. Vou encontrá-lo.
- Ele não está nesta ilha, procure onde quiser. - Al-Auf ria agora, um som doloroso e distorcido.
Tom o calou com a pressão da ponta de aço. Olhou dentro dos olhos escuros do árabe, e uma confusa sucessão de pensamentos cruzou-lhe a mente.
- Não! - Tom não queria acreditar. - Você está escondendo meu irmão aqui. Você está mentindo.
Havia algo, porém, na maneira de al-Auf, que alertou a Tom que o homem dizia a verdade. Sabia que haviam perdido o pequeno Dorry e, lentamente, um negro desespero preencheu o lugar vazio que Dorry deixara em seu coração.
Baixou a espada da garganta de al-Auf e se afastou. Deu um passo em direção à porta, aflito para procurar em cada canto da ilha, nem que fosse para dar um pouco de sossego ao coração.
Al-Auf ficou tão surpreso que, por um momento, permaneceu rígido. Então, deixou cair a mão ferida até o punho do punhal recurvo enfiado na bainha de filigranas de ouro em seu cinto. A lâmina polida fez um mínimo ruído ao escorregar de seu suporte.
Tom não se deixara mergulhar tão fundo em sua angústia que ignorasse aquele fatal sussurro, e quando girou o corpo para encarar o inimigo, al-Auf já se arrojava pelo espaço entre os dois com o punhal erguido acima da cabeça, para enterrá-lo em suas costas.
Diante do gesto traiçoeiro, o desespero de Tom transformou-se num °dio incontrolável. Saltou para a frente para ir de encontro ao ataque, a Ponta da espada dirigida ao centro do peito de al-Auf. Sentiu o impacto do aço contra uma costela e depois o deslizar pelo coração e o pulmão, e estremeceu de prazer quando a ponta chocou-se contra a espinha.
Al-Auf pareceu congelar-se no lugar, e o punhal lhe caiu da mão lâmina retiniu ao chocar-se contra o chão, e o ódio naqueles olhos ne gros feneceu. Tom levantou a perna e colocou a bota contra o peito do árabe, e empurrou-o para trás, arrancando a espada de seu corpo.
Al-Auf desabou de joelhos e sua cabeça pendeu para a frente, mas o furor de Tom ainda não estava saciado. Ergueu o sabre e desferiu um golpe para baixo, usando a plena força de seus ombros, seu braço e o controle do pulso, e a lâmina silvou no ar em linha descendente. Caiu sobre a nuca de al-Auf. A cabeça tombou do toco por onde o sangue agora jorrava aos esguichos, atingiu o chão com um baque surdo e rolou para os pés de Tom.
Tom olhou para a face de al-Auf. Os olhos negros estavam arregalados e tinham uma expressão feroz. Seus lábios se abriram e parecia que ele tentava falar, mas então suas pálpebras caíram, a luz fugiu de seus olhos, que se tornaram opacos e vazios, e seu queixo desabou inerte.
- Está feito, e bem-feito! - disse Aboli da soleira da porta. Entrou no quarto e arrancou a túnica árabe que vestia. Ajoelhou-se e estendeu o pano sobre o chão e, em seguida, ergueu a cabeça decepada por um punhado de sua comprida cabeleira negra.
Tom ficou a olhar enquanto ele enrolava a cabeça de al-Auf na túnica. Sentia-se vazio por dentro, sem nenhuma emoção e nenhum remorso ao ver o sangue ensopar as dobras do pano. Aboli levantou-se e jogou o pavoroso embrulho sobre o ombro.
- Levaremos isto a seu pai. A cabeça de al-Auf vale um baronato para ele quando a apresentar ao Conselho da Honorável Companhia, em Londres.
Com a espada desembainhada na mão, Tom seguiu Aboli como um sonâmbulo pela passagem e para fora, ao sol. Não sentia nenhuma exaltação, apenas um peso esmagador por saber que perdera Dorian para sempre.
Tom abriu caminho por entre os marujos excitados que corriam pelas passagens e quartos internos do forte. Suas risadas debochadas e os brados e comentários de vanglória ecoavam pelos corredores enquanto saqueavam o edifício. Muitas e várias vezes ouvia-se um berro e um grito de pavor quando encontravam um outro árabe escondido numa das celas e o arrastavam até o pátio.
Lá, os capturados eram todos despidos. Os marujos tinham aprendido depressa que eles poderiam esconder um punhal sob as roupas volumosas. Mesmo as mulheres eram tratadas do mesmo jeito. As armas apreendidas se amontoavam numa pilha no centro do pátio, enquanto os valores, as bolsas dos homens e as jóias de ouro das mulheres ocupavam o pano de uma vela aberta.
Em seguida os prisioneiros eram arrastados para se juntarem às fileiras de corpos morenos em pêlo que já se ajoelhavam na parede norte do pátio, guardados por marujos sorridentes com pistolas engatilhadas e adagas perfiladas.
Tom percorreu as filas de árabes ajoelhados e se dirigiu a um deles. A despeito de sua nudez, o homem tinha feições nobres e um olhar digno e inteligente.
- Qual é o seu nome, velho pai? - Tom perguntou, fazendo um esforço para manter um discurso respeitoso.
O velho o encarou assustado por se ver interrogado em árabe, mas respondeu à pergunta gentil de Tom.
- Meu nome é Ben Abram.
- Tem a aparência de um estudioso ou de um homem santo - Tom o elogiou.
De novo o velho respondeu:
- Sou médico.
- Havia um menino aqui na ilha. Tem cerca de doze anos, de cabelos vermelhos. Foi capturado por al-Auf. O senhor o conhece?
- Eu o conheço - Ben Abram concordou, e o ânimo de Tom soergueu-se.
- É meu irmão. Onde está ele agora? Encontra-se aqui na ilha?
indagou, ansioso, mas Ben Abram meneou a cabeça.
- Ele se foi. Al-Auf o vendeu como escravo.
Por fim, Tom se via obrigado a aceitar a corroboração da fanfarronada de al-Auf. Por um minuto, julgou que não poderia ser capaz de suportar a dor que aquilo lhe causava.
- Para onde o mandaram? Qual é o nome do homem que comprou meu irmão como escravo?
Ben Abram meneou a cabeça de novo, mas seus olhos fugiram da face de Tom e sua expressão se velou.
- Não sei - murmurou.
Tom sabia que o velho estava mentindo e suas mãos desceram para o punho da espada. Iria arrancar-lhe a verdade, mas então percebeu a postura firme e determinada do semblante de Ben Abram, e sua intuição o alertou de que não conseguiria nada pela força.
Para lhe dar tempo para refletir, olhou ao redor das muralhas internas da fortaleza. Árabes mortos se espalhavam pelos passadiços, com muitos feridos entre eles, que gemiam e se retorciam na poeira. Chamou o timoneiro, que estava no comando da guarda.
- Este homem é médico. Dê-lhe suas roupas de volta e deixe-o tratar dos inimigos feridos.
- Sim, sr. Courtney. - O homem bateu com a mão na testa, numa continência.
Tom voltou-se para Ben Abram.
- Muitos dos seus homens precisam dos seus cuidados. Pode ir até eles.
- Possa Alá recompensar sua compaixão. - Ben Abram levantou-se e pegou a túnica que o timoneiro lhe jogou.
Tom observou o velho se afastar depressa e ajoelhar-se ao lado de um dos árabes mais gravemente feridos, ao pé da rampa.
Agora, precisava encontrar seu pai e lhe contar as tristes novas que soubera a respeito de Dorian. Procurou por ele outra vez e então seguiu para o portão. Enquanto caminhava, interpelou cada homem da tripulação do Seraph que reconhecia:
- Viu o capitão? Onde está ele?
Sendo que ninguém soube responder, Tom sentiu a preocupação dominá-lo. Foi então que divisou o capitão Anderson perto da passagem destruída. Anderson tinha a face corada de um vermelho brilhante e berrava como um touro ferido, tentando reorganizar em grupos suas tropas dispersas, a fim de dar início à retirada dos conteúdos dos depósitos nos quais os butins dos piratas eram armazenados. Alguns marujos já cambaleavam para fora do forte, curvados sob o peso de fardos e barricas para enfileirá-los ao lado do portão, prontos para serem carregados para a praia e colocados a bordo dos navios à espera.
Tom abriu caminho até o lado de Anderson. Este voltou-se para encará-lo, e sua expressão suavizou-se de uma forma que deixou Tom intrigado.
Matei al-Auf. - Tom ergueu a voz para se fazer ouvir acima do tumulto. - Aboli está com a cabeça dele. - Indicou o negro alto e o embrulho ensangüentado que carregava sobre o ombro.
Santa Maria! - Anderson pareceu visivelmente impressionado.
Eis um bom trabalho. Eu estava admirado que aquele patife tivesse se desvanecido. Sua cabeça há de valer um lakh em Londres.
- Há um quarto repleto de baús recheados de ouro no topo das escadas, atrás daquele corredor, no final das rampas. Só o bom Senhor sabe quanto ouro al-Auf acumulou ali. Capitão Anderson, creio que é melhor mandar um oficial confiável para guardá-lo antes que os nossos rapazes comecem a se beneficiar disso.
Anderson gritou para seu timoneiro e lhe deu as ordens. Com cinco homens rapidamente recrutados, o oficial saiu correndo, e Tom pôde fazer a pergunta que lhe queimava a língua.
- Viu meu pai, capitão? Estou procurando por ele. Deveria estar aqui para ajudá-lo a manter o comando.
Anderson baixou o olhar, e sua expressão ansiosa assumiu um ar de piedade.
- Ele sucumbiu, rapaz. Eu o vi ser atingido pela explosão de pólvora nos portões.
A medida que sua premonição se tornava realidade, Tom sentiu o coração ser agarrado pela gélida mão do pavor.
- Onde está ele, senhor?
- A última vez que o vi, estava em frente aos portões. - A voz de Anderson soava rouca de compaixão. - Sinto muito, rapaz, mas, pelo que vi, com certeza ele morreu.
Tom fugiu dali, até mesmo Dorian relegado ao esquecimento naquele instante. Escalou as pilhas de destroços que bloqueavam a passagem e viu um corpo destroçado deitado no campo aberto. Correu e arrOou-se de joelhos a seu lado. Estava tão severamente machucado, destituído de suas roupas, a pele esfoiada da carne viva, que Tom não conseguia ter certeza de para quem olhava. Gentilmente, voltou a cabeça ensangüentada.
- Danny - disse baixinho e sentiu que as lágrimas inundavam-lhe os olhos.
Não sabia quanto amava aquele homenzarrão até aquele instante Pestanejou para reprimir as lágrimas. De perto, a morte era mais feia que seus piores pesadelos. Os olhos de Daniel Grande estavam abertos e olhavam o vazio, cercados de moscas azuis. Tom afastou-as e lhe baixou as palpebras com a palma das mãos. Levantou-se, cambaleante, e descobriu Aboli a seu lado.
- Onde está meu pai? O capitão Anderson disse que ele se encontrava aqui.
Tom não conseguiu ver nenhum outro corpo que pudesse ser de seu pai. Havia trinta ou quarenta árabes mortos ao longo da orla da floresta, liquidados quando tentavam escapar. Uns poucos marujos pisavam os cadáveres para ter certeza de que não se fingiam de mortos, um truque favorito dos árabes, e os revistavam em busca de algo de valor.
- Seu pai não está aqui - disse Aboli. - Devem tê-lo levado embora.
Tom correu até o marujo mais próximo, que se agachava ao lado de um corpo. Tom não o reconheceu, devia ser do Yeoman of York.
- Viu sir Henry, o capitão do Seraph?
O homem o encarou.
- Sim, rapaz. O velho foi bastante ferido. Vi os "serra-ossos" levarem o capitão para a baía. - Apontou com as mãos repletas de jóias de ouro.
Acima das copas das árvores, os mastros do esquadrão despontavam. Tão logo as bandeiras tinham sido hasteadas nos passadiços, a anunciar a captura do forte, todos os três navios haviam adentrado a baía. Tom tomou a trilha entre as árvores e correu pela macia areia de coral branco. Chegou à píaia com Aboli a apenas um passo atrás de si, e olhou para os elegantes navios que estavam ancorados nas águas claras e tranqüilas da lagoa.
Os pequenos escaleres já cobriam febrilmente o percurso entre as naus e a praia, para o desembarque dos homens agora liberados de seus deveres a bordo. Tom viu um escaler se aproximar, vindo do Seraph, e interpelou o timoneiro tão logo a quilha do barco atingiu a areia.
- Onde está o capitão?
- Já está a bordo, sr. Tom - o timoneiro da embarcação respondeu.
- Preciso ir até ele. Leve-me para o navio.
- Agora mesmo, sr. Tom. Salte a bordo.
Quando o escaler bateu contra o casco do Seraph, Tom foi o primeiro a subir a escada, com Aboli ainda em seus calcanhares. Havia apenas uma meia dúzia de homens dispersos pelo convés, e se enfileiravam na amurada a observar a comoção em terra, ansiosos para se juntar ao combate e à pilhagem.
Onde está o capitão? - Tom indagou.
Foi levado aos seus aposentos.
Tom saiu correndo pelo convés e, quando chegou à porta da cabina de popa, estacou ao ouvir um horrível gemido ecoar pelo tombadilho deserto. Parou com a mão direita estendida, incapaz de reunir coragem para abrir a porta e descobrir que horrores o aguardavam do outro lado. Aboli passou por ele e mansamente abriu a porta. Tom olhou para dentro da cabina de seu pai.
Havia um engradado de madeira sob as vigias de popa onde a luz era mais forte. Seu pai encontrava-se deitado de costas. O dr. Reynolds debruçava-se sobre ele. Usava sua sobrecasaca preta, a indumentária formal de operação. O espesso tecido de sarja se tornara esverdeado com os anos e duro de sangue velho seco. Reynolds transpirava aos borbotões com o calor reinante na pequena cabina. Ergueu os olhos para Tom e fez um gesto de cabeça.
- Ótimo! Venha cá, rapaz. Não fique aí paralisado! Preciso de outro par de mãos fortes - disse, com um sorriso, e começou a enrolar as mangas até acima dos cotovelos.
Tom avançou com pés pesados como chumbo até que se postou ao lado do engradado e olhou para o corpo retalhado de seu pai. O cheiro forte de aguardente pura enchia a cabina sufocante. Um dos assistentes do médico forçava o gargalo de uma garrafa de três quartos de litro de rum para dentro da boca de Hal Courtney. A bebida lhe escorria pelas faces e entre seus cabelos. Hal se engasgava e, mesmo em sua condição de semiconsciência, tentava afastar a cabeça.
Tom arrancou a garrafa da mão do homem.
- Devagar, maldito seja, seu estúpido desajeitado! Vai afogá-lo.
Ele precisa do rum para conseguir suportar a dor - o assistente do médico protestou.
Tom o ignorou e ergueu a cabeça do pai tão gentilmente como se ele fosse um bebê. Deu-lhe da garrafa com cuidado, permitindo apenas que um gole de cada vez escorresse entre seus lábios e depois esperando que engolisse.
Olhou para as pernas feridas. Reynolds tinha colocado talas de couro em torno de cada uma, na metade das coxas, e torcera os torniquetes para estancar a hemorragia, mas os ferimentos ainda sangravam. Havia baldes colocados debaixo do engradado para captar o sangue, e o rápido pinga-pinga soou aos ouvidos de Tom como um relógio de água a contar os segundos de vida de seu pai.
Reynolds terminou seus preparativos e escolheu um escalpelo de cabo de marfim de seu rolo de pano com os instrumentos de cirurgia que estava sobre o engradado, ao lado das pernas destroçadas de Hal Começou a cortar o pano da calça ao lado das pernas ensopadas de sangue. Tom empalideceu e sentiu seus sentidos se esvaírem quando a carne massacrada revelou-se debaixo do tecido.
A explosão tinha transformado a carne em gelatina da cor de fígado moído. Areia e aparas de coral haviam penetrado dentro dela como se disparados de um mosquete, e lascas de osso apontavam para fora da massa sangrenta como pontas de setas.
Reynolds apalpou as pernas. Estavam macias e cediam sem ossos sob suas mãos. Apertou os lábios e meneou a cabeça.
- Precisam ser amputadas. Ambas. Não posso salvá-las.
- Não! - Tom gaguejou. - Não pode lhe cortar as pernas! Meu pai nunca mais poderá cavalgar ou comandar um navio. Não pode fazer isso!
- Então ele morrerá. Suas pernas apodrecerão e seu pai morrerá de gangrena numa semana ou menos, se tiver sorte. - Fez um gesto aos dois assistentes. - Segurem-no!
Aboli adiantou-se, e Reynolds disse:
- Sim, você também. Precisamos de braços fortes aqui. - Escolheu um bisturi, que pareceu a Tom mais uma faca de um açougueiro do que um instrumento cirúrgico, e testou a borda no próprio polegar. Tom viu as estrias de ferrugem na lâmina onde o sangue velho não tinha sido adequadamente removido. - Sr. Tom, vai segurar-lhe a cabeça. - Estendeu-lhe umcalço de madeira. - Mantenha isto entre os dentes de seu pai. Ele precisa de alguma coisa para morder quando a dor o dominar, ou seus dentes irão se partir.
Enfiou uma esponja dentro da bacia de água quente que seu assistente segurava, e limpou um pouco do sangue e sujeira da perna esquerda de Hal para poder enxergar onde faria o primeiro corte. Em seguida deu outra volta na tala do torniquete e correu a borda da lâmina pela pele fortemente repuxada. A carne partiu-se, e Tom, que segurava o calço de madeira entre as mandíbulas de seu pai, sentiu que o corpo de Hal se convulsionava e as costas se arqueavam, cada músculo e tendão estirados como se por um cabrestante.
Um grito terrível brotou da garganta de Hal, e ele então cravou os dentes no calço, as mandíbulas tão travadas que a madeira se partiu em lascas. Tom tentou manter-lhe a cabeça firme enquanto ela se jogava de um lado para outro, mas seu pai tinha a força de um louco.
Segure-o! - Reynolds resmungou ao aprofundar o corte, e Aboli e os homens que seguravam Hal se viram desequilibrados com a violência de suas convulsões.
Tom ouviu o aço da lâmina atingir o fémur no fundo da coxa de seu pai. Reynolds rapidamente desviou o bisturi para o lado e pegou uma bola de categute preto. Atou-a nas extremidades abertas dos vasos sangüíneos, que agora vazavam livremente a despeito do torniquete. O sangue despencava em cascata para o balde debaixo do engradado. Tom não podia crer que houvesse tanto.
Reynolds pegou uma serra do rolo de pano e inspecionou os dentes finos. Em seguida, com a mão esquerda, segurou com firmeza a perna destroçada, e, como um carpinteiro a dividir uma prancha, colocou a lâmina na ferida aberta, firmou-a sobre o osso e desferiu a primeira investida.
Os dentes de aço rangeram estridentes contra o osso, e a despeito da força de quatro homens que tentavam segurá-lo para baixo, Hal dobrou-se ao meio e ficou numa posição sentada. Sua cabeça estava jogada para trás e cordões de músculos e ligamentos pulavam salientes em sua garganta e ombros. Outro grito torturado explodiu de sua boca ofegante e ecoou pelo navio. Então, seu corpo ficou lasso e ele caiu de costas, inanimado, sobre o engradado.
- Graças ao Senhor por isso - Reynolds murmurou. - Precisamos trabalhar rápido agora, antes que ele recobre a consciência.
Com mais quatro longos movimentos de vai-e-vem, o osso partiu-se. A perna pendeu sem peso, e o cirurgião deixou de lado a serra e pegou o bisturi de novo.
- Eu lhe deixarei um bom pedaço de tecido para que o final do osso fique bem coberto. - Aparou a carne com poucos e ligeiros cortes, e Tom estremeceu quando a perna destruída soltou-se e rolou sobre o engradado. Um dos assistentes do médico a apanhou e jogou-a sobre o convés. Ficou lá, como um peixe recém-capturado lançado ao chão de um barco de pesca, a se retorcer suavemente enquanto as terminações nervosas morriam.
Reynolds passou um pedaço de categute pelo buraco de uma agulha de costurar velas e, em seguida, dobrou o pedaço de carne sobre o °sso exposto que avançava para fora do toco. Limpou a garganta ao experimentar a ponta da agulha na pele dura e começou a costurar em pequenos pontos ao longo da linha de junção. As pontas soltas das suturas com as quais ele amarrara os vasos sangüíneos pendiam fora do ferimento fechado.
Depois de alguns minutos, Reynolds recuou e deixou pender a cabeça para um lado, como uma bordadeira a julgar a peça de bordado.
- Muito bom - disse. - Muito bom, mesmo que seja eu próprio a dizer. - Soltou uma risadinha de auto-aprovação. Para Tom, o coto parecia a cabeça de um bebê recém-nascido, redondo, careca e ensangüentado.
- Agora, vamos dar uma olhada nesta outra perna! - Reynolds exclamou, fazendo um gesto para o assistente.
O homem segurou o tornozelo restante de Hal em suas mãos peludas e puxou a perna para endireitá-la. A agonia sacudiu Hal por entre a bruma de sua inconsciência. Ele emitiu outro gemido aterrador e lutou debilmente, mas o contiveram deitado.
Reynolds examinou a perna, a começar do alto da coxa, logo abaixo do torniquete, e, em seguida, trabalhou sobre o joelho, enterrando os dedos fortes na carne para sentir o osso partido.
- Ótimo! - encorajou a si próprio. - Excelente! Acho que posso arriscar-me a cortar bem mais embaixo, aqui. Salvarei o joelho. Isso é importante. O capitão poderá articular uma perna de madeira. Ele pode até mesmo aprender a andar de novo.
A idéia de que seu pai, que fora o vigoroso centro de sua existência por tanto tempo quanto conseguia se recordar, pudesse jamais voltar a andar penetrou de súbito na mente aturdida de Tom. Era quase tão insuportável quanto os horrores que se via forçado a testemunhar ali, quando Reynolds pegou o escalpelo coberto de sangue e fez a primeira incisão na perna que restava. Hal retorceu-se, soltou um grito desesperado e mordeu o calço de hnadeira.
Tom ofegava e gemia com o esforço de conter o corpo que estrebuchava, e tinha ainda de lutar para reprimir as ondas de náusea que ameaçavam dominá-lo quando a segunda perna caiu e rolou pelo convés escorregadio de sangue, ao lado de seus pés. Dessa vez, Hal não se entregara ao alívio da inconsciência. Enfrentava cada horrível corte do bisturi e da serra. Tom sentiu-se invadido de respeito e admiração e por uma estranha sensação de orgulho ao observar a maneira com que seu pai lutava contra a dor e apenas sucumbia quando esta atingia um auge insuportável. Mesmo então, tentava sufocar os próprios gritos.
Por fim, Tom pôde debruçar-se sobre Hal e pousar os lábios a centímetros do ouvido dele e murmurar:
Acabou, papai. Está tudo acabado.
por mais que fosse inacreditável, seu pai o escutou e compreendeu. Esboçou um sorriso, e aquela foi uma coisa terrível de ver.
- Obrigado. - Os lábios de Hal formaram as palavras, mas nenhum som escapou de sua garganta torturada.
A visão de Tom borrou-se quando as lágrimas ameaçavam dominá-lo e ele beijou o pai nos lábios, algo que não podia se lembrar de ter feito em toda a sua vida. Hal não fez esforço para virar a cabeça de lado para evitar o contato.
Ned Tyler apressou-se em encontrar-se com Tom quando este saiu para o convés.
- Como está o capitão? - perguntou.
- Está vivo - respondeu Tom, e, em seguida, ao ver quanto era verdadeira a preocupação de Ned, condoeu-se dele. - Tão bem quanto poderíamos esperar. Não saberemos com certeza por alguns dias ainda. O dr. Reynolds diz que ele precisa de repouso.
- Graças a Deus por isso, pelo menos - disse Ned, e então olhou para Tom com ar de expectativa.
Por um momento, Tom não soube o que o homem esperava. De repente, se deu conta: Ned aguardava ordens. E ele assustou-se com isso. Sentia-se cansado demais e inseguro de si mesmo para assumir a responsabilidade que estava lhe sendo jogada nos ombros. Então, com um esforço, reuniu suas energias.
- Nossa primeira preocupação agora é recolher todos os feridos a bordo, onde o dr. Reynolds poderá atendê-los adequadamente.
- Sim, sr. Courtney. - Ned pareceu aliviado e afastou-se para passar a ordem.
Tom estava atônito ao perceber como as coisas se desenrolavam num piscar de olhos. Já não era Tom, mas o sr. Courtney. Como filho de Hal, o manto do comando lhe havia sido passado naturalmente. Estava com apenas dezessete anos e não ocupava nenhuma posição de oficial, mas aquela não era uma nau da Marinha Real, e Tom provara por várias vezes que tinha a cabeça firme sobre os ombros, que poderia se sustentar em qualquer luta. Os oficiais e os marujos gostavam dele. Aquilo não seria causa de debates. Se Ned Tyler aceitava seu direito ao comando, então assim o faria cada homem a bordo do Seraph.
Tentou pensar naquilo que seu pai haveria de querer fazer, mesmo que seu instinto fosse correr de volta à beira da cama de Hal e ficar la até que ele estivesse forte o bastante para cuidar de tudo por si mesmo. Sabia, porém, que o dr. Reynolds e seus assistentes estavam mais bem preparados para trazê-lo de volta à saúde.
Com os pensamentos em turbilhão, disse a Ned para proteger o navio e ver os detalhes de rotina do manejo. Então, prosseguiu:
- Deixo o navio em suas mãos, sr. Tyler. - As palavras que ouvira seu pai proclamar com freqüência vieram-lhe aos lábios com facilidade. - Vou a terra para assumir o comando lá. - Sim, senhor - Ned respondeu.
Com Aboli bem perto, atrás de si, Tom seguiu para o forte. Alguma espécie de ordem fora restaurada, mas ele encontrou Anderson e cada um dos homens ainda empenhados em saquear os depósitos da fortaleza. Uma montanha de pilhagem se amontoava no centro do pátio, e uma selvagem confusão de gente zanzava por ali, trazendo mais barris e caixas para a pilha.
- Capitão Anderson - Tom gritou -, há trezentos ou quatrocentos inimigos embrenhados na floresta. Muitos deles ainda estão armados. Quero os passadiços preparados para um eventual contra-ataque.
Anderson o encarou, incrédulo, mas Tom prosseguiu, resoluto:
- Por favor, coloque seu melhor oficial no comando, e tenha o canhoneiro inimigo recarregado com metralha e as carretas giradas para cobrirem a orla da floresta.
A face de Anderson porejou de suor e se tingiu de escarlate mais vivo. Cada marinheiro ao alcance da voz parou o que estava fazendo e agora se postava imóvel e ofegante, acompanhando a conversa com interesse ansioso.
- Depois, por favor, mande fazer uma barricada na passagem aberta para repelir um ataque - continuou Tom. Era tão alto quanto Anderson e lhe sustentava o olhar sem pestanejar.
Por um longo momento, Anderson o encarou, e parecia que estava a ponto de desafiar a ordem, mas então mudou de opinião e desviou o olhar para a passagem afterta e para a turba despreparada de seus homens.
- Sr. McNaughton - rosnou, desnecessariamente alto, pois seu subordinado se encontrava a apenas cinco passos dali -, cinqüenta homens para a barricada no portão, e uma centena para as armas capturadas. Carregue com metralha e cubra os arredores do forte. - Voltou-se de novo para Tom.
- Restam apenas uma ou duas horas do dia - Tom prosseguiu. Vamos tirar os fugitivos da floresta às primeiras horas da amanhã. Olhou para as fileiras de prisioneiros nus, que ainda se ajoelhavam na poeira. - Por questão de humanidade, quero aquela gente vestida e lhe dêem água; em seguida pode ser confinada nas celas do forte. Quantos de nossos homens foram feridos?
Não tenho certeza. - Anderson tinha uma expressão culpada, e o vermelho sumiu depressa de suas faces.
Mande seu escrevente fazer a minuta do registro das baixas - ordenou Tom. - As vítimas deverão ser levadas a bordo dos navios, onde poderão ser atendidas pelos médicos.
Tom olhou ao redor e viu que Ben Abram, o médico árabe, ainda trabalhava no atendimento dos inimigos feridos. Alguém tivera o bom senso de lhe destinar quatro dos prisioneiros para ajudá-lo.
- Enterraremos os mortos amanhã, antes que comecem a empestear o ar. Os muçulmanos têm certos rituais rígidos para o sepultamento de seus mortos. Piratas que sejam, devemos honrar suas tradições.
Tom trabalhou com Anderson até bem depois que o sol se pusera. À luz de tochas, restauraram a ordem, tiveram o forte protegido e o butim colocado sob estrita vigilância. Por essa hora, Tom fraquejava das pernas de tanta fadiga. O ferimento raso de espada em sua coxa, que al-Auf lhe infligira, queimava, e cada músculo de seu corpo doía brutalmente.
- Está tudo seguro agora, Klebe. Todas as providências estão tomadas até amanhã. Você precisa descansar. - Aboli estava, de súbito, a seu lado.
- Há apenas uma coisa que não pode esperar até amanhã. - Tom seguiu pelos portões até onde Daniel Grande ainda jazia. Juntos, Aboli e Tom envolveram o corpanzil num pedaço de pano e um dos grupos de carregadores levou-o para a praia.
Passava da meia-noite quando Tom desceu o corredor para a cabina de popa do Seraph. Um assistente do médico estava sentado ao lado do catre de Hal. Tom disse a ele:
- Eu ficarei aqui.
Mandou-o embora e se jogou sob o convés duro. Por duas vezes durante a noite, os gemidos de seu pai o acordaram. Numa, deu-lhe a agua que ele pedia, e depois segurou a bacia de peltre1 para que urinasse. Transtornou-o profundamente ver Hal daquela estatura, do tamanho de uma criança, mas o prazer de poder servi-lo sobrepujou sua exaustão e sua piedade.
Nota de Rodapé: Liga metálica, fosca, especialmente de estanho e chumbo, antigamente usada na fabricação de utensílios domésticos.
Fim da Nota.
Tom despertou outra vez antes de alvorecer e pensou, por um pavoroso momento, que seu pai tinha morrido durante a noite, mas quando tocou a face de Hal, a pele estava morna. Encostou o espelho de aç0 de barbear em sua boca e, com alívio, viu a superfície brilhante embaçar. O hálito de Hal ainda recendia a rum, mas ele estava vivo.
A vontade de Tom era de ficar ali, porém sabia que isso não seria o que seu pai haveria de esperar dele. Deixou-o aos cuidados do assistente do médico e, antes do sol nascer, foi a terra com Aboli.
Havia ainda muito a ser feito. Tom encarregou mestre Walsh e o escrevente do Yeoman of York de fazer o inventário do butim que haviam capturado. Anderson assumiu a tarefa de empacotar o tesouro e lacrar os baús, que eram carregados para a praia e colocados sob a responsabilidade de um oficial confiável e um guarda armado.
Providências tomadas, Tom mandou chamar Ben Abram. O velho parecia exausto, e Tom imaginou se ele teria dormido.
- Sei que é seu costume enterrar os mortos antes do pôr-do-sol do segundo dia.
Ben Abram aquiesceu.
- Você conhece os nossos costumes tão bem quanto a nossa língua.
- Quantos são?
Ben Abram tornou-se muito sério.
- Trezentos e quarenta e três que eu tive condição de contar.
- Se me der sua palavra de que terão bom comportamento, farei com que sejam liberados 52 homens dentre os prisioneiros para cavar os túmulos.
Ben Abram escolheu um local de sepultamento no fundo do antigo cemitério islâmico e pôs seus homens para trabalhar. A tarefa foi rápida no macio solo arenoso. Antes do meio-dia, tinham carregado os corpos, cada um enrolado num pano de algodão branco limpo, trazido do forte. O cadáver decapitado de al-Auf encontrava-se no centro da longa fila, no fundo da cova rasa, e coberto de terra. Ben Abram recitou as preces islâmicas para os mortos, e depois disso foi se encontrar com Tom, na praia.
- Pedi as bênçãos de Alá sobre você, pela sua compaixão. Sem a sua misericórdia, nenhum dos mortos teria entrado nos jardins do Paraíso. Um dia, possa o homem que o matar lhe conceder a mesma consideração.
- Obrigado, velho pai - disse Tom, muito sério. Minha misericórdia, porém, cessará com os mortos. Os vivos devem enfrentar as conseqüências de seus crimes.
Deixou o velho sozinho e foi até o local onde Alf Wilson e Aboli esperavam, à dianteira de trezentos homens fortemente armados, que incluíam os prisioneiros de al-Auf que ele havia libertado.
Muito bem - disse Tom. - Vamos arrebanhar aqueles que escaparam do forte.
Aproveitando o vento constante da monção, Tom mandou que pequenos grupos ateassem fogo no limite leste da floresta. Logo, as chamas rugiam pelo mato, provocando altas nuvens de espessa fumaça negra. Os árabes ainda escondidos na floresta se viram encurralados pelo fogo.
Ao saírem correndo dentre as árvores, poucos tinham condições de luta. Jogaram suas armas, imploraram por misericórdia e seguiram em marcha para se juntar aos seus comparsas. Ao cair da noite do segundo dia, quase todo fugitivo fora recolhido e aprisionado nas celas do forte.
- A única água doce na ilha está nas cisternas de água da chuva do forte - Tom disse a Anderson, quando se encontraram na praia, ao crepúsculo. - Se perdemos alguma, será preciso racionar a água para todos até o meio-dia de amanhã, ou morreremos de sede.
Anderson examinou o garoto que se tornara tão depressa um homem. A face de Tom estava enegrecida pela fuligem do incêndio, e havia manchas de sangue em sua camisa, pois alguns dos árabes tinham preferido lutar a aceitar a duvidosa misericórdia do ferenghi. Entretanto, a despeito da fadiga do combate, havia uma postura enérgica nos ombros de Tom e uma nova autoridade em sua voz. Por Deus, pensou Anderson, o cachorrinho se tornou um cão de briga da noite para o dia. Tem os modos e a aparência de seu pai. Eu não gostaria de ficar do lado errado de nenhum dos dois. Sem questionar a própria subserviência, Anderson informou quase com naturalidade:
- Os escreventes terminaram o levantamento do prêmio. Garanto que ficará surpreso, pois me deixou embasbacado. O peso do ouro em si vale quase três lakhs, numa estimativa conservadora.
- Por favor, veja que seja dividido em quatro porções iguais - disse Tom -, uma porção a ser mandada a bordo de cada um dos navios do esquadrão, inclusive do Cordeiro.
Anderson pareceu espantado.
- Com certeza sir Henry gostaria de ter tudo sob seus olhos, não? ~~ resmungou.
- Capitão Anderson, temos a longa viagem de volta à Inglaterra diante de nós, com incontáveis perigos do mar e do tempo para enfrentar. Se tivermos a infelicidade de perder um navio, pode ser o errado, e teremos perdido todo o ouro. Se dividirmos o risco, então limitamos a perda apenas a um quarto, e não ao todo.
Por que diabos não pensei numa coisa dessas?, ponderou Anderson para si mesmo, mas disse em voz alta, com alguma relutância:
- Parafusaram sua cabeça do jeito certo... - Quase tratara Tom por "rapaz", porém aquilo não se enquadrava mais ao homem que ele tinha diante de si. - Darei as ordens, sr. Courtney.
- Temos 26 dos nossos próprios homens feridos, cinco deles seriamente. Quero um grupo para construir abrigos confortáveis e arejados acima da praia, para onde serão levados, e que os carpinteiros façam camas para eles. Agora, quanto aos nossos mortos - Tom relanceou os olhos para os oito corpos enrolados em panos de vela que jaziam à sombra do arvoredo -, quero que sejam levados a bordo do Minotauro. Daremos a eles um funeral adequado no mar. O Minotauro navegará para águas profundas às primeiras luzes de amanhã. Terá condições de bem conduzir o serviço, capitão Anderson?
- Ficarei honrado com isso.
- Agora, quero que o sr. Walsh providencie uma barrica de conhaque dos depósitos do Seraph para Aboli, na qual será colocada a cabeça de al-Auf.
Quando Tom entrou na cabina de popa, Hal remexeu-se no catre e murmurou:
- É você, filho?
Num átimo, Tom estava de joelhos ao lado dele.
- Papai, é tão bom tê-lo de volta. Esteve inconsciente pelos últimos três dias.
- Três dias? Tanto assim? Conte-me o que aconteceu desde então.
- Prevalecemos, papai. Graças ao sacrifício que fez;, conquistamos o forte. Al-Auf está morto. Aboli tem a cabeça do pirata enfiada numa barrica de conhaque, e recolhemos um imenso tesouro da fortaleza.
- E Dorian? - perguntou Hal.
Diante daquele pergunta, Tom sentiu a alegria se lhe esvair. Baixou os olhos para a face de seu pai. Estava tão pálida que parecia ter sido empoada com farinha branca, e havia profundas olheiras roxas em meia-lua sob seus olhos.
- Dorian não está aqui. - O murmúrio de Tom foi tão baixo quanto o de seu pai.
Hal fechou os olhos, e Tom pensou que ele desmaiara outra vez. O silêncio instalou-se entre os dois por um longo tempo. Quando Tom ia se levantar, Hal abriu os olhos de novo e virou a cabeça.
- Onde está ele? Onde está Dorian?
- Al-Auf o vendeu como escravo, mas não sei aonde o levaram, só sei que deve ter sido para algum lugar no continente africano.
Hal lutou para sentar-se, porém não teve forças para erguer os ombros do colchão.
- Ajude-me, Tom. Ajude-me a levantar, preciso ir ao convés. Preciso aprontar o navio para ir atrás dele. Temos de encontrar Dorian.
Tom estendeu a mão para segurá-lo, pensando: ele não sabe. Sentiu uma tristeza tão grande que ameaçou engolfá-lo. Como dizer ao pai?
- Vamos, rapaz. Ajude-me a levantar. Estou fraco como um potro recém-nascido.
- Papai, o senhor não pode ficar de pé. Cortaram as suas pernas.
- Não diga bobagem, Tom. Você testa a minha paciência.
Seu pai estava se tornando tão agitado que Tom receou que pudesse ferir-se. O dr. Reynolds havia alertado que qualquer movimento violento poderia romper as suturas e dar início a uma nova hemorragia Tenho de convencê-lo para o seu próprio bem.
Tom debruçou-se sobre Hal e puxou a coberta branca de algodão da parte inferior de seu corpo.
- lJerdoe-me, papai, mas sou obrigado a lhe mostrar. - Muito gentilmente, colocou um braço debaixo dos ombros de Hal e ergueu-o até que ele pudesse olhar para o próprio corpo.
Os membros encurtados jaziam grotescos sobre o colchão, cada um enrolado num turbante de ataduras nas quais o sangue secara em escuras manchas amarronzadas. Hal olhou para as pernas por um longo instante e, então, caiu de costas sobre os travesseiros. Por um momento, Tom julgou que ele perdera os sentidos novamente. Mas, então, viu lágrimas a escorrerem por entre seus olhos cerrados. Era demasiado para que pudesse suportar. Não conseguia ver seu pai chorando. Tinha de deixá-lo a sós agora, para que aceitasse os termos de seu próprio destino. Jogou a coberta sobre ele, para esconder aqueles cotos terríveis, e saiu na ponta dos pés da cabina, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
Quando chegou ao tombadilho, o escaler estava pronto para levá-lo até o Minotauro. O capitão Anderson encontrava-se no convés de popa, a conversar em voz baixa com Alf Wilson.
Tom relanceou o olhar para os oito corpos envoltos em panos. Cada um estava em seu próprio engradado, e uma grande bala de canhão fora costurada ao pé de cada mortalha. Podia reconhecer Daniel Pescador por seu corpanzil: deixava nanicos os outros que jaziam a seu lado.
- Sr. Wilson, faça a gentileza de nos pôr a caminho e coloque o navio num curso para deixar livre a passagem.
As velas negras do tàíinotauro eram apropriadas para aquela lúgubre viagem. Deixaram a ilha e navegaram em direção ao oeste enquanto a cor da água abaixo da quilha mudava de verde-turquesa do raso para púrpura das profundezas do oceano.
- Pare o navio, por favor, sr. Wilson.
O Minotauro rodou a proa ao vento, e Anderson começou a entoar as palavras sonoras do serviço funerário:
- Das profundezas eu clamei por Vós...
O vento chorava nos cordames quando Tom se postou, cabeça desnuda, ao pé do mastro principal, e pensou em quanto perdera nos últimos três dias: um pai, um irmão e um amigo querido.
Nós, aqui presentes, entregamos estes corpos às profundezas...
Um marinheiro estava de pé na ponta superior de cada engradado, e com aquelas palavras, todos ergueram-nos ao mesmo tempo para que os corpos deslizassem por sobre a amurada do navio, caíssem de pé no mar e afundassem rapidamente com o peso de ferro.
Alf Wilson fez um gesto de cabeça para os atiradores postados em seus canhões, e a primeira salva de tiros foi disparada num longo empuxo de fumaça prateada.
- Adeus, Danny Grande. Adeus, velho amigo - Tom murmurou.
Horas depois, naquela tarde, Tom sentou-se ao lado do catre de seu pai e, em voz baixa, contou-lhe os eventos do dia. Não tinha certeza de que Hal conseguira entender tudo que lhe dissera, pois não fez nenhum comentário e parecia mergulhar e sair do estado de inconsciência. Entretanto, conversar com ele fazia Tom sentir-se mais próximo do pai em espírito e o ajudava a dissipar a solidão do comando, o fardo oneroso que estava começando a conhecer pela primeira vez.
Quando Tom, por fim, caiu em silêncio e estava prestes a ir para seu próprio catre no convés, Hal procurou por sua mão e a afagou debilmente.
- Você é um bom rapaz, Tom - murmurou -, provavelmente o melhor de todos eles. Eu só desejo... - Calou-se e deixou a mão de Tom escorregar de seu aperto. Sua cabeça rolou para o lado e ele ressonou suavemente. Tom nunca saberia o que era que o pai desejava.
Durante os dias seguintes, Tom percebeu uma ligeira melhora nas forças de seu pai. Ele conseguia concentrar-se por mais que apenas uns poucos minutos naquilo que Tom lhe contava, antes de afundar na inconsciência.
Em questão de uma semana, Tom podia pedir-lhe conselhos e receber uma resposta sensata. Entretanto, quando consultara o dr. Reynolds sobre quando seu pai estaria forte o bastante para empreender a viagem de retorno à Inglaterra, o médico meneara a cabeça.
- Terei condições de remover as suturas de suas pernas dentro de três dias, isto é, catorze dias depois da amputação. Se zarpar em um mês a partir de agora, ainda irá sujeitá-lo a um enorme risco, especialmente se enfrentarmos tempo ruim. Por segurança, deveremos aguardar pelo menos dois meses. Ele precisa de tempo para recuperar as forças.
Tom foi procurar Anderson e o encontrou na supervisão do carregamento final da pesada carga que haviam capturado. Aquela era na maior parte de especiarias e tecidos, inclusive sedas magníficas da China.
- Capitão Anderson, tenho conversado com meu pai a respeito do problema com os prisioneiros árabes.
- Espero que não pense em soltá-los. São piratas, pura e simplesmente. Mataram centenas de marinheiros honestos.
- Jamais cogitamos em libertá-los - concordou Tom. - A parte quaisquer outras considerações, estabeleceria um perigoso precedente. Não podemos deixar soltos um tal cardume de tubarões-tigre para que continuem com seus atos predatórios pelos mares.
- Fico contente em ouvir isso - resmungou Anderson. - A ponta da corda deveria ser o destino final de todos eles.
- Pela última contagem, temos 535 prisioneiros. É uma grande quantidade de corda, capitão Anderson, e duvido que tenhamos braços de verga suficientes nos quais pendurar todos eles para secar.
Anderson tirou uma baforada de seu cachimbo ao pensar nos problemas logísticos de executar tanta gente.
Por outro lado, poderiam valer pelo menos trinta libras por cabeça no mercado de escravos, talvez mais - ponderou Tom.
Anderson o encarou, seus olhos azuis saltando das órbitas. Não tinha pensado naquilo.
- Pelo sangue de Cristo, eles merecem. Mas não pode vendê-los em Zanzibar - resmungou, por fim. - O sultão nunca o deixaria pôr muçulmanos à venda em seus mercados. Teríamos outra guerra em nossas mãos.
- Os holandeses não têm tantos pudores - disse Tom. - Estão sempre à procura de escravos para trabalhar em suas plantações de canela no Ceilão.
- Tem razão. - Anderson riu, deliciado. - É uma viagem ao redor de 5 mil milhas marítimas de ida e volta ao Ceilão, mas os ventos são bons e, a trinta libras por cabeça, valerá a pena o desvio. - Fez um rápido cálculo mental. - Pela doçura dos céus, isso dá em torno de 16 mil libras! - Calou-se de novo, ao avaliar sua própria parte daquele valor, e então sorriu. - Al-Auf tinha correntes em quantidade suficiente no forte para acomodar todos os seus próprios homens lindamente. Há um belo toque de justiça nisso.
- De acordo com dr. Reynolds, meu pai não terá condições de viajar pelos próximos dois meses. Proponho que o senhor carregue os cativos a bordo do Yeoman e os leve até Colombo. Depois de vendê-los ao governo da VOC de lá, voltará para nos reencontrarmos aqui. Nesse ínterim, mandarei ao sul o caíque capturado para reunir-se ao Cordeiro no local onde está ancorado, nas ilhas Glorieuses. Faremos a viagem de retorno à Inglaterra em comboio. Com bons ventos e a graça de Deus, poderemos lançar âncora no porto de Plymouth antes do Natal.
No dia seguinte, os árabes foram transferidos para bordo do Yeoman. Os ferreiros de todos os navios foram requisitados para o trabalho de soldagem das argolas nos tornozelos das longas fileiras de prisioneiros. Eram acorrentados em grupos de dez e, em seguida, levados para a praia.
Tom estava com Reynolds no hospital improvisado que haviam montado sob as palmeiras. Visitava os marinheiros feridos que jaziam ali, na esperança de lhes transmitir um pouco de conforto e coragem. Dois já tinham morrido em decorrência dos ferimentos infeccionados e da pavorosa gangrena subseqüente, mas quatro recobravam-se suficientemente para logo voltar a seus deveres a bordo do navio, e Reynolds estava otimista que os demais logo o" acompanhassem.
Tom deixou o hospital e parou para observar os grupos de prisioneiros a caminho dos escaleres que os aguardavam. Sentiu uma certa repulsa diante da idéia de que mandava aqueles homens para uma vida de cativeiro. Os holandeses não eram famosos como os mais gentis dos senhores de escravos: recordou-se das histórias que seu pai, Daniel Grande e Aboli tinham contado de suas próprias experiências no forte em Boa Esperança, sob o jugo dos captores holandeses. Então, consolou-se de que a decisão não fora apenas sua: seu pai tinha concordado e assinado o documento de autorização de seu transporte, sob os poderes concedidos a ele por delegação real, enquanto o capitão Anderson ficara positivamente deliciado com a perspectiva de obter um gordo lucro com a venda. Eram piratas sanguinários, afinal. Ao pensar no pequeno Dorian, condenado à mesma sorte, qualquer piedade que pudesse sentir pelos prisioneiros desvaneceu.
De qualquer maneira, discutira com os mais velhos e convencera a ambos, tanto a seu pai como a Anderson, a excluir as mulheres e crianças da guarnição da sentença de transporte para a escravatura. Eram 57 daqueles infelizes, alguns deles bebês de apenas meses de idade. Muitas das mulheres estavam pesadas e evidentemente grávidas. De forma tocante, cinco tinham escolhido seguir seus maridos ao cativeiro em vez de sofrerem com a separação. As outras seriam mantidas ali, em Flor do Mar, até que pudesse ser arranjado um transporte adequado para elas para Zanzibar.
Estava em vias de afastar-se quando o rosto familiar e a barba prateada de Ben Abram entre os prisioneiros prenderam-lhe o olhar.
- Traga aquele homem até a mim - gritou para os guardas, que puxaram o velho das filas e o arrastaram até onde Tom se encontrava.
- Suas pústulas - Tom os censurou. - Ele é um homem velho. Tratem-no com gentileza. - Então, se voltou para Ben Abram: - Por que um homem como o senhor estava com al-Auf?
Ben Abram deu de ombros.
- Há doentes para sefem cuidados em todo lugar, mesmo entre os fora-da-lei. Nunca indaguei dos bons feitos de um homem ou de seus crimes quando chegou a mim para ser tratado.
- Portanto tratou dos prisioneiros ferenghi de al-Auf assim como dos verdadeiros crentes? - perguntou Tom.
- Claro. Essa é a vontade de Alá, o Compassivo.
- Cuidou de meu irmão? Deu-lhe conforto?
- Seu irmão é um menino encantador. Fiz o que podia por ele disse Ben Abram. - Alá, porém, sabe, não foi tanto quanto eu gostaria.
Tom hesitou ligeiramente antes de contrariar as ordens de seu pai/ mas então tomou uma decisão.
Ganhou sua liberdade por isso. Eu o mandarei de volta a Zanzibar as mulheres e crianças. - Virou-se para os guardas: - Tirem as correntes deste homem e depois tragam-no de volta para mim. Ele não será levado para o Ceilão com o resto daqueles vilões.
Quando Ben Abram retornou livre das correntes, Tom o mandou ajudar os assistentes do médico no hospital improvisado de teto de palha.
Com sua carga humana, o Yeoman zarpou na alvorada seguinte, e Tom ficou a observar a nau da praia até que desaparecesse além do horizonte oriental. Sabia que Anderson se sentia otimista ao pensar que poderia fazer a longa viagem pelo oceano Índico até o Ceilão e voltar a Flor do Mar dentro de dois meses.
- Quanto mais tempo demorar, mais tempo papai terá para recobrar as forças - Tom murmurou ao fechar a luneta e chamar o escaler.
Assim que Tom entrou na cabina de popa, percebeu que seu pai estava bem pior do que quando o deixara poucas horas antes.
Havia um cheiro ácido e doentio no ambiente e Hal estava vermelho, agitado. Uma vez mais, mergulhara em delírio.
- Os ratos estão subindo pelo meu corpo. Ratos pretos, peludos... - Interrompeu-se e gritou, fazendo gestos para espantar alguma coisa que Tom não enxergava.
Em pânico, este mandou o escaler de volta à ilha para buscar o dr. Reynolds.
Às pressas, voltou para a cabina, debruçou-se sobre Hal e lhe tocou a face. A pele estava tão quente que ele encolheu a mão de surpresa. Aboli trouxe uma bacia de água fria, e os dois tiraram a camisa do corpo emaciado de Hal, do qual a febre queimava a carne. Ao exporem os cotos de suas pernas, o fedor de podridão ergueu-se numa nuvem espessa, forte o bastante para Tom engasgar.
- Diga ao doutor para se apressar! - berrou, e ouviu sua ordem ser repassada ao escaler que se aproximava.
Aboli e Tom banharam o corpo fervente e puseram panos úmidos sobre o tronco de Hal para tentar reduzir sua temperatura. Tom ficou aliviado quando, por fim, Reynolds surgiu no corredor e correu para o lado do enfermo. Desenrolou as ataduras. Imediatamente, o fedor na pequena cabina se tornouimais forte.
Tom colocou-se por trás dele e espiou com horror os cotos das pernas de seu pai. Estavam inchados e de um vermelho cor de púrpura, e as costuras de categute negro quase se escondiam na carne intumescida.
- Ah! - Reynolds murmurou e se inclinou para cheirar as feridas como um connaisseur a avaliar um fino clarete. - Maturaram muito bem. Finalmente, posso tirar as suturas.
Enrolou as mangas e pediu a bacia de peltre. - Segure-a debaixo do coto - disse a Tom. - Mantenha-o deitado! - ordenou a Aboli, que se debruçou sobre Hal e o segurou pelos ombros, gentilmente, com suas mãos enormes.
Reynolds segurou com firmeza a ponta de uma das costuras de categute que se pendurava entre os lábios inflamados e escarlates do ferimento, e a puxou com força. Hal enrijeceu o corpo e soltou um grito horrível. O suor lhe escorreu pela testa num claro riacho. A tripa escura soltou-se e escorregou para fora da ferida, seguida por uma golfada de pus verde amarelado que pingava em gotas grossas como creme dentro da bacia de peltre. Hal afundou nos travesseiros num desfalecimento mortal.
Reynolds tomou a bacia das mãos de Tom e cheirou o horrível líquido de novo.
- Maravilhoso! É benigno, nem um sinal de gangrena nele.
Enquanto Tom se ajoelhava a seu lado, o médico tirou as outras suturas, uma de cada vez, da carne inflamada e inchada. Cada uma tinha um minúsculo pedaço de detrito amarelo, os restos do vaso sangüíneo morto, preso num nó na ponta. Deixou-as cair na bacia. Quando terminou, refez as ataduras nos cotos com faixas de algodão branco e limpo.
- Não deveríamos lavar as pernas primeiro? - Tom perguntou, timidamente.
Reynolds meneou a cabeça com firmeza.
- Vamos deixá-los sarar com o pus. E mais seguro deixar a natureza seguir seu próprio curso sem interferência - disse com ar austero. - As chances de sobrevivência de seu pai estão agora muito aumentadas, e dentro de poucos dias terei condições de remover as costuras principais que seguram as abas dos cotos.
Naquela noite, Hal descansou com mais tranqüilidade e, pela manhã, o calor e a inflamação de seus ferimentos haviam diminuído consideravelmente.
Três dias mais tarde, Reynolds removeu as costuras restantes. Cortou os fios pretos com um par de tesouras e usou pinças de marfim para puxar os últimos pedaços remanescentes de categute da carne torturada.
Dias depois, Hal conseguiu sentar-se com travesseiros apoiados atrás de suas costas, e tomou parte da conversa, com comentários interessados, pertinentes e inteligentes com relação às informações que Tom lhe forneceu dos acontecimentos.
Mandei ao sul o caíque capturado, para as Glorieuses, a fim de se encontrar com o Cordeiro. Deverá reunir-se ao esquadrão dentro de duas semanas, o mais tardar - Tom disse a ele.
- Ficarei aliviado quando o tivermos conosco e à sua gorda carga de chá mais uma vez sob a proteção dos nossos canhões - comentou Hal. - Aquela nau é muito vulnerável para ficar la desprotegida.
A estimativa de Tom se revelou precisa e, exatamente catorze dias depois, os dois navios, o pequeno caíque e o matronal Cordeiro, atravessaram a passagem no recife e lançaram âncora mais uma vez na lagoa em Flor uo Mar.
Tom mandou que Mustafá, o capitão do caíque, e sua apavorada tripulação fossem retirados das celas no forte, onde estavam aprisionados desde sua captura pelo Minotauro, e trazidos à sua presença. Quando se encontravam enfileirados à sua frente, caíram de joelhos sobre a areia branca de coral, na certeza absoluta de que chegara a hora de sua execução.
- Não creio que sejam culpados de pirataria - Tom lhes disse para acalmar seus temores.
- Com Alá por minha testemunha, o que dizei é a verdade, ó augusto - Mustafá concordou com veemência e abaixou a face até tocar a areia. Ao erguer os olhos novamente, sua testa parecia um bolo açucarado, empoeirada com os grãos brancos.
- Estou lhe concedendo a liberdade - Tom assegurou a ele -, mas tenho apenas uma condição. Deve levar certos passageiros de volta com você para o porto de Zanzibar. O chefe deles é, como você, um homem honesto e um filho do Profeta. Há também as mulheres e crianças que estavam com al-Auf quando capturamos a ilha.
- Que as bênçãos de Alá caiam sobre ti, ó homem sábio e compassivo! - Mustafá dobrou-se nos joelhos de novo e lágrimas de alegria escorreram-lhe pela barba.
- Entretanto - Tom cortou aquela demonstração de gratidão -, não há dúvida em minha mente de que você veio até aqui para comerciar com al-Auf, e que sabia muito bem que as mercadorias que ele oferecia constituíam a pilhagem de um pirata e que estavam conspurcadas com o sangue de homens inocentes.
- Chamo a Deus por testemunha de que eu não sabia - Mustafá gritou com ardor.
Tom olhou para o céu por um instante. Então, disse com secura: Deus não parece responder ao seu chamado. Portanto vou condená-lo ao pagamento da quantia de 65 mil dinares de ouro, que é, Por uma notável coincidência, exatamente a soma que encontramos no seu baú quando fizemos uma busca n" seu navio.
Mustafá gemeu de pavor diante de tamanha injustiça, mas Tom se afastou e ordenou aos guardas:
- Libertem-nos. Devolvam-lhes o caíque e os deixem ir. Levarão todas as mulheres e crianças. O médico árabe, Ben Abram, irá com eles também, mas tragam-no a mim antes que embarque no caíque.
Quando Ben Abram chegou, Tom conduziu-o até o fim da longa praia branca para que pudessem fazer suas despedidas com privacidade.
- Mustafá, o dono do caíque, concordou em levá-lo a Zanzibar.
- Tom apontou para a lagoa onde o pequeno navio estava ancorado.
- Neste momento, ele está embarcando as mulheres e crianças da guarnição.
Observaram as refugiadas serem levadas a bordo, os filhos nos braços e a apertar contra o peito os embrulhos de seus pertences.
Ben Abram concordou com expressão muito séria.
- Só posso lhe oferecer os meus agradecimentos, mas Alá escreverá sua verdadeira recompensa ao lado de seu nome. Você é jovem, porém se transformará num homem de poder. Eu o vi lutar. Qualquer pessoa que possa sobrepujar al-Auf em combate frente a frente é na verdade um guerreiro. - Fez um gesto a enaltecer aquele feito de armas. - A maneira com a qual tem tratado os mais fracos, as viúvas e os órfãos, demonstra que você tempera sua força com a compaixão, e isso o tornará grande.
- O senhor também é um homem de bom coração - Tom lhe disse. - Eu o observei trabalhar com os doentes e feridos, mesmo aqueles que não seguem os ensinamentos de seu Profeta.
- Deus é grande - Ben Abram entoou. - A Seus olhos, todos somos merecedores de piedade.
- Mesmo as crianças mais pequenas.
- Principalmente os mais pequenos - concordou Ben Abram.
- Eis por que, velho pai, o senhor vai me contar aquelas coisas relativas a meu irmão que até então manteve ocultas de mim.
Ben Abram sobressaltou-se e olhou para Tom, mas este devolveu-lhe o olhar com tal firmeza que o médico baixou o seu.
- O senhor sabe o nome do homem que comprou meu irmão de al-Auf - insistiu Tom. - Sabe o nome dele.
Ben Abram coçou sua barba e desviou os olhos para o mar. Então, por fim, suspirou, resignado.
- Sim - disse baixinho. - Eu sei o nome dele, mas é um homem poderoso, de sangue real. Não posso traí-lo. Eis por que ocultei o nome de você, mesmo que me condoa da sua perda.
Tom ficou em silêncio, permitindo ao velho lutar com sua consciência e seu senso de dever. Por fim, Ben Abram murmurou:
- Você já sabe o nome desse homem. - Tom o encarou, espantado. Capturou um dos seus caíques - Ben Abram o conduzia no raciocínio.
A expressão de Tom iluminou-se.
Al-Malik! - exclamou. - Príncipe Abd Muhammad al-Malik?
Eu não disse o nome - retrucou Ben Abram. - Eu não traí meu príncipe.
- Então o lakh de rupias que estava a bordo do caíque de al-Malik era realmente o pagamento por meu irmão, como nós suspeitávamos? - Tom indagou.
- Não posso dizer que seja verdade. - Ben Abram coçou sua barba prateada. - Porém tampouco posso afirmar que seja falso.
- Meu pai e eu acreditamos que seja, mas eu não consegui entender como Dorry pôde ser levado de Flor do Mar antes do pagamento chegar à ilha. Não creio que al-Auf confiaria em entregar alguém tão valioso como Dorry sem receber o pagamento total primeiro.
O velho retrucou:
- O príncipe é o homem mais poderoso da Arábia, à exceção apenas de seu irmão mais velho, o próprio califa. Al-Malik não consegue contar seus navios e seu ouro, seus guerreiros e seus camelos, seus escravos e suas esposas. Sua fama se espalha do poderoso rio Nilo e os desertos, ao norte, até o Império do Grão-Mogol, a oeste, e das florestas proibidas da África até a terra da Monamatapa, ao sul.
- Está dizendo que al-Auf confiou em ter com ele um crédito de um lakh de rupias? - Tom perguntou.
- Estou dizendo que al-Auf não confiaria em nenhum ser vivente a não ser no príncipe Abd Muhammad al-Malik.
- Quando partir daqui, Ben Abram, voltará a Lamu, onde al-Malik é o governador?
- Voltarei a Lamu - o velho concordou.
- Alguma chance de que verá meu irmão de novo?
- Isso está nas mãos de Deus.
- Se Deus for bom, o senhor dará um recado a meu irmão?
- Seu irmão é um menino de grande beleza e coragem. - Ben Abram sorriu diante da lembrança. - Eu o chamei de meu filhote de leão de juba vermelha. Por causa da gentileza que tem me demonstrado e por causa da afeição que tenho pelo garoto, transmitirei seu recado a ele.
- Diga a meu irmão que eu honrarei o juramento solene que lhe fiz. Nunca esquecerei daquela jura, nem mesmo no dia da minha morte.
Dorian estava sentado num colchão sobre o chão de pedra. A única ventilação de sua cela vinha pela estreita seteira de seu lado oposto. Era uma débil brisa da monção que não amenizava o calor suportável. Quando apurava os ouvidos, podia ouvir os sons dos prisioneiros nas outras celas, ao longo da passagem, seus murmúrios quebrados a intervalos por explosões de gritos de seus guardas árabes e por amargas discussões entre eles próprios. Eram como cães confinados em jaulas muito pequenas para o seu número e, no calor opressivo, aqueles marinheiros, naturalmente agressivos e violentos, tornavam-se perigosos. No dia anterior, ele ouvira o barulho de um terrível conflito, e de um homem sendo estrangulado na cela vizinha, enquanto seus companheiros urravam de prazer com sua morte. Dorian sentiu de novo um calafrio e entregou-se à tarefa que escolhera fazer para quebrar a monotonia de seu cativeiro. Usava um elo das correntes de suas pernas para inscrever seu nome na parede. Muitos outros que haviam sido confinados ali, naquela mesma cela, tinham deixado suas marcas gravadas nos macios blocos de coral.
- Talvez um dia Tom encontre meu nome aqui e saiba o que aconteceu comigo - disse a si mesmo e rabiscou a pedra.
Seus seqüestradores o haviam acorrentado apenas na manhã do dia anterior. A princípio o tinham deixado sem os grilhões, mas então o surpreenderam quando tjentava se esgueirar pela estreita abertura da seteira na parede do fundo. Dorian não se deixara assustar com a queda de uns dez metros abaixo da fenda, e tivera sucesso em passar a metade superior do corpo franzino por ela, antes que soassem os gritos de alerta atrás de si e seus carcereiros o segurassem pelos tornozelos e o arrastassem de volta para a cela.
- Al-Auf não terá piedade de nós se o cãozinho infiel se machucar. Tragam as correntes de escravos. - Um ferreiro fora chamado a alterar o tamanho dos grilhões para que se ajustassem a seu tornozelo miúdo. - Certifique-se de que o ferro não o fira. Al-Auf matará o homem que marcar essa pele clara ou causar dano a um fio do cabelo vermelho dessa cabeça.
A não ser pelos grilhões nas pernas, eles o tratavam com consideração e respeito. Toda manhã, duas mulheres veladas o levavam para o átio. Despiam-no e untavam seu corpo com óleo e, em seguida, o banhavam na água da chuva da cisterna. A bordo do navio, Dorian ficara por meses a fio sem banho - não havia água doce para uma tal extravagância, acrescido ao fato de que todos os marujos sabiam que muito banho reduzia a oleosidade natural da pele e fazia mal à saúde. Os muçulmanos eram estranhamente adeptos desses excessos com a limpeza pessoal - Dorian os observara lavarem-se cinco vezes por dia, antes de iniciar o ritual de suas preces - e assim sendo, embora aquilo ameaçasse sua saúde, tivera de resignar-se com aquele suplício diário do banho. Até mesmo começou a apreciar a quebra da rotina horrível de seu cativeiro, e a cada dia lhe era mais difícil dar demonstrações de temperamento para registrar seus protestos.
Ocasionalmente, ousara fazer uma tentativa desanimada de morder uma das mulheres, em especial quando manuseavam suas partes mais íntimas. Em breve, porém, elas estavam prevenidas e evitavam seus ataques entre risadas estridentes. Falavam sem cessar sobre os cabelos de Dorian enquanto o afagavam, penteavam, escovavam e enrolavam em grossos cachos lustrosos. Tinham trocado seus trapos sujos e rasgados por uma túnica limpa de algodão branco.
De todas as demais maneiras, também tomavam conta dele. Haviam colocado uma pele de ovelha muito bem curtida sobre as folhas de palmeira de seu colchão. Deram-lhe um travesseiro de seda para repousar a cabeça e uma lamparina a óleo para iluminar as longas horas da noite. Havia sempre um jarro de água ao alcance de suas mãos, e a evaporação pelos poros do barro mantinha-a fria. As mulheres o alimentavam três vezes ao dia, e embora a princípio ele tivesse jurado morrer de inanição simplesmente para desafiá-las, o aroma da comida que lhe ofereciam era tentador demais para que seu apetite de jovem pudesse resistir.
Ainda que sua solitária existência fosse difícil de suportar, Dorian sabia que devia ser grato por não ter sido colocado nas celas lotadas ao longo do corredor. Fora avisado por seu pai e por Tom a respeito do que poderia acontecer a um garotinho bonito se deixado à mercê de homens mais velhos, vis e depravados.
Sua corrente possuía o comprimento suficiente para que alcançasse o degrau debaixo da seteira e, emêora pudesse subir e olhar pela minúscula abertura, não conseguiria repetir a tentativa anterior de escapar. Quando não estava ocupado a inscrever seu nome na parede, passava horas a olhar para fora, para a lagoa onde a frota de al-Auf se encontrava ancorada. Ansiava por um relance das velas brancas do topo do mastro do Seraph, no distante horizonte azul.
- Tom virá - prometia a si mesmo a cada aurora, ao rebuscar o oceano que se banhava em luz.
A cada crepúsculo, ele se postava ali a observar até que o horizonte desse lugar às sombras de cor púrpura da noite, e se fortalecia de coragem com as mesmas palavras:
- Tom prometeu, e ele sempre cumpre suas promessas. Ele virá amanhã, sei que virá.
Em intervalos de poucos dias, seus carcereiros vinham buscá-lo para levá-lo a Ben Abram. O médico muçulmano apelidara Dorian de Filhote de Leão, o que parecia a todos adequado. Seus carcereiros estavam cientes de seu temperamento, assim como as mulheres, e o entregavam a Ben Abram com alívio. O doutor o examinava com extremo cuidado do topo da cabeça até os pés descalços, em busca de algum sinal de negligência ou abuso. Tinha especial preocupação de que os grilhões da perna não lhe marcassem a pele clara, e de que fosse alimentado e cuidado adequadamente.
- Eles o estão tratando bem, pequeno Filhote de Leão de Juba Vermelha?
- Não, eles me batem todo dia - Dorian respondia, desafiante. - E me queimam com ferros quentes.
- Eles o alimentam direito? - Ben Abram sorria gentilmente diante daquela patente mentira.
- Dão-me vermes para comer e xixi de rato para beber.
- Está bastante saudável com essa dieta - comentava Ben Abram. - Eu deveria experimentar por mim mesmo.
- Meus cabelos estãq caindo - Dorian o contradizia. - Em breve estarei careca, e então al-Auf o mandará para o campo de execução. Dorian tinha ciência do peculiar valor que o muçulmano conferia aos seus cabelos, mas o velho caíra em sua conversa de calvície apenas uma vez.
Dorian abandonou as divagações quando os carcereiros chegaram. Levaram-no à presença do velho médico, que lhe sorriu e lhe acariciou as bastas madeixas.
- Venha comigo, meu filhote careca de leão. - Tomou a mão de Dorian e, pela primeira vez, o menino não tentou safar-se.
Em sua dolorosa solidão, que ele tentava às duras penas ocultar, Dorian se deixara dobrar irresistivelmente diante da gentileza do velho. Acompanhou-o até a sala de audiência onde al-Auf o aguardava.
Havia um ritual nessas reuniões em que Dorian era exibido ao mais recente comprador em perspectiva. Enquanto discutiam e barganhavam, inspecionavam seu cabelo e o corpo nu, Dorian permanecia rígido, a encará-los com uma carranca de fúria e ódio teatral, compondo silenciosamente o mais imundo insulto que seu domínio crescente do árabe lhe permitia.
Sempre chegava o momento durante as negociações em que o comprador perguntava:
- Ele fala a língua do Profeta?
Al-Auf, então, se voltava para Dorian e ordenava:
- Diga alguma coisa, criança.
Dorian se enchia de coragem e verbalizava sua mais recente composição:
- Possa Alá enegrecer tua face e te apodrecer os dentes nessas mandíbulas malditas. - Ou: - Possa Ele encher tuas vasilhas de vermes e secar o leite dos úberes de todas as cabras a quem tomares algum dia como esposa.
Havia sempre consternação entre os prováveis compradores diante de tais barbaridades. Depois disso, quando Ben Abram o conduzia de volta à cela, censurava Dorian com firmeza:
- Onde uma criança tão bonita aprendeu palavras tão feias? - Mas seus olhos brilhavam felizes em meio às teias de rugas.
Porém, agora, quando entraram na sala de audiência, Dorian se deu conta de uma atmosfera diferente. O homem a quem seria mostrado não era um rude capitão de caíque ou um gordo e ensebado mercador: era um príncipe.
Sentava-se ao centro da sala sobre uma pilha de almofadas de seda e do tapete, embora suas costas se mantivessem eretas, e sua postura, régia. Ainda que uma dúzia de atendentes estivesse sentada atrás dele, em atitude de obsequiosa subserviência, não havia arrogância naquele homem. Sua dignidade era imperiosa, e sua presença, imponente. Na Bíblia da família, em High Weald, havia uma figura de são Pedro, a Rocha. A semelhança daquele homem com o santo era tão impressionante que Dorian julgou que deviam ser a mesma pessoa. Viu-se sobrepujado por um respeito e temor religiosos.
- Saúde o poderoso príncipe al-Malik - ordenou al-Auf, quando Dorian permaneceu mudo diante da reencarnação do apóstolo de Cristo. Era evidente o nervosismo de al-Auf quanto à reação de Dorian a essa ordem, pois torcia a barba, ansioso. - Mostre respeito ao príncipe °u ordenarei que seja açoitado - advertiu.
Dorian sabia que a ameaça era infundada: al-Auf jamais o marcaria ou agiria de forma a diminuir-lhe o valor. Continuou a encarar o homem diante de si com temor respeitoso.
- Faça seus salaams ao príncipe! - al-Auf ordenou.
Dorian sentiu seus instintos rebeldes fraquejarem na presença daquele homem. Sem intenção consciente, curvou-se num gesto deferente de profundo respeito.
Al-Auf pareceu espantado e decidiu explorar aquela inesperada vantagem. Esperava que o menino se abstivesse de qualquer referência a cabras ou dentes podres.
- Fale com o augusto príncipe! Saúde-o na língua do Profeta - exigiu.
Sem que precisasse pensar, Dorian recordou-se de um exercício que Alf Wilson lhe dera durante uma longa tarde no convés posterior, quando o Seraph singrava tranqüilo o oceano. Tentava explicar as semelhanças entre as crenças islâmicas e cristãs. E, com sua voz doce e firme, Dorian recitou do Alcorão:
- Sou nada mais que um homem como vós outros, mas a inspiração me veio de que vosso Deus é Deus uno. Quem quer de vós que esperais encontrar vosso Senhor, deveis vos conduzir com probidade.
Houve um súbito conter de fôlego de cada homem na sala. Mesmo o príncipe inclinou-se para a frente num impulso e olhou, fascinado, bem dentro dos claros olhos verdes de Dorian.
Dorian sentiu-se deliciado com a sensação que havia causado. Sempre apreciara as performances teatrais que mestre Walsh montava em High Weald e a bordo do navio, quando o menino era escalado normalmente para o papel de uma mulher. Contudo, aquele desempenho de agora fora indubitavelmente sua mais aclamada representação.
No longo silêncio que se seguiu, o príncipe endireitou-se lentamente e voltou-se para o homem que se sentava logo atrás dele. Dorian viu por seus trajes que era um mulá, um líder religioso, o equivalente islâmico de um padre.
- Explique as palavras da criança - o príncipe ordenou.
- É o versículo 110 da sura 18 - o mulá admitiu com relutância. Sua face era redonda e lustrosa, e uma barriga protuberante avolumava-lhe o colo. Sua barba desgrenhada de bode era tingida de um laranja pálido com hena. - A criança o recitou com exatidão, mas mesmo um papagaio pode ser treinado a pronunciar palavras que não compreende.
O príncipe voltou-se para Dorian:
- O que entende por probidade, criança?
Alf Wilson o preparara para aquilo, e Dorian não hesitou.
- É o verdadeiro respeito a Deus, que impede o culto de ídolos ou de homens deificados ou das forças da natureza ou principalmente de si mesmo.
Al-Malik voltou-se para seu mula:
- -São essas as palavras de um papagaio? - perguntou.O homem santo pareceu desconcertado.
- -Não são, senhor. Na verdade, são palavras sábias.
- -Quantos anos tem, criança? - Al-Malik fixou Dorian com seuprofundo olhar incisivo.
- -Tenho onze, quase doze - Dorian respondeu, orgulhoso.
- -É do islã?
- -Eu haveria de preferir ter meu nariz comido pela lepra - retrucou Dorian. - Sou cristão.
Nem o príncipe nem o mula mostraram espanto ou ira diante de uma negativa tão veemente. Eles também teriam rejeitado assim, com tamanha convicção, qualquer sugestão de apostasia.
- Venha cá, menino - al-Malik ordenou, sem nenhuma entonação rude, e Dorian aproximou-se dele. O príncipe estendeu a mão epegou um punhado dos cabelos brilhantes, recém-lavados do garoto. Dorian submeteu-se pacientemente ao exame, enquanto o homem corria os dedos por entre os fios. - Assim deviam ser os próprios cabelos do Profeta - disse o príncipe, baixinho.
Cada homem na sala entoou:
- -Graças a Deus.
- -Pode mandá-lo embora agora - al-Malik disse a al-Auf. - Vi obastante e precisamos conversar.
Ben Abram pegou a mão de Dorian e, juntos, seguiram para a porta.
- Guarde-o bem - al-Malik falou às suas costas -, mas trate-ocom gentileza.
Ben Abram fez um gesto de respeito e obediência, levando a mão aos lábios e ao coração, e conduziu Dorian de volta à cela.
As criadas de al-Auf trouxeram jarros de café fresco. Enquanto uma enchia de novo a minúscula xícara de ouro puro do príncipe com a espessa bebida escura, outra acendia novamente seu narguilé.
A barganha por uma tão portentosa compra não podia ser feita às pressas. Gradualmente, com longas pausas e elaboradas discussões, expressas em frases poéticas, floreadas, os dois homens chegaram perto de um acordo. Al-Auf tinha dobrado seu preço pretendido de dois lakhs, de maneira a dar a si mesmo espaço para negociar, e, aos poucos, permitiu se dar por vencido.
Já estava escuro quando, à luz das lamparinas a óleo e na fumaça perfumada do narguilé, chegaram a um acordo sobre o preço de escravo do menino.
- Não viajo com tanto ouro em meu navio - disse al-Malik. - Levarei a criança comigo quando partir pela manhã e enviarei um caíque rápido de volta até você, assim que eu chegar a Lamu. Terá seus lakhs antes do nascer da lua nova. Empenho meu sagrado juramento quanto a isso.
Al-Auf nem sequer hesitou.
- Como o grande príncipe decretar.
- Deixe-me a sós agora, pois a hora é tardia e eu quero rezar.
Al-Auf levantou-se de imediato. Cedera suas próprias acomodações a al-Malik, pois estava honrado em ser o anfitrião de tão augusto hóspede, e, ao recuar para a porta, fez uma série de profundos salamaleques.
- Possa seu despertar ser perfumado com a fragrância de violetas, ó poderoso.
- Possam suas preces voar como setas de pontas de ouro diretamente aos ouvidos de Alá, ó Amado do Profeta.
Dorian não conseguiu dormir. A sensação de exultação que vivenciara depois de seu encontro com o príncipe havia muito se dissipara e o deixara assustado e solitário como antes. Sabia que, mais uma vez, as circunstâncias de sua vida tinham mudado e que estava prestes a ser lançado em águas escuras, incertas. Por mais que odiasse seu presente e pavoroso cativeiro, era algo com o que se acostumara. E havia pequenas consolações em sua atual posição: aprendera a gostar e a depender do velho médico árabe. Ben Abram era uma face amistosa e Dorian sentia que, no fundo, poderia contar com seu interesse. Além disso, embora estivesse naquela ilha, haveria sempre uma chance de que seu pai e Tom pudessem seguir o rastro que os conduziria até ele. Se fosse levado para algum outro lugar por aquele temível príncipe, que condições ainda teriam de rastreá-lo então?
Estava com tanto medo que não assoprou a chama da lamparina a óleo, embora atraísse mosquitos para sua minúscula cela, e preferiu se coçar a ficar deitado no escuro. Além das muralhas do forte, as frondes das palmeiras farfalhavam suavemente à incessante monção. Dorian abraçou-se e ficou a escutar o som lamentoso do vento, lutando contra a tentação de entregar-se às lágrimas.
Então, ouviu um ruído diferente do vento, tão sutil que a princípio quase não penetrou a névoa escura de sua angústia. Morreu, e, em seguida, voltou mais forte e mais claro. Dorian sentou-se e apanhou a lamparina. Seus dedos tremiam tanto que quase a deixou cair.
Cambaleou pela cela até o degrau debaixo da seteira e chegou ao limite máximo da corrente que o prendia à parede. Colocou a lamparina na fresta e apurou os ouvidos. Não havia engano: alguém assobiava baixinho lá embaixo, na fímbria da floresta, e ao reconhecer a música, seu coração saltou e se acelerou.
Tom. Quis gritar alto, e esticou a corrente para alcançar a abertura. Tentou cantar a próxima estrofe da canção, mas sua voz emudeceu e seus lábios estavam entorpecidos de ansiedade. Reuniu forças e tentou novamente, modulando a entonação com suavidade para que não fosse levada até os guardas no final da passagem ou aos vigias nos passadiços do forte, acima:
Aos brados, remaremos por todo o bravio oceano, Aos brados, remaremos por todos os mares bravios...
O assobio lá fora, na noite, calou-se abruptamente. Dorian apurou os ouvidos, mas não escutou mais nada. Queria chamar, porém sabia que poderia alertar alguém, portanto conteve a língua, embora queimasse em sua boca como um carvão em brasa.
De repente, houve um som rascante próximo ao lado externo da seteira, e a voz de Tom:
- Dorry!
- Tom! Oh, eu sabia que você viria. Sabia que manteria sua promessa.
- Psiu, Dorry! Não fale alto. Pode passar pela janela?
- Não, estou acorrentado à parede.
- Não chore, Dorry. Vão ouvir.
- Não estou chorando. - Dorian enfiou os dedos na boca para abafar os soluços.
A cabeça de Tom apontou na abertura da janela.
- Aqui! - Dorian engoliu o último soluço e estendeu ambas as mãos pela seteira. - Dê-me sua mão.
Tom lutou para forçar caminho pela estreita passagem, mas, por fim, recuou.
- Não vai dar, Dorry. - Seus rostos estavam separados apenas por centímetros. - Voltaremos para buscá-lo em breve.
- Por favor, não me deixe aqui, Tom. - Dorian implorou.
- O Seraph está esperando ao largo. Papai, Danny Grande, Aboli e eu, estamos todos aqui. Voltaremos para buscá-lo. Logo.
- Tom!
- Não, Dorry. Não faça tanto barulho. Juro a você que voltaremos para buscá-lo.
- Tom, não me deixe sozinho! Tom! - Seu irmão ia embora, e isso ele não conseguia suportar. Dorian puxou-o desesperadamente pelo braço, tentando forçá-lo a ficar.
- Solte-me, Dorry! Vai me fazer cair.
Então, houve um tiro vindo dos balestreiros acima deles, e uma voz gritou em árabe:
- Quem é? Quem está aí embaixo?
Vieram buscá-lo ao meio-dia. As duas mulheres que cuidavam de Dorian estavam chorando e gemendo diante da perspectiva de perder seu encargo, e quando o carcereiro destrancou o grilhão de sua perna, disse num tom sombrio:
- Vá com Deus, macaquinho. Não haverá ninguém para nos fazer rir quando você for embora.
Ben Abram levou-o para onde al-Auf esperava por ele, mãos agarradas raivosamente nos quadris, barba trêmula de ódio.
- Que cães infiéis eram aqueles que vieram farejar ao redor do seu canil na noite passada, cachorrinho? - perguntou.
- Não sei nada sobre isso. - Embora ainda se sentisse desolado e choroso, Dorian esboçou uma demonstração de desafio. - Eu estava dormindo e não ouvi nada durante a noite. Talvez o demônio tenha lhe mandado sonhos satânicos. - Jamais trairia Tom para eles.
- Não tenho mais de aceitar a sua insolência. - Al-Auf aproximou-se, ameaçador. - Responda-me, sua semente de Satã! Quem estava à janela da sua cela? Os guardas o ouviram conversar com o intruso.
Dorian o encarou em silêncio, mas reuniu uma bola de saliva debaixo da língua.
- Estou esperando! - al-Auf gritou raivosamente e baixou a face até que os olhos de ambos ficaram a poucos centímetros de distância.
- Pois não espere mais - disse Dorian, e cuspiu no rosto de al-Auf.
O pirata encolheu-se de espanto, e, em seguida, uma ira terrível distorceu-lhe as feições. Arrancou a adaga recurva do cinto.
- Nunca mais fará isso novamente - jurou. - Vou arrancar-lhe o coração infiel por isso!
Quando armou o golpe, Ben Abram adiantou-se num salto. Para um homem de tal idade, era rápido e ágil. Fechou ambas as mãos no pulso da arma de al-Auf. Embora não tivesse forças para impedir o golpe, desviou-o do peito de Dorian. Uma ponta reluzente da adaga cortou a manga de sua túnica branca e deixou um rasgo no tecido.
Al-Auf cambaleou para trás, desequilibrado pela inesperada intervenção. Então, quase com insolência, jogou o velho ao chão.
- Pagará por isso, seu velho tolo. - Avançou sobre ele.
- -Senhor, não machuque a criança. Pense na profecia e no ouro -implorou Ben Abram, e agarrou a barra da túnica de al-Auf. O corsário hesitou. A advertência o sensibilizara. - Um lakh de rupias a perder -insistiu Ben Abram. - E a praga de são Taimtaim sobre a sua cabeça, se o matar.
Al-Auf parou, incerto, mas seus lábios se repuxaram e sua mão com a adaga tremeu. Olhou para Dorian com tamanho ódio que, por fim, a coragem do menino desapareceu e ele cambaleou de costas até a parede.
- -A cusparada de um infiel! É pior que o sangue de um porco! Ele me conspurcou! - Al-Auf arrebanhou a ira em declínio. Avançou denovo e então estacou, congelado, quando uma voz peremptória ressoou pela sala:
- -Pare! Deponha essa faca! Que loucura é essa?
O príncipe al-Malik surgiu imponente à entrada da sala. Alertado pelos gritos e pelo tumulto, viera dos quartos de dormir do fundo. Al-Auf largou a adaga e prostrou-se sobre as lajes de pedra.
- -Perdoe-me... nobre príncipe - gaguejou. - Por um momento,Satã roubou meu juízo.
- -Eu deveria mandá-lo visitar seu próprio campo de execução -disse al-Malik num tom glacial.
- -Sou pó a seus olhos - al-Auf gemeu.
- -A criança não mais é da sua propriedade. Pertence a mim.
- -Repararei minha estupidez de qualquer maneira que desejar, só não volte a face da vingança sobre mim, grande príncipe.
Al-Malik não se dignou responder, mas olhou para Ben Abram.
- Leve a criança para a lagoa de imediato e faça com que a coloquem a bordo do meu caíque. O capitão está esperando sua chegada. Eu irei em seguida. Zarparemos com a maré alta, esta noite mesmo.
Dois dos homens do príncipe escoltaram Dorian até a lagoa, e Ben Abram caminhou com ele, a lhe segurar a mão. A face de Dorian estava pálida, seus dentes cerrados com força no empenho de manter uma expressão de coragem. Não falaram até que chegaram à praia e ao batel do caíque real que aguardava para levar Dorian até onde a nau se encontrava ancorada.
Dorian, então, se voltou para Ben Abram e implorou:
- -Por favor, venha comigo.
- -Não posso fazer isso. - O velho meneou a cabeça.
- -Só até o caíque, então. Por favor. O senhor é o único amigo que me restou no mundo inteiro.
- Muito bem, mas apenas até o caíque. - Ben Abram subiu no bote ao lado dele, e Dorian chegou-se para mais perto do médico.
- O que vai acontecer comigo agora? - perguntou num murmúrio.
Ben Abram respondeu com suavidade.
- O que quer que seja, será a vontade de Deus, meu Filhote de Leão.
- Vão me machucar? Vão me vender para alguma outra pessoa?
- O príncipe sempre o manterá ao lado dele - Ben Abram lhe assegurou.
- Como pode ter tanta certeza? - Dorian pousou sua cabeça no braço de Ben Abram.
- Por causa da profecia de são Taimtaim. Al-Malik nunca o deixará partir. Você é valioso demais para ele.
- Que profecia é essa? - Dorian endireitou-se novamente e olhou para a face do amigo. - Todos falam da profecia, mas ninguém me conta o que ela diz.
- Não é hora de você saber. - Ben Abram puxou a cabeça do menino para o colo de novo. - Um dia, tudo se tornará claro para você.
- Não pode me contar agora?
- Poderia ser perigoso se você soubesse. Deve ser paciente, pequenino.
O esquife bateu contra o costado do caíque, e homens estenderam as mãos para receber Dorian.
- Não quero ir. - Ele se agarrou a Ben Abram.
- É a vontade de Deus. - Gentilmente, o velho soltou os dedos de Dorian. Os marinheiros o ergueram até o tombadilho.
- Por favor, fique comigo um pouco mais - Dorian gemeu, implorando, os olhos grudados no pequeno barco.
Ben Abram não conseguiu resistir ao apelo.
- Ficarei com você até que partam - concordou, e seguiu Dorian até a pequena cabina que haviam preparado para ele. Sentou-se a seu lado na cama e levou a mão até a bolsa no próprio cinto. Tirou um pequeno frasco de vidro verde e o ofereceu ao menino. - Beba isto.
- O que é?
- Irá suavizar a dor da nossa separação e fazê-lo dormir.
Dorian bebeu o conteúdo do frasco e fez uma careta.
- Tem gosto horrível.
- Como xixi de rato? - Ben Abram sorriu, e Dorian caiu numa risada que estava mais próxima de um soluço. Abriu os braços e abraçou o velho.
- Agora, deite-se. - O médico empurrou Dorian de costas sobre a cama e, por um momento, conversaram baixinho.
Então, as pálpebras de Dorian começaram a pesar. Não dormira a noite toda e sua fraqueza e a droga logo o subjugaram.
Ben Abram acariciou-lhe a cabeça pela última vez.
- Vá com Deus, minha criança - disse baixinho, levantou-se do colchão e seguiu para o convés.
O bater de pés acima de sua cabeça e o movimento do casco pela água enquanto o caíque zarpava acordaram Dorian. Olhou ao redor à procura de Ben Abram, mas descobriu que ele se fora. Em vez do médico, uma mulher estranha encontrava-se de cócoras no convés, ao lado de sua cama. Com túnica e véu negros, parecia um abutre no ninho.
Dorian levantou-se, atordoado, e cambaleou até a pequena vigia da cabina. Lá fora estava escuro, e as estrelas dançavam nas águas da lagoa. A doce brisa noturna a lhe soprar na face o reanimou e aclarou sua mente um pouco. Queria subir até o convés, mas quando se dirigiu à soleira da porta, a mulher levantou-se e lhe barrou a passagem.
- Não pode sair daqui até que o príncipe chame por você.
Dorian discutiu com ela por um momento, mas então desistiu do inútil esforço e retornou à vigia. Ficou a observar as muralhas do forte passarem, reluzentes de branco à luz do luar, enquanto o caíque deixava a lagoa e seguia seu caminho através do canal. Logo depois, sentiu o convés saltar sob seus pés à primeira forte vaga do oceano. Assim que o navio se voltou para oeste, sua visão da ilha banhada de luar viu-se bloqueada. Saltou da vigia e jogou-se sobre a cama.
A mulher velada de negro foi até a vigia e fechou o pesado batente de madeira sobre ela. Naquele momento, a sentinela do convés logo acima da cabeça de Dorian gritou, tão de repente que o menino deu um salto de susto:
- Que botes são esses?
- Barcos de pescadores com a safra de peixes da noite - veio a resposta.
Os sons da conversa eram vagos, quase inaudíveis com a distância e com o batente fechado sobre a vigia, mas o coração de Dorian saltou contra suas costelas e, em seguida, se acelerou de ansiedade.
- Papai! - murmurou, ofegante.
Embora a voz falasse em árabe, ele a reconhecera instantaneamente. Voou pela cabina e tentou chegar até a janela, mas a mulher o segurou.
- Papai! - gritou, enquanto lutava com ela, porém a mulher tinha uma compleição mais pesada, com seios fartos e uma barriga grande e macia. Embora fosse gorda, era ágil e forte. Agarrou-o pelo peito e jogou-o de volta sobre a cama.
- Solte-me! - ele gritou, em inglês. - É meu pai. Deixe-me ir até ele.
A mulher deitou-se sobre Dorian com todo o seu peso, espremendo-o para baixo.
- Não pode sair da cabina - resmungou. - É a ordem do príncipe.
Dorian lutou com ela, mas então se enregelou quando lá fora, na noite, seu pai berrou para o caíque outra vez:
- Que barco é esse?
O som vinha de cada vez mais distante. O caíque devia estar se afastando depressa.
- O navio do príncipe Abd Muhammad al-Malik! - a sentinela exclamou com voz alta e clara.
- Vá com Alá! - A voz de Hal soou tão débil e longínqua que chegou como um murmúrio aos ouvidos de Dorian.
- Papai! - ele berrou com toda a sua força, mas o peso da mulher lhe comprimia o peito, esmagando-o. - Não vá! Sou eu! É Dorry! - gritou, em desespero, porque sabia que seus berros abafados não poderiam ultrapassar a cabina fechada e a água e chegar aos ouvidos de seu pai.
Com uma torção repentina do tronco e um empurrão, Dorian se livrou do peso da mulher e escapou de sob o seu corpo. Antes que ela pudesse se levantar, ele correu para a porta da cabina. Enquanto lutava com a chave, a mulher avançou aos tropeções. Dorian conseguiu abrir a porta quando os dedos dela se enganchavam no decote de sua túnica. Arrojou-se com tanta força para a frente que o algodão se rasgou e ele se viu livre.
Disparou pelo corredor com a mulher em seu encalço, a berrar em desespero:
- Parem o menino! Peguem o infiel!
Um marujo árabe surgiu no topo da escada e barrou o caminho de Dorian com os braços esticados, mas este se jogou no chão e, rápido como um gato, esgueirou-se pelo vão de suas pernas. Correu pelo convés em direção à popa.
Pôde avistar a forma escura do escaler do Seraph que se afastava pelas águas lustrosas da esteira do caíque, em remadas rápidas, rumo à ilha, as pás dos remos a girarem e a faiscar de água, fosforescentes. Uma figura erguia-se imponente na popa. Dorian sabia que era seu pai.
- Não me deixe! - Sua voz soou minúscula dentro da noite.
Chegou à amurada de popa e saltou sobre ela, reunindo forças para mergulhar nas águas escuras, porém uma mão forte fechou-se em seu tornozelo e arrastou-o para baixo. Em questão de segundos, viu-se subjugado pelo peso de meia dúzia de marinheiros árabes. Carregaram-no pelo corredor enquanto ele os chutava, mordia e arranhava, e o empurraram para dentro da cabina.
- Se tivesse se atirado ao mar, eles teriam me jogado atrás de você para ser comida para os peixes - a mulher reclamou com amargura. - Como pode ser tão cruel comigo? - Ela bufou e protestou, e mandou pedir ao capitão que postasse dois homens do lado de fora da porta da cabina; depois, certificou-se de que o batente sobre a vigia e a porta da cabina estivessem ambos fechados firmemente, para evitar outra tentativa de fuga.
Dorian estava tão arrasado e exausto que, quando finalmente adormeceu, era como se ainda estivesse drogado.
A mulher o acordou quase ao meio-dia.
- O príncipe mandou buscá-lo - disse-lhe -, e ficará zangado com a velha Tahi se você estiver sujo e fedendo como um cabrito.
Mais uma vez, ele se deixou banhar e ter os cabelos penteados e depois untado com óleo de suave perfume. Então, foi conduzido para o pavilhão armado no convés de proa do caíque.
Um teto de pano sombreava a área contra o escorchante sol tropical que brilhava quase diretamente em seu zénite, mas os lados da estrutura semelhante a uma tenda estavam recolhidos para deixarem os ventos frescos da monção soprar. O convés fora coberto com tapetes de seda, e o príncipe reclinava-se em uma cama de almofadas sobre uma plataforma pouco mais alta que o tombadilho, enquanto o mulá e quatro outros de sua comitiva pessoal sentavam-se de pernas cruzadas ao seu redor. Estavam em profunda discussão quando Dorian foi trazido até eles, mas al-Malik fez um gesto de silêncio assim que Tahi empurrou o menino à sua frente.
Ela se prostrou no convés e ao ver que Dorian se recusou a lhe seguir o exemplo, puxou-o pelo tornozelo.
- Mostre respeito ao príncipe! - murmurou. - Ou ele poderá mandar surrá-lo.
Dorian estava determinado a resistir à ordem. Cerrou os dentes e ergueu os olhos para encarar a face do príncipe. Depois de apenas uns poucos segundos, sentiu sua determinação fraquejar e baixou o olhar. De certa forma lhe era impossível desafiar aquela figura real. Fez um gesto de respeito.
- Salaam aliekum, senhor! - murmurou e se prostrou no chão.
A fisionomia de al-Malik permaneceu severa, mas pequenas linhas expressivas de um sorriso crispavam-se em torno de seus olhos.
- E paz sobre você também, al-Amhara. - Fez um gesto para que Dorian se aproximasse e, em seguida, indicou uma almofada abaixo de seu tablado, perto de sua mão direita. - Sente-se aqui, onde posso impedi-lo de pular sobre o parapeito do navio quando a próxima cafard, a loucura, apossar-se de você.
Dorian obedeceu sem protestar, enquanto os homens o ignoravam e continuavam com suas discussões. Por um momento, Dorian tentou acompanhar a conversa, mas falavam tão depressa e de uma maneira tão formal que aquilo lhe testou a compreensão até os limites. As falas eram repletas de nomes de homens e lugares que ele desconhecia. Um, porém, Dorian reconheceu: Lamu. Tentou orientar-se, e perscrutou com os olhos da mente os mapas da Costa da Febre que tivera de estudar por tantas vezes durante suas aulas de navegação com Ned Tyler.
Lamu ficava a várias centenas de léguas ao norte de Zanzibar. Era uma pequena ilha e, pelo que se recordava das ordens de navegação no diário de bordo de seu pai, era outro importante porto mercante e centro do governo do Califado de Omã.
Poderia dizer, pela direção do vento e o ângulo do sol da tarde, que o caíque estava num rumo aproximado de noroeste, o que indicaria que, provavelmente, era para Lamu que seguiam. Ficou a imaginar que fado o aguardava lá, e então virou o pescoço para olhar em direção à popa.
Não havia sinal de Flor do Mar no horizonte a ré. Durante a noite, deviam ter deixado a ilha para trás e cortado todo o contato com o Seraph, seu pai e Tom. Ao pensamento, caiu de novo naquele enervante estado de desespero, mas resolveu não se deixar abater. Fez outro esforço para seguir as discussões do príncipe e dos outros homens.
Papai há de esperar que eu me lembre de tudo que dizem. Seria muito valioso para ele ao fazer seus planos, pensou.
Mas então o mulá levantou-se e seguiu até a proa. De lá, começou a fazer o chamado da prece, numa voz alta e trinada. O príncipe e seus homens interromperam a conversa e fizeram os preparativos para a adoração do meio-dia. Escravos trouxeram jarras de água fresca para que seu senhor e a comitiva real se lavassem.
Na popa, o timoneiro desviou o leme para o norte, indicando a direção da cidade sagrada de Meca, e cada homem a bordo que pudesse se afastar de suas funções no caíque olhou para aquele lado.
Em uníssono e a seguirem os brados lamentosos do homem santo, todos se entregaram ao ritual de se levantar, se ajoelhar e se prostrar sobre o convés, submetendo-se à vontade de Alá e oferecendo a seu deus suas devoções.
Era a primeira vez que Dorian se via diante de uma tal demonstração de religiosidade. Embora sentado à parte, sentiu-se estranhamente compelido por aquela força. Jamais se deixara envolver da mesma maneira durante os ofícios semanais na capela, em High Weald, e acompanhou os cânticos e as exaltações com um interesse maior do que seu clérigo jamais evocara dentro dele.
Olhou para o céu, para a vasta abóbada azul do firmamento africano, cheio de nuvens a marcharem tocadas pelos ventos da monção. Com respeito religioso, imaginou que discernia, nas formações cor de prata, a barba de Deus e Suas terríveis feições. E pensou que talvez Deus fosse assim, tão nobre, tão terrificante e, contudo, tão benigno.
O caíque navegava a favor da monção, sua imensa vela latina insuflada, tesa e firme como a película da água. A única retranca era feita de uma tora inteira de alguma madeira escura, pesada, das matas tropicais, quase tão grossa como a cintura de um homem, e mais alta no todo que o próprio caíque. Seu peso total era suportado no cordame sobre o mastro curto pela adriça principal. Enquanto o caíque rolava sobre as ondas, a sombra da retranca balançava para trás e para a frente pelo convés, a projetar sombras alternadas sobre a figura régia do príncipe, e depois permitindo que o brilho pleno do sol tropical se derramasse sobre ele.
Al-Malik levantou-se, a estatura toda debaixo da verga oscilante. O timoneiro árabe distraiu-se e permitiu que a proa do navio avançasse para o olho do vento. A vela vibrou e estalou num ruído agourento.
Dorian aprendera com Ned Tyler que a vela latina era notoriamente caprichosa e instável em qualquer sopro vivo do vento, e o menino podia sentir a tensão do navio ao manejo canhestro ao qual se via agora submetido.
Com o canto dos olhos, Dorian percebeu uma súbita alteração da sombra que a vela lançava pelo convés, abaixo da plataforma. Seu olhar voou para o cordame, e ele viu a adriça principal começar a desfiar-se logo abaixo do pesado bloco de madeira da polia. A corda desenroscou-se como um ninho de serpentes entrelaçadas quando, um após o outro, os fios arrebentaram. Dorian ficou estatelado de pavor, por preciosos segundos abobalhado demais para se mover ou gritar. Já havia observado a retranca ser baixada e girada para os lados quando o caíqUE alterava a direção de curso, portanto sabia o papel vital que a adriça representava no cordame latino.
Começou a levantar-se, ainda com os olhos fixos no mastro único, mas, ao fazê-lo, a última meada da adriça se partiu com um estouro igual a um tiro de pistola. Com um tropel e um roncar de panos, a retranca despencou das alturas, meia tonelada de madeira maciça a se precipitar em direção ao convés como o golpe de lâmina de um carrasco. O príncipe parecia esquecido de tudo a não ser de sua devoção religiosa e permanecia diretamente abaixo da retranca em queda.
Dorian lançou-se para a frente, ombro primeiro, sobre al-Malik. O príncipe foi colhido completamente absorto em suas preces e desequilibrou-se na direção contrária para compensar o movimento do navio. Foi lançado para fora da plataforma, de rosto sobre o convés. As pilhas de tapetes e almofadas espalhadas ampararam-lhe a queda, e o corpinho de Dorian em cima dele.
Atrás de ambos, a retranca maciça arrebentou o teto do convés inferior e o destroçou num monte de pranchas quebradas e cavacos pontiagudos. A enorme tora de madeira partiu-se nas juntas e a ponta frontal caiu, ganhando velocidade ao atingir o convés de popa. Esmigalhou a madeira da plataforma na qual, momentos antes, o príncipe se postava, arrebentou as amuradas da proa e destruiu a maior parte das pranchas do tombadilho.
A única vela latina murchou como um balão e cobriu o convés de proa, sufocando os homens que jaziam deitados debaixo de seus panos duros. O movimento do caíque alterou-se drasticamente, ao que a nau se viu aliviada de toda a pressão de sua vela. A proa caiu para o vento e o barco começou a virar e a chafurdar perigosamente nas vagas provocadas pela monção.
Por longos segundos, houve silêncio a bordo, exceto pelo bater e estalar dos cordames soltos e das pontas dependuradas das cordas. Então, elevou-se um coro de gritos espantados e dos berros dos homens feridos. Dois marinheiros do convés de ré tinham sido esmagados e mortos no instante, e três outros estavam terrivelmente mutilados, membros esmigalhados e ossos partidos. Seus gemidos eram tímidos ao vento.
Debaixo das ordens berradas do capitão do caíque, os marinheiros incólumes correram para retirar a confusão de cordas e panos que cobriam os homens no convés de proa.
- Encontrem o príncipe! - bradava o capitão, receoso por sua própria vida se seu mestre estivesse ferido ou, Alá não permitisse, morto sob o peso maciço da retranca.
Em poucos minutos tinham afastado as dobras da vela, e, com exclamações de alívio e expressões de graças a Deus, ergueram o príncipe de sob os destroços.
Al-Malik ficou parado em meio ao pandemônio, ignorando os gritos enlevados de agradecimento por seu resgate, e inspecionou os restos de seu palanque. A retranca até mesmo destroçara a grossa tecedura de seda de seu precioso tapete de orações sobre o qual ele estivera apenas minutos antes. O mulá correu pelo convés e postou-se a seu lado.
- Saíste ileso, graças a Alá. Ele abriu as asas sobre ti, pois és o Amado do Profeta.
Al-Malik livrou-se das mãos do sacerdote e perguntou:
- Onde está a criança?
A pergunta desencadeou outra frenética busca debaixo das montanhas de panos. Por fim, arrastaram Dorian de sob as dobras da vela e o postaram diante do príncipe.
- Está ferido, pequenino?
Dorian sorria, deliciado com a devastação à sua volta. Não se divertia tanto desde que estivera pela última vez com Tom.
- Estou bem, senhor. - Na excitação do momento, ele falou em inglês, por um lapso. - Mas o seu navio está bem destroçado.
Tom sabia que os homens precisavam ser mantidos ocupados durante os dias e semanas que teriam de esperar pelo retorno de Anderson do Ceilão. Marujos ociosos logo encontram encrencas com que se ocupar; tornam-se uma ameaça para si e para os outros.
Também se deu conta de que, para seu próprio bem-estar e paz de espírito, deveria encontrar lenitivo no trabalho. Caso contrário, passaria os longos dias dos trópicos a remoer a sorte de Dorian e os terríveis ferimentos de seu pai, além da lenta deterioração do estado de saúde de Hal. Descobriu-se dividido entre esses dois deveres de lealdade conflitantes. Sabia que, tão logo Hal tivesse condições de empreender viagem, deveria tentar levá-lo para casa, para a paz e a segurança de High Weald, onde poderia recuperar-se aos cuidados dos médicos ingleses e de uma equipe de criados leais.
Por outro lado, aquilo também significaria deixar Dorian entregue a seu destino como escravo num mundo desconhecido. Sentia a irresistível força de seu juramento ao irmão chamá-lo rumo àquela costa temível que era a África.
Procurou Aboli para ajudá-lo a resolver aquele dilema.
- Se meu pai me deixasse assumir o comando do Minotauro e me desse uma pequena tripulação de bons homens, então você e eu poderíamos partir em busca de Dorian. Sei onde começar a procurá-lo. Em Lamu!
- Então, o que será de seu pai, Klebe? Está pronto para desertá-lo, agora que ele precisa tanto de você? Como se sentirá quando as notícias lhe chegarem, em algum lugar distante - Aboli apontou para o ocidente onde o misterioso continente jazia, por trás do horizonte -, de que seu pai morreu e que talvez você pudesse estar junto dele para salvá-lo?
- Nem fale nisso, Aboli. - Tom o encarou, furioso, e então se conteve com um suspiro de incerteza. - Talvez no dia em que o capitão Anderson e o Yeoman retornarem, meu pai esteja forte o bastante para fazer a viagem para casa sem nós. Aguardarei até então antes de me decidir, porém, enquanto isso, devemos deixar o Minotauro pronto para qualquer emergência.
A despeito do trabalho já feito no barco, ele ainda mostrava os efeitos de seu abandono nas mãos de al-Auf, e ambos sabiam que seu casco estava provavelmente infestado de teredos, a praga das águas tropicais. Naquele mesmo dia, Tom ordenou que a nau fosse vistoriada. Nunca fizera isso antes e sabia que precisaria confiar na experiência de Ned Tyler e Alf Wilson.
O navio foi descarregado de toda a sua carga e equipagem pesada, inclusive canhões e barris de água doce. Tudo foi despachado para a praia e armazenado embaixo de abrigos improvisados sob os palmeirais, e as armas, arranjadas para proteger o acampamento. Em seguida o casco aliviado de peso foi puxado por cordas em paralelo com a praia durante a maré alta.
Linhas foram corridas através dos pesados blocos de polia a partir do topo de todos os três mastros até a terra, e presos às palmeiras mais grossas e fortes acima da praia. Depois, com cinco metros e meio de água sob seu casco, o Minotauro foi rebocado. Vinte homens em cada um dos cabrestantes e o resto nas linhas de terra puxavam e cantavam e estacavam. Gradualmente, a nau declinou para boreste, e as pranchas de seu lado oposto ficaram expostas até que ela estava em vias de emborcar. Porém, na ocasião, a maré se encontrava em fluxo de cheia e o Minotauro assentou-se sobre o fundo arenoso com o costado de bombordo exposto. Antes que a maré refluísse totalmente, Tom e Ned Tyler vadearam pela água para inspecionar seu entabuamento.
O Minotauro estivera nas águas por quase quatro anos e seu fundo estava cheio de ervas daninhas e cracas. Embora aquilo pudesse afetar sua velocidade e características de navegação, não ameaçava sua existência. Entretanto, quando começaram a raspar as ervas daninhas que encontraram, descobriram o que mais temiam: por toda parte os teredos tinham feito seus buracos no madeirame do casco, abaixo da linha d'água. Tom conseguiu enfiar o dedo indicador inteiro dentro de um daqueles orifícios, e sentiu o verme se debater quando a polpa do dedo o tocou. Em alguns lugares, os furos estavam tão próximos que a madeira parecia um queijo suíço.
Os carpinteiros tinham tonéis de ferro com piche a ferver sobre fogueiras na praia. Ned despejou uma concha cheia, borbulhante, dentro de um buraco de verme. A repulsiva criatura saiu a se torcer e a se enroscar, nos estertores da morte, para fora do orifício. Era tão grossa como um dedo, e quando Tom a segurou pela cabeça e a ergueu tão alto quanto pôde alcançar, o corpo serpentino vermelho pendurou-se até a linha de seus joelhos.
- A velha dama jamais voltaria para casa com essa tripulação nojenta a bordo - Ned lhe disse. - Seu casco teria se partido na primeira vaga de verdade em que se arrojasse.
Com uma expressão de desgosto, Tom jogou o verme cozido bem longe, na lagoa, onde um cardume de peixinhos prateados fez a água ferver ao devorá-lo.
Os carpinteiros e seus assistentes vieram juntar-se a eles no trabalho de livrar o casco daquela verminose e ali ficaram até que a maré subiu e o fluxo ascendente de água os arrastou de volta à praia. Trabalharam por cinco sucessivas marés baixas para raspar as ervas daninhas e as conchas, e então cozinharam os vermes e taparam seus buracos com piche e tampões de fibra de cânhamo embebidos em alcatrão. Aquelas pranchas que estavam corroídas e rotas, sem condições de reparo, foram cortadas e substituídas por novas tábuas de madeira. O fundo escovado foi pintado com uma espessa camada de piche, coberto com uma mistura de piche e sebo e depois com outras duas camadas de piche antes que Ned e Tom se dessem por satisfeitos.
Com a próxima maré alta, o Minotauro foi posto a flutuar e, em águas mais fundas, foi virado do outro lado. Em seguida a nau foi arrastada até o mesmo ponto na praia, e todo o processo repetido, mas dessa vez com seu lado de boreste rolado para cima.
Quando, finalmente, foi levada de volta a seu ancoradouro nas águas fundas da lagoa, os gajeiros subiram ao alto para arriar suas vergas. Estas foram cuidadosamente examinadas, e qualquer ponto mais frágil, reparado antes de serem içadas de novo. Num próximo passo, todas as linhas e escotas de seu cordame foram minuciosamente inspecionadas, e a maior parte, substituída por novas cordas de cânhamo da melhor qualidade dos depósitos do Seraph. As antigas velas negras estavam em trapos e farrapos (a maioria fora remendada e costurada de maneira rústica e malfeita pelos homens de al-Auf).
- Teremos de substituí-las todas - Tom decidiu, e mandou Ned procurar nos depósitos do Seraph.
Os encarregados da feitura das velas se agacharam em filas sobre o convés aberto, na confecção de novos panos e na reforma das velas dos depósitos do Seraph para se encaixarem nos mastros e vergas do Minotauro.
Os tombadilhos inferiores do Minotauro se encontravam no mesmo estado de degradação, tal como o cordame. Infestados de vermes e ratos, fediam como uma cloaca. Ned misturou uma poderosa infusão de pólvora, enxofre e vitríolo, e colocaram potes daquela decocção nos conveses inferiores, enfileirados. Assim que a fumaça tóxica e os gases começaram a se desprender dos potes, todos correram para fora, ao ar fresco. Então cerraram todas as vigias e gaiútas e deixaram a fumaça invadir cada canto e vão do casco.
Em questão de minutos, os ratos começaram a desertar do navio, a se esgueirarem pelos escovéns e através de cada fresta das cobertas de artilharia. Alguns eram grandes como coelhos. Enquanto nadavam freneticamente para a praia, a tripulação se divertia atirando neles com pistolas e mosquetes, fazendo apostas.
Quando o casco e o cordame se encontravam em ordem, Tom voltou sua atenção para a pintura. Estava descorada e descascada. Armaram andaimes dos dois lados da nau, e equipes removeram a pintura velha com areia, para depois aplicar três demãos de tinta branca brilhante até a linha-d'água. Num arroubo de zelo artístico, Tom mandou realçar as escotilhas dos canhões com um alegre azul anil e revestir de ouro a figura chifruda de proa e os entalhes da galeria de popa. Depois de seis semanas de trabalho incessante, o Minotauro parecia um navio acabado de sair dos estaleiros. Suas linhas elegantes e a suave curvatura do costado se mostravam em toda a sua plenitude.
Ao olhar para a nau através das vigias de popa, por sobre seu leito de doente, Hal Courtney sorriu com aprovação.
- Por Jesus Cristo, está tão linda como uma noiva no dia do casamento. Muito bem-feito, meu garoto. Acrescentou 5 mil libras ao seu valor.
As palavras de seu pai deram a Tom a coragem de lhe fazer um pedido. Hal escutou em silêncio quando o filho reivindicou o Minotauro e um comando independente. Depois, meneou a cabeça.
-Já perdi um filho - disse baixinho. - Não estou preparado para perder outro, Tom.
- Mas, papai, eu fiz a Dorry um juramento sagrado.
Sombras de uma dor terrível, pior que aquelas que sofrera no engradado quando lhe serraram as pernas, passaram pelos olhos de Hal.
- Eu sei, Tom, eu sei - murmurou. - Porém o Minotauro não é meu para que eu possa dá-lo a você, pertence à Companhia John. Mesmo isso não me impediria se pudéssemos ajudar seu irmão. Mas não posso entregar-lhe o navio e deixar que se defronte com um terrível perigo sem uma tripulação completa para ajudá-lo.
Tom abriu a boca para seguir argumentando, porém Hal estendeu a mão do leito de doente onde jazia e a pousou sobre o braço do filho.
- Escute, rapaz. - Sua voz soou rouca, e a pálida mão ossuda no braço de Tom era leve como a asa de um passarinho. - Não posso deixar que vá sozinho. Esse al-Malik é um homem poderosíssimo. Comanda exércitos e centenas de navios. Por conta própria, você nunca prevalecerá contra alguém como ele.
- Pai... - Tom ia insistir, mas seu pai o impediu.
- Ouça-me, Tom. Devemos empreender juntos esta viagem. Tenho um dever para com o meu rei e para com os homens que depuseram sua confiança sobre mim. Quando nos desembaraçarmos desse dever, eu o farei ser admitido formalmente na Ordem. Você se tornará um Cavaleiro Templário da Ordem de São Jorge e do Santo Graal, com todos os poderes que isso lhe confere. Terá condições de pedir a assistência de seus irmãos cavaleiros, homens como lorde Childs e lorde Hyde.
- Isso levará um ano - Tom gritou, a sofrer uma dor física diante da perspectiva. - Não, pode levar de dois a três anos.
- Não chegaremos a nada se avançarmos despreparados contra um nobre poderoso num país distante, um país que é desconhecido e onde não temos aliados ou influência.
- Anos! - Tom repetiu. - O que acontecerá com Dorry enquanto isso?
- Até lá, eu terei me recobrado dessas feridas. - Hal baixou os olhos para suas pernas dolorosamente mutiladas. - Navegaremos juntos, você e eu, para encontrar Dorian, com uma frota de belos e poderosos navios manejados por valorosos homens guerreiros. Creia-me, Tom, esta é a melhor chance de Dorian, e a nossa.
Consternado, Tom encarou o pai. Desde seus ferimentos, Hal Courtney se tornara um velho frágil, de barba prateada e corpo decrépito. Será que realmente acreditava que poderia algum dia voltar a comandar outro esquadrão ou travar outra batalha? Era um sonho lastimável de alguém desesperado. Tom sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos, mas forçou-as a refluir.
- Confie em mim, Tom -, Hal murmurou. - Eu lhe dou minha palavra. Dará a sua?
- Muito bem, papai. - Tom teve de retinir toda a sua coragem para fazer o juramento, mas não poderia negar isso a seu próprio pai. - Eu lhe dou minha palavra.
- Obrigado, Tom.
A mão escorregou do braço de Tom, e o queixo de Hal afundou-se em seu peito. Seus olhos se fecharam e sua respiração tornou-se tão suave que era quase imperceptível.
Com um lampejo de pavor, Tom julgou que o perdera. Então, viu o arfar suave do peito de Hal a subir e descer docemente.
Tom ergueu-se de seu lugar ao lado da cama e seguiu para a porta, em passos silenciosos para não perturbar o sono de seu pai.
A monção morreu, e eles ficaram por meses nas garras torpes da grande calmaria entre as estações. Então, as palmeiras espreguiçaram suas frondes e as nuvens voltaram em bandos pelos céus e marcharam na direção oposta.
- Esse vento poderoso é a grande maravilha de todos os oceanos das índias - Alf Wilson disse a Tom, assim que se sentaram no convés de proa. Falava em árabe, pois Hal ainda insistia que Tom praticasse o idioma todos os dias, e este sabia que isso o deixaria em vantagem em sua busca para resgatar o irmão. - De novembro a abril, a monção sopra de nordeste, e os árabes a chamam de kaskazi - Alf prosseguiu. - De abril a novembro, retorna sobre si mesma e sopra de sudeste. Então os árabes a chamam de kusi.
Foi o kusi que trouxe de volta o capitão Anderson à Flor do Mar na brilhante aurora de outro dia ventoso. Enquanto as tripulações dos outros navios do esquadrão manejavam as vergas e alinhavam as amuradas para saudá-los, Anderson conduziu o Yeoman of York pela passagem no recife de coral e lançou âncora ao lado do Seraph. Mal o navio estacionara preso pelo cabo, Tom já mandara o escaler buscar Anderson para se encontrar com seu pai.
Edward Anderson subiu a escada com uma expressão altamente satisfeita consigo mesmo devido a seus feitos, mas suas primeiras palavras foram para perguntar a respeito da saúde de Hal Courtney.
- Meu pai obteve uma forte recuperação de seus ferimentos - Tom preferiu contar-lhe uma mentira piedosa -, e estou muito grato pela sua preocupação, capitão Anderson.
Conduziu Anderson até a cabina de popa. Tom providenciara de antemão que o linho dos lençóis sobre a cama estivesse lavado de fresco e passado a ferro, e que os cabelos de Hal fossem cortados e penteados pelo assistente do médico. Hal Courtney sentava-se apoiado contra os travesseiros e parecia mais saudável do que realmente estava.
- Dou graças a Deus por vê-lo em tão excelentes condições, sir Henry - Anderson o cumprimentou e tomou a cadeira ao lado da cama, que Hal lhe apontara.
Tom serviu-lhes um cálice de Madeira.
- Quer que o deixe a sós com o capitão Anderson, papai? - perguntou ao estender o cálice de haste retorcida a Hal.
- Claro que não - Hal lhe respondeu depressa e, em seguida, voltou-se para Anderson. - Meu filho assumiu o comando em meu lugar enquanto estou indisposto.
Tom o encarou. Era a primeira vez que sua promoção era mencionada.
Anderson, entretanto, não mostrou surpresa.
- Ele tem crédito, sir Henry.
- O bastante para os nossos afazeres aqui na ilha. - Hal tentou sentar-se mais alto, mas a dor o impediu. Encolheu-se e se recostou nos travesseiros. - Estou ansioso para ter um relatório de seus feitos desde que nos separamos.
- Todas as minhas novas são boas. - Anderson não se mostrou nem modesto nem reticente. - A viagem para o Ceilão foi realizada sem incidentes e com a perda de apenas uma dúzia dos cativos. Van Groote, o governador holandês em Colombo, foi cortês em sua recepção e muito cordial em seu empenho de negociar. Parece que o nosso senso de oportunidade foi propício, já que uma recente epidemia de varíola em seus barracões reduziu seu contingente de escravos de maneira drástica. Felizmente fiz o levantamento de preços antes do início das negociações com ele, porquanto pude acertar um valor bastante satisfatório.
- Quanto?
- Trinta e sete libras por cabeça. - Anderson pareceu cheio de si.
- Minhas felicitações, capitão Anderson. - Hal apertou-lhe a mão. - Isso é bem mais do que esperávamos.
- As boas notícias não terminam aí. - Anderson soltou uma risadinha de auto-satisfação. - A praga da varíola e as ações predatórias de al-Auf por esses oceanos resultaram em que Van Groote não pudesse embarcar a maior parte da safra de dois anos de canela. Seus armazéns estavam superlotados. - Anderson deu uma piscadela. - Em vez de levar uma nota promissória aos banqueiros da VOC em Amsterdã para o pagamento da venda dos escravos, carreguei meu navio com fardos de canela a preços de barganha. Não tenho dúvida de que duplicará o nosso investimento quando chegarmos à Bolsa de Mercadorias de Londres outra vez.
- De novo devo cumprimentá-lo pelo seu bom senso e pela perspicácia. - As notícias de Anderson visivelmente alegravam Hal. Tom não via seu pai parecer tão entusiasmado e vigoroso desde quando se ferira. - O vento continua bom para Boa Esperança. Zarparemos tão logo o senhor esteja pronto para levar seu Yeoman para o mar, capitão Anderson. Quando poderá ser isso?
- Tenho uns poucos casos de escorbuto na minha tripulação, mas espero que se recuperem depressa, agora que estamos aportados. Preciso apenas reabastecer meus barris de água doce e carregar uma carga de coco. Estarei em condições de zarpar dentro da semana.
Quatro dias depois, o esquadrão içou âncora e seguiu em fila de popa pela passagem entre o recife de coral. Tão logo chegaram a mar aberto, os navios desdobraram todas as velas quadradas e rumaram para o sul, a fim de passar pelo canal de Moçambique e dobrar a ponta extrema do continente africano.
Nas primeiras semanas, o tempo permaneceu bom, e o vento, favorável. A saúde de Hal respondia ao fato de estarem ao mar de novo, com o ar fresco e o suave balanço do Seraph. Ele passava a maior parte do tempo transmitindo a Tom os ritos da Ordem de São Jorge e do Santo Graal, com o objetivo de prepará-lo para a admissão na cavalaria, e expressava prazer diante do progresso do filho.
Depois da primeira semana, Tom ordenou que uma cama fosse montada no tombadilho, a sotavento do convés de popa, e fez com que carregassem seu pai e o deitassem lá, onde poderia mais uma vez sentir o vento e o sol em sua face. Embora Tom houvesse assumido plenamente o encargo do navio, tinha tempo a cada dia para estar com o pai. Durante aqueles períodos, Tom se sentia cada vez mais próximo de Hal do que jamais fora antes. Com freqüência, a conversa derivava para Dorian e seus planos de o encontrarem e resgatarem. Falaram sobre Guy e seu casamento com Caroline Beatty apenas uma vez. Para surpresa de Tom, seu pai o tratou como um homem feito.
- Você se dá conta, Tom, de que a criança pode bem ser sua, e não de Guy?
- Isso me ocorreu. - Tom ocultou seu embaraço tão bem quanto foi capaz e respondeu com a mesma franqueza com que seu pai abordara o assunto.
- Receio que tenha um inimigo em seu irmão gêmeo. Fique de sobreaviso com Guy. Ele não esquece uma ofensa, e tem uma infinita capacidade para odiar.
- Duvido que nos encontremos de novo. Ele está na índia, e eu... bem, devo estar nos confins dos oceanos.
- A sorte nos prega peças vis, Tom, e os oceanos podem não ser tão largos quanto pensa.
O esquadrão chegou ao extremo sul do continente e, aos 43 graus de latitude sul, mudou a rota para oeste a fim de fazer a aproximação de terra no promontório de Boa Esperança. Logo avistaram as ondas a se arrebentarem alvas nos rochedos meridionais da África. Naquele mesmo dia, Hal convocou Tom para a cabina de popa e mostrou-lhe o registro de sua promoção anotado no diário de bordo.
- À parte ser uma demonstração da confiança que tenho em você, Tom, isso também significa que, como oficial, estará capacitado a uma participação sobre o prêmio -, seu pai lhe disse. - O que pode chegar a muito mais de mil libras.
- Obrigado, papai.
- Muito do que eu gostaria de fazer por você está fora de minhas possibilidades. William é meu primogênito, e você sabe o significado disso. Tudo vai para ele.
- Não precisa se preocupar comigo. Posso abrir meu caminho no mundo.
- Disso eu tenho certeza. - Hal sorriu e apertou-lhe o braço. Estava mais forte agora do que quando haviam partido de Flor do Mar. Tom podia sentir-lhe a força nos dedos, e o sol colocara novas cores em seu rosto. - Deve ser porque dobramos o Cabo e estamos rumando para o norte que meus pensamentos se voltam de novo para High Weald. Não nutra rancores para com seu irmão mais velho, Tom.
- Não sou eu que o odeio, papai. É Billy Preto que me detesta.
- Esse apelido preconceituoso trai seus verdadeiros sentimentos para com ele, mas quando eu me for, William será a cabeça da nossa família e tem direito ao seu respeito e lealdade.
- Foi o que o senhor me ensinou, papai, que respeito e lealdade são conquistados, e não exigidos por direito.
Ancoraram sem problemas ao largo da praia do pequeno povoado holandês de Cidade do Cabo. Reabasteceram-se de água doce, de vegetais frescos e mantimentos, e nem mesmo precisaram se aborrecer com a administração holandesa de terra. Na mesma semana, estavam de novo em seu caminho, rumo norte. Então, de repente, quando o esquadrão entrou no oceano Atlântico, as características do tempo mudaram e, com isso, a saúde de Hal Courtney.
As ondas do Cabo seguiam marchando sobre eles, grandes vagas acinzentadas, com profundos vales entre elas, a maltratarem o esquadrão dia e noite. O mar espumava cremoso nas proas dos navios e arrancava qualquer prancha ou equipamento mais frágil dos conveses. O uivo do vento era a voz daquela matilha de lobos, e a investida violenta, impiedosa e incessante. A cada dia Hal se tornava mais fraco ainda, e quando Tom entrou em sua cabina, numa manhã varrida pelos ventos, encontrou seu pai vermelho e a suar. Suas narinas se inflaram ao detectar o cheiro familiar de infecção no ar, e quando Tom puxou os lençóis, descobriu manchas amareladas denunciadoras de pus no linho branco.
Gritou ao vigia acima que chamasse o dr. Reynolds, o qual acorreu imediatamente. O médico desenrolou as ataduras da perna esquerda de Hal, e suas feições se crisparam de desgosto. O coto estava horrivelmente inchado, e os lábios da ferida recém-curada tinham uma coloração púrpura viva, e se abrira, com o pus a minar de suas bordas.
- Receio que haja uma infecção profunda no ferimento, sir Henry. - O dr. Reynolds cheirou o corte purulento e recuou a face. - Não gosto desses humores. Há um traço de gangrena neles. Preciso lancetar a ferida agora mesmo.
Enquanto Tom segurava os ombros de seu pai, o médico comprimiu a ponta de um longo escalpelo profundamente dentro do ferimento, ao que Hal se retorceu e soluçou de dor. Quando Reynolds retirou o estilete, a lâmina veio com uma copiosa golfada de pus amarelado e violáceo, tisnado de sangue fresco, que cobriu o fundo da tigela que o assistente do médico segurava debaixo do coto.
- Acho que drenamos a fonte de mal. - Reynolds pareceu satisfeito com a quantidade e a cor da descarga. - Agora, farei uma sangria para reduzir a febre. - Fez um gesto ao assistente. Enrolaram a manga da camisa de Hal e ataram um torniquete de couro em torno de seu antebraço. Quando torceram apertado, as veias da parte interna do cotovelo de Hal saltaram como cordões azuis debaixo da pele pálida. Reynolds limpou o pus e o sangue da lâmina do escalpelo passando-a em sua manga e, em seguida, testou a ponta na polpa do dedo polegar, antes de picar a veia inchada. Depois observou o sangue de um vermelho escuro que começou a escorrer para dentro da bacia de peltre e a se misturar ao pus amarelo.
- Um único quartilho deve ser suficiente - resmungou. - Acho que agora conseguimos drenar os humores mórbidos. Embora seja eu mesmo a afirmar, é um trabalho tão bom quanto se poderia esperar deste lado dos Confins da Terra.
Pelas semanas seguintes da viagem, as forças de Hal sofreram grandes flutuações. Jazia por dias a fio, fraco e inerte em seu catre, parecendo prestes a morrer. Então, reagia visivelmente. Ao cruzarem a linha do equador, Tom conseguiu que o pai fosse levado ao convés de novo para desfrutar o sol quente, e Hal se pôs a falar com ansiedade de casa, saudoso dos verdes campos e das charnecas selvagens de High Weald. Falou dos livros e papéis de sua biblioteca.
- Todos os diários de bordo das primeiras viagens de seu avô estão lá. Isso pode ser deixado para você, Tom, pois é o marinheiro da família, e eles serão de pouco interesse para William.
Pensar em sir Francis o fez mudar de humor novamente, e se entristeceu.
- O corpo de seu avô estará esperando por nós em High Weald, pois Anderson o mandou de volta de Bombaim. Nós o depositaremos em seu sarcófago na cripta da capela. Ele ficará feliz em estar em casa outra vez, tão feliz quanto eu. - Sua expressão era trágica ao pensar naquilo. - Tom, providenciará que eu tenha um lugar na cripta? Gostaria de jazer ao lado de meu pai e das três mulheres que amei. Sua mãe... - Calou-se, incapaz de continuar.
- Esse dia está muito longe, papai - Tom lhe assegurou com um acento de aflição na voz. - Ainda temos uma missão a cumprir. Trocamos juramentos. É nosso dever imperioso procurar por Dorian. O senhor precisa ficar bem e forte de novo.
Com esforço, Hal expulsou o ânimo negro do desespero.
- Claro, você tem razão. Tal desânimo e essas queixas não nos beneficiam em nada.
- Mandei os carpinteiros moldarem novas pernas para o senhor, de carvalho inglês resistente - Tom lhe disse, animado. - Nós o veremos de pé antes que chegue a High Weald.
Tom mandou chamar o carpinteiro-chefe. O pequeno galês resmungão trouxe as duas pernas de pau ainda toscamente talhadas para mostrar a Hal. Em seguida ele e Tom mediram e as encaixaram nos cotos de Hal.
Hal pareceu demonstrar um interesse mais vívido, e riu com eles, fazendo sugestões tolas.
- Não podemos adaptá-las com uma bússola e uma rosa-dos-ventos para ajudar na minha navegação? - Quando, porém, o carpinteiro se foi, ele mergulhou de volta em seu humor sombrio. - Jamais me adaptarei àquelas vergas de madeira nas pernas. Receio que você tenha de ir atrás de Dorian sozinho, Tom. - Ergueu a mão para calar o imediato protesto do filho. - Eu, porém, manterei minha palavra. Vócê terá de me dar toda a ajuda que puder.
Duas semanas mais tarde, enquanto o navio se arrastava pelas calmarias, nos limites do estagnado mar dos Sargaços, a 30 graus de latitude norte e 60 graus de longitude oeste, Tom desceu à cabina de seu pai em meio à umidade reinante, e o encontrou encolhido no leito. Sua pele se esticava sobre os ossos do crânio, tesa e amarela como um pergaminho, semelhante à face da múmia egípcia que um dos ancestrais de Tom trouxera de uma viagem a Alexandria e que jazia em seu esquife aberto encostado numa das paredes do fundo da biblioteca em High Weald. Tom chamou o dr. Reynolds e deixou seu pai aos cuidados do médico. Em seguida, incapaz de suportar a atmosfera da cabina de popa por mais tempo, correu para o convés e respirou o ar morno em longos haustos.
- Será que esta viagem nunca termina? - lamentou-se. - Se não chegarmos em casa logo, ele não verá High Weald de novo. Oh, possa uma ventania nos apressar.
Correu para os ovéns do mastro principal e subiu ao alto, sem parar até chegar à borla. Pendurou-se lá, a espiar o horizonte ao norte, vago e enevoado com as ondas crespas do mar. Então, tirou a adaga de seu cinto e cravou-a no madeiro do mastro. Deixou-a ali, pois Aboli lhe ensinara que era esse o jeito de chamar o vento. Começou a assobiar Espanholas, mas aquilo o fez pensar em Dorian, e assim mudou para Verdes Folhagens.
Durante toda a manhã, assobiou para o vento e, antes que o sol chegasse ao meio-dia, olhou a ré. A superfície do oceano era um espelho polido, quebrado apenas pelas aglomerações flutuantes dos sargaços amarelados. Então, divisou a linha azul-marinho do vento a avançar rapidamente em direção a eles por sobre a película brilhante da água.
- Tombadilho! - gritou. - Zona de tempestade! Exato a ré!
E viu a pequena figura do vigia no convés tropeçar nos panos para içar as velas ao vento que se aproximava. A lufada colheu todos os quatro navios do esquadrão e os empurrou à frente. O Seraph ainda estava a vante, e o Yeoman, o Minotauro e o matronal Cordeiro navegavam logo atrás. Daquele momento em diante, o vento soprou constante para o oeste, sem nunca fraquejar, nem mesmo durante a noite. Tom deixou sua adaga fincada no topo do mastro principal.
Fizeram sua aproximação de terra ao largo das ilhas Scilly e saudaram o primeiro veleiro que viam em dois meses. Era um pequeno barco de pesca com uma tripulação de três pessoas.
- Quais as novas? - Tom gritou a eles. - Não temos notícias faz dezoito meses.
- Guerra! - a resposta foi berrada de volta. - Guerra com os franceses.
Tom chamou Edward Anderson e os outros capitães a bordo do Seraph para um apressado conselho de guerra. Seria trágico completar uma tão perigosa viagem e, em seguida, quase à vista de casa, cair vítima dos corsários franceses. Hal desfrutava um de seus períodos mais promissores de restabelecimento e estava lúcido o bastante para tomar parte das discussões, portanto Tom reuniu a todos na cabina de popa.
- Temos uma escolha a fazer - disse-lhes. - Podemos chegar à doca em Plymouth ou seguir canal acima até a foz do Tâmisa.
Anderson optou por Plymouth, mas Ned Tyler e Alf Wilson preferiam rumar para Londres. Após cada um dar sua opinião, Tom se manifestou:
- Assim que estivermos em Blackwall, poderemos descarregar nossas cargas diretamente nos armazéns da Companhia, e nosso prêmio pode estar nos cofres da Casa de Leilão da Companhia em questão de dias. - Olhou para seu pai em busca de encorajamento. Quando Hal fez um sinal de concordância, Tom prosseguiu: - Se formos a Plymouth, poderemos ficar engarrafados lá, só o bom Senhor sabe por quanto tempo. Afirmo que devemos fugir dos corsários franceses e acertar um curso ao vento para a Fronteira Norte.
- Tom tem razão. Quanto mais cedo entregarmos nossa carga, mais feliz ficarei - disse Hal.
Alertaram as respectivas tripulações e, com a artilharia carregada e o dobro de gajeiros nos mastros principais, seguiram pelo canal da Mancha. Por duas vezes, durante os dias que se seguiram, avistaram velas estranhas que não ostentavam bandeira alguma, mas tinham a aparência de naus francesas. Tom fez um sinal de bandeira para que a formação se aproximasse, e os estranhos se desviaram, rumando de volta a leste, para o lado da costa francesa, além do horizonte.
Avistaram as luzes da Fronteira Norte duas horas antes da alvorada e passaram por Sheerness ao meio-dia. Na penumbra daquele dia de inverno, todos os quatro navios atracaram nas docas da Companhia, no rio Tâmisa. Antes que o pranchão de desembarque fosse baixado, Tom gritou para o agente da Companhia, que aguardava no cais para recebê-los:
- Mande uma mensagem a lorde Childs de que fizemos uma valiosa captura. Ele precisa vir até aqui imediatamente.
Duas horas antes da meia-noite, a carruagem de Childs, com os dois batedores a pleno galope a abrirem caminho e as lanternas laterais acesas, chegou com estardalhaço aos portões do pátio. O condutor puxou as rédeas da parelha à beira da doca, e Childs quase caiu pela porta da carruagem antes que as rodas parassem de girar. Subiu aos tropeções pela prancha do Seraph, a face rosada, a peruca torta e a boca repuxada de excitação.
- Quem é você? - esbravejou para Tom. - Onde está sir Henry?
- Milorde, sou Thomas Courtney, filho de sir Henry.
- Onde está seu pai, rapaz?
- Espera pelo senhor lá embaixo, milorde.
Childs girou ao redor e apontou para o Minotauro.
- Que navio é aquele? Parece um mercante anglo-indiano, mas eu não o conheço.
- Aquele é o velho Minotauro debaixo de uma fresca camada de pintura.
- O Minotauro! Vocês o retomaram das mãos do corsário? - Childs não esperou pela resposta. - E o outro, atrás do Minotauro - apontou para o Cordeiro. - Que navio é aquele?
- Outra presa, milorde. Um holandês com os porões abarrotados de chá da China.
- Jesus o ama, rapaz. Você é o arauto de grandes novas. Leve-me até seu pai.
Hal estava sentado na cadeira de braços, com uma capa de veludo dobrada no colo para esconder seus ferimentos. Usava um casaco de veludo azul-marinho. Em seu peito reluzia o emblema de ouro e pedras preciosas da Ordem de São Jorge e do Santo Graal. Embora seu rosto estivesse mortalmente pálido e os olhos afundados nas órbitas escuras, mantinha-se ereto e orgulhoso.
- Bem-vindo a bordo, milorde - saudou Childs. - Por favor, perdoe-me por não me levantar, mas estou um pouco indisposto.
Childs apertou-lhe a mão.
- Na verdade, bem-vindo é o senhor, sir Henry. Estou ansioso para ouvir a extensão de seus sucessos. Já vi os dois navios apresados atracados no cais, e seu filho me deu alguma idéia da carga que o senhor nos trouxe.
- Por favor, sente-se. - Hal indicou a cadeira a seu lado. - Meu relato tomará algum tempo. Eu o redigi em relatório detalhado, mas gostaria de lhe contar sobre a nossa expedição, de homem para homem e frente a frente. Primeiro, porém, uma taça de vinho. - Fez um gesto a Tom para que enchesse as taças que estavam prontas numa bandeja de prata.
Childs sentou-se inclinado para a frente em sua cadeira e ficou a ouvir atentamente enquanto Hal relatava sua saga. Ocasionalmente, fazia uma pergunta, mas, na maior parte do tempo, manteve-se em enlevado silêncio, sobretudo no momento em que Hal leu em voz alta os manifestos de carga dos quatro navios do esquadrão. Quando, por fim, ele se calou, esgotado pelo esforço da longa narrativa, Childs inclinou-se e pegou os pergaminhos de sua mão. Examinou-os cuidadosamente, seus olhos a faiscarem de cupidez.
- Desde a deflagração da guerra contra os franceses, o preço das mercadorias quase duplicou. Com os dois navios capturados, o valor dos apresamentos que o senhor conquistou para nós pode ser de cerca de 500 mil libras esterlinas. Os diretores da Companhia serão mais do que gratos, e creio que posso falar por Sua Majestade quando afirmo que a Coroa honrará seu solene compromisso para com o senhor. Será Henry Courtney, barão de Dartmouth, antes que a semana termine.
Childs cumprimentou-o com a taça erguida.
- Eu sabia que havia escolhido o homem certo quando o enviei para essa missão. Posso brindar à sua saúde e fortuna, sir Henry?
- Obrigado, milorde. Fico feliz que esteja satisfeito.
- Satisfeito? - Childs riu. - Não há palavras para expressar a extensão do meu prazer, da minha admiração, do meu arrebatamento diante da sua capacidade de empreendimento, da sua coragem. - Debruçou-se para pousar a mão no joelho de Hal. Uma cômica expressão de assombro estampou-se em sua face. Olhou para baixo e procurou tatear os membros perdidos de Hal.
- Sir Henry, sinto-me abalado. - Fixou os olhos na parte inferior do corpo de Hal. - Pelo bom Deus, homem! Suas pernas! O senhor perdeu suas pernas!
Hal sorriu com tristeza.
- Sim, milorde, houve um certo preço a pagar. Nós, marinheiros, chamamos a isso de a conta do açougueiro.
- Precisamos tirá-lo deste navio. Será meu hóspede na Casa de Bombaim enquanto se recupera. Minha carruagem está no cais. Chamarei meus médicos, os melhores de Londres. Não lhe faltará nada. Prometo.
Uma das primeiras coisas que Hal fez, depois de sua chegada à Casa de Bombaim, foi escrever para William, dando-lhe as momentosas notícias do prêmio que conquistara e de sua iminente sagração como par do reino. Levou uma semana até que a carta chegasse às mãos de seu filho, em Devon.
Com a carta ainda na mão, William berrou para que lhe preparassem o cavalo, e dentro de uma hora saía em galope furioso pelos portões de High Weald e pela estrada principal que conduzia a Londres, tão depressa quanto as trocas por animais descansados nos postos poderiam fazê-lo avançar.
Cinco dias depois de deixar High Weald, entrava nos terrenos da Casa de Bombaim, no meio da tarde, debaixo de um forte aguaceiro. Deixou o cavalo alugado no estábulo; em seguida, ensopado e sujo de lama até a cintura, passou pelas portas principais, empurrando de lado o lacaio e o porteiro que lhe tentavam barrar a entrada.
- Sou o filho mais velho de sir Henry Courtney. Quero ser levado imediatamente à presença de meu pai.
Assim que ouviu o nome, um dos secretários adiantou-se depressa. Nos últimos dias, o nome de Courtney havia se espalhado pela cidade como um rastilho de pólvora. Todos os jornais estampavam em suas páginas os feitos de sir Henry Courtney no oceano das índias. Alguns eram desvairadamente fantasiosos, ainda que, como assunto de fofocas, o fato tivesse suplantado as notícias da última vitória inglesa na França, e o nome de Courtney era decantado em toda taverna e em reuniões elegantes de Londres. Para aumentar a excitação, cartazes anunciavam nas ruas a futura venda em leilão da carga e dos apresamentos, que seria realizada no prédio da Companhia John, na rua Leadenhall, descrevendo-os como "Os Imensos Tesouros Jamais Tomados de um Inimigo em Altos-Mares!"
Em questão de poucos dias depois da chegada do esquadrão, as ações da Companhia Mercantil Unida de Transações Comerciais da Inglaterra para as índias Orientais, que era o nome completo e imponente da Companhia John, aumentaram seu valor em mais de 15 por cento. Durante os últimos cinco anos, a Companhia havia pagado um dividendo anual de 25 por cento, mas a ansiedade pela distribuição daquele imenso tesouro elevara as ações a alturas inimagináveis.
- Graças a Deus o senhor chegou - o secretário cumprimentou William. - Seu pai tem chamado pelo senhor todos os dias. Por favor, permita-me levá-lo até ele.
Conduziu William para cima, pela grande escadaria curva toda de mármore. Quando chegaram ao primeiro pavimento, William estacou abruptamente sob o imenso retrato, de autoria de Holbein,1 da tetravô de lorde Childs, e ergueu os olhos para os dois homens que desciam as escadas em sua direção. As feições severas de William se crisparam e seus olhos negros luziram ao reconhecer o mais novo deles.
- Bons olhos o vejam, caro irmão. Parece que minhas preces ficaram sem respostas e você retornou para me infernizar. Você e esse enorme negro selvagem. - Olhou de um jeito mau para Aboli.
Tom parou no patamar e encarou William. Era quase três centímetros mais alto agora que seu irmão mais velho. Mediu-o dos pés à cabeça, começando pelas botas enlameadas e terminando em sua arrogante e sombria expressão facial, e sorriu com frieza.
- Estou profundamente tocado por sua expressão de afeto. Por favor, esteja seguro de que o sentimento é recíproco em plena medida.
Embora não demonstrasse, William estava abalado com a transformação que o tempo havia processado em Tom. Tornara-se forte e alto, cheio de autoconfiança. Um homem com quem seria preciso ajustar contas.
- Sem dúvida, teremos a oportunidade de continuar esta agradável conversa numa data futura. - William inclinou sua cabeça em despedida. - Agora, porém, tenho meu dever como primogênito de ir até nosso pai.
Tom não tomou conhecimento da referência maldosa da ascendência de William por nascimento, embora aquilo o espicaçasse. Afastou-se para o lado e inclinou ligeiramente a cabeça.
- Seu criado, irmão.
William passou por ele e, sem olhar para trás, chegou à longa galeria de retratos da mansão. O secretário conduziu-o até o final do corredor e bateu com a bengala nas portas duplas. Foram abertas de imediato, e William entrou no elegante quarto de dormir. Quatro médicos cirurgiões de capas negras encontravam-se reunidos em torno da enorme cama de dossel sobre uma plataforma. William poderia adivinhar sua profissão pelas manchas de sangue em suas roupas. Abriram espaço quando ele se aproximou.
Ao ver a figura que jazia sobre o leito, William teve um sobressalto. Lembrava-se do homem robusto e vigoroso que partira do porto de Plymouth. Aquela criatura velha e decrépita de barba branca, cabeça rapada e semblante dolorosamente crispado não podia ser o mesmo homem.
- Rezei a Deus por sua chegada - Hal murmurou. - Venha cá e dê-me um beijo, William.
William adiantou-se e correu para a beira da cama. Ajoelhou-se e pousou os lábios na face pálida de seu pai.
- Dou graças a Deus que Ele o tenha poupado e que esteja tão bem recuperado de seus ferimentos - William lhe disse, com uma expressão sincera e feliz que disfarçava seus verdadeiros sentimentos. Ele está morrendo, pensou, com um misto de exultação e alarme. As propriedades são quase minhas, e também esse famoso tesouro que ele trouxe de volta da sua pilhagem. - Espero que esteja tão bem quanto aparenta, não? - perguntou, e agarrou a mão magra e fria que jazia sobre os lençóis de brocado. Jesus, pensou, se o velho pirata morrer antes da investidura, o baronato estará perdido. Sem o cinto da nobreza em torno da minha cintura, até mesmo o gosto dessa enorme fortuna que ele saqueou dos pagãos ficará azedo.
- Você é um filho bom e adorável, William, mas não chore por mim ainda. Mesmo esses recamadores de caixões - Fez um gesto para os quatro eminentes cirurgiões que rodeavam sua cama - darão duro para me enterrar. - Esboçou uma débil risada, que soou cava no enorme aposento. Nenhum dos médicos sorriu.
- Meu amor pelo senhor é amplificado pelo orgulho que sinto pela glória que alcançou. Quando tomará seu assento entre os lordes, papai?
- Dentro dos próximos dias - Hal respondeu. - E, como filho mais velho, estará comigo para me ver nobilitado.
- Sir Henry - um dos médicos interferiu -, não julgamos que seja prudente que o senhor compareça à Casa dos Lordes em seu presente estado de saúde. Estamos seriamente preocupados...
William saltou de pé e confrontou o médico antes que este pudesse terminar de expressar seus receios.
- Bobagem, camarada. É evidente para qualquer tolo que meu pai está forte o bastante para comparecer às audiências de seu soberano senhor. Estarei com ele a cada minuto. Com minhas próprias mãos satisfarei todos os seus desejos.
Cinco dias depois, os criados carregaram Hal pelas escadas abaixo sobre uma maca, com William a pairar a seu lado com ar ansioso. A carruagem de lorde Childs estava pronta na frente das portas principais, e Tom e Aboli postavam-se separados da tropa de cavaleiros que escoltariam o veículo.
Os lacaios baixaram a maca perto da carruagem, e houve um momento de confusão quando ninguém pareceu ter certeza do que fazer a seguir. Tom adiantou-se rapidamente, empurrando o irmão mais velho com o cotovelo para o lado e, antes que os médicos pudessem intervir, ergueu seu pai com facilidade e entrou na carruagem com o corpo franzino nos braços.
- Pai, isso não é prudente. Vai esgotar suas forças com essa jornada - murmurou ao colocar Hal no assento da carruagem e cobri-lo com a manta de pele.
- O rei pode voltar em breve para o continente para dar seguimento à guerra, e quem sabe quando retornará à Inglaterra?
- Então... Aboli e eu gostaríamos de ir com o senhor - Tom implorou -, mas William proibiu.
- William tomará conta de mim. - Hal puxou a pele lustrosa em torno dos ombros. - Você deve ficar aqui com Walsh para cuidar de nossos interesses na casa de leilão. Deposito grande confiança em você, Tom.
Tom sabia que a verdadeira razão para aquela recusa era que seu pai não queria confrontá-lo com seu meio-irmão.
- Como desejar, papai - concordou.
- Tão logo esses assuntos na Casa dos Lordes estejam concluídos, e a venda completada, poderemos voltar para High Weald e fazer nossos planos para o resgate de Dorian.
- Estarei esperando aqui, quando o senhor retornar - Tom prometeu a ele e desceu para se postar ao lado da roda traseira.
William entrou na carruagem, acomodou-se no assento ao lado do pai, e o condutor chicoteou os cavalos. A carruagem saiu pelos portões.
Tom voltou-se para Aboli.
- É péssimo que Billy Preto arraste papai por aí naquele "chacoalha-ossos". Não o deixarei fazer o mesmo no retorno a High Weald. A longa viagem até Devon naquelas estradas ruins o matará. Precisamos levá-lo de navio até Plymouth. O mar será mais gentil com ele, e você e eu poderemos tomar conta de meu pai muito melhor.
- Você não tem um navio, Klebe - Aboli o relembrou. - O Seraph e o Minotauro pertencem à Companhia John.
- Então, precisamos encontrar outro para alugar.
- Há corsários franceses no canal da Mancha.
- Necessitamos de algo pequeno e jeitoso de manobrar, pequeno o suficiente para não atrair o interesse deles e rápido o bastante para lhes dar a rasteira se decidirem nos caçar.
- Acho que conheço o mestre de um barco assim - disse Aboli, pensativo. - A menos que as coisas tenham mudado no tempo em que estivemos longe.
A venda em leilão nas magníficas instalações da Companhia, na rua Leadenhall, levou quatro dias para se consumar. Tom ficou sentado do princípio ao fim ao lado de mestre Walsh para anotar os lances vencedores do butim.
A sala principal de vendas tinha o formato de uma arena, com fileiras de bancos a se erguerem do assoalho circular onde o leiloeiro tinha seu palanque. Os bancos estavam tão lotados de mercadores, seus secretários e guarda-livros que não havia assento suficiente para todos. Muitos se recostavam de pé contra as paredes do fundo, mas se juntavam ao tumulto ao fazer seus lances aos berros, acenando com seus catálogos para atrair a atenção do leiloeiro.
Enquanto Tom ouvia os preços serem puxados para cima com louco abandono, pensou nos baús de moedas armazenados nos porões debaixo das salas de leilão. Tinham sido levados da doca da Companhia na noite em que o esquadrão atracara, conduzidos pelos coches através das sombrias ruas calçadas de paralelepípedos de Londres, enquanto uma guarda de cinqüenta marinheiros armados marchava em escolta em torno deles.
Era evidente que os preços que lorde Childs predissera seriam de longe ultrapassados na histeria que rodeava a venda. A cada dia que se passava, Tom via sua parte aumentar em valor.
Senhor Amado!, maravilhou-se no último dia ao fazer seus cálculos na lousa. Com a boa sorte, levarei mais de mil libras esterlinas. Era tanto quanto um dos mineiros ou lavradores em High Weald poderia ganhar em sua vida inteira de trabalho. Estava deslumbrado com tais sonhos de riqueza, até que pensou quanto a parte de seu pai poderia valer. Quase 100 mil! Juntamente com o manto de arminho e a bainha de pedras preciosas de um barão. Então sua boca contorceu-se de raiva. E tudo isso cairá simplesmente nas garras gananciosas de Billy Preto, que vomita as tripas toda vez que tem um navio debaixo dos pés.
Enquanto ruminava a injustiça daquilo, o leiloeiro anunciou, num tom tonitruante, o próximo item de venda:
- Senhoras e senhores, sentimo-nos felizes e privilegiados de oferecer à sua apreciação um raro e maravilhoso troféu que deliciará e intrigará até mesmo o mais sofisticado e mundano dentre os senhores. - Com um floreio, ergueu o pano que cobria uma larga jarra de vidro grosso e transparente que se encontrava sobre a mesa à sua frente. - Nada mais que a cabeça decepada do notório e sanguinário salteador e corsário Jangiri, ou al-Auf, o Malvado.
Um burburinho e alvoroço espalhou-se pelas fileiras de mercadores, e eles se debruçaram para a frente para espiar, com ar vampiresco, a cabeça decepada que nadava em seu banho de aguardente. Tom sentiu um impacto físico ao olhar mais uma vez para a face de al-Auf. Seus cabelos negros flutuavam como algas marinhas em torno da cabeça. Um de seus olhos estava aberto: parecia ter divisado Tom e o encarava com ligeiro espanto. Havia uma expressão penosa em seus lábios, como se ele pudesse sentir ainda o beijo doloroso da lâmina que lhe decepara a cabeça do tronco.
- Vamos, cavalheiros! - o leiloeiro os incitou. - Esta é uma peça de valor. Muitas pessoas no mundo ficariam felizes em pagar seis pence para dar uma espiada nela. Ouvi um lance de cinco libras?
Lentamente, uma sensação de indignação se apossou de Tom. Levara a cabeça aos diretores da Companhia John como prova do sucesso daquela expedição, não para se tornar um show num circo ambulante. Seus instintos e seu treinamento tinham-lhe instilado o conceito de compaixão e respeito por um inimigo derrotado. Que al-Auf tivesse capturado e vendido Dorian para a escravatura não entrava nesse mérito.
Sem pensar, gritou, zangado:
- Dez libras! - Não tinha aquela soma à disposição, mas sua parcela do prêmio lhe era devida.
Todas as cabeças ao redor se voltaram, e faces o encararam com curiosidade. Ele ouviu os murmúrios.
- É o rapaz, filho de Hal Courtney, aquele que decepou a cabeça do corsário.
- É ele. Ele abateu al-Auf.
- Qual é o seu nome?
- Tom Courtney. Ele é o filho de sir Hal.
O leiloeiro inclinou-se numa reverência teatral para ele.
- O bravo espadachim e executor, em pessoa, fez o lance de dez libras. Há alguém que ofereça mais que dez libras?
Alguém na fila da frente de bancos começou a bater palmas, e o ato contagiou a todos ao redor. Lentamente, o aplauso tornou-se um tumulto até que todos batiam mãos e pés com estardalhaço.
Tom quis gritar para que parassem. Gostaria de lhes dizer que não matara aquele homem para a aprovação de ninguém dos presentes. Não havia, porém, palavras que descrevessem o que sentira ao decepar a cabeça de al-Auf e para aquilo que sentia agora ao vê-la flutuar numa garrafa, oferecida à diversão daquele bando de paspalhões.
- Dou-lhe uma! Dou-lhe duas! Vendida ao sr. Tom Courtney pela soma de dez libras!
- Pague-os com a minha parte - Tom murmurou com aspereza para Walsh e levantou-se. Queria sair para o ar fresco, para longe dos olhares e sorrisos daquela horda de estranhos. Abriu caminho com os ombros para fora da sala e desceu correndo a grande escadaria.
Ao sair para a rua Leadenhall, chovia. Ele puxou a capa sobre os ombros, enterrou na cabeça o chapéu de abas largas com sua pena de cavalheiro e ajustou o cinto da espada antes de sair de sob o pórtico. Sentiu um toque em seus ombros e girou nos calcanhares. Em sua preocupação, não percebera Aboli entre a multidão de carregadores à entrada das salas de leilão.
- Achei nosso homem, Klebe. - Aboli empurrou para a frente um camarada alto e magro envolto numa capa de marinheiro, cujas feições estavam escondidas pelo barrete de Monmouth puxado sobre seus olhos. Por um momento, Tom não entendeu o que Aboli queria dizer. - O homem para levar seu pai de volta a Plymouth por mar em vez de pela estrada - Aboli esclareceu.
- Então, vamos tomar uma caneca de cerveja enquanto discutimos isso - sugeriu Tom, e saíram correndo sob a chuva até a cervejaria na esquina de Cornhill.
No abafado salão da frente, lotado de advogados e escriturários, e recendendo a fumaça de cachimbos de tabaco, ao odor fermentado das barricas de cerveja, tiraram as capas e chapéus, e Tom voltou-se para estudar a face do homem que Aboli lhe trouxera.
- Este é o capitão Luke Jervis - Aboli lhe disse. - Navegou com seu pai e comigo no velho Pégaso.
Tom gostou dele de imediato. Tinha um olhar agudo, inteligente, e a aparência de um marujo rijo. Sua pele era bronzeada e curtida pelo sol e o sal.
- Luke tem um cúter rápido, e conhece cada centímetro do canal da Mancha, sobretudo os portos franceses, como a palma de sua mão. - Aboli sorriu de modo significativo. - Pode ludibriar qualquer coletor de impostos ou froggie. - Tom não captou o sentido da palavra,
Nota de Rodapé: Froggie = rãzinha, gíria pejorativa para designar um francês.
Fim da Nota.
Mas Aboli prosseguiu: - Se for um carregamento de bom conhaque de Limousin que estiver procurando, então Luke é seu homem.
Tom sorriu ao perceber que Luke era um contrabandista. Se fosse esse o caso, seria a escolha perfeita para levá-los numa rápida viagem pelo canal da Mancha. Seu barco poderia ser rápido como uma fuinha e poderia navegar pelas águas perigosas numa noite sem lua e com ventania. Tom meneou a cabeça.
- Aboli lhe contou o que queremos. Qual seria o preço do seu frete, capitão?
- Devo a sir Henry minha vida e muito mais - disse Luke Jervis, e tocou a longa cicatriz branca que corria por sua face esquerda. - Não cobrarei um vintém. Ficaria orgulhoso de servi-lo.
Tom não perguntou sobre a cicatriz, apenas lhe agradeceu. Então,
disse:
- Aboli o informará assim que meu pai estiver pronto para deixar Londres.
Lorde Courtney retornou de sua primeira visita à Casa dos Lordes, e Tom reparou imediatamente em como a jornada e a cerimônia o haviam consumido. Carregou-o gentilmente pelas escadas até o quarto na Casa de Bombaim, e Hal adormeceu quase de imediato. Tom sentou-se ao lado de sua cama até a noite, quando um lacaio lhe trouxe uma bandeja com o jantar.
- Onde está William? - Hal perguntou com voz débil, enquanto Tom o alimentava com colheradas de sopa.
- Está com o sr. Samuels no banco. - Tom lhe informou. - Lorde Childs entregou-lhe a nota promissória da Companhia, referente à parcela do prêmio, e ele foi depositá-la.
Não comentou como a preocupação de William com a saúde do pai decrescera rapidamente assim que o baronato de Hal fora estabelecido, e a sucessão em seu favor, garantida. O principal interesse de William agora era ver o ouro trancado em segurança com os banqueiros na rua Strand, onde ficaria sob seu controle.
- Precisa descansar agora, papai. Deve recuperar suas energias para a viagem para casa. Nosso negócio aqui em Londres está praticamente concluído. Quanto mais cedo voltar para High Weald, mais depressa há de recuperar a plena saúde.
- Sim, Tom. - Hal demonstrou uma repentina animação. - Quero ir para casa agora. Sabe que William e Alice me deram um neto? Seu nome é Francis, como seu avô.
- Sim, papai - Tom respondeu. - William me disse. - William fizera questão de deixar claro que, agora que havia gerado um herdeiro, o título e as propriedades estavam fora do alcance de Tom para sempre. - Contratei um barco para nos levar de volta a Plymouth. O capitão é Luke Jervis. Lembra-se dele? Ele diz que o senhor lhe salvou a vida.
Hal sorriu.
- Luke? É um camarada formidável, um bom sujeito. Fico feliz em saber que tem seu próprio navio agora.
- É apenas um pequeno cúter, porém rápido.
- Gostaria de partir agora mesmo, Tom. - Hal agarrou o braço do filho. Havia ansiedade em sua expressão.
- Devemos aguardar os médicos para saber a opinião deles.
Passou-se outra semana antes que os quatro cirurgiões concordassem, com relutância, em permitir que Hal fosse levado a bordo do Corvo, o barco de Luke Jervis. Zarparam da doca da Companhia no final da tarde para cumprir a parte mais perigosa da viagem à noite.
William não estava com eles. Agora que o dinheiro do prêmio do leilão se encontrava depositado em segurança no Banco Samuels, na rua Strand, mostrara-se ansioso para voltar e assumir a administração das propriedades.
- Cada hora em que estou longe nos custa dinheiro - dissera William. - Não confio naqueles safados e imbecis que deixei no encargo das propriedades durante minha ausência. Partirei para Plymouth imediatamente. Estarei à espera do seu navio quando o senhor chegar, papai.
O Corvo provou ser mais rápido que sua reputação havia prometido. Ao navegarem para o sul no meio da noite, Tom postou-se ao lado de Luke Jervis no leme. Luke queria saber de cada detalhe da viagem às índias e encheu Tom de ávidas perguntas.
- Doce Jesus! Se eu soubesse, teria assinado a convocação de sir Hal tão depressa como se pode pronunciar Jack Flash.
- E sua esposa e filhos? - Aboli sorriu, mostrando os dentes brancos na escuridão.
- Se eu nunca escutar outro choro de um fedelho ou os resmungos de uma boa esposa, isso não vai partir meu coração. - Luke puxou uma baforada de seu cachimbo, e as brasas iluminaram sua face rude. Em seguida tirou o cachimbo da boca e apontou com ele para leste. - Vejam aquelas luzes lá. É Calais. Eu estava lá, há três noites, para pegar uma carga de conhaque e tabaco. Os portos estão cheios de mercadorias para embarque como moscas num cão sarnento. - Sorriu com ar astuto. - Se um homem tiver uma carta de licença, não precisará navegar até o Oriente para achar um prêmio.
- Não tem dores na consciência por comerciar com os franceses quando estamos em guerra com eles? - Tom perguntou, espantado.
- Alguém tem de fazer isso - respondeu Luke. - Caso contrário, não haveria conhaque nem tabaco para confortar nossos bravos rapazes. Eu sou um patriota. - Disse isso seriamente, e Tom não o pressionou, mas se divertiu com a descrição de Luke da frota mercante francesa que atulhava os portos do canal da Mancha.
Quando o Corvo atracou no cais em Plymouth, William provou honrar sua palavra. Tinha um coche grande e rápido à espera na doca, e os criados postados, prontos para carregar Hal para o veículo. Seguiram num passo suave pela estrada para High Weald e, ao longo do caminho, passaram por pequenos grupos de homens e mulheres - trabalhadores, mineiros e arrendatários das terras - reunidos para saudar seu senhor na volta ao lar. Hal insistiu em sentar-se ereto para que o pudessem ver, e quando reconhecia uma face entre eles, ordenava ao cocheiro que parasse para que pudesse apertar a mão da pessoa pela janela do veículo.
Ao estacionarem diante da mansão, todos os criados estavam perfilados nos degraus da frente. Algumas das mulheres choraram ao ver o estado de Hal quando os lacaios o carregaram para dentro, e os homens resmungaram cumprimentos roucos.
- Jesus o ama, milorde. Alegra nosso coração tê-lo de volta em segurança ao lar.
Alice Courtney, a esposa de William, esperava no topo da escada. Tinha um bebê nos braços, uma criaturinha miúda, Tom viu, com uma face vermelha e enrugada. Abriu um berreiro petulante quando Alice o colocou por um momento nos braços de Hal, mas este sorriu orgulhoso e beijou a cabeça do bebê, coberta por uma espessa penugem preta.
Parece um macaco, pensou Tom. Depois, examinou mais detidamente a face de Alice. Embora não tivesse tido a oportunidade de conhecê- la melhor na ocasião de seu casamento com William, gostara dela instintivamente. Era bonita e alegre, mas agora mal podia reconhecê-la. Havia um ar de melancolia em sua expressão. Seus olhos eram tristes, e embora sua pele ainda fosse macia como um pêssego e sem defeitos, parecia descuidada. Quando Hal foi carregado para dentro pelas portas principais, ela se demorou no topo da escada para cumprimentar Tom.
- Bem-vindo ao lar, irmão. - Beijou-o na face e curvou-se numa cortesia.
- Tem um belo bebê. - Tom tocou a face pequenina com dedos desajeitados e afastou a mão depressa, pois a criança começou a esgoelar de novo. - Tão belo quanto a mãe - completou.
- Obrigada, Tom - ela murmurou e sorriu, e então baixou a voz para que ninguém dentre os criados pudesse escutá-la. - Preciso lhe falar. Não aqui, mas na primeira oportunidade. - Afastou-se depressa e entregou a criança a uma babá, enquanto Tom seguia seu pai escada acima.
Tão logo se viu livre, Tom foi pelo corredor em direção às escadas do fundo, mas teve de passar pelo quarto de Dorian. Abriu a porta, parou na soleira e sentiu uma pontada nostálgica ao olhar pelo pequeno cômodo. Estava como seu irmãozinho o deixara. Havia os batalhões de soldadinhos de chumbo, em bonitos uniformes pintados, alinhados no beiral da janela, e a pequena pipa que Tom lhe fizera para pendurar acima da cama. As lembranças eram muito dolorosas. Ele fechou a porta silenciosamente e desceu as escadas dos fundos.
Passou pela cozinha e os estábulos e correu até a colina em direção à capela. Estava escuro e frio na câmara mortuária, apenas um fino feixe de luz a se infiltrar pela abertura do centro do teto em abóbada. Viu com alívio que o caixão contendo os restos de seu avô repousava de encontro à parede do fundo, ao lado do sarcófago de pedra que fora preparado havia tanto tempo para recebê-lo. Fizera a longa viagem de Bombaim e pelo cabo da Boa Esperança em segurança. Tom foi até o caixão, pousou a mão na tampa e murmurou:
- Bem-vindo ao lar, vovô. Estará mais confortável aqui do que naquela caverna numa terra distante e selvagem.
Em seguida percorreu as tumbas de pedra até chegar a uma no centro. Parou diante dela e leu a inscrição em voz alta: - Elizabeth Courtney, esposa de Henry e mãe de Dorian. Levada pelo mar antes de seu pleno florescer. Descanse em paz.
- Dorian não está aqui hoje, porém estará em breve - disse, também em voz alta. - Eu juro.
Foi até a tumba de sua própria mãe, debruçou-se para beijar os lábios de frio mármore de sua efígie. Então, ajoelhou-se.
- Estou são e salvo em casa, mamãe, e Guy está bem. Encontra-se na índia agora, trabalhando para a Companhia John. Está casado. A senhora gostaria de Caroline, sua esposa. É uma moça bonita, com uma voz adorável.
Conversava com a mãe como se ela estivesse viva e o escutasse, e ficou ao lado do sarcófago até que o raio de sol nas paredes de pedra completou seu circuito e por fim se desviou, deixando a câmara em semi-obscuridade. Levantou-se e subiu as escadas. Saiu para o crepúsculo.
Parou e olhou ao redor, pela paisagem cheia das sombras da noite, paisagem da qual se recordava tão bem, mas que agora lhe parecia tão estranha. Além da ondulação das colinas, viu o mar distante. Teve a sensação de que ele o convocava a distância, desde as luzes cintilantes que marcavam o porto. Sentiu como se houvesse se ausentado por uma existência inteira; porém, em vez de estar feliz, viu-se tomado de inquietação, consumido pela vontade de seguir em frente. A África jazia lá, ao longe, e era onde seu coração ansiava por estar.
- Fico a imaginar - murmurou ao olhar colina abaixo - se serei feliz em algum lugar outra vez.
Ao chegar ao sopé do monte, o conjunto de casas era apenas uma sombra escura, um vulto a assomar entre as brumas da noite que caía pelos campos. Tom parou perto da vala que separava o jardim, ao divisar de relance uma figura fantasmagórica que se destacava no gramado. Era uma silhueta feminina, vestida toda de branco, e Tom sentiu um calafrio de pavor supersticioso, pois parecia etérea, uma alma penada. Existiam muitas lendas de fantasmas que assombravam High Weald. Quando ele e Guy eram crianças, suas babás costumavam assustá-los com aquelas lendas.
Não ficarei acovardado diante de nenhum fantasma, Tom decidiu e reuniu coragem.
Caminhou em direção à aparição diáfana. Ela pareceu não se dar conta da aproximação até Tom ficar quase a seu lado. Então, ergueu os olhos, sua expressão assustada, e Tom percebeu que era a cunhada que estava ali. No momento em que Alice o reconheceu, recolheu as saias e correu em direção à casa.
- Alice! - ele a chamou e correu atrás dela. Sua cunhada não olhou para trás e aumentou o passo. Tom alcançou-a na alameda de cascalhos ao redor da casa e agarrou-a pelo pulso. - Alice, sou eu, Tom - disse. - Não tenha medo.
- Deixe-me ir - ela murmurou, com voz de pavor, e ergueu os olhos para as janelas, que já luziam com o brilho amarelado das velas.
- Você disse que queria falar comigo - ele a relembrou. - O que quer me dizer?
- Não aqui, Tom. Ele pode nos ver.
- Billy? - Tom se espantou. - O que ele pode fazer?
- Você não entende. Precisa me deixar ir.
- Não tenho medo de Billy Preto - Tom disse a ela com juvenil arrogância.
- Mas deveria ter - Alice retrucou, libertou a mão e correu pelos degraus para dentro da casa.
Parado no meio do passeio com ambas as mãos nos quadris, Tom ficou a observar a cunhada afastar-se. Ia se retirar quando algo o fez olhar para cima.
Seu irmão mais velho estava postado diante de uma das altas janelas de um quarto do segundo andar. A luz às suas costas destacava-lhe a esguia e elegante silhueta. Nenhum deles se mexeu por um longo momento, e então Tom fez um gesto impaciente de indiferença e seguiu Alice para dentro da casa.
Tom estava em seu quarto quando ouviu um som abafado que parecia estranho mesmo na velha casa com suas tábuas rangentes e telhado varrido pelo vento. Depois de segundos, o ruído voltou, como o de um coelho encurralado, um gemido alto e choroso. Foi até a janela e abriu o trinco. Quando escancarou as venezianas, a brisa da noite, vinda do mar, entrou, e com ela o choro, dessa vez mais forte. Reconheceu que era humano. De uma mulher a soluçar, o som intercalado por tons mais profundos, masculinos.
Tom debruçou-se para fora da janela. Percebeu que o ruído vinha do andar abaixo, onde ficavam os aposentos principais de dormir. De repente, as vozes silenciaram, e ele estava prestes a fechar a janela de novo quando distinguiu o som de uma pancada. Devia ter sido forte para ser ouvida tão claramente, e o coração de Tom disparou ao ouvir um grito de mulher. Dessa vez, era um berro de dor, tão alto e distinto que ele não poderia se enganar quanto a quem o soltara.
- O porco! - esbravejou e correu para a porta. De mangas de camisa, a gravata solta, as pontas a lhe caírem no peito, Tom correu pelo corredor até a escada e desceu, três degraus de cada vez.
Ao passar pela porta dos aposentos de seu pai, hesitou. As portas duplas estavam abertas, e as cortinas da cama de dossel, puxadas de lado, de maneira que ele podia ver Hal deitado sob os lençóis bordados. Recostado nos travesseiros, exclamou para o filho com voz aflita quando Tom passou pelas portas abertas:
- Não, Tom. Venha cá!
Tom ignorou seu apelo e correu para a porta dos aposentos de William, logo adiante no corredor. Tentou a maçaneta, mas estava trancada, então ele bateu com o punho fechado.
- Abra, Billy, seu maldito! - berrou.
Houve um longo silêncio lá dentro, e ele encheu os pulmões para gritar de novo, porém a porta abriu-se sem ruído e William postou-se na fresta, bloqueando com o corpo a visão do quarto, para que Tom não pudesse enxergar lá dentro.
- O que deseja? - perguntou. - Como se atreve a vir gritar diante da porta dos meus aposentos privativos? - Também estava em mangas de camisa, e sua face mostrava-se ainda mais morena de rubor, de raiva ou esforço, e seus olhos faiscavam de fúria. - Suma daqui, seu cãozinho impertinente!
- Quero falar com Alice. - Tom fincou pé no lugar, com teimosia.
- Você já falou com ela esta noite. Alice está ocupada. Não pode vê-la agora.
- Ouvi alguém gritar.
- Não foi aqui. Talvez tenha ouvido uma gaivota ou o vento nos beirais do teto.
- Há sangue na sua camisa. - Tom apontou para as pequenas manchas escarlates na camisa imaculadamente branca de seu irmão.
William olhou para baixo e sorriu friamente, um sorriso maldoso que ressaltou sua expressão irada. Então, tirou a mão direita que estava às costas e sugou o corte nas juntas inchadas.
- Prendi a mão no batente da porta.
- Preciso ver Alice.
Tom avançou para abrir passagem, mas nesse instante a voz de Alice bradou, em pânico:
- Tom, por favor, vá embora. Não posso vê-lo agora. - Falava em tons entrecortados de lágrimas e dor. - Por favor, Tom, ouça meu marido. Você não pode vir aqui assim.
- Agora acredita em mim? - William perguntou com sarcasmo. - Alice não irá conversar com você. - Recuou e fechou a porta.
Tom permaneceu postado em frente ao quarto, indeciso. Ergueu a mão para bater novamente, porém a voz de seu pai o impediu. Hal o chamava de novo.
- Tom, venha cá. Preciso de você.
Tom afastou-se com pressa e chegou até o lado da cama de seu pai.
- Papai, eu ouvi...
- Não ouviu nada, Tom. Nada.
- Mas eu ouvi. - A voz saiu carregada de indignação.
- Feche as portas, Tom. Há algo que preciso dizer a você.
Tom fez o que ele lhe pedia e, em seguida, voltou até a cama.
- Existe uma coisa de que precisa se lembrar pelo resto de sua vida, Tom. Jamais interfira na relação entre marido e mulher. Alice é propriedade de William, ele pode fazer com ela o que desejar, e se tentar interpor-se entre eles, seu irmão terá o direito de matá-lo. Você não ouviu nada, Tom.
Quando desceu para jantar, Tom ainda tremia de raiva. Três lugares estavam dispostos sobre a longa mesa encerada, e William já se sentava à cabeceira.
- Está atrasado, Thomas - disse, e estava sorrindo, tranqüilo e elegante, com uma pesada corrente de ouro no pescoço e um broche de rubi faiscante a pender em seu peito. - Em High Weald, sentamo-nos para jantar às oito horas da noite em ponto. Por favor, tente se adaptar aos costumes da casa enquanto for um hóspede aqui.
- High Weald é a minha casa - Tom protestou com frieza. - Não sou um hóspede.
- Isso é uma questão para debate, porém eu sustento um ponto de vista contrário.
- Onde está Alice? - Tom olhou intencionalmente para o lugar vazio do lado esquerdo de William.
- Minha esposa está indisposta - William respondeu suavemente. - Não se juntará a nós esta noite. Por favor, tome sua cadeira.
- É estranho, mas não tenho apetite. Algo nas imediações me deixou sem fome. Não jantarei com você esta noite, meu caro irmão William.
- Como desejar. - William deu de ombros e voltou sua atenção para o copo que o mordomo enchia com vinho tinto.
Em seu atual estado de ânimo, Tom não poderia confiar em si mesmo para passar a noite na mesma casa que seu irmão. Chamou os cavalariços, que vieram tropeçando pela escada de seus quartos no alojamento acima da estrebaria, e pediu que selassem um dos cavalos para ele.
Tom saiu a galope pela primeira milha, de pé sobre os estribos, e levou a montaria em louca corrida pela noite escura. O ar noturno esfriou um pouco sua raiva, e então ele teve pena do esforço a que obrigava o cavalo. Puxou as rédeas para um trote e tomou o rumo da estrada de Plymouth.
Encontrou Aboli com Luke Jervis na taverna do Carvalho Real, perto do porto. Eles lhe deram as boas-vindas com indisfarçado prazer, e Tom entornou a primeira caneca de cerveja sem tirá-la dos lábios ou parar para respirar.
Lá pelas tantas da noite, subiu as escadas do fundo para um pequeno quarto que dominava o porto, acompanhado de uma moça bonita e risonha que o ajudou a firmar-se quando perdeu o equilíbrio e quase rolou pelos degraus.
O corpo nu da rapariga era muito branco à luz da lamparina, e seu abraço, caloroso e envolvente. Riu nos ouvidos dele quando se atracaram, e Tom liberou toda a raiva montado sobre ela. Mais tarde, a moça soltou uma risadinha matreira ao recusar a moeda que ele lhe oferecia.
- Eu é que deveria lhe pagar, sr. Tom. - Quase todos na cidade conheciam Tom desde criança. - Que belo rapaz se tornou. Fazia muito mais de um mês que minha tigela de mingau não era tão bem mexida.
Muito depois, Aboli impediu que ele aceitasse um desafio para um duelo de outro marujo alterado, e o arrastou para fora da taverna; ajudou-o a montar em seu cavalo e o levou, balançando na sela e cantando indecências, para High Weald.
Logo cedo, na manhã seguinte, Tom cavalgou para as charnecas com um de seus alforjes de sela estufado. Aboli o esperava na encruzilhada, uma figura negra, exótica, em meio à bruma espessa. Conduziu o cavalo para o lado do de Tom.
- Acho que os bons burgueses de Plymouth haveriam de preferir um ataque dos franceses à sua última visita. - Olhou de esguelha para Tom. - Ainda está sofrendo com as conseqüências das confusões e investidas da noite passada, Klebe?
- Dormi como a criança inocente que sou, Aboli. Por que sofreria? - Tom tentou sorrir, seus olhos raiados de sangue.
- Ah... a alegria e as tolices da juventude. - Aboli balançou a cabeça com ar caçoísta.
Tom esboçou um sorriso, espicaçou o cavalo com o estribo e colocou a montaria a galopar em seus limites. Aboli o acompanhou e, juntos, alcançaram o cume da colina, onde um arvoredo escuro cobria as ondulações do solo. Tom puxou as rédeas, saltou da sela, amarrou o cavalo num dos galhos e, em seguida, dirigiu-se para o cemitério de lajes antigas que se situava na clareira da mata. Estavam cobertas de musgo pelo tempo, e a lenda dizia que marcavam os túmulos dos antigos que haviam sido enterrados ali, no início das eras.
Começou a escolher um local propício em meio delas, permitindo que os pés, não a cabeça, o guiassem. Por fim, fincou o calcanhar no solo úmido da turfa.
- Aqui! - disse.
Aboli adiantou-se com a espada na mão. Enterrou a lâmina bem fundo na terra macia e começou a cavar. Ao interromper a tarefa para recuperar o fôlego, Tom tomou seu lugar e só parou quando o buraco estava na altura de sua cintura. Apoiou as mãos na borda e saltou para fora, e seguiu até onde deixara amarrado o cavalo. Soltou a fivela do alforje e tirou com cuidado um embrulho envolto em panos. Carregou-o até o cemitério e o depositou ao lado do buraco recém-cavado. Desenrolou o pano que cobria o jarro. Pelo vidro, al-Auf o encarou com um olho sarcástico.
- Recitará a prece para o morto, Aboli? Seu árabe é melhor que o meu.
Aboli recitou-a numa voz profunda e sonora que ecoou estranhamente pela mata escura. Quando ficou em silêncio, Tom enrolou de novo a jarra para ocultar seu triste conteúdo e depositou-a no fundo do túmulo que haviam preparado.
- Você foi um homem de coragem, al-Auf. Possa seu Deus, Alá, perdoar-lhe os pecados, pois foram muitos e terríveis. - Fechou o túmulo e pisoteou o solo solto. Em seguida espalharam a vegetação solta sobre a cova para esconder a terra mexida.
Retornaram ao local onde estavam os cavalos e montaram. Da sela, Aboli olhou para trás, para o arvoredo, pela última vez.
- Você matou o seu homem em combate solitário - disse suavemente - e tratou seu cadáver com honra. Tornou-se realmente um guerreiro, Klebe.
Puxaram as rédeas, viraram as cabeças dos cavalos e cavalgaram juntos pela charneca em direção ao mar.
Era como se Hal Courtney tivesse se apercebido que a ampulheta de sua vida deixava escorrer os derradeiros grãos de areia. Seus pensamentos viviam na morte e suas armadilhas. Da cama, chamou o mestre pedreiro da cidade e mostrou-lhe o desenho que fizera do próprio túmulo.
- Sei muito bem o que deseja de mim, milorde. O pedreiro tinha uma tonalidade acinzentada de pele, com a poeira de pedra entranhada em seus poros.
- Claro que sabe, John - disse Hal.
O homem era um artista do cinzel e martelo. Tinha esculpido o sarcófago para o pai de Hal e para todas as suas viúvas. Era adequado que fizesse também o mesmo para o senhor de High Weald.
Depois disso, Hal ordenou que o funeral de seu pai fosse oficiado pelo bispo. Seu corpo seria colocado para finalmente descansar no sarcófago que John, o mestre pedreiro, preparara para ele quase duas décadas antes.
A capela estava cheia com a família e todos aqueles que haviam conhecido sir Francis Courtney. Os criados e trabalhadores das propriedades, vestidos com suas melhores roupas, lotavam os bancos de trás e se espalhavam para fora pelo pátio da capela.
Hal sentava-se no centro do átrio, numa cadeira especial que os carpinteiros da propriedade haviam adaptado para ele, com as laterais altas para firmá-lo e alças em cada canto para que pudesse ser carregada por quatro lacaios fortes.
O resto da família Courtney sentava-se nos bancos da frente. Havia uns doze primos, tios e tias, assim como os parentes mais chegados. William tomara o lugar mais próximo de seu pai, e Alice estava sentada ao lado dele. Era a primeira vez que aparecia em público desde aquela noite em que Tom tentara forçar a entrada a seus aposentos privativos. Vestia-se de luto negro, com um véu escuro a lhe cobrir a face. Mas quando ergueu a ponta para enxugar os olhos, Tom inclinou-se para a frente e viu que um lado de seu rosto estava inchado, e havia um corte profundo em seu lábio inferior, coberto por uma casca escura; um horrível hematoma em seu queixo espalhava pelos lados uma coloração violácea e esverdeada. Ela sentiu os olhos de Tom sobre si e deixou cair o véu depressa.
No banco, do outro lado do átrio, sentavam-se os convidados de honra: quatro cavaleiros da Ordem de São Jorge e do Santo Graal. Nicholas Childs e Oswald Hyde haviam chegado de Londres juntos. O pai de Alice, John Grenville, conde de Exeter, cavalgara de seus próprios domínios, uma vasta propriedade que fazia fronteira com High Weald, com seu irmão mais novo, Arthur.
Depois da cerimônia, o grupo retornou para a casa grande, para o banquete do funeral. A família e os convidados de honra comeram no enorme salão de jantar, enquanto mesas improvisadas, cheias de comida e bebida, estavam armadas no pátio, para os camponeses.
A hospitalidade de Hal mostrou-se tão generosa, as provisões dos celeiros de High Weald tão fartas que, antes que a tarde findasse, dois pares da realeza foram forçados a se retirar para seus quartos para descansar. O bispo se viu tão sobrecarregado pelas exigências de seu ofício e pelo fino clarete que teve de ser ajudado escada acima por dois lacaios; fez uma pausa no patamar para distribuir bênçãos aos enlutados reunidos abaixo, que o observavam subir.
Os convivas no pátio, depois de se servirem livremente das canecas de sidra espumante, aproveitaram-se das beiradas das sebes e cercas com o mesmo propósito, e outros menos sedados continuaram com a festança. Mesclados aos roncos dos bêbados, ouvia-se o farfalhar lascivo do feno no estábulo, as risadinhas e os gritinhos de casais ocupados em atividade bem diferente.
Ao crepúsculo, os quatro cavaleiros da Ordem desceram de seus quartos em diversas condições de recuperação do banquete de pêsames e entraram nas carruagens que os aguardavam. A pequena cavalgada deixou a casa e seguiu a carruagem da frente, em que Hal e Tom se encontravam, de volta à capela na colina.
Na cripta, os cerimoniais da Ordem haviam sido preparados. Os desenhos do mosaico no chão tinham o formato de estrela de cinco pontas e, no centro, estavam três caldeirões de bronze contendo os antigos elementos do fogo, terra e água. As chamas do braseiro dançavam pelas paredes de pedra e lançavam estranhas sombras pelos cantos além das tumbas enfileiradas.
A cadeira de Hal encontrava-se pronta para recebê-lo à porta da capela. Assim que ele se sentou, seus irmãos cavaleiros o carregaram degraus abaixo para a cripta e depositaram a cadeira no centro do pentáculo, com os três caldeirões a rodeá-lo.
Tom, envergando as simples túnicas brancas de um acólito, esperava sozinho na nave da capela, acima, e rezava diante do altar sob a luz das tochas afixadas em seus suportes no alto das paredes. Podia ouvir as vozes dos cavaleiros em murmúrios e o eco que subia suavemente da cripta, quando abriram a Loja em primeiro grau. Em seguida ouviu os passos pesados nos degraus de pedra, quando o conde de Exeter, o padrinho de Tom, veio buscá-lo para que se reunisse a eles.
Tom acompanhou-o pela escada até onde os demais cavaleiros o aguardavam dentro do círculo sagrado. Suas espadas estavam desembainhadas e eles usavam os anéis de ouro e correntes de seus graus como Cavaleiros Navegantes do primeiro grau da Ordem. Tom ajoelhou-se na borda do pentáculo e pediu licença para entrar:
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
- Quem deseja entrar na Loja do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal? - seu pai o interrogou numa voz que saía às golfadas, como um homem salvo do afogamento.
- Um noviço que se apresenta para iniciação aos mistérios do Templo.
- Entrai com perigo da vida eterna - seu pai o convidou, e a voz gentil de Hal tornou a advertência mais acentuada.
Tom levantou-se e deu um passo sobre o desenho do mosaico em mármore que marcava os limites do círculo místico. Não esperava sentir alguma coisa, mas, de súbito, estremeceu como se um inimigo tivesse marcado seu sepulcro com um golpe de uma espada na terra.
- Quem apadrinha esse noviço? - Hal perguntou na mesma voz cheia de semitons.
O conde respondeu, orgulhoso:
- Eu.
Hal olhou para o filho, e sua mente devaneou para o cume da colina na terra distante, selvagem e indomada, abaixo da linha do equador, onde fizera aqueles mesmos votos havia tanto tempo. Correu os olhos para fora do círculo, para o sarcófago de pedra que por fim guardava o corpo de seu próprio pai. Sorriu quase sonhadoramente ao pensar na continuidade, na corrente encantada da cavalaria que vinculava uma geração à próxima. Sentiu sua própria mortalidade avançar em sua direção
Nota de Rodapé: Figura geométrica, símbolo de um ser invisível ou de uma doutrina.
Fim da Nota.
como um animal devorador de gente a enfrentá-lo das trevas. Será mais fácil encontrar as trevas quando tiver colocado o futuro firmemente nas mãos de meus filhos, pensou, e pareceu então que conseguia visualizar o futuro a se mesclar ao passado e a evolver diante de seus olhos. Viu figuras sombrias que reconheceu: os inimigos contra os quais lutara, os homens e as mulheres a quem amara e que estavam havia tanto tempo mortos, misturados com outros que sabia que ainda não tinham passado pela bruma dos dias vindouros.
O conde estendeu a mão e pousou-a gentilmente sobre o ombro curvado de Hal para chamá-lo ao presente. Hal sobressaltou-se e encarou o filho outra vez.
- Quem sois? - Começava o longo catecismo.
- Thomas Courtney, filho de Henry e de Margaret.
Hal sentiu as lágrimas subirem a seus olhos à menção da mulher a quem amara tão ternamente. A melancolia calou fundo em sua alma. O espírito lhe pareceu exaurir-se, e ele desejou poder descansar, mas sabia que não poderia, não até que tivesse completado a tarefa a si designada. Endireitou-se mais uma vez e ofereceu ao filho a espada azul de Netuno, que herdara de seu próprio pai. A luz das tochas dançou pelo punho de ouro da lâmina e reluziu nas profundezas da safira sobre o arremate do cabo.
- Eu vos conclamo a confirmar os dogmas de vossa fé sobre esta lâmina.
Tom tocou a espada e começou o recital:
- Nestas coisas eu creio: que há tão-somente um Deus em Trindade, o Pai eterno, o Filho eterno e o Espírito Santo eterno.
- Amém! - disseram a uma só voz os Cavaleiros Navegantes.
As perguntas e respostas continuaram, enquanto as tochas bruxuleavam. Cada pergunta dava uma vaga indicação do código da Ordem, baseado quase inteiramente naquele dos Cavaleiros Templários.
O catecismo delineava a história dos Templários. Rememorava como, no ano de 1312, os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão tinham sido atacados e destruídos pelo rei de França, Filipe, o Belo, em conivência com seu fantoche, o papa Clemente V, de Bordeaux. A imensa fortuna dos Templários em ouro e terras fora confiscada pela Coroa, e seu mestre, torturado e queimado na estaca. Entretanto, advertidos por seus aliados, os marinheiros Templários se esgueiraram pelos atracadouros dos portos franceses no canal da Mancha e buscaram a proteção do rei Eduardo. Desde então, tinham aberto suas Lojas na Escócia e na Inglaterra sob novos nomes, porém com os dogmas básicos da Ordem intactos.
Por fim, todas as perguntas tinham sido feitas e respondidas. Tom ajoelhou-se, e os cavaleiros formaram um círculo em torno dele. Pousaram uma das mãos em sua cabeça inclinada, a outra no punho da espada de Netuno.
- Thomas Courtney, nós vos damos as boas-vindas à Companhia do Graal, e vos aceitamos como um irmão cavaleiro do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal.
Todos se levantaram e, um após o outro, o abraçaram. Aquilo tudo fazia parte do antigo ritual, mas quando Tom se inclinou para beijar seu pai, Hal desviou-se do comportamento consagrado pelo tempo. Colocou o punho da espada de Netuno na mão de Tom e lhe fechou os dedos em torno dele.
- É sua agora, meu filho. Empunhe-a com coragem e com honra.
Depois que os convidados ao funeral e os quatro cavaleiros da Ordem tinham partido, High Weald pareceu silenciosa e deserta. Alice passava a maior parte de seus dias em seus aposentos privativos. Tom a avistou uma vez, a cavalgar sozinha pelas charnecas, e embora ficasse ob- servando-a a distância, lembrou-se das conseqüências de seu último breve encontro e não tentou aproximar-se.
William estava absorvido pela administração das propriedades e passava seus dias nos escritórios da mina de estanho, em conferências com seu imediato, ou cavalgando pelas terras, em aparições não anunciadas com o objetivo de surpreender falsos doentes e transgressores entre seus empregados. Desvios de comportamento eram punidos com o chicote e imediata expulsão da propriedade. Voltava para a mansão às tardes para passar uma hora com seu pai antes do pontual jantar das oito horas da noite. Comia sozinho, pois Alice não se juntava a ele, e Tom sempre arranjava desculpas para fazer a refeição em seu quarto ou em uma das tavernas locais onde, com Aboli e Luke Jervis, Ned Tyler e Alf Wilson, poderia encontrar companhia mais aprazível.
No decorrer dos meses, Tom se tornou a cada dia mais inquieto e impaciente. Enquanto William permanecia fora da casa, Tom passava uma grande parte do tempo com seu pai. Carregava Hal para a biblioteca e o sentava em sua cadeira à cabeceira da longa mesa de carvalho, em seguida tirava das prateleiras recheadas de livros, mapas e cartas náuticas aquilo que Hal pedia. Espalhavam tudo sobre a mesa e debruçavam-se, ansiosos, a discutir os detalhes da viagem que, Tom sabia, seu pai nunca faria.
Mestre Walsh, com um par de óculos recentemente comprados, espetados no nariz, sentava-se à outra ponta da mesa e tomava notas daquilo que Hal lhe ditava. Fizeram detalhados inventários dos estoques e equipamentos de que precisariam e redigiram as cartas de contratação dos homens que formariam as tripulações dos navios da expedição de volta ao oceano Índico.
- Dois navios! - decidiu Hal. - Não tão grandes como o Seraph ou o Minotauro. Naus rápidas, de fácil manejo, porém bem armadas, pois certamente teremos luta com os pagãos novamente. Não de calado muito profundo, já que é provável que tenhamos de levá-los por estuários e rios da Costa da Febre...
- Mandarei Ned Tyler e Alf Wilson procurarem por navios que sejam adequados - Tom o interrompeu, ansioso. - Podem viajar pela costa e parar em cada porto entre Plymouth e Margate. Mas com a guerra a grassar no continente europeu, não será fácil encontrar os navios certos.
- Se tiver ouro para pagar por eles, ficará admirado de como será fácil localizá-los - Hal contestou. - Se eu tiver de gastar cada vintém do prêmio que tomei de al-Auf para arrancar Dorian das garras dos árabes, será dinheiro bem empregado.
- Poderíamos colocar um anúncio num cartaz - sugeriu mestre Walsh.
- Uma boa sugestão! - exclamou Hal.
- Também poderemos pedir a lorde Childs um navio da Companhia. - Tom ergueu os olhos da carta náutica.
- Não! - Hal meneou a cabeça. - Se Childs souber que levaremos uma esquadra de volta aos domínios da Companhia John, fará de tudo para nos impedir. A Companhia é radicalmente contra o que chamam de transações sem licença ou mesmo navegação não autorizada em seus domínios.
Dia após dia, prosseguiram com o planejamento e discussões. Então, quinze dias depois que Tom os despachara para a costa, Ned Tyler e Alf Wilson retornaram com notícias de que haviam encontrado um navio. Era ideal para a tarefa, porém seus donos pediam a absurda quantia de 7 mil libras. Tinham com eles uma declaração de aceitação para que Hal assinasse, e um pedido dos proprietários para que fossem pagos por meio de um recibo bancário.
Hal questionou o par de marujos à exaustão sobre a condição e aparelhamento do navio, e, em seguida, fechou os olhos e ficou sentado em silêncio por tanto tempo que Tom se alarmou.
- Papai! - Saltou de sua cadeira e foi para o lado de Hal. Tocou-lhe a face e percebeu que queimava de febre. - Sua Senhoria não está bem. Ajudem-me, camaradas. Precisamos levá-lo para a cama.
Assim que seu pai estava deitado na enorme cama, Tom mandou Aboli até Plymouth para buscar o dr. Reynolds em seus alojamentos na cidade. Em seguida dispensou Ned Tyler e os demais, e mandou que aguardassem lá embaixo. Quando saíram, ele trancou a porta para ficar sozinho com seu pai. Puxou os lençóis e, apreensivo, desenrolou as ataduras dos cotos de suas pernas.
Hal queimava e tremia com a súbita febre, e resmungava incoerências em seus delírios. Quando Tom retirou a última bandagem, viu que a cicatriz se abrira de novo e que escorria uma secreção amarelada da ferida. O familiar cheiro pútrido encheu o quarto, e Tom percebeu que, mais uma vez, uma profunda infecção se instalara, porém mais virulenta que antes. O coto estava todo riscado por linhas escarlates como se tivesse sido açoitado por chibata. O dr. Reynolds o alertara para aquele sintoma, e agora ele apalpava, com os dedos trêmulos, a virilha de seu pai, receoso daquilo que poderia encontrar. As glândulas estavam muito inchadas e salientes como cascas de noz, e Hal gemeu em agonia quando Tom as tocou.
- É gangrena gasosa - confirmou Reynolds quando chegou. - Desta vez não poderemos salvá-lo.
- Não pode cortar mais acima? - Tom lhe gritou. - Não pode drenar a infecção como fez antes?
- É muito extensa. - Reynolds traçou, com a ponta dos dedos, as furiosas linhas vermelhas que surgiam pelo ventre de Hal diante de seus olhos.
- O senhor precisa fazer alguma coisa - Tom implorou.
- A febre queima por todo o seu corpo como fogo em capim seco. Seu pai estará morto pela manhã - Reynolds lhe disse simplesmente. - Deveríamos avisar seu irmão mais velho para que lhe preste os últimos respeitos.
Tom mandou Aboli localizar William, mas este se encontrava dentro do poço principal da mina de estanho, a leste de Rushwold. Aboli esperou até a noite, quando o filho mais velho de Hal subiu à superfície. Ao saber da súbita piora de seu pai, William seguiu a galope para casa. Irrompeu pelo quarto de Hal com uma demonstração tamanha de preocupação que Tom julgou que poderia estar equivocado a respeito dele.
- Como está meu pai? - William indagou ao dr. Reynolds.
- Lamento lhe dizer, mas Sua Senhoria está afundando rápido.
William ignorou Tom e foi se ajoelhar à beirada da cama.
- Papai, é William. Pode me ouvir? - Hal se remexeu ao som de sua voz, mas não abriu os olhos.
- Fale comigo - William insistiu, porém a respiração de Hal era superficial e ligeira.
- Ele está morrendo - disse William.
Tom o encarou com olhar agudo. Pensou ter detectado uma nota de satisfação em sua voz.
- Não há muito a esperar agora, Billy - concordou, numa tonalidade inexpressiva. - Pela manhã você será lorde Courtney.
- Você é uma criatura desprezível! - William esbravejou. - Eu o farei pagar muito caro por esse comentário infame.
Nenhum dos dois falou novamente por cerca de uma hora, e então, de súbito, William levantou-se.
- São oito da noite e estou faminto. Não comi o dia inteiro. Vai descer para jantar?
- Ficarei aqui. - Tom não olhou para o irmão. - Ele pode acordar e precisar de nós.
- Reynolds nos chamará. Levará apenas um minuto para subirmos da sala de jantar.
- Vá você, Billy. Eu o chamarei - Tom prometeu, e William seguiu empertigado para a porta.
Estava de volta dentro de meia hora, e limpava os lábios com o guardanapo que trazia na mão.
- Como ele está agora? - perguntou, com um toque de indiferença na voz.
- Não sentiu sua falta - Tom respondeu. - Não se preocupe, Billy. Ele não pode deserdá-lo por saborear um bom jantar.
Acomodaram-se de cada lado da cama para a longa vigília, e Reynolds esticou-se totalmente vestido na cama do quarto de vestir e logo se pôs a roncar suavemente.
A enorme casa parecia conter o fôlego, e lá fora a noite estava tão calma e quieta que Tom podia ouvir o relógio na torre da capela, na colina, anunciar a passagem das horas. Quando bateu uma da manhã, ele olhou para William, do lado oposto da cama de dossel. Sua cabeça pendera para a frente, sobre os lençóis, e ele ressonava pesadamente.
Tom pousou a mão sobre a testa do pai. Estava um pouco mais fria, pensou. Talvez a febre estivesse cedendo de novo, como acontecera tantas vezes antes. Pela primeira vez naquela noite, sentiu uma tênue lufada de esperança.
Hal estremeceu ao seu toque e abriu os olhos.
- Está aqui, Tom?
- Estou aqui, papai - ele respondeu e tentou manter a voz alegre. - O senhor vai ficar bem. Navegaremos juntos outra vez como planejamos.
- Não irei com você, rapaz. - Hal admitia, por fim, aquilo que Tom sabia havia muito tempo. - Essa é uma viagem que terá de fazer por conta própria.
- Quero... - Tom começou, mas seu pai procurou-lhe a mão.
- Não perca tempo negando - murmurou. - O tempo é curto. Dê-me sua palavra de que encontrará Dorian por mim.
- Dou-lhe minha palavra, como fiz meu sagrado juramento a Dorry.
Hal suspirou e fechou os olhos outra vez. Com um lampejo de alarme, Tom pensou no pior, mas, em seguida, Hal abriu-os novamente.
- William? Onde está William?
O som de seu próprio nome despertou William, que ergueu a cabeça.
- Estou aqui, papai.
- Dê-me sua mão direita, William - Hal exigiu. - E você, Tom, dê-me a sua. - Eles estenderam as mãos a ele, e Hal continuou: - William, você está a par do terrível destino que desabou sobre seu irmão mais novo?
- Sim, papai.
- Encarreguei Tom do dever de encontrar Dorian e resgatá-lo. Ele aceitou esse dever. Agora, eu o encarrego também. Está me escutando, William?
- Sim, papai.
- Imponho a você o solene dever de fazer tudo dentro do seu alcance para ajudar Tom em sua busca para resgatar Dorian. Você o proverá com os navios de que ele precisa. Pagará pelas tripulações, os estoques e tudo o mais. Não o restringirá, mas dará como bom o manifesto que Tom e eu traçamos juntos.
William concordou.
- Compreendo que essa é a sua vontade, papai.
- Então, jure a mim - Hal insistiu, sua voz se alterando. - Resta pouco tempo.
- Eu juro - disse William, baixinho e numa entonação de sinceridade.
- Graças a Deus por isso - Hal murmurou. Ficou por um momento calado, reunindo suas forças para um último esforço. Mas apertava as mãos dos filhos com surpreendente vigor. Então, falou de novo: Vocês são irmãos. Irmãos jamais deveriam ser inimigos. Quero que esqueçam as velhas disputas que os separam, e, por mim, se tornem irmãos no sentido pleno.
William e Tom permaneceram em silêncio, nem a olhar para Hal nem um para o outro.
- É minha vontade derradeira. Por favor, concedam isso a mim - Hal implorou.
Tom falou primeiro:
- Estou pronto a esquecer o que é passado. No futuro, darei a William o respeito e afeição que ele merece.
- Não posso pedir mais - Hal gaguejou. - Agora é sua vez, William. Jure a mim.
- Se Tom mantiver essa promessa, devolverei a ele o mesmo respeito e afeição - declarou William, sem olhar para Tom.
- Obrigado. Obrigado a ambos - Hal murmurou. - Agora, fiquem comigo por esse pouco tempo que nos resta juntos.
A noite foi longa. Mais de uma vez, Tom pensou que Hal tinha morrido, mas quando encostou o ouvido nos lábios do pai, ouviu o suspirar suave e o silvar de sua respiração. Então devia ter cochilado, pois a próxima coisa que ouviu foi o cantar dos galos no estábulo. Deu um pulo, com uma sensação de culpa, e olhou para William. Viu que seu irmão se debruçara com a metade do corpo sobre a cama e ressonava suavemente. A lamparina já havia se apagado, mas as primeiras luzes pálidas da alvorada se infiltravam pelas cortinas.
Tom tocou a face de seu pai e, com um terrível golpe de tristeza, sentiu que a pele estava fria. Escorregou os dedos para procurar o pulso da carótida em sua garganta. Não havia nada, nenhum lampejo de vida.
Eu deveria ter ficado acordado. Falhei com ele no final. Tom debruçou-se e beijou os lábios de seu pai. As lágrimas lhe escorriam pela face e pingaram sobre a face de Hal. Tom pegou a ponta do lençol para enxugá-las e beijou-o de novo.
Esperou por quase meia hora, até que a luz no quarto era mais forte. Então, olhou sua própria face no espelho na parede do fundo, para certificar-se de estar no pleno controle de sua tristeza. Não queria que Billy Preto o visse tão desamparado. Aproximou-se e sacudiu o irmão mais velho.
- Acorde, Billy. Papai se foi.
William ergueu a cabeça e o encarou, aturdido. A luz difusa, seus olhos estavam vagos e desfocados. Então, olhou para a face pálida de Hal.
- Então, acabou, enfim - disse. Levantou-se, o corpo tenso, e espreguiçou-se. - Doce Jesus, o velho patife tomou tempo. Pensei que nunca sairia de cima de mim.
- Papai está morto! - Tom julgou que ele não o compreendera. Nem mesmo Billy Preto poderia ser tão desalmado.
- É melhor chamarmos Reynolds para certificar isso, e, em seguida, o enterraremos em seu belo túmulo novinho em folha, antes que ele mude de idéia. - William sorriu de seu próprio humor negro e depois berrou, chamando o médico, que chegou aos tropeções do quarto de vestir, ainda meio adormecido.
Reynolds examinou Hal rapidamente, encostou o ouvido na sua boca, em busca de sinais de respiração, e depois correu a mão para dentro da camisa de dormir a fim de lhe sentir o coração. Por fim, meneou a cabeça e olhou para William.
- Seu pai se foi de fato, milorde. - Tom ficou aturdido ao se dar conta de como tudo era rápido e simples. Billy era agora o barão de Darmouth. - Quer que eu expeça o atestado de óbito e providencie os outros preparativos para o enterro, meu senhor?
- Claro - respondeu William. - Estarei ocupado. Há muita coisa que preciso fazer. Terei de ir a Londres o mais cedo possível. - Conversava consigo mesmo agora, não com os outros. - Devo tomar assento na Casa dos Lordes, e depois procurar o sr. Samuels no banco... - Calou-se e olhou para Tom. - Quero que tome as providências para o funeral. É hora de começar a ganhar seu sustento.
- Eu ficarei honrado. - Tom tentou fazê-lo envergonhar-se, mas William continuou sem lhe dar atenção.
- Um funeral tranqüilo, apenas com os familiares mais íntimos. O mais rápido possível. O bispo pode fazer as honras, se conseguirmos mantê-lo sóbrio pelo tempo necessário. Uma semana a partir de hoje - decidiu, de súbito. - Deixarei os detalhes para você. - Espreguiçou-se de novo. - Por Deus, estou faminto. Se precisar de mim, estarei na sala de refeições tomando o desjejum.
Não houve tempo para que todos os irmãos cavaleiros de Henry Courtney fossem reunidos para o seu funeral. O conde de Exeter e seu irmão foram os únicos próximos o bastante a comparecer. Entretanto, os oficiais e homens que haviam viajado com Hal vieram de cada canto do país, e todos os marujos ao longo da costa. Alguns caminharam cinqüenta milhas para estarem ali. Ned Tyler, Alf Wilson e Luke Jervis tomaram lugar no banco da frente da capela, e os marinheiros comuns e operários das propriedades lotaram a nave e o pátio lá fora.
- Não gastarei meus guinéus duramente ganhos com comida e bebida para cada vagabundo e beberrão desta terra - William decidiu, e pagou apenas pela hospitalidade oferecida a seus convidados.
De seu próprio prêmio, Tom desembolsou o dinheiro para a comida e a bebida do funeral para os homens que haviam vindo prestar as honras a seu pai.
Dois dias depois que o corpo de Hal fora lacrado na nova tumba de pedra, na cripta da capela da família, William tomou um coche para Londres e ficou ausente por quase três meses. Antes de partir, mandou Alice e o bebê para a casa do pai dela. Tom tinha certeza de que aquilo era para impedi-lo de conversar com a cunhada. Achou a casa vazia tão opressiva que alugou quartos no Carvalho Real e passou seus dias lá, com Ned Tyler, Alf Wilson e mestre Walsh, a planejar os detalhes finais da expedição para encontrar Dorian.
Trabalhando a partir das cartas de contratação e manifestos que ele e Hal tinham esboçado, preparou um orçamento para apresentar a William quando de seu retorno a High Weald. O tempo corria contra Tom, pois o outono se aproximava mais uma vez a passos largos. Tinha pouco mais de três meses para equipar e arranjar as tripulações para os navios, cruzar a baía de Biscaia e chegar a águas mais clementes do sul antes que os ventos de inverno bloqueassem sua passagem.
- Custará outro ano de espera se o inverno nos pegar - Tom se agitou.
Barganhou os estoques necessários com os fornecedores, e empenhou sua palavra de que faria o pagamento e pediu que aguardassem até o regresso de William. O crédito do novo lorde Courtney era bom como o de qualquer banqueiro. Alugou um grande armazém nas docas para estocar as mercadorias, e, em seguida, enviou Ned e Aboli para recrutar os homens de que precisavam. Depois do triunfo de sua última expedição, houve pouco problema em encontrar a melhor tripulação: todos aqueles que haviam navegado no Seraph. A maioria já gastara a sua parte do dinheiro do prêmio, e estava ansiosa para tomar um lugar ao lado de Tom.
Ned Tyler e Alf encontraram o segundo navio de que necessitavam, e barganharam o melhor preço por ele. Entretanto, os donos recusaram-se a entregá-lo até que tivessem recebido todo o pagamento. Tom teve de controlar sua impaciência.
No final de setembro, William retornou de Londres para High Weald. Chegou em triunfo: tomara seu assento na Casa dos Lordes e fora apresentado à Corte. Ficara hospedado, como convidado de lorde Childs, na Casa de Bombaim durante sua estada inteira na cidade. Childs apadrinhara sua entrada na elegante sociedade de Londres, apresentara-o aos salões do poder, e tinha sugerido que tomasse um assento no Conselho da Companhia John. Usando o dinheiro do prêmio que herdara, William aumentara seus investimentos na Companhia para sete por cento do capital das ações disponíveis, tornando-se, assim, um dos cinco principais acionistas, depois da Coroa.
As fofocas na cidade eram de que Alice voltara com ele da casa do pai, e também que esperava um outro filho.
Tão logo soube do retorno de William, Tom cavalgou da cidade até High Weald, excitado e ansioso para discutir os planos da expedição com seu irmão. Levava duas caixas de metal nos alforjes da sela. Nelas, estavam todos os papéis que reunira durante as últimas semanas de espera: os certificados de compra dos dois navios, as contas dos fornecedores das mercadorias e bens de consumo dos navios.
Chegou à casa grande no meio da manhã, para descobrir que William já se fechara na biblioteca, em reunião com seu capataz. Tom ficou surpreso ao encontrar muita gente esperando para ver lorde Courtney. Lotavam o saguão de entrada e, numa contagem aproximada, Tom calculou umas dezesseis pessoas. A maioria ele conhecia. La estava o advogado da família, John Anstey, o alto-comissário do condado, supervisores e engenheiros da mina, e o prefeito e os aldeões mais antigos da cidade. Os outros, Tom não reconheceu, mas cumprimentou a todos polidamente e conversou com Anstey enquanto aguardava pelo irmão.
Quando bateu meio-dia, julgou que William não sabia que ele esperava com os outros e, assim, mandou um bilhete por Evan, o intendente, que retornou quase de imediato, parecendo desconfortável.
- Sua Senhoria diz que o chamará quando estiver pronto para vê- lo. Nesse ínterim, o senhor deve esperar.
A tarde passou lentamente. A intervalos, Evan vinha convocar um dos presentes para a biblioteca. Ao chegar a noite, Tom era o último que restava.
- Sua Senhoria o verá agora, sr. Thomas - disse Evan, com um ar de quem pedia desculpas.
Carregando uma caixa debaixo de cada braço, e tentando ocultar sua irritação pela maneira com que fora tratado, Tom entrou na biblioteca. Encontrou William de pé em frente à lareira, suas mãos cruzadas atrás das costas, e a erguer a cauda de seu fraque para aquecer o traseiro ao calor das chamas.
- Boa noite, William. Espero que tenha feito uma visita bem-sucedida a Londres. Soube da sua apresentação à Corte. Meus parabéns. - Colocou as caixas sobre a mesa da biblioteca.
- Quanta gentileza a sua, irmão - A entonação de William era distante.
Naquele momento, Evan retornou com dois cálices numa bandeja de prata, e primeiro ofereceu um a William. Em seguida voltou-se para Tom, e, quando o rapaz tomou o outro cálice, Evan lhe perguntou:
- Ficará para o jantar nesta noite, senhor?
Antes que Tom pudesse responder, William se adiantou:
- Creio que não, Evan. Thomas não vai demorar. Estou seguro de que tem planos para jantar com a corja de seus amigos na cidade.
Tanto Tom como Evan o encararam com espanto, porém ele continuou com suavidade:
- Isso é tudo. Obrigado, Evan. Jantar às oito, como sempre. Não quero ser perturbado antes disso.
Tomou um gole do conhaque e ergueu uma sobrancelha ao olhar para as caixas pretas de estanho.
- Tenho certeza de que não veio até aqui simplesmente para me apresentar congratulações.
- Vim para que aprove o manifesto para a expedição. Também as contas das despesas que já fiz.
- Que expedição? - William fingiu espanto. - Não me lembro de ter pedido a você para incorrer em quaisquer despesas em meu nome. Talvez eu tenha entendido mal.
- Seu compromisso para com nosso pai. - Tom tentou não mostrar que estava abalado com a negativa. - Já completei os preparativos. - Abriu as caixas, retirou os documentos e os dispôs em pilhas pelo comprimento da mesa. - Estes são os contratos do pessoal. Achei 150 bons marujos. É toda a tripulação de que precisarei. Cada homem navegou com nosso pai, e eu os conheço bem a todos. Posso responder por eles.
William fixou o olhar na lareira. Trazia um ligeiro sorriso enigmático nos lábios, mas seus olhos eram gélidos.
- Estas são as notas de compra dos dois navios. Inspecionei ambos. São ideais para a finalidade, e consegui baixar o preço pedido pelos donos em quase 4 mil libras. - Ergueu os olhos para William, mas seu irmão permaneceu em silêncio. Tom esperou por um momento e, como William não disse nada, prosseguiu, açodado: - Este é o manifesto completo das mercadorias e equipamentos de que precisaremos. Já comprei a maior parte deles e os estoquei no armazém de Patchley, nas docas. Receio ter sido forçado a pagar altos preços. O Almirantado está comprando todos os bens disponíveis para equipar a Marinha. Pólvora e balas, cordas e velas estão com o fornecimento drasticamente diminuído. Os preços mais que duplicaram desde o começo da guerra.
Esperou pela resposta de William e, então, disse, envergonhado.
- Empenhei minha palavra quanto ao pagamento. Precisarei de imediato do dinheiro para estas contas e das notas promissórias que assinei para a aquisição dos navios. O resto pode esperar um pouco.
William suspirou, dirigiu-se até uma das cadeiras de couro e jogou-se nela. Tom começou a falar novamente, mas William o interrompeu com um gesto e chamou uma das criadas:
- Susan!
Ela devia estar do lado de fora da porta, à espera do chamado, pois acorreu de imediato. Tom a conhecia. Era uma menina quando ele partira com seu pai, porém em sua ausência tinha se transformado numa bonita moça, com cachos escuros a saírem de sua touca e faiscantes olhos azuis com uma luz atrevida neles. Dispensou a Tom uma rápida reverência e então correu a atender ao chamado de William.
William levantou uma das pernas. Ela se abaixou e abarcou-a entre as próprias, com o traseiro voltado para ele, e segurou-lhe a bota pela ponta e o calcanhar. Usou do aperto dos joelhos para puxá-la. A bota deslizou para fora; William remexeu os dedos por debaixo das meias e estendeu a ela o outro pé. A criada repetiu o processo, mas, quando a bota se soltou, William enfiou seu pé por debaixo das anáguas da moça. Ela soltou um gritinho espremido e ficou vermelha como um pimentão:
- Milorde! - exclamou, mas em vez de se afastar, inclinou-se um pouco mais para deixá-lo explorá-la com os dedos do pé, como desejasse.
Depois de um minuto, William soltou uma risada.
- Suma daqui, sua putinha assanhada.
Tirou o pé de sob as saias, firmou-a no traseiro da criada e a empurrou para a porta. Ela se ergueu cambaleando e, ao fechar a porta, o fitou com ar atrevido por sobre o ombro.
- Quando tiver terminado de exercitar seus direitos de senhor de High Weald, poderemos retornar ao assunto da expedição? - perguntou Tom.
- Por favor, continue, Thomas - William o incentivou com um gesto displicente da mão.
- Vai examinar a relação de custos?
- Que droga, Thomas. Não me canse com as suas listas. Seja direto e me diga quanto está pedindo!
- Peço apenas o que meu pai me prometeu. - Tom sentia dificuldade em controlar seu temperamento. - Os dois navios são a principal despesa...
- Fale logo! - William esbravejou. - Cace a raposa em campo aberto. Quanto é?
- A soma de tudo é de um pouco mais de 19 mil libras esterlinas - disse Tom -, mas inclui as mercadorias. Comerciaremos pela costa em troca de marfim, ouro, cobre e goma-arábica. Espero conseguir um belo lucro...
Interrompeu-se quando William começou a rir. No início, era apenas uma risadinha, e, em seguida, uma escancarada gargalhada. Tom ficou imóvel a observá-lo, reprimindo a irritação. William quase se engasgava de tanto rir e teve de respirar fundo antes de continuar com aquele acesso de riso.
Por fim, Tom não conseguiu mais se conter.
- Talvez eu seja lerdo, mas não tenho certeza da razão para tanto riso, irmão.
- Sim, Thomas, você é lerdo. Não penetrou até as profundezas de seu crânio duro que eu sou agora o senhor de High Weald e que você depende de mim para cada penny, e não da sombra de nosso pai.
- Isso de que preciso não é para mim. É para Dorian. É para o juramento que você fez a nosso pai - Tom retrucou, com o semblante duro. - Você lhe deu sua palavra. Está vinculado a esse juramento.
- Não creio, Thomas. - William parou abruptamente de rir. - Papai estava em delírio em seus últimos momentos. Devaneava em sua mente. Se eu disse alguma coisa, foi apenas para acalmá-lo. Não tive nenhuma intenção mais séria. Seria tolice desperdiçar minha herança com o delírio de um homem agonizante. Dezenove mil libras esterlinas! Você deve ter perdido o bom senso se pensou por um minuto que eu lhe entregaria uma tal soma de dinheiro para que possa fazer sua caçada nos confins do mundo. Não, caro irmão. Tire isso da cabeça.
Tom o encarou, sem palavras.
- Vai renegar sua jura solene? Billy, não estou pedindo isso para o meu próprio prazer. Estamos falando do resgate de seu irmão das mãos dos infiéis!
- Nunca mais me chame de Billy! - William ergueu seu cálice e bebeu o último gole de conhaque.
- Não, concordo que há nomes melhores para você do que esse. Trapaceiro? Desonesto? Como chamar o homem que renega seu próprio irmão mais novo e volta atrás num juramento a seu pai?
- Não se dirija a mim nesse tom desrespeitoso! - William jogou seu cálice dentro da lareira, quebrando-o. Levantou-se da cadeira e avançou para Tom com ar ameaçador. - Você vai aprender seu lugar, ou o colocarei nos eixos a socos. - Sua face estava enegrecida de raiva.
Tom o enfrentou.
- Como bateu em Alice? - perguntou com amargura. - Você é um homem feroz e duro quando se trata de criados e mulheres indefesos, irmão. É o príncipe dos mentirosos quando a questão é quebrar sua palavra e trapacear com suas obrigações empenhadas também.
- Seu merdinha! - O semblante de William tingira-se de um rubro profundo, e parecia agora que suas veias iriam estourar. Não era mais a criatura bonita e elegante. - Não vai proferir o nome de minha esposa desse jeito.
Tom havia tocado em sua fraqueza, achara o caminho para confrontá-lo e feri-lo.
- Tenha cuidado, Billy. Alice pode lhe dar o troco. Você não seria páreo para ela numa luta limpa. Poderia se rebaixar a bater em seu bebê. E isso daria a você enorme prazer. Deixar a face do pequeno Francis púrpura e azul com o seu chicote. - Os punhos fechados ao lado do corpo, Tom fitou os olhos de William para ler sua intenção, pronto a enfrentá-lo quando ele atacasse.
- Tom, por favor... - Para espanto de Tom, a face de William desanuviou-se. A raiva evaporou-se e ele pareceu aborrecido. - Não diga isso. Por favor! - Seus ombros caíram e ele estendeu a mão em direção ao irmão, num gesto de apelo. - Você tem razão, tenho um dever para com a memória de nosso pai. Prometi deixar de lado nossas diferenças. - Aproximou-se de Tom com a mão direita estendida. - Eis aqui minha mão, Tom. Vamos, tome-a.
Tom se viu aturdido com aquela mudança repentina em William. Hesitou, mas sua raiva e indignação começavam a aplacar-se, e William lhe sorria de uma forma calorosa. E o que dissera era verdade: tinham prometido ao pai acertarem as divergências. Forçou-se a relaxar e, desajeitado, pousou a mão na mão estendida de William. Seu irmão agarrou-a com firmeza e sorriu para Tom. Então, de súbito, com toda a sua força, puxou-o em sua direção. Ao mesmo tempo, abaixou o queixo e bateu o topo da cabeça contra a face de Tom, atingindo-lhe o osso do nariz.
A visão de Tom explodiu numa sucessão de luzes faiscantes, e ele sentiu a cartilagem do nariz se partir. Uma golfada de sangue escorreu por ambas as narinas, e ele cambaleou para trás. Mas William ainda o segurava com a mão direita e, de novo, o puxou para a frente. William era canhoto e aquele era seu lado forte. A visão de Tom estava turva e bolas de fogo a ofuscavam. Estava atordoado. Não viu o punho que se aproximava. Desabou no lado de sua cabeça e o lançou num vôo de costas sobre a mesa da biblioteca. Os maços de papel sobre o tampo espalharam-se como folhas ao vento, e Tom estatelou-se na mesa. Embora continuasse atordoado, já se encolhia num esforço para ficar de pé e em posição de luta.
Mas William puxou o punhal da bainha em seu quadril e arrojou-se sobre Tom quando este se ajoelhava. Mesmo com a visão nublada, Tom viu o brilho da lâmina e desviou-a com o antebraço, alterando-lhe o curso, que era na direção do centro de seu peito. A ponta raspou o topo de seu ombro, cortando-lhe o casaco. Tom mal sentiu o gume do aço, antes que o peso de William o atingisse em cheio e eles se chocassem, peito contra peito. Tom agarrou o pulso de William quando este tentou enterrar o punhal em seu olho, e os dois rolaram pelas pranchas da mesa, primeiro um por cima, depois o outro.
- Vou lhe arrancar o fígado! - William grunhiu e mudou o ângulo de seus golpes.
Tom teve de reunir todas as suas forças para segurá-lo. A ponta da adaga estava a centímetros de sua face. Mesmo que William levasse uma vida tranqüila de cavalheiro naqueles últimos três anos, sua habilidade e os músculos fortes pareciam preservados.
Caíram sobre uma estante de livros no fundo da sala. Naquele instante, Tom estava por cima, e usou o breve momento para bater com a mão do irmão que segurava o punhal contra a borda aguda de uma das prateleiras de carvalho. William soltou um berro, e o aperto no cabo da adaga enfraqueceu. Tom aproveitou e fez uso de toda a energia para repetir o golpe. Viu o sangue correr pelos nós dos dedos de William onde tinham se chocado contra a madeira, mas o irmão não soltou o punhal. De novo, Tom bateu-lhe o punho contra a borda da prateleira e, dessa vez, William fungou de dor, seus dedos se abriram e a arma caiu.
Nenhum dos dois poderia alcançá-la sem soltar um do outro. Por um momento, mediram forças, e então Tom encolheu suas pernas sob o corpo e começou a se erguer. William se levantou agarrado a ele. Estavam de pé, agora, peito contra peito, agarrados pelos punhos. William tentou fazer Tom perder o equilíbrio, porém este permaneceu firme. Tentou de novo, e Tom se abaixou com o balanço, usando o impulso para lançar William contra as estantes que, lotadas de livros pesados, chegavam ao teto da sala. William chocou-se contra elas com tanta força que uma seção inteira despencou da parede e desabou sobre ambos. Uma avalanche de volumes encadernados em couro caiu sobre os irmãos, e as estantes soltas tremeram, desequilibradas. Qualquer um preso sob elas poderia ser esmagado pelo seu peso. Os dois se deram conta disso simultaneamente e se afastaram um do outro. Ao cambalearem para o lado, as estantes desabaram num caos de madeira e vidro a se partir.
Ofegantes, os irmãos confrontaram-se em meio aos destroços. O sangue escorria do nariz quebrado de Tom e pingava na frente de sua camisa. Mas sua visão e a força lhe tinham voltado e, com elas, a raiva.
- Você sempre foi um trapaceiro, Billy. Você me atingiu à traição.
Deu um passo para a frente, porém William virou-se e correu para o quadro de armas militares dependurado na parede oposta. Havia escudos de aço, rodeados por centenas de armas afiadas dispostas num padrão decorativo, colecionadas pelos ancestrais Courtney de cada batalha em que haviam lutado. William pegou uma espada pesada que fora usada por um oficial da cavalaria do rei Carlos.
- Agora vamos terminar isto de uma vez e para sempre! - exclamou ao se voltar para Tom. Golpeou o ar com a longa lâmina para lhe testar o equilíbrio.
Tom recuou lentamente. Não poderia alcançar a parede do fundo e escolher uma arma para si nem escapar pelas portas duplas. Ao agir assim, daria a William sua chance. Pensou no punhal que o irmão deixara cair, mas estava enterrado sob os livros. Com a manga, Tom enxugou o sangue de sua face e deu alguns passos para trás.
- Ah-ah! - William gritou e avançou mais depressa, empurrando-o com uma série de estocadas.
Tom foi forçado a saltar para trás. Gingava o corpo e se desviava dos golpes. William o impelia em direção ao canto mais distante da porta.
Tom percebeu a armadilha, mas quando tentou escapar para o outro lado, seu irmão o bloqueou, a lâmina a cortar à direita e à esquerda de sua cabeça, obrigando-o a recuar mais uma vez. Mesmo acuado, Tom avaliou o estilo e a perícia de William. Viu que não se aprimorara desde o tempo em que o observava praticar com Aboli. William ainda era melhor pugilista do que espadachim. O olhar denunciava-lhe as intenções, e embora fosse rápido como uma víbora na estocada e no golpe de mão esquerda, era fraco no golpe inverso e lento em se recuperar de uma investida.
Naquele instante atacou de repente, subestimando o adversário desarmado. Tom deu uma série de passos corridos para trás, sem deixar de encará-lo nos olhos. Suas costas chocaram-se com força contra uma seção das estantes que ainda se encontrava de pé, e ele viu o brilho de triunfo nos olhos negros de William.
- Ora, ora, senhor!
Avançou com a espada em linha natural com seu braço, e Tom deixou que desferisse o golpe antes de rolar para o lado. A espada roçou-lhe a axila e se enterrou num livro na estante, atrás dele. Por um instante ficou presa, e Tom não cometeu o erro de agarrá-la e com isso lacerar suas mãos no aço afiado. Enquanto William lutava para livrar a espada, Tom abaixou-se depressa e pegou um dos livros pesados do chão, a seus pés. Arremessou-o no rosto do irmão. O livro atingiu-o na testa, fazendo-o cambalear para trás, e a espada que ele ainda segurava com força se soltou.
Enquanto Tom passava agachado por ele, William o golpeou com a lâmina, mas era lento de seu lado fraco e ainda estava sem equilíbrio. A ponta tocou o flanco de Tom e tirou mais sangue, porém ele conseguiu passar. Seguiu correndo para o quadro de armas, mas ouviu o suave deslizar dos pés calçados com meias de William por detrás, bem perto. Instintivamente, percebeu que William poderia alcançá-lo antes que pudesse pegar outra espada da parede, e que receberia um golpe mortal nas costas desprotegidas. Mudou de direção e ouviu William praguejar ao escorregar no chão encerado: suas meias não lhe davam firmeza.
Tom correu para a mesa e agarrou o pesado castiçal de prata da peça de centro. Segurando-o à sua frente, voltou-se para enfrentar o próximo ataque de William. Seu irmão ergueu a espada ao alto e desferiu o golpe contra a cabeça de Tom. Era um ataque ousado, um que poderia ser uma tolice fatal caso Tom tivesse uma espada na mão. Tom ergueu o castiçal e a lâmina chocou-se contra o metal macio. Sabia que o impacto reverberaria na mão de seu irmão. William pestanejou e fungou, mas alçou a espada para repetir o selvagem golpe de braço erguido.
Mais rápido em se recuperar, Tom girou o castiçal de prata como uma acha de guerra contra as costelas de William, debaixo da espada erguida. Ouviu um osso quebrar como um galho verde, e William berrou de dor, mas, embora sua mira se desviasse, não conseguiu conter o golpe que já desferira. A espada assobiou ao passar pela cabeça de Tom e enterrar-se no tampo da mesa, esfacelando a magnífica tábua de nogueira.
Tom atingiu-o de novo com o castiçal, porém William dobrou-se e conseguiu evitar o pleno impacto do golpe. Mesmo assim, a pancada o fez cambalear para trás e escorregar sobre a pilha de livros. Quase caiu, mas, com um rápido giro do braço direito, recuperou o equilíbrio. Tom correra para a porta, e William foi atrás dele, a desferir golpes à esquerda e à direita de suas costas que, porém, caíram no vazio.
Tom seguiu porta afora pelo corredor e viu o cinto de sua espada pendurado na alcova onde Matthew a colocara quando ele entrara na casa. A grande safira no arremate do punho luziu para ele como um farol no porto dando as boas-vindas a um navio impelido pela ventania.
Ao passar pelas portas abertas, esticou a mão e fechou uma das folhas com força na face de William. Este bloqueou o giro da porta com o ombro e empurrou-a para trás, mas o ato deu a Tom o tempo suficiente para atravessar o saguão e arrancar o cinto da espada do suporte. Girou e usou a bainha esculpida e laqueada para bloquear o próximo golpe impetuoso de William. Saltou para trás e, antes que William pudesse segui-lo, tirou a lâmina da espada azul de Netuno para fora da bainha.
- Sim, irmão. Agora vamos terminar com isto de uma vez e para sempre. - Tom devolveu a ameaça de William por entre os dentes cerrados, e avançou olhando bem dentro dos olhos negros do irmão, o pé direito à frente, em passos ligeiros e rápidos.
William cedeu espaço diante da investida, e Tom viu o medo assomar aos olhos dele. Percebeu o que já sabia havia muito tempo: William era um covarde.
Por que deveria estar surpreso?, pensou com tristeza. Valentões são sempre covardes. Para testá-lo, atacou-o en flèche, o ataque da flecha, numa tempestuosa sucessão de rápidas estocadas. William quase caiu de costas na pressa de evitar a lâmina faiscante.
- Você é rápido como um coelho assustado, irmão. - Tom riu-lhe na cara, mas continuou atento, sem nunca relaxar a vigilância.
O leopardo assustado é o animal mais perigoso. Havia também o perigo de enfrentar um espadachim canhoto. Todos os golpes eram invertidos, e Tom poderia abrir-se para uma estocada de mão esquerda do lado mais forte de William. Felizmente Aboli enfatizara aquilo durante as muitas sessões de exercício. Aboli era ambidestro e com freqüência mudava a espada para a mão esquerda no meio de um bote, alterando a simetria do embate, para tentar tirar Tom de seu foco. No começo fora bem-sucedido, mas Tom era um aprendiz aplicado.
William cambaleou, escorregou e caiu sobre um joelho. Parecia natural, porém Tom notara-lhe o olhar e vira a maneira com que sua espada estava caída em posição de um golpe de esquerda na linha baixa: uma cutilada que seccionaria o tendão de Aquiles de Tom e o deixaria aleijado. Em vez de cair na armadilha, Tom saltou para trás e o rodeou rapidamente até o seu lado fraco.
- Desperdiça seus talentos, irmão. - Tom sorriu através do sangue de seu nariz quebrado. - Teria uma ilustre carreira no Globe.
William foi forçado a se levantar quando Tom se aproximou da direita, e se viu empurrado de costas para o pé da grande escadaria com uma série de cutiladas e estocadas que mudavam de ângulo e linha a cada investida. William tinha cada vez mais dificuldade em bloquear cada um dos golpes sucessivos; sua respiração era ofegante e seus olhos se inundavam lentamente de terror. O suor porejava em pequenas gotas transparentes em sua testa.
- Não tenha medo, Billy. - Tom sorriu com sarcasmo. - É como uma navalha. Mal vai sentir entrar. - Seu próximo golpe rasgou a frente da camisa de William, sem cortar a pele por baixo dela. - Como isto - disse Tom. - Sem dor alguma.
William chegou à escadaria e girou o corpo. Subiu com longas passadas elásticas, três degraus de cada vez, porém Tom estava logo atrás, a ganhar terreno a cada passo. William ouviu-o e foi forçado a se voltar para se defender no primeiro patamar. Levou instintivamente a mão ao punhal no cinto, mas a bainha estava vazia.
- Ela se foi, Billy - Tom o relembrou. - Nada de pequenos truques sujos agora. Terá de lutar com o que tem.
A princípio, William tinha a vantagem de estar em um degrau mais alto, com Tom a subir a escada para enfrentá-lo. Tentou lhe desferir um golpe na cabeça, mas não era uma tentativa que pudesse fazer contra um espadachim do calibre de Tom. Foi impedido com uma estocada, e as espadas se enroscaram quando Tom chegou ao patamar para encará-lo. Ficaram juntos, as armas travadas diante de seus olhos.
- Quando você se for, Billy, o título passará para o pequeno Francis.
- Tom tentou não deixar que a tensão distorcesse sua voz, porém William era poderoso com os ombros, e suas espadas tremiam e vibravam com a pressão que cada um exercia.
- Alice será a guardiã de Francis. Ela jamais deixaria Dorian de lado - continuou e empurrou William para trás com um impulso dos ombros. Ao mesmo tempo, recuou e baixou a ponta da espada para a sua garganta. - Veja, terei de matá-lo, Billy, nem que seja para o bem de Dorian. - E espetou a garganta de William. Era um golpe mortal, mas, para evitá-lo, William arrojou-se para trás como um louco. Bateu contra a balaustrada, que cedeu com um estalar crepitante das madeiras.
William caiu no saguão de entrada, três metros abaixo. Chocou-se contra o chão com um baque estrondoso, e a espada escapou de sua mão. Por um momento, o ar fugiu de seus pulmões, e ele ficou deitado de costas, aturdido e indefeso.
Tom saltou por sobre os corrimãos quebrados, pés à frente, e caiu encolhendo-se com a elegância de um gato para aterrissar suavemente - a força da queda anulada com a flexão de suas pernas - com os joelhos dobrados, antes de se esticar de novo. Chutou para longe a espada de William, a qual rodopiou pelo chão até a parede do fundo. Então se postou em toda a sua altura sobre o corpo estirado de William.
Colocou a ponta da espada na base da garganta do irmão, no V de sua camisa branca, onde os pêlos crespos e negros escapavam pela abertura.
- Como você disse, Billy, de uma vez e para sempre. Está acabado entre nós - Tom lhe disse, muito grave, e forçou o golpe mortal.
Contudo, era como se uma manopla de aço lhe segurasse a mão da espada. Picou a pele da garganta de William, porém não conseguiu ir mais fundo. Tentou de novo, reunindo toda a energia, mas uma força o impedia de enterrar a lâmina.
Ficou imóvel sobre William, uma terrível figura manchada de sangue, a espada a lhe tremer nas mãos e a face distorcida numa horrível máscara de raiva e frustração. Faça! A voz de sua resolução tiniu em seus ouvidos, e de novo ele tentou empurrar mais fundo, porém seu braço direito não lhe obedecia. Faça! Mate-o agora. Pelo bem de Dorry, se não pelo seu próprio.
Então, o eco da voz de seu pai sobrepujou-se ao comando assassino:
Vocês são irmãos. Irmãos jamais deveriam ser inimigos. Quero que esqueçam as velhas disputas que os separam, e, por mim, se tornem irmãos no sentido pleno.
Tom quis expulsá-la para longe.
Tenho de fazer isso.
William jazia com as costas prensadas no chão, sob a lâmina, e lágrimas de terror lhe enchiam os olhos. Abriu a boca para implorar por sua vida, mas nenhuma palavra brotou, apenas um tenebroso grasnido igual ao grito de um corvo.
Tom sentiu os músculos e tendões de sua mão direita tremerem com o esforço que precisava fazer para obrigá-los a lhe obedecer à vontade, e a ponta escorregou alguns centímetros e perfurou a pele macia. O sangue vermelho verteu do corte raso, e William soltou um berro esganiçado:
- Por favor, eu lhe darei o dinheiro, Tom - murmurou. - Juro. Desta vez eu lhe darei o dinheiro.
- Não posso jamais voltar a confiar em você. Quebrou um juramento sagrado. Você está muito além do chamado da honra - Tom lhe disse, e sua repulsa diante da covardia e perfídia de seu irmão lhe deu a força para levar a cabo o feito terrível. Dessa vez sua mão direita lhe obedeceria.
- Tom!
Um grito horrível ecoou pela casa silenciosa. Por um momento, Tom julgou que era a voz de sua mãe vinda de além-túmulo. Ergueu os olhos. Uma figura fantasmagórica encontrava-se em pé no patamar do alto das escadas, e Tom foi invadido por um temor supersticioso. Então, viu que era Alice com seu bebê nos braços.
- Não, Tom. Não deve matá-lo.
Tom hesitou.
- Você não compreende. Ele é mau. Você sabe por si mesma que ele é o verdadeiro demônio.
- Ele é meu marido e pai de Francis. Não faça isso, Tom. Por mim.
- Tanto você como o bebê estarão melhor com a morte dele. - Tom voltou sua atenção para a criatura que jazia, acovardada e a chorar, a seus pés.
- É assassinato, Tom. Vão caçá-lo para onde quer que corra, e o encontrarão e o arrastarão para o cadafalso.
- Não me importa - disse Tom, e falava a sério.
- Sem você, não haverá ninguém para ir atrás de Dorian. Pelo bem dele, senão pelo meu, você não deve fazer essa coisa horrível.
A verdade daquilo que ela dissera atingiu Tom como um soco no rosto, e ele tremeu a seu impacto. Então, deu um passo para trás.
- Levante-se! - ordenou, e William se encolheu e ergueu-se nos pés. Tom viu que não havia mais reação dentro dele. - Suma da minha vista. - Sua voz era rouca de repulsa. - E lembre-se disso da próxima vez que erguer a mão para sua esposa, que lhe salvou a vida no dia de hoje.
William recuou de costas para as escadas e, então, quando estava a uma distância segura, voltou-se, subiu-as numa corrida e desapareceu pela longa galeria.
- Obrigada, Tom. - Alice fitou-o com uma expressão trágica.
- Você e eu viveremos para nos lamentarmos disso - Tom lhe disse.
- Isso está nas mãos de Deus.
- Tenho de ir embora - Tom retrucou. - Não posso ficar aqui para protegê-la.
- Eu sei. - Sua voz era um murmúrio resignado.
- Nunca mais voltarei a High Weald - ele continuou, determinado.
- Sei disso também - ela concordou. - Vá com Deus, Tom. Você é um homem bom, como era seu pai. - Voltou-se e desapareceu no canto da galeria.
Tom continuou imóvel por um momento, considerando a enormidade daquilo que acabara de dizer. Nunca mais voltaria a High Weald. Quando estivesse morto, não seria enterrado na cripta da capela na colina, em companhia de seus antepassados. Seu túmulo seria numa terra distante e selvagem. Estremeceu diante da constatação. Então, abaixou-se para pegar a espada de Netuno, enfiou-a na bainha e a afivelou na cintura.
Olhou através das portas para a biblioteca. Seus papéis encontravam-se espalhados pelo chão. Entrou no velho aposento, e estava prestes a recolhê-los, quando se imobilizou. Não haveria uso para tudo aquilo, pensou, sombrio. Lentamente, olhou ao redor. O aposento estava repleto das maravilhosas lembranças de seu pai. Outro laço com sua infância se romperia ali. Então seu olhar pousou sobre a fileira dos diários de bordo de seu pai na estante ao lado da porta, o fiel registro de todas as viagens de Hal. Cada página, escrita com sua letra, continha direções de navegação e informações mais valiosas do que qualquer outra peça na casa. Tom estava de partida para sempre. Isso eu levarei comigo, pensou. Tirou-os das estantes e saiu para o corredor.
Evan, o intendente da casa, e dois dos lacaios o esperavam. Evan tinha uma pistola armada em cada mão.
- Sua Senhoria chamou os homens do delegado. Ordenou que eu o detivesse até que eles cheguem, sr. Tom.
- Então, o que vai fazer, Evan? - Tom pousou a mão no cabo da espada.
- Seu cavalo está esperando lá fora, sr. Tom. - Evan baixou as pistolas. - Espero que encontre o sr. Dorian. Todos nós, em High Weald, vamos sentir sua falta. Volte para nós um dia.
- Adeus, Evan. - A voz de Tom soou embargada. - Obrigado.
Desceu os degraus, colocou os diários nos alforjes e pulou na sela.
Voltou a cabeça do cavalo em direção ao mar e seguiu num trote pela longa alameda de cascalhos. Nos portões, resistiu ao impulso de olhar para trás.
- Acabou - disse a si mesmo -, está tudo acabado. - E espicaçou o cavalo pela estrada escura.
Tom decidiu não esperar que os homens do delegado o procurassem para prendê-lo sob as acusações que, ele sabia, William lhe faria. Encontrou seus homens na sala do Carvalho Real. Todos o encararam, atônitos, à vista de suas roupas manchadas de sangue e do nariz quebrado.
- Partiremos imediatamente - disse a Aboli, Ned Tyler e Alf Wilson. - Então olhou para Luke Jervis no lado oposto da lareira. Luke era o dono do pequeno Corvo e um negociante autônomo, mas fez um gesto de concordância diante da ordem, sem hesitar.
Quando estavam prestes a soltar os cabos da doca, um cavaleiro solitário aproximou-se pela foz do Plymouth num galope. Quase caiu da montaria ao puxar as rédeas.
- Espere por mim, senhor! - Tom sorriu ao reconhecer a voz de mestre Walsh. - Não pode me deixar para trás.
O pequeno grupo de fortes marinheiros reuniu-se no convés aberto quando o Corvo deslizou para o mar noturno.
- Que curso, senhor? - Luke perguntou ao se afastarem do continente.
Tom olhou com ansiedade para o sul, na direção do cabo da Boa Esperança, a porta para o Oriente. Oh, quisera eu ter um navio de verdade, e não esta casca de noz, pensou, e então se voltou, resoluto.
- Londres - respondeu. Sua voz saiu fanhosa, pois o nariz estava inchado e fechado. - Eu lhe pagarei por esta viagem - acrescentou. Ainda tinha a maior parte de seu dinheiro do prêmio no Banco Samuels, em Londres.
- Acertaremos isso depois - Luke resmungou e então gritou as ordens à sua tripulação de três homens para colocar o curso do pequeno cúter no rumo leste.
O Corvo singrou tranqüilamente o Tâmisa e entrou no estuário de Londres sem chamar atenção da multidão para o pequeno barco. Luke deixou-os em terra com a humilde bagagem no cais de pedra sob a Torre de Londres. Aboli encontrou alojamentos baratos nas ruas pobres ao longo do rio.
- Se a sorte nos favorecer, precisaremos desses quartos por apenas uns poucos dias. - Tom olhou ao redor da imunda tapera de madeira.
- Precisaremos de boa sorte para sobreviver aos ratos e baratas - Alf Wilson comentou, enquanto Tom se vestia com as melhores roupas que trouxera consigo. O casaco azul-marinho e a calça, não tão elegantes, davam-lhe uma aparência sóbria de homem de negócios.
- Irei com você, Klebe - Aboli se ofereceu. - É provável que se perca no caminho sem mim.
O dia estava frio e chuvoso, uma prévia do outono. Foi uma longa caminhada pelo labirinto de ruelas, mas Aboli achou o caminho no meio delas sem erro, como se se encontrasse em suas florestas nativas. Chegaram ao final de Cornhill, na rua Leadenhall, e atravessaram a imponente fachada da sede da Companhia.
- Esperarei por você na taverna da esquina - Aboli disse a Tom ao se separarem.
Quando Tom entrou no saguão do edifício, um dos secretários o reconheceu e cumprimentou-o respeitosamente.
- Verei se Sua Senhoria pode recebê-lo - disse. - Nesse ínterim, poderá aguardar no salão de espera, sr. Courtney.
Um lacaio uniformizado tomou a capa de Tom e lhe trouxe um cálice de vinho da Madeira. Ao se sentar na confortável cadeira diante da lareira crepitante, Tom revisou o pedido que pretendia fazer a Nicholas Childs. Sabia, com razoável certeza, que Childs não soubera ainda notícias de seu irmão William. A menos que fosse clarividente, William não haveria de esperar que ele estivesse ali, portanto era improvável que tivesse enviado uma mensagem urgente a Childs para avisá-lo de não oferecer ajuda a seu irmão.
Por outro lado, Tom se dera conta da futilidade de pedir a Childs o comando de um navio da Companhia. Havia muitos capitães de vasta experiência e longos serviços prestados que teriam precedência sobre ele. Tom nunca tivera em suas mãos o pleno comando de uma nau, e Childs jamais lhe cederia um dos magníficos mercantes anglo-indianos. O melhor que poderia esperar era um lugar como oficial-júnior num navio para a índia, e Dorian estava na África.
Remoendo o problema, Tom voltou-se de cara fechada para a lareira e bebeu um gole de vinho. Lorde Childs sabia tudo sobre a captura de Dorian - na verdade, Tom o vira conversar com Hal quando tinham ficado hospedados na Casa de Bombaim. Se Tom lhe pedisse um navio, o velho perceberia sua intenção de ir atrás de seu irmão capturado em vez de comerciar em busca de lucros. Além disso, se Tom procurasse qualquer outra embarcação, Childs faria o melhor a seu alcance para impedir que ele contornasse o Cabo. Hal havia dito que a Companhia era visceralmente contrária a intermediários em seus territórios mapeados. Não, melhor fingir desinteresse por aquela parte do mundo. Arrancarei a pele desse gato pelo rabo, decidiu com tristeza.
Lorde Childs o manteve esperando por menos de uma hora, o que Tom levou em conta de uma alta consideração. O presidente do Conselho da Companhia das índias Orientais era, provavelmente, um dos homens mais ocupados de Londres, e Tom chegara sem convite ou pedido de audiência.
Por outro lado, sou um irmão cavaleiro da Ordem, e minha família possui sete por cento das ações da Companhia. Ele não poderia imaginar que, apenas dias atrás, eu cheguei perto de degolar Billy.
O secretário conduziu-o pela escadaria principal e, através da antecâmara, para o escritório de Childs. O mobiliário falava por si só da imensa fortuna e condição da Companhia. Os tapetes eram de seda lustrosa, e as pinturas que pendiam das paredes revestidas de painéis, imponentes marinhas retratando os navios da Companhia à plena vela ao largo de praias exóticas das Costas do Carnático e de Coromandel. Quando Tom passou sob um candelabro que parecia uma montanha de gelo invertida e entrou na câmara interna pelas portas esculpidas e laqueadas de ouro, lorde Childs levantou-se de sua mesa e veio encontrá-lo. Foi o bastante para afastar quaisquer dúvidas que Tom ainda pudesse ter de como seria recebido.
- Meu caro jovem Thomas. - Childs apertou-lhe a mão e, com o polegar e o indicador, fez o gesto de reconhecimento dos cavaleiros irmãos da Ordem. - Esta é uma agradável surpresa.
Tom fez o contra-sinal.
- Milorde, é gentileza sua receber-me em tão curto tempo.
Childs fez um gesto de desculpas.
- De maneira alguma. Sinto apenas que tenha sido forçado a fazê- lo esperar. O embaixador holandês... - Deu de ombros. - Tenho certeza de que você compreende. - Childs usava uma peruca inteira e a estrela da Ordem da Jarreteira em sua lapela bordada em ouro. - Como está seu caro irmão William?
- No melhor da saúde, milorde. Pediu-me para lhe transmitir seus mais profundos respeitos.
- Fiquei muito triste por não poder comparecer ao funeral de seu pai, mas Plymouth é tão longe de Londres... - Childs conduziu Tom a uma cadeira sob as altas janelas que olhavam sobre os telhados para uma vista distante do rio e suas embarcações -. Um homem notável, seu pai. Sua falta será sentida enormemente por todos nós que o conhecemos bem.
Por uns poucos minutos mais, trocaram gentilezas, e então Childs reclinou-se contra o assento da cadeira e estendeu a mão para pegar o relógio de ouro de seu bolso do colete.
- Benza Deus, já passa das dez, e sou esperado em St. James. - Enfiou-o de volta no bolso. - Estou certo de que você não veio até aqui para passar o tempo.
- Milorde, se posso ir direto ao ponto, preciso de um emprego.
- Veio ao lugar certo - Childs concordou com tamanha veemência que sua papada balançou como a de um peru. - O Seraph parte em dez dias para o Carnático. Edward Anderson é seu mestre. Você conhece ambos, a ele e ao navio, claro. Tem um lugar para terceiro-oficial que é seu, se quiser.
- Eu tinha em mente alguma coisa mais... mais aventureira.
- Ah... o sr. Pepys é meu amigo pessoal, e ele conhecia seu pai. Não tenho a menor dúvida de que poderemos encontrar um lugar para você num dos vasos de guerra. Creio que uma fragata de combate poderia se adequar a um jovem do seu temperamento...
- De novo, senhor, posso ser abusado? - Tom interrompeu-o com um ar de desculpas. - Tenho à minha disposição um pequeno cúter. É muito rápido e de fácil manejo, um barco ideal para caçar as embarcações comerciais dos franceses no canal da Mancha. - Childs o encarou com espanto, e Tom apressou-se a emendar, antes que ele se recusasse. - Também tenho uma tripulação de marujos combativos para servi-lo, alguns dos mesmos homens que trabalharam para meu pai no Seraph. Tudo que peço é uma carta de licença para atacar os franceses.
Childs soltou uma risada tão gostosa que sua barriga ressaltou em seu colo como uma bola de borracha.
- A maçã não cai muito longe da árvore, não é? Como seu pai, você quer liderar em vez de se deixar conduzir. Claro, seus feitos guerreiros são de conhecimento público. Deveria colocar a cabeça decapitada de al-Auf incorporada no brasão da sua cota de armas quando receber seu próprio grau de nobreza num dia desses.
Abruptamente, parou de rir, e Tom teve um vislumbre daquela mente perspicaz, calculista, por trás dos bondosos olhos azuis. Childs levantou-se e foi até a janela. Ficou ali, a olhar para o rio, até que Tom começou a se inquietar em sua cadeira. Então, derramou-se sobre ele a certeza de que a pausa era intencional, deliberada. Disse:
- Milorde, gostaria que o senhor tivesse uma parcela de qualquer prêmio que eu possa conseguir sob essa permissão. Pensei que cinco por cento seria uma apropriada expressão da minha gratidão.
- Dez por cento poderia ser ainda mais apropriado - observou Childs.
- Dez por cento, então - concordou Tom. - E, é claro, quanto mais cedo eu partir, mais cedo poderia tornar efetivos esses dez por cento ao senhor.
Childs voltou-se para ele esfregando as mãos e tendo no rosto uma expressão afável.
- Vou conversar com certas pessoas em St. James nesta mesma manhã, cavalheiros que têm participações na sua doação. Comunique-se comigo dentro de três dias, isto é, na terça-feira, às dez horas. Posso ter novidades para você, então.
Aqueles três dias de espera passaram como um cortejo funerário, cada minuto preenchido de receios e dúvidas. Se William tivesse tomado a precaução de entrar em contato com todos os homens poderosos que conhecia em Londres, todas as portas se fechariam para Tom. Já então, decorrera tempo suficiente desde que Tom partira de High Weald, para que um mensageiro lançasse por água abaixo todos os seus planos.
Mesmo que Childs pudesse lhe entregar uma permissão, Tom não tinha nem navio nem tripulação, pois não poderia abordar o assunto com qualquer um dos homens antes de ter a carta do rei em seu bolso. Luke Jerkis já partira em outra de suas nefastas viagens para encontrar um contrabandista francês no meio do canal da Mancha. Dessa vez, poderia ser caçado pelos fiscais do governo, e nunca mais regressar. As dúvidas se reuniam a circular como abutres para atribular não apenas as horas despertas de Tom, mas também os seus sonhos. Quando Luke retornasse, teria vontade de arriscar seu pequeno Corvo numa missão tão arriscada? Agora ele devia ser um homem rico, e Aboli dissera que Luke possuía uma esposa e um bando de filhos.
Durante aqueles três dias, seus homens o olhavam com expectativa, mas Tom não pôde lhes oferecer nada. Não se atreveu nem mesmo a lhes contar o que Childs lhe prometera, com medo de inflar demais suas esperanças. Na manhã de terça-feira, esgueirou-se de seu alojamento como um ladrão, sem nem sequer falar a Aboli aonde ia.
O relógio na torre da pequena igreja na rua Leadenhall mal tocara as dez horas quando o secretário de lorde Childs desceu para o salão de visitantes para convocá-lo.
Um olhar para a expressão calorosa de Childs foi o bastante para afugentar todos os pesadelos que haviam assombrado Tom. Assim que se cumprimentaram e se sentaram frente a frente, Childs pegou o grosso documento em pergaminho de cima da mesa à sua frente. Tom reconheceu o grande selo vermelho do chanceler de Sua Majestade ao pé da única página. Era idêntico ao da permissão sob a qual seu pai navegara quando o Seraph se fizera ao mar. Childs leu em voz alta a primeira linha, num tom pedante:
- Seja do conhecimento de todos aqueles presentes que nosso confiável e bem-amado súdito, Thomas Courtney... - Não leu o resto, mas ergueu os olhos e sorriu para Tom.
- Pela graça dos Céus, o senhor conseguiu! - Tom exclamou, excitado.
- Duvido que qualquer outro capitão tenha recebido sua permissão com tamanho entusiasmo - comentou Childs. - Esse augúrio é extremamente positivo para a nossa missão. - Enfatizou o possessivo plural ao dispor de lado a licença e apanhar outro documento. - Este é um contrato separado que firma nosso acordo. Deixei o nome do navio em branco, mas poderemos preenchê-lo agora. - Pegou uma pena e aguçou a ponta antes de mergulhá-la no tinteiro. Ergueu os olhos para Tom, na expectativa. Tom respirou fundo antes de se pronunciar.
- Corvo - disse.
- Corvo! - Childs escreveu numa caligrafia floreada e, em seguida, olhou para Tom. - Agora, precisamos da sua assinatura.
Tom mal correu os olhos pelo contrato de co-empreendimento antes de apor nele sua aceitação. Childs contra-assinou e depois secou a tinta. Ainda a sorrir com afabilidade, dirigiu-se até uma mesa lateral, onde havia uma bandeja com garrafas de cristal, e encheu duas taças até a borda. Estendeu uma a Tom e brindou com a outra.
- Perdição para Luís XIV e uma peste negra sobre a França!
Aboli contratou um balseiro para levá-los rio acima, até onde Luke Jervis tinha seu atracadouro, numa pequena ilha com o estranho nome de Torta de Enguia. A uma amarra de distância, viram que o Corvo retornara de sua mais recente incursão e estava amarrado ao molhe de madeira. Ao se aproximarem, Luke saiu da cabana que se erguia entre um bosque de salgueiros e correu para o molhe a fim de encontrá-los, deixando um fino rastro da fumaça azulada do cachimbo no ar, atrás de si. Tom saltou em terra enquanto Aboli pagava ao balseiro seus seis pence.
- Uma viagem lucrativa, mestre Luke? - perguntou Tom.
- Os fiscais do governo nos fizeram correr de Sheerness. Tive de jogar três tonéis de conhaque pelo costado antes que pudéssemos nos livrar deles. Todo o meu lucro dos últimos seis meses se foi rio abaixo, para Davy Jones. - Coçou a cicatriz na face e pareceu tristonho. - Creio que estou ficando muito velho para o jogo, sr. Courtney.
- Talvez eu possa interessá-lo em algo menos desgastante para seus nervos - sugeriu Tom.
Luke revigorou-se a olhos vistos.
- Achei que tinha alguma coisa em mente. O senhor me lembra seu pai. Sempre foi o homem de olho na oportunidade certa.
Naquele momento, uma mulher apareceu na soleira da porta da cabana. Seu avental estava manchado da fuligem do fogão e carregava um bebê nu com o bumbum sujo apoiado no quadril. A criança agarrava-se com ambas as mãos ao macio seio branco que sugava pela abertura da blusa.
- Luke Jerkis, não se atreva a dar o fora para encher a cara com os safados dos seus amigos e me deixar aqui sem comida na casa e com seis crianças famintas para alimentar! - ela esgoelou, seus cabelos caindo desgrenhados por sua face.
Luke piscou para Tom.
- Meu anjinho. O casamento é uma instituição bela e nobre. Boa demais para os iguais a mim, eu às vezes penso.
A mulher esbravejou:
- É hora de procurar trabalho honesto em vez de se esgueirar pela noite e chegar em casa com alguma história para boi dormir acerca de perder seu dinheiro, quando sei muito bem que lançou âncora em algum antro pesteado na baía das Putas.
- Tem um trabalho honesto de verdade para mim, sr. Courtney? Qualquer trabalho que me leve para bem longe dos berros da minha boa esposa?
- É sobre isso que vim conversar com você - Tom retrucou com alívio.
Três noites depois, o Corvo entrou em águas da costa francesa com um homem na proa com sondareza.
- Pela marca cinco! - Ele indicou a profundidade num tom baixo e, em seguida, abriu a janela da lanterna numa fresta para examinar o sebo na ponta do chumbo e ver o que pegara do fundo do mar. - Areia e conchas! - informou, um pouco mais alto que num sussurro.
- Banco de huîtres, as ostras de pérolas. - Luke fez um gesto de concordância no escuro, sua posição confirmada. - Lá está Calais a bombordo, e Honfleur, continente adentro. - Sua pronúncia dos nomes franceses era fluente. Tom sabia por Aboli que ele falava a língua como um nativo. - Os bancos de areia da praia são muito suaves aqui, e com essa brisa vinda de leste, poderemos vadear até a terra sem dificuldade - disse a Tom. - Fique pronto para pular quando eu disser.
Tom decidira que somente ele e Luke iriam desembarcar para fazer um reconhecimento da ancoragem de Calais. Luke conhecia o terreno e poderia conversar para tirá-los de qualquer problema com que deparassem. Ficou tentado a levar Aboli com eles, porém um grupo menor era mais prudente, e a face negra de Aboli seria difícil de passar despercebida se fossem confrontados por uma patrulha francesa.
- Pela marca dois! - veio o suave chamado da proa.
- Apronte-se agora - Luke murmurou e entregou o leme ao companheiro.
Ele e Tom pegaram suas sacolas de couro e rumaram para a proa. Ambos vestiam roupas rústicas de pescadores, com tamancos nos pés e gibões de couro sobre os casacos curtos de lã. Suas cabeças estavam cobertas por capuzes de lã. Naquele momento, sentiram o Corvo bater no fundo, um baque suave na praia arenosa.
- Avanço suficiente! - Luke sussurrou para os homens nos longos remos, e eles descansaram as pás. Pulou pelo costado primeiro, e a água chegou às suas axilas.
Tom passou os dois sacos a ele, e depois o seguiu, saltando a amurada. A água estava tão fria que lhe cortou a respiração.
- Avançar para longe! - o imediato falou baixinho aos remadores, e o Corvo recuou lentamente para fora da areia.
Luke escolhera a maré montante para se assegurar de que não encalhariam. Com uma dúzia de braçadas, o pequeno bote tinha desaparecido dentro da noite, e Tom estremeceu de novo, não apenas por causa do frio. Era uma sensação lúgubre estar sozinho em terra inimiga, sem saber o que os esperava na praia.
A água logo ficou rasa e eles saíram pela dura areia molhada e se agacharam ali, a escutar. Ouvia-se apenas o quebrar e o sibilar das ondas mansas, de maneira que saltaram de pé e correram para as dunas. Descansaram ali por uns poucos minutos, ouvidos atentos, respiração contida, e logo depois seguiram rapidamente pelas dunas e pela vegetação rasteira em direção ao continente. Meia milha adiante, quase caíram sobre os destroços de um antigo navio naufragado e encalhado além da marca da maré alta.
- E o velho Bonheur, um navio de cabotagem bretão - Luke disse a Tom. - Uma boa demarcação para o nosso retorno. Ajoelhou-se e cavou um buraco na areia debaixo das costelas ossudas do casco. Depois, enfiou um dos sacos de couro dentro dele e o recobriu com a areia solta. - Acharemos isto aqui quando precisarmos.
Seguiram adiante, mais depressa agora, e subiram a linha da costa. No cimo, passaram a andar com mais vagar, usando a baixa vegetação marinha como cobertura, para tentar se manter fora da vista enquanto procuravam por um esconderijo. Encontraram um nas ruínas de uma estrutura de pedra que Luke explicou haver sido uma fortificação da Marinha francesa durante as guerras holandesas. Fora ali erigida para dar uma vista irrestrita das aproximações e do principal ancoradouro. Inspecionaram a área em torno do forte para se certificar de que estava deserta e de que não havia sinais de ocupação recente, antes de se acomodar. De sua sacola, Luke tirou um par de pistolas para cada um deles. Carregaram-nas com pólvora fresca, verificaram o gatilho e a espoleta e as deixaram prontas, à mão. Depois, aguardaram o amanhecer. Por fim, o horizonte leste tingiu-se de tonalidades de um limão e cor-de-rosa e lançou um adorável brilho cálido sobre o cenário abaixo deles.
Mesmo àquela hora, havia uma agitação de colméia em torno da frota dos vasos de guerra franceses ancorados no porto. Pelas lentes de sua luneta, Tom contou quinze navios de três conveses, com oitenta canhões cada um, e uma grande quantidade de naus menores. Muitos não tinham suas vergas cruzadas, e os homens corriam como formigas Pelos tombadilhos.
A atividade em terra era também efervescente, e tão logo o sol surgiu por entre a neblina da manhã, viram tropas marchar para a cidade pela estrada que levava a Paris. Os raios de luz reluziam nas baionetas de seus mosquetes postados nos ombros, e as penas e fitas em seus chapéus tricornes dobravam-se e flutuavam a cada passo. Um comboio de carroças os seguia, a sacudir pela rodovia esburacada.
Um pouco mais tarde, um esquadrão de cavalaria em jaquetas com galões de ouro e capas azuis e com botas altas lustrosas saiu em passo de trote da cidade. Por um momento de fazer parar o coração, Tom julgou que rumavam direto, colina acima, para seu esconderijo. Soltou a respiração num suspiro de alívio quando os cavaleiros tomaram o caminho da encruzilhada para fora da cidade e seguiram em direção ao sul pela estrada flanqueada de ambos os lados por filas de choupos. A nuvem de poeira que deixaram desapareceu para os lados de Honfleur.
Quando o sol se ergueu mais alto, dissipando completamente a neblina, e a luminosidade aumentou, Tom pôde concentrar sua luneta numa busca pelo porto. Havia dúzias de naus menores entre os vasos de guerra. Alguns eram batelões e barcaças que transportavam mercadorias e homens para as embarcações maiores. Uma barcaça fazendo sinais de bandeira de alerta aproximou-se lentamente de um dos três conveses, o costado afundado na água sob o peso de altas pilhas de barricas de pólvora negra.
Outras embarcações estavam atracadas no cais ou ancoradas num emaranhado confuso pela baía. Muitas eram aparelhadas de vante e a ré, com mastro único e gurupés. Nas menores, aquele novo arranjo de velas tinha algumas vantagens sobre os navios mais tradicionais de velas redondas, e estava se tornando cada vez mais popular em todas as marinhas modernas. Aqueles barcos podiam ser manejados por menos homens e eram mais rápidos ao vento. Eram freqüentemente empregados como patrulhas e auxiliares da frota de combate principal. Uma intermitente cadeia daquelas naus e de outros pequenos navios chegava à baía e dela saía, todos a se manterem bem ao largo para evitar as atenções da Marinha Real. A frota inglesa encontrava-se sob bloqueio nos portos principais do canal da Mancha, no aguardo de que os franceses avançassem em surtida contra o inimigo com alguma força. Adiante, no meio do canal, Tom tinha visto, num relance ocasional, velas distantes da frota inglesa. O Corvo também estava lá, em algum lugar, à espera do anoitecer, antes de voltar à praia de novo e apanhá-los em água rasa.
Tom voltou sua atenção para as embarcações ao longe no canal e examinou com avidez as naus francesas de pequeno porte na ancoragem. A maioria era muito maior que o pequeno Corvo, e muitas estavam armadas com pequenos canhões. Contou uma dúzia que poderia servir bem a seus propósitos, mas então foi forçado a descartar uma após a outra ao descobrir seus defeitos. Algumas estavam em mau estado de conservação e armadas em escala reduzida, outras eram de cabotagem e não adequadas a longas viagens por mares bravios, outras ainda não tinham capacidade para carregar carga e os homens necessários.
No meio do dia, Tom e Luke deitaram-se de barriga na areia quente e comeram uma refeição que consistia em pão, presunto e ovos cozidos duros que Luke tirara de sua sacola, e dividiram uma garrafa de cerveja. Tom tentou não se mostrar desencorajado, mas parecia haver pouco para eles ali.
Quando o sol declinou para o horizonte, tinha diante de si uma escolha entre dois navios das dúzias que examinara. Então, um daqueles içou sua vela mestra e rumou para o mar, deixando-o sem nenhuma opção a não ser um velho cúter insignificante e em mau estado que já vira melhores dias e tempos mais felizes.
- Terá de servir - decidiu, aborrecido, e eles recolheram suas pistolas e equipamento, prontos para voltar à praia tão logo escurecesse. De súbito, Tom segurou o braço de Luke e apontou para o norte.
- Lá está ela! - exultou. - E ela!
Esguia e rápida como um galgo, uma chalupa contornou em velocidade o promontório e, em seguida, mudou de rumo elegantemente para passagem do canal e se dirigiu para o porto.
- Olhe para ela! Está pesada de carga, você pode ver pela linha d'água, mas ainda faz o giro a quinze nós com a leveza do peido de uma virgem - Luke murmurou, deslumbrado com sua beleza.
Era uma nau de convés corrido, sem popa ou castelo de proa. Seu único mastro tinha a forma elegante de forquilha e era proporcional ao comprimento de seu casco. Tom avaliou que teria uns quinze metros de comprimento.
- Dez canhões! - contou pela luneta. - O bastante para assustar qualquer caíque árabe.
Desfraldava uma vela mestra na carangueja com um botaló, a partir da verga latina, uma grande vela de mezena, e de seu gurupés, duas bujarronas. Na luz difusa, era uma aparição fantasmagórica, etérea, um fruto do vento e da espuma das ondas e dos arabescos do mar.
- Já estou apaixonado por ela e nem sei o seu nome! - Luke exclamou.
- Escolheremos um novo nome para ela - Tom lhe prometeu.
A chalupa foi a vento. Vieram abaixo seus panos, e foram recolhidos como num passe de mágica. Os dois estreitaram os olhos para observá-la atracar. Tom contou sua tripulação, e encontrou nove homens, mas imaginou que ela poderia acomodar trinta marujos combatentes numa longa viagem, embora pudessem ter de alterar seu convés inferior para tanta gente.
- Marque-a bem, Luke - disse Tom, sem tirar a luneta do olho. - Precisa localizá-la de novo no escuro.
- Ela queima os meus olhos - Luke lhe assegurou.
Com as últimas luzes do dia, viram seis homens deixarem o navio e rumar pelo cais até onde as lanternas nas janelas das tavernas começavam a ser acesas.
- Pode-se avaliar a sede deles daqui. Não voltarão antes da alvorada - Tom murmurou. - O que deixa apenas três homens a bordo.
Quando o dia findou, correram de volta pelas dunas até a praia. Luke desenterrou o outro saco de sob os restos de naufrágio e, com pederneira e bastão de aço, acendeu a lamparina que trouxera ali dentro. Apontou-a em direção ao mar e ergueu a viseira, lançando sinais de luz por três vezes. Esperou um momento e então repetiu a operação. Na quarta tentativa, seu sinal foi respondido com três lampejos breves vindos do mar escuro.
Vadearam até as ondas mansas que se quebravam em suas faces e, quando ouviram o bater de remos dentro da noite, Luke soltou um assobio agudo. Minutos mais tarde, o Corvo assomou sobre eles. Os dois agarraram-se à borda do barco e pularam a bordo.
Ainda pingando água, Luke tomou o leme e se afastaram da praia de conchas. Assim que tinham água suficiente sob a quilha, içaram a vela mestra e a bujarrona. Tom despiu-se e enxugou o corpo com um pano rústico que Aboli lhe estendeu, e, em seguida, enfiou-se em roupas secas. Uma légua ao largo, Luke fez o Corvo parar, e todos se agacharam num círculo em torno da lanterna encoberta no convés aberto.
- Encontramos um navio - Tom disse aos homens. Suas faces eram ansiosas e ferozes sob a luz da lanterna. - Porém não será fácil com ventos leves e tempo bom para tomá-lo de assalto debaixo dos narizes dos franceses. - Não queria que se tornassem superconfiantes. - Aguardaremos até o turno do meio, quando eles estarão enfiados em suas redes. Mestre Luke nos levará até o porto e nos colocará ao lado da chalupa. Se formos confrontados, Luke falará por nós, o resto de vocês segure as línguas. - Fechou a cara para impressioná-los quanto à necessidade de silêncio.
- Quando nos emparelharmos, darei a ordem e liderarei o grupo de abordagem. Aboli e Alf Wilson me ajudarão a limpar o convés do inimigo. A maioria está em terra e deve ficar lá pela noite toda. Teremos não mais de três homens para enfrentar. Nada de pistolas, apenas macetes e punhos. Usem suas adagas só como último recurso. O silêncio é nossa principal preocupação, e um homem com aço na barriga irá berrar como uma porca dando cria. Fred cortará fora os cabos de proa, e Reggie, da popa. Cortar e correr, camaradas, portanto tenham seus canivetes à mão.
Em seguida Tom falou com cada homem por vez, fazendo-o repetir suas ordens para que não houvesse confusão no escuro. Com Luke e sua tripulação de três, havia quinze deles; os demais eram antigos marujos calejados do Seraph que Alf e Aboli tinham reunido em tão curto tempo. Mais que suficientes para a tarefa.
- O vento está de leste, e Luke acha que irá recrudescer antes da meia-noite. Não os vi colocarem empanques na vela mestra, de maneira que deve correr livre com um puxão pela adriça. - Tom olhou para Ned Tyler, suas feições curtidas realçadas pelo brilho amarelado da lanterna. - Sr. Tyler, irá para o leme, não se meta em brigas. Luke vai nos conduzir para mar alto com o Corvo, mostrará uma luz sombreada pela popa.
Quando cada homem sabia aquilo que Tom desejava dele, Tom verificou as armas e assegurou-se de que cada um tinha um macete e um punhal. Ele seria o único a portar uma lâmina longa. Afivelou a espada de Netuno em torno da cintura.
Certificou-se, antes de partirem, de que cada um estava vestido com roupas escuras, e agora passava a lanterna ao redor do círculo, e todos esfregaram fuligem de chaminé nas faces e mãos. Houve aquelas brincadeiras usuais sobre Aboli não precisar daquele acréscimo à sua natural pigmentação, e então se acomodaram debaixo dos pranchões, enrolados em suas capas, para comer um pouco de pão e comida fria, antes de tentar cochilar por umas poucas horas.
Ao final do primeiro turno, Luke começou a levar o Corvo para mais perto de terra. Com a brisa que soprava do continente, podiam ouvir os sons da terra com bastante clareza, e um relógio de igreja na cidade bateu doze vezes tão alto que eles conseguiram contar cada badalada.
Tom passou a ordem, e um após o outro foi acordando os que dormiam - eram poucos; a maioria já estava tensa e nervosa.
Precisavam barlaventear o porto contra a brisa, mas esse era um preço que Tom tinha prazer em pagar em troca de uma abordagem direta. Logo estavam entre a frota francesa, e passaram tão perto de uma elegante nau de três conveses que puderam ouvir o vigia de âncora no convés principal a falar em voz engrolada. Ninguém os confrontou e Luke levou o Corvo tranqüilamente em direção ao cais de pedra, onde tinham visto a chalupa pela última vez. Tom agachou-se na proa, espiando adiante em busca do primeiro vislumbre da nau francesa. Havia sempre uma chance de que tivessem zarpado ou se afastado do cais, mas Tom rezou para que a maioria de sua tripulação ainda estivesse bebendo cerveja nas tavernas e que seu capitão pretendesse esperar até a manhã para descarregar sua carga.
Lentamente, o Corvo acertou a proa com o cais escuro, abrindo caminho entre dois navios ancorados. Tom estreitou os olhos e cobriu-os com as mãos para cortar a luz refletida das lanternas das casas ao longo da beira d'água. Agora podia ouvir risadas e cantos vindos das cervejarias, mas o restante da frota estava imerso em silêncio, a exibir apenas suas lanternas de sinalização nas cabeceiras dos mastros.
- Ela se foi! - O pessimismo tomou conta de Tom quando se encontravam a meia distância de um tiro de pistola de onde ele vira a chalupa pela última vez, e ainda não havia sinal dela. Culpou-se por não ter tomado a precaução de escolher um segundo alvo para uma tal eventualidade. Estava prestes a chamar por Luke no leme para que os levasse dali, quando seu coração saltou no peito e bateu contra as costelas. Vira o mastro nu delineado contra o brilho tênue das luzes da cidade, e percebeu que, com a maré baixa, o casco da chalupa descera abaixo do nível do cais, de maneira que não era visível contra a construção de pedra.
- Ainda está lá, esperando por nós! - Olhou atrás para ter certeza de que seus homens estavam de prontidão. Encontravam-se acocorados, como ele, debaixo dos pranchões. Com as faces enegrecidas, se pareciam com carga empilhada de maneira descuidada ao longo do convés. Apenas Luke mantinha-se ereto no leme. Agora o girava todo para travá-lo, e seu companheiro na adriça, sem esperar por uma ordem, arriou a vela mestra com um suave farfalhar. O Corvo diminuiu o passo e deslizou até tocar o lado do vaso francês atracado. O convés da chalupa era quase dois metros mais alto que o do Corvo e Tom preparou-se para saltar dentro dele.
O som do choque dos dois cascos veio acompanhado de uma voz sonolenta que exclamou em francês:
- Nom de Dieu!
- Tenho um recado para Mareei - Luke disse, na mesma língua.
- Não há nenhum Mareei aqui - o francês retrucou, irritado. - Está estragando minha pintura com essa merda do seu barco!
- Trouxe os cinqüenta francos que Jacques deve a ele - Luke insistiu. - Vou mandar um dos marujos da minha tripulação para entregá-los a você.
A menção de uma tal soma de dinheiro calou qualquer protesto posterior, e a entonação do francês tornou-se gentil e agradecida:
- Três bien. Pode me dar. Farei com que Mareei os receba.
Tom pulou sobre a amurada do Corvo e alçou o corpo flexível para dentro do convés da chalupa. O francês estava debruçado sobre a amurada, com um capuz de lã na cabeça e um cachimbo de barro apertado entre os dentes. Endireitou-se e tirou o cachimbo da boca.
- Dê-me o dinheiro.
Ao caminhar pelo convés com a mão estendida, Tom viu que o homem tinha um magnífico par de bigodes retorcidos.
- Certamente - disse, e o acertou acima da orelha esquerda com um golpe do macete. Sem um gemido, o outro desabou. No segundo seguinte, Aboli saltou pelo costado e aterrissou como uma pantera nos silenciosos pés descalços. Tom percebeu que uma das gaiútas da proa estava aberta e que uma débil luz de lanterna se refletia desde lá embaixo. Correu pelo corredor, com Aboli logo atrás de si. Uma lanterna se balançava nas argolas de suspensão da bússola, no tombadilho acima, e à sua luminosidade Tom viu que três redes pendiam atravessadas no fundo da cabina. Deu-se conta de que errara no número de pessoas da tripulação francesa. Ao atravessar a cabina, um homem sentou-se de repente na rede mais próxima.
- Qui est là? - perguntou.
Em lugar de responder, Tom o atingiu com um golpe em cheio do macete. O homem caiu para trás, mas outro gritou de susto na rede ao lado. Aboli girou a rede de face para baixo e jogou o homem sobre o convés. Antes que o outro pudesse gritar de novo, Tom baixou seu macete, e o marinheiro caiu desmaiado. Um terceiro saltou da última rede e tentou correr para o passadiço, mas Tom o segurou pelo tornozelo e o puxou para trás. Aboli armou o punho e o atingiu do lado da cabeça. O homem caiu.
- Mais algum? - Tom olhou ao redor rapidamente.
- É o último. - Aboli correu para a escada, e Tom o seguiu até o convés. Fred e Reggie tinham cortado os cabos de amarração, e a chalupa já se afastava do cais. O grito do francês na cabina devia ter sido abafado e não causara alarme. O porto parecia tão quieto e sonolento como antes.
- Ned? - Tom sussurrou, e a resposta veio instantaneamente da popa:
- Sim, capitão.
Mesmo no calor daquele momento, provocou um calafrio em Tom ouvir o tipo de tratamento. Tinha um navio e era um capitão uma vez mais.
- Muito bem. Onde está o Corvo?
- Exatamente à frente. Já está sob vela.
Houve algum atraso entre os homens nas adriças do mastro principal da chalupa. No escuro e num estranho navio estrangeiro, tiveram dificuldade em localizar os cabos: os franceses usavam um sistema diferente de cordame. Tom correu até eles e foi ajudá-los a desenredar os cabos.
A chalupa, porém, girava de popa e rapidamente deslizava em direção a um dos navios ancorados. Tom viu que poderiam chocar-se com força suficiente para causar danos. Um francês a bordo da outra embarcação berrou:
- Cuidado, seus estúpidos! Vão nos abalroar!
- Em prontidão para recuar! - um dos marujos da tripulação de Tom gritou em inglês.
Imediatamente, soou um grito do outro navio.
- Merde! lis sont anglais!
Tom livrou a adriça principal do emaranhado de linhas.
- Rápido agora! Içar!
A vela mestra arriou-se no mastro, a chalupa controlou seu desvio lateral e apanhou a brisa. Começou a zarpar, mas ainda com alguma resistência, e bateu no navio ancorado, arrastado ligeiramente para o lado.
Já então outras vozes gritavam:
- Ingleses! Os ingleses estão atacando!
Uma sentinela no cais, arrancado bruscamente do sono, disparou seu mosquete, e de imediato um tumulto se instalou por toda a ancoragem. Mas Ned tinha a chalupa a zarpar, a velocidade aumentando gradativamente. Quando Tom olhou adiante, viu o Corvo, sua lanterna de popa luzindo, rumo à passagem para o mar aberto.
- Panos da bujarrona! - Tom gritou, e provocou uma correria de pés descalços, convés abaixo, em direção à proa.
Apanhavam o gancho daquelas velas agora, e as bujarronas subiram com apenas um ligeiro atraso. No mesmo instante, a chalupa pendeu de um lado e pulou para a frente, a água a murmurejar sob sua quilha, e começaram a ultrapassar o Corvo. A frota francesa, porém, acordara, e se ouviam gritos de navio a navio, e em alguns as lanternas de combate eram acesas e içadas aos mastros.
Inspirado pelo tumulto crescente, Tom correu para um dos canhões da chalupa. Era um brinquedo se comparado aos enormes armamentos dos navios de cruzeiro ancorados todos ao redor deles. Só podia esperar que estivesse carregado.
- Ajude-me! - gritou para Aboli, e os dois abriram a tampa da porta de artilharia e empurraram o canhão para fora.
Tom ergueu os olhos e viu que passavam agora a uma meia distância de um tiro de pistola de um dos navios de cruzeiro, um monumental 74 que bloqueava metade do céu noturno acima. Não precisou nem mesmo mirar o pequeno canhão, mas simplesmente disparou na direção em que a nau se encontrava. A trava faiscou, porém houve um longo momento até que a arma deflagrasse. Então, abruptamente, bramiu e saltou para trás contra seu batente.
Tom ouviu a bala bater no pesado entabuamento do navio de guerra com um baque retumbante. Uivos selvagens de raiva os perseguiam, mas a chalupa avançava veloz. Estava tão à linha-d'água com o peso que se perdeu rapidamente na escuridão.
De algum lugar adiante, outro canhão disparou, e Tom viu, pelo demorado luzir da chama, que estava apontado para algum ponto perto deles. Nunca soube de onde o tiro partiu. Houve mais gritos, e então um estrondo de canhoneiro cresceu para uma ensurdecedora fuzilaria quando as grandes naves de guerra dispararam contra a imaginária frota inglesa que supostamente os atacava. A fumaça de pólvora subiu numa densa névoa sobre os dois navios menores. Estavam quase invisíveis um do outro, e Tom precisou olhar com atenção através da fumaça para divisar a débil luz da lanterna-guia do Corvo.
A gritaria e o canhonaço logo eram um eco distante, e eles saíram da fumaça para a doçura da noite clara. Ouviram vozes abafadas na brisa, vozes inglesas, e perceberam que a pequena tripulação do Corvo os saudava. Seus próprios homens interromperam o trabalho com os panos e os saudaram de volta. Era imprudente dar a qualquer perseguidor francês uma pista, mas Tom não tentou detê-los. Viu os dentes de Aboli luzirem brancos na escuridão e sorriu em resposta.
- Onde estão os franceses? - perguntou, e as três figuras arrancadas da cama foram arrastadas para a cabina a fim de se reunir a seus captores na popa.
- Há um escaler na proa - disse Tom. - Vamos içá-lo e colocá-los dentro dele. Mande-os para casa com os nossos melhores cumprimentos.
Colocaram os quatro homens no pequeno bote e o lançaram ao mar. Ao se dar conta do que estava acontecendo, o capitão francês levantou-se na proa da pequena embarcação, seus bigodes a tremer de fúria, agitou os dois punhos para eles, e se saiu com uma ladainha de palavrões:
- A mãe de vocês era uma vaca que os expulsou pelo buraco errado, seus montes de bosta fresca! Eu cuspo no leite da sua mãe! Piso nos testículos de seu pai!
- Fale em inglês! - Luke berrou de volta. - A beleza da sua poesia se perde no ar da noite. - E a indignação do capitão logo se extinguiu na escuridão atrás deles.
Aboli ajudou Tom a recolher a vela de mezena e, quando estava dobrada, tesa é dura, disse:
- A nau é sua agora, Klebe. Que nome lhe dará?
- Como os franceses a batizaram? - Alf Wilson debruçou-se sobre a popa e torceu o corpo para ler o nome no gio, à luz da lanterna.
- Hirondelle. O que quer dizer?
- Andorinha - Luke traduziu.
- É um bom nome - todos eles concordaram de imediato. - Deus sabe, ela voa como um pássaro.
- Porém não nessa língua desertada por Deus - Tom objetou. - Na doce língua-mãe inglesa. Andorinha! Vamos beber à sua saúde ao atracarmos no rio. - E deram a ela um hurra.
Quando o sol surgiu, encontravam-se ao largo de Sheerness, e embora tivesse todas as velas içadas, o Corvo estava distante a ré, incapaz de emparelhar com a Andorinha. A chalupa deslanchava adiante, a erguer brancos jatos de borrifos do topo das ondas acinzentadas ao avançar entre elas.
- Ela adora correr livre - Ned rejubilou-se, a face vincada por uma centena de rugas de prazer. - Seria preciso pendurar uma âncora em sua popa para segurá-la.
Sob a luz faiscante da manhã, era uma nau tão bonita como uma moça em seu vestido de casamento, os panos tão novos e brilhantes que luziam como madrepérola. Sua pintura era tão fresca que Tom podia sentir o leve cheiro de terebintina; seus conveses tinham sido areados até ficar brancos como a neve.
Tom voltou seus pensamentos para a carga que traziam nos porões da Andorinha. Chamou Aboli e pediu a ele que verificasse. Ergueram as gaiútas, e Aboli e Alf Wilson desceram com lamparinas acesas até os porões escuros. Meia hora depois subiram, parecendo felizes com a descoberta.
- Está recheada até o papo de panos de lona. Da melhor qualidade. O bastante para vestir um esquadrão de navios de cruzeiro.
A face de Tom iluminou-se de alegria. Sabia que os preços daquelas mercadorias iriam alcançar grandes alturas nos leilões da Companhia.
- Os sustentáculos da guerra! - exclamou. - Mercadoria a preço de ouro!
Descarregaram a carga de lona no cais da Companhia, e, em seguida, Tom mandou um bilhete a lorde Childs, antes de levar a Andorinha rio acima, para o atracadouro de Luke, na ilha da Torta de Enguia. Ficou o tempo suficiente com seus homens para fazê-los iniciar ao trabalho de alterar a disposição entre os conveses da chalupa, a fim de acomodar uma tripulação maior, e instalar pequenas cabinas para o mestre e os três oficiais. Não seriam maiores que cubículos e teriam um catre, um baú cuja tampa poderia ser usada como escrivaninha ou mesa para as cartas náuticas, e nada mais. O cômodo sob as vigas do convés forçaria o ocupante a dobrar-se quase ao meio para entrar ou sair.
Tom fez planos para mudar a disposição do castelo de proa, de forma que pudesse acomodar vinte homens. Reduziu sua estimativa original do número de gente de que precisaria para navegar e combater com o navio numa emergência, e ainda transportar carga suficiente de mercadorias para um cruzeiro de três anos, além dos bens de comércio para assegurar um lucro ao final desse tempo.
Como estavam, as condições das acomodações da tripulação seriam péssimas, mesmo com tempo bom, quando a maioria dos homens poderia dormir no convés aberto; mas, com tempo ruim, quando fossem forçados a descer, aquilo se tornaria apertado demais, mesmo para os velhos e experientes marujos que Alf e Aboli tinham recrutado.
Assim que o novo interior foi planejado e os carpinteiros puseram mãos à obra, Tom e Aboli alugaram uma balsa para levá-los rio abaixo. Quando chegaram à rua Leadenhall, o secretário os informou de que lorde Childs se encontrava na Casa dos Lordes e que ficaria lá o dia todo. Entretanto, recebera o bilhete e tinha esperado pela visita de Tom. O secretário entregou a Tom um bilhete que seu patrão deixara.
Meu caro Thomas,
Eu não esperava ter notícias de seus sucessos em tão pouco tempo. A carga de seu apresamento já foi vendida ao Almirantado, e recebemos um excelente valor pelo lote inteiro. Preciso conversar sobre isso com você. Por favor, procure-me nos Lordes, onde um assistente lhe entregará uma mensagem de minha parte na Casa. Seu criado, N.C.
Tom e Aboli seguiram até o dique onde se erguia o enorme edifício do governo, o Palácio de Westminster, à margem do Tâmisa. O assistente tomou a carta que Tom lhe apresentou à porta dos visitantes da Casa dos Lordes, e Tom teve de esperar por um breve tempo antes que lorde Childs, com um ar preocupado e o rosto vermelho, descesse as escadas com pressa. Segurou Tom pelo braço e, sem nenhum preâmbulo, esbravejou:
- Seu irmão, William, está na Casa. Estive com ele a menos de dez minutos. Você deveria ter me posto a par dos assuntos pendentes que existem entre vocês. - Soltou um berro, chamando a carruagem. - Acho que eu deveria ser alertado de que ele pretende pedir indenização pelos ferimentos que você lhe causou.
- Billy foi o culpado - Tom retrucou com raiva, mas Childs empurrou-o pela porta da carruagem quando esta parou diante da entrada.
- Casa de Bombaim! - ele ordenou ao condutor. - Tão depressa quanto puder. - Em seguida desabou no banco ao lado de Tom. - Seu imediato pode subir com o lacaio - disse, e Tom gritou a Aboli que subisse na boléia.
A carruagem partiu com um solavanco, e Childs tirou a peruca para enxugar a cabeça.
- Seu irmão é um dos acionistas principais da Companhia. Não um homem qualquer. William não deve nos ver juntos. Pelo bem da boa ordem, eu disse a ele que não tenho negócios com você.
- Ele não pode fazer nada contra mim - Tom afirmou, com mais certeza do que sentia. Teve de segurar na alça de apoio da carruagem e erguer a voz acima do bater dos cascos e do barulho das rodas de aço sobre o paralelepípedo, tal a pressa com que seguiam.
- Creio que subestima a força da animosidade de seu irmão, Courtney - disse Childs, e colocou a peruca de volta na cabeça. - Não importa qual o certo e o errado da situação, se uma pessoa na minha posição, ouso dizer, um homem com a certa influência, não quer entrar em conflito com ele, então quanto mais você, um filho mais novo sem herança... Deveria se manter afastado da vingança de William. - Childs ficou em silêncio por um momento, e então murmurou, pensativo: - Raramente vi tanta malícia, tão puro veneno em qualquer outro ser humano.
Ficaram calados pelo resto do trajeto até a Casa de Bombaim. Contudo, ao passarem pelos portões, Childs debruçou-se para fora da janela e gritou ao condutor:
- Leve-nos para os estábulos, não para a porta da frente.
Ao descerem no pátio do estábulo, ele conduziu Tom até uma pequena porta nos fundos da mansão.
- Sei que seu irmão tem espiões procurando por você. É melhor que ele não saiba do nosso encontro de hoje.
Tom seguiu apressado atrás de Childs ao longo do que parecia uma interminável série de passagens e escadas, até que se viu num pequeno gabinete com paredes recobertas de tapeçarias e, no centro, uma grande escrivaninha revestida de ouro falso. Childs apontou a ele uma cadeira ao lado da sua e, em seguida, remexeu os documentos que cobriam o tampo da mesa. Pegou um deles.
- Aqui está a nota de venda da carga de panos da chalupa francesa Hirondelle ao Almirantado. - Passou-a a Tom. - Verá que deduzi a taxa normal de serviços do total.
- Vinte por cento! - Tom exclamou, espantado.
- É o costumeiro - Childs disse com secura. - Se tiver o cuidado de reler nosso acordo, verá que isso consta da cláusula quinze.
Tom fez um gesto de resignação.
- E a Hirondelle? Vai deduzir seus vinte por cento do valor dela também?
Começaram a barganhar, e Tom logo descobriu por que Nicholas Childs chegara tão alto no mundo dos negócios. Teve a sensação desalentadora de que se confrontava com um espadachim muito além de sua classe. Num certo ponto, Childs pediu licença e deixou Tom sozinho por tanto tempo que ele começou a se inquietar e, por fim, saltou da cadeira e se pôs a andar pela sala, impaciente.
Nesse ínterim, na sala ao lado, Childs redigia uma longa mensagem numa folha de pergaminho. Ao secar a tinta e dobrá-la, disse ao secretário, em voz baixa:
- Mande Barnes vir falar comigo.
Quando o cocheiro postou-se diante dele, Childs lhe disse:
- Barnes, esta mensagem é para lorde Courtney, na Casa dos Lordes. Veja que seja entregue em segurança em suas mãos. É questão de vida ou morte.
- Muito bem, milorde.
- Ao voltar, você levará meu hóspede e seu criado ao atracadouro do rio, na Torre de Londres. Entretanto, não faça isso de imediato. Eis o que deve fazer... - Childs passou ao cocheiro instruções detalhadas e, quando terminou, perguntou: - Entendeu, Barnes?
- Perfeitamente, milorde.
Childs voltou ao gabinete onde Tom o esperava e pediu desculpas.
- Perdoe-me, mas havia assuntos urgentes que eu tinha de resolver. - Bateu gentilmente no braço de Tom. - Agora, voltemos aos negócios.
Pelo meio daquela tarde, Tom descobriu que possuía os direitos de propriedade da Hirondelle, mas que não receberia nenhum dinheiro pela venda da carga. Além disso, Nicholas Childs queria reter uma parcela de 25 por cento sobre quaisquer lucros futuros que Tom auferisse sob a licença que ele lhe conseguira. Tom sabia que era um frango diante da raposa de Childs, mas resistiu com teimosia.
A única coisa que Tom tinha em seu favor era que Childs não vira a Andorinha, e a descrição que lhe fizera dela não fazia justiça à chalupa, de maneira que não lhe excitou a avareza. Childs não tinha emprego para uma embarcação pequena, e Tom sentiu que ele estava louco para se livrar dela. Fincou posição e, ao final, Childs baixou suas exorbitantes exigências e concordou em entregar o atestado de propriedade da chalupa para Tom, livre de qualquer impedimento ao título. Em troca, reteria os procedimentos da carga.
Childs parecia bastante satisfeito com a barganha, Tom pensou com tristeza. Ficou a imaginar como poderia explicar aos homens que haviam lutado para se apoderar da Hirondelle, no porto de Calais, que não veriam nenhuma recompensa monetária por seus esforços.
- Você seria um homem prudente, Courtney, se partisse da Inglaterra tão logo pudesse levantar velas, e ficar longe, nos confins do oceano, enquanto a memória de seu irmão durar. - Childs esboçou um sorriso magnânimo. - Estou lhe oferecendo os meios para que escape de uma situação perigosa com sua pele intacta.
Estavam diante dessa conjuntura quando soou uma batida leve na porta do gabinete, e o secretário entrou a um sinal de Childs.
- O assunto foi resolvido, milorde. Barnes voltou e está à espera para conduzir seus hóspedes.
- Muito bom! - exclamou Childs. - Excelente, na verdade. - Levantou-se e sorriu para Tom. - Acho que isso conclui os nossos negócios, Courtney. Suponho que queira tomar uma balsa na Torre, não?
Com modos amistosos, conduziu Tom até a porta da frente da mansão, onde Barnes esperava com a carruagem. Ao se apertarem as mãos, Childs perguntou com ar inocente:
- Para onde levará seu novo navio? E quando partirá?
Tom sabia que a pergunta era ferina e rebateu o golpe:
- Eu me tornei seu novo dono apenas neste minuto. - Riu. - Não tive tempo ainda de pensar nesse assunto. - Childs o encarava nos olhos, a buscar por qualquer tentativa de prevaricação, e Tom foi obrigado a continuar: - Acho que os portos do sul da França, no Mediterrâneo, seriam minha melhor área de atividade. Ou talvez o território francês da Louisiana, no golfo do México. Eu poderia levar a Andorinha, pois este é seu novo nome, a cruzar o Atlântico.
Childs fungou, não inteiramente convencido.
- Espero sinceramente, Courtney, que não abrigue nenhuma idéia de contornar o cabo da Boa Esperança e ir à procura de seu irmão perdido no oceano das índias.
- Doce Jesus, não, senhor! - Tom soltou uma risada. - Não sou tão tolo a ponto de tentar cruzar o cabo das Tormentas num chapéu de papel como a Andorinha.
- Todos os territórios além do Cabo foram conferidos por carta régia à Honorável Companhia. Qualquer atravessador será processado da mais dura forma que a lei permita. - Era evidente, pelo brilho metálico em seus olhos azuis, que Childs não se limitaria à lei em seu troco. Havia um velho ditado marítimo de que "Não há lei além da linha", que significava que a lei civilizada nem sempre se aplicava aos confins do oceano.
Childs agarrou Tom pelo braço com firmeza para deixar inequívoco aquele ponto.
- Na verdade, creio que você seria prudente em me temer mais do que a seu irmão, se for atrevido o bastante para ultrapassar minha proa.
- Eu lhe asseguro, milorde, que eu o tenho na conta de meu bom amigo e que não faria nada para alterar este fato - Tom lhe disse com veemência.
- Então estamos entendidos. - Childs mascarou sua expressão dura com um sorriso tão largo quanto o de Tom, e os dois apertaram-se as mãos. Isso não importa em nada, Childs disse a si mesmo, auto-satisfeito. Acho que, agora, o destino final deste rapaz está nas mãos de seu irmão mais velho. Em voz alta, exclamou: - Vá com Deus! - E emendou em silêncio: ou para o diabo! E acenou com a rechonchuda mão muito branca.
Tom saltou lépido para a carruagem e convidou Aboli a tomar um assento a seu lado. Childs deu um passo atrás e fez um gesto ao cocheiro, que lhe devolveu um olhar significativo e, em seguida, tocou a aba do chapéu com o chicote. Balançou as rédeas, e a carruagem partiu.
Tom e Aboli estavam tão absortos na conversa que nem notaram o caminho que o cocheiro tomou. As ruas estreitas eram tão homogêneas que não havia marcos em que pudessem se orientar. Enquanto a carruagem rodava, Tom contou a Aboli todos os detalhes do encontro com Childs.
Ao final, Aboli disse:
- Não é uma barganha tão ruim quanto pensa, Klebe. Você tem a Andorinha e uma tripulação para fazê-la ao mar.
- Preciso pagar do meu próprio bolso Luke Jervis e os homens que foram comigo a Calais - Tom objetou. - Eles esperam uma cota da carga.
- Ofereça-lhes uma parcela e um lugar na sua próxima viagem. Isso os deixará mais ansiosos para servir.
- Tenho apenas seiscentas libras restantes do meu dinheiro do prêmio do Seraph para equipar a Andorinha e comprar provisões.
- Não - rebateu Aboli. - Você tem 1.200 libras.
- Que bobagem é essa, Aboli? - Tom voltou-se no banco para encará-lo.
- Eu possuo o dinheiro dos prêmios que ganhei com seu pai durante todos os anos em que navegamos juntos. Juntarei ao seu. - Aboli deu de ombros. - Não tenho outro uso para ele.
- Será meu sócio pleno. Assinarei um documento. - Tom não se esforçou em ocultar a satisfação.
- Se eu não puder confiar em você agora - Aboli quase sorriu -, que bem um pedaço de papel faria por mim? É só dinheiro, Klebe.
- Com 1.200 libras esterlinas, poderemos reequipar e comprar provisões para a Andorinha e encher seus porões com mercadorias para comércio. Não se arrependerá disso, meu velho amigo, juro a você.
- Arrependo-me de poucas coisas na minha vida - disse Aboli, impassível. - E quando encontrarmos Dorian, não terei motivo algum para isso. Agora, se você terminou a conversa, vou dormir um pouco.
Reclinou-se no banco e fechou os olhos. Com o rabo dos olhos, Tom estudou-lhe a face e pensou na filosofia simples e na força interior que tornavam Aboli um homem feliz e completo em si mesmo. Ele não tem vícios, pensou Tom, não se deixa conduzir pela necessidade de comandar ou de amealhar riqueza, possui um forte senso de lealdade e honra, é um estóico e um ser de profunda sabedoria natural, um homem em paz consigo mesmo, capaz de desfrutar todas as dádivas que lhe foram concedidas por seus estranhos deuses da floresta, e de suportar sem queixas todas as vicissitudes e males que o mundo possa arrostar sobre ele.
Examinou o crânio negro e luzidio no qual não crescia nem um único fio de cabelo, nem preto nem grisalho, para lhe trair a idade. Então olhou-o mais atentamente no rosto. Os padrões elaborados da tatuagem que o cobriam escondiam quaisquer estragos que o tempo pudesse ter deixado nele. Imagino quantos anos ele realmente tem, pensou Tom. Aboli parecia tão atemporal como um rochedo de obsidiana negra e, embora devesse ser um bocado mais velho que o pai de Tom, nenhuma de suas faculdades ou forças tinham sido empanadas pela passagem dos anos. Ele é tudo que eu tenho agora, pensou Tom, e se deu conta do respeito profundo e da imensa afeição que nutria por aquele grande homem. Ele é meu pai e meu conselheiro. Mais do que isso, é meu amigo.
De repente, sem abrir os olhos, Aboli falou, arrancando Tom de seus devaneios:
- Este não é o caminho para o rio.
- Como sabe disso? - Tom olhou pela janela e viu apenas prédios escuros que pareciam abandonados na lúgubre penumbra. As ruas estreitas estavam desertas, exceto por umas poucas figuras extraviadas, cobertas com mantos, num andar apressado, ele não sabia para onde, ou que se postavam paradas, sinistras e imóveis, nas soleiras sombrias, suas faces escondidas, de maneira que Tom não poderia dizer se eram homem ou mulher.
- Como sabe? - repetiu.
- Estamos longe do rio - Aboli disse. - Há muito que deveríamos ter chegado ao atracadouro na Torre, se fosse para onde ele estivesse nos levando.
Tom não duvidou do senso de tempo e direção de Aboli: era infalível. Debruçou-se na janela e gritou ao cocheiro na boléia:
- Para onde está nos levando, camarada?
- Para onde Sua Senhoria ordenou: ao mercado de Spitalfields.
- Não, seu idiota! - Tom gritou. - Queremos ir até a Torre de Londres.
- Devo ter ouvido errado. Tenho certeza de que Sua Senhoria ordenou...
- Uma pústula para o que Sua Senhoria disse! Leve-nos para onde eu lhe digo. Precisamos de uma balsa para nos levar rio acima.
Resmungando alto, o cocheiro fez a carruagem voltar-se, numa manobra difícil na ruela estreita. Recuou e entalou, e o lacaio desceu para puxar o cavalo líder pela brida a fim de forçá-lo a obedecer.
- Não sairemos daqui antes das seis horas da tarde - o cocheiro avisou a Tom. - Não vai encontrar nenhuma balsa nesse horário.
- Teremos de apostar nisso - Tom retrucou de volta. - Faça o que eu lhe disse, homem.
Enfezado e com gestos ríspidos, o cocheiro chicoteou os cavalos e os obrigou a um trote, e passaram, aos saltos e solavancos pelos buracos e poças, de volta pelo caminho por onde haviam vindo. Gradualmente, viram-se envolvidos na suave e trêmula névoa que assinalava a proximidade da noite. Os prédios pelos quais passavam agora estavam ocultos em meio à umidade cinza esfumaçada, e mesmo os sons das rodas da carruagem e das patas dos cavalos tornaram-se abafados pelo espesso manto branco. Ficou mais frio de repente. Tom estremeceu e aconchegou a capa em torno dos ombros.
- Sua espada está fora da bainha, Klebe? - perguntou Aboli.
Tom olhou para ele, assustado.
- Por que pergunta? - Levou a mão à safira azul no punho e segurou a bainha apertada entre os joelhos.
- Pode precisar dela - Aboli resmungou. - Sinto o cheiro de traição. O velho gordo nos mandou para longe do nosso caminho por uma boa razão.
- Foi engano do cocheiro - disse Tom, mas Aboli soltou um risinho.
- Não foi engano, Klebe. - Seus olhos estavam bem abertos agora, e ele puxou a própria espada da bainha. Ergueu a lâmina por alguns centímetros e então a colocou de volta com um suave ruído rascante. Depois de outro longo silêncio, falou de novo: - Estamos perto do rio agora. Tom abriu a boca para perguntar como ele sabia disso, mas Aboli se adiantou: - Posso sentir a umidade e o cheiro da água.
Mal ele falara, saíram de uma alameda estreita, e o cocheiro puxou as rédeas da parelha na beirada de um cais de pedra. Tom olhou para fora. A superfície do rio fumegava de névoa tão densa que ele não conseguia enxergar a outra margem. A luz decrescia bem depressa agora e com a escuridão, veio-lhe uma gelada sensação premonitória.
- Este não é o atracadouro! - Tom exclamou, zangado, ao cocheiro.
- É só seguir por aquele caminho ali - o homem apontou com o chicote. - Não está mais que a duzentos passos daqui.
- Leve-nos até lá, se é tão perto. - As suspeitas de Tom aumentaram num crescendo.
- O coche é muito largo para passar por ali, e é muito longe para fazer a volta pela estrada. Não levará mais de um minuto a pé.
Aboli tocou o braço de Tom e disse baixinho:
- Faça o que ele diz. Se for uma armadilha, é melhor nos defendermos no aberto.
Saltaram para a ruela lamacenta, e o cocheiro lhes sorriu com insolência.
- Um cavalheiro decente teria uns seis pence pelo meu trabalho.
- Não sou nenhum cavalheiro, e você não teve trabalho algum - retrucou Tom. - Da próxima vez, escute direito suas ordens e nos leve pelo caminho certo.
O cocheiro agitou seu chicote e o abateu com raiva sobre os cavalos. A carruagem arrancou num salto. Os dois homens ficaram a observar as lanternas laterais desaparecerem pela ruela, e Tom respirou fundo. O fedor do rio era forte, úmido e desagradável, pesado com o esgoto a céu aberto que era lançado diretamente em suas águas. A névoa se abria e se fechava como uma cortina, pregando peças ao olhar. Mas a trilha ao longo da margem estava diante deles. De seu lado esquerdo, havia um espaço de duas braças ou mais da beira d'água abaixo, e uma parede de tijolos crus a limitava à direita.
- Fique do lado direito - Aboli murmurou. - Ficarei na beira do rio.
Tom viu que ele virava a bainha para seu quadril direito: colocava-a assim para poder lutar com a canhota e para não enroscar a espada.
- Caminhe pelo centro.
Seguiram pela trilha ombro a ombro, suas capas puxadas até o queixo, mas prontos para abri-las num instante e deixar as armas livres. O silêncio e a escuridão crescente desabaram sobre os dois. Via-se um débil facho de luz através da neblina, adiante, apenas suficiente para iluminar a beira do cais de pedra. Ao avançarem naquela direção, Tom viu que se tratava de uma única lanterna sem postigo.
Ao chegar mais perto ainda, e pela luz da lanterna, reconheceu por entre a neblina os degraus de pedra do atracadouro do rio.
- É o lugar certo - disse, baixinho, para que apenas Aboli o escutasse. - Olhe, há uma balsa esperando, e o barqueiro.
O barqueiro era uma alta forma escura na ponta do atracadouro. O chapéu de abas largas ocultava-lhe os olhos, e a gola da capa cobria-lhe a boca. Seu bote estava atracado numa das argolas de ferro soldada no cais. Ele ergueu a lanterna para o último degrau, e a luz lançou sua longa sombra sobre as pedras da ponte, acima. Tom hesitou.
- Não gosto disso. Dá a sensação de um palco montado, com um ator à espera de proferir suas falas. - Falava em árabe para que ninguém escondido pudesse entender o que dizia. - Por que o barqueiro estaria esperando, a não ser que soubesse que chegaríamos?
- Calma, Klebe - Aboli o avisou. - Não deixe o barqueiro prender seu olhar. Ele não é o perigo. Haverá outros.
Caminharam a passos largos em direção à solitária figura, mas seus olhos esquadrinhavam as sombras que os rodeavam. De repente, outra figura destacou-se da escuridão e lhes cortou o caminho, pouco além do alcance da lâmina de uma espada. A figura ergueu o capuz da cabeça e o deixou cair por sobre os ombros, revelando uma face adornada de fartos cachos dourados que reluziram sob a tênue luminosidade.
- Boa noite e bom ânimo, adoráveis cavalheiros. - A voz de mulher era rouca e provocante, mas Tom viu as repelentes camadas de ruge em suas faces e a pintura pesada em sua boca carnuda, azul como os lábios de um cadáver sob a luz difusa. - Por um xelim, eu darei a ambos uma visão das portas do céu.
Ela os forçara a parar numa parte estreita da trilha, onde se viram bloqueados, e agora rebolava os quadris e revirava os olhos para Tom numa pavorosa paródia de luxúria.
- Para trás! - Aboli sussurrou em árabe, e Tom ouviu o suave deslizar de uma passada no calçamento. - Eu me encarrego dele, mas você fique de olho na prostituta - Aboli o avisou, antes que Tom pudesse se voltar -, pois pelo jeito dela, tem um belo par de bolas debaixo da saia.
- Seis pence pelos dois, querida - Tom ofereceu, e deu alguns passos adiante, deixando a mulher dentro do alcance de sua espada.
Naquele instante, ouviu o giro de calcanhares de Aboli, mas não tirou os olhos da vagabunda. Aboli avançou como uma pantera sobre o primeiro dos dois homens que se aproximavam, vindos da escuridão. Foi tão rápido que sua vítima nem mesmo ergueu a espada para aparar o golpe. A ponta penetrou debaixo de suas costelas e saiu em suas costas na altura dos rins. O homem soltou um berro horroroso.
Aboli usou a espada enterrada e a força de seu braço esquerdo para girá-lo como um peixe espetado e empurrá-lo contra o homem que vinha atrás. A lâmina espetou-o na barriga, e os assaltantes cambalearam Para trás, entrechocando-se, o ferido ainda a berrar, um som pavoroso e lúgubre dentro da noite. Seu corpo, porém, bloqueava o braço da espada de seu comparsa. Aboli aplicou seu próximo golpe por sobre o ombro do ferido, atingindo em cheio a face do assaltante atrás dele.
Ferido na boca, o homem deixou sua arma cair e cobriu a face com ambas as mãos. O sangue vertia aos esguichos por entre seus dedos. Ele cambaleou para trás e caiu de costas pela borda do cais. Um único som gorgolejou na noite quando ele atingiu a água escura e afundou no mesmo instante.
O outro homem caiu de joelhos, a segurar o estômago, e tombou para a frente de face no chão. Aboli voltou-se para ajudar Tom, mas estava atrasado.
A prostituta sacara uma espada de sob a capa. Ao girá-la no ar contra Tom, a peruca escorregou e caiu, revelando seus cabelos curtos e as feições rudes, masculinas. Tom estava de prontidão e saltou adiante para ir de encontro ao ataque. O assassino foi pego de surpresa: não esperava uma resposta tão rápida e não teve tempo de ficar em guarda.
Tom atacou ao alto da linha natural, o golpe mortal desfechado para a base da garganta, onde não havia osso para impedir o avanço. Sua lâmina passou pela traquéia e as grandes artérias do pescoço para seccionar a espinha. Puxou a espada e impeliu-a de novo, três centímetros abaixo. Dessa vez, o aço encontrou a junção das vértebras e trespassou o homem.
- Está aprendendo, Klebe - Aboli sussurrou quando a falsa prostituta caiu e se amontoou no chão sem um estertor, as saias levantadas sobre as pernas peludas. - Nós, porém, ainda não terminamos. Haverá outros.
Surgiram das soleiras escuras e das sombras como cães vadios ao cheiro de vísceras. Tom não se importou em contá-los, mas eram muitos.
- Costa a costa - Aboli ordenou, e mudou a espada para o lado mais forte.
A esquina estreita da trilha, que parecera ser uma armadilha, tornara-se agora sua trincheira. O rio guardava-lhes um flanco, e a parede desprovida de janelas de uma casa de três andares, o outro.
Tom adivinhou que muitos mais assaltantes lotavam as duas pontas da trilha. Mas poderiam atacar apenas um de cada vez. O próximo homem a avançar estava armado com uma aduela debruada de ferro
Nota de Rodapé: Cada uma das tábuas encurvadas que compõem o corpo de tonéis, pipas, barris etc.
Fim da Nota.
e, ao girá-la para a cabeça de Tom, tornou-se evidente no mesmo instante que era um especialista naquela estranha arma. Tom sentiu-se grato por todas as horas em que Aboli o forçara a praticar no pátio, em High Weald. Abaixou o pescoço sob a tábua longa e pesada, sem arriscar a delicada lâmina da espada de Netuno contra um golpe tão brutal, mas se preparou para o golpe inverso, que ele sabia que seria uma investida em sua cabeça. Não poderia ceder espaço para as costas largas de Aboli, que se comprimiam às suas. A distância de seis passos da tábua mantinha o atacante fora do alcance da lâmina azulada até que ele investisse com a borda de ferro. A beirada de ferro cortante veio para a cabeça de Tom como uma flecha de um arco, mas ele se desviou no último instante e deixou-a passar a milímetros de sua face. Então, com a mão esquerda, agarrou a haste curvada e deixou que o homem avançasse para dentro do alcance de sua espada. Adiantou-se, e a lâmina azul sibilou no ar e faiscou como relâmpago numa tempestade de verão.
Perfeita como uma navalha afiada, abriu a garganta do sujeito sob a linha do queixo, e o ar irrompeu pela traquéia aberta como o berro de um porquinho a quem tiraram a teta.
O homem atrás dele olhou para a visão do morto cambalear em círculos. Estava tão paralisado de pavor que foi lento em tentar impedir a próxima investida de Tom. Este mirou alto de novo, para a base da garganta, mas, no último instante, sua vítima saltou de lado e a ponta da espada trespassou-lhe o ombro. A arma que carregava caiu de sua mão e retiniu no calçamento. Ele comprimiu o ferimento com a outra mão e berrou:
- Em nome de Deus, estou morto!
Voltou-se e correu às cegas contra os homens que lhe vinham atrás. Chocaram-se e se embolaram num monte de escuras figuras a se debater, tão emaranhadas que foi difícil para Tom descobrir um alvo claro. Enfiou a espada por três vezes, em investidas duras e rápidas no meio da confusão de pernas e braços e, a cada golpe, ouvia um berro de agonia. Um deles cambaleou para trás e tropeçou na borda da trilha, os braços a se agitarem em volteios loucos enquanto sumia de vista e se chocava contra a água. Os outros correram para trás, segurando os ferimentos, as faces de um cinza nojento sob a luz difusa.
Tom ouviu sons atrás de si, alguém a gemer numa voz cavernosa e outro a soluçar de dor. Um terceiro rolava e estrebuchava pelo chão como um cavalo com uma perna quebrada. Tom não se atreveu a tirar os olhos dos homens que ainda o enfrentavam, mas sabia que Aboli ainda lhe cobria as costas.
- Aboli, está ferido? - perguntou baixinho.
No mesmo instante uma voz profunda soou perto, atrás dele, cheia de escárnio:
- São macacos, não guerreiros. Maculam minha lâmina com seu sangue.
- Não seja impertinente, por favor, velho amigo. Quantos mais há?
- Muitos, mas creio que perderam a fome com a refeição que estamos lhes servindo.
Um punhado de homens hesitava em frente a Aboli, fora da contenda. Ele percebeu seus primeiros passos de recuo e, de súbito, jogou a cabeça para trás e soltou um berro tão forte que mesmo Tom se assustou. Involuntariamente, virou a cabeça para olhar para trás.
A boca de Aboli era uma grande caverna vermelha, e as feições tatuadas contorciam-se numa máscara de ferocidade animal. O berro que soltara era o bramido de um grande gorila, um som que aturdia os ouvidos e entorpecia os sentidos. Os homens diante dele já fugiam pela escuridão enquanto os ecos do grito se espalhavam por todo o rio. O mesmo pânico apoderou-se daqueles que se defrontavam com Tom: deram meia-volta e saíram em disparada. Dois mancavam e corriam em ziguezague por causa dos ferimentos, mas se afastaram por uma rua lateral, e os sons de seus passos em fuga dissolveram-se no silêncio da névoa opressora.
- Acho que você convocou a vigilância - Tom abaixou-se e limpou a espada nas saias da "prostituta" morta. - Estarão sobre nós num minuto.
- Então, vamos dar o fora - Aboli concordou, numa voz que parecia suave e macia depois do grito terrível que a precedera.
Pularam sobre os corpos esparramados e correram em direção ao patamar dos degraus. Aboli desceu até onde a balsa estava atracada, mas Tom voltou-se e dirigiu-se ao barqueiro.
- Um guinéu de ouro pelo seu serviço! - prometeu ao correr para encontrá-lo.
Encontrava-se a menos de dez passos dele quando o barqueiro abriu as dobras de sua capa e ergueu a pistola que trazia oculta. Tom viu que possuía canos duplos dispostos lado a lado e que as bocas eram como um par de órbitas negras sem os olhos.
Ao fitar aqueles olhos vazios da morte, a passagem dos segundos pareceu se congelar. Tudo assumiu uma qualidade irreal de sonho. Embora sua visão de certa forma se aguçasse e cada sentido se exacerbasse, mesmo assim seus movimentos pareciam lentos, como se ele caminhasse por lama pegajosa.
Viu que os dois percussores da pistola estavam erguidos. De sob a aba larga do chapéu, um único olho negro luzia por sobre os canos, fixo em Tom, e um dedo indicador pálido se enganchava na alça do gatilho e o comprimia inexoravelmente.
Tom observou o percussor do cano esquerdo cair, viu a baforada e o luzir da espoleta quando a pederneira bateu contra o aço. Tentou desviar-se para o lado, mas seus membros pareciam lassos. A pistola do barqueiro estava apontada para o alto de sua cabeça e a arma disparou com um estouro ressoante. Uma nuvem de fumaça azulada encheu o ar entre os dois. No mesmo instante, Tom sentiu um forte impacto contra o corpo que o lançou para trás. Caiu pesadamente no chão e ficou de costas sobre as pedras. Estou ferido, pensou com surpresa ao se esparramar sobre o patamar do degrau. Sentiu uma pressão entorpecedora no peito. Sabia que a bala se enterrara ali. Talvez eu esteja morto, foi seu próximo pensamento, e isso o deixou zangado. Olhou com ódio para o homem que atirara nele.
Ainda tinha a espada de Netuno na mão direita quando percebeu a pistola descer, qual desígnio fatal, nivelando o olho vazio sobre ele. Se estou morto, então não posso mais mover meu braço da espada. O pensamento requeimou em seu cérebro e o forçou a concentrar cada grama de energia e determinação em seu braço direito.
Para seu espanto, o membro não perdera nada de sua força. Projetou-se com ímpeto para a frente e a espada fugiu de seus dedos, arremessada como uma lança. Viu seu vôo, a ponta avante, firme e sem oscilação, a luz da lanterna a arrancar lampejos dourados do metal enquanto rasgava o ar como uma flecha.
Em pé sobre ele, a capa do barqueiro se abrira e lhe expusera o peito. Usava apenas uma camisa de seda preta embaixo, fechada num laço na garganta. Antes que o segundo cano da pistola disparasse, a lâmina perfurou o tecido macio por sob o braço erguido com a pistola, e Tom viu a extensão total do aço desaparecer como num passe de mágica naquele torso masculino.
O barqueiro ficou rígido, travado num espasmo mortal, seu coração transpassado pela espada. Cambaleou para trás e suas longas pernas, calçadas com botas de couro negro lustroso, dobraram-se. Caiu de costas, esparramado e a estrebuchar na agonia da morte. Então, bem depressa, seus movimentos se acalmaram.
Tom ergueu-se sobre um cotovelo e viu que Aboli assomava nos degraus.
- Klebe! Está ferido?
- Não sei. Não sinto nada.
Aboli puxou-lhe a capa para o lado e, em seguida, rasgou-lhe a camisa. Tateou a rija carne por sob o tecido, e Tom exclamou:
- Por Deus, calma! Se não estou morto agora, você logo vai me matar assim.
Aboli ergueu a lanterna, que ainda queimava no degrau superior, e abriu o postigo por completo. Alumiou com o facho o peito nu de Tom. Havia sangue, muito sangue.
- Pegou embaixo, do lado direito - murmurou -, não o coração, mas talvez o pulmão. - Desviou a luz para os olhos de Tom e viu suas pupilas se contraírem. - Ótimo! Agora, tussa para mim.
Tom fez o que ele ordenou e enxugou a boca com as costas da mão.
- Sem sangue - disse ao examinar a mão sem manchas.
- Graças a todos os seus deuses e aos meus, Klebe . Aboli resmungou ao empurrar Tom de costas. - Isso vai doer - avisou. - Grite se quiser, mas preciso medir o trajeto da bala.
Achou a abertura do ferimento e, antes que Tom pudesse reunir forças, enfiou um longo dedo dentro dele. Tom arqueou-se de costas e gritou como uma virgem a ser rudemente deflorada.
- Atingiu uma costela e se desviou. - Aboli retirou o dedo. - Não entrou na cavidade do seu peito. - Deslizou a mão, escorregadia com o sangue quente, pelas laterais do peito de Tom, sob o braço, e sentiu o volume da bala perto da omoplata. - Correu entre o osso e a pele. Nós a extrairemos mais tarde.
Então, ergueu a grande cabeça tatuada quando um grito ecoou da boca da ruela escura que levava ao atracadouro. Continha uma entonação de rígida autoridade.
- Levantem-se e rendam-se, seus patifes, em nome do rei!
- A guarda! - exclamou Aboli. - Não podem nos pegar aqui, rodeados de mortos. - Ergueu Tom de pé. - Venha, eu o ajudarei a chegar ao bote.
- Solte-me! - Tom esbravejou, libertando-se com um safanão. - Perdi minha espada.
Dobrado em dois para comprimir o lado ferido, Tom cambaleou até onde o barqueiro jazia de costas. Apoiou a bota sobre o peito do homem morto e puxou a longa lâmina reluzente. Estava para se voltar e descer os degraus quando, num impulso, usou a ponta da espada para arrancar o chapéu de aba larga da cabeça do cadáver.
Arregalou os olhos diante da face morena e bonita, rodeada pela guirlanda de negros cabelos que reluziram à luz da lanterna. A boca entreaberta, relaxada, não tinha mais o esgar cruel, e os olhos fitavam, vazios e cegos, o céu noturno.
- Billy! - Tom murmurou. Olhou com horror para a face do irmão morto e, pela primeira vez, suas pernas fraquejaram. - Billy! Eu o assassinei!
- Não foi assassinato. - O enorme braço de Aboli fechou-se em torno dos ombros do rapaz. - Mas se a guarda nos pegar aqui, poderá bem ser.
Arrancou Tom do chão e carregou-o pelos degraus. Então, enfiou-o dentro da balsa e pulou a seu lado. Com um golpe de espada, cortou a amarra que os prendia à argola de ferro do atracadouro no cais de pedra, e pegou os remos. O bote saltou adiante com a força de seu impulso.
- Parem! Rendam-se! - Uma voz nervosa gritou da margem. Em meio à névoa, erguia-se o som de passos a correr e das vozes de mais homens. - Parem ou eu atiro! É a guarda do rei!
Aboli impeliu ambos os remos, gemendo com o esforço, e os bancos de nevoeiro se fecharam em torno deles. As pedras escuras do cais desapareceram entre as nuvens evolventes de névoa prateada. Então, houve a pesada detonação de um bacamarte, e um zunido como de um enxame de balas de chumbo cortou o nevoeiro. Caiu como granizo na superfície do rio em torno deles e uns poucos grãos atingiram a estrutura de madeira do bote. Tom agachou-se no fundo, a comprimir o lado ferido. Aboli deitou-se sobre os remos e forçou-os a avançar nas águas tumultuadas. Os gritos da guarda logo ressoavam abafados, atrás, e Aboli parou de remar.
- Por favor, não urine em mim. Mantenha esse píton negro dentro da calça - Tom implorou, fingindo pavor ao infame tratamento de Aboli para todos os ferimentos.
Aboli sorriu ao rasgar uma tira de pano de sua camisa.
- Você não merece tais prazeres. Que estupidez aquela de caminhar para um inimigo e lhe oferecer dinheiro! - Mudou de entonação para imitar Tom: - Um guinéu de ouro pelos seus serviços! - Soltou uma risada. - Ele certamente fez valer o seu guinéu.
Dobrou o pedaço de pano e o colocou sobre o ferimento de bala.
- Segure-o aí - disse a Tom. - Aperte firme para estancar a hemorragia! - Em seguida pegou os remos novamente. - A maré está a nosso favor. Chegaremos à Torta de Enguia antes da meia-noite.
Ficaram em silêncio por cerca de uma hora, a avançar tranqüilamente entre os bancos de neblina. Aboli achava o caminho pelas águas sombrias e ocultas em névoa como se fosse dia claro.
Tom falou, por fim:
- Ele era meu irmão, Aboli.
- Também era seu inimigo de morte.
- Jurei a meu pai, em seu leito de moribundo, que o respeitaria.
- Você o poupou uma vez. Todos os juramentos a seu pai tornaram-se nulos diante da traição de William.
- Terei de responder por sua morte no Dia do Juízo Final.
- Isso está muito distante. - Aboli falava no compasso dos remos ritmados. - Vamos esperar até então, e eu servirei de testemunha, se seu Deus ouvir o testemunho de um pagão. Como está seu ferimento?
- O sangramento parou, mas dói.
- Isso é bom. Quando uma ferida não dói, você está morto.
O silêncio se instalou novamente, até que Tom ouviu, por oito vezes, as badaladas de um relógio de igreja às margens do rio. Levantou-se do fundo do bote e gemeu de dor.
- Nicholas Childs deve ter mandado avisar Billy de onde nos encontrar - disse baixinho. - No meio da nossa discussão, ele deixou de repente a sala. Ausentou-se por um longo tempo, suficiente para mandar avisá-lo.
- Claro. Mandou-nos para fora da nossa rota, na carruagem, para dar tempo a seu irmão de nos preparar as boas-vindas com seus amigos, no atracadouro - concordou Aboli.
- Childs nos apontará como os assassinos. Os juízes enviarão a polícia para nos capturar. Childs terá muitas testemunhas contra nós. As sentinelas no atracadouro provavelmente viram os nossos rostos. Terminaremos na árvore dos enforcados se puserem as mãos em nós.
Aquilo era uma verdade tão óbvia que Aboli não fez comentários.
- Childs quer a Andorinha. Eis por que alertou Billy de onde nos encontrar. Pensei que o porco tivesse ficado satisfeito com a nossa barganha, mas ele queria tudo de mim: a carga e o navio.
- E gordo e ganancioso - Aboli concordou.
- Childs sabe onde nos encontrar. Eu lhe disse que a Andorinha estava atracada em Torta de Enguia.
- Não é sua culpa. Não poderia ver perigo nisso.
Tom remexeu-se, inquieto, tentando aliviar a dor do ferimento que latejava.
- Billy era um par da realeza, um homem importante, com amigos poderosos. Agirão como buldogues. Não nos deixarão partir - resmungou Aboli, sem nunca interromper o ritmo das remadas.
- Precisamos zarpar esta noite - disse Tom com firmeza. - Não podemos nos atrever a esperar até o dia nascer.
- Finalmente você enxerga aquilo que era claro faz tempo - Aboli aplaudiu com secura.
Tom recostou-se contra as pranchas do bote. Agora que a decisão estava tomada, conseguiu relaxar. Cochilou intermitentemente, mas a dor lhe prejudicava o sono.
Uma hora antes da meia-noite, foi despertado pela mudança no golpe dos remos, e ergueu os olhos para ver a silhueta atraente da Andorinha e o belo costado que surgiam em meio à cerração, adiante. Havia uma luz de guia em seu cesto da gávea, e a figura escura da sentinela da âncora ergueu-se por detrás da coberta de artilharia e os confrontou com rispidez:
- Quem vem lá?
- Andorinha! - Tom gritou a resposta tradicional do capitão do navio em seu retorno, e houve um imediato burburinho e movimentação a bordo da chalupa. Assim que emparelharam os cascos, muitas mãos se estenderam para içar Tom ao convés.
- Precisamos chamar um médico - disse Ned Tyler, tão logo viu o sangue e se inteirou da causa e extensão do ferimento de Tom.
- Não! A guarda está atrás de nós - Tom retrucou. - Precisamos zarpar dentro de uma hora. A maré já está baixando. Devemos descer o rio com o fluxo vazante.
- O trabalho nos conveses inferiores não está terminado - Ned o avisou.
- Sei disso - disse Tom. - Encontraremos um porto seguro na costa sul para terminá-lo. Não podemos usar Plymouth, é perto demais de casa. É o primeiro lugar onde irão nos procurar. O dr. Reynolds mora em Cowes, na ilha de Wight. Os policiais não se lembrarão de ir nos procurar por lá de imediato. Podemos mandar um recado aos homens que precisamos reunir, e terminar a equipagem antes de zarparmos para Boa Esperança.
Lutou para ficar de pé.
- Onde está Luke Jervis?
- Em terra com a esposa e a prole - Ned respondeu.
- Mande chamá-lo.
Luke veio, ainda atordoado de sono. Em poucas palavras, Tom explicou o que havia acontecido, de como perdera a carga para Childs e da necessidade desesperadora de descer o rio sem demora.
- Sei que lhe devo a parte da Andorinha e da sua carga, como prometi, mas não posso pagar agora. Eu lhe darei uma nota promissória relativa ao meu débito. Posso nunca mais poder voltar à Inglaterra, porém mandarei o dinheiro a você quando o tiver.
- Não! - Luke acordara de todo durante a rápida narrativa de Tom dos fatos. - Não confiarei em você numa questão que envolve tanto dinheiro. - Sua voz era ríspida. Tom o encarou, mudo, mas a face de Luke iluminou-se de repente num sorriso feroz. - Devo acompanhá-lo para proteger meu investimento.
- Não compreendo - disse Tom com rudeza. - Vou para a África.
- Eu sempre quis provar uma daquelas nozes tóxicas. Levará apenas um momento para reunir minha bagagem, capitão. Não zarpe do atracadouro antes que eu volte.
Tom recusou-se a descer para a cabina não terminada e, assim, Aboli colocou um colchão no convés aberto para ele, com um pano alcatroado preso ao cordame para guardá-lo da neblina. Após dez minutos, Ned aproximou-se.
- Tudo em ordem e pronto para o mar, capitão - informou.
- Onde está Luke Jervis? - perguntou Tom.
- Deve voltar a qualquer instante... - Ned começou a falar, mas se calou quando um grito rompeu a noite, o grito de uma mulher em terrível desespero.
Todos tiveram um sobressalto de alarme e pegaram as armas, logo quando duas figuras escuras corriam pelo molhe de madeira em direção à Andorinha.
- É Luke - disse Alf Wilson com alívio -, e sua mulher atrás dele. Melhor nos pormos a caminho. Ela pode nos dar trabalho.
- Vamos cair fora! - Luke berrou, quando estava na metade do molhe. - A diaba está atrás de mim!
Soltaram as amarras e correram para as adriças. A Andorinha destacou-se do molhe. Luke correu os últimos poucos metros com a esposa a ganhar terreno, aos berros de raiva e brandindo contra ele uma vara comprida. Luke saltou pelo espaço entre a doca e o navio.
- Luke Jervis, volte! Não se atreva a me abandonar aqui com a prole de bastardos que tirou da minha barriga, e sem comida ou dinheiro para alimentá-los ou dar-lhes de vestir. Não vai fugir para a África para farrear com aquelas negras prostitutas selvagens!
- Adeus, minha linda pombinha. - Jervis levantou-se, atrevido agora que seis metros de água os separavam. - Eu a verei de novo em três anos, ou quem sabe quatro, ou talvez mais.
- O que será de mim e das minhas crianças inocentes? - ela se lamentou, o ânimo alterado. - Não tem uma migalha de piedade? - Irrompeu em gemidos dolorosos.
- Venda o Corvo - Luke gritou em resposta. - Vai render o bastante para sustentá-la e à sua ninhada por vinte anos.
- Não vou esperar que volte, Luke Jervis. - A voz se tornara raivosa novamente. - Há muito homem bom que ficará feliz em tomar o seu lugar na minha cama.
- Corajosos, todos eles. - Luke acenou com o barrete que tirou da cabeça. - Merecem mais do que eu, meu pequeno gerânio.
Recolheram-se ao molhe do rio Medina, a meia milha acima de Cowes. Tom ordenou a Ned que recobrisse de tinta o nome francês da chalupa, mas não o substituíram pelo novo nome. A nau não se destacava entre as outras pequenas embarcações na ancoragem. Toda a tripulação guardava silêncio, e fora avisada para não falar com ninguém em terra a respeito de suas origens, seus negócios ou destino final.
O dr. Reynolds veio ao navio imediatamente depois de receber a mensagem de Tom. Extraiu a bala com o paciente deitado num engradado, em sua minúscula cabina ainda não terminada. Aboli segurou-lhe os braços, e Alf Wilson, as pernas. Reynolds achou a bala de chumbo macio na primeira incisão e espremeu-a para fora da carne inchada e inflamada como o caroço de uma ameixa. Houve um breve tinir do metal quando atingiu a costela de Tom.
Em seguida, enquanto Tom se retorcia e suava sobre o engradado, o médico examinou o túnel que a bala perfurara ao longo da caixa torácica.
- Aqui estão! Todos os estilhaços e pedaços de pano que carregou consigo. - Orgulhoso, o cirurgião exigiu aqueles desagradáveis troféus, segurando-os no fórceps para mostrá-los a Tom, que jazia empapado no suor agoniento da dor, com um calço de madeira entre os dentes.
- Acho que irá cicatrizar sem problemas agora. - Reynolds cheirou o pus e detritos da ferida. - Doce como uma cidra de Devon. A infecção não avançou para o seu sangue. Entretanto, deixarei uma raque de pena no ferimento para drená-lo completamente. Voltarei em três dias para removê-la.
No dia acordado, quando Reynolds removeu a raque, proclamou que a operação fora uma obra-prima na arte da cirurgia. Depois bebeu uma caneca de um quarto da sidra rascante que Tom lhe ofereceu. Sob a sutil influência do álcool, concordou, sem protesto ou delonga, em aceitar o posto de médico do navio que, com esperteza, Tom lhe ofereceu.
- Nesse ano passado, quase morri de tédio. Nem um ferimento decente de bala de mosquete, nem talho de espada para alegrar meus dias. Nada, a não ser narizes escorrendo e bundas sujas - o dr. Reynolds confidenciou, depois da segunda caneca de sidra, ao se sentarem no convés aberto ao lado do mastro principal. - Tenho pensado com freqüência naqueles dias balsâmicos na Costa da Febre.
Houve um estrondo de pesadas marteladas no tombadilho inferior e, minutos depois, o mestre-carpinteiro apontou a cabeça para fora da gaiúta.
- O trabalho está pronto, capitão. O senhor pode zarpar quando lhe der na telha.
Tom contratara um grupo de três carpinteiros locais para ajudar a completar a reforma da Andorinha. Eles tinham trabalhado em turnos o dia inteiro e, à luz das lanternas, à noite, para cumprir as exigências de Tom. Ele os pagou pelo excelente serviço que haviam executado e despediu-os com um aceno.
Nesse ínterim, enviara Alf Wilson e Ned Tyler pela balsa que cruzava o canal Solent, para localizarem os melhores dentre os homens que já tinham contratado para a viagem. Estavam dispersos pela costa, nos portos e vilas de pescadores entre Plymouth e Portsmouth, no aguardo que Tom os convocasse.
Tom e mestre Walsh foram com eles até Southampton. Mestre Walsh fizera a retirada do dinheiro de Tom e Aboli do banco Samuels, em Londres, portanto tinham numerário para fazer face às despesas. Visitaram os fornecedores e comerciantes para comprar os bens e mercadorias de que precisavam para equipar e abastecer a Andorinha para uma viagem demorada.
Da última viagem com seu pai, Tom sabia quais mercadorias tinham grande procura entre as tribos negras africanas. Encomendou e pagou por quase duas toneladas de pano de algodão Merikani, duas mil cabeças de machado, cinco toneladas de fio de cobre, dez quilos de agulhas, uma centena de mosquetes baratos com frascos de pólvora e sacos de bala, e uma tonelada de bugigangas e quinquilharias sortidas. A maior parte das mercadorias foi despachada em segurança pelo Solent e armazenada a bordo dentro da semana.
Tom deixou mestre Walsh em Southampton para supervisionar a compra da última leva de mercadorias e voltou para o navio. Tomou-se de profunda impaciência nos últimos dias enquanto a tripulação começava a chegar pelo canal de Solent, em separado ou em pequenos grupos, os sacos de viagem pendurados nos ombros. Cumprimentou a cada um pelo nome ao chegarem a bordo e pediu que colocassem suas marcas no registro de contratação. Eram os melhores dentre aqueles que haviam viajado no Seraph e outros navios do esquadrão. Tom ficou feliz e aliviado por tê-los ali. Pagou a todos o xelim de prata do dinheiro da jornada e mandou-os descer para escolherem os ganchos onde iriam pendurar suas redes.
Mestre Walsh regressou de sua expedição de compras a bordo da barcaça que alugara para transportar a última carga de bens de comércio e estoques do navio. Mercadorias carregadas, os porões da Andorinha ficaram lotados e a nau baixou o casco na linha-d'água. Mas Ned Tyler e Alf Wilson não tinham ainda retornado, e foram forçados a esperar por eles. Nenhuma hora se passou que Tom não olhasse para terra e se preocupasse com a ameaça da polícia que pairava sobre sua cabeça.
Tinha certeza de que os agentes da lei já percorriam todos os portos ao longo da costa sul. Imaginava que haviam começado na foz do Plym, e se espalhavam desde lá, em busca da chalupa. Era apenas uma questão de tempo até que chegassem à ilha de Wight e começassem a fazer perguntas que os levariam até onde a Andorinha se encontrava.
Havia outra preocupação. O outono avançava para o fim e logo o inverno desencadearia sua rede tempestuosa pelos trajetos marítimos rumo ao sul, e os bloquearia. Entretanto, aqueles dias de graça deram ao ferimento de Tom o tempo para cicatrizar. Agora, sentia-se vigoroso e forte de novo, ansioso para se pôr a caminho.
À noite, em sua diminuta cabina, era assombrado pelo assassinato de seu irmão, e remoía-se de culpa. Em sua Bíblia, de surrada capa de couro, lia e relia a história de Caim e Abel, e encontrava pouco conforto na leitura. Então, ao final de duas semanas, Alf Wilson e Ned Tyler estavam de volta. Foram surpreendidos com o calor e o entusiasmo de suas boas-vindas.
- Jeremy Compton mudou de idéia, e não conseguimos localizar Will Barnes e John Birdham - Ned explicou, como desculpa.
- Não faz mal, Ned - Tom lhe assegurou, expansivo, e os dois se debruçaram sobre o registro de contratação para designar cada homem a seu posto.
Ned era o primeiro mestre. Alf, Luke e Aboli, os outros oficiais, com uma tripulação de 27 velhos marujos treinados e testados para completar toda a tripulação.
- Há apenas uma carga a mais de mercadorias para chegar, 110 quilos de colares vermelhos e verdes de vidro veneziano - Tom disse a seus oficiais. - Com sorte, chegarão amanhã. Zarparemos com a próxima maré, depois que forem armazenados.
Acomodaram-se para o que seria sua última noite antes da partida. Quando o sol se pôs atrás de um espesso colchão de nuvens cinza, um grupo liderado por Luke Jervis apresentou-se a Tom, que se encontrava sentado a meditar na proa. Ele olhava para as luzes da vila, triste pelo doloroso exílio a que estava condenado pelo resto de sua vida, e, mesmo assim, excitado por poder finalmente começar a busca por Dorian e, além disso, voltar àquela terra misteriosa que acenava, tão distante, ao sul.
- Há alguns dos rapazes que gostariam de uma última caneca de cerveja na taverna e de beijar uma bela moça cristã mais uma vez, antes de zarparmos pela manhã. Dará permissão a eles para irem em terra por uma hora, capitão? - Luke perguntou, respeitoso.
Tom pensou por alguns momentos. Não era prudente permitir que os homens desembarcassem, pois quando cheios de bebida, mesmo os melhores marujos se tornavam briguentos e pouco confiáveis.
- Não provarão uma boa cerveja inglesa pelos próximos três anos - Luke insistiu com suavidade.
Ele tinha razão, pensou Tom, seria duro com eles se recusasse. Podia ver as janelas iluminadas da taverna a se refletirem na água. Estariam quase dentro do alcance de um grito. Haveria pouco a perder com isso.
- Irá com eles, sr. Jervis, e verá que fiquem por uma hora e não mais?
- Por que não vem conosco o senhor mesmo, capitão? Irão controlar as maneiras e sair prontos e sóbrios se estiverem debaixo de seus olhos.
- Será melhor do que ficar sentado aqui, preocupado com coisas que podem nunca acontecer, Klebe - Aboli disse, baixinho, de onde se sentava, ao lado do mastro. - Os rapazes ficarão felizes se lhes comprar uma caneca de cerveja e beber com eles pelo sucesso da nossa viagem.
Tom deixou Ned no comando da chalupa e, com ele, uns poucos que preferiram permanecer em suas redes a ficar com copos na mão. O resto tomou um escaler e remou para terra.
A sala da taverna encontrava-se lotada, ruidosa com os lagosteiros, pescadores e as tripulações de folga dos navios de guerra da Marinha Real. O ar estava espesso e azulado de fumaça de tabaco. Tom pediu canecas de cerveja para seus camaradas, e ele e Aboli se retiraram para um canto onde poderiam observar a sala e a porta. Jim Smiley e um ou dois dos outros começaram uma conversa cheia de fanfarronadas com um trio de mulheres no canto oposto e, em questão de minutos, tinham se esgueirado para longe, em casais. Embora tivesse começado a garoar, desapareceram na noite.
- Não irão longe - Aboli acalmou a apreensão de Tom. - Eu lhes disse para ficarem ao alcance de um chamado.
Tom não baixara o conteúdo de sua caneca um dedo da borda quando dois estranhos entraram pela porta da frente e pararam no limiar, limpando as gotas de chuva de seus chapéus de bicos e dos ombros das capas.
- Não gosto do jeito deles - disse Tom, inquieto, e afastou a caneca de lado. Eram ambos sujeitos enormes, robustos, com feições sérias, impassíveis. - Não vieram aqui para se divertir e beber.
- Fique aqui - disse Aboli e levantou-se. - Vou tentar descobrir alguma coisa sobre eles.
Abriu caminho com naturalidade pela multidão de beberrões e seguiu os dois homens quando estes atravessaram o salão e se aproximaram do lugar onde uma senhora e duas moças enchiam as canecas de cerveja na torneira de uma barrica de 150 litros.
- Boa noite, senhora - o mais velho dos dois estranhos cumprimentou a mulher. - Gostaria de uma palavra.
- Palavras são coisa barata. - Ela ergueu os olhos e afastou uma mecha de cabelos da face. - Deixe-me ver seu meio pence por uma caneca e pode falar quanto quiser.
O homem espalmou uma moeda sobre a mesa, e Aboli inclinou-se para mais perto para poder ouvir cada palavra que fosse dita, embora permanecesse sem se intrometer.
- Estou procurando um navio - disse o grandão.
- Então veio ao lugar certo. Há navios aos montes pelas imediações. Lá está o Spithead e a marinha sanguinária inteira. E só escolher.
- O navio que procuro é uma pequena chalupa. - O homem sorriu diante daquele tratamento despachado, mas seus olhos eram frios e duros. - Um navio bonito e pequeno de nome Hirondelle. - Sua pronúncia do nome francês era terrível. - Ou talvez Andorinha.
Aboli não esperou pela resposta da mulher e afastou-se em passadas rápidas na direção de onde a maior parte da tripulação da chalupa estava reunida num grupo, rindo e conversando em torno das canecas de cerveja.
Tom o observava pela sala enfumaçada, e Aboli meneou a cabeça num gesto inequívoco de convocação. Tom levantou-se e saiu por entre a multidão, porém não tão obviamente que pudesse atrair atenção para si, e se dirigiu a cada um de seus homens, batendo-lhes de leve nos ombros e falando baixinho. Aboli fazia o mesmo e conduziu os marujos para fora.
- O que foi? - perguntou Luke.
- Agentes da polícia no nosso encalço - Aboli lhe disse. - Onde estão John Smiley e seus rapazes?
- Lançando suas âncoras em algum belo porto cor-de-rosa, só pode ser - respondeu Luke.
- Assobie chamando-os - Tom ordenou. - Não iremos esperar pela maré.
Luke ergueu o assobio de osso de baleia que trazia pendurado numa corda em torno do pescoço e assobiou por duas vezes, num apito agudo. Quase de imediato, John Smiley saiu correndo das sombras dos fundos da taverna. Os outros vieram atrás, aos tropeções, puxando as calças e enfiando as ceroulas para dentro.
- De volta ao bote, rapazes - Tom lhes disse -, ou vão ficar para trás.
Encontravam-se a menos de cem passos do molhe onde o escaler estava atracado, mas cobriram apenas metade da distância quando um berro poderoso os alcançou:
- Thomas Courtney! Pare, em nome da lei!
Tom olhou por sobre o ombro e viu os dois grandalhões irromperem pela porta da taverna e arremeter atrás deles.
- Tenho um mandado de prisão assinado pelo presidente do Supremo Tribunal da Inglaterra! Você é acusado do assassinato de lorde Courtney.
O desafio impulsionou Tom.
- Corram, rapazes!
Chegaram ao patamar dos degraus de pedra bem adiante dos agentes da polícia, mas ali se entalaram na volta da escada estreita, e os dois homenzarrões ganharam distância rapidamente. Cada um portava uma espada tirada de sob as capas, e suas botas pesadas ressoavam sobre o calçamento.
- Pare! Em nome da lei!
- Vou retardá-los! - Aboli parou e voltou-se para enfrentá-los. - Vá para o bote!
Em vez disso, Tom voltou com ele e os dois se postaram no patamar da escada, ombro a ombro.
- Seu ferimento. Não pode empunhar uma espada ainda. Será que nunca me escuta? - Aboli resmungou.
- Apenas quando você é sensato! - Tom mudou a espada de Netuno para a mão esquerda no instante em que a dor no ferimento recém-curado espicaçou-o do lado.
- Vou matá-los, se me forçarem a isso - gritou para os homens que se aproximavam, numa voz ameaçadora que os fez parar.
Hesitaram, fora do alcance de um golpe.
- Somos agentes da lei. Toque em um de nós por sua conta e risco. - Estavam desconcertados diante do par que os confrontava, o jovem de feições bonitas com o nariz quebrado e o apavorante gigante negro.
- E eu sou um assassino com as mãos manchadas de sangue. Uma morte a mais significa pouco para mim. - Tom soltou uma risada lúgubre. - Este selvagem aqui come carne humana crua. Gosta mais das cabeças. Suga os miolos e chupa a carne dos ossos.
Aboli arrancou o chapéu de sua enorme cabeça calva e fez caretas, contorcendo a face tatuada numa máscara grotesca. Os policiais deram um passo para trás involuntariamente. Às suas costas, Tom ouviu o último de seus homens pular para o escaler, e os remos estalarem nas toleteiras.
- Suba a bordo, capitão! - Luke Jervis berrou.
- Dêem o fora! - Tom gritou para Luke, e saltou adiante para se defrontar com os dois policiais. - Em guarda! Defendam-se!
Atacou o homem à sua frente, obrigando-o a recuar, a espada faiscando a apenas centímetros de seus olhos. Espetou e rasgou-lhe o tecido do casaco com a ponta, mas sempre com cuidado para não feri-lo.
Os policiais tiveram apenas de tocar as lâminas para se dar conta de que eram inferiores em classe, e recuaram antes do ataque combinado.
Um novo berro de Luke Jervis cortou o ar. Tom olhou rapidamente por sobre o ombro: o escaler se afastara pouco do cais, com os remadores a descansar os remos.
- Hora de partir - disse a Aboli em árabe, e fez mais duas rápidas investidas na direção das faces dos policiais, com uma ferocidade tal que os enviou aos trambolhões para trás, em pânico. Em seguida ele e Aboli giraram nos calcanhares e correram para a beira do cais. Saltaram juntos e caíram na água, com as capas a se inflar às suas costas.
Assim que emergiram, o escaler rumou para apanhá-los. Tom segurou a espada de Netuno na mão direita e boiou de lado, com o outro braço esticado para encontrar o bote. Os tripulantes o içaram e a Aboli para fora da água e voltaram imediatamente, com remadas poderosas, para onde a Andorinha se encontrava ancorada. Assim que todos estavam a salvo a bordo, levou apenas minutos para que o escaler fosse recolhido e amarrado ao convés de proa, enquanto a sentinela de âncora recolhia os cabos do fundo lamacento.
Os policiais deviam ter assumido o comando de seu barco. Estavam a meio caminho desde o cais quando a Andorinha içou sua vela mestra e o vento da noite a enfunou. Assim que a chalupa deslizou pela passagem estreita em direção às águas abertas do Solent, passou perto do pequeno bote. Um dos policiais levantou-se na popa e apontou sua espada para Tom, que estava de pé, ao lado do leme da Andorinha.
- Você jamais escapará! - berrou pelo vão entre as duas embarcações. - Há sangue em suas mãos, e nós o farejaremos, não importa aonde vá, pelo mundo todo.
Tom não respondeu e olhou com firmeza para a frente. Deixaram o pequeno bote para trás, a balançar na esteira branca da Andorinha.
O vento tratou-os como um amante. Veio do norte, o arauto do inverno, frio e rápido, mas não tão forte para forçá-los a rizar a mezena. Em uma semana haviam transposto Ushant. Então o vento norte os tocou pelo golfo de Biscaia, aquele notório procriador de ventanias e mares turbulentos, e para o sul, passando pelas Canárias, e os empurrou para dentro das calmarias.
Ali, esperavam que o vento faltasse, se tornasse débil e errático, mas soprou doce e constante. Um dia, depois da medição do sol do meio-dia, Tom marcou sua posição sobre a linha do equador e a mil milhas náuticas a oeste do continente africano.
- Novo curso para sueste, sr. Tyler. A todo pano e em frente. - Assinalou-o na travessa do leme.
Ned Tyler fez uma continência.
- A todo pano e em frente está, capitão.
Tom olhou para a vela de mezena da Andorinha: estava enfunada, tesa e branca como a barriga de uma grávida de oito meses. Em seguida olhou para a popa: a esteira era lisa e reta pelas ondas encapeladas do Atlântico.
- Com esse vento, alcançaremos o Cabo em menos de sessenta dias, e trinta dias depois estaremos lançando nosso gancho no atracadouro de Zanzibar.
Deixara todas as suas dúvidas e temores ao longe, sob o horizonte norte, e agora se sentia forte e invulnerável.
O caíque de Abd Muhammad al-Malik corria grande risco. A retranca caída, que quase matara o príncipe, tinha deixado a embarcação à deriva, indefesa, proa ao vento, seus conveses cobertos pela pesada vela emaranhada, e seu cordame numa confusa desordem. Pedaços de madeira dançavam e batiam contra o mastro e o costado ao forte sopro da monção, e os cabos chicoteavam e se rompiam, ameaçando levar o navio a uma ruína total.
A primeira coisa a ser feita para colocar ordem na destruição era caçar a ponta da adriça principal. Seu cabo pesado voava no topo do mastro. Passado pelo olhai do bloco da cabeça do mastro, ele não podia ser puxado de volta a partir do convés. Somente aquilo poderia resolver o problema de içar a grande vela latina e conseguir que o navio navegasse novamente. Alguém teria de subir no mastro.
Diferentemente de uma embarcação de velas redondas, nenhuma enxárcia a prendia e não havia outra maneira fácil de chegar ao calcês. Com a vela mestra caída, o caíque rodava enlouquecido ao embate das vagas pesadas. O capitão tentava manter sua proa ao mar com o leme enquanto a nau dançava de popa, mas a todo instante uma onda mais forte a pegava pelo bordejo e quase a derrubava emborcada. O mastro era como um pêndulo gigantesco a balançar de um lado para outro, e agravava aqueles violentos movimentos. O navio corria sério perigo.
O capitão não podia abandonar o leme, mas esgoelava ordens a seus homens, reunidos o mais longe possível, a uma distância que o convés permitia, todos tentando evitar-lhe os olhos. Sabiam muito bem o que precisava ser feito, mas ninguém tinha coragem de tentar subir no mastro.
Dorian observava todo aquele pandemônio com excitada fascinação. Jamais acontecera algo assim tão divertido no convés do Seraph, nem nunca presenciara tamanha gritaria e gesticulação.
- Ahmed, filho de uma grande porca! - Fuad, o capitão, escolheu outra vítima e apontou com o dedo trêmulo o topo do mastro. - Vou enrolar seu cadáver na pele de um porco antes de jogá-lo pela amurada, se não me obedecer!
O homem virou a cabeça e olhou para o mar como se fosse irremediavelmente surdo.
Dorian avaliou a escalada com um olhar experiente e ficou a imaginar do que todos tinham tanto medo. Ele dançara a dança dos marujos ingleses com Tom na verga principal do Seraph, uma das mãos no quadril, a outra no topo da cabeça, enquanto o navio navegava com as ondas do cabo em sua popa e o sudeste a soprar com a violência de um vendaval. Aquele mastro tinha apenas um terço da altura do mastro mestre do Seraph.
Podia quase ouvir a voz de Tom a caçoar dele: Vamos, Dorry. Mostre o que pode fazer. Quero ver se tem "peito".
Ninguém olhava para ele - todos o tinham esquecido diante da exigência desesperada do momento. Mesmo o príncipe abandonara o seu costumeiro aplomb e subia agora num dos estais do convés de proa, a olhar para o topo oscilante do mastro.
Dorian arrancou sua longa túnica e jogou-a sobre o convés. Os panos se enroscariam em suas pernas. Nu como um recém-nascido, correu para o pé do mastro e escalou-o como um macaco perseguido por um leopardo. O príncipe recobrou a pose e gritou:
- Segurem aquele menino! Ele vai se matar!
Dorian estava fora do alcance das mãos frenéticas que tentavam obedecer ao comando de al-Malik. Sua agilidade e tino para alturas haviam se desenvolvido e refinado nos cordames do Seraph e, por aqueles padrões, era uma escalada fácil. Usou da agitação do costado e do balanceio do mastro para ganhar impulso para cima, joelhos e mãos a se alternarem na escalada. Chegou ao topo do mastro e olhou para baixo. Viu as faces terrificadas voltadas para o alto e não conseguiu resistir à tentação de se exibir um pouco mais. Trançou ambas as pernas em torno do estai principal e soltou uma das mãos. Colocou o polegar na ponta do nariz e agitou os outros dedos para o convés, num gesto de zombaria. Embora a tripulação jamais tivesse visto aquele gesto antes, o significado era inequívoco. O corpo nu de Dorian reluzia, branco como uma concha de pérola ao sol, e seu traseiro descoberto era redondo e rosado. Balançou-o para eles a fim de enfatizar o insulto.
Um murmúrio de medo e horror subiu dos espectadores abaixo quando ele se aventurou mais para cima. Sabiam que a ira do príncipe seria tenebrosa se acontecesse algo de ruim ao garoto, e que recairia diretamente sobre suas cabeças. Gemeram de novo quando Dorian estendeu a mão e agarrou a adriça oscilante.
- Segurar a ponta! - ele gritou para o convés, usando o comando em inglês, mas sua ordem foi clara para o capitão que, ao adivinhar seu sentido, transmitiu-a aos homens em árabe. Três marujos correram para agarrar a ponta do pesado cabo.
Assim que eles o tinham firme nas mãos, para evitar sua queda, Dorian deu duas voltas na outra ponta desfiada e solta em torno de sua cintura e depois a correu por trás entre suas pernas.
- Aparem minha queda! - gritou de novo. Esperou pelo momento exato do balanço do mastro e então soltou as mãos e deu um impulso com os pés para se soltar. A adriça guinchou pelo bloco quando ele saltou no ar.
Os marujos que seguravam a ponta pendente deixaram o cabo correr pelas palmas calejadas, freando a queda enquanto Dorian despencava para baixo. O menino era precipitado para o lado, sobre a água, a cada sacudida do embalo do caíque, e urrava de excitação a cada balançada no ar.
Os homens na outra ponta da adriça avaliaram sua descida com a habilidade de marujos experimentados e deixaram que ele caísse as últimas poucas braças do cabo tão devagar que seus pés descalços não arrancaram nenhum som ao tocarem o convés. Houve um tumulto quando se apressaram a verificar que ele se encontrava em segurança e para prender a ponta da adriça que estava enrolada em sua cintura.
Assim que um novo cabo foi corrido pelo bloco para a ponta do mastro e a retranca içada mais uma vez, o caíque, transformado pela pressão da vela latina de um indefeso casco à deriva num ser do mar, chegou ao vento e saltou à frente, ágil e rápido.
O príncipe pousou a mão no ombro de Dorian e olhou ao redor para as faces de sua comitiva.
- Pela presteza de pensamento e ação, esta criança salvou minha vida e a do navio - anunciou. - Algum de vocês ainda duvida que este é o órfão coroado de vermelho da profecia? - Colocou a mão sobre os cachos reluzentes de Dorian e encarou a cada um de seus súditos dentro dos olhos. Ninguém sustentou seu olhar.
Foi o mulá quem primeiro falou:
- É o milagre de são Taimtaim. Proclamo a Palavra Sagrada. Esta é a criança da profecia!
Com sua mão ainda sobre a cabeça de Dorian, o príncipe declarou com voz clara:
- Que todos os homens saibam que tomo este menino como meu filho adotivo. Doravante, será conhecido como al-Amhara ibn al-Malik, o Vermelho, filho de al-Malik.
O mulá esboçou um sorriso matreiro diante da astúcia de seu mestre. Ao tornar a criança seu próprio filho, ele validara plenamente a profecia do santo. Porém outras condições tinham de ser preenchidas, antes que o príncipe pudesse colher as recompensas que o velho santo prometera. Sem dúvida, na hora devida, aquelas também poderiam ser satisfeitas.
- É a vontade de Deus! - gritou o mulá.
Os outros entoaram em coro:
- Deus é grande!
Pelas semanas que passaram no mar e independentemente do reconhecimento do príncipe, Dorian conquistara um lugar na afeição de cada membro da tripulação. Era evidente para todos eles que o garoto era o pássaro do bom augúrio, e cada um secretamente esperava que algo da promessa da profecia pudesse roçar sobre si. Quando Dorian passeava pelo convés, mesmo o mais endurecido e safado dos marujos sorria e brincava com ele, ou tocava sua cabeça ruiva em busca de sorte.
O cozinheiro do navio preparava doces especiais e delícias açucaradas para ele, enquanto o resto da tripulação disputava-lhe a atenção e lhe oferecia pequenos presentes. Um até mesmo pegou o amuleto que usava num cordão em torno do pescoço e o colocou no de Dorian.
- Que isso possa protegê-lo - disse, e fez o sinal contra o olho do diabo.
- Macaquinho com coração de leão - Fuad, o capitão, apelidou-o afetuosamente e, depois das preces da noite, chamava Dorian para sentar-se com ele ao leme. Apontava as estrelas que orientavam a navegação quando se erguiam do mar, citava os nomes das constelações e contava a Dorian as lendas por trás de cada uma.
Aqueles árabes eram homens dos desertos e do oceano. Viviam suas existências inteiras sob o pálio do céu, e as estrelas estavam sempre sobre suas cabeças. Eles as estudavam fazia séculos e, agora, o capitão compartilhava aquele conhecimento com Dorian. Era um precioso presente que oferecia ao menino.
Dorian escutava, fascinado, a face voltada para cima, banhada pela luz da infinita hoste estrelada. Então, por sua vez, ensinava ao capitão os nomes ingleses dos corpos celestes que aprendera de Aboli e Daniel Grande.
Os outros membros da tripulação reuniam-se em torno deles e ouviam as fábulas das Sete Irmãs, de Órion, o caçador, e do Escorpião, enquanto Dorian fazia as narrativas em sua doce voz. Todos amavam as estrelas e adoravam uma boa história.
Agora que ele tinha livre trânsito pelo navio, havia tanto para ocupá-lo que restava a Dorian pouco tempo para se sentir sozinho ou triste.
Às vezes passava a metade da manhã debruçado por sobre o costado do caíque, a observar um cardume de golfinhos de narizes compridos que brincavam desinibidos na crista das ondas, batendo as caudas, e com os olhos espertos a fitá-lo enquanto iam e vinham sob a proa. Certo dia, uma daquelas criaturas saltou de repente da água e pairou no alto, perto de onde Dorian se encontrava, e lhe sorriu com sua boca larga. Dorian acenou e irrompeu numa deliciosa gargalhada. Os marujos mais próximos interromperam suas tarefas e sorriram com simpatia.
Sempre que o menino se envolvia em longas conversas com eles, porém, Fuad o chamava com voz possessiva:
- Venha cá, macaquinho com coração de leão, mantenha o curso do navio para mim.
Dorian tomava o leme, e seus olhos luziam ao manter o caíque veloz ao vento, ao sentir a embarcação tremer sob suas mãos como um cavalo puro-sangue reunindo forças para um salto.
Algumas vezes o príncipe, sentado de pernas cruzadas sobre o tapete de seda em sua tenda, interrompia uma discussão com seus súditos e ficava a observar o garoto com um ligeiro sorriso nos lábios.
Como Dorian era ainda um menino e não sentira a faca da circuncisão, Tahi não podia desvelar-se em sua presença. Ela era considerada a mais inferior das criaturas, uma mulher divorciada. Seu ex-marido era um dos cavalariços do príncipe. Incapaz de lhe dar um filho, Tahi fora descartada. Apenas a bondade e a compaixão de al-Malik a salvaram de pedir esmolas pelas ruas de Lamu.
Tahi era grande, gorda e roliça, e sua pele, bem tintada e bronzeada. Adorava comida e tinha uma risada gostosa e um espírito sereno. Sua lealdade e devoção ao príncipe eram o centro de sua existência. E então, de repente, Dorian se tornara o filho de seu mestre.
Como todos os outros a bordo, Tahi estava enfeitiçada pelos belos cabelos ruivos, pelos estranhos olhos verde-claros e pela pele de um branco leitoso do menino. Quando ele vertia a plena força de seu sorriso luminoso e derramava aquele encanto envolvente sobre a mulher, ela não conseguia resistir. Tahi não tinha filhos, portanto Dorian despertava-lhe todos os instintos maternais: em pouco tempo, entregou seu coração a ele.
Quando o príncipe a indicou como a babá oficial de Dorian, ela chorou de gratidão. Não demorou até que Dorian descobrisse que aquelas feições calmas, quase bovinas, escondiam uma viva inteligência e um aguçado senso político. Tahi compreendia todas as correntes de poder e influência na corte do príncipe e navegava por elas com rara habilidade. Explicou a ele quem eram os homens poderosos e importantes na comitiva do príncipe, suas forças e suas falhas, suas fraquezas, e como tratar cada um deles. Treinou-o na etiqueta da Corte e em como se comportar na presença do príncipe e de seus seguidores.
Para Dorian, as noites eram as únicas horas ruins. No escuro, lembranças de Tom e de seu pai assomavam sobre ele e o dominavam. Uma noite, Tahi acordou ao ouvir soluços contidos de onde Dorian jazia, em seu estreito catre no fundo da pequena cabina que dividiam. Uma excluída, ela própria, compreendeu instintivamente a saudade e a solidão de um menino arrancado de sua família e de todas as coisas que lhe eram familiares e queridas, lançado entre estranhos de raça, religião e costumes diferentes.
Levantou-se sem ruído e foi até ele. Deitou-se a seu lado no catre e o envolveu num abraço caloroso, macio, maternal. A princípio, Dorian tentou resistir, mas então se permitiu relaxar e quedou-se imóvel naqueles braços amorosos. Tahi se pôs a murmurar suaves palavras de carinho com os lábios encostados na cabeça do menino, todas as coisas de amor que guardara dentro de si para o filho que seu ventre infértil lhe negara. Depois de um momento, a rigidez abandonou o corpo de Dorian e ele se aconchegou a ela, apoiando a cabeça entre seus fartos seios roliços, e finalmente adormeceu. Na noite seguinte, seguiu para a cama de Tahi quase com naturalidade, e ela abriu os braços gordos e o acolheu amorosamente.
- Meu bebê - murmurou, aturdida com a profundidade da própria emoção. - Lindo bebê do meu coração.
Dorian não podia se recordar do conforto dos braços de sua própria mãe, mas sentia uma profunda necessidade disso. Em breve, Tahi veio preencher em grande parte aquele vazio.
Assim que o caíque aproximou-se mais de seu porto natal, o príncipe Abd Muhammad al-Malik sentou-se sob seu teto de panos, não mais tão envolvido em assuntos de Estado e de negócios que lhe faltasse tempo para ponderar sobre a profecia do santo, e ficou a observar o garoto com uma expressão velada de aprovação.
- Al-Allama - usou o nome de família de seu mulá -, que revelações recebeu com respeito à criança?
O mulá baixou suas pálpebras, ocultando os pensamentos da percepção penetrante de seu mestre.
- É cativante, e atrai as pessoas para ele como o mel chama as abelhas.
- Isso é evidente. - A voz do príncipe alterou-se ligeiramente. - Mas não é o que lhe perguntei.
- Parece que ele tem aqueles atributos descritos pelo santo Taimtaim - al-Allama prosseguiu, cauteloso -, mas levará muitos anos antes que possamos ter absoluta certeza.
- Enquanto isso, devemos guardá-lo bem e nutrir aquelas características que são necessárias para realizar a profecia - sugeriu al-Malik.
- Faremos tudo que estiver ao nosso alcance, grande príncipe.
- Será seu dever conduzi-lo pelas trilhas da probidade e revelar-lhe a sabedoria do Profeta para que, com o tempo, ele se converta gentilmente à fé e se submeta ao islã.
- Ele ainda é uma criança. Não podemos esperar uma cabeça de adulto em ombros tão jovens.
- Cada jornada começa com o primeiro passo - o príncipe o contradisse. - Ele já fala a língua sagrada da Fé melhor que alguns de meus outros filhos, e mostra algum conhecimento dos assuntos religiosos. Foi bem tutorado. Será seu dever sagrado fomentar esse conhecimento e ampliá-lo até que, com o tempo, ele se submeta ao islã. Apenas dessa forma poderemos ter a profecia realizada em toda a sua inteireza.
- Como ordenar meu senhor. - Al-Allama fez um sinal de aquiescência, tocando os lábios e o coração. - Darei o primeiro passo da longa jornada no dia de hoje mesmo - jurou ao príncipe, que meneou a cabeça com satisfação.
- Se isso aprouver a Alá!
Depois das preces do meio-dia, e quando o príncipe já se retirara à sua cabina na popa para estar com suas concubinas, al-Allama procurou Dorian, que estava envolvido em conversas com Fuad. O capitão o instruía acerca da navegação pelas ilhas e lhe apontava as aves marinhas e os grupamentos de sargaços flutuantes que indicavam o rumo das correntes. Chamou a estas de rios do mar, e explicava a Dorian como as ilhas e o formato das costas afetavam aqueles cursos poderosos, dobrando-os, torcendo-os e alterando sutilmente suas sombras de azul e verde.
Sob a orientação de Ned Tyler, Dorian começara a apreciar as várias facetas da arte da navegação. Algumas de suas lembranças mais agradáveis eram de trabalhar com a medição do sol com Tom, ou de tomar um ângulo de direção com relação a um acidente geográfico e, em seguida, marcar a carta náutica e escrever os resultados no registro de bordo do navio, entre discussões e risadas com seu irmão mais velho.
Agora, Fuad lhe repassava o conhecimento sobre aquelas regiões do oceano, os nomes e hábitos das aves e das criaturas marinhas, e do sargaço à deriva. Havia pequenas aves com plumagem nevada que mergulhavam e flutuavam sobre a esteira do navio.
- Não as encontrará mais distantes que dez léguas de terra. Observe a direção de seu vôo, e elas o conduzirão - Fuad lhe disse.
Num outro momento, ele o levou até a amurada do navio e apontou ao largo:
- Olhe, macaquinho! Um dos monstros do mar, porém gentil como um cordeirinho não desmamado.
Passavam tão próximos que Dorian saltou para a gaiúta da artilharia e olhou abaixo, para o dorso malhado da criatura. Pôde ver que não era uma das baleias que haviam encontrado às centenas nas regiões meridionais do Atlântico. Parecia uma espécie de tubarão, mas era quase tão grande como o caíque. Diferentemente do tubarão-tigre ou do tubarão-martelo, que ele conhecia, aquele animal se movia preguiçosamente e sem medo pelas águas claras. Dorian podia ver o cardume de pequenos peixes-pilotos que nadavam à frente de sua boca cavernosa.
- Eles não têm medo de ser comidos? - indagou.
- O monstro come apenas as menores criaturas de todas. Coisas fluidas e rastejantes que flutuam no mar, menores que grãos de arroz. - Fuad se divertia com o entusiasmo de seu pupilo. - Quando vir um desses monstros gentis, isso significa que a monção está pronta para mudar do kaskazi para o kusi, do noroeste para o sudeste.
Al-Allama os interrompeu e levou Dorian para longe, onde poderiam conversar com privacidade. Dorian pareceu desapontado e o seguiu com alguma relutância.
- Uma vez você disse isso em resposta à minha pergunta - al-Allama o relembrou. - "Sou nada mais que um homem como vós outros, mas a inspiração me veio de que vosso Deus é Deus uno. Quem quer de vós que esperais encontrar vosso Senhor, deveis vos conduzir com probidade."
- Sim, homem santo. - Dorian não estava particularmente interessado naquele novo assunto. Teria preferido continuar com sua animada conversa com Fuad.
Entretanto, Tahi o avisara de quanto o mulá era poderoso e de como poderia proteger ou punir um garoto com seu poder.
Ele é o servo de Deus euma voz do Profeta. Trate-o com grande respeito. Por todo o nosso bem, Tahi dissera, e, assim, Dorian mostrou-se atencioso.
- Quem lhe ensinou essas coisas? - al-Allama perguntou.
- Tive um professor - Dorian pareceu de súbito à beira das lágrimas -, quando estava com meu pai. Seu nome era Alf, e ele me ensinou o árabe.
- Então foi ele que o fez estudar o Alcorão, o Livro Sagrado do Profeta?
- Apenas alguns versos para escrever e discutir. Aquele versículo da sura 18 foi um deles.
- Acredita em Deus, al-Amhara? - o mulá insistiu.
- Sim, é claro - Dorian respondeu depressa. - Creio em Deus eterno, em seu Filho eterno e no Espírito Santo eterno. - A litania da Ordem que ouvira Tom recitar de cor veio prontamente à sua língua.
Al-Allama tentou não deixar o susto e a repugnância se espelharem em sua face diante de tamanha blasfêmia.
- Há somente um Deus - disse solenemente -, e Maomé é seu derradeiro profeta.
Dorian não tinha interesse naquela assertiva, mas o divertia argumentar, sobretudo com alguém com autoridade.
- Como sabe disso? - desafiou. - Como sabe que eu estou enganado, e o senhor, certo?
Al-Allama reagiu ao desafio, e Dorian inclinou-se, deixando que toda aquela retórica religiosa se derramasse sobre ele, enquanto devaneava com outras coisas.
Dorian gostaria que houvesse um lugar para ele no cesto da gávea, como tivera no Seraph, um lugar bem alto, acima do mar, onde pudesse ficar sozinho. Contudo, o caíque de vela latina não dispunha dessa possibilidade, e ele teve de permanecer no convés, com o resto da tripulação, a observar quando o continente africano surgiu no horizonte, uma massa de terra escura e misteriosa. Torceu o nariz com o cheiro animal de seu odor no ar. Era o cheiro de poeira, de especiarias e dos mangues. O aroma estranho provocava um leve choque nos sentidos, porém exercia uma atração poderosa e excitante, depois dos ares salgados do oceano que lhe dilatavam as narinas e lhe aguçavam o sentido do olfato.
De pé ao lado de Fuad, ao leme, enquanto rumavam para terra, Dorian teve sua primeira visão da ilha de Lamu. Fuad lhe apontou suas características principais e contou uma breve história daquela jóia nos territórios do Califado de Omã.
- Meu povo pratica o comércio aqui desde o tempo do Profeta, e também antes, quando éramos infiéis e estranhos à Grande Verdade - explicou, orgulhoso. - Este era um porto importante na época em que Zanzibar ainda não passava de um pântano infestado de crocodilos.
Laboriosamente, o caíque percorreu o canal entre a ilha e o continente, e Fuad mostrou as colinas de um verde-escuro acima das praias brancas.
- O príncipe possui um palácio no continente, onde vive na estação das secas. Mas na época das chuvas, ele se muda para a ilha. - Apontou os edifícios brancos que, a distância, pareciam ondas a quebrar num recife de coral.
- Lamu é mais rica que Zanzibar. Seus edifícios são mais belos e magnificentes. O sultão de Zanzibar é um vassalo de nosso príncipe e lhe paga tributo.
Havia uma multidão de embarcações na ancoragem, e dezenas de outras naus chegavam ou partiam. Algumas eram barcos de pesca, e outros, maiores, traineiras pesadamente carregadas, ou mais leves, rápidos navios negreiros, prova da prosperidade e importância daquele porto lucrativo.
Os navios nas paragens reconheceram o caíque do príncipe pelos pendões verdes em seu topo do mastro e pela impressionante figura de Abd Muhammad al-Malik, sentado sob a tenda no convés de proa e rodeado de sua Corte. Baixaram suas bandeiras em sinal de respeito e gritaram suas leais saudações e bênçãos.
- Possa o amor de Alá e o sorriso de seu Profeta acompanharem-no por todos os seus dias.
Os caíques sob âncora na baía dispararam seus canhões e fizeram soar os tambores de guerra. O estrondo do canhoneiro repercutiu até a praia e, quando o príncipe e sua comitiva entraram no porto, viram uma imensa multidão reunida pelas areias e no cais para saudá-lo.
Em sua minúscula cabina, Tahi vestiu Dorian com uma túnica branca imaculada e lhe cobriu a cabeça com um manto. Calçou-o com sandálias de couro e, em seguida, tomou-lhe a mão e o conduziu ao convés.
Fuad levou o caíque à praia. A maré refluía rapidamente, pois ali o alcance do fluxo da preamar era de seis metros. O navio tocou o fundo e adernou quando a maré escorreu de sob o casco. Um grupo de escravos vadeou até a nau encalhada para carregar o príncipe e outros notáveis até o seco. Um enorme negro vestido apenas com uma tanga tomou o príncipe nas costas, e a multidão à espera caiu de joelhos e gritou suas saudações. Uma banda de música se pôs a tocar uma melodia de tons agudos e uivantes que doeu aos ouvidos de Dorian. As flautas e pífaros soluçavam e os tambores batiam e ressoavam num ritmo estranho.
Tahi teria carregado Dorian até a praia, porém ele evitou-lhe o abraço e jogou-se alegremente nas ondas, com água até as axilas. Houve uma breve cerimônia de boas-vindas ao príncipe e, em seguida, al-Malik montou um corcel negro. Do lombo do animal, olhou ao redor rapidamente e divisou a figura de Tahi. Ela se encontrava em meio à multidão e segurava a mão de Dorian. Adiantou-se depressa com o menino, e o príncipe dirigiu-se a ela de forma imperiosa:
- Leve al-Amhara para o harém. Kush providenciará acomodações para ambos.
Dorian estava por demais interessado no cavalo do príncipe para dar atenção às palavras que decidiam seu destino. Adorava cavalos quase tanto como os barcos e o mar. Tom o ensinara a cavalgar assim que Dorian começara a andar. A montaria de al-Malik era um animal magnífico, muito diferente daqueles que conhecera em High Weald. Era menor e mais gracioso, com grandes olhos límpidos e narinas trêmulas, um lombo comprido e forte e delicadas pernas. Dorian estendeu a mão e acariciou-lhe o focinho. O garanhão cheirou-lhe os dedos e, em seguida, sacudiu a cabeça.
- Ele é lindo! - Dorian exclamou, com um sorriso largo.
O príncipe olhou para ele com um leve sorriso que suavizava suas marcantes e belas feições de falcão. Um menino que era um marinheiro nato e que também amava cavalos tinha toda a sua aprovação.
- Tomem conta dele muito bem. Vejam que não tente fugir - ordenou a Tahi e ao eunuco Kush, que se aproximara para atender a um sinal do príncipe.
Al-Malik ergueu a cabeça do cavalo com um toque nas rédeas, e cavalgou pela rua do porto, atapetada de frondes de palmeiras em sua honra. Os músicos e a multidão se fecharam atrás dele e, a cantar e a bater palmas, seguiram-no em procissão, rumo às imponentes muralhas do forte.
Kush reuniu as mulheres do contingente doméstico do príncipe quando elas desembarcaram do caíque. Havia duas das mais jovens concubinas, cobertas de véus, mas esguias e graciosas debaixo das camadas de tecido escuro. Suas mãos e pés eram belamente formados, tingidos com hena e decorados com anéis preciosos de safira e esmeralda nos dedos. Riam demais, o que aborrecia Dorian, e suas criadas eram ainda piores, barulhentas como um bando de estorninhos. Ficou feliz ao vê- las arrebanhadas por Kush para dentro do primeiro carro de bois.
Tahi conduziu Dorian para o segundo carro. Os bois eram de um branco puro, de chifres imensos e toutiços enormes no lombo, como os desenhos de camelos que Dorian vira nos livros de viagem na biblioteca, em High Weald. Quis correr ao lado do carro, mas Kush o impediu com uma mão pesada em seu ombro. Havia anéis de ouro em cada um dos dedos do eunuco, e as jóias incrustadas captavam o brilhante sol tropical e faiscavam.
- Sente-se a meu lado, pequenino - disse numa voz aguda, feminina, e quando Dorian se fez de rogado, Tahi o beliscou no braço com tanta força que doeu.
Ele interpretou o gesto como uma advertência de que Kush era um sujeito influente e devia ser obedecido.
A procissão de carros de bois deixou a praia, passou pelos limites do porto e rumou para o campo. Seguiu aos sacolejos pela estrada estreita e poeirenta para o interior da ilha verdejante. Atravessaram bosques de farfalhantes coqueiros e florestas de figueiras selvagens. Bandos de papagaios vivamente coloridos e ariscos pombos esverdeados amontoavam-se nos galhos, a devorar com avidez os frutos maduros. Dorian nunca vira antes pássaros como aqueles. Acompanhou-lhes o vôo resplandecente com exclamações maravilhadas.
Kush examinou-o detidamente com seus brilhantes olhos negros quase enterrados em gomos de gordura.
- Quem lhe ensinou a falar a língua do Profeta? - perguntou de repente; e, com um suspiro, Dorian lhe deu a explicação que já se tornara surrada e gasta pela repetição.
- É do islã? Ou é verdade que é um infiel?
- Sou cristão! - Dorian exclamou com orgulho.
Kush torceu a face gorda como se tivesse provado um caqui verde.
- Então, como o seu cabelo é da mesma cor que o do Profeta? - indagou. - Ou isso é mentira? De que cor é o seu cabelo? Por que o esconde?
Dorian arrumou os drapejados de seu alfalema. Irritava-o aquela constante curiosidade sobre o mesmo assunto. Havia tanta coisa interessante ao redor. Gostaria que o gordo o deixasse em paz para poder desfrutar tudo aquilo.
- Mostre-me o seu cabelo - Kush insistiu e levou a mão ao alfalema.
Dorian ia fazer um gesto para afastá-lo, mas Tahi lhe murmurou algo no ouvido e ele deixou que Kush lhe retirasse o pano. O eunuco olhou com espanto para os cachos fartos de Dorian, que caíam por seus ombros e reluziram ao sol como fogo em capim seco. Os outros passageiros nos fundos da carroça soltaram exclamações de admiração e chamaram por Alá como testemunha daquela maravilha, e mesmo os carroceiros que tocavam os bois voltaram a cabeça e correram para o lado das rodas para admirá-lo. Dorian cobriu a cabeça depressa.
Depois de uma milha, a vereda se afastou da floresta e avançou para o alto, na direção das muralhas alvas do harém. Era construído de blocos de coral e pintado com caiação queimada de um branco estarrecedor. Não havia janelas, e a única abertura era um portão, esculpido em teca e decorado com complicados desenhos de vinhas e folhagem, obedecendo às restrições islâmicas que proíbem representações de formas humanas ou de outras criaturas vivas.
Os portões se abriram quando a pequena caravana de carros se aproximou, e seguiu para o mundo fechado e proibido do harém. Aquele era o lar das mulheres e de sua prole, e dos eunucos que as guardavam. A não ser o príncipe, nenhum homem adulto poderia entrar ali, com o risco da própria vida.
As mulheres e crianças estavam reunidas logo depois dos portões para saudar a procissão de carros de bois. Muitas não saíam daqueles recintos enclausurados desde a infância. Qualquer distração as deliciava. Tagarelavam, soltavam gritinhos excitados e rodearam os carros Para examinar os ocupantes e descobrir alguma face estranha entre eles.
- Lá está ele!
- E verdade! É um europeu!
- Tem cabelo vermelho de verdade? Mas isso não pode ser.
Ali, na reclusão do harém, as mulheres podiam andar desveladas. O príncipe tinha o direito de escolher qualquer menina em seu reino, e a maioria era jovem e de boa aparência. A coloração de suas peles variava do negro púrpura e passava por todos os tons de marrom, dourado e âmbar até o suave amarelo amanteigado. Suas crianças dançavam em torno delas, empolgadas pela excitação. Os bebês nos braços das babás berravam com o tumulto.
Todas se amontoaram para olhar Dorian mais de perto quando ele saltou do carro de bois e, em seguida, acompanhou Kush pelo labirinto de pátios e jardins. Estes eram ricamente decorados com pisos de mosaico e arcadas finamente esculpidas. Conchas do mar se incrustavam na argamassa para formar intrincados padrões. Havia lagos cheios de juncos e lótus. Peixes reluzentes como pedras preciosas nadavam na água; libélulas e colibris de cores vivas batiam as asas sobre a superfície.
Algumas das crianças mais velhas começaram a dançar em torno de Dorian, cantando, e puseram-se a provocá-lo:
- Branquelo infiel!
- Demônio de olhos verdes!
Kush fingiu atacá-los com a longa vara que carregava, mas estava sorrindo e não fez nenhuma tentativa de afastá-los. Passaram rapidamente da esplêndida e bela área do harém para o interior de uma parte bem menos bonita, nos fundos do complexo principal dos edifícios. Era evidente que aquele era o setor menos favorecido. Kush levou-os até uma porta pequena, porém reforçada, e ordenou que entrassem. Acharam-se numa enorme sala de estar, escura e não muito limpa. As paredes tinham manchas de fuligem, o chão estava coberto de poeira e de excrementos de lagartixas e ratos.
Kush fechou as folhas da porta atrás deles e girou a pesada chave na fechadura do lado de fora. Tahi gritou pela minúscula grade na porta:
- Por que está nos trancando aqui? Não somos prisioneiros. Não somos criminosos.
- O poderoso príncipe Abd Muhammad al-Malik ordenou que a criança fosse impedida de escapar.
- Ele não pode escapar. Não há lugar algum para onde possa fugir.
Kush ignorou-lhe os protestos e se afastou, levando a maioria dos outros consigo. Por um momento, algumas das crianças troçaram deles pela grade, mas logo se cansaram e foram embora.
Quando tudo ficou em silêncio, Dorian e Tahi começaram a explorar suas acomodações. Além da sala de estar, havia quartos de dormir e uma pequena cozinha com um fogão aberto. Perto dela, ficava a sala de banho com o chão de tijolos inclinado para uma calha que corria para fora. Além, havia a latrina, uma barrica com o assento coberto.
A mobília era esparsa: catres para dormir feitos de junco trançado e tapetes de lã tecida. Havia caçarolas e jarras de água na cozinha e, naturalmente, comeriam com os dedos, à moda árabe. Também havia uma grande cisterna de cerâmica com água da chuva que fornecia água fresca.
Dorian ergueu os olhos para a abertura no teto da cozinha, que permitia que a fumaça escapasse.
- Eu poderia subir facilmente até lá - gabou-se.
- Se fizer isso, Kush vai lhe bater com o cajado - Tahi lhe disse -, portanto nem mesmo pense nisso. Venha e me ajude a limpar esta imundície.
Enquanto trabalhavam juntos, varrendo os quartos vazios com vassouras de junco e depois polindo o chão de barro com metades de cascas de coco, Tahi explicou a Dorian as regras do harém.
Como criada e ama-seca real desde que o marido se divorciara dela, Tahi vivia nos confins do harém, e era uma especialista nos assuntos de sua restrita sociedade. Durante os dias que se seguiram, compartilhou esse conhecimento com Dorian.
O príncipe Abd Muhammad al-Malik tinha trinta e poucos anos. Seu irmão mais velho, o califa, por razões da própria sucessão, impedira-o de se casar até quase os vinte anos. Em conseqüência, seu filho mais velho tinha apenas alguns anos a mais que Dorian. Seu nome era Zayn al-Din e, como Dorian, não chegara ainda à puberdade; ainda vivia com sua mãe no harém.
- Lembre-se de seu nome - Tahi o instruiu. - Como filho mais velho, ele é muito importante.
Em seguida relacionou os nomes dos outros filhos homens das outras esposas e concubinas, mas havia tantos que Dorian não fez esforço para memorizá-los. Tahi nem mesmo se deu ao trabalho de mencionar as meninas, porque não eram de nenhuma importância.
Nas semanas que se seguiram, pareceu que o príncipe tinha se esquecido de seu menino-escravo de cabeça vermelha. Nada mais ouviram dos lados de fora das paredes do harém. Todo dia, sob o olhar atento de Kush, escravas traziam a eles suas rações de arroz, carne e peixe fresco, e levavam os restos da cozinha e a barrica da latrina. Fora isso, Dorian e Tahi eram deixados por conta própria.
Havia janelas gradeadas na sala principal das acomodações, de onde se tinha uma vista de um setor dos jardins. Para quebrar a monotonia de seu confinamento, passavam muito tempo a observar, daquele posto avançado, as idas e vindas dos outros membros do harém.
Tahi pôde apontar Zayn al-Din para Dorian. Era um menino forte e gordo, mais alto que qualquer um de seus irmãos. Tinha feições de um caramelo pálido e sua boca era carnuda e petulante. A pele em torno dos olhos era descolorida, como se estivesse machucada.
- Zayn gosta de coisas doces - Tahi explicou.
Tinha manchas lívidas de espinhas purulentas na parte interior dos cotovelos e joelhos. Caminhava com as pernas afastadas para evitar que as coxas roçassem uma na outra e a pele entre elas se esfolasse.
Sempre que Dorian o avistava, Zayn estava rodeado por uma dúzia ou mais de seus irmãos. Certa manhã, ficou a observar enquanto sua turma perseguia um menino menor pelas alamedas e o encurralaram contra a parede externa do harém. Arrastaram-no até Zayn, que não se empenhara na caçada, mas se aproximara preguiçosamente quando tinha terminado. Tahi olhava também e disse a Dorian que a vítima era o filho de uma concubina inferior do príncipe e portanto um belo folguedo para o filho mais velho da primeira esposa.
Dorian, que conhecia tudo sobre os direitos do primogênito devido a seus conflitos com o irmão William, sentiu sua simpatia recair sobre o pequenino ao observar Zayn torcer-lhe as orelhas até que o garotinho caiu a seus joelhos, chorando de medo.
- Como punição pelo que você fez, vou fazê-lo de meu cavalo - Zayn lhe disse aos brados, e forçou-o a ficar de quatro. Então, montou-o e baixou o peso todo sobre as costas da outra criança. Tinha uma vara na mão, feita de folhas de palmeiras trançadas.
- Galope, cavalo - ordenou, e o chicoteou no traseiro.
A vara era flexível e rija. Estalou com força, e o garotinho urrou de espanto e dor. Avançou de mãos e joelhos com Zayn a se balançar em suas costas.
As outras crianças correram atrás, aos pulos, a caçoar e incitá-los. Quando o menino tropeçava, juntavam-se para surrá-lo, alguns correndo para quebrar galhos dos arbustos mais próximos. Um ergueu a túnica da criança e lhe expôs o traseiro moreno, cortado de vergões inchados. Obrigaram-no a continuar e o fizeram dar a volta por duas vezes pelas alamedas.
Lágrimas escorriam pela face da vítima quando, por fim, caiu sob o peso de Zayn e ficou deitado a soluçar sobre a grama pisada. Seus joelhos estavam em carne viva e sangrando. Zayn deu-lhe um chute e, em seguida, afastou-se com os outros, deixando que o menino se arrastasse até conseguir se levantar e cambalear para longe.
- Ele é um animal! - Dorian exclamou, furioso. Não conseguiu pensar na palavra em árabe e, assim, falou em inglês.
Tahi deu de ombros.
- O Alcorão diz que o forte deve proteger o fraco - Dorian declarou em árabe.
Tahi o advertiu:
- Não diga isso a Zayn al-Din. Ele não vai gostar.
- Gostaria de montar nele e levá-lo para um passeio - Dorian berrou, exaltado - para ver quanto iria apreciar.
Tahi fez o sinal para espantar a má sorte.
- Nem mesmo pense nisso. Ande ao largo de Zayn al-Din - avisou. - Ele é um menino vingativo. Certamente irá odiá-lo pelo favorecimento com que o príncipe o tratou. Ele pode nos causar muito mal. Mesmo Kush tem medo dele, pois um dia Zayn será o príncipe.
Nos dias que se sucederam, ela continuou a explicar a Dorian a hierarquia do harém. O príncipe tinha permissão para tomar quatro esposas, por decreto do Profeta. Entretanto, podia se divorciar e voltar a se casar como desejasse, e não havia limite para o número de concubinas que podia ter. As esposas das quais se divorciara mas que haviam lhe dado filhos ainda moravam no harém.
Assim, quase cinqüenta mulheres estavam segregadas dentro daquelas paredes. Cinqüenta mulheres bonitas, entediadas, frustradas, sem nada para preencher os longos dias a não ser a intriga, a hostilidade e as cenas de ciúme. Era uma sociedade complexa, permeada de inúmeras correntes e nuanças.
Kush reinava sobre todas elas, seu favor ou desfavor sendo importante para a felicidade e bem-estar das companheiras. As quatro esposas atuais, por ordem de idade, eram próximas em importância. Depois delas, vinha a favorita do momento do príncipe, mas normalmente se tratava de alguma menina bonita apenas no limiar da feminilidade, e sua estrela logo iria perder o brilho. Depois, todas as ex-esposas e as concubinas, que viviam às disputas, brigavam e faziam manobras em busca de uma posição na ordem das coisas.
- É importante que compreenda essas coisas, al-Amhara - disse Tahi. - Importante para nós dois. Eu não tenho posição alguma, sou apenas uma pobre e velha ama-seca. Posso protegê-lo muito pouco, e ninguém sentirá minha falta.
- Vai a algum lugar? - Dorian perguntou, assustado. Afeiçoara-se muito a ela no curto tempo em que estavam juntos, e a perspectiva de ser abandonado de novo o afligiu. - Eu sentirei saudades.
- Não vou a lugar algum, meu pequeno - Tahi lhe assegurou depressa -, mas pessoas morrem aqui no harém, como outras pessoas insignificantes que ofenderam as que lhes são superiores.
- Não se preocupe. Eu a protegerei - Dorian disse a ela, determinado, e a abraçou.
- Sinto-me mais segura sob os seus cuidados - Tahi não deixou que ele visse seu sorriso -, porém ainda não sabemos qual é a nossa posição. Parece que o príncipe o olha com algum favor, mas não podemos ainda estar seguros disso. Por que ele permite a Kush que nos aprisione e nos trate como animais numa jaula? Por que não manda chamar você? Esqueceu-se? - Suspirou e retribuiu o abraço.
- Talvez não saiba como Kush nos trata - Dorian sugeriu.
- Talvez - ela concordou. - Portanto devemos esperar. Enquanto isso, precisamos ser cautelosos, al-Amhara, muito cautelosos.
O tempo passou, e a excitação de sua chegada foi esquecida. Ninguém mais os espiava pela grade, e as crianças lideradas por Zayn al-Din se entediaram de cantar insultos sob as janelas e descobriram outras ocupações mais recompensadoras. A cada dia, Dorian se impacientava mais cruelmente com aquele confinamento.
Quando escutava os gritos agudos e as risadas felizes das outras crianças a brincar nos jardins, e ouvia seus passos em correria pelos claustros e no pátio do lado de fora de suas acomodações miseráveis, ele corria para a janela para vê-las de relance. Aquilo apenas agravava sua solidão e sensação de isolamento. Sentia-se tão aprisionado como estivera em sua cela na ilha onde al-Auf o prendera.
Certa manhã, a luz perolada de um novo dia se infiltrava pela janela alta de seu quarto, e Dorian estava deitado no catre a descascar com os dentes um pedaço de cana-de-açúcar. Parou quando alguém começou a cantar no jardim lá fora. Era uma voz feminina muito doce, e a canção, agradável, embora as palavras fossem repetitivas e sem sentido, alguma cantiga de ninar que falava sobre tâmaras e um macaco faminto. Ficou deitado a ouvir, mastigando a cana para lhe extrair o caldo e cuspindo fora o bagaço.
De repente, ergueu-se o grito e o balbuciar inconfundível de um macaco. A cantora interrompeu o refrão e irrompeu em gargalhadas sonoras. Ambos os sons deixaram Dorian intrigado, e ele levantou-se e correu para a janela. Espiou pelo jardim e viu uma garotinha sentada sozinha na borda do lago de flores de lótus ali perto. Estava de costas, mas seus cabelos caíam, escuros, de um negro quase iridescente, com uma trança prateada a reluzir entre as mechas. Dorian jamais vira algo como aquilo, e ficou fascinado.
Ela usava uma camisa longa bordada de verde, que lhe deixava os braços morenos nus, e um par de calças folgadas de algodão branco. Suas pernas estavam dobradas sob o corpo, e Dorian não pôde ver que as solas de seus pés pequeninos eram tingidas com hena de uma vibrante cor de gengibre. Ela segurava no alto uma tâmara açucarada, e um macaco de cauda longa, cara, mãos e pés pretos, estava de pé nas pernas traseiras e dançava na grama em frente à garota. A cada vez que ela fazia um sinal com a mão, o macaco berrava mais alto e girava num círculo. A menina ria, deliciada. Finalmente, estendeu-lhe o petisco e chamou:
- Venha cá, Jinni!
O macaco pulou para o ombro dela e pegou a tâmara de seus dedos. Enfiou-a inteira na boca e começou a remexer os cabelos da garota com os ágeis dedos negros, como se procurasse por piolhos. A menina afagou-lhe a peluda barriga branca e começou a cantar novamente.
De súbito, o macaco ergueu os olhos e viu a cabeça de Dorian na janela. Soltou um grito estridente, saltou do ombro da menina e para cima da parede. Pendurado no beiral, enfiou a mão pela grade da janela, a palma para cima como um pedinte, tentando pegar o pedaço de cana-de-açúcar de Dorian.
Dorian riu para a criatura, que mostrou os dentes, balançou a cabeça e tentou tirar a cana de sua mão, ao mesmo tempo que fazia caretas, guinchava e repuxava as gengivas.
A garota se virou e ergueu os olhos.
- Mande-o fazer um truque - gritou. - Não o alimente até que ele faça.
Dorian viu que ela também tinha uma cara engraçada como a de uma macaquinha, e olhos grandes da cor do mel de Devon, quando as urzes nas charnecas estavam em flor.
- Faça assim com a mão - A menina demonstrou, e, ao sinal, o macaco lançou-se numa ágil cambalhota de costas. - Mande-o fazer três vezes. - Bateu palmas. - Jinni deve fazer três vezes.
No terceiro salto mortal, Dorian estendeu ao macaco o pedaço de cana-de-açúcar. O animal o agarrou, galopou de quatro pela alameda, a cauda ao alto, e pulou para os galhos de cima de um dos tamarindeiros. Sentou-se e se pôs a mastigar o pedaço de cana-de-açúcar, o suco doce a lhe escorrer pelos lábios.
- Sei quem é você - a menina proclamou solenemente, olhando para Dorian com aqueles olhos grandes.
- Quem sou eu?
- É al-Amhara, o infiel.
Até então ele ficara indiferente a que o chamassem assim, mas, de súbito, aquilo lhe desagradou.
- Meu nome verdadeiro é Dorian, mas pode me chamar de Dorry. É como meu irmão me chama.
- Dowie - Ela experimentou, porém teve dificuldade em pronunciar o R. - É um nome esquisito, mas eu o chamarei de Dowie.
- Qual é o seu nome? - ele quis saber.
- Yasmini - a garota lhe disse -, que quer dizer a flor do jasmim.
- Levantou-se, chegou mais perto e o encarou com uma expressão admirada e séria. - Seus cabelos são de fato vermelhos. Pensei que fossem tingidos. - Pendeu a cabeça para um lado. - São muito bonitos. Gostaria de tocá-los.
- Bem, você não pode - ele respondeu secamente, mas ela não pareceu ofendida com a entonação.
- Fico muito triste por você - a menina murmurou.
- Ora, por que deveria? - Dorian ficou abalado.
- Porque Zayn diz que você é um infiel, que nunca será circuncidado e que jamais poderá entrar nos jardins do paraíso.
- Temos nosso próprio céu - Dorian lhe disse com altivez.
- Onde fica ele? - Yasmini quis saber, e se envolveram numa longa e empolgante discussão a respeito dos vários méritos dos dois paraísos.
- Nosso paraíso é chamado de Jannat - ela explicou. - Alá disse: "Preparei para meus servos retos aquilo que nenhum olhar viu e nenhum ouvido escutou e o que a mente do homem não pode conceber".
Dorian ponderou em silêncio sobre aquelas orações e não conseguiu pensar em nenhuma resposta adequada. Jannat era difícil de superar, portanto mudou de assunto para algo sobre o que sentia mais certeza.
- Na Inglaterra, meu pai tem cinqüenta cavalos. Quantos seu pai tem?
Depois daquele encontro, Yasmini vinha toda manhã, trazendo Jinni consigo. Sentava-se debaixo da janela de Dorian com o macaco no ombro e ficava a escutar, os olhos reluzentes, enquanto ele tentava lhe explicar o que era gelo e de que maneira a neve caía do céu; por que os ingleses tinham apenas uma esposa; que alguns possuíam cabelos da cor do ouro, e também de um vermelho radiante, iguais aos dele; como as meninas enrolavam seus cachos dourados com ferros quentes e os homens rapavam a barba e usavam perucas; a cor e o estilo das roupas femininas e o fato de que não usavam calças como ela, mas andavam nuas sob as saias.
- Isso é muito indecente! - Yasmini exclamou com um ar pudico. - E é verdade, como Zayn diz, que você come carne de porco?
- A pele fica muito crocante quando tostada! - Dorian disse com ênfase para chocá-la. - Estala nos dentes.
Ela arregalou os olhos mais ainda e fingiu vomitar.
- Isso é nojento de verdade. Não é de admirar que você não possa entrar no paraíso conosco.
- Não nos lavamos cinco vezes por dia como seu povo faz. Algumas vezes não tomamos banho durante o inverno inteiro. É muito frio - disse a ela com ar de riso.
- Então cheiram tão mal como os porcos que comem.
Yasmini não sabia nada sobre o mundo lá fora, porém era especialista nos assuntos do harém. Contou-lhe que sua mãe era uma das esposas divorciadas do príncipe, mas como tinha também dois filhos homens, eles ainda contavam com o favor real.
- Se fosse apenas eu, seria diferente, porque sou menina e meu pai não gosta de filhas. - Falou num tom isento de qualquer emoção e desprovido de autopiedade. - Minha mãe, porém, tem sangue real. É sobrinha do imperador do Grão-Mogol, portanto ele é meu tio-avô - disse a Dorian com orgulho.
- Então, você é uma princesa?
- Sim, mas só uma insignificante, não uma muito importante. - Sua candura era desconcertante. - Está vendo a mecha prateada no meu cabelo? - Fez uma pirueta para exibi-la. - Minha mãe tem a mesma faixa, e meu avô também. É a marca da realeza.
Quando Yasmini explicou seu relacionamento com as outras crianças, Dorian escutou com mais atenção do que dedicara a Tahi.
- Zayn é meu meio-irmão, mas eu não gosto dele. É gordo e cruel.
- Olhou para Dorian, pensativa. - É verdade que meu pai adotou você?
- Sim, é verdade.
- Então, é meu irmão também. Gosto mais de você que de Zayn, mesmo que coma carne de porco. Gosta de mim, al-Amhara? Zayn diz que eu me pareço com Jinni. - Acariciou o macaco em seu ombro. - Acha que tenho cara de macaco?
- Acho que você é muito bonita - Dorian lhe disse, galanteador, e, quando ela sorria, era verdade.
- Minha mãe diz que meu pai, o príncipe, foi ver meu tio, que é o califa em Mascate.
- Quando ele vai voltar? - Dorian perguntou depressa. Aquela devia ser a razão pela qual ele e Tahi tinham sido negligenciados: o príncipe não se encontrava ali para protegê-los. - Voltará logo?
- Minha mãe diz que ele pode ficar longe por um longo tempo, talvez um ano ou mais. - Yasmini pendeu a cabeça de um lado para estudar a face de Dorian. - Se você é realmente meu irmão, talvez nosso pai, quando voltar, o leve junto para cavalgar e caçar com o falcão. Eu gostaria de ser um menino para poder ir com ele - disse, e saltou de onde estava sentada à beira do lago. - Preciso ir agora. Kush não pode me pegar aqui. Ele proibiu todos nós de conversarmos com você. Vai me bater se me encontrar.
- Volte amanhã - Dorian pediu, tentando fazer com que aquilo não soasse como uma súplica.
- Talvez - ela respondeu por sobre o ombro, enquanto corria pela alameda com Jinni a saltar em volta de seus pés descalços.
Quando Yasmini desapareceu, Dorian ergueu os olhos para o céu, viu as gaivotas circulando no alto, ouviu o som distante das ondas na praia, e pensou em tentar fugir. Desesperado, imaginou-se a subir e a escapar pelo teto aberto da cozinha, em seguida escalando o muro externo do harém. Depois, em encontrar um barco pequeno na praia. Mas, para onde iria?, imaginou, e a fantasia desvaneceu-se e morreu.
Terei de esperar que Tom venha me buscar.
Resignou-se uma vez mais diante do inevitável.
Certa manhã, Kush aproximou-se chacoalhando as chaves e gritou com sua voz esganiçada:
- Tahi, prepare o menino para visitar o santo mulá. - Jogou um punhado de roupas limpas no chão. - Voltarei para pegá-lo depois das preces do meio-dia. Veja que esteja pronto, ou vou bater nele até arrancar sangue.
O carro de bois esperava nos portões e Dorian subiu, quase alheado de excitação e de alegria por lhe ser permitido sair de sua infeliz prisão. Tahi não o acompanhava, mas obtivera licença para tomar sol nos jardins em sua ausência.
Kush sentou-se ao lado de Dorian no banco da frente do carro e se pôs a sorrir e a afagá-lo.
- Estes trajes lhe assentam muito bem. São da melhor qualidade. Veja o bordado no colarinho. É de seda! O príncipe Abd Muhammad al-Malik tem uma túnica igual a esta. Eu a escolhi especialmente para você. Veja como eu o encho de mimos.
Quanto mais perto chegavam do palácio, mais agitado e amável Kush se tornava.
- Tome alguns destes bolinhos de canela açucarados. São os meus prediletos. Vai gostar também. Quero que se sinta feliz, al-Amhara.
Ao avistarem as brancas muralhas do forte, Kush tornou-se mais direto em suas instruções:
- Se al-Allama, bendito seja o seu santo nome, perguntar como eu o tenho tratado, deve lhe dizer que sou como um pai para você. Que tem livre escolha das mais finas iguarias, o peixe mais fresco e as frutas mais selecionadas para a sua cozinha.
- E que me trancou em quartos fedidos e quentes como um criminoso? - Dorian perguntou com fingida inocência.
- Isso não é verdade. Talvez eu tenha me mostrado um pouco preocupado demais com a sua segurança, é tudo. - Embora estivesse sorrindo, seus olhos eram tão frios como os de uma cobra. - Não tente me causar problemas, pequeno infiel. Posso ser melhor amigo do que inimigo. Pergunte àquela porca gorda, Tahi. Ela lhe dirá.
Desceram do carro de bois no pátio externo do forte. Kush tomou Dorian pela mão e conduziu-o pelo labirinto do edifício. Subiram várias escadas e, por fim, chegaram a um terraço, acima do porto, que tinha uma vista panorâmica das águas do canal até a massa do continente africano.
Dorian olhou ao redor, ansioso. Era um prazer ver o mar de novo e sentir a brisa fresca com gosto de sal no rosto, que parecia limpar-lhe a cabeça do cheiro rançoso do harém. Viu o mulá de imediato e curvou-se numa reverência respeitosa, tocando o coração e os lábios. Al-Allama o cumprimentou e disse:
- Possa Alá conservar seu sorriso, pequenino.
Havia outro homem sentado ao lado do mulá, de pernas cruzadas sob a tenda de sol de bambu trançado. Bebia uma pequena xícara de forte café preto, e um grande narguilé de vidro estava ao alcance de sua mão.
- Salaam aliekum, velho pai - Dorian disse respeitosamente, e o homem voltou-se para fitá-lo.
O coração de Dorian deu um salto e sua face iluminou-se de alegria ao reconhecê-lo. Correu para abraçá-lo.
- Ben Abram! - Agarrou-se ao velho médico. - Pensei que nunca mais o veria outra vez. Achei que ainda estaria com al-Auf na ilha.
Gentilmente, o velho livrou-se do abraço e ajeitou a barba que Dorian desgrenhara. Não parecia disposto a permitir que os outros vissem a força do relacionamento que ele e o menino partilhavam.
- Deixe-me olhar para você. - Afastou Dorian até a distância do braço e examinou-lhe a face. Sua expressão se alterou. - Parece pálido. O que aconteceu com você, minha criança? - Voltou-se e olhou para Kush, que esperava ansioso no fundo do terraço. - Você tem o menino a seu encargo. O que fez a ele, eunuco? - Fora do harém, Kush era apenas um escravo doméstico, um escravo castrado para isso. Ben Abram não fez esforço para disfarçar sua irritação.
- Chamo Alá e seus santos por testemunha. - As papadas de Kush tremiam e o suor porejava de sua face. - Eu o tenho mimado. É muito bem alimentado e cuidado como se fosse filho legítimo de meu mestre.
Ben Abram olhou para Dorian em busca de confirmação, sabendo que receberia uma resposta direta.
- Ele me trancou num quartinho imundo desde o dia em que cheguei. Tem nos alimentado com lavagem de porco, e não tenho permissão de falar com ninguém além de minha ama, o tempo todo.
Ben Abram olhou para Kush friamente, e o eunuco caiu de joelhos.
- Foram as ordens do príncipe, Vossa Excelência. Ele me ordenou que impedisse a criança de escapar.
- O príncipe pagou um lakh de rupias de ouro por este menino. E o declarou formalmente seu filho adotivo - Ben Abram retrucou numa voz suave mas cheia de ameaças. - Quando Sua Alteza Real voltar de Mascate, eu o informarei em pessoa de como tem cuidado de seu filho.
- Só cumpri meu dever... misericordioso senhor - Kush balbuciou.
- Sei muito bem como descarrega esse dever sobre algumas das crianças e mulheres a seus cuidados, eunuco. - Ben Abram fez uma pausa significativa.
- Algumas vezes é meu dever punir aqueles que desobedecem às ordens do príncipe.
- Eu me refiro à menina Salima - Ben Abram murmurou.
- Era uma prostituta e uma vagabunda - Kush justificou-se.
- Tinha dezesseis anos e estava apaixonada - Ben Abram o contradisse.
- Tinha um animal lascivo que se esgueirava à procura dela por sobre os muros do harém.
- Era um jovem guerreiro, um oficial da guarda real - Ben Abram o corrigiu.
- Era meu dever, senhor. Não pretendia matá-la. Era apenas para ser uma lição para as outras.
Ben Abram ergueu a mão para calar qualquer protesto a mais de inocência.
- Escute-me, eunuco, e creia no que eu lhe digo. Se qualquer coisa de mau acontecer a este menino... Não! Se no futuro o tratar com menos que a maior consideração, verei que você grite ainda mais alto do que fez gritar a pequena Salima.
Al-Allama prestara atenção a tudo. E então se pronunciou:
- Tudo que Ben Abram ordenou eu endosso. Devem ser dadas acomodações decentes à criança e à sua ama. E devem também ser bem alimentados. Você não se atreva a confiná-lo nem estabelecer restrições desnecessárias à sua liberdade. Ele deve poder ir e vir como qualquer outro dos filhos do príncipe. Será trazido a mim para receber instruções em dias alternados, e eu lhe farei perguntas detalhadas de como tem sido tratado. Agora, suma da minha vista. - Despachou Kush com um gesto brusco. - Espere lá embaixo para levar o menino de volta quando ele estiver pronto.
Ao se afastar, Kush lançou um olhar eivado de veneno para Dorian.
Ben Abram voltou-se para Dorian.
- Há muita coisa que tenho de lhe contar. Ouviu falar na batalha na ilha depois que você partiu?
- Não. Não! Não soube de nada. Conte-me, velho pai. Conte-me tudo.
- Nem tudo são boas notícias - Ben Abram o avisou, e começou a falar baixinho.
Dorian ficou a escutá-lo atento. Soltou exclamações de orgulho e excitação quando soube do ataque ao forte de Flor do Mar, e de como Tom matara al-Auf com suas próprias mãos.
- Al-Auf era um animal. Estou tão orgulhoso de Tom! Gostaria de ter estado lá para ver... - Mas chorou quando soube dos ferimentos de seu pai e de como perdera as duas pernas. - Ele está morto, velho pai? Por favor, diga-me se ele ainda está vivo.
- A bem da verdade, pequenino, eu não sei. Estava vivo quando seu irmão me permitiu deixar a ilha. Acho que seu irmão planejava levá-lo de volta à Inglaterra.
- Para a Inglaterra? - Dorian sentiu-se deveras perturbado. - É tão longe. Pode nunca mais voltar. Será que Tom me abandonou? - As lágrimas o sufocaram e escorreram de seus olhos. Deixou-as fluir livres pelo rosto.
Ben Abram tomou-lhe as mãos e viu que Dorian tremia como se assolado por uma febre alta.
- Seu irmão é um bom homem, um homem honrado. Mostrou uma grande gentileza para comigo.
- Mas foi embora para a Inglaterra... - Dorian calou-se e soluçou dolorosamente. - Vai se esquecer de mim. Nunca mais o verei de novo.
- Então, essa será a vontade de Deus. Nesse ínterim, você é o filho do príncipe, e deve estar atento aos desejos dele. - Ben Abram levantou-se. - Agora, deve obedecer ao santo al-Allama, pois ele voltou de Mascate antes do príncipe, e é ordem de sua Alteza Real que você passe a receber a instrução do mulá.
Entre várias xícaras de café e fumaçadas do narguilé, Ben Abram aguardou enquanto a instrução religiosa era ministrada a Dorian pelas horas mais quentes do dia. Uma vez ou duas fez um comentário ou uma pergunta, mas na maior parte do tempo ficou a ouvir em silêncio. Dorian sentiu-se confortado por sua tranqüila presença.
O sol lançava as longas sombras das palmeiras sobre a praia abaixo quando Ben Abram pediu a bênção do mulá e conduziu Dorian até onde Kush esperava, no carro de bois, para levá-lo de volta ao harém.
Ben Abram parou, fora do alcance dos ouvidos do eunuco, e disse baixinho:
- Eu o verei tantas vezes quanto puder - prometeu -, sempre que vier para as aulas com o mulá. - Baixou a voz a um suspiro: - Seu irmão mostrou extrema bondade para comigo. Se não fosse por ele, eu também seria vendido como escravo. Por causa disso, prometi a ele lhe entregar uma mensagem. Não pude repeti-la com o mulá a escutar. Somente você deve ouvir.
- O que era a mensagem? Por favor, conte-me, velho pai.
- Seu irmão me pediu para lhe dizer que sempre manteria o juramento que fez a você. Lembra-se do juramento?
- Tom disse que voltaria para me buscar - Dorian murmurou. - Fez um juramento solene.
- Sim, pequenino. Para mim, ele reafirmou sua promessa. Voltará para buscá-lo. Eu não deveria lhe contar isso. Vai contra os interesses de meu mestre, mas eu não poderia privá-lo do conforto das palavras de seu irmão.
- Eu sabia que Tom nunca se esqueceria do juramento. - Dorian tocou a manga do velho. - Obrigado por haver me contado.
As ameaças de Ben Abram e al-Allama surtiram um profundo efeito sobre Kush. No dia seguinte, Dorian e Tahi foram transferidos para acomodações mais espaçosas numa parte melhor do harém. Agora tinham seu próprio pequeno pátio com uma fonte de água fresca. Kush mandou uma escrava ajudar Tahi com a comida e o trabalho pesado, como trocar as barricas da latrina. Também enviou a Dorian uma coleção de roupas novas e deu a Tahi permissão para encontrar os carros de bois quando chegavam da cidade, todo dia, carregados de produtos frescos e de mantimentos. Assim, ela poderia escolher a seu critério a carne e o peixe. Mais importante: durante o dia, Dorian tinha acesso às outras áreas do harém. Contudo, apesar de ele reclamar amargamente, Kush não lhe permitia que saísse daquela clausura, exceto para visitar o mulá no forte.
Mas até isso mudou quando Dorian reclamou com Ben Abram. E, assim, o menino obteve permissão para perambular pelo porto e por toda a ilha, embora um dos guardas de Kush o seguisse de perto e nunca o perdesse de vista. Tão grande era sua liberdade que Dorian começou a pensar mais uma vez em escapar da ilha.
Seus planos eram mais um jogo de faz-de-conta que uma séria intenção. Quando começou a freqüentar a praia onde os barcos de pesca descarregavam o produto das longas horas no mar e tentou fazer amigos entre os pescadores, descobriu que Kush se antecipara a ele. Devia ter avisado a todos os ilhéus para não falarem com o garoto infiel. Com sua guarda sempre a rondar por perto, não havia a menor chance de roubar um barco ou de receber qualquer ajuda dos pescadores e marujos locais. Por fim, Dorian resignou-se diante da inutilidade de seus planos de fuga. Começou a devotar mais tempo e esforço para angariar amigos entre os soldados do forte, os cavalariços de estábulo real e os falcoeiros do príncipe.
Yasmini reagiu com evidente prazer ao relaxamento do confinamento do amigo, e tão logo percebeu que não haveria uma óbvia objeção por parte de Kush, tornou-se a sombra de Dorian. Claro, ela jamais teria permissão para colocar um pé fora dos portões do harém, mas seguia o amigo pelos jardins e era uma visita constante aos quartos que ele partilhava com Tahi.
Sua voz e risadas mesclavam-se com os guinchos e balbucios de Jinni, tornando as acomodações sombrias mais cheias de vida. Tahi começou a lhe ensinar a cozinhar no fumacento fogão a lenha. Era algo que Yasmini nunca tentara anteriormente e encarou a novidade com imensa alegria. Apresentava suas criações a Dorian.
- Fiz isso para você, Dowie - trinava. - Gosta, não é mesmo? - Ansiosa, ficava a observar cada bocado desaparecer. - Está bom? É do seu gosto?
Quando Dorian saía do harém para suas visitas à praia, ao porto e ao forte, ela parecia murchar de saudades. Pendurava-se nas saias de Tahi à espera do regresso do menino, e suas feições de macaquinha se iluminavam quando Dorian entrava pela porta. Corria para ele.
As vezes sua devoção tornava-se tão sufocante que Dorian arranjava uma desculpa para deixar os muros do harém simplesmente para ficar longe dela. Seguia até os estábulos reais e passava horas a alimentar, dar de beber e escovar os magníficos animais do plantel do príncipe, pelo privilégio de obter permissão para cavalgar um deles. Todas as lições de seu pai e irmãos mais velhos em High Weald lhe voltaram à memória. No frio da noite, os cavalariços jogavam o pulu, o nome persa para um jogo de bola que era uma paixão entre os mongóis da realeza e que fora adotado pelos omanianos. A bola era talhada na raiz de bambu e batida com um martelo do mesmo material. Quando o cavalariço-chefe passou a conhecer Dorian melhor, deixou que ele se juntasse aos meninos mais jovens no campo de treinamento. Dorian adorava a sensação do lombo suado do cavalo entre suas pernas e a emoção das investidas fulminantes, em meio aos berros pelo campo, quando se acotovelavam e empurravam uns aos outros na disputa pela bola. Logo, sua agressividade e perícia fizeram os velhos palafreneiros menear a cabeça em aprovação.
- Se Alá permitir, ele será um cavaleiro de valor.
Outro de seus retiros prediletos era a cocheira real onde os falcões do príncipe eram mantidos. Junto das aves, ariscas porém adoráveis, Dorian se mostrava quieto e atencioso, e logo os falcoeiros aceitaram-lhe o interesse e começaram a compartilhar seus conhecimentos e sabedoria com ele. Aprendeu a linguagem pitoresca e a terminologia que usavam e, algumas vezes, ao ser convidado, os acompanhava quando soltavam os falcões nos limites dos manguezais, na extremidade norte da ilha.
Outras vezes conseguia se livrar de sua guarda e se esgueirava sozinho para explorar as praias da ilha. Encontrava enseadas e trechos desertos de areia onde podia tirar as roupas, enfiar-se no oceano e nadar até o recife, esfalfando-se até quase a exaustão. Então, nadava de volta e se deitava na areia branca; ficava ali, a olhar para o sul, e imaginava que as velas do topo do mastro do navio de Tom surgiam no horizonte.
Ao voltar para o harém, onde sabia que Yasmini o esperava, sempre levava um pequeno presente consigo para aplacar a culpa. Algumas vezes era uma pena de falcão de uma das aves na muda, ou um bracelete que trançara com a crina do rabo de um cavalo, ou conchas do mar que trouxera do recife. Furava e as transformava em colares para ela.
- Gostaria de poder ir com você - Yasmini lhe dizia, esperançosa. - Adoraria nadar com você ou vê-lo cavalgar.
- Bem, você sabe que não pode - Dorian retrucava com secura.
Tinha se dado conta de como seria a vida de Yasmini nos anos vindouros. Ela jamais poderia deixar o harém a não ser coberta de véus e acompanhada. Provavelmente ele fosse o único amigo do sexo oposto que não era parente de sangue que ela iria conhecer. Mesmo aquilo logo teria fim, pois ambos estavam no limiar da puberdade. Assim que se tornasse mulher, Yasmini teria de se casar.
Tahi lhe contou que o noivo lhe fora arranjado quando Yasmini tinha apenas quatro anos de idade.
- Ela será dada a um de seus primos na terra do Grão-Mogol, além do oceano, para cimentar os laços entre as duas casas reais. - Observou as emoções que perpassavam pela face de Dorian, diante da idéia de sua pequena companheira ser mandada para um homem que ela não conhecia, numa terra que nunca vira.
- Yasmini é minha irmã. Não quero que vá! - Dorian esbravejou impulsivamente. E se descobriu surpreso pela força da responsabilidade que sentia para com ela.
- Não fará nenhuma diferença para você - Tahi lhe disse com rudeza, procurando esconder a compaixão. - No decorrer do ano, a mudança da idade vai se processar em você. Kush está de olho. Nunca perde um detalhe. Ao primeiro sinal, você será banido do harém para sempre. Mesmo que ela ficasse aqui, você nunca mais veria a face de Yasmini outra vez depois desse dia. Talvez seja melhor que essa amizade termine tão depressa como o golpe da faca que irá celebrar sua própria admissão à idade viril.
A referência à faca perturbou Dorian. Ouvira os outros meninos falarem do rito da circuncisão e a fazer piadas cruéis sobre aquilo, mas jamais pensara que ele próprio teria de se submeter àquela prática religiosa. Agora, Tahi trouxera o assunto rudemente à baila.
- Eu não sou muçulmano - ele protestou. - Não podem fazer isso comigo.
- Nunca encontrará uma esposa se mantiver esse pedaço de pele - ela o advertiu.
Seu temor da lâmina era exacerbado pela culpa incipiente que sentia com relação a Yasmini, diante da perspectiva de separação forçada dos dois.
- O que fará sem mim, sem que eu possa cuidar dela? - preocupava-se. - É apenas uma criança.
Certo dia, chegou em casa de suas perambulações pela ilha logo depois das preces da tarde. Tinha os cabelos ainda molhados e duros da água salgada. Tahi estava de cócoras diante do fogão e ergueu os olhos quando ele parou na soleira da porta. Com uma expressão resignada, Dorian respondeu às perguntas da ama de aonde fora e o que fizera, porém dando-lhe apenas os detalhes que julgou que ela deveria saber. Então, olhou casualmente ao redor.
- Onde está Yasmini? - indagou, com se a resposta não fosse de real importância.
- Estava aqui até as preces e depois foi ver Battuta, que tem um novo animalzinho de estimação. Acho que é um papagaio verde.
Dorian debruçou-se sobre o ombro da ama e pegou um dos pães redondos e quentes do braseiro em frente a ela. Tahi lhe deu um tapa na mão.
- É para o jantar. Devolva.
- Possa o Profeta abrir as portas da misericórdia para você, Tahi.
Rindo, ele rumou para os jardins. Sabia onde encontrar a menina.
Partiu um naco do pão e o enfiou na boca. Tinha um presente para Yasmini, uma grande concha espiralada com um interior rosado opalescente.
Havia um túmulo em ruínas no lado leste dos jardins que tinha sido construído, séculos antes, em honra de um dos santos islâmicos. Na pedra da tumba, havia uma inscrição que Dorian conseguira decifrar depois de muito trabalho: Abd Allah Muhammad Ali, morto no ano 120 do Profeta.
Lá se erguia um alto domo coroado por um símbolo de bronze da lua crescente, grosso de zinabre. Abaixo, ficava um terraço aberto de preces orientado na direção da Caaba, em Meca. Numa ponta, havia uma grande cisterna aberta de água pluvial, onde antigamente os fiéis realizavam o wudu, as abluções rituais, antes das preces. Agora, abandonado, atraía bandos de pássaros selvagens às tardes.
Yasmini e suas amigas mais íntimas entre as meias-irmãs gostavam de brincar no terraço. Ali, fofocavam e discutiam e brincavam de jogos fantásticos, vestiam seus animaizinhos de estimação com roupas de criança e os ninavam como filhos. Fingiam-se de donas de casa e cozinhavam para suas famílias imaginárias.
Dorian estava se aproximando do pé da escada que conduzia ao terraço quando um grito vindo de cima o congelou no primeiro degrau. Instantaneamente, reconheceu a voz de Yasmini, mas o que lhe afligiu o coração foi a dolorosa agonia que retinia no lamento. Deu um salto e voou escada acima, impelido por aquela sucessão de berros horríveis, cada um mais agudo e mais apavorado que o anterior.
Jinni, o macaco, sentou-se no topo do domo da velha tumba. Quando se cansava de ser acarinhado e vestido como um bebê humano, escapava para aquele poleiro onde Yasmini não conseguia alcançá-lo. Agora, com preguiça, se coçava debaixo do braço, com as pálpebras azuladas, pesadas de sono, a despencar sobre seus grandes olhos castanhos. A todo instante se desequilibrava e quase caía do poleiro, e então acordava do cochilo, pestanejava e espiava os jardins que se espalhavam lá embaixo.
De súbito, farejou algo que o despertou totalmente: bolinhos de canela. Não havia nada no mundo de que Jinni gostasse mais. Ergueu-se em toda a sua altura, usando a longa cauda para se equilibrar sobre o domo redondo, e olhou avidamente ao redor.
Dois meninos desciam uma das trilhas por entre os arbustos. Mesmo àquela distância, Jinni enxergou que seus queixos se mexiam e que o maior carregava um prato de prata coberto. Deixou escapar um guincho curto, cobiçoso, e saltou do domo. Ficou a se balançar no topo da figueira que estendia seus enormes galhos abaixo do terraço.
Oculto pela espessa folhagem, observou os dois meninos se acomodar num canto escondido dos jardins e colocar o prato de prata entre eles. Zayn al-Din ergueu a coberta, e Jinni retesou a cauda e revirou os olhos ao ver a pilha de bolinhos amarelos. Sentiu-se dividido entre a cobiça e o medo. Conhecia Zayn al-Din muito bem. O macaco tinha uma cicatriz sobre um olho onde uma pedra o atingira. Zayn era perito em arremessar com funda. Por outro lado, os bolinhos ainda estavam quentes do forno e seu aroma era tentador, irresistível.
Jinni escorregou pelo tronco da figueira que o mantinha escondido dos meninos. Ao chegar ao chão, espiou por detrás da árvore. Quando teve certeza de que não fora ainda observado, saiu de seu esconderijo e correu pela alameda. Do fundo de um dos arbustos, arriscou outra olhada. Encheu as bochechas e torceu o nariz. O cheiro de canela estava muito mais forte ali. Viu Zayn levar um dos bolinhos à boca e enterrar os dentes naquela delícia fofa e amarelada.
Ibn al-Malik Abubaker era o outro menino, um dos numerosos meios-irmãos de Zayn. Levantou-se, foi até uma das casuarinas perto do muro externo e apontou para os galhos.
- Tem um ninho de falcão ali - gritou para Zayn, que se levantou e foi preguiçosamente se juntar a ele.
Estavam de costas para o prato de prata e suas cabeças jogadas para trás enquanto falavam do ninho trançado de longas fibras no alto do galho.
- Talvez seja um peregrino - Zayn disse, esperançoso. - Podemos pegar os filhotes quando estiverem emplumados.
Jinni reuniu coragem. Atirou-se de sob o arbusto e cobriu o campo aberto como um relâmpago acinzentado. Pegou o prato e encheu as duas mãos com os bolinhos quentes. Enfiou-os na boca até que as bochechas estavam a ponto de estourar. Metade dos bolinhos continuava no prato e ele tentou pegá-los com as patas, mas não conseguiu e deixou cair os que já apanhara. Começou de novo.
- O macaco!
A voz apavorante de Zayn soou num tom esganiçado atrás de Jinni, e o macaquinho percebeu que fora descoberto. Na pressa de fugir, derrubou o prato e saiu correndo de volta à segurança da figueira. Deixou uma trilha de pedaços de bolinho de canela atrás de si.
Ao subir pelo tronco e alcançar a segurança do primeiro galho no alto, virou a cabeça e olhou para trás. Os meninos se aproximavam correndo, aos gritos de protesto e indignação.
- Shaitan! Macaco do demônio! Animal porco!
Jinni chegou aos galhos do topo e se enroscou numa forquilha. Sentia-se a salvo ali e começou a mastigar os restos dos bolinhos que haviam resistido à fuga e à escalada da árvore.
Lá embaixo, Zayn abriu a bolsa presa a seu cinto e tirou a funda. Desenrolou as tiras de couro e puxou-as entre os braços abertos. Em seguida escolheu um pedregulho bem redondo e colocou-o na dobra das tiras. Contornou a base do tronco até ter uma visão clara de Jinni. O macaco sacudiu a cabeça, arregalou os olhos e fez uma careta horrível para afugentá-lo.
- Vou lhe ensinar uma lição para que nunca mais roube os meus bolinhos de novo - Zayn lhe prometeu e começou a se preparar para o arremesso.
Depois de dar uma porção de voltas em torno da cabeça, ele puxou a funda até que as tiras zuniam no ar e, então, no momento exato, soltou-as. O pedregulho se transformou num borrão branco sibilante, rápido demais para que Jinni se desviasse. Atingiu o braço esquerdo do macaco abaixo do cotovelo, e o osso partiu-se.
Jinni soltou um guincho horrível e saltou no ar, seu braço quebrado a pender. Ao cair, tentou se agarrar num galho, mas o braço não respondeu e ele despencou até a metade da árvore antes de conseguir se segurar com a pata direita.
Os dois meninos gritavam e dançavam de excitação.
- Você o acertou, Zayn! - Abubaker exultou.
- Vou matá-lo, seu demônio ladrão!
Zayn ajustou outra pedra na funda. Jinni claudicou com um único braço árvore acima. Chorava e gemia de dor ao chegar ao galho mais comprido que se estendia sobre o terraço.
Zayn arremessou a primeira pedrada, que cantou no ar e atingiu o galho logo abaixo do peito de Jinni. O macaco pulou e correu para a ponta do galho com seu braço quebrado pendurado e a balançar. Sabia onde poderia encontrar proteção.
Yasmini ouvira-lhe os guinchos e, embora não soubesse o que os provocara, o chamava, aflita:
- Jinni! O que foi, meu bebê? Venha para a mamãe.
Da ponta do galho, Jinni arremessou-se no espaço e caiu nos braços de Yasmini. Soluçava e tremia de dor e medo.
- Venha! - Zayn gritou para Abubaker. - Pegue um pau! Vamos acabar com ele!
Ao pé da escada, os jardineiros tinham deixado uma pilha de varas de bambu. Cada um dos meninos pegou uma vara e correu pela escada. Ofegante e sorrindo, Zayn foi o primeiro a chegar ao terraço. Parou quando Yasmini o enfrentou com Jinni nos braços.
- Não chegue perto de mim! - ela gritou. - Deixe-nos em paz, Zayn al-Din.
Por um momento, Zayn ficou desconcertado pela fúria da garotinha, mas então Abubaker se aproximou por detrás dele e o empurrou para a frente.
- É apenas Yasmini. É uma criança. Eu a seguro. Você pega o macaco.
Yasmini recuou diante deles e apertou o apavorado animal no peito, mas eles a seguiram, com ar ameaçador, brandindo as varas de bambu, um a incitar o outro.
- O demônio roubou os meus bolinhos. Vou matá-lo.
- Eu o matarei primeiro - Yasmini berrou em resposta, mas sua exibição de coragem começava a fraquejar e as lágrimas lhe enchiam os olhos. Bateu com as costas na parede inferior da cisterna e ficou imóvel ali, sem saída, encurralada, em desespero. Suas meias-irmãs a tinham abandonado e corrido ao primeiro sinal de problema com o irmão mais velho. Yasmini estava sozinha. Seus lábios tremiam, porém tentou manter a voz firme. - Deixe-nos em paz. Vou contar a al-Amhara. Ele o punirá pelo que fez a Jinni.
Zayn soltou uma risada de escárnio.
- Vai contar a al-Amhara? Você me mete medo! Al-Amhara é um infiel comedor de porco!
Avançaram contra ela, encurralada de costas contra a cisterna. De repente, Abubaker saltou para a frente e agarrou-a pelo pescoço.
- Pegue o macaco! - gritou, e Zayn segurou Jinni pela perna.
Puseram-se a lutar pelo terraço, os três em torno do animal, que guinchava enlouquecido. Yasmini se agarrava a Jinni com todas as suas forças, e gritava a plenos pulmões. Abubaker conseguiu abrir-lhe os dedos, um de cada vez, até que ela perdeu o aperto e Zayn arrancou-lhe o macaco das mãos.
- Devolva-o - Yasmini implorou. - Por favor, não o machuque mais.
Zayn ergueu Jinni pela pelagem do pescoço.
- Venha pegá-lo, antes que eu mate esta coisa imunda.
De repente, Jinni debateu-se em sua mão e enterrou os dentes no pulso de Zayn. Este soltou um urro de dor e surpresa, ergueu Jinni acima da cabeça e o jogou na cisterna. O macaco desapareceu debaixo da água e, em seguida, subiu à superfície e se debateu para atingir a borda. Zayn olhou para o pulso que sangrava. E sua face amarelada enrubesceu de fúria.
- Ele me mordeu! Olhe o sangue! - Correu para a borda da cisterna, estendeu a vara de bambu e empurrou a cabeça de Jinni para dentro d'água. Assim que emergiu de novo, ele a empurrou para baixo outra vez, agora a urrar de alegria sádica. - Vamos ver se ele nada bem!
Yasmini desvencilhou-se das mãos de Abubaker e saltou sobre as costas de Zayn. Gritava como louca enquanto o esmurrava na cabeça e nos ombros. Zayn urrava e gargalhava, sem dar importância aos gritos e ao ataque da menina. Continuou a afogar Jinni, empurrando-lhe a cabeça para baixo d'água cada vez que emergia.
Jinni perdia as forças rapidamente e vomitava água, seu pêlo molhado e colado ao crânio. Não tinha mais a força ou ar nos pulmões para guinchar, mas a voz de Yasmini retinia cada vez mais alta e aguda.
- Deixe-o em paz! Eu o odeio! Largue o meu bebê!
Dorian voou pelos últimos degraus da escada e parou no topo. Levou um instante até que entendesse o significado daquela cena confusa com que deparava. Vira-se dominado por um pânico violento diante da perspectiva de encontrar Yasmini seriamente machucada e agonizante, mas seu pavor deu lugar a uma fria raiva quando se deu conta do que os dois meninos maiores faziam a ela e a Jinni. Avançou sobre eles.
Abubaker o viu chegar e virou-se para encará-lo. Ergueu o bambu para atingi-lo na cabeça, porém Dorian se desviou e bateu com o ombro no centro do peito do outro menino, fazendo-o cambalear para trás. Abubaker bateu de costas na parede lateral do terraço e deixou cair o bambu. Então, virou-se, correu para a escada e desapareceu por ela.
A única preocupação de Dorian agora era pegar Zayn e resgatar Yasmini. Correu para ele, e Zayn virou-se para confrontá-lo, mas se viu atrapalhado pela garotinha pendurada em suas costas, e o golpe que desferiu com o bambu foi fraco. Dorian bloqueou o ataque e agarrou a vara com as duas mãos. Giraram em círculo, ambos a puxar e a empurrar a vara.
- Pegue Jinni! - Dorian gritou para Yasmini.
Ela, obediente, saltou das costas de Zayn e correu para a cisterna. Estendeu a mão e conseguiu pegar o macaco, que se debatia debilmente. Puxou-o para fora, ensopado, a tossir e a vomitar água pela boca e pelo nariz. Apertou-o contra o peito e se agachou debaixo do parapeito da cisterna, tentando evitar os dois meninos que lutavam e se empurravam pelo terraço.
Zayn era mais pesado que Dorian, e mais alto cerca de cinco centímetros. Começava a dominar aquela disputa de força.
- Vou afogá-lo como o macaco, seu infiel de olhos de demônio! - ameaçou e empurrou com todo o seu peso a vara de bambu.
Em sua fúria, Dorian tinha se esquecido de tudo que Tom lhe ensinara, mas então o insulto o espicaçou e ele deixou que o empurrão de Zayn o trouxesse para mais perto. Então, soltou a vara e armou o punho direito. Fincou-se nos pés para lhe servir de âncora.
Use a torção do corpo e o gingar de ombros, Tom o instruíra. Mire o nariz.
Dorian desferiu um soco, a mão endurecida pelos cordames e os ombros condicionados pela natação. Colheu Zayn em pleno nariz, que estourou como uma ameixa madura num fluxo de suco escarlate. Zayn deixou cair o bambu e levou as duas mãos ao rosto. Os olhos se inundaram de lágrimas de dor, e o sangue escorreu por entre seus dedos e gotejou no kanzu branco.
Dorian posicionou-se para o próximo golpe. Tom lhe mostrara como acertar o ponto exato no queixo do adversário: mandara que cerrasse os dentes e o golpeara de leve para que pudesse sentir o impacto no próprio ouvido. Consciente de cada gesto, Dorian desferiu o punho com todo o seu peso, armado desde atrás da cabeça e impulsionado com o braço retesado.
Zayn nunca vira aquele tipo de luta. Fazer um martelo da própria mão e usá-lo para bater na face do oponente era algo estranho à sua idéia de combate. Dorian não tinha ainda o peso ou força para derrubá-lo sem sentidos. Mas o golpe atingiu exatamente o ponto onde fora mirado, e com potência suficiente para fazer Zayn cambalear de costas, incapaz de ver com a vista embaralhada, sem condições de defender-se, as pernas parecendo sem ossos sob o seu peso.
Então, para espanto de Zayn, veio outro soco, que se chocou contra seus lábios gordos. Sentiu que um de seus dentes da frente se partira, e o gosto morno e metálico de seu próprio sangue lhe inundou a boca. Com os dois braços a lhe cobrir o rosto, cambaleou às cegas para o patamar da escada.
Atrás dele, Dorian pegou o bambu e golpeou-o repetidas vezes nas costas e ombros. Mesmo com a dor na boca e no nariz, as vergastadas do bambu fizeram Zayn correr para os degraus.
Dorian girou a vara de novo, e Zayn encolheu-se e berrou como se tivesse sido picado por um escorpião e perdeu o equilíbrio. Rolou pela escada num emaranhado de braços e pernas até o último degrau, e engatinhou por alguns metros, a soluçar desesperado. Então ouviu os passos de Dorian que descia as escadas atrás dele, e olhou por sobre o ombro com a visão embaçada.
A face do infiel estava contorcida numa máscara vermelha de fúria, aqueles olhos de um verde-claro a soltar faíscas, e ele tinha o bambu, que segurava no alto com ambas as mãos. Zayn se levantou. Cuspiu o dente quebrado num jato de sangue. Tentou correr, mas alguma coisa acontecera em seu pé direito. Cambaleou, mancou e seguiu aos pulos pela alameda atrás de Abubaker.
Dorian jogou o bambu de lado e deixou-os ir embora. Respirou fundo algumas vezes para controlar a raiva e, depois, pensou na garotinha. Subiu correndo os degraus de volta.
Yasmini ainda estava agachada sob o parapeito. Tremia e soluçava, e apertava o corpo molhado do macaco contra o peito.
- Está ferida, Yasmini? Eles a machucaram?
Ela meneou a cabeça e, muda, estendeu Jinni para Dorian. O pêlo do macaco estava ensopado e colado em seu corpo, e ele parecia ter metade de seu tamanho normal, como se tivesse encolhido.
- O braço! - Yasmini murmurou. - Está quebrado.
Dorian pegou gentilmente entre os dedos o braço pendurado, e Jinni gemeu baixinho, mas não resistiu. Olhou o menino com os olhos arregalados, confiantes. Dorian tentou se recordar de tudo que aprendera ao observar o dr. Reynolds cuidar dos ferimentos de um marujo que caíra do cordame do Seraph, e de outro que prendera o braço nas barras giratórias do cabrestante. Endireitou o braço de Jinni com toda a delicadeza e usou um pedaço curto de bambu para prendê-lo naquela posição; depois, amarrou-o com uma tira de algodão rasgada de seu keffiya da cabeça.
- Preciso levá-lo a Ben Abram - disse a Yasmini, e tirou o corpo pequenino do animal dos braços dela.
- Gostaria de ir junto - a menina murmurou, mas sabia que não era possível, e Dorian não se deu ao trabalho de responder. Fez um berço para Jinni na dobra da túnica.
Yasmini o acompanhou até os portões do harém e ficou ali parada, a olhar para ele, enquanto Dorian descia a estrada que atravessava os palmeirais em direção à cidade.
Percorrida meia milha, Dorian avistou um dos cavalariços do estábulo que puxava um dos cavalos do príncipe pelas rédeas.
- Mustafá! - gritou. - Dê-me uma carona até o porto.
Mustafá puxou-o para o lombo de sua montaria e seguiram a galope pelas ruas estreitas da cidade, até a beira da praia.
Ben Abram estava ocupado em sua enfermaria perto do porto. Veio do quarto dos fundos, limpando o sangue das mãos, e olhou para Dorian e Jinni com espanto.
- Eu lhe trouxe um paciente, velho pai, um que precisa com a máxima urgência das suas especiais habilidades - Dorian lhe disse.
- O animal vai me morder? - Ben Abram olhou para Jinni com suspeita.
- Não tenha medo, Jinni sabe que pode confiar no senhor.
- A redução de fratura é uma habilidade que remonta à Antiguidade - Ben Abram comentou ao examinar atentamente o membro quebrado -, mas duvido que os meus antepassados tenham tido um paciente como este.
Quando terminou, com o braço do macaco imobilizado e enfaixado, Ben Abram deu a Jinni uma dose de láudano, e o macaco dormiu nos braços de Dorian durante toda a longa caminhada de volta ao harém.
Yasmini os esperava logo do lado de dentro do portão. Tirou o macaco drogado dos braços de Dorian e carregou-o com toda a ternura para os quartos, onde encontraram Tahi desesperada e lacrimosa de preocupação.
- O que você fez, seu menino estúpido? - Atacou Dorian no instante em que ele passou a cabeça pela soleira da porta. - O harém inteiro está em polvorosa. Kush veio aqui. Está tomado de uma raiva tão terrível que mal pode falar. É verdade que Jinni mordeu Zayn al-Din e que você lhe quebrou o dente e lhe esmagou o nariz e que o osso do pé do filho mais velho do príncipe está quebrado? Kush afirma que Zayn pode nunca mais andar de novo; pelo menos ficará manco pelo resto da vida.
- Ele quebrou o pé por sua própria falta de jeito - Dorian se mostrou desafiador e insolente, e Tahi o agarrou e o abraçou contra os seios largos.
Afastou-se e choramingou:
- Sabe o perigo que trouxe para a sua própria cabeça? - soluçou. - De agora em diante, devemos sempre estar em alerta. Nunca mais coma ou beba nada que eu não tenha provado primeiro. Mantenha a travessa na porta do seu quarto de dormir. - Enfileirou a lista de precauções que deveriam tomar contra a vingança de Kush e de Zayn al-Din. - Só Alá sabe o que príncipe pensará disso quando voltar de Mascate. - Encerrou seu discurso com um suspiro mórbido.
Yasmini e Dorian a deixaram chorando e imaginando horrores sobre as panelas da cozinha, e carregaram Jinni até o quarto de Dorian. Deitaram-no na cama e se sentaram lado a lado.
Nenhum dos dois falou, mas, depois de algum tempo, Yasmini despencou como uma flor morta e caiu adormecida contra os ombros de Dorian. Ele a envolveu num abraço e, muito depois, Tahi os encontrou dormindo, um abraçado ao outro. Ajoelhou-se ao lado do casal e lhes examinou as faces.
- São tão lindos juntos, tão jovens e tão inocentes. Que pena que nunca possam se casar. Poderiam ter filhos de cabelos vermelhos... - murmurou e ergueu Yasmini dos braços protetores de Dorian para carregá-la de volta aos aposentos esplêndidos de sua própria mãe, perto do portão principal, onde a entregou a uma das amas.
Kush voltou, logo cedo na manhã seguinte, cheio de sanha e ameaças. A despeito da atitude arrogante, era evidente que não estava preparado para infringir as ordens estritas de al-Allama e Ben Abram, e causar qualquer mal a Dorian, mas sua malevolência emanava dele como a aura de um demônio. Na porta, olhou para trás, para Dorian, suas feições inchadas retorcidas pelo ódio.
- Logo chegará o dia, se Alá for gentil, em que você não mais estará aqui no harém para me atormentar.
A atmosfera do harém tornou-se pesada como numa tempestade de raios de verão, com a hostilidade endereçada a Dorian. Todas as outras crianças, exceto Yasmini, mantinham-se bem afastadas dele. Assim que viam, interrompiam seus jogos barulhentos e desapareciam em correria. As mulheres cobriam suas faces e puxavam as saias de suas túnicas para o lado, como se o contato com ele pudesse contaminá-las.
Três dias depois, Dorian se encontrou com Zayn ao passar pelos portões, de volta de suas aulas com al-Allama. Zayn estava sentado com Abubaker e três outros moleques servis a ele. Refestelavam-se com uma travessa de doces, mas caíram em silêncio quando Dorian atravessou o harém naquela direção.
O nariz de Zayn continuava inchado e havia uma casca preta em seu lábio superior. Ambos os olhos tinham manchas ainda mais escuras que sua cor natural. Seu pé direito estava enrolado em ataduras - talvez fosse verdade que poderia ficar manco pelo resto da vida, Dorian pensou, mas não fraquejou e encarou Zayn direto nos olhos. O menino maior não conseguiu lhe sustentar o olhar e virou a cabeça. Disse alguma coisa a Abubaker e os dois soltaram risadinhas nervosas. Dorian passou por eles, e Zayn ganhou ousadia ao ver que ele se afastava.
- Pele branca da cor do pus - disse, e sua voz assobiou pela falha do dente da frente.
- Olhos verdes de urina de porco - Abubaker emendou.
- Só quem a bebe pode saber sua cor tão bem - Dorian retrucou, bem alto, e seguiu o caminho sem olhar para trás.
Pelas semanas que se seguiram, a sensação de perigosa hostilidade persistiu. Embora Dorian tivesse se tornado um excluído no harém, a estratégia parecia ter mudado e agora os outros simplesmente o ignoravam. Mesmo Zayn e Abubaker não reagiam mais à sua presença, porém se comportavam com exagerada indiferença sempre que se encontravam. Zayn ainda mancava e, com o tempo, tornou-se evidente que o dano a seu pé direito poderia na verdade ser permanente.
Entretanto, Tahi não se acalmara com a trégua hostil entre os dois meninos, e não perdia a oportunidade para fazer preleções a Dorian sobre os perigos de se expor ao veneno ou a outros métodos macabros de encomendar a morte a distância.
- Sempre agite seu kanzu antes de colocá-lo. Vire as sandálias para baixo e as bata no chão. Existe um pequeno escorpião verde que mata tão depressa que a vítima não tem tempo de gritar depois da picada. Kush conhece bem os escorpiões e todas as outras coisas ruins.
Nada daquilo, porém, poderia obscurecer por muito tempo o ânimo naturalmente efervescente de Dorian. Permanecia cada vez menos dentro dos muros do harém. Quando estava lá, Yasmini era uma companhia constante.
Como crédito para as habilidades de Ben Abram, Jinni recuperou-se com rapidez, e embora favorecesse o braço não machucado, logo estava a trotar ao longo do topo do muro externo ou a escalar os galhos mais altos das figueiras.
O longo mês de Ramadã chegou e, depois, a lua nova encerrou o período de jejum. Em questão de dias, Zayn al-Din sumiu do harém. Chegara à puberdade e atingira a fase viril de sua vida adulta, e...
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