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Em Monção o autor focaliza um dos momentos mais apaixonantes da história universal: a virada entre os séculos XVII e XVIII, quando homens movidos pela ambição e pela sede de aventura lançam-se ao mar para conquistar almas e mercados. Um desses homens é o aventureiro Hal Courtney, que depois de anos de viagens e combates vive uma vida próspera, mas pouco emocionante em suas terras no interior da Inglaterra. Com ele moram seus quatro filhos, frutos de três casamentos. Pela lei, o mais velho será o único herdeiro dos bens e títulos de Courtney; aos menores restam estreitas perspectivas - um bom motivo para que o pai os leve consigo quando, enfim, surge a oportunidade de voltar ao mar. Dessa vez, a missão que a Coroa da Inglaterra reserva ao velho aventureiro é combater os piratas que estão ameaçando a navegação da poderosa Companhia Inglesa das índias Orientais, atrapalhando o lucrativo trânsito de mercadorias entre Europa, Ásia e África. Hal Courtney e os adolescentes embarcam então numa viagem que decidirá o rumo da vida deles: ao longo dessa viagem eles conhecerão novas terras e novas culturas - e se defrontarão com a paixão, o ódio, a vingança e a morte.
Os três rapazes seguiram pela ravina por trás da capela, de maneira a ficarem ocultos da casa grande e dos estábulos. Tom, o mais velho, liderava-os como sempre, mas o irmão mais novo estava em seus calcanhares. E quando Tom parou onde o riacho fazia sua primeira curva acima do vilarejo, o garoto argumentou de novo:
- Por que eu sempre tenho de vigiar os intrusos? Por que nunca posso me juntar à brincadeira, Tom?
- Porque você é o menor - Tom disse a ele, com autoridade senhoril. Inspecionava a pequena aldeia lá embaixo, agora visível pela brecha na ravina. A fumaça subia da forja do ferreiro, e a roupa lavada agitava-se nos varais atrás da cabana da viúva Evans ao sabor da brisa que vinha do leste. Não havia, porém, sinal de viva alma. Aquela hora do dia, a maioria dos homens estaria fora, nos campos de seu pai, pois a safra exigia plena atividade, enquanto aqueles que não estivessem labutando na colheita trabalhavam na casa grande.
Tom sorriu com satisfação e ansiedade.
- Ninguém nos viu. - Ninguém para levar notícias ao pai.
- Não é justo. - Dorian não se deixaria desviar facilmente de seu argumento. Seus cachos de uma tonalidade de ouro acobreado caíam-lhe pela testa, dando-lhe uma aparência de querubim zangado. - Você nunca me deixa fazer coisa alguma.
- Quem o deixou soltar o seu falcão na semana passada? Eu. - Tom voltou-se para o garoto. - Quem o deixou disparar o seu mosquete ontem? Eu. Quem o deixou conduzir o veleiro?
- Sim, mas...
- Não me venha com "mas". - Tom o encarou, zangado. - Quem é o capitão desta tripulação, afinal?
- Você, Tom. - Dorian baixou os olhos verdes sob a força da carranca de seu irmão mais velho. - Porém, mesmo assim...
- Pode ir com Tom em meu lugar, se quiser. - Guy falou suavemente pela primeira vez. - Eu farei o papel de vigia.
Tom voltou-se para seu irmão gêmeo, enquanto Dorian exultava:
- Eu posso, Guy? De verdade? - Somente quando sorriu, sua beleza plena aflorou como o sol através de nuvens a se abrirem.
- Não, ele não pode! - cortou Tom. - Dorry é apenas uma criança. Não pode. Ele ficará no telhado para cuidar dos intrusos.
- Eu não sou um bebê - protestou Dorian, furioso. - Tenho quase onze anos.
- Se não é um bebê, mostre os pêlos do seu saco - Tom o desafiou. Desde que os seus tinham apontado, aquele se tornara o padrão de virilidade de Tom.
Dorian o ignorou: não tinha nem mesmo um pálido tufo para comparar ao impressionante crescimento dos pêlos pubianos de seu irmão mais velho. Decidiu insistir por outro caminho.
- Ficarei só olhando.
- Sim, vai olhar do telhado - Tom liquidou o argumento no nascedouro. - Vamos! Estamos atrasados. - Subiu a ravina íngreme.
Os outros dois seguiram atrás dele com variados graus de relutância.
- Quem pode aparecer, afinal? - insistiu Dorian. - Todos estão ocupados. Nós mesmos deveríamos estar ajudando.
- Billy Preto pode aparecer - retrucou Tom, sem olhar para trás.
O nome fez calar até mesmo Dorian. Billy Preto era o filho mais velho dos Courtney. Sua mãe fora uma princesa etíope a quem sir Hal Courtney trouxera da África quando retornara de sua primeira viagem àquele continente místico. Uma noiva da realeza e uma carga de navio repleta de tesouros roubados dos holandeses e dos pagãos, uma imensa fortuna com a qual seu pai mais que duplicara os hectares de sua antiga propriedade, e, ao fazê-lo, elevara a família ao nível das mais ricas em todo o condado de Devon, rivalizando-se até mesmo com os Grenville.
William Courtney, Biftv Preto para seus meios-irmãos mais novos, tinha quase 24 anos, sete anos mais velho que os gêmeos. Era astuto, impiedoso, belo à maneira sombria dos lobos, e seus irmãos o temiam e odiavam com boa razão. O pavor de seu nome fez Dorian estremecer e os garotos terminaram de subir os derradeiros 800 metros em silêncio. Por fim, deixaram o riacho e se aproximaram da margem, parando sob o enorme carvalho onde a fêmea do falcão fizera o ninho na última primavera.
Tom recostou-se contra o tronco da árvore para recuperar o fôlego.
- Se esse vento se mantiver, poderemos velejar pela manhã - anunciou, tirando o chapéu e enxugando a testa suada com a manga da camisa. Tinha uma pena de pato selvagem presa ao chapéu, arrancada da primeira ave morta por seu próprio falcão.
Olhou ao redor de si. Dali, a vista englobava praticamente metade das propriedades de Courtney, 6 mil hectares de colinas ondulantes e vales profundos, de bosques, pastagens e campos de cultivo que se estendiam até os rochedos ao longo do litoral e alcançavam quase a fímbria do porto. Era, no entanto, um chão tão familiar que Tom não se demorou em fitar a paisagem.
- Vamos adiante para ver se a costa está limpa - disse, e se ajoelhou. De gatinhas, moveu-se com cautela até o muro que circundava a capela. Então, ergueu a cabeça e espiou.
A capela fora construída por seu bisavô, sir Charles, que recebera o título de cavaleiro a serviço da boa rainha Bess. Como um de seus capitães-de-fragata, ele lutara com grande distinção contra a armada de Filipe da Espanha. Havia mais de cem anos, sir Charles construíra a capela para a glória de Deus e em comemoração à ação da frota em Calais. Fora lá que fizera jus à sua comenda, e muitos dos galeões espanhóis tinham sido conduzidos em chamas para a praia, o resto dispersado pelas tempestades que o vice-almirante Drake chamara de Ventos de Deus.
A capela era uma bela construção octogonal de pedras acinzentadas, com uma torre alta que, num dia claro, podia ser vista de Plymouth, distante quase 24 quilômetros. Tom avançou facilmente pelo muro e rastejou pelo pomar de macieiras até a porta de carvalho da sacristia, ornada de ferro. Abriu-a com um estalo e ficou a escutar com atenção. O silêncio era total. Entrou e foi até a porta que se abria para a nave. Ao espiar, viu que o sol se infiltrava pelos vitrais e iluminava o interior como um arco-íris. As janelas acima do altar representavam a armada inglesa em batalha contra os espanhóis, com Deus a olhar para baixo, com aprovação, por sobre as nuvens, para os galeões em chamas.
As janelas sobre a porta principal haviam sido acrescentadas pelo próprio pai de Tom. Dessa vez, os inimigos obrigados à submissão eram os holandeses e as hordas do islã, enquanto acima da batalha pairava sir Hal, a espada erguida num gesto heróico, tendo ao lado sua princesa etíope. Ambos portavam armaduras e em seus escudos via-se o brasão da croix pattée da Ordem de São Jorge e do Santo Graal.
A nave estava vazia naquele dia. Os preparativos para o casamento de Billy Preto, que seria realizado no sábado seguinte, ainda não haviam começado. Tom tinha o prédio todo para si. Correu para a porta da sacristia e enfiou a cabeça para fora. Levou dois dedos a boca e soltou um assobio agudo. Quase de imediato, seus dois irmãos escalaram o muro externo e correram para encontrá-lo.
- Suba até a torre, Dorry! - ordenou Tom, e quando pareceu que o ruivo fosse protestar, avançou um passo ameaçador em direção a ele. Dorian fez um ar de desagrado, mas desapareceu pela escada.
- Ela ainda está lá? - perguntou Guy, com uma ponta de ansiedade na voz.
- Ainda. É cedo. - Tom atravessou o espaço e desceu a escada de pedras escuras que conduzia à cripta subterrânea. Ao chegar lá embaixo, desabotoou a aba da bolsa de couro que trazia pendurada ao lado da adaga embainhada em seu cinto. Tirou a pesada chave de ferro que surrupiara do escritório do pai naquela manhã e destrancou o portão gradeado. Em seguida girou-o em seus gonzos, abrindo-o com um rangido. Sem nenhuma hesitação, entrou na câmara mortuária onde muitos de seus ancestrais jaziam em seus sarcófagos de pedra. Guy seguiu-o com menor confiança. A presença da morte sempre o deixava intranqüilo. Parou à entrada da cripta.
Havia janelas altas ao nível do chão através das quais brilhava uma luz fantasmagórica, a única claridade ali. Túmulos de pedra e mármore estavam dispostos em torno das paredes circulares da cripta. Eram dezesseis, todos dos Courtney e de suas esposas, desde o bisavô Charles. Guy olhou instintivamente para o túmulo de mármore que continha os restos mortais de sua mãe, no centro da linha das três esposas mortas de seu pai. Havia uma efígie da morta esculpida sobre a tampa, e ela era linda, pensou Guy. Um pálido lírio. Não a conhecera, nunca se alimentara de seu peito: os três dias de sofrimento para dar à luz os gêmeos tinham sido demais para uma criatura tão delicada. Ela morrera de hemorragia e exaustão apenas horas depois que Guy soltara seu primeiro vagido. Os garotos haviam sido criados por uma série de babás e pela madrasta, que era a mãe de Dorian.
Guy se aproximou do túmulo de mármore e se ajoelhou à cabeceira. Leu a inscrição que havia no frontispício:
Dentro deste caixão, jaz Margaret Courtney, amada segunda esposa de sir Henry Courtney, mãe de Thomas e de Guy, que partiu desta vida em 2 de maio de 1673. Repousa na paz de Cristo.
Guy fechou os olhos e começou a rezar.
- Ela não pode ouvi-lo - disse-lhe Tom, com delicadeza.
- Pode, sim - retrucou Guy, sem erguer a cabeça ou abrir os olhos.
Tom perdeu o interesse e vagou pela fila dos caixões. À direita de sua mãe, jazia a mãe de Dorian, a última esposa de seu pai. Fazia apenas três anos que o veleiro em que ela estava emborcara na entrada da baía e as ondas bravias do mar a engoliram. A despeito dos esforços do marido para salvá-la, a corrente estava muito forte e quase arrastara Hal com ela. Lançara a ambos numa furna batida pelos ventos, distante oito quilômetros da costa, mas então Elizabeth já se afogara e Hal estava quase morto também.
Tom sentiu que as lágrimas brotaram do fundo de seu peito, pois ele a amava tanto como não poderia amar a mãe que jamais conhecera. Tossiu e esfregou os olhos, forçando as lágrimas a refluírem antes que Guy pudesse perceber sua fraqueza infantil. Embora Hal houvesse desposado Elizabeth principalmente para dar uma mãe a seus gêmeos órfãos, muito em breve todos viriam a amá-la, como amavam Dorian desde que ela dera à luz o menino. Todos, com exceção de Billy Preto, é claro. William Courtney não gostava de ninguém, a não ser de seu pai, e tinha dele um ciúme doentio, como de uma pantera. Elizabeth protegera os meninos mais novos de suas atenções vingativas até que o mar a levara e os deixara indefesos.
- A senhora jamais poderia ter nos deixado - Tom disse a ela, baixinho, e então olhou com ar culpado para Guy. Mas este não o ouvira, atento demais às suas preces, e Tom aproximou-se do próximo caixão que flanqueava o de sua mãe biológica. A tumba pertencia a Judith, a princesa etíope, a mãe de Billy Preto. A efígie de mármore na tampa representava uma bela mulher com feições poderosas, quase de falcão, que seu filho herdara dela. Estava com meia armadura, como quem houvesse comandado as armadas contra os pagãos. Havia uma espada em seu cinto e um escudo e um elmo descansavam em seu peito, o escudo com o brasão de uma cruz cóptica, o símbolo de Cristo que datava antes mesmo do ministério de Roma. Sua cabeça estava nua e a massa densa de seus cabelos era uma coroa de cachos. Ao fitá-la, Tom sentiu brotar de seu peito o ódio que nutria pelo filho que ela pusera no mundo.
- O cavalo devia tê-la lançado sela afora antes que você tivesse a chance de parir aquela sua cria. - Dessa vez, falou em voz alta.
Guy levantou-se e veio juntar-se a ele.
- Dá má sorte falar com os mortos - advertiu ao irmão.
Tom deu de ombros.
- Ela não pode me atingir agora.
O irmão tomou-lhe o braço e empurrou-o para o próximo sarcófago na fila. Ambos sabiam que estava vazio. A tampa não fora lacrada.
Sir Francis Courtney, nascido em 6 de janeiro de 1616, no condado de Devon. Cavaleiro da Ordem da Jarreteira da Ordem de São Jorge e do Santo Graal. Navegador e marinheiro. Explorador e guerreiro. Pai de Henry e Cavalheiro Valente.
Guy leu a inscrição em voz alta:
Injustamente acusado de pirataria pelos covardes colonos holandeses do cabo da Boa Esperança e cruelmente executado por eles em 15 de julho de 1668. Embora seus restos mortais permaneçam sepultados no distante e selvagem litoral africano, sua memória vive para sempre no coração de seu filho, Henry Courtney, e nos corações de todos os bravos e fiéis marujos que viajaram pelo oceano sob seu comando.
- Como papai pôde deixar um caixão vazio aqui? - murmurou Tom.
- Acho que talvez ele tenha a intenção de um dia trazer de volta o corpo de vovô - respondeu Guy.
Tom endereçou-lhe um olhar inquisitivo.
- Ele lhe disse isso? - Sentia ciúmes de que seu irmão soubesse de algo que ele, o mais velho, não sabia. Todos os garotos nutriam uma profunda adoração pelo pai.
- Não, não disse - admitiu Guy -, mas seria isso que eu faria por meu pai.
Tom desinteressou-se da discussão e caminhou para o centro do espaço aberto, que possuía incrustações de uma intrincada trama de padrões circulares de granito e mármore das mais variadas cores. Caldeirões de bronze estavam postados nos quatro pontos do círculo, para abrigar os antigos elementos do fogo e terra, ar e água, quando o templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal realizava a cerimônia da lua cheia do equinócio de verão.
Nota de Rodapé: A mais alta ordem inglesa da cavalaria, instituída em 1348 pelo rei Eduardo III. Segundo reza a história, a condessa de Salisbury, ao dançar com Eduardo III, deixou cair a liga (jarreteira). O rei apanhou-a e, ao ver que os cortesãos riam, disse: "Honni soit qui mal y pense" (Mal haja quem nisto põe malícia), frase que veio a ser a divisa da Ordem. Esta tem como chefe o soberano e só conta com 26 membros.
Fim da nota.
Sir Henry Courtney era um Cavaleiro Navegante da Ordem, como antes dele tinham sido seu pai e seu avô.
No centro do teto em cúpula da cripta, havia um domo aberto para o céu. O edifício fora tão engenhosamente estruturado que, através daquela abertura, os raios da lua cheia incidiam no desenho gravado no chão de pedra, sob os pés de Tom, onde se lia a inscrição cifrada da Ordem, em mármore negro: In Arcadia habito. Nenhum dos meninos tinha ainda apreendido o profundo significado daquele emblema heráldico.
Tom parou em cima das negras letras góticas, pousou a mão sobre o coração e se pôs a recitar a liturgia com a qual ele também seria algum dia admitido na Ordem:
- Nessas coisas acredito e as defenderei com minha vida. Creio que há apenas um Deus na Trindade, o Pai eterno, o Filho eterno e o eterno Espírito Santo.
- Amém! - murmurou Guy, baixinho. Ambos tinham estudado o catecismo da Ordem assiduamente e sabiam as centenas de respostas de cor.
- Creio na comunhão da Igreja da Inglaterra e no direito divino de seu representante na Terra, Guilherme, o Terceiro, rei da Inglaterra, Escócia, França e Irlanda, Defensor da Fé.
- Amém! - repetiu Guy. Um dia ambos seriam chamados a se juntar àquela Ordem ilustre, para ficar à luz da lua cheia e fazer aqueles votos com profunda atenção e seriedade.
- Darei apoio à Igreja da Inglaterra. Confrontarei os inimigos de meu soberano Senhor, Guilherme... - Tom continuou, num timbre cada vez mais intenso que quase abandonou quaisquer resquícios da voz infantil. Calou-se abruptamente quando um assobio agudo insinuou-se pela abertura no teto, acima de sua cabeça.
- Dorry! - exclamou Guy, nervoso. - Vem vindo alguém! - Ambos permaneceram imóveis, à espera do segundo assobio indicativo de alarme e perigo, mas não houve mais aviso.
- É ela! - Tom sorriu para seu irmão. - Tive medo de que não viesse.
Guy não compartilhou seu prazer. Coçou o pescoço com nervosismo.
- Tom, não gosto nada disso.
- Deixe de bobagem, Guy Courtney. - Riu do irmão. - Você nunca vai saber como é bom, a não ser que experimente.
Ouviram um farfalhar de tecido, o pisar de pés ligeiros na escada, e uma garota surgiu na cripta. Parou à entrada, a respirar ofegante, as faces vividamente coradas pela subida da colina.
- Alguém viu quando saiu da casa, Mary? - perguntou Tom.
Ela meneou a cabeça.
- Ninguém, sr. Tom. Estavam todos muito ocupados. - Sua voz vibrava com o sotaque local, mas seu timbre era suave e agradável. Era uma menina forte, de ossatura sólida e firme, mais velha que os gêmeos e, portanto mais perto dos vinte do que dos quinze anos. Sua tez era perfeita e suave como o famoso creme de Devon, e um emaranhado de caracóis escuros emoldurava sua bela face redonda. Seus lábios eram rosados, macios e úmidos, uma tímida contraposição aos brilhantes olhos puxados, vivos e observadores.
- Tem certeza, Mary, de que o sr. Billy não a viu? - perguntou Tom, com insistência.
Ela balançou a cabeça e os brincos dançaram.
- Não. Espiei na biblioteca antes de vir e ele estava com a cabeça enfiada nos livros, como sempre. - Ela colocou as mãos pequeninas nos quadris e, embora fossem estragadas e vermelhas do trabalho na cozinha, quase circundavam a minúscula cintura.
Os olhos de ambos os gêmeos seguiram-lhe os movimentos e se grudaram ao corpo dela. As anáguas e as saias rasgadas chegavam até meio caminho das canelas roliças e, apesar de seus pés estarem descalços e sujos, os tornozelos eram esguios. Ela percebeu os olhares, as expressões dos garotos, e sorriu com uma sensação de poder, sabedora do fascínio que exercia sobre eles.
Ergueu uma das mãos e brincou com a fita que prendia seu corpete. Obedientemente, os pares de olhos seguiram o gesto, e ela encheu o peito para que os seios forçassem a fita que os retinha.
- Você disse que eu receberia seis pence por isso - ela lembrou a Tom, que já se sentia excitado.
- Foi o que eu disse, Vlary. Seis pence por nós, Guy e eu.
Ela sacudiu a cabeça e lhe mostrou a língua rosada, numa careta.
- Você é um dissimulado, sr. Tom. Eram seis pence cada, um xelim pelos dois, isso sim.
- Não seja idiota, Mary. - Ele levou a mão à bolsa no cinto e tirou uma moeda de prata. Lançou-a ao ar. A moeda reluziu à luz e Tom a pegou na palma e, em seguida, estendeu-a à garota, para que a inspecionasse. - Uma moeda de prata de seis pence, todinha para você.
De novo ela meneou a cabeça e soltou o laço da fita.
- Um xelim - repetiu, e a frente de seu corpete abriu-se por alguns centímetros. Os garotos olharam para o pedaço de pele branca que se revelava: contrastava visivelmente com os ombros bronzeados e cobertos de sardas.
Um xelim ou nada! - Ela deu de ombros com fingida indiferença. Ao movimento, a saliência de um seio redondo apontou, deixando apenas o botão pontudo ainda escondido, mas com a borda da aréola rosada que circundava o mamilo a espiar envergonhada por sob a borda franzida da blusa. Os garotos ficaram mudos.
- O rato comeu a sua língua? - ela perguntou, atrevida. - Acho que não tem nada para mim aqui. - Voltou-se para a escada, gingando o traseiro redondo debaixo das saias.
- Espere! - exclamou Tom, numa voz estrangulada. - É um xelim então, Mary, minha bela.
- Mostre primeiro, sr. Tom! - Ela olhou por sobre o ombro salpicado de sardas, enquanto ele revirava a bolsa com gestos frenéticos.
- Aqui está, Mary. - Estendeu-lhe a moeda, e a garota aproximou-se lentamente, ondulando os quadris do jeito das moças das docas de Plymouth. Pegou a moeda dos dedos dele.
- Acha que sou bonita, sr. Tom?
- Você é a garota mais bonita de toda a Inglaterra - Tom disse com fervor, e era sincero em cada palavra. Estendeu a mão para tomar o seio redondo que estava agora livre do corpete. Ela soltou uma risada e afastou-lhe a mão com um tapa.
- E quanto ao sr. Guy? - Não é o primeiro? - Olhou para além de Tom. - Você nunca fez isso antes, não é, sr. Guy?
Guy engoliu em seco e não conseguiu falar. Baixou os olhos e corou violentamente.
- É a primeira vez - afirmou Tom. - Pegue-o primeiro. Eu irei depois.
Mary dirigiu-se a Guy e tomou-lhe a mão.
- Não tenha medo. - Sorriu com aqueles olhos puxados. - Não vou machucá-lo, sr. Guy - prometeu, e começou a empurrá-lo para o fundo da cripta.
Guy sentiu-lhe o cheiro quando ela se encostou nele. Provavelmente, ela não tomava banho havia um mês e exsudava um odor forte das cozinhas onde trabalhava, de toucinho e fumaça, um acento cavalar de suor, um aroma de lagosta a ferver no caldeirão.
Ele sentiu o estômago revirar.
- Não! - berrou e empurrou-a. - Não quero... Não posso. - Estava à beira das lágrimas. - Você vai primeiro, Tom.
- Eu a trouxe para você - Tom lhe disse com rispidez. - Quando sentir a coisa, vai ficar louco por isso. Não diga que não pode.
- Por favor, Tom, não me obrigue. - A voz de Guy falhou e ele olhou desesperado para a escada. - Só quero ir para casa. Papai vai nos achar.
- Eu já dei o nosso xelim a ela - Tom tentou convencê-lo. - Você já pagou.
Mary segurou-o pela mão de novo.
- Vamos logo! - Agarrou-o. - Eis um bom menino. Tenho andado de olho em você, juro que tenho. Você é um belo rapaz, isso é o que você é!
- Deixe Tom ir primeiro! - Guy repetiu, agora frenético.
- Muito bem, então! - Ela virou-se e caminhou bamboleando para Tom. - Deixe o sr. Tom lhe mostrar o jeito. Agora ele já é capaz de achar o caminho às cegas, já que esteve lá por várias vezes. - Agarrou o braço de Tom e arrastou-o até o túmulo mais próximo, que era aquele de sir Charles, o herói de Calais, e recostou-se nele.
- Não só eu - murmurou, com uma risadinha -, mas Mabel também, e Jill, a menos que as duas estejam contando mentiras, e metade das garotas da vila, ouvi dizer. É um bode e tanto, isso sim, sr. Tom! - Levou a mão e soltou os laços da calça de Tom. Ao mesmo tempo, ficou na ponta dos pés e grudou a boca na dele.
Tom prensou-a de costas contra o túmulo de pedra. Tentava dizer alguma coisa ao irmão gêmeo, revirando os olhos na direção de Guy, mas estava preso aos lábios macios e úmidos e enroscado à língua comprida como a de um gato que ela enfiava em sua boca.
Por fim, livrou a face e respirou fundo, e então sorriu para Guy, o queixo molhado e brilhante da saliva da garota.
- Agora vou lhe mostrar a coisa mais deliciosa que você vai ver com esses seus olhos, mesmo que viva por uns cem anos.
Mary ainda se recostava contra o túmulo de pedra. Tom inclinou-se e, com dedos práticos, soltou-lhe o cós da saia, fazendo com que a veste caísse e se amontoasse em torno dos tornozelos da jovem. Ela nada usava por baixo e seu corpo era macio e muito branco. Parecia moldado com a mais fina cera de abelha. Todos os três olharam para baixo, os gêmeos com admiração e Mary com uma ponta de orgulho. Depois de um longo minuto de silêncio, quebrado apenas pela respiração ofegante de Tom, Mary ergueu a blusa por sobre a cabeça com ambas as mãos e deixou-a cair sobre a tampa do túmulo, atrás de si. Voltou-se e olhou para Guy.
Não quer isto aqui? - disse, e tomou os seios fartos em cada uma das mãos. - Não? - caçoou. Ele estava aturdido e trêmulo. Ela correu os dedos lentamente para baixo do corpo cremoso, para além da fenda profunda do umbigo. Chutou a saia e afastou os pés, ainda olhando para o rosto de Guy. - Você nunca sentiu o gosto desta gatinha, sentiu, sr. Guy? - perguntou a ele. Os pêlos ringiam sob seus dedos enquanto ela se acariciava. Faziam um som chocante, e ela riu, em triunfo.
- Agora é tarde, sr. Guy! - ela o provocou. - Teve sua chance. Vai ter de esperar a sua vez!
Enquanto isso, Tom baixara a calça até os tornozelos. Mary colocou as mãos sobre os ombros dele e, com um pequeno impulso, ergueu-se, agarrando-se ao rapaz com os braços em torno do pescoço dele, as pernas a envolvê-lo pela cintura. Usava um colar de contas de vidro, que ficou entre os dois. O fio arrebentou e as contas brilhantes caíram em cascata por seus corpos e se espalharam pelas lajes de pedra. Ninguém pareceu notar.
Guy ficou a observar, com uma mistura estranha de horror e fascinação, enquanto seu irmão gêmeo penetrava a garota, empurrando-a contra a lápide de pedra do sarcófago de seu avô, em movimentos frenéticos, a avançar e socar, gemendo, a face vermelha, enquanto a garota forçava o corpo contra o dele. Então, Mary começou a soltar pequenos gemidos suplicantes, que se tornaram cada vez mais altos e mais agudos até ela ganir como um filhote em agonia.
Guy queria desviar os olhos, mas não conseguia. Em tenebrosa fascinação, não tirou os olhos dos dois até que seu irmão jogou a cabeça para trás, escancarou a boca e deixou escapar um pavoroso grito de angústia.
Ela o está matando, pensou Guy, e, em seguida: o que vamos dizer a papai? A face de Tom tinha uma tonalidade avermelhada e reluzia de suor.
- Tom! Você está bem? - As palavras saíram de sua boca antes que ele pudesse impedir.
Tom voltou a cabeça e lhe endereçou um sorriso contorcido.
- Nunca me senti melhor. - Deixou que Mary apoiasse os pés no chão e recuou, enquanto ela se recostava uma vez mais no túmulo. - Agora é a sua vez - disse, ofegante. - Faça seus seis pence valerem a pena, rapaz!
Mary ainda estava sem fôlego, mas soltou uma risada entrecortada.
- Me dê um minuto para recuperar o fôlego, e então vou levar você para um galope do qual não vai se esquecer por mais de um ano, sr. Guy.
Naquele momento, um assobio agudo reverberou pela clarabóia do teto da cripta, e Guy saltou para trás de susto e alívio. Não havia erro quanto à urgência do aviso.
- Intrusos! - exclamou. - É Dorry no telhado. Vem alguém aí.
Tom equilibrou-se num dos pés e então sobre o outro, enquanto puxava a - alça e amarrava os laços.
- Dê o fora, Mary - disse, com rispidez, para a garota. Ela se debatia entre mãos e joelhos, tentando recolher as contas caídas. - Deixe isso! - gritou Tom, mas ela o ignorou. Suas nádegas nuas estavam marcadas de vermelho onde haviam se apoiado na beirada do túmulo (ele quase podia ler a inscrição de seu avô impressa na pele branca), e Tom sentiu um impulso ridículo de rir. Em vez disso, agarrou Guy pelo ombro. - Vamos! Deve ser papai! - A idéia pôs asas em seus pés e eles voaram pelas escadas, chocando-se um contra o outro na pressa.
Ao se precipitarem para fora da porta da sacristia, encontraram Dorian à espera deles, escondido entre a hera que cobria o muro.
- Quem é, Dorry? - perguntou Tom, ofegante.
- Billy Preto! - esganiçou Dorian. - Acabou de sair dos estábulos montado em Sultão e tomou a trilha direto para a colina. Estará aqui em um minuto.
Tom soltou o seu xingamento mais tenebroso, aprendido com o pescador Daniel Grande, o barqueiro de seu pai.
- Ele não pode nos pegar aqui. Vamos embora!
Os três correram para o muro. Tom empurrou Dorian para cima e então ele e Guy pularam e puxaram o irmão mais novo para o mato.
- Quietos! Vocês dois! - Tom bufava, entre risadas de alegria e excitação.
- O que aconteceu? - Dorian falou com voz espremida. - Vi quando Mary entrou. Você fez com ela, Guy?
- Você nem sabe como é isso - Guy tentou evitar a pergunta.
- Sei bem o que é - Dorian lhe disse com indignação. - Vi os bodes e os cães e os galos, e Hércules, o touro, copulando. - Ergueu-se de quatro e fez uma imitação chocante, balançando e jogando os quadris, apontando a língua pelo canto da boca e revirando os olhos de uma maneira horrível. - É assim que você fez com Mary, Guy?
Guy enrubesceu violentamente.
- Pare com isso, Dorian Courtney! Ouviu?
Tom soltou uma risada maliciosa e comprimiu a face de Dorian contra o chão.
Seu macaquinho nojento. Aposto um guinéu que você se sai melhor do que Guy, com pêlos ou sem pêlos.
Vai me deixar tentar da próxima vez, Tom? - implorou Dorian com voz abafada, sua face ainda estava enterrada na turfa.
Vou deixá-lo tentar quando tiver um pouco mais com que se virar disse Tom, e deixou que o irmão se sentasse, no momento em que todos os três ouviram o som de patas a subir a colina.
- Quietos! - murmurou Tom.
Entre risadinhas espremidas, os três se deitaram atrás do muro numa fila, tentando controlar a respiração e a excitação. Ouviram o cavaleiro aproximar-se num galope ligeiro e puxar as rédeas para um trote, ao chegar à área coberta de cascalho em frente à porta principal da capela.
- Fiquem abaixados! - Tom murmurou a seus irmãos. Tirou o chapéu com a pena e ergueu a cabeça cautelosamente para espiar por sobre o topo do muro.
William Courtney montava Sultão. Era um soberbo cavaleiro: a arte lhe viera naturalmente, talvez por algum instinto de suas origens africanas. Era magro e alto e, como sempre, estava vestido todo de preto. Tal fato, à parte a pigmentação de sua pele e seus cabelos, era a razão por que seus meios-irmãos tinham lhe dado o apelido que ele detestava com tanta intensidade. Embora naquele dia estivesse de cabeça descoberta, normalmente usava um chapéu preto de abas largas com um enfeite de penas de avestruz. Suas botas de cano longo eram pretas; sua sela e arreios, pretos. Sultão era um garanhão negro, escovado até que reluzisse à mais pálida luz do sol. Cavalo e cavaleiro eram impressionantes em magnificência.
Era óbvio que viera verificar os arranjos de seu iminente casamento. As núpcias seriam realizadas ali em vez de na capela da casa da noiva, pois outras cerimônias importantes haveriam de se seguir. E estas somente poderiam ser levadas a efeito na capela dos Cavaleiros Navegantes.
Parou diante da porta da frente da capela, inclinou-se na sela para espiar lá dentro e depois se endireitou e seguiu lentamente para a lateral do edifício até a porta da sacristia. Examinou em torno com cautela e então olhou na exata direção de Tom. Tom congelou. Ele e os outros rapazes deveriam estar lá embaixo, na foz do rio, ajudando Simon e sua tripulação com as redes de salmão. Os trabalhadores itinerantes, que William contratara para a colheita,eram alimentados quase inteiramente com salmão. Era barato e abundante, embora a dieta monótona causasse protestos.
A galharada da macieira devia ter ocultado Tom do olhar atento de seu irmão, pois William desmontou e prendeu Sultão ao anel de ferro ao lado da porta. Billy Preto estava noivo da filha do meio dos Grenville. Era para ser um casamento esplêndido, e seu pai se empenhara por quase um ano com John Grenville, o duque de Exeter, para chegar a um acordo sobre o dote.
Billy Preto estava aflito para se apossar da noiva, pensou Tom, distraidamente, ao observar seu irmão parar nos degraus da capela e tirar a poeira das botas lustrosas com o chicote pesado como chumbo que sempre carregava. Antes de entrar na capela, William relanceou os olhos mais uma vez na direção de Tom. Sua pele não era de todo negra, mas de uma ligeira cor de âmbar. Parecia mais mediterrâneo que africano, espanhol ou italiano talvez. Seus cabelos, porém, eram absolutamente negros, densos e brilhantes, penteados para trás e presos num rabo-de-cavalo com uma fita preta trançada entre os fios. Um belo homem, de uma beleza formidável, perigosa, com aquele nariz reto e fino de etíope e os olhos negros faiscantes de um predador. Tom sentia inveja de como a maioria das jovens enrubescia e tremia na presença de seu meio-irmão.
William desapareceu na sacristia e Tom levantou-se. Murmurou aos irmãos:
- Ele se foi! Vamos embora. Voltaremos... - Mas antes que pudesse terminar, ecoou um grito vindo da capela.
- Mary! - exclamou Tom. - Pensei que tivesse corrido, mas a tonta ainda está lá!
- Billy Preto... a pegou - gaguejou Guy.
- Agora vai dar problema! - disse Dorian, com voz de riso, e se ergueu para ter uma visão melhor dos acontecimentos. - O que acha que ele fará?
- Não sei - murmurou Tom -, e não vamos esperar para descobrir.
Antes que pudesse conduzi-los numa precipitada corrida ravina abaixo, Mary irrompeu pela porta da sacristia. Mesmo àquela distância, seu pavor era evidente. Corria como se perseguida por uma matilha de lobos. Um momento depois, William surgiu à luz do sol, no encalço da fugitiva.
- Volte aqui, sua vagabundinha!
Sua voz chegava claramente até os rapazes, que ainda se encontravam agachados atrás do muro. Porém Mary recolheu as saias e correu mais depressa. Seguia diretamente para onde os meninos se escondiam.
Atrás dela, William soltou as rédeas de Sultão e saltou com facilidade para a sela. Instigou o garanhão a um pleno galope. Num instante cavalo e cavaleiro cortaram o caminho da garota em fuga.
pare onde está, sua prostitutazinha suja. Coisa boa você não veio fazer aqui em cima. - Ao alcançá-la, William ergueu o pesado chicote com a mão direita. - Vai me dizer o que está fazendo aqui. - Desferiu uma chicotada, porém Mary se desviou. - Você não vai me escapar, cadela. - Forçou o cavalo a segui-la. Tinha um sorriso frio, cruel, na face.
Por favor, sr. William - Mary gritou, mas ele ergueu o chicote novamente.
O látego sibilou no ar e a garota abaixou-se para fugir do golpe com a agilidade de um animal acossado. Corria agora de volta para a capela, embrenhando-se entre as macieiras, com William em seu encalço.
- Vamos embora! - murmurou Guy. - É a nossa chance. - Saltou e escorregou pela lateral íngreme da ravina, com Dorian atrás, mas Tom ainda continuou agachado atrás do muro. Olhava com horror seu irmão seguir no encalço da fugitiva e ameaçá-la com o chicote.
- Vou lhe ensinar a obedecer quando eu mando que pare. - Golpeou-a de novo e, dessa vez, o chicote atingiu-a entre as omoplatas.
Mary soltou um grito pavoroso, de agonia e terror, e caiu no chão. O som daquele berro enregelou a espinha de Tom e fez seus dentes baterem de pavor.
- Não faça isso! - gritou, mas William não ouviu. Saltou da sela e aproximou-se de Mary.
- Que traquinada estava aprontando aqui em cima, sua porca?
Ela caíra numa confusão de saias e pernas nuas, e ele a chicoteou novamente, visando-lhe o rosto muito pálido, porém Mary ergueu um braço e aparou o golpe. Um vergão de um violento escarlate marcou-lhe a pele alva, e ela soluçou e se contorceu de dor.
- Por favor, não me machuque, sr. William.
Vou surrá-la até que sangre ou até que me diga o que estava fazendo na capela, quando deveria estar na cozinha com suas panelas e caçarolas. - William sorria, parecendo divertir-se.
Não fiz nada de errado, senhor. - Mary juntou as mãos para implorar e não conseguiu erguê-las de novo com rapidez suficiente para aparar o próximo golpe que a atingiu"em cheio na face. Ela deixou escapar um urro e o sangue correu pela ferida aberta, tingindo suas roupas.
Por favor. Por favor, não me machuque mais. - Ela enterrou a face cortada entre as mãos e rolou pelo chão, na tentativa de afastar-se, mas sua saia embolou-se, prendendo-lhe os movimentos.
William sorriu de novo ao ver que a garota estava nua por baixo e seu próximo golpe foi endereçado à pele branca e macia das nádegas expostas.
- O que estava roubando, cadela? O que estava fazendo lá? - Chicoteou-a de novo e deixou-lhe uma marca escarlate na parte de trás das coxas.
Os gritos atingiam Tom tão cruelmente quanto o chicote que rasgava as carnes da moça.
- Deixe-a, seu maldito! - ele esbravejou, fustigado por um incontrolável senso de responsabilidade e cheio de piedade pela garota torturada. Antes mesmo de pensar no que fazia, Tom escalou o muro e correu para socorrer Mary.
William não o ouviu se aproximar. Estava absorto demais no agudo e inesperado prazer que experimentava em punir aquele ser indefeso. A vista das linhas escarlates naquela pele branca, as pernas nuas a se debaterem, os gritos enlouquecidos, o odor de animal sem banho que vinha dela o excitavam agudamente.
- O que estava fazendo aqui em cima? - esbravejou. - Vai me dizer ou devo arrancar a chicotadas de você? - Mal conseguiu controlar o riso ao causar uma vívida tira de um vermelho rubro naqueles ombros nus e ao observar os músculos sob a pele macia vibrarem em espasmos de agonia.
Tom desabou sobre ele por detrás. Era um rapaz de compleição forte para a sua idade, não muito menor em altura ou em peso que seu irmão mais velho, e o ódio e a indignação o impulsionavam, davam-lhe forças, abalado como estava com a injustiça e a crueldade que testemunhava e instigado pela lembrança de inúmeras mágoas e insultos que ele e seus irmãos tinham sofrido nas mãos de Billy Preto. E tinha ainda a vantagem, dessa vez, da completa surpresa.
Atingiu William no meio das costas, logo quando ele se equilibrava numa perna, no ato de chutar a garota para uma posição melhor, de modo a receber o próximo golpe do chicote. Billy foi projetado para a frente com tanta força que tropeçou sobre sua vítima e esparramou-se no chão, rolou uma vez e bateu a cabeça no tronco de uma macieira. Ficou largado ali, aturdido.
Tom inclinou-se e ajudou a garota trêmula e soluçante a ficar de pé.
- Corra! - disse a ela. - Tão depressa quanto puder! - Empurrou-a.
Mary não precisou de mais incentivos. Disparou trilha abaixo, ainda sacudida pelos soluços, e Tom voltou-se para enfrentar a ira de seu irmão.
William sentou-se no chão. Não tinha certeza ainda de quem ou o do que o atingira. Tocou o couro cabeludo, tateando entre os cabelos negros. Ao tirar a mão e trazê-la para diante dos olhos, os dedos estavam manchados de sangue de um pequeno corte de onde se chocara contra a árvore. Então sacudiu a cabeça e levantou-se. Olhou para Tom.
- Você! - disse, baixinho, quase com algum prazer. - Eu deveria saber que estava metido nesse ato reprovável.
- Ela não fez nada. - Tom ainda se sentia por demais perturbado pela raiva para lamentar seu impulso. - Você pode tê-la machucado seriamente.
- Sim - concordou William. - Era o meu propósito. Ela mereceu. - Abaixou-se e pegou o chicote. - Mas agora que ela se foi, é você que eu machucarei seriamente, e vou extrair o mais profundo prazer em cumprir o meu dever.
Agitou o chicote à direita e à esquerda, fazendo com que a arma zumbisse ameaçadoramente no ar.
- Diga-me, irmãozinho, o que você e aquela prostitutazinha estavam aprontando? Foi alguma coisa tola e suja da qual nosso pai deveria se inteirar? Fale agora, antes que eu tenha de arrancar de você.
- Eu o verei no inferno primeiro. - Era uma das expressões favoritas do pai de ambos, mas, a despeito da entonação de desafio, Tom lamentava amargamente o cavalheiresco impulso que o impelira àquela confrontação. Agora que perdera o elemento surpresa, sabia que, infelizmente, teria de provar o seu valor. E as habilidades de seu irmão mais velho não se resumiam a seus livros. Em Cambridge, ele integrava a equipe de luta do Colégio do Rei, e a luta livre era um esporte sem regras, exceto que o uso de armas letais era proibido. Na feira em Exmouth da última primavera, Tom tinha visto William agarrar e rodar o campeão local, um homem enorme do tamanho de um touro, depois de chutá-lo e socá-lo até fazê-lo desmaiar.
Pensou em fazer meia-volta e correr. Sabia, porém, que com aquelas longas pernas, mesmo calçadas com botas de montaria, William o alcançaria dentro de uma centena de metros. Nada havia a fazer. Posicionou-se e ergueu os punhos, do jeito que Daniel Grande lhe ensinara.
William riu na cara dele.
- Por Pedro e por todos os santos, o galinho quer lutar.
Jogou o chicote no chão, mas deixou as mãos penduradas dos lados enquanto avançava lentamente. De súbito, desfechou o primeiro soco. Não dera nenhum aviso e Tom apenas conseguiu saltar para trás. Contudo, o punho o pegou nos lábios, que se partiram, e de imediato o gosto salgado do sangue invadiu-lhe a boca. Os dentes se mancharam como se ele tivesse comido amoras.
- Lá vamos nós! A primeira esguichada de clarete. Haverá mais, eu lhe garanto, um barril inteiro antes que terminemos com este negócio.
William gingou o corpo, arremetendo o punho direito, e, quando Tom se desviou, ele o atingiu na cabeça com a outra mão. Tom aparou o golpe, como Daniel Grande lhe mostrara. William sorriu.
- O macaco aprendeu alguns truques. - Seus olhos, contudo, se estreitaram: não esperava por isso.
Desfechou o mesmo punho outra vez, e Tom abaixou-se, então segurou o braço do irmão pelo cotovelo, num aperto desesperado. Instintivamente, William recuou, e Tom usou o momento para deixar-se ir para a frente em vez de resistir, e, ao mesmo tempo, para lhe aplicar um violento chute. De novo, pegou o oponente sem equilíbrio e um de seus golpes aterrissou diretamente na virilha do adversário. O ar escapou dos pulmões de William num urro de dor e ele se dobrou para agarrar as partes feridas com ambas as mãos. Tom rodou nos calcanhares e saiu correndo pela trilha, em direção à casa.
Embora suas feições escuras ainda se contorcessem de sofrimento, ao ver o rapazinho fugir, William endireitou-se, forçou-se a ignorar a dor pungente e arremessou-se ao encalço de Tom. Ainda que refreado em seus movimentos pelo golpe, empenhou-se inexoravelmente na caça do fugitivo.
Quando Tom ouviu os passos apressados que o seguiam, olhou por sobre os ombros e perdeu o embalo. Podia ouvir o irmão grunhindo e imaginou até sentir-lhe a respiração a fungar em sua nuca. Não havia escapatória, não conseguiria fugir dele. Em vez de prosseguir, lançou-se ao chão e enrolou-se como uma bola.
William estava tão perto e se aproximava com tal rapidez que não conseguiu parar. A única maneira de evitar chocar-se contra Tom e cair era saltar sobre ele. Conseguiu, mas Tom rolou de costas no meio da trilha enlameada e esticou a mão, agarrando o tornozelo de William enquanto ainda estava no ar. Segurou-o com a força do terror e o homem desabou de cara no chão. Por um instante, o odiado irmão tornara-se indefeso; Tom se levantou e estava a ponto de sair em disparada novamente, quando a raiva e o ódio sobrepujaram seu bom senso.
Viu Billy Preto esparramado na lama. A tentação era forte demais para que pudesse resistir: pela primeira vez em sua vida, seu irmão mais velho estava à sua mercê. Tom ergueu a perna direita e imprimiu um impulso violento à bota. Alcançou William do lado da cabeça, na frente do ouvido, mas o resultado não foi o que ele esperava. Em vez de desmaiar, William deixou escapar um rugido de raiva e agarrou a perna de Tom com ambas as mãos. Com um safanão, lançou o rapaz no meio dos arbustos que ladeavam a trilha e, em seguida, ficou de pé e arremessou-se sobre Tom antes que o garoto pudesse se recobrar.
Sentou-se sobre o peito do irmão mais jovem e então se inclinou para lhe prender os pulsos ao chão, acima da cabeça. Tom não conseguia se mexer e mal podia respirar com o peso do oponente a lhe comprimir as costelas. William ainda ofegava e estava atordoado, mas lentamente sua respiração acalmou-se e ele esboçou um lento sorriso, um ricto retorcido de dor.
- Vai pagar pela brincadeira, filhote. Vai pagar um preço alto, isso eu lhe prometo - murmurou. - Só me deixe recuperar o fôlego e então iremos terminar esse assunto. - O suor pingou de seu queixo na face voltada do lado de Tom.
- Tenho ódio de você! - Tom sibilou. - Nós o odiamos. Meus irmãos, todo mundo que trabalha aqui, todos que o conhecem... nós o detestamos!
De súbito, William soltou um dos pulsos de Tom e esbofeteou-o na face com violência, com as costas da mão.
- Durante todos esses anos tenho tentado lhe ensinar bons modos - disse baixinho - e você nunca aprende.
Os olhos de Tom se inundaram de lágrimas de dor, mesmo assim ele conseguiu encher a boca de saliva e cuspiu na face escura que o desafiava. A gosma escorreu pelo queixo de William, que a ignorou.
- Vou pegá-lo, Billy Preto! - prometeu Tom, num murmúrio doloroso. - Um dia eu o pego!
- Não. - William meneou a cabeça. - Acho que não. - Sorriu.
Nunca ouviu falar da lei da primogenitura, macaquinho? - Aplicou outro tapa de mão aberta contra a lateral da cabeça de Tom. Os olhos do rapaz se turvaram e o sangue escorreu de uma narina. - Responda, irmão. - William ergueu a outra mão e a desferiu contra a cabeça de Tom. - Sabe o que significa? - Atingiu-o de novo com a mão direita.
- Responda, minha belezinha.
O próximo tapa foi com a mão esquerda e, em seguida, com a direita de novo, os golpes a estabelecerem um ritmo. Bofetada com. direita.
Bofetada com a esquerda. A cabeça de Tom rolava frouxamente de um lado para outro. Ele começou a perder a consciência, e a sucessão de golpes não findava.
- Primogenitura (Bofetada!) é o (Bofetada!) direito (Bofetada!) do (Bofetada!) primeiro a nascer (Bofetada!).
O próximo golpe veio por trás de Billy Preto. Dorian os seguira pela trilha e tinha visto o que acontecera a seu irmão predileto. A sucessão de tapas que chovia sobre Tom feria a Dorian da mesma forma, penosamente. Ele olhara ao redor, desesperado, em busca de uma arma. Havia um monte de galhos caídos ao longo da beirada do caminho. Apanhara um pedaço de pau seco, tão grosso quanto seu pulso e comprido como seu braço, e com ele golpeara as costas de William. Tivera o bom senso de não avisar do que estava prestes a fazer, e erguera silenciosamente o galho com ambas as mãos até o alto da cabeça. Parara para fazer mira, reunira todas as forças e, então, descera o porrete no topo da cabeça de William com tanta força que o galho escapou-lhe das mãos.
As mãos de William voaram para o crânio e ele rolou para fora do peito de Tom. Ergueu os olhos para Dorian e deixou escapar um brado de ódio.
- A matilha inteira de cães fedidos! - Ergueu-se nos pés e cambaleou vacilante. - Até mesmo o vira-lata mais novo.
- Deixe meu irmão em paz! - Dorian ameaçou, o semblante pálido de terror.
- Corra, Dorry! - Tom grunhiu, atordoado, de onde jazia deitado nos arbustos, sem forças para se sentar. - Ele vai matá-lo. Fuja!
Mas Dorian fincou os pés no chão.
- Deixe-o em paz - gritou.
William deu um passo na direção dele.
- Saiba, Dorry, que sua mãe era uma prostituta. - Sorriu, com uma expressão doce, e avançou outro passo, deixando as mãos pender. - Isso faz de você um filho-da-puta.
Dorian não tinha certeza do que era uma puta, mas respondeu, cheio de fúria.
- Você não pode falar de minha mãe assim. - Recuou um passo quando William avançou ameaçadoramente contra ele.
- O nenê da mamãe - caçoou William. - Bem, a puta de sua mãe está morta, nenê.
As lágrimas escorriam dos olhos de Dorian.
- Cale a boca! Eu o odeio, William Courtney!
- Você também precisa aprender boas maneiras, Dorry Nenê.
As mãos de William voaram e agarraram o pescoço do menino. Ergueu Dorian com facilidade no ar, enquanto o garoto se debatia, enterrando-lhe as unhas.
Os modos fazem o homem - disse William, e jogou-o contra o tronco cor de cobre da faia sob a qual se encontravam. - Você precisa aprender, Dorry. - Apertou a garganta do menino com os dedos, encarando-o na face, vendo-o sufocar e tornar-se lívido.
Os calcanhares de Dorian chutaram o tronco e ele cravou as unhas nas mãos de William, deixando linhas vermelhas na pele. A garganta fechada o impedia de emitir qualquer som. Sentiu-se sufocar.
- Um ninho de víboras! - exclamou William. - Isso é o que vocês são, áspides e víboras. Terei de fazer uma limpeza.
Tom libertou-se do arbusto e rastejou até onde seu irmão mais velho se encontrava. Agarrou-o pelas pernas.
- Por favor, Billy. Sinto muito. Bata em mim. Deixe Dorry em paz. Por favor, não o machuque. Ele não tinha a intenção de fazer nada.
William chutou-o para longe, ainda segurando o menino contra a árvore. Os pés de Dorry dançavam a vários centímetros do chão.
- Respeito, Dorry, você precisa aprender a ter respeito. - Relaxou a pressão dos polegares e deixou que sua vítima respirasse uma golfada de ar, e, de novo, fechou o aperto. As contorções silenciosas de Dorian tornaram-se frenéticas.
- Pegue-me! - implorou Tom. - Deixe Dorry em paz. Já chega. - Tom se levantou, usando o tronco para apoiar-se. Agarrou a manga de William.
- Você cuspiu na minha cara - disse William, com um semblante horrível - e esta viborazinha tentou me arrebentar o crânio. Veja agora como ele vai morrer sufocado.
- William! - Outra voz, rouca de indignação, ergueu-se bem perto. - Que diabo pensa que está fazendo? - Um golpe duro atingiu os braços esticados de William. Ele deixou a criança cair no chão enlameado e virou-se para encarar o pai.
Hal Courtney tinha usado a bainha de sua espada para golpear as mãos do filho mais velho e libertar a criança e, agora, parecia que a usaria para lançar William ao chão.
- Está louco? O que está fazendo a Dorian? - perguntou, a voz trêmula de ira.
- Ele tinha de ser... Era apenas uma brincadeira, pai. Estávamos brincando. - Miraculosamente, a raiva de William se evaporara e ele assumira um ar submisso. - Ele não se machucou. Está tudo em ordem.
- Você quase matou o menino! - esbravejou Hal, e então se ajoelhou para erguer o filho mais jovem da lama. Segurou-o ternamente contra o peito.
Dorian enterrou a face contra o pescoço do pai, irrompeu em soluços e se pôs a tossir e a respirar fundo. Havia marcas escarlates na pele macia de sua garganta, e as lágrimas escorriam por seu rosto. Hal Courtney encarou William com fúria.
- Esta não é a primeira vez que falamos sobre o tratamento rude para com os mais novos. Por Deus, William, discutiremos isso mais tarde, depois do jantar, esta noite, na biblioteca. Agora, suma da minha vista, antes que eu perca o controle de mim mesmo.
- Sim, senhor - disse William, humildemente, e recuou pela trilha que levava à capela. Ao sair, porém, lançou um olhar para Tom que não deixou dúvidas na mente do menino de que o assunto estava longe de estar resolvido.
- O que aconteceu com você, Tom? - Hal voltou-se para o outro filho.
- Nada, papai - ele respondeu com firmeza. - Não foi nada. - Limpou o nariz ensangüentado com a manga da camisa. Seria uma violação do seu próprio código de honra ser um alcagüete, mesmo de um adversário detestado como Billy Preto.
- Então, diga-me, o que houve para fazer seu nariz sangrar e sua face ficar inchada e vermelha como uma maçã madura? - A voz de Hal era irritada, porém gentil: testava o rapaz.
- Eu caí - disse Tom.
- Sei que algumas vezes é um arrematado idiota, Tom, mas tem certeza de que alguém não bateu em você?
- Se aconteceu, isso é assunto meu e dele, senhor. - Tom endireitou-se todo para disfarçar as dores e os ferimentos.
Hal envolveu-o com o braço pelos ombros. Com o outro, segurou Dorian contra o peito.
- Venham, meninos, vamos para casa agora.
Levou os dois até onde deixara o cavalo, na beira do bosque, e ergueu Dorian até a sela antes de montar. Enfiou os pés nos estribos e então puxou Tom pelo braço, acomodando-o atrás de si, no lombo do animal.
Tom colocou ambos os braços em torno da cintura do pai e pressionou a face inchada e ferida no meio de suas costas. Adorava o calor e o cheiro do corpo de seu pai, sua rigidez, sua força. Fazia com que se sentisse a salvo de todo perigo. Teve vontade de chorar, mas engoliu as lágrimas.
Você não é uma criança - disse a si mesmo. - Dorry pode chorar, mas você, não.
Onde está Guy? - seu pai perguntou, sem olhar ao redor.
Tom quase falou: ele fugiu, mas sufocou as palavras desleais antes que fossem pronunciadas.
- Foi para casa, eu acho, senhor.
Hal cavalgava em silêncio, agradecido por sentir os dois corpos quentes comprimidos contra o seu e magoado por saber que estavam machucados. Era, contudo, uma sensação inútil de raiva. Estava longe de ser a primeira vez que era obrigado a engolir os conflitos atávicos de seus filhos, os frutos de suas três esposas. Sabia que se tratava de uma competição na qual as desigualdades eram descarregadas pesadamente sobre os mais novos e da qual poderia resultar apenas um efeito possível.
Fez uma careta de contrariedade. Hal Courtney não tinha ainda 42 anos (William nascera quando contava apenas dezoito anos), no entanto, sentia-se velho e sobrecarregado de cuidados por ter de se confrontar com a comoção conflituosa de seus quatro filhos. O problema era que amava William demais, mais do que até mesmo o pequeno Dorian.
William era seu primogênito, o filho de sua Judith, aquela corajosa e bela guerreira da África a quem ele amara com paixão e profundo respeito. Quando Judith morrera sob as patas daquele cavalo de temperamento selvagem e inquieto que ela mesma domara, deixara um vazio doloroso em sua existência. Por muitos anos, nada houvera para preencher aquele vácuo, a não ser o belo infante que ela deixara para trás.
Hal tinha criado William, havia lhe ensinado a ser resoluto e resistente, esperto e cheio de recursos. E ele era todas essas coisas agora, e mais. Contudo, havia nele alguma coisa da selvageria e crueldade daquele continente negro e misterioso que ninguém conseguia domar. Hal receava isso e, entretanto, a bem da verdade, sabia que não poderia ser de outra maneira. O próprio Hal era um homem rude, duro, e portanto como poderia se ressentir das mesmas qualidades refletidas em seu primogênito?
- Pai, o que significa "primogenital"? - perguntou Tom, de súbito, sua voz abafada pela capa de Hal.
O garoto parecia tão conectado aos próprios pensamentos de Hal que este se assustou.
- Onde aprendeu isso? - indagou.
- Ouvi por aí - resmungou Tom. - Esqueci onde.
Hal podia imaginar muito bem onde fora, porém não pressionou o garoto, que já tinha sido ferido o suficiente por um dia. Em vez disso, tentou responder à pergunta francamente, pois Tom tinha idade agora para isso. Era hora de começar a aprender as dificuldades que a vida lhe reservava, assim como para o irmão mais novo.
- Você quer dizer primogenitura, Tom. Significa o direito do primeiro filho nascido.
- Billy - disse Tom, baixinho.
- Sim, Billy - concordou Hal, com franqueza. - De acordo com a lei da Inglaterra, ele é meu sucessor direto. Tem precedência sobre todos os seus irmãos mais novos.
- Nós - murmurou Tom, com um toque de amargura.
- Sim, vocês - assentiu Hal. - Quando eu me for, tudo será dele.
- Quando o senhor morrer, quer dizer - Dorian fez questão de esclarecer com irrefutável lógica.
- Está certo, Dorry, quando eu morrer.
- Não quero que o senhor morra - gemeu Dorian, a voz ainda rouca pelo dano à garganta. - Prometa-me que não vai morrer, papai.
- Bem que eu gostaria, rapaz, mas não posso. Todos morreremos um dia.
Dorian ficou em silêncio por um instante.
- Mas não amanhã...
Hal soltou uma risada suave.
- Não amanhã. Nem por um longo tempo, se eu puder evitar. Um dia, porém, acontecerá. Sempre acontece. - Ele adivinhava a próxima pergunta.
- E quando acontecer, Billy será sir William - disse Tom. - É isso que o senhor está tentando nos dizer.
- Sim. William terá as propriedades, mas não só. Terá tudo o mais também.
- Tudo? Não compreendo! - exclamou Tom, desencostando a cabeça das costas de seu pai. - Quer dizer High Weald? A casa e as terras?
- Sim. Tudo pertencerá a Billy. A terra, a casa, o dinheiro.
- Não é justo - reclamou Dorian. - Por que Tom e Guy não podem ter alguma coisa? São mais merecedores do que Billy. Não é justo.
- Talvez não seja justo, mas é a lei da Inglaterra.
- Não é justo - insistiu Dorian. - Billy é cruel e horrível.
- Se seguir pela vida à espera de que ela seja justa, então terá muitos desapontamentos, meu rapaz - disse Hal, suavemente, e abraçou seu menino. Gostaria de poder tornar as coisas diferentes para vocês, pensou.
Quando o senhor morrer, Billy não deixará que fiquemos aqui em High Weald. Vai nos mandar embora.
Você não pode ter certeza disso - protestou Hal.
Posso, sim - retrucou Tom, com convicção. - Ele me disse isso e falava sério.
- Você abrirá seu próprio caminho, Tom. E é por isso que tem de ser esperto e determinado. Eis por que sou duro com você algumas vezes, mais severo do que sempre fui com William. Você precisa aprender a prover a si mesmo quando eu me for. - Calou-se. Poderia explicar tudo a eles, sendo eles ainda tão jovens? Precisava tentar. Devia isso aos meninos. - A lei da primogenitura serviu para tornar a Inglaterra poderosa. Se cada vez que alguém morresse suas terras fossem divididas entre os filhos sobreviventes, logo o país inteiro seria fracionado em pequenas parcelas inúteis, incapazes de alimentar uma única família, e teríamos nos tornado uma nação de pedintes e pobres.
- Então, o que faremos? - perguntou Tom. - Aqueles de nós que somos deserdados?
- O Exército, a Marinha e a Igreja estão abertos para vocês. Podem embrenhar-se no mundo como mercadores ou colonizadores e voltar de seus quatro cantos, dos confins dos oceanos, com tesouros e riquezas ainda maiores do que William herdará quando eu morrer.
Os meninos ficaram em silêncio por um longo momento, a pensar naquelas palavras.
- Serei um marinheiro igual ao senhor, papai. Navegarei até os confins dos oceanos como o senhor fez - disse Tom, por fim.
- E eu irei com você - murmurou Dorian.
Sentado no primeiro banco da capela da família, Hal Courtney tinha toda a razão de sentir-se feliz consigo mesmo e com o mundo a seu redor. Ficou a observar o filho mais velho, que esperava a noiva no altar, enquanto a música do órgão enchia a pequena edificação de um som alegre. William estava extremamente belo e confiante no traje que escolhera para o casamento. Finalmente dispensara as roupas pretas e sombrias. Sua camisa era da mais fina renda de Flandres e seu colete de veludo verde, bordado com fios dourados. O punho de sua espada tinha calcedônias e lápis-lazúlis incrustados. A maioria das mulheres da congregação o observava também e as mais jovens riam e cochichavam a respeito dele numa troca de sussurros.
- Eu não poderia pedir mais de um filho - Hal disse a si mesmo.
William provara ser um atleta e um estudioso. Seu tutor em Cambridge elogiara sua determinação e capacidade para aprender e a voracidade com que ele batalhara, perseverara e competira para chegar à preeminência. Depois de seus estudos, quando voltara para High Weald, mostrara seu valor de novo como administrador e empreendedor. Gradualmente, Hal lhe dera mais e mais controle sobre a direção das terras e das minas de estanho, até que, agora, o próprio Hal quase poderia subtrair-se de supervisionar o dia-a-dia das propriedades da família. Se havia algo que deixava Hal de todo incomodado era que William muitas vezes mostrava-se por demais rígido como negociador, rude em excesso em seu tratamento para com os homens que trabalhavam sob suas ordens. Mais de uma vez, trabalhadores haviam morrido nas minas, fato que poderia ser minimizado se um pouco de atenção fosse dada à segurança e um pouco mais de dinheiro fosse gasto em melhoramentos nos poços e nos vagões de transporte. Entretanto, os lucros das minas e das terras haviam quase duplicado nos últimos três anos. Era prova suficiente da competência de William.
Agora, William estava ali, para contrair aquele excelente matrimônio. Claro, Hal o induzira na direção de lady Alice Grenville, mas William a cortejara e, em curto prazo de tempo, tinha a moça tão entontecida de amor por ele que a jovem convencera o pai da conveniência da união, a despeito da relutância inicial da família. Afinal, William Courtney era um plebeu.
Hal relanceou os olhos para o conde, sentado no banco fronteiro do outro lado da nave. John Grenville era uns dez anos mais velho do que ele um homem magro, simplesmente vestido, em trajes pouco apropriados para um dos maiores proprietários de terra de toda a Inglaterra. Seus olhos escuros estavam em consonância com a palidez doentia de sua face. Ele percebeu o olhar de Hal e fez um ligeiro cumprimento de cabeça, a expressão nem amistosa nem hostil, não obstante as palavras duras que haviam trocado quando se apresentara o assunto do dote de Alice. Ao final, a noiva trouxera consigo o título de propriedade das fazendas em Gainesbury, mais de 500 hectares, além das minas de estanho em funcionamento a leste e ao sul de Rushwold. Ultimamente, a demanda por estanho parecia insaciável, e Rushwold viria juntar-se às minas de Courtney que William administrava com tanta eficiência. Com a união, a produção cresceria e diminuiriam os custos de transporte do minério até a superfície. E não só a isso se resumia o dote de Alice. O item final que ele havia obtido do conde aprazia a Hal tanto quanto o resto: a parcela das ações da Companhia Inglesa das índias Orientais, 12 mil das cotas comuns com pleno direito de voto. Hal já era o maior acionista e diretor da companhia, mas aquelas novas ações iriam aumentar seu poder votante e torná-lo um dos homens mais influentes do Conselho, depois do presidente, Nicholas Childs.
Sim, tinha toda a razão para sentir-se satisfeito consigo mesmo. Então, o que era aquele estranho sentimento que o angustiava, qual areia nos olhos a ofuscar-lhe a alegria? Algumas vezes, quando cavalgava pelos penhascos e olhava lá de cima para o verde mar gelado, lembrava-se das mornas águas azuis do oceano Índico. Com freqüência, agora, ao soltar um falcão e observar seu rápido bater de asas contra o céu, recordava-se do firmamento mais amplo, de um azul mais profundo, da África. Em algumas noites, tirava seus mapas das estantes da biblioteca e debruçava-se sobre eles por horas, lendo as anotações que depusera ali duas décadas antes, e sonhava com as colinas cor de anil da África, com suas praias de areias brancas e seus majestosos rios.
Certa vez, bem recentemente, acordara de um sonho em confusão e coberto de suor. Fora vívido demais o reviver aqueles trágicos acontecimentos. Ela se encontrava a seu lado de novo, a adorável moça de pele dourada que fora seu primeiro e verdadeiro amor. De novo, ela estava em seus braços, morrendo.
- Sukeena, meu amor, eu morrerei com você. - Hal sentiu o coração partir-se outra vez ao proferir aquelas palavras.
- Não. - A voz doce começou a fraquejar. - Não, você seguirá em frente. Viajei com você para tão longe quanto me foi permitido. Mas, para você, os fados reservaram um destino especial. Você viverá. Terá muitos filhos fortes cujos descendentes florescerão nesta terra da África e a farão sua.
Hal cobriu seus olhos e inclinou a cabeça como se em prece - caso alguém na congregação visse o brilho de uma lágrima em seu olhar. Depois de um instante, abriu os olhos e fitou os filhos que sua amada previra tantos anos antes.
Tom era o mais próximo dele em espírito e carne, de ossatura forte e larga para a sua idade, com o olhar e a mão de um guerreiro. Era inquieto, facilmente entediado pela rotina ou por qualquer tarefa que exigisse longa e meticulosa concentração. Não era estudioso, porém não lhe faltavam cérebro nem astúcia. Na aparência, era agradável mas não bonito, pois sua boca e nariz eram muito largos. Tinha, contudo, feições fortes, determinadas, e a mandíbula pesada. Era impulsivo e, algumas vezes, impetuoso, quase destemido, freqüentemente muito ousado para seu próprio bem. Os hematomas em seu rosto haviam esmaecido agora para uma feia coloração meio amarela, meio roxa, mas era típico de Tom insurgir-se contra alguém tão mais velho e com duas vezes a sua força, sem pensar nas conseqüências.
Hal soubera da verdade acerca da confrontação nos bosques, abaixo da capela: William lhe contara de Mary, a cozinheira, e a garota fizera a ele uma confissão quase incoerente, entremeada o tempo todo de soluços amargos.
- Sou uma boa moça, senhor, Deus é testemunha de que sou. Não roubei nada, como seu filho disse que eu tinha roubado. Foi só um pouco de diversão, nada de ruim. Então o sr. William entrou na capela e disse coisas feias para mim e me bateu. - Chorando copiosamente, ela puxara as saias para mostrar os enormes vergões pelas coxas.
Hal lhe dissera com aspereza:
- Cubra-se, menina. - Podia imaginar o grau de sua inocência. Já a observara antes, embora normalmente demonstrasse escasso interesse pelas duas dúzias ou mais de mulheres que trabalhavam na casa principal. A garota possuía um olhar apimentado e um gingar voluptuoso das cadeiras e nádegas que era difícil de ignorar.
- O sr. Tom tentou impedi-lo, ou ele teria me matado, sr. William. O sr. Tom é um bom rapaz. Ele não fez nada...
Ora essa... Tom havia enfiado os dentes naquele pedaço tenro de carne, pensara Hal. Não faria mal algum ao rapaz. E a garota, provavelmente, daria a ele uma boa base naquele velho jogo, ora essa. Quando William os pegara lá, Tom se apressara a ir em defesa da moça. O sentimento era digno de elogios, mas a ação era de arrematada tolice; o objeto de seu gesto cavalheiresco mal valia tão feroz lealdade. Hal mandara a garota de volta para a cozinha e tivera uma conversa séria com seu imediato. Dentro de dois dias, fora-lhe arranjado um outro emprego como copeira no Royai Oak, em Plymouth, e ela desaparecera de High Weald. Hal não a queria batendo em sua porta dentro de nove meses para lhe aparecer com um embrulho nos braços.
Suspirou baixinho. Não demoraria e teria de encontrar outro emprego para Tom também. Ele não poderia ficar ali por muito mais tempo. Era quase um homem. Recentemente, Aboli começara a dar lições de esgrima a Tom - Hal as postergara até que o rapaz tivesse força nos braços: já vira jovens estragados por um início muito prematuro com a espada. De súbito, um calafrio o percorreu ao pensar em Tom num outro acesso de raiva, chamando o irmão mais velho para uma disputa: William era um notório espadachim. Havia ferido seriamente um colega de Cambridge com um golpe no ventre. Fora um assunto de honra, porém custara toda a influência de Hal e uma bolsa de guinéus de ouro para acalmar a situação. Duelar era legal, mas olhado com ferrenhas reservas; tivesse o rapaz morrido, nem mesmo Hal conseguiria proteger o filho das conseqüências. A idéia de dois de seus filhos disputarem seu feudo com espadas não lhe era possível suportar, ainda que pudesse haver mais de uma possibilidade de tal acontecer se ele não os separasse em breve. Teria de achar um lugar para Tom em um dos navios da Companhia John, o apelido afetuoso da Companhia Inglesa das índias Orientais.
Tom sentiu o olhar do pai sobre si e voltou-se para enviar a ele um sorriso tão franco e confiante que Hal teve de desviar os olhos.
Guy estava sentado ao lado de seu gêmeo. Guy era outro problema, resmungou Hal, mas de um tipo diferente do de Tom. Embora fosse freqüente a ocorrência de gêmeos na linhagem dos Courtney, e cada geração geralmente colocasse um par no mundo, Tom e Guy não eram idênticos. Ao contrário. Eram diferentes em quase todas as maneiras que Hal pudesse adivinhar.
Guy era de longe o mais bem-apessoado dos dois, com feições delicadas, quase femininas, e de corpo gracioso ao qual ainda faltavam o vigor e a força física de Tom. Por natureza, era cauteloso, ao ponto da timidez, embora fosse vivo e inteligente, com a capacidade de aplicar-se até a mais repetitiva das tarefas com toda a sua atenção.
Hal não tinha o costumeiro desdém das classes superiores para com os mercadores e agiotas, e não se sentia incomodado em encorajar um de seus filhos a fazer carreira nessa direção. Reconhecia que Guy poderia ser mais apto para uma tal vida. Era difícil imaginá-lo um guerreiro ou um marujo. Hal franziu a testa. Havia numerosas oportunidades na Companhia John para escriturários e secretários, empregos seguros e garantidos que poderiam levar a um rápido progresso, sobretudo para um jovem talentoso e ativo cujo pai fosse um diretor da Companhia. Falaria com Childs na semana vindoura, quando se encontrassem.
Hal pretendia seguir para Londres logo cedo, na manhã seguinte, assim que visse William casado com lady Alice, e concretizada a transferência do dote da moça para as propriedades de Courtney. Os cavalos já estavam prontos e Daniel Grande e Aboli poderiam arreá-los à carruagem. Partiriam dentro de uma hora, assim que Hal chamasse por eles. Mesmo na maior velocidade, contudo, levariam pelo menos cinco dias para chegar a Londres, e a reunião trimestral do Conselho da Companhia estava marcada para o primeiro dia do mês seguinte.
Teria de levar os meninos consigo, pensou, de repente, e foi a medida de suas preocupações que o fez tomar tal decisão. Seria uma providência temerária deixá-los em High Weald com William, sem ele próprio ali para mediar e proteger os garotos. Mesmo Dorian faria melhor em acompanhá-los, concluiu.
Baixou os olhos ternamente para o filho mais novo, aninhado no banco a seu lado, e recebeu em retorno um ensolarado e adorável sorriso. Dorian aconchegou-se um pouco mais a ele no banco duro de carvalho. E Hal sentiu-se estranhamente comovido pelo contato daquele corpinho. Pousou a mão casualmente sobre o ombro do menino. Era muito prematuro afirmár como seria aquele seu filho, pensou, mas parecia que teria todas as boas qualidades dos outros e poucas de suas fraquezas. Contudo, ainda era cedo demais para se dizer.
Então, naquele momento, a música do órgão o arrebatou, ao vibrar dramaticamente a marcha nupcial. Houve um burburinho, e irromperam murmúrios dos convidados, que se voltaram em seus assentos e fixaram pela primeira vez os olhos na noiva.
Embora o sol não despontasse claro por entre as copas das árvores e apenas uns poucos raios iluminassem as ameias mais altas e as torres da casa grande, toda gente acorreu para vê-los partir para Londres, desde William com a nova esposa a seu lado; Ben Green, o administrador da propriedade; Evan, o intendente da casa; até a mais simples das criadas da cozinha e os cavalariços.
Por ordem de status, todos desceram a escadaria principal que conduzia às portas da frente, e os servos mais inferiores foram reunidos em fileiras, ordenadamente, no gramado fronteiriço. Daniel Grande e Aboli estavam na boléia da carruagem e os cavalos soltavam vapores pelas narinas devido ao frio matinal.
Hal abraçou William brevemente, enquanto Alice, rosada e resplandecente de felicidade e amor, agarrava-se com adoração ao braço do novo marido. Segundo as instruções de seu pai, os meninos alinharam-se muito sérios atrás dele para apertar a mão do irmão mais velho e, depois, aos gritos de excitação, correram para a carruagem que os esperava.
- Posso viajar com Aboli e Daniel Grande? - implorou Tom, e seu pai concordou com indulgência.
- Eu também? - Dorian saracoteou ao lado dele.
- Você viaja comigo e com o mestre Walsh na carruagem.
O mestre Walsh era o tutor dos meninos, e Dorian tinha de encarar pela frente quatro dias de cativeiro com ele e seus livros de latim, francês e aritmética.
- Por favor, papai, por que não? - protestou Dorian, e então imediatamente respondeu a si mesmo: - Eu sei, eu sei, porque sou o mais novo!
- Vamos, Dorry - Guy tomou-lhe a mão e puxou-o para dentro da carruagem. - Eu o ajudarei com as lições.
As vicissitudes e injustiças da juventude foram de imediato esquecidas quando Aboli brandiu seu chicote e a carruagem balançou e sacudiu, com o cascalho a ranger sob as rodas de ferro. Guy e Dorian debruçaram-se à janela para acenar e gritar adeus a seus favoritos entre a equipe da casa, até que contornaram a curva e High Weald se escondeu da vista.
Na boléia, Tom sentava-se extasiado entre dois de seus amigos prediletos. Daniel Grande era um sujeito enorme com uma cabeleira prateada que escapava por debaixo de seu chapéu tricorne. Não tinha um único dente, de maneira que, quando mastigava, sua face queimada se dobrava como o fole de couro na forja do ferreiro. Sabia-se de sobejo que, apesar de sua idade, era o homem mais forte de Devonshire. Tom o vira levantar um cavalo recalcitrante no ar e jogá-lo de costas com todas as quatro pernas para o alto e segurá-lo ali sem esforço enquanto o ferreiro o ferrava. Fora contramestre de Francis Courtney e, quando o avô de Tom tinha sido assassinado pelos holandeses, Daniel Grande passara a servir ao filho, navegara pelos oceanos do sul com Hal Courtney, lutara com ele contra os pagãos e os holandeses, contra piratas e renegados e uma dúzia de outros inimigos. Fizera as vezes de babá para William e os gêmeos, carregara-os nas costas e os embalara com as mãos enormes porém gentis. Contara-lhes as mais encantadoras histórias com que poderia sonhar qualquer garotinho, construíra modelos de grandes navios, tão extraordinariamente reais em cada detalhe que parecia que poderiam a qualquer momento velejar para o horizonte em alguma instigante aventura, e carregar Tom para longe, na proa. Tinha o mais intrigante repertório de pragas e ditados que Tom repetia apenas na companhia de Dorian e Guy, pois recitá-los na presença de William ou de seu pai ou de qualquer outro adulto o levaria a receber uma imediata punição. Tom amava profundamente Daniel Grande.
Fora de sua família mais próxima, havia apenas uma outra pessoa a quem amava mais. Aboli. Este estava sentado do outro lado de Tom, segurando as rédeas com suas enormes mãos escuras.
- Segure o bacamarte. - Sabedor do prazer que lhe daria, Aboli estendeu a perigosa arma para Tom. Embora seu cano fosse mais curto que o braço de Tom, aquilo poderia arrasar de forma devastadora um bando de patos e derrubar mais de meia dúzia com a chuva de chumbos expelidos pela abertura da boca em forma de sino. - Se um assaltante de estrada tentar nos parar, encha-lhe a barriga de chumbo, Klebe.
Nota de Rodapé: Antiga arma de fogo de cano largo e em forma de sino (para facilitar o carregamento da munição).
Fim da Nota.
Tom quase sucumbiu à emoção de tal honra, e sentou-se ereto entre os dois homens, rezando silenciosamente pela oportunidade de usar a pesada arma que carregava no colo.
Aboli o chamara pelo apelido: "Klebe" queria dizer Falcão, no idioma das florestas da África. Era um nome que deixava Tom deliciado. Aboli havia lhe ensinado a língua da floresta, "porque", explicara, "é aonde o destino o levará". Aquilo fora profetizado por uma bela e sábia mulher, tempos antes.
- A África o espera. Eu, Aboli, devo prepará-lo para esse dia quando você pisar seu solo pela primeira vez.
Aboli era um príncipe de sua própria tribo. Os padrões de cicatrizes rituais que cobriam sua face negra em linhas e faixas sinuosas ascendentes eram prova de seu sangue real. Era um especialista com qualquer arma que lhe caísse nas mãos, das lanças africanas de luta ao mais fino florete de Toledo. Agora que os gêmeos tinham atingido a idade adequada, Hal Courtney confiara a Aboli a tarefa de ensinar-lhes a esgrima. Aboli treinara Hal na mesma idade. E William também. Moldara cada um deles em experientes espadachins. Tom tomara a lâmina com a mesma natural habilidade que seu pai e seu meio-irmão, mas enchia de pesar a Aboli que Guy não mostrasse a mesma avidez ou vontade de aprender.
- Quantos anos você acha que Aboli tem? - Dorian perguntara certa vez.
Tom respondera com toda a sabedoria de sua idade superior.
- É mais velho que papai. Deve ter pelo menos uns cem anos.
Aboli não tinha sequer um fio de cabelo em sua cabeça redonda, nem uma única mecha grisalha que lhe traísse a verdadeira idade, e embora as rugas e cicatrizes estivessem tão interligadas em suas feições como se fossem inextricáveis, seu corpo era magro e musculoso, sua pele, macia e lustrosa como obsidiana polida. Ninguém, nem mesmo o próprio Aboli, sabia quantos anos tinha. As histórias que contava eram ainda mais fascinantes que a melhor de Daniel Grande. Falava de gigantes e pigmeus, de florestas cheias de animais maravilhosos, grandes macacos que podiam torcer um homem como se fosse um gafanhoto, de criaturas com pescoços tão compridos que podiam comer as folhas do topo das árvores mais altas, de desertos onde diamantes do tamanho de maçãs reluziam ao sol como a água, e de montanhas feitas de puro ouro.
- Um dia irei lá! - Tom lhe dissera com fervor, ao final de uma daquelas narrativas mágicas. - Irá comigo, Aboli?
- Sim, Klebe. Navegaremos juntos até lá, um dia - prometera Aboli.
Agora que a carruagem pulava e sacolejava sobre o terreno irregular e passava espirrando lama pelos buracos da estrada, Tom se espremia entre os dois homens, tentando conter a excitação e a impaciência. Ao chegarem à encruzilhada antes de Plymouth, depararam com uma figura esquelética pendurada por correntes de uma forca, ainda de colete, calça e botas.
- Ele está pendurado aí vai fazer um mês no próximo domingo. - Daniel Grande ergueu seu chapéu tricorne para a caveira sorridente do assaltante executado, da qual os corvos tinham devorado a maior parte da carne. - Vai com Deus, John Warking. Dê uma boa palavra por mim ao Velho Nick!
Em vez de continuar para Plymouth, Aboli virou os cavalos para a larga e bem batida estrada que conduzia a Southampton e Londres.
Londres, a maior cidade do mundo. Cinco dias mais tarde, quando ainda se encontravam a uns 30 quilômetros de distância, viram sua fumaça no horizonte. Flutuava no ar e misturava-se às nuvens, tal qual a sombria mortalha de um campo de batalha. A estrada os conduziu ao longo das margens do Tâmisa, largo e movimentado, as águas efervescentes com a interminável procissão de pequenas embarcações, barcaças, chatas e escaleres, carregados de madeira e pedras de construção, com sacos de trigo e animais de pequeno porte, caixas, fardos e barricas, o comércio de uma nação. O tráfego do rio tornou-se mais intenso ao se aproximarem do cais de Londres, onde os navios de grande calado atracavam. Passaram pelas primeiras edificações, cada uma rodeada por campos abertos e jardins.
Podiam sentir o cheiro da cidade agora, e a fumaça lhes toldava os olhos, obscurecendo o sol. Cada chaminé cuspia seus negros rolos de fumo a aumentar a atmosfera de penumbra. O odor tornou-se mais forte. Cheiro de couro cru e de roupas novas nos fardos, de carne podre, e outros estranhos e intrigantes odores, de homens e cavalos, de ratos e galinhas, o fedor sulfuroso de carvão a queimar e de esgoto a céu aberto. As águas do rio tinham uma tonalidade de um marrom de excrementos, e a estrada tornara-se congestionada de charretes e carruagens, coches e carroças. Os campos abertos davam lugar a prédios infindáveis de pedras e tijolos, seus tetos lado a lado, e as ruas laterais eram tão estreitas que duas carruagens não podiam passar juntas. O rio quase desaparecia por entre os armazéns que se erguiam ao longo de cada margem.
Aboli manobrou a carruagem pela multidão, trocando alegres provocações e insultos com os outros condutores. Ao lado dele, Tom não conseguia embeber-se de tudo aquilo. Seus olhos esbugalhados percorriam os arredores, a cabeça torcida nos ombros, e ele tagarelava como um esquilo excitado. Hal Courtney cedera aos apelos de Dorian e permitira que o menino subisse ao teto da carruagem, onde se sentara atrás de Tom, e acrescentava seus gritos e risadas aos brados e exclamações de seu irmão mais velho.
Por fim, cruzaram o rio pela monumental ponte de pedra, tão impressionante que a correnteza batia contra seus pilares e rodopiava qual um redemoinho pelos píeres. Havia bancas por todo o seu comprimento, onde feirantes esfarrapados gritavam suas mercadorias aos passantes.
- Lagostas frescas! Ostras vivas e mariscos!
- Cerveja! Doce e forte. Beba por um penny. Morra de beber por dois pence.
Tom viu um homem a vomitar copiosamente, debruçado na lateral da ponte, e uma mendiga bêbada espalhar suas saias rasgadas em torno de si ao se agachar e urinar na sarjeta. Oficiais em uniformes esplêndidos dos regimentos dos guardas do rei Guilherme, de volta dos campos de batalha, caminhavam entre a multidão com belas garotas de chapéu pelo braço.
Navios de guerra estavam ancorados no rio, e Tom apontou-os a Daniel, todo excitado.
- Sim. - Daniel cuspiu o suco do tabaco mastigado para o lado. - É o velho Dreadnought, 74 canhões. Estava no rio Meadway. Aquele ali é o Cambridge... - Daniel enfileirou os nomes gloriosos, e Tom emocionou-se ao ouvi-los.
- Olhe lá! - gritou. - Deve ser a catedral de São Paulo. - Tom reconheceu-a das figuras em seus livros de escola. A cúpula estava apenas parcialmente completa, aberta para o céu e coberta com uma teia de aranha de andaimes.
Guy ouviu e apontou a cabeça pela janela da carruagem.
- A nova São Paulo - corrigiu. - A velha catedral foi completamente destruída no Grande Incêndio. Mestre Wren é o arquiteto, e a cúpula terá quase 120 metros de altura...
Mas a atenção de seus dois irmãos no topo da carruagem já se deslocara para outro foco.
- O que aconteceu àqueles edifícios lá? - Dorian apontou para as ruínas escuras de fumaça que eram interceptadas pelos edifícios mais novos ao longo das margens do rio.
- Foram todos queimados no incêndio - disse-lhe Tom. - Veja como os pedreiros estão trabalhando.
Cruzaram a ponte para as ruas movimentadas da cidade. Ali, a presença de veículos e gente era mais intensa ainda.
- Estive aqui antes do incêndio - Daniel lhes disse -, bem antes que vocês, crianças, ainda fossem concebidas. As ruas tinham a metade da largura de agora e o povo esvaziava os urinóis nas sarjetas... - Prosseguiu, para delícia dos meninos, com outros detalhes vívidos das condições que prevaleciam na cidade apenas vinte anos antes.
Em algumas das carruagens abertas pelas quais passaram, havia cavalheiros vestidos no rigor da moda e, com eles, damas em trajes brilhantes de seda e cetim, tão belas que Tom as fitou com um respeito temeroso, convicto de que não eram mortais, mas anjos celestes.
Algumas das outras mulheres que se inclinavam das janelas das casas que circundavam a rua não pareciam tão santas. Uma escolheu Aboli e berrou um convite a ele.
- O que ela quer mostrar a Aboli? - perguntou Dorian, num timbre esganiçado e de olhos bem abertos.
Daniel despenteou-lhe os cabelos de um ruivo flamejante.
- Melhor para você se jamais descobrir, sr. Dorry, pois nunca mais terá paz de novo.
Chegaram por fim à hospedaria de nome O Arado, e a carruagem sacolejou pelas pedras do calçamento enquanto Aboli manobrava até a entrada da estalagem. O estalajadeiro apressou-se em recebê-los, curvando-se e esfregando as mãos com alegria.
- Sir Hal, seja bem-vindo! Não os esperávamos senão amanhã.
- A estrada estava melhor do que receávamos. Fizemos uma boa viagem. - Hal desceu, resoluto. - Traga-nos uma bilha de cerveja para lavar a poeira das nossas gargantas - ordenou ao entrar na hospedaria e desabar numa das cadeiras da sala da frente.
- Tenho seu quarto costumeiro pronto para o senhor, sir Hal, e um para seus rapazes.
- Ótimo. Mande os cavalariços tomarem conta dos cavalos e providencie um quarto para os meus criados.
- Tenho uma mensagem de lorde Childs para o senhor, sir Hal. Ele me deu ordens expressas para que o avisasse no minuto em que o senhor chegasse.
- Você o fez? - Hal o encarou, atento.
Nicholas Childs era o presidente dos diretores da Companhia Inglesa das índias Orientais, mas a dirigia como se fosse seu feudo pessoal Era um homem de imensa riqueza e vasta influência na cidade e na Corte. A Coroa era a acionista majoritária da companhia e, conseqüentemente, Childs tinha os ouvidos e os favores do próprio soberano. Não era homem de trato fácil.
Tenho este minuto para mandar o recado a ele.
Hal bebeu a cerveja em grandes goles e arrotou educadamente por trás da mão.
Pode me mostrar os quartos agora. - Levantou-se, e o estalajadeiro conduziu-os pelas escadas, seguindo adiante e curvando-se em reverência a cada três passos.
Hal aprovou as acomodações. Seu quarto tinha um salão e uma sala de jantar privativa. Os meninos estavam no aposento oposto, e Walsh, o tutor, no quarto ao lado. Usariam o salão para sala de aula, pois Hal estava determinado a que não perdessem um só dia de seus estudos.
- Podemos sair e ver a cidade, por favor, papai? - implorou Tom.
Hal relanceou os olhos para Walsh.
- Eles terminaram as lições que lhes deu durante a viagem?
- Na verdade, o sr. Guy terminou. Mas os outros... - disse Walsh, naquela sua entonação formal.
- Completem a tarefa que mestre Walsh lhes deu - Hal admoestou os filhos -, até sua total satisfação, antes de colocarem um pé para fora da porta da frente.
Quando o pai se voltou, Tom fez uma careta às costas de Walsh.
O mensageiro de Nicholas Childs chegou antes que Aboli e Daniel tivessem terminado de carregar os pesados baús de couro que haviam retirado do teto da carruagem. O homem de libré inclinou-se numa reverência e estendeu a Hal um rolo de pergaminho lacrado. Hal deu-lhe uma moeda e quebrou com a unha o lacre de cera da Companhia das índias Orientais. A carta havia sido redigida por um secretário: Lorde Childs solicita o prazer de sua companhia para jantar às oito horas desta noite na Casa de Bombaim. Abaixo, havia uma nota na própria letra ornada de Childs: Oswald Hyde será o único outro convidado. N.C.
Hal assobiou baixinho: um jantar privativo com o velho e o chanceler de Sua Majestade, o rei Guilherme III.
- Algo de interessante está para acontecer. - Sorriu e sentiu uma ponta de excitação lhe percorrer as veias.
Juntos, Aboli e Daniel tinham raspado a lama da carruagem e escovado os cavalos até que, de novo, sua pelagem brilhava como metal polido. Hal demorou-se longo tempo no banho e teve as roupas preparadas pelo camareiro antes que fosse hora de arrumar-se para cumprir seu compromisso com Childs.
A Casa de Bombaim erguia-se por detrás de altos muros e situava-se em meio a imensos jardins dentro de um lance de pedra das Hospedarias da Corte, uma caminhada fácil desde a sede da Companhia das índias Orientais, na rua Leadenhall. Havia guardas nos altos portões de ferro batido, mas que os abriram tão logo Aboli anunciou o nome do patrão. Três porteiros esperavam nas portas duplas da casa para introduzir Hal e pegar-lhe a capa e o chapéu. Então, o mordomo o conduziu numa marcha ao longo de uma sucessão de grandes aposentos adornados de espelhos e de imensas pinturas a óleo de navios, batalhas e paisagens exóticas, e iluminados por uma floresta de velas de cera de abelha em candelabros de cristal e por lamparinas douradas que pendiam de estátuas de ninfas e de guerreiros negros.
Ao avançarem, os salões públicos deram lugar a ambientes mais sóbrios, e Hal percebeu que haviam adentrado as áreas privativas da mansão, mais próximas das cozinhas e dos alojamentos dos criados. Por fim, pararam diante de uma porta tão pequena e insignificante que ele poderia ter passado por ela facilmente sem vê-la, mas na qual o mordomo bateu por uma vez.
- Entre! - ecoou uma voz familiar lá do fundo, e Hal, ao cruzar o limiar, descobriu-se num pequeno mas ricamente decorado gabinete de trabalho. As paredes cobertas de painéis traziam dependuradas tapeçarias da Arábia e das índias, e o espaço era apenas suficiente para acomodar a larga mesa cheia de pratos ornados com prata e terrinas douradas dos quais se desprendiam suculentos aromas e apetitosas nuvens de vapor, e as poltronas confortáveis.
- Pontual como de costume - lorde Childs o cumprimentou. Estava sentado à cabeceira da mesa, dominando a enorme cadeira estofada.
- Perdoe-me por não me levantar para saudá-lo adequadamente, Courtney. É a maldita gota de novo. - Indicou o pé, enrolado em bandagens, a descansar numa banqueta. - Conhece Oswald, é claro.
- Já tive esse prazer. - Hal curvou a cabeça para o chanceler. - Boa noite, milorde. Nós nos conhecemos na casa do sr. Samuel Pepys, em agosto findo.
- Boa noite, sir Henry. Lembro-me bem do nosso encontro. - Lorde Hyde sorriu e lhe endereçou um cumprimento com a cabeça.
Era um início propício para a noite, percebeu Hal.
Childs indicou-lhe a cadeira a seu lado com um gesto informal.
- Sente-se aqui, para que possamos conversar. Tire seu casaco e a peruca, homem. Ponha-se confortável. - Relanceou os olhos para os bastos cabelos escuros de Hal, apenas ligeiramente salpicados de fios prateados. - Ora, claro, você não usa peruca, droga de sujeito prático. Somos todos escravos da moda, nós que infelizmente vivemos na cidade.
Os dois outros homens tinham as cabeças quase rapadas e estavam em mangas de camisas, os colarinhos soltos. Childs trazia um guardanapo enrolado em torno do pescoço, e ninguém esperou por Hal antes de voltar a comer. A julgar pela pilha de conchas de ostra vazias, Childs já devorara várias dúzias. Hal tirou seu casaco, entregou-o a um criado e, em seguida, se acomodou na cadeira indicada.
- O que lhe apraz, Courtney, o vinho do Reno ou da Madeira? - Childs fez sinal a um dos criados que enchesse o copo de Hal.
Hal escolheu o vinho alemão. Sabia por experiência passada que seria uma longa noite e que o Madeira era traiçoeiramente doce porém forte. Assim que seu copo foi abastecido e um prato de enormes ostras de Colchester colocado à sua frente, Childs dispensou os empregados com um aceno, para que pudessem conversar livremente. Quase de imediato estavam empenhados nas vexatórias questões sobre a guerra com a Irlanda. O deposto rei Jaime viajara da Irlanda para a França com o propósito de ali arregimentar um exército entre os católicos que o apoiavam, e estava atacando as forças leais ao rei Guilherme. Oswald Hyde lamentava o custo da campanha, mas Childs vibrava de felicidade pela defesa bem-sucedida de Londonderry e Enniskillen pela armada de Sua Majestade.
- Pode estar certo de que tão logo o rei tome conta da Irlanda, ele voltará sua atenção total para a França. - Oswald Hyde chupou outra ostra da concha e pareceu infeliz, uma expressão que lhe vinha com naturalidade. - Terei de voltar ao Parlamento para votar outro orçamento.
Embora vivesse no campo, Hal mantinha-se bem informado sobre os acontecimentos do dia, pois tinha muitos bons amigos em Londres e correspondia-se com eles regularmente. Era capaz de seguir os meneios e turnos da discussão e mesmo de fazer suas próprias considerações a respeito.
- Temos pouca escolha quanto ao problema - disse. - Assim que Luís invadiu o Palatinado, fomos forçados a agir contra ele de acordo com os termos da Aliança de Viena. - Havia expressado uma opinião com a qual os outros concordavam e sentiu tal aprovação, embora Hyde continuasse a se queixar das despesas de uma guerra continental.
- Concordo que deva haver guerra com a França, mas, em nome de Deus, ainda não pagamos os custos dos embates contra os holandeses e do incêndio. O Preto e Jamie nos deixaram com débitos em cada banco da Europa. - O Preto era o apelido de Carlos II, o Monarca Feliz. Jamie era Jaime II, que o sucedera e governara por três escassos anos antes que seu escancarado catolicismo romano o forçasse a fugir para a França. Guilherme, o mandatário das Províncias Unidas dos Países Baixos e o quarto em linha de sucessão, fora convidado, com Mary, sua esposa, a assumir o trono da Inglaterra. Mary era filha de Jaime, o que lhes tornava o reclamo do trono de todo válido, e, claro, eram protestantes assumidos.
Assim que as ostras tinham sido consumidas, Childs chamou o criado para servir os outros pratos. Caiu sobre um linguado de Dover como se o peixe fosse um inimigo, e depois eles atacaram o carneiro e a carne de vaca, além de três diferentes sabores de sopa das terrinas douradas para ajudar na mastigação. Um bom clarete substituiu o quase insípido vinho alemão.
Hal bebericou de seu copo, pois a conversa era fascinante e proporcionava uma perspectiva da estrutura oculta do poder e da política mundial aos quais raramente ele tinha acesso. Não permitiria nem que o mais fino dos vinhos lhe turbasse a mente. A conversa desviou-se da coroação de Pedro como czar da Rússia para as incursões dos franceses
Notas de Rodapé: Região da Alemanha, na margem esquerda do Reno. O Palatinado foi devastado pelos exércitos de Luís XIV, rei da França (1687-1688).
Fim da Nota.
no Canadá, do massacre dos colonos em Lachine pelos índios iroqueses para a rebelião dos habitantes de Maharashtra contra o governo do imperador mongol Aurangzeb, na índia.
Esta última parte das notícias conduziu a conversa diretamente para a verdadeira razão daquele encontro, os negócios e os destinos da Companhia Inglesa das índias Orientais. Hal sentiu a mudança nos companheiros pela maneira com que o fitavam. Seus olhares sobre ele tornaram-se agudos e perscrutadores.
- Creio que você tem uma considerável parcela de ações da Companhia, não é assim? - perguntou inocentemente lorde Hyde.
- Fui bastante feliz em adquirir umas poucas ações da Companhia quando voltei do Oriente, nos anos setenta - admitiu Hal, com modéstia -, e, desde então, de tempos em tempos, quando a sorte me sorri, tenho acrescentado algumas aos meus pertences.
Childs dispensou o discurso.
- Todo mundo tem ciência dos feitos memoráveis, seus e de seu pai, durante e depois das guerras holandesas, e dos consideráveis aumentos de seus bens em decorrência dos preços da guerra. E dos frutos de suas viagens de negócios às ilhas das especiarias e às costas orientais do continente africano. - Voltou-se para o chanceler. - Sir Henry controla quatro e meio por cento das ações da Companhia, o que não inclui o dote de Alice Grenville, que recentemente desposou seu filho mais velho - concluiu secamente.
Hyde pareceu impressionado como se mentalmente calculasse o valor monetário que aquilo representava.
- Um valoroso e diligente capitão do mar, você provou ser - .murmurou Hyde. - É um investidor prudente. Mereceu totalmente tais recompensas. - Encarava Hal com um olhar penetrante, e Hal percebeu que se aproximavam por fim do real propósito da reunião.
- Mais do que tudo, seus interesses pessoais estão estreitamente vinculados aos nossos - o chanceler continuou a esfregar seu crânio rapado para que os fios curtos e duros coçassem seus dedos. - Somos todos acionistas, sendo a Coroa o maior de todos. Por conseguinte, as notícias recentes das índias Orientais nos afetam muito dolorosamente.
Hal sentiu uma súbita constrição de pavor no peito. Endireitou-se na cadeira e sua voz saiu tensa ao murmurar:
- Perdoe-me, milorde, mas cheguei a Londres somente esta manhã e não soube de nenhuma notícia.
- É afortunado então, pois as notícias não são boas - resmungou Childs, e levou um pedaço de carne, pingando sangue, até a boca. Mastigou-o, engoliu-o e então tomou um gole de seu clarete. - Duas semanas atrás, o navio Yeoman ofYork, da Companhia, atracou nas docas das índias Orientais. Saiu faz 62 dias de Bombaim com uma carga de algodão e cochonilha e despachos de Gerald Aungier, o governador da colônia. - Childs franziu a testa e meneou a cabeça, relutante em pronunciar as próximas palavras. - E trouxe a notícia: perdemos dois navios - o Minotauro e o Albion Spring.
Hal caiu de costas na cadeira como se tivesse levado um soco na cabeça.
- Esses dois eram o orgulho da frota! - exclamou.
Era quase impossível de acreditar. Aqueles sólidos e magníficos navios eram os senhores dos oceanos, construídos não apenas para o transporte de carga, mas para o prestígio da grande e próspera Companhia que pertencia aos homens que ali se encontravam e à Coroa britânica, sob cuja bandeira navegavam.
- Naufragados? - arriscou Hal.
Até mesmo o poderio da Companhia seria abalado pela magnitude da perda. O afundamento de um de tais navios era um golpe terrível. A perda de dois era um desastre, talvez do montante de umas 100 mil libras com as cargas.
- Onde naufragaram? - indagou. - No Banco das Agulhas? Nos recifes de coral das Mascarenhas?
- Não naufragaram - disse Childs, com voz de mau agouro.
- O que aconteceu então?
- Piratas - explicou Childs. - Corsários.
- Tem certeza? Como podem saber disso?
Os navios mercantes da rota Inglaterra - índia eram construídos para serem embarcações velozes e contavam com armamento pesado para uma tal contingência. Seria necessária uma batalha naval para capturá-los. Quando aquela notícia se espalhasse, o valor das ações da Companhia despencaria. Seus próprios investimentos seriam reduzidos de mil, não, de 10 mil libras.
- Por meses até agora, para nós, ambos os navios estavam atrasados. Não tínhamos nenhuma notícia de qualquer um deles - prosseguiu Childs. - Mas parece que um único marujo escapou do Minotauro. Fazia quase quarenta dias que estava no mar, agarrado a algum pedaço de madeira, e sobreviveu bebendo apenas umas poucas gotas de chuva e comendo peixe cru que conseguia apanhar, até que foi finalmente lançado à costa selvagem da África. Caminhou por semanas pelo litoral até alcançar a colônia portuguesa em Lobito. Lá, conseguiu arranjar lugar numa chalupa para Bombaim. Contou sua história ao governador Aungier, que mandou o marujo e seus despachos de volta para nós, a bordo do Yeoman of York.
Onde está esse marujo agora? - perguntou Hal. - Falou com ele? É confiável?
Childs ergueu a mão para interromper o fluxo de perguntas.
- Está em um lugar seguro e bem cuidado; contudo, não o queremos contando sua história pelas ruas de Londres ou nas mesas de um bar. - Hal concordou: era de bom senso. - É, claro, falei com ele à exaustão. Parece um camarada sensato, forte e engenhoso, se a sua versão é verdadeira, o que creio que é.
- O que ele diz que aconteceu?
- Em essência, o Minotauro encontrou um pequeno galeão árabe à deriva, perto da ilha de Madagascar, e recolheu a tripulação de uns doze homens antes que a embarcação afundasse. Mas, na primeira noite, os sobreviventes assumiram o controle do convés durante a troca de turno. Haviam escondido armas nas roupas e cortaram as gargantas dos vigias. Claro, a tripulação do Minotauro teria poucos problemas em recuperar o navio de um bando ínfimo de piratas, porém uma frota de pequenos escaleres quase de imediato surgiu das trevas, obviamente em resposta a um sinal, e os piratas já a bordo impediram a tripulação do navio de disparar os canhões ou, por outro lado, de se defender até que era tarde demais.
- E como esse homem escapou?
- A maioria dos homens do Minotauro foi massacrada, mas esse marujo, seu nome é Wilson, convenceu o capitão pirata de que iria integrar seu bando e conduzi-lo a outro alvo de saque. Wilson, então, se aproveitou da primeira oportunidade para escapar e esgueirou-se de bordo por uma vigia das gaiútas de fogo, com uma pequena barrica de madeira como bóia -, Childs abriu uma caixinha de prata e tirou um longo objeto marrom que parecia um pedaço de galho seco. - Folhas de tabaco enroladas em bastão - explicou. - Espanhol, de suas colônias na América. Chamam a isto de charuto. Começo a apreciá-lo mais que ao cachimbo. Quer experimentar? Aceite, deixe-me prepará-lo para você. - Atrapalhou-se ao cheirar e aparar uma ponta do rolo escuro numa das pontas.
Hal aceitou e cheirou o estranho rolete com suspeita. O aroma era surpreendentemente agradável. Seguiu o exemplo de Childs e acendeu a ponta do charuto no fósforo em chama que ele lhe estendeu. Tirou uma baforada com cautela e descobriu que, embora estivesse aborrecido por aquilo que acabara de saber, o gosto era, em seu entender, melhor que qualquer cachimbo que já fumara.
Ambos ficaram por algum tempo a tirar baforadas, saboreando o charuto, o que deu a Hal uns poucos minutos para considerar o problema que Childs lhe apresentara.
- O senhor disse que dois navios foram perdidos - disse.
- Sim - concordou Childs. - O Albion Spring semanas antes do Minotauro. Tomado pela mesma gangue de "corta-goelas".
- Como pode ter certeza disso?
- O capitão pirata vangloriou-se de seus feitos ao nosso homem, Wilson.
Depois de outro longo silêncio, Hal perguntou:
- O que pretende fazer a respeito, milorde? - Então, sua pulsação acelerou-se ao ver os dois homens trocarem olhares. Intuiu, pela primeira vez, a razão pela qual tinha sido convidado para aquele encontro íntimo.
Childs limpou a gordura da carne do queixo com as costas da mão e, então, se debruçou sobre Hal com ar conspiratório.
- Vamos enviar alguém para negociar com aquele pirata, Jangiri. Esse é o nome do facínora - Jangiri.
- Quem irá? - perguntou Hal, já sabendo a resposta.
- Ora, você, naturalmente.
- Mas, milorde, sou agora um fazendeiro e um proprietário rural...
- Há poucos anos apenas - Hyde o interrompeu. - Antes disso, você era um dos mais diligentes marinheiros dos oceanos do sul e do Oriente.
Hal ficou em silêncio. Era verdade, claro. Aqueles dois homens sabiam tudo a respeito dele. Poderiam quase certamente detalhar cada viagem que ele fizera, e Hyde teria em seus registros cada imposto sobre carga e preciosidades que ele pagara ao Tesouro.
- Meus senhores, tenho uma família, quatro filhos para criar e nenhuma mulher com quem partilhar a responsabilidade. Esta é a razão pela qual eu não mais me aventuro ao mar.
Sim, sabemos por que desistiu do mar, Courtney, e receba minhas mais profundas condolências pela perda de sua esposa. Porém, por outro lado, mesmo seu filho mais jovem deve agora ter a idade que você tinha quando partiu pela primeira vez para o mar. Não há razão para que não possa encontrar lugar para cada um deles a bordo de um navio bem equipado.
Aquilo também era verdade. Childs planejara claramente sua estratégia com grande atenção nos detalhes, mas Hal estava determinado a não lhe tornar as coisas fáceis.
Não posso abandonar minhas responsabilidades em High Weald.
Sem uma cuidadosa administração de minhas propriedades, eu poderia ficar pobre.
- Meu caro sir Henry - Hyde sorriu -, meu próprio filho freqüentou o Colégio do Rei com o seu William. São ainda grandes amigos e se correspondem regularmente. Sei que a administração de suas propriedades se encontra quase exclusivamente a cargo do jovem William, e que você passa a maior parte de seu tempo caçando, praticando a falcoaria, lendo e entregando-se às reminiscências com seus antigos companheiros marujos.
Hal enrubesceu de raiva. Era essa a visão de William para seu valor e contribuição na administração de High Weald e das minas?
- Se esse camarada, Jangiri, não fizer acordo, em breve estaremos todos pobres - emendou Childs. - Você é o melhor homem para a tarefa, e todos sabemos disso.
- A repressão à pirataria é da obrigação da Marinha Real - retorquiu Hal, teimosamente.
- Na verdade, é -, concordou Hyde. - Mas, no fim do ano, estaremos em guerra com a França, e a Marinha Real terá assuntos mais prementes com os quais lidar. Podem se passar vários anos antes que o Almirantado volte sua mente para o policiamento dos oceanos distantes, e não nos atrevemos a esperar por tanto tempo. Jangiri já tem dois de nossos navios de grande porte sob seu comando. Quem não poderá dizer que dentro de um ano ou dois ele não esteja forte o suficiente para atacar Bombaim ou nossas feitorias na Costa do Carnático? Suas ações da Companhia valerão menos ainda, se ele conseguir.
Nota de Rodapé: Região histórica da índia.
Fim da Nota.
Hal remexeu-se inquieto na cadeira e tamborilou os dedos no pé de seu copo de vinho. Aquilo era o que vinha desejando secretamente durante os últimos meses de tédio e inatividade. Seu sangue pulsava, a mente turbilhonava, esvoaçando de idéia em idéia como um colibri numa árvore florida, de flor em flor, a lhe sugar o néctar.
- Não tenho navio - disse. Tinha vendido o Golden Bough quando voltara a Devon. Era uma embarcação cansada e seu casco se mostrava carcomido pela maresia. - Eu precisaria de um navio igual ou superior ao Minotauro ou ao Albion Spring.
- Posso lhe oferecer uma esquadra de dois belos navios - Childs rebateu com facilidade. - Sua capitânia seria o Seraph, o mais extraordinário navio que a Companhia já construiu. Trinta e seis canhões, e rápido como uma gaivota. Hoje mesmo está sendo equipado nos estaleiros de Deptford. Pode estar pronto para ser lançado ao mar no final do mês.
- E o outro? - perguntou Hal.
- O Yeoman of York, o mesmo navio que trouxe aquele camarada, Wilson, de volta de Bombaim. Sua reforma será completada no fim da semana e estará pronto em seguida. Também com 36 canhões. Sob o comando do capitão Edward Anderson, um excelente marinheiro.
- Eu o conheço bem - concordou Hal. - Mas sob qual autoridade navegarei? - Hal estava determinado a resistir um pouco mais.
- Ao meio-dia de amanhã - prometeu Hyde -, posso entregar-lhe uma permissão assinada de próprio punho por Sua Majestade, conferindo-lhe autoridade para localizar e destruir ou tomar como prêmio os navios e propriedades dos corsários.
- Quais os termos do prêmio? - Hal dirigiu toda sua atenção ao chanceler.
- Um terço para a Coroa, um terço para a Companhia das índias Orientais e o último terço para você e sua tripulação - sugeriu Hyde.
- Se eu tiver de ir, e não há garantia de que o farei, gostaria de ter metade para mim e meus homens.
- Então é assim. - Hyde parecia aborrecido. - Você é duro na barganha. Poderemos discutir isso quando concordar em aceitar a permissão.
- Gostaria de poder negociar por minha própria conta durante a viagem.
Era uma das normas da política da Companhia que seus capitães não se envolvessem em negócios privados e, assim, se arriscassem a um conflito de interesses e de lealdade. O semblante de Childs tornou-se sombrio e seu maxilar cerrou-se de indignação.
- Em nenhuma circunstância. Não posso concordar com isso. Seria um precedente perigoso. - Então, percebeu que Hal lhe preparara a armadilha e que ele se encaminhara diretamente para dentro dela.
Muito bem - disse Hal, com tranqüilidade. - Esquecerei esse direito se me conceder a metade do prêmio. - Childs engoliu em seco e espumou diante da ousadia, mas Hyde sorriu com ar lúgubre.
Ele o tem na mão, Nicholas. Um ou o outro, o que será? O dinheiro do prêmio ou o direito de comerciar?
Childs ruminava os pensamentos com fúria. O direito do prêmio poderia de longe ultrapassar qualquer lucro comercial que aquele marinheiro ladino e habilidoso poderia obter ao longo das costas asiática e africana, mas o direito de negociar era sagrado e reservado tão-somente à Companhia.
- Muito bem - concordou, por fim. - Metade do prêmio... porém nada de lucros do comércio.
Hal fez uma carranca, mas estava muito satisfeito. Concordou com aparente relutância.
- Precisarei de uma semana para pensar sobre o assunto.
- Você não tem uma semana - protestou Hyde. - Precisamos da sua resposta esta noite. Sua Majestade requer uma resposta para a reunião em seu gabinete pela manhã.
- Há muito a considerar antes que eu possa aceitar a permissão. - Hal recostou-se e cruzou os braços num gesto de quem encerra a discussão. Se pudesse retardar as coisas, haveria uma chance de conseguir arrancar outras concessões.
- Henry Courtney, barão de Dartmouth - murmurou Hyde. - O título não tem um apelo satisfatório?
Hal descruzou os braços e inclinou-se para a frente, tomado de tal surpresa que permitiu que a ansiedade lhe iluminasse as feições. Um título nobiliárquico! Nunca antes se permitira sonhar com isso. Era, no entanto, uma das poucas coisas neste mundo que lhe faltava.
- Está caçoando de mim, senhor? - murmurou. - Por favor, esclareça o que quer dizer.
- Aceite imediatamente a permissão que lhe oferecemos e traga a cabeça daquele bandido, Jangiri, numa barrica de picles, e eu lhe dou minha palavra solene de que terá um baronato. O que me diz, sir Hal?
Hal começou a sorrir. Era um plebeu, embora do mais alto escalão, mas aquele próximo passo escada acima lhe abriria as portas da nobreza e da Casa dos Lordes.
- É o senhor quem barganha de forma dura, milorde. Não posso resistir por mais tempo nem a seus elogios persuasivos nem ao meu dever. - Ergueu o copo, e os outros dois homens lhe seguiram o exemplo. - Bons ventos e uma boa caçada - sugeriu como brinde.
- Ouro e glória reluzentes! - Hyde sugeriu um melhor, e todos esvaziaram seus copos.
Hyde enxugou os lábios no guardanapo e perguntou:
- Não foi ainda apresentado à Corte, foi, sir Hal? - Quando Hal meneou a cabeça, o chanceler prosseguiu: - Se deve se tornar um dia um par da realeza, devemos providenciar para que isso aconteça antes de sua partida de Londres. Às duas horas da tarde na sexta-feira vindoura, no Palácio de St. James. O rei fará o recrutamento das tropas antes de viajar à Irlanda para assumir a campanha contra seu padrasto. Mandarei um homem ao seu hotel para levá-lo até ao palácio.
Alfred Wilson era uma surpresa. Com um tal nome, Hal tinha esperado um inglês forte com um sotaque pronunciado de Yorkshire ou Somerset. A pedido de Hal, Childs liberara o marujo de onde quer que se encontrasse confinado e o mandara até Hal, na hospedaria. Estava ali de pé, no centro do salão privativo, e torcia seu chapéu nas mãos escuras e finas.
- É inglês? - perguntou Hal.
Wilson tocou respeitosamente a basta franja de cabelos negros que lhe caía pela testa.
- Meu pai nasceu em Bristol, capitão.
- Mas não sua mãe, não é assim? - adivinhou Hal.
- Ela era indiana, uma mongol muçulmana, senhor.
Wilson era mais moreno até mesmo que o próprio William de Hal, e tão bonito quanto.
- Fala o idioma materno, Wilson?
- Sim, senhor, e escrevo. Desculpe-me, mas minha mãe era de alta estirpe, senhor.
- Então você escreve em inglês também? - Hal gostava do que via e, se a história da fuga de Jangiri fosse verdadeira, o homem era na verdade diligente e esperto e seria de valia a bordo.
- Sim, senhor.
Hal surpreendeu-se; poucos marujos eram alfabetizados. Examinou, pensativo o homem.
- Fala alguma outra língua?
- Só árabe - Wilson deu de ombros, num gesto autodepreciativo.
- Cada vez melhor. - Hal sorriu e verteu a conversa para o árabe, para testá-lo. O idioma lhe fora ensinado por sua primeira esposa, Judith, e ele havia aprimorado seu conhecimento nas muitas viagens pelas costas da África e da Arábia. - Onde aprendeu? - Sua língua estava um pouco enferrujada pelo desuso dos tons guturais do árabe.
- Naveguei por muitos anos com uma tripulação composta na maioria de árabes. - O domínio do idioma por Wilson era rápido e fluente.
- Que posto ocupava no Minotauro?
- Oficial da guarda, senhor.
Hal estava entusiasmado. Para ocupar o posto de um oficial da guarda, naquela idade, devia ser brilhante. Preciso dele, decidiu Hal.
- Quero saber tudo de você. Conte-me a respeito da tomada do Minotauro. Porém, mais importante, quero que me fale sobre Jangiri.
- Perdoe-me, capitão, mas isso pode demorar um pouco.
- Temos o dia todo, Wilson. - Hal apontou para o banco contra a parede. - Sente-se ali. - Quando o homem hesitou, Hal insistiu: - Você disse que levaria tempo. Sente-se, homem, e desembuche.
Levou quase quatro horas, e Walsh, o tutor, ficou sentado à mesa, a tomar notas, segundo as instruções de Hal. Wilson falava com tranqüilidade e sem emoção até que começou a descrever o assassinato de seus companheiros pelos piratas. Sua voz então se entrecortou, e quando Hal ergueu os olhos, surpreendeu-se ao ver que os de Wilson estavam brilhantes de lágrimas. Pediu uma jarra de cerveja para aliviar a garganta do homem e deu-lhe tempo para se recompor. Wilson empurrou a bilha para o lado.
- Não tomo bebida forte, senhor.
Mais uma surpresa agradável, pensou Hal. A bebida era o demônio da maioria dos marujos.
- Nunca? - perguntou.
- Não, senhor. Minha mãe, compreende, senhor?
- Você é cristão? "
- Sim, senhor, mas não posso me esquecer dos ensinamentos de minha mãe.
- Sim, entendo. - Por Deus, preciso desse sujeito, pensou Hal. É uma gema preciosa entre os homens. Então, uma idéia lhe ocorreu. Durante a viagem, trataria de ensinar árabe a seus filhos. Iriam precisar, na costa.
Quando terminaram, Hal tinha um vívido retrato daquilo que sucedera a bordo do Minotauro e do homem a quem iria confrontar.
- Quero que repasse tudo isso em sua cabeça, Wilson. Se houver alguma coisa que tenha esquecido, qualquer detalhe que possa ser útil, quero que volte e me conte.
- Muito bem, capitão. - Wilson levantou-se para sair. - Onde eu o encontrarei, senhor?
Hal hesitou.
- Espero que possa manter sua língua calada, não? - perguntou, e quando o homem concordou, prosseguiu: - Sei que foi impedido de contar a história do assalto ao Minotauro. Se puder me dar sua palavra de que não vai respingar sua odisséia em cada ouvido disponível, então pode se juntar à minha tripulação. Estou à procura de bons oficiais de guarda. Concorda em participar da minha equipe, rapaz?
Wilson sorriu quase timidamente.
- Ouvi falar do senhor antes, capitão - disse. - Sabe, meu tio viajou com seu pai a bordo do Lady Edwina e com o senhor no Golden Bough. Contou muitas coisas a seu respeito.
- Quem foi seu tio?
- Ned Tyler, capitão, e ainda está vivo.
- Ned Tyler! - exclamou Hal. Não ouvia aquele nome fazia cinco anos. - Onde está ele?
- Em sua fazenda perto de Bristol. Comprou-a com o dinheiro do prêmio que ganhou a bordo do seu navio, capitão.
Ned Tyler era um dos melhores com quem Hal havia navegado, e ele maravilhou-se de novo de ver quanto era pequena e estreita a fraternidade do mar.
- Então, o que me diz, Wilson? Assumirá o posto de vigia no Seraph?
- Gostaria muito de navegar com o senhor, capitão.
Hal vibrou de satisfação.
- Diga ao meu imediato, Daniel Pescador, para providenciar um alojamento para você até que possamos mudar para as nossas acomodações no navio. Depois, você pode exercitar sua escrita para escrever uma carta a seu tio Ned. Diga-lhe para parar de tirar leite das vacas e de arar a terra e enfiar-se nas botas de marujo de novo. Eu preciso dele.
Depois que Wilson desceu a estreita escada do salão, Hal caminhou até a pequena janela que dominava o quintal pavimentado do estábulo. Ficou ali, mãos trançadas atrás das costas, a observar Aboli ensinar aos gêmeos a arte da esgrima. Guy estava sentado numa pilha de feno, com Dorian a seu lado. Devia ter terminado sua vez, pois tinha a face vermelha e o suor lhe empapava a camisa com manchas escuras. Dorian dava-lhe tapinhas de congratulações nas costas.
Hal continuou a olhar enquanto Aboli exercitava Tom no manejo das armas, a lhe ensinar os seis golpes de esquiva e o repertório completo de cutiladas e arremessos. Tom suava ligeiramente quando, por fim, Aboli o encarou e fez sinal para iniciar o embate.
- Em guarda, Klebe!
Lutaram, trocando meia dúzia de golpes inconclusivos. Hal podia ver que Aboli moderava sua habilidade para emparelhar-se com Tom, mas o rapaz já se mostrava cansado e perdia o ritmo quando Aboli o advertiu:
- O último, Klebe. Desta vez, tenho a intenção de atingi-lo!
As feições de Tom se endureceram e ele postou-se em guarda, na quarta posição do Manual das Armas, a ponta do florete erguida, a observar os olhos negros de Aboli para ler seu movimento antes que ele o desferisse. Tocaram as lâminas, e Aboli avançou, o pé direito à frente, gracioso como um dançarino, num ataque simulado ao alto e, então, quando Tom se esquivou com coragem e contra-atacou, Aboli encolheu-se com gestos fluidos e revidou linha da cintura, rápido como uma víbora. Tom tentou corrigir a quarta posição baixa de esquiva, mas faltou à sua mão um décimo de velocidade. Ouviu-se o tinir de aço contra aço e a lâmina de Aboli parou a uns dois centímetros do mamilo ao tocar a camisa branca do oponente.
- Rápido, Klebe. Como um falcão - repreendeu-o Aboli ao ver que Tom se recobrava com certo vagar.
Aboli tinha o pulso em pronação e a lâmina ligeiramente desalinhada. Parecia que deixava uma abertura para um golpe no ombro direito. Tom estava furioso e com uma expressão ameaçadora pelo golpe que o atingira, mas percebeu a abertura.
Mesmo do alto da janela, Hal viu o filho cometer o erro de prenunciar seu movimento com um ligeiro erguer do queixo.
- Não, Tom, não! - murmurou.
Aboli se utilizava da mesma isca com que atraíra o próprio Hal, tantas vezes, quando este tinha a idade de Tom. Com a consumada avaliação de distância, Aboli se colocara a cinco centímetros além do alcance do golpe de Tom ao seu ombro: iria atingi-lo de novo se Tom tentasse atacá-lo.
Hal exultou de satisfação quando o filho deu um passo duplo, fingiu mirar o ombro, mas, com a agilidade de um macaco e força extraordinária do pulso, para a sua idade, mudou o ângulo de ataque e em vez disso mirou os quadris de Aboli.
- Você quase conseguiu! - murmurou Hal, quando Aboli foi forçado a esticar-se todo para se proteger com um golpe de esquiva circular que pegou a lâmina de Tom e lançou-a de volta à linha original de ataque.
Aboli recuou e encerrou o embate. Balançou a cabeça para que o suor escorresse da calva e mostrou os dentes luzidios num enorme sorriso.
- Ótimo, Klebe. Nunca aceite o convite de um inimigo. Muito bem! Você chegou perto. - Abraçou Tom pelos ombros. - É o bastante por um dia. Mestre Walsh espera por você para que pegue a pena em lugar do florete.
- Mais uma rodada, Aboli! - implorou Tom. - Desta vez eu o pegarei, de acordo com as regras. - Mas Aboli o empurrou na direção da porta da hospedaria.
- Aboli tem o tirocínio perfeito - disse Hal a si mesmo com aprovação. - Não os forçará além da idade e da força. - Tocou a cicatriz branca no lóbulo da orelha direita e sorriu com malícia. - Porém não está longe o dia em que arrancará uma gota ou duas do suco de amora do sr. Thomas, como certa vez arrancou do meu, para moderar a bela opinião do rapaz a respeito de suas próprias habilidades.
Hal abriu o gradil e debruçou-se na janela.
- Aboli, onde está Danny Grande?
Aboli enxugou o suor da testa com o braço.
- Estava trabalhando na carruagem. Depois, saiu com aquele camarada novo, Wilson.
- Encontre-o e traga-o até aqui. Há algo que preciso dizer a vocês dois.
Um pouco mais tarde, quando os dois homenzarrões se apresentaram, Hal ergueu os olhos do documento sobre a escrivaninha.
- Sentem-se. - Indicou o banco, e eles se sentaram lado a lado como dois estudantes crescidos prestes a serem castigados. - Tive uma conversa com Mabel. - Hal dirigiu-se primeiro a Daniel. - Ela me disse que não pode agüentar outro inverno com você zanzando em torno da cabana como um urso aprisionado. Ela me implorou para levá-lo para algum lugar distante.
Daniel pareceu estarrecido. Mabel era sua esposa, a cozinheira-chefe de High Weald, uma mulher rechonchuda e alegre de faces coradas.
- Ela não tinha o direito... - Daniel começou, zangado, e então abriu um sorriso ao ver o faiscar dos olhos de Hal.
Hal voltou-se para Aboli.
- Quanto a você, seu demônio negro, o prefeito de Plymouth me disse que houve uma praga de bebês morenos e carecas nascidos na cidade, e todos os maridos estão carregando seus mosquetes. É hora de partirmos para longe por algum tempo também.
O som surdo de uma risada fez Aboli estremecer.
- Para onde vamos, Gundwane? - Usava o apelido com o qual batizara Hal quando garoto e que queria dizer Rato dos Juncos, na linguagem das florestas. Era raro que o utilizasse ultimamente, apenas nos momentos de grande afeição.
- Para o sul! - respondeu Hal, numa exclamação. - Para além do cabo da Boa Esperança. Para dentro daquele oceano que você conhece tão bem.
- E o que iremos fazer lá?
- Encontrar um homem chamado Jangiri.
- E quando o encontrarmos? - insistiu Aboli.
- Nós o mataremos e nos apossaremos de seus tesouros.
Aboli ponderou por um instante.
- Parece bom para mim.
- Com que navio? - perguntou Daniel Grande.
- O Seraph. Um navio mercante anglo-indiano recém-saído dos estaleiros. Trinta e seis canhões e rápido como um felino.
- O que quer dizer Seraph?
- Serafim. É uma das mais altas hierarquias dos anjos celestiais.
- Sou eu, de A a Z. - Daniel mostrou toda a gengiva rosada num largo sorriso. Claro que não sabia ler e conhecia as letras apenas de ouvir falar, o que fez Hal sorrir intimamente. - Quando vamos pôr os olhos no Seraph? - perguntou Daniel.
É a primeira coisa que faremos amanhã. Tenha a carruagem pronta ao amanhecer. É um longo caminho até os estaleiros da Companhia, em Deptford. - Hal impediu-os de se levantarem. - Antes disso, há muito o que fazer. Para começar, não temos tripulação.
Ambos fecharam a cara de imediato. Encontrar uma tripulação para um navio novo, mesmo de quinta categoria, não era tarefa fácil.
Hal ergueu o documento que estava sobre a escrivaninha. Era um cartaz que desenhara no dia anterior e enviara por Walsh aos impressores da rua Cannon. Aquela era a primeira prova do impresso.
PRÊMIO EM DINHEIRO!
CENTENAS DE LIBRAS!
O cabeçalho sobressaía em tipos em negrito. O texto abaixo era menor em tamanho, mas não menos vibrante e rico em hipérboles, recheado de exclamações e letras maiúsculas.
O CAPITÃO SIR HAL COURTNEY, herói das guerras holandesas, mestre marinheiro e famoso navegador, captor dos galeões holandeses Standvastigheid e Heerlige Nacht, que com seus fabulosos navios Lady Edwina e Golden Bough realizou muitas viagens de importância à África e às ilhas das Especiarias das índias, que lutou e venceu os inimigos de Sua Soberana Majestade com grandes capturas de RICOS TESOUROS e IMENSOS BUTINS, tem lugar para Bons e Leais homens em seu novo navio Seraph, um barco mercante de 36 canhões de Grande Poder e Velocidade, equipado e abastecido de provisões e mantimentos, com atenção para o Conforto e Bem-estar de oficiais e marujos. Aqueles marinheiros que tiveram a boa FORTUNA de navegar sob as ordens do CAPITÃO COURTNEY em suas viagens anteriores compartilharam de PRÊMIO EM DINHEIRO de mais de 200 libras cada.
Navegando com as LICENÇAS DE CONFISCO assinadas por SUA MAJESTADE GUILHERME III (DEUS O ABENÇOE!), o CAPITÃO COURTNEY caçará os inimigos de SUA MAJESTADE no OCEANO DAS ÍNDIAS, para sua confusão e destruição e a CONQUISTA de RICO PRÊMIO! Recompensa cuja metade será dividida entre os oficiais e A TRIPULAÇÃO!
TODOS OS BONS MARUJOS à procura de emprego e fortuna serão calorosamente bem-vindos para tomarem uma caneca de cerveja com DANIEL GRANDE PESCADOR, o chefe dos oficiais-imediatos do Seraph, na HOSPEDARIA O ARADO, na ALAMEDA DOS ALFAIATES.
Aboli leu em voz alta para Daniel Grande, que sempre reclamava que seus olhos eram muito fracos para a tarefa, mas que podia enxergar uma gaivota no horizonte e esculpir os mais requintados detalhes em seus modelos de navio sem a menor dificuldade.
Quando Aboli terminou a leitura, Daniel sorriu.
- Essa é uma oportunidade boa demais para deixar passar, e esse famoso capitão é o homem certo para mim. Droga, acho que vou assinalar um "x" no seu boletim de embarque.
Quando mestre Walsh retornou dos impressores, curvado sob um pesado pacote de cartazes, Hal mandou Dorian e os gêmeos ajudarem Aboli e Daniel a afixá-los em cada esquina e em todas as tavernas e portas das casas de tolerância ao longo do rio e das docas.
Aboli conduziu a carruagem pelo chão batido do estaleiro. Hal saltou impulsivamente e caminhou até a beirada da doca de Deptford, onde Daniel Grande e Alf Wilson o aguardavam. O rio estava tomado de embarcações de diversas classes, desde as barcaças aos vasos de guerra de primeira classe. Algumas eram simplesmente esqueletos de estrutura, enquanto outras estavam totalmente equipadas para adentrar o mar com mastros cruzados e conjuntos de velas, prontas para descer o rio em direção a Gravesend até o Canal da Mancha, ou ainda tocadas lentamente pelo vento e a correnteza, rumo a Blackwall.
Em meio àquela multidão, não havia como errar ou deixar de ver o Seraph. O olhar de Hal pousou de imediato no navio ancorado fora do cais principal, em dique seco, circundado pelas chatas, seus conveses regurgitando de carpinteiros e marceneiros navais. Enquanto Hal observava, um enorme barril de água foi içado de uma das chatas e baixado na abertura aberta na popa.
- Você é uma beleza! - murmurou Hal ao correr os olhos pela embarcação com um prazer quase lascivo, como se tivesse diante de si uma mulher nua. Embora seus mastaréus ainda não estivessem cruzados, o mastro grande tinha um ângulo elegante, e Hal podia visualizar a imensa vela que conseguiria suportar.
Seu corpo era um feliz projeto. Tinha amplitude e profundidade para acomodar uma carga pesada e seu inventário de artilharia, para se adequar a seu papel de destaque na Marinha Mercante armada. Além disso, tinha uma tal bela quilha na proa e uma arquitetura equilibrada na popa que prometiam velocidade e manejo fácil em quaisquer condições de vento.
- Vai apontar para onde queira, capitão, e velejar levada até pelo pum de uma fada - resmungou Daniel Grande, atrás dele. Era uma indicação de seu próprio encantamento que falasse assim tão desabridamente.
O Seraph estava vestido com esplendor, como convinha ao orgulho e prestígio da Companhia das índias Orientais. A despeito das traineiras que se amontoavam a seu redor e parcialmente o vedavam de maior escrutínio, sua pintura se mostrava luzidia à pálida luz do sol de primavera. Era toda em dourado e em azul, suas galerias esculpidas com grupos intrincados de querubins e serafins; sua figura de proa: um anjo alado com a face de uma criança, de onde lhe advinha o nome. Suas vigias das gaiútas de fogo eram debruadas em ouro, num padrão agradável em xadrez que enfatizava sua força.
- Chame um escaler! - ordenou Hal, e quando um se aproximou e foi amarrado nos escorregadios degraus de pedra, ele correu e saltou para a popa.
- Corra para o Seraph - Daniel Grande disse ao velho que se sentava junto dos remos, e empurrou o barco para além da doca. O escaler fedia horrivelmente a esgoto e seu interior estava manchado de detritos (provavelmente, uma de suas funções fosse remover os urinóis das cabinas dos oficiais dos navios ancorados no rio), porém, de dia, transportava verduras e passageiros até as embarcações de grande porte.
- O senhor é o capitão Courtney, o novo mestre do Seraph? - perguntou o barqueiro. - Vi o seu cartaz na taverna.
- É ele - respondeu Daniel Grande, pois Hal estava por demais interessado em estudar seu novo amor para ouvir a pergunta.
- Tenho dois belos rapazes fortes para embarcar com o senhor - continuou o velho.
- Mande-os para falar comigo - resmungou Daniel Grande.
Em questão de três dias, desde que haviam pendurado os cartazes, ele recrutara quase toda a tripulação. Não haveria necessidade de visitar a prisão e subornar os guardas para que enviassem seus prisioneiros mais aptos a bordo do Seraph, acorrentados. Ao contrário, Daniel fora capaz de escolher e separar os melhores da turba de marujos desempregados que se apresentara na hospedaria. Um lugar num navio da Companhia tinha uma alta procura: as condições de vida e pagamento eram infinitamente melhores do que aquelas na Marinha Real. Cada vagabundo nos portos e cada marujo saído de um navio sabiam bem que, se fosse declarada a guerra contra a França, a polícia marítima iria percorrer cada porto na Inglaterra e encher os navios de guerra com os homens que capturasse. Qualquer tolo sabia que era mais prudente agarrar um bom lugar agora e navegar para os oceanos distantes antes que os policiais dessem início a seu terrível recrutamento.
O mestre construtor naval no tombadilho de popa do Seraph reconheceu a figura altiva de pé no leito do escaler como a de um homem de valor e adivinhou sua identidade. Esperava na amurada para saudá-lo, quando Hal subiu a escada.
Ephraim Greene a seu serviço, capitão.
- Mostre-me o navio, mestre Greene, por favor. - Os olhos de Hal já corriam dos mastros principais a cada canto do convés, e ele seguiu em direção à popa, com Greene a apressar o passo para acompanhá-lo.
Percorreram o navio dos porões ao gafetope e ao mastro real, e Hal passava curtas instruções a Daniel Grande quando encontrava a menor das coisas que não estava a seu contento. Daniel, por sua vez, as repetia a Wilson, que tomava nota num livro com capa de couro que ele carregava debaixo do braço. Os dois já haviam se entrosado numa boa equipe de trabalho.
Quando Aboli levou Hal de volta à hospedaria, deixou Daniel e Wilson para que encontrassem alojamento na confusão de toras de madeira e serragem, de fardos e sacos de lona dos novos marujos e dos grandes rolos de fibra de cânhamo que se amontoavam entre os conveses intermediários do Seraph. Dificilmente teriam tempo para pisar em terra de novo até que o navio estivesse pronto para zarpar.
- Voltarei amanhã cedo - Hal prometeu a Daniel Grande. - Quero uma lista de mantimentos que já estão a bordo, pode obtê-la com mestre Greene, e outra lista dos que ainda faltam.
- Sim, capitão.
- Depois, vamos elaborar um manifesto de carga e começar a distribuí-la para melhor condição de navegabilidade.
- Sim, capitão.
- Em seguida, em seu tempo livre, pode começar a encorajar mestre Greene e seus rapazes a abrirem um pouco mais de pano para as velas e aprontar tudo para o mar antes que o inverno chegue. - À tarde, um ligeiro vento desagradável tinha soprado de nordeste, com cheiro de gelo, e fizera os homens se embrulharem em suas capas ao pisar o tombadilho aberto. - É numa tarde como esta que os ventos mornos do sudeste parecem sussurrar meu nome. - Hal sorriu ao se afastar.
Daniel Grande esboçou um sorriso.
- Quase posso sentir a poeira quente da África na monção.
Foi bem depois do entardecer que a carruagem rodou pelo pátio pavimentado de O Arado, mas todos os três filhos de Hal correram da aconchegante sala de estar para lhe dar as boas-vindas, antes que ele pisasse fora do veículo. Subiram com o pai até o salão privativo.
Hal gritou para o estalajadeiro que trouxesse uma jarra de estanho de vinho quente com especiarias, e então tirou sua capa e deixou-a sobre o espaldar da cadeira, antes de encarar a fila de garotos com ares solenes que se postava à sua frente.
- A que devo a honra dessa recepção, cavalheiros? - Estampou um semblante sério para combinar com aquelas das faces jovens que ele tinha diante de si. Duas cabeças apontaram na direção de Tom, o porta-voz.
- Tentamos nos alistar para a viagem com Daniel Grande - disse Tom -, mas ele nos enviou ao senhor.
- Qual é seu posto e que experiência tem? - Hal o provocou.
- Não temos nada a não ser um bom coração e vontade de aprender - admitiu Tom.
- Isso servirá para Tom e Guy. Eu os nomearei serventes do capitão e lhes darei um guinéu por mês em pagamento. - As faces se iluminaram como o horizonte ao nascer do sol, mas Hal continuou rapidamente: - Dorian, porém, é ainda muito jovem. Deve ficar em High Weald.
Houve um silêncio chocado, e os gêmeos voltaram-se para Dorian com expressões perturbadas. Dorian lutou contra as lágrimas e conseguiu contê-las.
- Quem cuidará de mim quando Tom e Guy se forem?
- Seu irmão William será o senhor de High Weald enquanto eu estiver no mar, e mestre Walsh permanecerá com você para cuidar das suas lições.
- William me odeia - disse Dorian, baixinho, com um tremor na voz.
- Você é muito crítico em relação a ele. William é severo, mas o ama.
- e tentou me matar - retrucou Dorian -, e se o senhor não estiver lá, vai tentar de novo. Mestre Walsh não terá condições de impedi-lo.
Hal começou a menear a cabeça, mas então reviu, num nítido quadro mental, a expressão na face de William enquanto segurava o menino pela garganta. Pela primeira vez, teve de encarar a impalatável realidade de que a queixa extravagante de Dorian poderia não estar muito distante da verdade.
Devo ficar e velar por Dorian. - Tom rompeu o silêncio, suas feições pálidas e consternadas.
Hal compreendeu intuitivamente quanto aquele oferecimento custava ao rapaz: a existência inteira de Tom resumia-se em pensar em ir ao mar e, contudo, estava preparado para desistir em prol do irmão. Hal sentiu tal devoção apertar-lhe o peito.
- Se não quer permanecer em High Weald, Dorian, pode ficar com seu tio John, em Canterbury. Ele é o irmão de sua mãe e o ama quase tanto quanto eu.
- Se o senhor realmente me ama, pai, não me deixará para trás. Prefiro que meu irmão William me mate a isso - disse Dorian, com uma convicção tamanha e tal determinação para alguém tão jovem que Hal foi tomado de surpresa: não estava preparado para uma tão contundente recusa.
- Tom tem razão - concordou Guy, com firmeza. Não podemos deixar Dorian. Nenhum de nós pode. Tom e eu teremos de ficar com ele. - Mais do qualquer outra, a petição de Guy influenciou Hal. Era quase impossível que Guy tomasse uma posição decisiva em qualquer assunto, mas quando o fazia, nenhuma ameaça poderia demovê-lo.
Hal fechou a expressão numa carranca enquanto os pensamentos atropelavam sua mente. Poderia levar uma criança da idade de Dorian para uma situação que, com certeza, significaria um perigo terrível? Então, olhou para os gêmeos. Lembrou-se de que, quando sua mãe morrera, seu próprio pai o levara ao mar, e ele tinha... quantos anos? Talvez um ano ou um pouco mais do que Dorian agora. Pela primeira vez, sentiu a determinação fraquejar.
Depois, considerou os perigos que certamente iriam encarar. Imaginou o corpo perfeito de Dorian batido por uma tempestade de fragmentos de metal quando uma bala de canhão atravessasse uma cabina de madeira. Pensou no naufrágio e na criança lançada pelo tombadilho, afogada, a boiar até alguma praia deserta e selvagem da África, para ser devorada por hienas e outros animais repulsivos. Olhou para o filho, para a cabeça ruiva e dourada, tão inocente e adorável como o anjo seráfico esculpido na proa de seu novo navio. Sentiu as palavras de recusa subirem de novo até a garganta. Mas, naquele instante, Tom pousou sua mão no ombro do irmão mais novo, numa atitude protetora. Era um gesto sem segundas intenções, de uma dignidade tranqüila, de amor e de respeito, e Hal sentiu as palavras secarem em sua boca. Respirou fundo.
- Pensarei a respeito - disse secamente. - Saiam, todos os três. Já me deram bastante trabalho por um dia.
Eles recuaram e, à porta, disseram em coro:
- Boa noite, papai.
Quando chegaram aos próprios aposentos, Tom sacudiu Dorian pelos ombros.
- Não chore, Dorry. Você sabe que quando ele diz que vai pensar, isso quer dizer que sim. Mas não deve chorar de novo. Se for para o mar comigo e com Guy, então tem de agir como um homem. Entende?
Dorian engoliu em seco e concordou vigorosamente com a cabeça, sem confiança em si mesmo para responder com palavras.
Havia uma longa fila de carruagens do lado de fora da alameda à entrada do Palácio de St. James. O edifício era como um castelo de fantasia de soldadinhos de chumbo com ameias e torreões, construído por Henrique VIII, e ainda usado pelo soberano reinante. Quando, por fim, a carruagem de Hal avançou, dois porteiros adiantaram-se para abrir a porta do veículo, e o secretário, a quem lorde Hyde mandara recebê-lo, conduziu-o pelos portões do palácio e pelo pátio.
Havia soldados armados de lanças com elmos de aço e meia armadura à entrada da escadaria que levava à longa galeria, mas quando o secretário mostrou suas credenciais, os guardas deixaram Hal passar e um criado o anunciou, numa voz clamorosa:
- Capitão sir Henry Courtney!
Os guardas o saudaram com um floreio de lanças, e Hal subiu a escada atrás do embaixador espanhol e seus acompanhantes. Ao chegar ao topo, descobriu que toda a extensão da galeria estava lotada de uma assembléia esplêndida de cavalheiros e uma tal coleção de uniformes, medalhas, estrelas, chapéus emplumados e perucas que Hal se sentiu como um caipira do interior. Olhou ao redor para o secretário que o guiava, mas o idiota desaparecera em meio à multidão, e Hal viu-se perdido, sem saber o que deveria fazer a seguir.
Não tinha, contudo, nenhum motivo para se sentir deslocado, poisusava o novo traje de veludo da cor de um vinho da Borgonha que mandara fazer para a ocasião, e os saltos de seus sapatos eram de pura prata. Em torno do pescoço, usava o colar de Cavaleiro Navegante da Ordem de São Jorge e do Santo Graal que pertencera a seu pai e ao avô, antes dele. Era um objeto magnífico: numa corrente de ouro maciço, pendurava-se o leão dourado da Inglaterra com olhos de rubi, segurando em suas patas o globo do mundo com as estrelas do céu em diamantes rutilantes a faiscarem acima. Combinava em esplendor com qualquer da miríade de outras ordens e medalhas que reluziam pela extensão da galeria. De seu quadril, pendia a espada Azul de Netuno, a safira azul, grande como um ovo de frangainha, a brilhar em sua empunhadura, a bainha trabalhada em padrões de ouro.
Naquele instante, um aperto amistoso fechou-se em seu cotovelo e a voz de Hyde murmurou em seu ouvido:
- Estou encantado que tenha vindo. Não precisamos perder muito tempo aqui. Isto não passa de uma reunião de pavões mostrando suas caudas, mas há alguns que pode valer a pena você conhecer. Deixe-me apresentar-lhe o almirante Shovel. Vai ser nomeado governador dos novos estaleiros navais que o rei está construindo em Devonport. Há lorde Ailesham, um bom homem para ser conhecido, faz as coisas acontecerem.
Oswald Hyde conduziu Hal diretamente para a frente e cada grupo de homens abriu-se gentilmente à sua aproximação. Com a apresentação, estudaram Hal com gentileza, recebendo-o como alguém de importância pelo simples fato de que era o protegido do chanceler. Hal percebeu que Hyde abria caminho gradualmente em direção às portas revestidas de painéis ao fim da galeria e, uma vez lá, assumiu uma posição de forma a estar entre os primeiros a encontrar, seja quem fosse que saísse pela porta.
Hyde inclinou-se sobre Hal e murmurou:
- Sua Majestade assinou sua permissão ontem, no gabinete. - Tirou o rolo de pergaminho de dentro da manga. Estava atado com uma fita vermelha e fechado com o lacre de cera do Grande Selo da Inglaterra. - Honni soit qui mal y pense. Guarde-o bem! - Colocou-o na mão de Hal.
- Não se preocupe - Hal lhe assegurou. Aquele pergaminho poderia valer uma imensa fortuna e um lugar entre os pares do reino.
Houve, então, naquele momento, um burburinho, e um murmúrio percorreu a galeria quando as portas se abriram. Guilherme III, rei da Inglaterra e mandatário dos Países Baixos, deu um passo à frente com os pés pequenos calçados com sapatos rasos incrustados de pérolas e recobertos por filigranas de ouro. Todos na galeria curvaram-se ao mesmo tempo em reverência.
Claro, Hal sabia de sua deformidade, mas a realidade chegou-lhe com um choque. O rei da Inglaterra não era mais alto que Dorian e suas costas eram corcundas, de maneira que o manto escarlate e azul da Ordem da Jarreteira subia num bico atrás de sua pequena cabeça de passarinho, e a corrente de ouro maciço da Ordem parecia quase fazê- lo vergar para a frente. Sua esposa, a rainha Mary II, sobressaía em altura a seu lado, embora, na verdade, fosse apenas uma jovem esguia de seus vinte e poucos anos.
O rei divisou Hyde de imediato e lhe fez um gesto para que se aproximasse. Hyde inclinou-se perante ele, limpando o chão com seu chapéu Dois passos atrás, Hal seguiu-lhe o exemplo. O rei olhou por sobre as costas de Hyde.
Pode me apresentar seu amigo - disse, num pesado sotaque holandês. Tinha uma voz profunda e forte, fora de lugar em tal compleição infantil.
Sua Majestade, apresento-lhe sir Henry Courtney.
Ah, sim... o marinheiro - disse o rei, e estendeu a mão a Hal para que a beijasse. Guilherme tinha um longo nariz encurvado, seus olhos eram grandes, brilhantes e inteligentes.
Hal ficou intrigado por ter sido tão prontamente reconhecido, e disse, em holandês fluente:
- Posso assegurar à Sua Majestade minha leal devoção.
O rei fitou-o agudamente e respondeu no mesmo idioma:
- Onde aprendeu a falar tão bem?
- Passei alguns anos no cabo da Boa Esperança, Sua Majestade - respondeu Hal. Ficou a imaginar se o rei sabia de sua prisão no castelo holandês, naquelas plagas. Os olhos escuros de Guilherme reluziram com um ar divertido e Hal percebeu que ele sabia. Hyde devia ter-lhe contado. Era estranho que aquele rei da Inglaterra tivesse sido seu inimigo mais ferrenho e que, como um soldado, tivesse vencido muitos dos generais ingleses que agora estavam de pé ao longo da galeria, prontos a lhe prestarem profundo respeito e fidelidade.
- Espero ter boas notícias de você em breve - disse o homenzinho, e a rainha curvou a cabeça num cumprimento ligeiro a Hal. Este se dobrou de novo numa reverência, enquanto o séqüito real seguia pela galeria. A apresentação de Hal estava concluída.
- Siga-me - disse Hyde, e o conduziu sub-repticiamente para a porta lateral. - Foi ótimo. O rei tem uma memória notável. Não se esquecerá de você quando chegar a hora de reclamar aquelas recompensas das quais falamos. - Hyde estendeu a mão. - Estas escadas o conduzirão ao pátio. Adeus, sir Hal. Não nos encontraremos de novo antes que saia ao mar, porém também espero ter boas notícias de seus feitos no Oriente.
Os dois navios desceram o rio em comitiva. O Seraph liderava, com o Yeoman of York a segui-lo a 370 metros de distância. O Seraph ainda tinha trabalhadores dos estaleiros a bordo. Não haviam conseguido completar sua equipagem total na data prometida, mas Hal decidira viajar de qualquer forma.
- Mandarei seus homens para terra quando chegarmos a Plymouth - dissera a mestre Greene, o construtor naval -, se tiverem terminado o trabalho até lá. Senão, terei de lançá-los na baía de Biscaia e deixá-los voltar a nado para casa.
A lida no navio era ainda atribulada enquanto a tripulação se acomodava. Hal relanceou os olhos para a popa e viu como, em agudo contraste, a tripulação do Yeoman of York manejava as velas com rapidez e experiência. Edward Anderson, o capitão do Yeoman of York, devia estar a observar também, e Hal corou de mortificação diante da inépcia de seus homens. Aquilo mudaria antes de chegarem ao cabo da Boa Esperança, jurou.
Quando alcançaram o mar aberto do Canal da Mancha, o vento virou e tomou a força de uma ventania de outono. O sol escondeu-se atrás das nuvens e o mar tornou-se de um verde sombrio e turbulento. A noite desceu prematuramente, de maneira que os dois navios perderam contato um com o outro, na escuridão, antes de passarem por Dover.
Por alguns dias, o Seraph enfrentou o mar encapelado, mas, por fim, ultrapassaram a ilha de Wight, e Hal vislumbrou o Yeoman of York a apenas quatro milhas de distância e no mesmo curso em que ele estava.
- Ótimo! - Fez um gesto de cabeça e fechou sua luneta. Tinha reservas em seu julgamento sobre Anderson. O capitão do Yeoman of York era um robusto homem de Yorkshire, de face avermelhada, de poucos sorrisos e taciturno, que, parecia, se ressentia de ter Hal como superior em autoridade. Mas, durante aqueles primeiros dias, provara que, se não por nada mais, era um marujo confiável.
Hal desviou sua atenção de volta para o Seraph. O manejo da tripulação já havia melhorado com a prática sob aquelas condições, e os homens pareciam alegres e dispostos, como bem convinha. Hal oferecera bons salários para assegurar o melhor, cobrindo do próprio bolso a diferença do que a Companhia pagava.
Naquele momento, os três meninos surgiram, escalando juntos a escada com pressa, liberados por mestre Walsh de seus estudos. Estavam excitados e agitados, sem mostrarem o menor sinal de enjôo depois de todo aquele tempo a bordo em meio à ventania. Em Londres, onde havia numerosos mercadores ao longo das docas, Aboli conseguira comprar-lhes roupas próprias para o mar. Estavam mais bem trajados do que Hal, quando viajara pela primeira vez com seu pai. O velho não acreditava ser de bom senso mimá-lo, e Hal se lembrava das calças de lona rústica e das jaquetas acolchoadas e impermeabilizadas com piche, duras com os cristais de sal, que lhe raspavam os braços e entre as coxas. Sorriu tristemente diante da lembrança de como dormira ao lado de Aboli, num úmido estrado coberto de palha no convés aberto, com os outros marujos comuns; de como fizera suas refeições, agachado atrás da guarnição de um dos canhões, usando os dedos e o punhal para comer o ensopado de sua caneca de lata e para partir o duro biscoito; de como usara o embornal de couro para as suas necessidades e de que nunca tomara banho do começo ao fim da viagem. Fez-me pouco dano, recordou-se Hal, mas, por outro lado, pouco bem me resultou. Um rapaz não tem de ser tratado como um porco para que se torne um marujo melhor, pensou.
Claro, as circunstâncias de suas primeiras viagens com seu pai eram de todo diferentes. O velho Lady Edwina tinha menos da metade do tamanho do Seraph, e mesmo a cabina de seu pai era uma casinha de cachorro se comparada à espaçosa cabina da popa que estava agora à disposição de Hal. Este ordenara aos operários que arrancassem uma pequena secção de suas próprias acomodações, dificilmente maiores que um cubículo, e construíssem três estreitas plataformas para servirem de cama para os meninos. Havia designado mestre Walsh como escrevente do capitão, sob os protestos do tutor, que não era nenhum marujo. Continuaria a instruir os garotos usando sua própria cabina minúscula como sala de aula.
Hal viu com aprovação como Daniel lidou com o grupo barulhento de meninos quando apareceram no convés. Com modos severos, mandou que assumissem os deveres que estabelecera para eles. Separou os gêmeos, mandando Tom para a vigia de boreste e Guy para bombordo. Tinham sempre uma má influência um sobre o outro. A proximidade de Guy encorajava Tom a querer se mostrar, enquanto Tom distraía Guy com suas palhaçadas. Dorian foi mandado para as cozinhas para ajudar o cozinheiro a preparar o desjejum.
Hal sentira uma ponta de ansiedade que Daniel pudesse mandar os gêmeos para a equipagem do navio, a fim de ajudar no manejo das velas, mas não precisava ter se preocupado; tempo haveria para isso, quando os meninos tivessem se acostumado a caminhar com facilidade pelo navio e aprendido a se equilibrar sobre o convés com as bruscas e súbitas inclinações e os solavancos. Por enquanto, Daniel os manteria no convés aberto, ajudando a manejar o cordame.
Hal sabia que poderia deixar os garotos sob o olhar atento do grandalhão, e voltou sua atenção para os problemas de seus próprios marujos. Andou de um lado para outro da popa do convés superior, focado agora na grinalda abaixo de si, para sentir como seu navio respondia a cada alteração e balanço das velas. A embarcação adernava na proa, julgou, ao tomar uma onda do lado do costado e a água espalhar-se pelo convés e escorrer pelos ralos de drenagem. Durante os últimos dias, estudara como poderia rearrumar a carga no porão, sobretudo os pesados barris de água, para atingir o balanço que queria. Posso colocar dois nós de velocidade nesta belezinha, estimou. Childs o enviara numa expedição belicosa, porém, não obstante, a principal preocupação da Companhia das índias Orientais era sempre o lucro, e os porões do Seraph estavam abarrotados de uma variedade de mercadorias para entrega às feitorias da Companhia em Bombaim.
Embora parte de sua mente estivesse ocupada com o carregamento e o equilíbrio do barco, a outra estava na tripulação. Tinha ainda poucos oficiais de vigia. Essa era a principal razão pela qual seguia para Plymouth em vez de avançar e contornar Ushant, na costa francesa, cruzar a baía de Biscaia e tomar o rumo sul para o bojo do continente africano e, por fim, chegar a Boa Esperança. Plymouth era seu porto natal e Daniel e Aboliconheciam cada homem, mulher e criança na cidade e campos circundantes.
- Posso preencher a relação de oficiais com os melhores homens na Inglaterra dentro de um dia, a partir do momento em que pisar a doca de Plymouth - tinha se gabado Daniel a Hal, que sabia que isso era verdade.
- Meu tio Ned mandou avisar que estará esperando por nós lá - Wilson lhe dissera, para satisfação de Hal: nutria esperanças de ter Ned a bordo do Seraph.
Além da necessidade de arranjar uma tripulação, havia outras razões para aquele desvio de rota. Pólvora e balas eram virtualmente impossíveis de obter em Londres. A guerra contra a Irlanda tinha reduzido o estoque de munições e, agora, com a guerra contra a França prestes a ser desencadeada, o Almirantado havia confiscado cada barril de pólvora e toda bala de canhão. Tinha até mesmo embargado as fábricas para se assenhorear de cada migalha de sua produção.
Um dos armazéns que Hal possuía nas docas de Plymouth estava cheio de barricas de pólvora e de balas de ferro. Havia ali armazenado tais mercadorias na preparação para a última viagem do Golden Bough, a qual fora forçado a abandonar quando a mãe de Dorian morrera e o deixara com um bebê para cuidar. Ainda que com vários anos em estoque, as novas misturas de pólvora que guardara não se deterioravam tão depressa quanto os tipos mais antigos e deviam ainda se encontrar em boas condições.
A razão ulterior para a parada em Plymouth era que Childs tinha passageiros para ele transportar até a feitoria da Companhia na ilha de Bombaim: estariam à espera no porto. Childs não lhe dissera quantos mandava e Hal esperava que fossem poucos. Acomodação era um prêmio em qualquer navio, mesmo num do porte do Seraph, e alguns de seus oficiais estavam prestes a ser enxotados de suas cabinas para dar espaço aos novos embarcados.
Tão concentrado Hal se via em todos esses problemas que lhe pareceu pouco o tempo que se passara antes que a ilha de Wight surgisse à vista. Em seguida contornaram a ponta Gara, rumaram pelo canal pela ilha de Drake, e a enseada de Plymouth abriu-se diante deles. Na praia, uma meia dúzia de desocupados viram os dois belos navios chegando pelo canal e se enfileiraram no cais para observá-los atracar.
Daniel parou ao lado de Hal e murmurou:
- Vê aquela cabeça branca brilhando como uma bóia? - Apontou com o queixo em direção ao cais. - Não pode perdê-lo, pode?
- Por Deus, é Ned Tyler - riu Hal.
- E, junto, lá está Will Cárter. Ned deve ter se entendido com ele concordou Daniel. - Bom rapaz, o nosso Will. Com ele como terceiro imediato e Ned por parceiro, parece que você conseguiu todos os seus oficiais de vigia, capitão.
Tão logo atracaram, Ned Tyler foi o primeiro a subir a bordo, e Hal teve de conter-se para não o abraçar.
- É bom vê-lo de novo, sr. Tyler.
- Sim - concordou Ned. - É uma bela embarcação esta que tem sob o seu comando, mas está adernando na proa e seus marujos parecem um bando de sujos em dia de limpeza.
- Terá de ver isso, então, não é, Ned? - disse Hal.
Ned concordou com um ar lúgubre.
- Sim, isso eu terei de fazer, capitão.
A despeito da condição das estradas, Aboli fizera o percurso de carruagem em bom tempo desde Londres e esperava na doca, sentado na boléia, com os cavalos ainda nas traves. Hal deu ordens a Daniel para começar a carregar a pólvora dos armazéns e a descarregar os barris de água do Seraph no cais, para que pudessem ser recolocados com melhor atenção ao balanço, antes de chamar os meninos para se reunirem a ele e seguirem para onde Aboli esperava com os cavalos. Guy seguiu seu pai com presteza, até mesmo com uma certa dose de alívio.
Tom e Dorian, por sua vez, subiram pela prancha até terra firme somente depois de elaboradas táticas de retardamento, inclusive com demoradas despedidas a todos os membros da tripulação entre os quais tinham feito amigos. Haviam assimilado a vida a bordo como se tivessem nascido para aquilo. O que, é claro, tinham a quem puxar, pensou Hal, e sorriu.
- Vamos, vocês dois. Devem voltar amanhã para'ajudar Daniel Grande com o carregamento. - Tão logo subiram na boléia ao lado de Aboli, Hal disse: - Leve-nos para High Weald, Aboli.
Mais tarde, quando a carruagem passou pelos portões dos muros de pedra que demarcavam os limites das propriedades, Tom olhou adiante e viu um cavaleiro solitário cruzando o campo num meio-galope, com o objetivo de interceptar a carruagem ao pé da colina. Não havia como se enganar quanto à figura alta, vestida toda de preto, no lombo do garanhão negro, vindo da direção das minas de estanho ao sul de Rushwold. Dorian avistou Billy Preto ao mesmo tempo e aproximou-se um pouco mais de Tom como se a buscar proteção. Nenhum dos rapazes disse palavra.
William colocou seu corcel a pleno galope. Cavalo e cavaleiro pareciam um só corpo, a capa negra de William a esvoaçar atrás. Avançaram rapidamente e, então, tomaram a estrada para encontrar a carruagem que chegava.
Ignorando Aboli e seus dois irmãos mais jovens na boléia, William puxou as rédeas do cavalo e o trouxe num trote para o lado da carruagem.
- Bem-vindo, pai! - saudou a Hal pela janela do veículo. - Que bom que esteja de volta a High Weald. Sentimos muito sua falta.
Hal debruçou-se na janela, sorrindo com prazer, e os dois iniciaram uma animada conversa. William relatou tudo que acontecera na ausência de Hal, com ênfase especial no funcionamento das minas e no resultado da colheita de grãos.
Subiam a última colina para a casa grande quando, de súbito, William interrompeu-se com uma exclamação de aborrecimento.
Ah! Esqueci de mencionar que os seus hóspedes chegaram de Brighton. Estão aqui há três dias no aguardo da sua chegada.
Meus hóspedes? - Hal pareceu intrigado.
William apontou com o chicote para as figuras distantes no gramado, ao longe. Um cavalheiro grande e robusto estava de pé com uma mulher em cada braço, enquanto duas meninas de aventais muito coloridos corriam pela grama para vir ao encontro da carruagem, a gritar de excitação tal qual o vapor de uma chaleira fervente.
- Meninas! - disse Dorian com desdém. - Garotinhas!
- Uma mocinha também. - Os olhos aguçados de Tom tinham divisado a mais miúda das duas mulheres de braços com o cavalheiro avantajado. - Danada de bonita.
- Cuidado, Klebe - murmurou Aboli. - A última o meteu em águas profundas. - Mas Tom estava como um cão de caça eriçado com o cheiro de um pássaro.
- Quem são, pelo amor de Deus? - perguntou Hal a William, num tom irritado. Estava empenhado em preparar um navio para uma longa viagem e não era o momento de ter hóspedes indesejáveis em High Weald.
- Um certo sr. Beatty e sua família - respondeu William. - Disseram-me que o senhor os esperava, pai. Não é assim? Se não for o caso, podemos pedir que façam as malas.
- Maldição! - exclamou Hal. - Eu havia me esquecido. Devem ser os passageiros do Seraph com destino a Bombaim. Beatty deve ser o novo auditor-geral da feitoria da Companhia lá. Mas Childs não mencionou que o homem traria a tribo inteira consigo. Que contratempo! Quatro mulheres! Onde, com os diabos, acharei acomodações para todos?
Hal ocultou seu desagrado ao descer da carruagem para cumprimentar a família.
Sr. Beatty, seu criado, senhor. Lorde Childs me deu boas referências do senhor. Fez uma viagem agradável até Devon?
A verdade era que Hal esperava que a família tivesse procurado acomodações no porto em vez de chegar a High Weald, mas afivelou uma expressão de satisfação na face e voltou-se para cumprimentar a esposa do funcionário da Companhia. A sra. Beatty era cheia de carnes, como o marido, evidência de que haviam partilhado a mesma farta mesa por vinte anos. Seu rosto era avermelhado e redondo como uma bola, e poucos e ralos cabelos espiavam para fora de seu chapéu. Cumprimentou Hal com uma reverência exagerada.
- Encantado, senhora - disse-lhe Hal, galantemente.
Ela deixou escapar uma risadinha quando ele lhe beijou a mão.
- Posso apresentar-lhe Caroline, minha filha mais velha?
Ela sabia que, além de ser um dos homens mais ricos de Devon e um grande proprietário de terras, sir Henry Courtney era viúvo. Caroline tinha quase dezesseis anos e era encantadora. Não haveria mais de vinte anos de diferença entre os dois, estimou a mulher, o mesmo que entre o sr. Beatty e ela própria. Teriam pela frente uma longa viagem juntos, repleta de tempo para estabelecerem laços de amizade. E, às vezes, os sonhos se tornavam realidade.
Hal cumprimentou a moça com um gesto de cabeça, e ela, por sua vez, curvou-se numa cortesia. Ele, contudo, não fez menção alguma de lhe beijar a mão. Seus olhos correram rapidamente para as duas meninas, que pulavam e dançavam em torno dos pais como alegres pardalocas.
- E quem são estas duas mocinhas aqui? - perguntou, com um sorriso paternal.
- Eu sou Agnes!
- E eu sou Sarah!
Quando todos se encaminharam para a escada e passaram pelas portas da frente de High Weald, Hal já levava uma menina em cada mão e cada uma delas tagarelava e se agitava, encarando-o e competindo por sua atenção.
- Ele sempre quis uma filha - disse Aboli, baixinho, observando o patrão com ternura -, e tudo que conseguiu foi essa gangue de desordeiros.
- São apenas meninas - Dorian ponderou com superioridade.
Tom nada disse. Não falara desde que havia se aproximado o suficiente de Caroline para examinar cada detalhe de suas feições. E, desde então, parecia imobilizado de espanto.
Caroline e Guy seguiram os outros pelas escadas. Caminhavam lado a lado, mas, no topo, Caroline parou e relanceou os olhos para trás. Seu olhar encontrou-se com o de Tom.
Ela era a coisa mais bonita que Tom jamais ousara imaginar. Alta como Guy, mas tinha os ombros estreitos e a cintura tão fina como um rebento. Os pés, calçados com sapatos delicados, eram minúsculos sob as fartas camadas de anáguas e saias. Os braços estavam desnudos abaixo das mangas bufantes, a pele era pálida e sem manchas. Os cabelos formavam uma cascata de cachos e fitas reluzentes. O rosto era belo e delicado, com lábios cheios e rosados e imensos olhos de cor violeta.
Olhou para Tom sem expressão, o semblante calmo e sério: quase como se não o visse, que fitasse através dele, como se, para ela, ele não existisse. Então, voltou-se e seguiu a família para dentro da casa. Tom contivera o fôlego sem se aperceber e agora o deixava escapar com um chiado audível.
Aboli meneou a cabeça. Não perdera nada. Aquela poderia ser uma longa viagem, pensou. E perigosa.
O Seraph ficou atracado no cais por seis dias. Mesmo com Ned Tyler e Daniel Grande a comandá-los incansavelmente, demorou todo esse tempo para que os trabalhadores terminassem de preparar e equipar o barco. Tão logo a última peça foi colada e pregada e o último calço colocado no lugar, Daniel os mandou fazerem as trouxas e os colocou no coche do correio, de volta aos estaleiros em Deptford. Por essa ocasião, a carga, provisões e armamentos tinham sido retirados dos porões do Seraph e então de novo levados a bordo, enquanto Hal permanecia no meio do porto, num escaler, para verificar o balanço. Edward Anderson, do Yeoman of York, mostrou boa vontade ao enviar sua própria tripulação para ajudar no trabalho pesado.
Nesse ínterim, Ned enviara todos os marujos para o pátio do estaleiro. Tinha examinado cada junta e costura e mandara refazer aquelas que não lhe agradaram. Em seguida inspecionara cada vela empacotada em seus sacos de lona, marcara e guardara nos fardos, prontas para uso.
Assim que cuidara dos velames, Ned se dedicara a examinar as peças sobressalentes e apetrechos dos mastros e então os despachara para bordo de novo, antes da carga principal. Tom o seguia, fazendo perguntas e recolhendo avidamente cada migalha do conhecimento da prática naval que conseguia.
Hal, pessoalmente, colheu numa caneca uma amostra de água de cada um dos barris, antes que fossem levados a bordo, para certificar-se de que seu conteúdo era de água doce e potável. Abriu cada barrica de picles e pediu ao médico do navio, dr. Reynolds, que verificasse se a carne salgada de porco e de vaca, as bolachas e a farinha eram de primeira qualidade. Todos sabiam muito bem que, quando chegassem a Boa Esperança, a água estaria verde de limo, as bolachas partidas e a pulular de gorgulhos, mas Hal estava determinado que partissem com tudo em ordem. Os homens perceberam sua preocupação e cochicharam entre si com ares aprovativos. Não muitos capitães se dariam àquele trabalho. Muitos comprariam carne condenada do Almirantado apenas para economizar um guinéu ou dois.
Daniel e seus oficiais atiradores examinaram a pólvora para se assegurarem de que a umidade não entrara nas barricas e a endurecera.
Depois disso, limparam os mosquetes, 150 deles, e se certificaram de que as espoletas estavam firmes e desprendiam uma chuva de fagulhas quando o gatilho era acionado. Os canhões do tombadilho foram desmontados, e as carretas, engraxadas. Em seus quadros pivotantes, as bombardeiras e os falconetes foram içados para cima nos cestos da gávea e no fim do convés de popa, para que pudessem controlar os tombadilhos de um navio inimigo, quando se aproximasse, e inundarem seu casco com uma chuva de balas. O ferreiro e seus ajudantes afiaram os cutelos e os machados e os devolveram a seus suportes, prontos para quando fossem necessários.
Hal debruçou-se sobre sua planilha de bordo, que assinalava cada homem e seu posto numa batalha, estudou-a detidamente e então procurou espaço em sua disposição para acomodar os passageiros inesperados. Ao final, removeu os meninos da cabina recém-construída e cedeu-a às três irmãs Beatty, enquanto Will Cárter, o terceiro-oficial, teve de desistir de seu alojamento, pequeno que fosse, em prol do sr. Beatty e esposa. Aqueles dois corpanzis teriam de dividir um catre de sessenta centímetros de largura, e Hal sorriu malicioso diante da imagem que lhe surgiu à mente.
Na cabina de popa do Seraph, Hal sentou-se por horas com Edward Anderson, do Yeoman of York, elaborando com ele um sistema de sinais com os quais poderiam comunicar-se no mar. Quarenta anos antes, os três Generais de Mar, Blake, Deane e Monck, tinham inovado ao criar um sistema de sinalização que utilizava, de dia, bandeiras e velas, e à noite, lanternas e disparos. Hal obtivera cópias daquele panfleto, Instruções para Melhor Ordenamento da Frota em Batalha, e ele e Anderson usaram cinco bandeiras e quatro lanternas como base para seu próprio conjunto de sinais. O significado das bandeiras dependia das combinações e da posição no cordame ao qual estivessem içadas. À noite, as lanternas seriam dispostas em padrões, em linhas verticais e horizontais, ou em quadrados e triângulos, no mastro principal e convés superior.
Uma vez acordados os sinais, os dois mergulharam num cronograma de rondas para cobrir a possibilidade de os navios perderem contato entre si, em condições de pouca visibilidade, durante os vagares da batalha. Ao final daquelas longas discussões, Hal estava confiante de que viera a conhecer bem Anderson e que poderia confiar nele para cumprir seu dever.
No sétimo dia depois da chegada a Plymouth, estavam prontos para zarpar e, no último dia, William mandou preparar um magnífico jantar Para eles no salão de High Weald.
Caroline foi colocada entre William e Guy à longa mesa de jantar. Tom sentou-se do lado oposto a ela, mas a mesa era muito larga para permitir fácil conversação. Aquilo fazia pouca diferença para ele: pela primeira vez não conseguia pensar no que falar. Comeu pouco, mal tocando na lagosta e no linguado, seus pratos favoritos. Dificilmente afastava os olhos da face encantadora e tranqüila da mocinha.
Guy, entretanto, descobrira quase de imediato que Caroline era uma amante da música e tinham estabelecido um elo instantâneo. Sob a orientação de mestre Walsh, Guy aprendera a tocar harpa e cítara, um popular instrumento de cordas dedilhadas. Tom não demonstrava nenhuma aptidão por qualquer instrumento e seu canto, segundo a opinião de mestre Walsh, era o bastante para os cavalos se assustarem.
Durante sua estada em Londres, mestre Walsh levara Guy e Dorian a um concerto. Tom fora acometido de uma terrível dor de estômago, o que o impedira de os acompanhar - uma circunstância da qual se lamentava amargamente agora, ao observar Caroline ouvir, com o que parecia um encantamento divino, os comentários de Guy a respeito do evento, da música e da multidão reluzente da sociedade de Londres. Guy parecia capaz de lembrar até mesmo que trajes e jóias as mulheres usavam, e aqueles enormes olhos cor de violeta não se afastavam dele.
Tom fez um esforço para lhe desviar o olhar de Guy, e começou a relatar a visita que haviam feito a um hospício, no interior da região, para ver os loucos em suas gaiolas de ferro.
- Quando joguei uma pedra em um, ele a pegou do meio de suas fezes e a jogou de volta para mim - contou com animação. - Felizmente não me acertou e em vez disso atingiu Guy.
O rosado lábio superior de Caroline se franziu ligeiramente como se ela cheirasse o projétil, e seu olhar vago passou através de Tom, deixando-o sem fala, antes de voltar-se de novo para Guy.
Dorian sentava-se empertigado entre Agnes e Sarah, à ponta da mesa. As duas meninas estavam escondidas de seus pais pelo arranjo de flores em vasos de prata e pelo alto candelabro. Trocavam risadas e cochicharam uma com a outra durante toda a refeição, ou contavam piadas bobas e sem sentido que julgavam tão interessantes que precisavam tapar as bocas nos guardanapos para controlar o riso.
Dorian estava embaraçado com aquela companhia. Seu pavor era que os copeiros pudessem relatar sua aflição aos criados nos alojamentos Até mesmo os cavalariços, que normalmente eram seus camaradas do peito, iriam desprezá-lo como uma nulidade.
À cabeceira da mesa, Hal e William, o sr. Beatty e Edward Anderson estavam concentrados em falar sobre o rei.
Deus sabe, eu não estava inteiramente feliz com um holandês no trono, mas o homenzinho de veludo preto provou ser um guerreiro - disse Beatty.
Hal concordou.
- É um grande opositor de Roma e nenhum amante dos franceses. Tão-somente por isso tem a minha lealdade. E também descobri nele um homem com um olhar e mente aguçados. Acho que fará um bom reinado.
Alice Courtney, a esposa de William, sentava-se pálida e muda ao lado de Hal. Em contraste com o seu inicial comportamento cheio de adoração e respeito, ela não fitava o marido por cima da mesa. Tinha um hematoma arroxeado na altura do queixo, abaixo do ouvido, que ela tentara esconder com pó-de-arroz e puxando uma mecha de cabelos sobre ele. Respondia em monossílabos à tagarelice da sra. Beatty.
Ao final do jantar, William levantou-se e pediu silêncio tocando a taça de vinho com a colher de prata.
- Como alguém que está atado pelos laços do dever e deve ficar para trás quando o resto de minha amada família viaja para terras distantes... - começou.
Tom inclinou a cabeça por trás da decoração floral, de maneira a ficar fora de vista de William e de seu pai, e fingiu enfiar o dedo na garganta e vomitar. Dorian achou aquilo tão engraçado que tossiu e afogou-se com a risada, e escondeu a cabeça debaixo da mesa. Caroline endereçou a Tom um único olhar de superioridade e, em seguida, remexeu-se em sua cadeira para que ele ficasse longe de sua linha de visão. Sem atentar para a exibição paralela, William prosseguiu:
- ...Papai, eu sei que, como fez tempos atrás, o senhor voltará para nos com sua fama redobrada e os porões de seus navios carregados de grandes lucros. Anseio por esse dia. Porém, enquanto estiver longe, quero que saiba que os negócios da família, aqui na Inglaterra, receberão meu integral cuidado e total atenção.
Hal recostou-se na cadeira, os olhos semicerrados, a sorrir encantado enquanto ouvia os sonoros elogios de seu filho mais velho e os votos calorosos por sua segurança e bem-estar. Mas quando William incluiu os nomes dos três meios-irmãos em seu discurso, Hal sentiu uma farpa de dúvida: os sentimentos que ele expressava eram por demais efusivos.
Abriu os olhos de súbito para ver William olhar na direção de Tom, na ponta da mesa. Aqueles frios olhos negros mostravam tanta dissonância com o calor de suas palavras que Hal percebeu que pouco daquilo que o filho dissera fora sincero. William sentiu a intensidade do escrutínio do pai e fitou-o, mascarando rapidamente a malevolência. De imediato, sua expressão tornou-se afetuosa de novo, tingida de tristeza com a partida iminente daqueles a quem mais amava.
Contudo, aquilo que vira no olhar de William desencadeou uma sucessão de pensamentos em Hal, e encheu-o de maus presságios, uma súbita premonição de que aquela era a última vez que estaria em volta da mesma mesa com todos os filhos. Os ventos do acaso os sopravam para longe, cada um em seu próprio curso separado. Alguns de nós jamais verão High Weald de novo, pensou. Sentiu uma melancolia tão profunda que não conseguiu livrar-se dela e teve de forçar um sorriso ao se levantar para responder ao brinde de William.
- Feliz viagem e bons ventos!
À beira do quebra-mar, William ergueu-se na sela de Sultão, seu corcel negro, e tirou o chapéu em saudação aos dois navios lançados às águas do porto. Hal caminhou até a amurada do convés da popa e retribuiu o adeus, antes de se voltar para dar ordens ao oficial no leme do navio para que fizesse a nau dar a volta e se dirigir ao mar aberto.
Qual o curso de barlavento para Ushant? - perguntou a Ned Tyler, quando se livraram da ponta Penlee e as verdes colinas da Inglaterra começaram a sumir a bombordo.
Ned estava postado diante do novíssimo leme de aço que, num tal navio moderno, tomara o lugar do antigo dispositivo de corda e polia. Era uma invenção maravilhosa: usando o timão, o timoneiro estava limitado a giros de 5 graus de cada lado do centro, mas, com aquele novo leme, poderia colocar a roda de proa a 70 graus com muito maior controle da direção do navio em movimento.
- O vento continua favorável, capitão. Sudoeste para sul - respondeu Ned. Sabia que a pergunta era uma formalidade, que Hal verificara cuidadosamente sua carta náutica antes de deixar a cabina.
- Marque-o na sua roda do leme! - disse-lhe Hal, e Ned colocou um pino na borda do quadro circular do leme. Um pino seria acrescentado a cada meia hora e, ao final do turno, o curso médio seria encontrado e a posição do navio calculada por ajuste exato.
Hal caminhou para a popa a fim de olhar o velame. Estava enfunado, com o vento a chegar em lufadas a 45 graus do porto. Com o ajuste de Ned, cada vela se inflara que era uma beleza e o Seraph singrava as aguas velozmente - parecia saltar de onda em onda. Hal sentiu uma sensação de vibrante animação e renovado vigor, cuja intensidade o surpreendeu. Julguei que estava muito velho para ter essa alegria de um navio e a promessa de aventura, pensou. Custou-lhe esforço manter a expressão calma e os passos dignos, mas Daniel Grande estava postado ao final do convés e ambos se entreolharam. Não trocaram sorrisos, mas cada um entendeu o que o outro sentia.
Os passageiros haviam se colocado no meio do tombadilho, enfileirados contra a amurada. As saias das mulheres esvoaçavam e flutuavam ao vento e elas tinham de segurar os seus chapéus. Porém, tão logo o Seraph afastou-se da terra e sentiu o pleno empuxo do mar, os gritos femininos de excitação morreram nas gargantas e, uma após a outra, deixaram a amurada e correram para baixo, até que apenas Caroline restou de pé ao lado de seu pai.
Durante todo aquele dia e nos vários que se seguiram, a força do vento aumentou. Empurrava os dois navios para vante até que, numa tarde, transformou-se numa ventania assustadora, e Hal foi forçado a encurtar as velas. Assim que a escuridão caiu, ambas as embarcações suspenderam lanternas em seus mastros mestres para manterem contato, e, quando a aurora irrompeu, Ned bateu na porta da cabina de Hal para lhe dizer que o Yeoman of York estava à vista duas milhas a bombordo e que as luzes de Ushant já surgiam na enseada do porto.
Antes do meio-dia, tinham contornado Ushant e avançado de quilha pelas águas turbulentas de Biscaia, que faziam jus à sua má reputação. Pela próxima semana, a tripulação adquiriu boa prática no manejo das velas e condução do navio em águas turbulentas e ventos fortes. Entre as mulheres, apenas Caroline pareceu não afetada pelo jogar da embarcação e juntou-se a Tom e Dorian para as lições diárias na pequena cabina lotada de mestre Walsh. Falava pouco e de maneira nenhuma com Tom, continuando a ignorar mesmo seus mais atilados comentários e críticas. Declinou quando ele se ofereceu para ajudá-la com os problemas de matemática que mestre Walsh preparara para eles. Idiomas e matemática eram duas das áreas nas quais Tom se destacava com excelência. Ela também se recusou a se juntar às aulas de árabe que Alf Wilson ministrava aos três garotos por uma hora a cada tarde.
Durante a travessia da baía de Biscaia, Guy ficou prostrado com enjôos. Hal mostrara-se profundamente perturbado que qualquer um de seus filhos sucumbisse ao movimento das ondas. Em decorrência disso, tinha um catre no canto de sua cabina, e Guy jazia ali, pálido e a gemer, como se à beira da morte, incapaz de comer e apenas conseguindo sorver a água da caneca que Aboli segurava para ele.
A sra. Beatty e as filhas mais novas não se encontravam em melhor condição. Nenhuma delas deixou as cabinas e o dr. Reynolds, ajudado por Caroline, passou a maior parte de seus dias a atendê-las. Era uma roda-viva o ir-e-vir de urinóis, cujo conteúdo era lançado pela amurada do navio. O cheiro azedo de vômito permeava o convés de popa.
Hal ordenara que o curso fosse bem a oeste para evitar águas rasas e os recifes durante a escuridão, nas proximidades das ilhas da Madeira e das Canárias, e na esperança de apanhar mais ventos favoráveis quando, por fim, adentrassem as calmarias ao norte da linha do equador. Contudo, foi apenas quando estavam se aproximando dos 35 graus de latitude norte, com a Madeira a cem léguas marítimas a leste, que os ventos começaram por fim a amainar. Naquelas condições mais fáceis, Hal pôde mandar providenciar os reparos aos danos nas velas e cordames que o navio sofrera durante as tempestades e exercitar a tripulação em manobras, outras que o içar e recolher do velame. Os homens puderam enfim secar suas roupas e catres ensopados, o cozinheiro conseguiu manter o fogo aceso e servir comida quente. Um ânimo diferente tomou conta da embarcação.
Em poucos dias, a sra. Beatty e suas filhas mais novas reapareceram no convés, a princípio quedas e mudas, mas logo com disposição mais alegre. Não demorou muito antes que Agnes e Sarah se tornassem as pestes do navio. Tinham uma especial fixação por Tom, por quem haviam desenvolvido uma admiração exagerada de herói-marinheiro, e, para escapar delas, Tom havia conversado com Aboli para que permitisse que fosse até o cordame do alto, sem a permissão de seu pai, permissão que sabiam não seria obtida.
Hal subiu ao convés para a troca da guarda da manhã e divisou Tom a dez metros acima do tombadilho, os pés descalços plantados firmemente no cavalete enquanto ajudava a soltar as adriças do topo da vela mestra. Hal franziu a testa em meio à passada, a cabeça jogada para trás, procurando formular uma ordem que fizesse Tom voltar ao convés sem tornar evidente sua preocupação. Virou-se para o leme, viu que todos os oficiais no tombadilho o observavam e caminhou casualmente até onde Aboli estava parado, à amurada.
- Lembro-me da primeira vez que subiu ao mastro principal, Gundwane - disse Aboli, baixinho. - Foi em mares bravios ao largo do Banco das Agulhas. Fez isso porque eu o havia proibido de ir mais alto que as vergas principais. Era dois anos mais jovem que Klebe agora, mas, além disso, sempre foi um rapaz impulsivo. - Aboli meneou a cabeça com ar de desaprovação e cuspiu de lado. - Seu pai, sir Francis, queria que você tivesse corda curta. Eu deveria tê-lo deixado agir assim.
Hal recordava-se do incidente com clareza. O que havia começado como uma ousadia de adolescente terminara em abjeto terror quando ficara agarrado ao mastro principal, enquanto abaixo, a dezenas de metros, a visão do convés se alternava com lampejos das verdes ondas encapeladas quando o navio avançava e jogava, e sua esteira cortava as águas atrás.
Nota de Rodapé: légua marítima: vigésima parte do grande meridiano ou 5.555,55 m.
Fim da Nota.
Era Tom realmente dois anos mais velho agora do que ele naquele dia? Com certeza a verga a que seu filho se pendurava não era metade do mastro principal.
- Você e eu presenciamos uma queda da verga mestra - resmungou. - Quebra ossos e mata tão seguramente quanto uma do tronco do mastro principal.
- Clebe não vai cair. Sobe como um macaco. - De repente Aboli sorriu. - Deve estar em seu sangue.
Hal ignorou o comentário sagaz e voltou à sua cabina, com a intenção ostensiva de fazer registros em seu diário de bordo, porém, na verdade, para não mais ter de ver seu filho pendurado nos cordames. Pelo resto da vigilância da manhã, esperou ouvir aquele terrível baque surdo no tombadilho acima de sua cabeça, ou os gritos de "Homem ao mar!". Quando, por fim, houve uma batida na porta da cabina, e Tom, radiante de orgulho, enfiou a cabeça pelo vão para passar um recado do oficial da guarda, Hal quase pulou de alívio e o abraçou contra o peito.
Ao adentrar as calmarias, o navio sossegara, todas as velas caídas, sem nem mesmo uma dobra ou ondulação na superfície serena do mar. Na metade da manhã, Hal reuniu-se com Daniel Grande, Ned Tyler e Wilson em sua cabina, de novo repassando a descrição de Wilson da captura do Minotauro por Jangiri. Hal queria que todos os seus oficiais soubessem exatamente o que esperar e imaginassem como melhor trazer Jangiri para a batalha, ou como descobrir o esconderijo de seu porto defensivo.
De súbito, Hal interrompeu o que estava dizendo e ergueu a cabeça. Havia alguma atividade incomum no tombadilho acima, passos, o som abafado de vozes e risadas.
- Desculpem-me, cavalheiros. - Levantou-se e correu escada acima. Olhou ao redor rapidamente. Todas as mãos desocupadas se encontravam no convés; na verdade, cada preguiçoso a bordo parecia estar lá. E todas as cabeças estavam jogadas para trás, olhando para o mastro principal. Hal seguiu-lhes o olhar.
O filho mais velho sentava-se a cavalo na verga mestra e chamava por Dorian numa entonação encorajadora:
- Vamos, Dorry. Não olhe para baixo.
Dorian encontrava-se dependurado nas amarras do mastro principal, abaixo dele. Por um horrível momento, Hal pensou que o garoto estava congelado lá, a 25 metros acima do convés, mas então o menino se mexeu. Deu um passo cauteloso para cima e depois tateou até um gancho no cordame de trabalho acima de sua cabeça e avançou outro passo.
- Isso mesmo, Dorry! Agora mais um!
A intensidade da raiva de Hal com relação a Tom foi aumentada por seu temor pela criança. Eu deveria ter retalhado a pele de suas costas quando ele aprontou a primeira traquinagem na verga, pensou, e dirigiu-se ao leme. Apanhou a corneta de alerta de seu suporte. Antes que pudesse levá-la à boca e soprá-la, Aboli apareceu a seu lado.
Não será prudente assustá-los agora, Gundwane. Dorian precisa de ambas as mãos e todos os sentidos para a tarefa.
Hal baixou a corneta e conteve o fôlego enquanto Dorian seguia, centímetro após centímetro, pendurado pelas mãos, pelos ovéns do mastro.
- Por que não os impediu, Aboli? - perguntou, furioso.
- Não me pediram permissão.
- Mesmo que tivessem pedido, você teria deixado - disse Hal, acusadoramente.
- Não sei, na verdade. - Aboli deu de ombros. - Todo menino vira homem em seu próprio tempo e do seu próprio jeito. - Ele ainda continuava a observar o rapazinho no cordame. - Dorian não está com medo.
- Como sabe? - Hal resmungou, trespassado de pavor.
- Olhe para o jeito que mantém a cabeça. Observe seus pés e mãos ao segurar os esteios.
Hal não respondeu. Viu que Aboli tinha razão. Um covarde se agarra às cordas e fecha os olhos, suas mãos tremem e o cheiro do terror que dele exala é forte. Dorian continuava a se movimentar, cabeça para cima e olhos atentos. Quase todos os homens da tripulação se encontravam no convés, olhos grudados no alto, e se mantinham num silêncio tenso.
Tom esticou a mão na direção do irmão.
- Está quase lá, Dorry!
Mas Dorian desprezou a ajuda e, com um esforço visível, alçou-se até o lado de seu irmão mais velho. Demorou um momento para recuperar o fôlego e, então, jogou a cabeça para trás e soltou um berro de triunfo. Tom pousou um braço protetor em torno de seus ombros e o abraçou. Suas expressões radiantes eram visíveis mesmo àquela distância do convés. A tripulação irrompeu num brado espontâneo de alegria e Dorian tirou o capuz da cabeça e acenou para eles. Ele e Tom já eram os prediletos do navio.
Ele estava pronto para isso - disse Aboli. - E o provou.
- Meu Deus, é apenas uma criança! Eu o proibirei de ir lá em cima de novo! - explodiu Hal.
- Dorian não é bebê. Você enxerga com olhos de um pai - Aboli lhe disse. - Logo haverá luta, e você e eu sabemos que, numa refrega, o mastro principal é o lugar mais seguro para um rapaz estar.
Era verdade, é claro. Quando tinha aquela idade, o quartel de batalha de Hal sempre fora lá no alto, pois o fogo inimigo era dirigido ao casco do navio e, se a embarcação fosse abordada, ele estaria fora de perigo.
Uns poucos dias mais tarde, Hal fez uma emenda no diário de bordo para incluir tanto Tom como Dorian no cesto da gávea principal quando o navio entrasse em batalha. Não tinha certeza de poder fazer isso com Guy, que não demonstrava inclinação de querer deixar a segurança do convés. Talvez ele pudesse atuar como auxiliar do médico na enfermaria, pensou. Mas, por outro lado, poderia não reagir bem à vista de sangue.
Nas calmarias, o vento flertava com eles. Por dias infindáveis, as brisas sumiram por completo e o mar era de uma tranqüilidade sedosa. O calor batia forte sobre a embarcação e todos respiravam ofegantes enquanto o suor escorria de cada poro da pele. Aqueles no convés buscavam a sombra das velas como refúgio contra o sol. Então, no horizonte, parecia que uma pata de gato arranhava a superfície das águas e uma lufada de vento vinha depressa para enfunar as velas e arrastá-los para a frente por uma hora ou um dia.
Quando o vento, caprichoso e mutável, os abandonava de novo, e o navio quedava inanimado, Hal aproveitava para treinar os homens para a luta. Trabalhou com eles nos canhões, observou-os competir contra o relógio para ver quem era o mais rápido na carga. Deu-lhes exercícios repetidos de mosquetaço, lançando uma barrica por sobre a amurada como alvo. Depois, disponibilizou os sabres do armário de armas e fez com que Aboli e Daniel guiassem a tripulação pelo manual das armas. Tom tomou seu lugar com o resto de seus companheiros de vigia quando trabalhavam com os sabres e, mais de uma vez, Daniel Grande o fez ficar de pé na frente para demonstrar uma posição de estilo mais refinado para os demais.
Hal começara com homens escolhidos na ponta do dedo: quase todos tinham lutado antes e estavam acostumados com pistola e sabre, a portar lanças e machados e a se servir do canhão. Depois de duas ou três semanas, ele sabia que aquela era a melhor tripulação de guerreiros que já tinha comandado. Uma qualidade os distinguia, qualidade que Hal julgou difícil definir: conseguia pensar nela apenas como entusiasmo impaciente. Eram cães de caça em busca do cheiro da presa, e ele ficaria feliz em liderá-los em qualquer confronto.
Tinham deixado as ilhas da Madeira e das Canárias lá longe, no horizonte ao leste, mas o avanço tornara-se quase nulo ao adentrarem mais profundamente as calmarias. Permaneceram imóveis por dias de uma vez, as velas penduradas sem vida, a superfície do oceano ao redor de uma suavidade cristalina, como se besuntada de óleo, a águas polidas apenas manchadas por aglomerados de sargaços e pelos salpicos dos peixes-voadores a se espanejarem no ar. O sol continuava atroz e intenso.
Hal sabia da melancolia que poderia acometer uma tripulação naquelas latitudes enervantes, como aquilo lhes poderia minar a vitalidade e a determinação. Empenhou-se grandemente em impedir seus homens de mergulharem naquele marasmo de tédio e desânimo. Quando os exercícios bélicos eram concluídos a cada dia, organizava corridas de revezamento do convés ao mastro principal e para baixo de novo, colocando cada equipe de guarda contra a outra. Mesmo Tom e Dorian tomavam parte, para deleite das Mutucas Beatty, como Tom apelidara Agnes e Sarah.
Em seguida Hal ordenou aos carpinteiros e seus ajudantes de ambos os navios que instalassem assentos nas pinaças. Lançaram-nas ao mar, e uma equipe de remadores do Seraph disputou uma corrida com outra equipe do Yeoman of York, num percurso de duas vezes em torno dos navios que balançavam mansamente no mar calmo, com um prêmio de uma fita vermelha e uma ração extra de rum ao escaler vencedor. A fita foi atada à espia do mastro de proa do Seraph depois da primeira corrida e posteriormente se tornou um emblema de honra ao trocar de mãos nas idas e voltas entre os dois navios.
Para celebrar a vitória premiada com a fita vermelha, Hal convidou Edward Anderson a remar do Yeoman of York para reunir-se a ele e aos passageiros e jantar na cabina de popa. Como convivas adicionais, incluiu seus próprios filhos, com vistas a ter um pouco de entretenimento, pois mestre Walsh tinha sugerido um recital musical depois do jantar. Walsh tocaria flauta e Guy, a cítara, enquanto Dorian, que possuía uma voz extraordinária, cantaria.
Hal serviu seu melhor clarete, e o jantar foi barulhento e cordial. Com aquele número de convidados, mal havia espaço para todos sentarem, mas apenas para se mexer, e quando Hal pediu por silêncio, por fim, e solicitou a mestre Walsh que tocasse, o desafinado Tom se viu empurrado para um canto, num banco, e escondido da vista geral atrás do painel esculpido que dividia a cabina do cômodo de dormir de seu pai.
Walsh e Guy deram início a uma versão de várias canções antigas, inclusive Greensleeves e Espanholas, que deliciaram a todos, exceto Tom que, de tão profundamente entediado, escavava com canivete suas iniciais na moldura de madeira do painel atrás do qual se sentara.
- E agora ouviremos uma canção com a srta. Caroline Beatty e o sr Dorian Courtney - anunciou Walsh.
Caroline levantou-se e, com dificuldade, abriu caminho entre a platéia espremida até chegar ao fim da cabina onde Tom estava. Endereçou-lhe um daqueles olhares frios e depois se voltou a meio e apoiou o quadril contra o painel para ficar de frente para Dorian, que se postava do lado oposto do tabique.
Começaram com uma ária de Purcell. A voz de Caroline era límpida e doce, ainda que ligeiramente pomposa, enquanto Dorian cantava com uma exuberância natural. A sonoridade divina que brotava daquele garotinho angelical trouxe lágrimas aos olhos daqueles que o escutavam.
Enquanto isso, Tom remexia-se, aflito de vontade de escapar da cabina quente, claustrofóbica. Queria estar lá em cima, no convés, sob as estrelas, escondido atrás de uma das carretas de canhão ou com Daniel ou Aboli, ou com ambos, ouvindo as histórias das terras selvagens e oceanos misteriosos que existiam adiante. Mas se via confinado ali.
Foi então que percebeu: quando Caroline atingia uma nota aguda, ela se erguia na ponta dos pés: sua saia subia o bastante para expor os tornozelos e a parte de trás das canelas. O tédio de Tom se evaporou. Os pés calçados com sapatos rasos da garota eram lindamente torneados. Ela usava meias de um azul escuro, e os tornozelos fundiam-se numa linha adorável na protuberância das canelas acima. Quase por vontade própria, a mão lhe saiu do bolso e avançou na direção de um tornozelo escultural.
Está louco?, perguntou a si mesmo em pensamento. Com esforço, impediu-se de tocá-la. Ela fará uma confusão danada se eu lhe encostar um dedo. Olhou ao redor com sensação de culpa.
Caroline se encontrava de pé bem diante dele, tão perto que o impedia de ver o resto dos convivas. Tom sabia que todos os olhares na cabina estavam voltados para Dorian. Mesmo assim, ele hesitou. Recolheu a mão até enfiá-la de volta em segurança no fundo do bolso. Então, sentiu-lhe o cheiro.
Acima dos outros odores fortes no compartimento, de torresmo de porco e repolho, dos vapores de vinho e da fumaça do charuto de seu pai, ele percebeu o cheiro cálido de mulher daquele corpo. Seu coração apertou-se como um punho e uma onda de desejo espalhou-se pela boca de seu estômago. Teve de calar o gemido que lhe subiu aos lábios.
Inclinou-se para a frente no banco e tocou-lhe o tornozelo. Foi um roçar ligeiro da ponta de seus dedos contra o fino tecido azul da meia. Então, recuou num salto e sentou-se no fundo do banco, pronto para fingir inocência quando ela se voltasse.
Caroline assumiu o coro com Dorian sem perder um compasso, e Tom ficou perplexo com a falta de reação da parte dela. De novo, debruçou-se e, dessa vez, pousou dois dedos suavemente no tornozelo diante de seus olhos. Caroline não mexeu o pé, e a voz continuou límpida e doce. Tom afagou-lhe o pé e depois, lentamente, circundou-lhe o tornozelo com os dedos. Era tão pequeno, tão feminino que ele sentiu a pressão aumentar em seu peito. A meia azul era macia e sedosa ao seu toque. Bem devagar, lascivamente, ele correu os dedos para cima, para o volume da canela, saboreado a curva suave, até que chegou ao topo da meia e à liga que a segurava acima do joelho. Ali, hesitou e, naquele instante, a canção chegou ao fim, num glorioso uníssono das duas jovens vozes.
Houve um instante de silêncio e, em seguida, uma explosão de palmas e gritos de "Bravo!" e "Bis! Mais outra".
A voz de seu pai:
- Não devemos sacrificar a srta. Caroline. Ela já foi muito gentil conosco.
Os cachos escuros de Caroline dançaram em seus ombros.
- Não é sacrifício, sir Henry, eu lhe asseguro. Estamos apenas contentes que o senhor tenha gostado. Cantaremos de novo com o maior prazer. Podemos lhes apresentar My Love She Lives in Durham Tourn, Dorian?
- Acho que sim - concordou Dorian, com pouco entusiasmo, e Caroline abriu a linda boca e deixou a canção brotar.
Tom não retirara sua mão e agora seus dedos puxavam o topo da meia para afagar a pele macia das costas do joelho. Caroline continuava a cantar e parecia que sua voz ganhara força e sentimento. Mestre Walsh sacudiu a cabeça em deleitada aprovação enquanto tocava a flauta.
Tom acariciou primeiro um joelho e depois o outro. Tinha erguido a barra da saia e espiava a pele lustrosa, tão macia e suave debaixo de seus dedos. Agora que era evidente que ela não gritaria ou o denunciaria aos demais, ele se sentia cada vez mais ousado.
Correu os dedos mais para o alto, deslizando-os pelo verso das coxas, e sentiu Caroline estremecer, mas a voz continuou ainda firme ela não esqueceu uma nota da canção. Daquele ângulo, Tom conseguia ver apenas o pé de seu pai debaixo da mesa, a acompanhar o ritmo. A consciência de que Hal estava tão próximo, a natureza perigosa de seu comportamento, aumentaram a excitação de Tom. Seus dedos tremiam ao chegar à dobra onde começavam as nádegas roliças de Caroline. Ela não usava nada debaixo das anáguas e ele seguiu a curva de seu traseiro até alcançar a profunda fenda vertical que separava os dois hemisférios de carne nua do outro. Ele tentou deslizar um dos dedos entre as coxas, mas estas estavam juntas, fortemente comprimidas - cada músculo de ambas as pernas retesado e tão duro como pedra. A divisa era impenetrável e ele abandonou a tentativa. Em vez disso, empalmou uma das pequenas nádegas rijas na mão e apertou-a gentilmente.
Caroline atingiu uma nota aguda ao final do verso e mudou de posição ligeiramente, afastando os pés e empurrando o quadril em direção a ele. As coxas se entreabriram e, quando Tom tentou de novo, sentiu o ninho sedoso de pêlos entre elas. Caroline se deslocou outra vez, como para tornar o ato mais fácil para ele, e então se moveu de novo, direcionando-lhe o toque. Mary, a cozinheira, tinha mostrado a Tom onde encontrar aquele nó mágico de carne rija e, habilmente, ele o localizou. Agora Caroline movia o corpo inteiro suavemente ao compasso da música, remexendo os quadris. Tinha os olhos brilhantes e o rosto afogueado. A sra. Beatty julgou que a filha jamais parecera tão extraordinariamente bela e relanceou o olhar pelo círculo de faces masculinas, orgulhosa quando viu a admiração em seus semblantes.
A canção chegou ao clímax e mesmo Dorian teve de se esforçar para atingir a beleza daquela última nota aguda que pareceu encher a cabina inteira e então se demorar ali, reverberando no ar, mesmo quando a canção havia terminado. Caroline espalhou a saia e as anáguas como as pétalas de uma gloriosa orquídea tropical e mergulhou numa reverência tão profunda que sua testa quase tocou o chão.
Todos os homens se levantaram para aplaudi-la, mesmo que tivessem de se inclinar sob as grossas vigas do teto. Quando Caroline ergueu a cabeça, seus lábios tremiam e suas faces estavam molhadas de lágrimas de profunda emoção. A mãe saltou e abraçou-a num impulso.
- Oh, minha querida, isso foi devastadoramente belo. Você canta como um anjo. Mas se exauriu. Precisa tomar uma meia taça de vinho Para se recompor.
Entre expressões de congratulações e prazer, Caroline voltou para o seu assento. A garota parecia transformada de sua usual quietude; desinibiu-se e juntou-se às conversas ao redor, quase com desenvoltura. Quando a sra. Beatty alegou que era hora de se retirar e deixar os homens com seus cachimbos, charutos e vinho do Porto, Caroline seguiu-a com um jeito tímido. Ao dizer boa-noite e deixar a cabina, em momento algum relanceou os olhos na direção de Tom.
Tom afundou-se no banco ao fundo, a olhar para o convés acima de sua cabeça, numa tentativa de parecer distante e despreocupado, mas suas mãos estavam enterradas nos bolsos e ele continha a própria excitação com tal empenho que ninguém percebeu a braguilha intumescida.
Naquela noite, Tom mal dormiu. Deitado no catre, com Dorian de um lado e Guy do outro, ficou a ouvir os roncos, os gemidos e os resmungos da tripulação adormecida no convés. Reviveu na imaginação cada detalhe do episódio na cabina de popa, cada toque e movimento, o cheiro de Caroline e o som de sua voz a cantar enquanto a acariciava, a escorregadia suavidade de suas partes mais secretas e o calor que emanava delas. Mal conseguia se conter até o dia seguinte, quando estaria com Caroline na cabina de mestre Walsh. Mesmo que se debruçassem sobre as lousas e ouvissem os enfadonhos monólogos de mestre Walsh, ele ansiava por um olhar ou um toque que lhe confirmasse o monumental significado daquilo que acontecera entre os dois.
Quando, por fim, Caroline entrou na cabina de mestre Walsh, precedida por suas barulhentas irmãs, ela ignorou Tom e dirigiu-se diretamente ao sr. Walsh.
- Acho que a luz no lugar em que me sento é muito fraca. Cansa meus olhos. Posso mudar de lugar e sentar-me ao lado de Guy?
- Sim, claro que pode, senhorita - concordou Walsh no mesmo instante, não de todo imune aos encantos de Caroline. - Devia ter me dito antes que estava desconfortável ao lado de Tom.
Guy remexeu-se no banco com vivacidade para dar espaço a Caroline, mas Tom sentiu-se desdenhado e tentou chamar-lhe a atenção, pregando os olhos nela através da estreita cabina. Caroline, entretanto, concentrou total atenção em sua lousa e não ergueu o olhar.
Por fim, até mesmo mestre Walsh percebeu o estranho comportamento de Tom.
- Está enjoado?
Tom sentiu-se chocado e afrontado com uma tal acusação.
- Estou perfeitamente bem, senhor.
Então, diga-me: o que eu estava dizendo? - perguntou Walsh.
Tom ficou pensativo e coçou o queixo. Ao mesmo tempo, chutou o tornozelo de Dorian debaixo da mesa;'
Dorian veio em seu socorro com a lealdade de sempre.
- O senhor dizia que a tautologia é...
- Obrigado, Dorian - Walsh o interrompeu -, mas eu estava falando com seu irmão, não com você. - Encarou Tom com desaprovação. Sempre o irritava que um rapaz com um bom intelecto se recusasse a fazer uso de seu pleno potencial. - Agora que foi socorrido, Thomas, talvez possa nos esclarecer a todos acerca do significado da palavra.
- Tautologia é a repetição desnecessária de conceitos que já foram utilizados anteriormente numa frase ou sentença - Tom lhe disse.
Walsh pareceu desapontado. Havia esperado fazê-lo exibir ignorância e sofrer humilhação diante dos colegas.
- Você me espanta com a sua erudição - disse secamente. - Pode mostrar mais de seu saber dando-nos um exemplo de tautologia?
Tom pensou.
- Um pedagogo pedante? - sugeriu. - Um professor enfadonho?
Dorian deixou escapar um prenúncio de risada, e mesmo Guy ergueu os olhos e sorriu. As Mutucas Beatty não entenderam palavra, mas quando viram Walsh tornar-se escarlate e Tom cruzar os braços no peito e sorrir triunfante, perceberam que seu ídolo chegara ao cimo novamente e caíram numa risada nervosa de satisfação. Apenas Caroline continuou a escrever em sua lousa sem nem mesmo erguer a cabeça.
Tom estava frustrado e magoado. Era como se nada tivesse acontecido entre os dois. Ao ver que sua perene pendenga com mestre Walsh a deixara indiferente, tentou atrair a atenção de Caroline de outras maneiras. Assim que a jovem subiu ao convés, ele esforçou-se aos limites de sua resistência e experimentou impressioná-la com a habilidade recém-descoberta como homem do cesto da gávea. Copiou as manobras de seus superiores, correndo pelo alto mastaréu, mãos acima da cabeça, até seu lugar nos enfrechates, ou deslizando sem pausa pelo estai do mastaréu da gata, fazendo com que a rústica corda de cânhamo lhe queimasse a palma das mãos antes que aterrissasse, descalço e com um baque, perto de onde ela se encontrava. Caroline se afastou sem mesmo um segundo olhar.
Em contraste, ela se mostrava de uma doçura melíflua com Guy e Dorian e mesmo com mestre Walsh. O desafinado Tom foi excluído das aulas de música e Caroline pareceu extrair um prazer extra na companhia de Guy. Os dois cochichavam durante as lições e Walsh fez apenas tentativas pouco efetivas para silenciá-los. Tom protestou:
- Estou resolvendo um problema de trigonometria e não consigo pensar com vocês dois tagarelando o tempo todo.
Walsh sorriu com ar vingativo.
- Não me dei conta de nenhum aumento significativo de seus processos cerebrais, Thomas, mesmo em ocasiões de profundo silêncio.
Diante disso, Caroline irrompeu num riso tilintante e debruçou-se sobre o ombro de Guy, como se para compartilhar a piada com ele. O olhar que endereçou a Tom foi malicioso e caçoísta.
Tanto Dorian como Tom haviam herdado a visão aguçada do pai, de maneira que freqüentemente eram mandados juntos à gávea como vigias. Tom começou a apreciar aqueles longos turnos no topo do mastro era o único lugar no navio lotado em que podia ficar só. Dorian aprendera a conter a língua, a não se intrometer nos devaneios do outro, e cada um dava asas à imaginação e às fantasias.
Se certa vez os sonhos de Tom haviam sido de batalhas e glória, de terras inóspitas e imensos oceanos, de elefantes e baleias e enormes macacos em picos de montanhas nebulosas, sobre os quais conversava tão avidamente com Aboli e Daniel Grande, suas visões agora eram de Caroline. De seu corpo cálido e macio que ele tocara mas nunca vira, de seus olhos voltados para ele com amor e devoção, de fazer com ela as coisas maravilhosas que fizera com Mary e outras garotas da vila. Contudo, parecia sacrilégio, de certa forma, permitir aquelas criaturas vulgares no mesmo sonho com a divina Caroline.
Conjurou imagens de salvá-la quando o navio estivesse em chamas e os conveses fervilhando de piratas, de saltar pela amurada com ela nos braços e nadar para a praia branca de uma ilha de coral onde poderiam estar sozinhos. Sozinhos! Era o problema que o confrontava ao final de cada uma de suas divagações. Como ficarem sozinhos. O Seraph poderia singrar os confins dos oceanos com ela a bordo, mas nunca estariam sozinhos.
Tentou desesperadamente pensar em algum lugar a bordo onde pudessem passar mesmo que uns poucos minutos longe de olhos curiosos - caso pudesse convencê-la a segui-lo até lá. O que, admitiu, parecia altamente improvável.
Havia o compartimento de carga, mas estava fechado e com lacres da Companhia. Havia as cabinas dos conveses de popa, porém até mesmo a maior delas permitia pouca privacidade e todas estavam superlotadas de gente. As anteparas eram tão frágeis que pelas divisões ele ouvira as três irmãs discutindo, porque na cabina havia espaço apenas para uma ficar de pé de cada vez. Duas tinham de permanecer agachadas em seus beliches para que uma pudesse se vestir ou se despir. Certamente, não havia ali lugar algum em que ele pudesse ficar sozinho com Caroline e derramar seu amor por ela, ou para ampliar a descoberta de suas delícias. Ainda assim, a imaginação não lhe daria tréguas.
Nas tardes em que o tempo era favorável, Tom e Dorian pegavam seus pratos de comida da cozinha e os levavam para a proa, onde comiam, agachados no tombadilho, com Aboli e algumas vezes com Daniel Grande por companhia. Depois disso, poderiam deitar de costas e olhar para o céu estrelado.
Daniel acendia seu cachimbo de barro e mostrava a eles como o céu mudava a cada dia enquanto desciam rumo ao sul. Mostrou-lhes o grande Cruzeiro do Sul, que se elevava a cada noite mais alto, acima do horizonte à frente, as nuvens bruxuleantes da constelação de Magalhães flutuando como a aura de anjos, que se mostrava por fim sob a cruz.
Em torno de cada constelação, Aboli teceu as lendas das estrelas, narradas por sua própria tribo, e Daniel Grande caiu na risada.
- Caia fora, seu pagão. Deixe que eu conte a eles a verdade cristã. Aquele é Órion, o poderoso caçador, não algum mateiro selvagem.
Aboli ignorou-o e contou-lhes, certa noite, a lenda do caçador incauto que, na ânsia da caçada, havia disparado todas as suas flechas na manada de zebras - ali apontou para o aglomerado de estrelas do cinturão de Órion - e, assim, não lhe restava nada com que se defender quando o leão de Sírius o confrontou. Por sua falta de previdência, o caçador terminara na barriga do leão.
- O que é uma história mais interessante para o ouvinte - Aboli concluiu, com complacência.
- E para o leão - concordou Daniel Grande, que apagou o cachimbo e se levantou. - Tenho trabalho a fazer no navio, diferentemente de outros, ao que parece. - Afastou-se para fazer sua ronda.
Depois que ele se foi, houve silêncio por algum tempo. Dorian deitou-se encolhido no convés, como um animalzinho, e caiu quase de imediato no sono. Aboli suspirou contente e então murmurou, na língua das florestas, que sempre usava quando estavam sozinhos.
- O caçador tolo poderia ter aprendido muitas coisas se tivesse vivido o bastante.
- Diga-me o quê - falou Tom no mesmo idioma.
- Algumas vezes é melhor não caçar zebras disparando suas flechas loucamente e a distância.
- O que quer dizer com isso, Aboli? - perguntou Tom, sentando-se e abraçando os joelhos, ao perceber um sentido oculto na história.
- Falta esperteza e astúcia ao caçador tolo. Quanto mais persegue a caça, mas rápido ela foge. Os que observam gritam: "Veja que caçador estúpido!", e riem de seus esforços infrutíferos.
Tom refletiu sobre aquilo: aprendera a depreender profundezas ocultas em todas as histórias de Aboli. De súbito, a moral da história ocorreu-lhe e ele se remexeu, inquieto.
- Está caçoando de mim, Aboli?
Isso eu nunca faria, Klebe, mas me enraivece ver homens inferiores rindo de você.
Que motivo dei a qualquer um para que ria de mim?
- Você caça ostensivamente. Deixa que todos a bordo saibam aquilo que é do seu interesse.
- Quer dizer... Caroline? - A voz de Tom perdeu-se num murmúrio. - É tão óbvio assim?
- Não é preciso que eu responda. Mas, diga-me, o que mais lhe interessa nela?
- Ela é bonita... - começou Tom.
- Não é feia, pelo menos. - Aboli sorriu no escuro. - Porém o que o deixa louco é que ela não toma conhecimento de você.
- Eu não entendo, Aboli.
- Você caça porque ela foge, e ela corre porque você caça.
- O que deveria eu fazer, então?
- O que o caçador esperto faz é esperar sossegado à beira da lagoa. Deixe que a presa chegue até você.
Até aquela ocasião, Tom se aproveitara de qualquer desculpa para se demorar na cabina de Walsh depois que as aulas diárias terminavam, na esperança de algum pequeno sinal de Caroline de que ela ainda estava interessada por ele. Seu pai estipulara que todos os três rapazes deveriam contar com três horas de instrução formal a cada dia, antes de cumprirem seus deveres no navio. Devia ter parecido, mesmo para Hal, que três horas das lições de mestre Walsh eram suficientes; porém, até então, Tom corajosamente as prolongara, apenas para passar uns poucos minutos a mais na presença do objeto de sua devoção.
Depois de sua conversa com Aboli, aquilo mudou. Durante as aulas, ele se forçava a ficar em silêncio e inacessível, confinando suas conversas com Walsh a necessidades básicas. Tão logo o sino do navio soava indicando a troca de turno, não importava se no meio de algum problema matemático complexo, ele recolhia seus livros e a lousa e se levantava de imediato.
- Por favor, com licença, mestre Walsh, preciso cumprir meus deveres. - Então, saía da cabina sem nem mesmo um olhar para Caroline.
Nas tardes em que Caroline subia ao convés com sua mãe e as irmãs para fazer a costumeira caminhada ao ar fresco, Tom assegurava-se de que seus deveres o mantivessem tão longe quanto possível dela, segundo permitissem as condições de confinamento do navio.
Por alguns dias, Caroline não deu mostras de haver tomado consciência da mudança da atitude de Tom com relação a ela. Então, certa manhã, durante as aulas, Tom ergueu os olhos inadvertidamente da lousa e a surpreendeu a fitá-lo com o rabo do olho. No mesmo instante Caroline baixou o olhar, mas não pôde evitar o rubor em sua face. Tom sentiu uma fagulha de satisfação. Aboli tinha razão. Aquela era a primeira vez que ele a pegava a examiná-lo.
Com a vontade fortalecida, tornou-se mais fácil a cada dia ignorá-la como ela certa vez o ignorara. Aquele impasse persistiu por quase duas semanas, até que ele percebeu uma sutil alteração no comportamento da jovem. Durante as aulas da manhã, ela se tornou mais falante, endereçando seus comentários na maioria das vezes para Walsh e porém, sobretudo para Guy. Trocava cochichos com ele i ria exageradamente com os seus comentários mais fátuos. Tom manteve o inflexível silêncio sem erguer a cabeça, embora aquela risada o perturbasse até o âmago da alma.
Certa vez, quando tinham sido liberados da cabina de Walsh e estavam de pé no corredor, Caroline perguntou, numa entonação irritantemente teatral:
Oh! Essas escadas são tão íngremes. Posso me apoiar em seu braço Guy? - Então, debruçou-se sobre ele e fitou-lhe a face sorridente.
Tom passou pelos dois sem dar mostras de emoção.
Os deveres de Guy de certa forma lhe permitiam ter tempo para caminhar com a sra. Beatty e as meninas pelo convés, ou para passar horas em animada conversa com o sr. Beatty na cabina deste último. Na verdade, tanto o sr. como a sra. Beatty pareciam agradá-lo. Ele ainda não fizera nenhuma tentativa de deixar o convés e se aventurar nas alturas, mesmo quando Tom o provocava quanto a isso ao alcance do ouvido de Caroline. Tom surpreendeu-se por não se ressentir da timidez de Guy. Na verdade, sentia um certo alívio por não ter a responsabilidade de manter o olho em seu gêmeo no alto e perigoso cesto da gávea. Era o bastante ter Dorian sob seus cuidados, embora o irmão mais jovem já fosse tão rápido e ágil nos cordames que era motivo de pouca preocupação por parte de Tom.
Embora a intervenção de Caroline tivesse a princípio tornado o fato evidente, os gêmeos tinham se distanciado fazia já algum tempo. Passavam poucas ocasiões na companhia um do outro e, quando juntos, a conversação entre ambos era concisa e cautelosa. Uma situação sobremaneira diferente daqueles dias não tão distantes em que partilhavam cada idéia e sonho e confortavam um ao outro ao se defrontarem com as pequenas vicissitudes e injustiças da vida.
Depois do jantar, Hal com freqüência convidava seus passageiros para uma rodada de uíste na cabina de popa. Era um jogador excelente e ensinara Tom a apreciar o jogo. Com sua inclinação para a matemática, Tom se revelara também talentoso com as cartas e muitas vezes era o parceiro do pai contra o sr. Beatty e mestre Walsh. O jogo era encarado com seriedade e intensamente disputado. Depois de cada partida, as jogadas eram discutidas e dissecadas, enquanto, à outra mesa na cabina, Guy, a sra. Beatty e as meninas gargalhavam e gritavam, debruçados sobre jogos infantis.
Nota de Rodapé: Jogo de cartas, considerado o ancestral do bridge.
Fim da Nota.
Guy não demonstrava nem aptidão nem gosto para o jogo mais difícil de uíste.
Numa daquelas tardes, Tom descobriu-se colocado por seu pai num delicado contrato de vazas com cinco cartas de copas. Sabia de início que tinha uma escolha de duas jogadas mutuamente excludentes. Poderia colocar o sr. Beatty com a rainha de copas e tomar a vaza por intermédio dele ou jogar por dobro de trunfos. Tentou calcular a probabilidade das copas fazerem par ou de a rainha ser a única em jogo, mas a algazarra e os gritos femininos na outra mesa o distraíram. Pensou um pouco e então descartou a dama. Viu seu pai franzir a testa quando efetuou a jogada e então, para seu espanto, mestre Walsh soltou uma risada de triunfo e usou sua outra rainha. Nervoso com o erro de cálculo, Tom jogou mal seus naipes de paus e a mão redundou num desastre.
Seu pai foi severo.
- Você deveria saber, pelo lance de mestre Walsh, que ele tinha sete cartas de paus, e o descarte de seu rei confirmou a distribuição desfavorável.
Tom remexeu-se na cadeira. Ergueu os olhos e viu que, na outra mesa, todos haviam parado de jogar e ouviam seu pai recriminá-lo. Tanto Caroline como Guy o observavam, suas cabeças juntas. Na expressão de Guy havia um brilho malicioso que Tom nunca percebera antes. Guy, na verdade, regozijava-se com a humilhação do irmão.
De súbito, Tom descobriu-se mergulhado numa crise de culpa. Pela primeira vez na vida via-se confrontado com a percepção de que não gostava de seu gêmeo. Guy voltou a cabeça e piscou para Caroline, que pousou a mãozinha branca em seu braço e cobriu a boca com a outra e, em seguida, cochichou-lhe alguma coisa no ouvido. Encarou Tom incisivamente e seu olhar era caçoísta. Com um choque, Tom percebeu que, mais do que meramente desgostar de Guy, ele na verdade o odiava e desejava mal ao irmão.
Por dias, depois disso, lutou com seu sentimento de culpa. Seu pai ensinara a todos os filhos que a lealdade dentro da família era coisa sacrossanta. "Nós contra o mundo", ele sempre dizia - e agora Tom sentia que, mais uma vez, falhara em atingir as expectativas do pai.
Então, inesperadamente, pareceu que fora absolvido. A princípio teve apenas a vaga impressão de que algo portentoso estava em curso. Viu o sr. Beatty e seu pai em séria conversação no convés de popa, e ele pôde afirmar de imediato que seu pai estava profundamente desgostoso. Durante os próximos dias, o sr. Beatty passou muito tempo fechado com Hal na cabina. Depois, Hal ordenou que Dorian chamasse Guy para uma daquelas reuniões.
- Sobre o que estão conversando? - Tom perguntou ao irmãozinho, tão logo este voltou.
- Não sei.
- Pois devia ter escutado à porta - resmungou Tom. Ardia de curiosidade.
- Não tive coragem - admitiu Dorian. - Se me pegasse, papai teria me arrastado pelo tombadilho amarrado numa corda e me faria andar na prancha... - Apenas recentemente Dorian ouvira falar daquela pavorosa punição que o fascinara.
Durante dias, Guy demonstrou-se extremamente preocupado com as reuniões na cabina de popa. Estava com Ned Tyler no paiol de pólvora, ajudando-o a abrir as barricas e verificar se a umidade contaminara o pó negro e granulado, quando Dorian chegou à sua procura.
- Papai quer vê-lo agora em seus aposentos. - O garoto não cabia em si com sua importância como portador de tais agourentas notícias. Guy levantou-se e limpou os grânulos de pólvora das mãos.
- É melhor ir depressa - Dorian o advertiu. - Papai está com cara de Morte ao Infiel.
Quando Guy entrou na cabina, viu de imediato que Dorian não tinha exagerado quanto ao humor do pai. Hal encontrava-se de pé ao lado das vigias da cabina, as mãos atrás das costas. Virou-se, e os cabelos presos à sua nuca torceram-se como o rabo de um leão zangado enquanto ele encarava o filho com uma expressão não toda de raiva. Nela, Guy percebeu um toque de preocupação e mesmo de desgosto.
- Tenho tido longas conversas com o sr. Beatty. - Indicou o homem com um gesto.
Beatty estava sentado à mesa, sério e taciturno. Usava sua peruca, uma indicação a mais da seriedade daquela reunião. Hal ficou em silêncio por um momento, como se o que precisava dizer a seguir fosse tão detestável que preferiria não ter de pronunciar as palavras.
- Sou levado a crer que você tem feito planos para o futuro sem me consultar como cabeça da família.
- Perdoe-me, papai, mas eu não quero ser um marinheiro - Guy gaguejou com ar miserável.
Hal recuou involuntariamente, como se seu filho tivesse negado sua fé em Deus.
- Nós sempre fomos marinheiros. Por duzentos anos, os Courtney têm se lançado ao mar.
- Detesto isso - disse Guy, baixinho, com voz trêmula. - Detesto o fedor e os espaços confinados de um navio. Sinto-me doente e infeliz quando estou longe da vista de terra.
Houve outro longo silêncio, e então Hal prosseguiu:
- Tom e Dorian fazem jus à sua hereditariedade. Certamente apreciam as aventuras e belos lucros. Pensei um dia em oferecer a você o seu próprio navio. Mas vejo que perdi meu tempo.
Guy deixou a cabeça pender e reiterou, com uma expressão de desgosto:
- Jamais serei feliz longe da terra.
Feliz! - Hal havia prometido a si mesmo manter o temperamento sob controle, mas a expressão de desdém explodiu de seus lábios antes que pudesse se conter. - O que tem a felicidade a ver com isso? Um homem segue o caminho talhado para ele. Tem seu dever para com Deus e seu rei. Faz o que deve fazer, não o que lhe agrada. - Sentiu que a raiva e a indignação cresciam dentro de si. - Por Deus, rapaz, que tipo de mundo seria esse se cada homem fizesse apenas o que lhe agradasse? Quem iria arar os campos e fazer a colheita, se cada um tivesse o direito de dizer: "Não quero fazer isso"? Neste mundo há um lugar para cada homem, mas cada um deve saber seu lugar. - Interrompeu-se ao ver uma expressão de insubordinação surgir na face do filho. Voltou-se para a vigia, olhou para o oceano e para o céu azul estriado de ouro pelo sol poente. Respirava ofegante e lhe custou alguns momentos recuperar a compostura. Quando se voltou, suas feições estavam rígidas. - Muito bem! - disse. - Talvez eu seja indulgente demais, mas não o forçarei, embora Deus saiba que eu tenho pensado em fazer justamente isso. Você é um felizardo de que o sr. Beatty tenha uma boa opinião a seu respeito, opinião da qual não compartilho em vista de seu comportamento egoísta. - Sentou-se pesadamente na cadeira e empurrou na direção do filho o documento que estava sobre o tampo da mesa.
- Como já sabe, o sr. Beatty ofereceu-lhe um posto na Honorável Companhia Inglesa das índias Orientais como aprendiz de escrevente. Foi generoso com respeito ao salário e às condições de emprego. Se aceitar essa oferta, então suas funções na Companhia começarão imediatamente. Eu o liberarei de seus deveres como membro da tripulação deste navio. Em vez disso, começará a prestar assistência ao sr. Beatty e o acompanhará até a feitoria da Companhia em Bombaim. Compreende?
- Sim, papai - murmurou Guy.
- É isso o que quer? - Hal inclinou-se para a frente e encarou o filho nos olhos, esperando por alguma negativa.
- Sim, papai. É isso o que eu quero.
Hal suspirou e a raiva o abandonou.
- Bem... então rezo para que tenha tomado a decisão correta. Seu destino está agora fora de minhas mãos. - Empurrou o pergaminho do contrato pela mesa. - Assine. Servirei de testemunha.
Depois disso, com cuidado, Hal secou com areia a tinta molhada das assinaturas e então soprou o excesso fora. Estendeu o documento ao sr. Beatty. Voltou-se de novo para Guy.
- explicarei sua posição aos oficiais do navio e a seus irmãos. Não tenho dúvida daquilo que pensarão de você.
No escuro, agachados na proa com Aboli e Daniel Grande, os irmãos discutiam em exaustivos detalhes a decisão de Guy.
Como pode Guy nos deixar assim? Juramos que sempre estaríamos juntos, não é, Tom? - Dorian estava extremamente aborrecido.
Tom evitou o questionamento direto.
Guy fica enjoado. Nunca poderia ser um verdadeiro marinheiro disse. - E tem medo do mar e de subir até o cesto da gávea.
- De certa forma, não conseguia sentir o mesmo desgosto do irmão mais jovem com aquela reviravolta nos acontecimentos.
Dorian pareceu sentir isso e voltou-se então para os dois homens mais velhos, em busca de conforto.
- Ele deveria ter ficado conosco, não concorda, Aboli?
- Há muitas trilhas pela selva - sentenciou Aboli. - Se todos tomássemos a mesma, ela ficaria muito cheia.
- Mas... Guy! - Dorian estava à beira das lágrimas. - Ele jamais poderia desertar de nós. - Voltou-se para Tom: - Você não me abandonará, não é, Tom?
- Claro que não - disse Tom, num resmungo.
- Promete? - Uma única lágrima escorria agora pela face de Dorian, reluzindo à luz da Lua.
- Você não deve chorar - Tom o admoestou.
- Não estou chorando. É que o vento faz meus olhos lacrimejar. - Enxugou a lágrima. - Prometa-me, Tom.
- Prometo.
- Não, não assim. Jure, um juramento solene - insistiu Dorian.
Com um longo e sofrido suspiro, Tom tirou o punhal da bainha em seu cinto. Ergueu a lâmina estreita, que brilhou ao luar.
Com Deus, Aboli e Daniel Grande por testemunhas... - Espetou a ponta do punhal na polpa do polegar e todos viram o sangue verter, preto como piche, à luz prateada. Tom enfiou o punhal de volta na bainha e com a mão livre puxou a face de Dorian para perto da sua. Enquanto fitava com ar muito sério os olhos do menino, inscreveu com seu polegar uma cruz de sangue na'testa de Dorian. - Juro a você, solenemente, que jamais o deixarei, Dorian - entoou com gravidade.
Agora, pare de chorar.
Com a saída de Guy, a planilha de oficiais foi alterada e Tom assumiu os deveres de seu gêmeo a bordo, em acréscimo às suas próprias obrigações. Agora, Ned Tyler e Daniel Grande poderiam concentrar as aulas de navegação, balística e manejo de velames em dois alunos em vez de três. A rotina de Tom era pesada antes, mas agora parecia não ter fim.
As obrigações de Guy, contudo, eram leves e agradáveis. Depois das aulas diárias com mestre Walsh, quando Tom e Dorian tinham de se apressar para começar seus turnos de tarefa, Guy passava umas poucas horas a escrever cartas e relatórios para o sr. Beatty, ou estudando as publicações da Companhia, inclusive as Instruções para Recrutas a Serviço da Honorável Companhia Inglesa das índias Orientais, depois do que estava livre para ler para a sra. Beatty ou para jogar cartas com as meninas. Nada disso aprazia a seu irmão que, algumas vezes, dos cordames, via Guy passeando e rindo com as damas no convés de popa, inacessível aos demais tripulantes que não fossem os oficiais e os passageiros do navio.
O Seraph cruzou o equador em meio à usual celebração, quando todos aqueles que faziam o cruzamento pela primeira vez submetiam-se à iniciação e prestavam lealdade a Netuno, deus dos oceanos. Aboli, num inacreditável costume feito de sucata recolhida do depósito do navio, e com uma barba de corda desfiada, fazia um Netuno impressionante.
Agora que as calmarias tinham ficado ao norte da linha do equador e assim que os dois navios iam se livrando de suas garras, finalmente adentravam o cinturão das rotas comerciais do sul. O caráter do oceano mudou: a superfície parecia faiscar, cheia de vida, depois das águas morosas e caladas com a ausência dos ventos. O ar era fresco e revigorante, o céu salpicado de rabiscos dos cirros levados pelo vento. Em sintonia, o ânimo da tripulação tornou-se leve e quase alegre.
Hal traçou seu curso sudoeste de maneira que pudessem seguirpor uma vasta área, longe do continente africano, mais para a metade do Atlântico em direção à costa da América do Sul, porém num ângulo de vento que mantinha a distância de curso.
A cada dez dias, Tom descia com Ned e os ajudantes de artilharia para inspecionar o conteúdo do paiol. Fazia parte de sua instrução na arte da balística compreender o caráter e a natureza temperamental da pólvora negra. Tinha de conhecer sua composição, de enxofre, carvão e salitre como tais ingredientes poderiam ser misturados e armazenados com segurança, como evitar uma elevação de calor e umidade, o que poderia empedrar os grânulos e provocar variações ou falha de ignição nas armas. A cada visita, Ned sempre o alertava quanto ao perigo de chamas vivas ou fagulhas no paiol, dado o risco de provocarem uma explosão de varrer o navio das águas.
Antes de serem utilizadas em batalha, as barricas eram abertas e a pólvora cuidadosamente pesada em sacos de seda que continham a carga exata de uma arma. Aquilo era socado com o atacador na boca da arma como um cartucho, e por cima era colocado um trapo de pano e, depois, a bala. Os sacos eram transportados para os conveses de tiro pelos encarregados da munição ou pelos garotos. Mesmo quando não se esperava que o navio entrasse em ação, vários sacos de seda com pólvora eram preparados e deixados prontos em prateleiras, em caso de uma emergência. Infelizmente, a textura fina da seda tornava o conteúdo suscetível à umidade e à formação de pedras, de maneira que os sacos tinham de ser inspecionados com regularidade e de novo embalados se fosse o caso.
Quando Ned e Tom trabalhavam no paiol, raramente promoviam qualquer brincadeira ou troca de provocações. A luz do único lampião era fraca e reinava no ambiente um silêncio de catedral. Assim que os sacos de seda lhe foram passados, Tom os colocou com cuidado nas prateleiras. Eram firmes e macios ao toque. Dariam uma cama confortável, pensou. De súbito, veio-lhe à mente uma visão de Caroline estirada sobre os sacos de seda, nua. Soltou um gemido.
- O que foi, Tom? - Ned ergueu os olhos para ele, intrigado.
- Nada. Só estava pensando.
Deixe os devaneios para o seu gêmeo. Ele é bom nisso - Ned advertiu-o laconicamente. - E continue com a tarefa. É nisso que você é bom.
Tom continuou a arrumar os sacos, mas agora sua cabeça funcionava furiosamente. O paiol era a única parte do navio que permanecia deserta por dez dias de uma vez, onde uma pessoa poderia ficar sozinha sem medo de intrusão. Era justo o lugar que ele vinha tentando encontrar com tanto afinco, tão óbvio que lhe escapara da observação. Relanceou os olhos para as chaves penduradas no cinto de Ned. Havia meia dúzia delas no molho: as dos depósitos, as dos armários de armas,das despensas e da venda - além das do paiol de pólvora.
Assim que terminaram, Tom postou-se ao lado de Ned quando este trancou a pesada porta de carvalho. Fez uma anotação mental da chave que abria a tranca: tinha uma forma bem distinta das outras no molho, com cinco espigas em forma de uma coroa. Tentou imaginar um jeito de botar as mãos no molho, mesmo que por uns poucos minutos, para que pudesse tirar aquela chave da argola. Mas era esforço inútil: gerações de marujos antes dele tinham deparado com problema semelhante ao tentarem se apossar da chave para a despensa onde as bebidas alcoólicas ficavam guardadas.
Naquela noite, deitado em seu catre, ocorreu-lhe uma nova idéia, tão de repente que ele se sentou: devia haver mais de um conjunto de chaves a bordo. Se houvesse, sabia onde deveriam estar: na cabina de seu pai. No baú, debaixo da cama ou numa das gavetas da mesa, pensou. Pelo resto da noite, mal conseguiu dormir. Mesmo com sua posição privilegiada a bordo, de filho mais velho do patrão, ele certamente não poderia ter livre acesso às acomodações de seu pai, e as andanças de Hal pelo navio eram imprevisíveis. Não havia como prever quando sua cabina estaria vazia. Se ele não se encontrasse lá, seu imediato estaria provavelmente às voltas com as roupas de cama ou com o guarda-roupa de Hal. Descartou a idéia de fazer uma tentativa depois que seu pai estivesse recolhido ao leito. Tom sabia que ele era um homem de sono leve - descobrira da maneira mais dura. Seu pai não era pessoa fácil de ser enganada.
No decorrer da semana seguinte, Tom considerou e descartou alguns outros planos impraticáveis, tais como descer pelo casco e entrar pelo corredor de popa. Sabia que teria de assumir um risco calculado e esperar até que seu pai ordenasse uma alteração maior das velas. Então, ambos os vigias estariam no convés, e seu pai, totalmente concentrado nos cordames acima. Tom poderia arranjar alguma desculpa para deixar seu posto e correr lá para baixo.
Os dias passaram depressa com o tráfego mercantil do sudoeste e o Seraph ainda ajustado para o curso do porto. Nenhuma mudança de velas foi necessária e não surgiu nenhuma chance de Tom colocar seu plano em ação.
Então, a oportunidade veio a ele de uma maneira tão fortuita que Tom sentiu quase uma inquietação supersticiosa. Estava agachado com os outros homens de seu turno sob o vão do castelo de proa, desfrutando uns raros minutos de descanso, quando Hal tirou os olhos da luneta compasso e gesticulou para que ele se aproximasse. Tom levantou-se e correu até o lado do pai.
Desça até a minha cabina - disse-lhe Hal. - Olhe na gaveta de cima da minha mesa. Vai encontrar meu caderno preto ali. Traga-o para mim.
- Sim, senhor. - Por um momento, Tom sentiu-se quase atordoado e em seguida, correu para a entrada do corredor.
Tom, não tão depressa. - A voz do pai o fez parar, o coração aos pulos. Tinha sido muito fácil. - Se não estiver na gaveta de cima, pode estar em uma das outras.
Sim, papai. - Tom disparou pelas escadas.
O caderno preto se encontrava na gaveta de cima, exatamente onde seu pai dissera que estaria. Com gestos apressados, Tom tentou abrir as outras gavetas, com medo que estivessem trancadas, mas todas deslizaram para fora e ele rebuscou-as rapidamente. Quando puxou a última, ouviu um ruído metálico e um objeto pesado escorregar com o movimento. De novo, seu coração saltou.
As duplicatas das chaves estavam enfiadas entre uma cópia do almanaque náutico e as cartas náuticas. Pegou-as, hesitante, e reconheceu o formato de coroa da chave do paiol. Relanceou os olhos para a porta fechada da cabina e ficou atento ao som de passadas antes de se arriscar. Então, desenrascou a chave da argola, enfiou-a no bolso, fechou a trava, devolveu o molho à gaveta e cobriu-o com o almanaque.
Ao correr para o convés, a chave pareceu tão pesada em seu bolso como uma bala. Tinha de encontrar um esconderijo para ela. As chances eram que seu pai não descobriria o furto, a menos que a chave original fosse perdida ou extraviada. O que era altamente improvável; porém, mesmo assim, era perigoso carregar aquele prêmio consigo.
Naquela noite, Tom acordou como sempre quando o sino do navio soou, anunciando o turno da meia-noite. Esperou por cerca de uma hora e então se levantou em silêncio do catre. Ao lado, Guy sentou-se.
- Aonde vai? - murmurou.
O coração de Tom deu um salto.
- A proa, urinar - sussurrou em resposta. - Volte a dormir. - No futuro, precisaria fazer algumas alterações nos arranjos para dormir. Guy afundou-se na palha do catre e Tom esgueirou-se na direção da proa, mas tão logo estava fora da vista de Guy, voltou rapidamente e seguiu sorrateiro pelo corredor que dava acesso ao convés inferior.
Com aquele vento e naquele ponto do trajeto, o navio nunca ficava silencioso. O madeirame estalava e rangia, uma das suturas de solda saltava com regularidade com um ruído alto como um tiro de pistola, e as águas iam e vinham a murmurar, batidas contra o casco.
Não havia luz no convés inferior, mas Tom se movia com confiança, e correu a esconder-se apenas uma vez dentro de uma das anteparas. Qualquer barulho que fazia era encoberto pelos demais sons do navio.
Um único lampião pendia do convés no fundo do corredor de popa. Lançava um pálido lampejo pela passagem central. Havia uma fresta de luz sob a porta da cabina de seu pai. Tom avançou com cautela e parou rapidamente à porta da minúscula cabina na qual as três garotas dormiam. Nenhum som vinha lá de dentro. Ele continuou.
O paiol de pólvora ficava no próximo convés inferior, do lado direito de onde o pé do mastro principal se fincava na sobrequilha. Tom desceu os últimos lances das escadas de madeira e adentrou a escuridão profunda do deque mais abaixo. Com cautela, aproximou-se da porta do depósito. Ajoelhou-se ao lado e, às apalpadelas, encaixou a chave na fechadura. O mecanismo era duro, teve de despender considerável esforço antes que cedesse. A porta abriu-se nos gonzos. Tom ficou parado no escuro e inalou o cheiro forte de pólvora negra. Embora tomado por uma sensação de realização, sabia que ainda havia muitos obstáculos à sua frente. Fechou a porta com cuidado e trancou-a. Em seguida retraçou os passos até chegar ao seu catre. Agachou-se e se deitou. A seu lado, Guy remexeu-se. Ainda estava acordado, mas não falou. Logo, ambos caíram no sono.
Até então, tudo havia trabalhado em favor de Tom. Tanto que, no dia seguinte, ele sentiu uma sensação incômoda de que sua sorte tinha mudado. Havia pouco indício por parte de Caroline de que seus planos pudessem avançar mais do que ao ponto em que tinham chegado. Sua coragem se dissipava. Avaliou os riscos que assumira e aqueles que ainda deveria assumir. Por mais de uma vez resolveu devolver a chave do paiol à gaveta da mesa do pai e abandonar a idéia toda, mas então bastava esgueirar um olhar para Caroline quando estava absorta nas lições. A curva de seu rosto, os lábios rosados num biquinho de concentração, um antebraço macio abaixo das mangas bufantes de seu vestido, ligeiramente dourado agora pelo sol tropical, decorado com pêlos delicados e suaves como o pêssego. Eu preciso ficar sozinho com ela, mesmo que por um minuto. Vale qualquer risco, pensou, mesmo assim hesitou, incapaz de criar coragem para agir. Remoeu-se de aflição até que ela lhe deu o impulso que o forçaria aos limites.
Ao final das aulas do dia, Caroline saiu da cabina à frente de Tom. Porém, ao pisar no corredor, mestre Walsh chamou-a lá de dentro:
- a srta. Caroline, poderia vir à aula de música esta tarde?
Caroline voltou-se para responder. Seu movimento foi tão inesperado que Tom não pôde evitar de colidir com ela. Com o choque, a moça quase perdeu o equilíbrio, mas se agarrou ao braço dele para firmar-se, e Tom a segurou com o outro braço pela cintura. Estavam naquele instante fora das vistas de Walsh e também dos dois garotos que se encontravam na cabina.
Caroline não fez menção de se afastar. Em vez disso, debruçou-se e pressionou o quadril contra o dele, num ligeiro movimento bamboleante, e ao fazê-lo, fitou-o nos olhos com uma expressão misteriosa e ousada. Naquele instante, o mundo transformou-se para Tom. O contato foi breve. Ela afastou-se e falou com mestre Walsh pela porta da cabina.
- Sim, claro. O tempo está tão agradável que poderíamos nos encontrar no convés, não acha?
- Que idéia esplêndida! - concordou Walsh, com vivacidade. - Digamos às seis horas, então? - Walsh ainda usava o cálculo de tempo de um marinheiro de primeira viagem.
Ned Tyler estava de pé, ao lado de Tom, ao leme do navio. Tom tentava controlar o rumo do Seraph a sudoeste pelo sul, na travessia do oceano sem desvios.
- Ajuste! - resmungou Ned, quando Tom deixou a embarcação escapar do ponto. Com cada vela ajustada nos mastros reais e cheia de 25 nós de vento, era como tentar segurar um garanhão em fuga.
- Olhe para a esteira - Ned lhe disse, com rispidez. Obediente, Tom relanceou os olhos para trás, para a popa. - Como um par de serpentes em lua-de-mel - resmungou Ned, o que ambos sabiam ser injusto: havia lá atrás, na extensão de uma amarra, uma esteira mal discernível de espuma cremosa, mas, aos olhos de seu tutor, não era permitido a Tom espuma alguma. Pelos próximos dez minutos, o Seraph singrou as ondas num vinco de lâmina de espada.
- Muito bem, mestre Tom - aplaudiu Ned. - Agora, a começar do topo do mastro principal, por favor.
- Reais, do joanete do mastro da gata... - Tom nomeou as velas sem hesitação ou erro e sem deixar que a proa desgarrasse.
Então, o trio de musicistas surgiu do convés da popa. Guy carregava a partitura de Caroline e a cítara. Walsh, com a flauta enfiada no bolso traseiro, trazia a banqueta numa das mãos e segurava a peruca com a outra. O grupo postou-se no lugar habitual na amurada de sotavento, protegida da força total da ventania.
Tom tentou concentrar-se no timão, responder às perguntas de Ned e aguardar pelo momento em que Caroline abrisse a partitura e encontrasse o bilhete que ele colocara entre as páginas.
- Velas do mastro de mezena, por favor, a partir do topo - disse Ned.
- Vela do mastaréu da gata - retrucou Tom e, então, hesitou. Caroline estava pronta para cantar e Guy lhe passara a partitura.
- Continue - Ned o encorajou.
- Vela do estai do mastaréu da gata - disse Tom, e fez uma pausa outra vez. Caroline abrira o livro e franzia a testa.
Estava lendo agora alguma coisa entre as páginas. Tom julgou vê- la empalidecer, mas, em seguida, ela relanceou os olhos na direção do leme, direto para ele.
Carangueja do mastro de mezena - respondeu Tom, e devolveu o olhar a ela.
De novo, Caroline o fitou daquele jeito evasivo, enigmático, e virou a cabeça, os cachos a dançar ao vento. Pegou, dentre as páginas da partitura, o pedaço de papel-arroz no qual ele havia tão laboriosamente escrito a mensagem, amassou-o numa bola entre os dedos e jogou-o com desdém para o lado. O vento apanhou-o e o arrastou para longe antes de lançá-lo à água, onde desapareceu por entre as brancas ondas peroladas. Foi outro sinal de rejeição tão claro que Tom sentiu seu mundo desmoronar.
- Mantenha o barlavento! - exclamou Ned, ríspido, e Tom estremeceu de espanto e culpa ao ver que deixara o Seraph derivar a sotavento.
Embora soubesse agora que era inútil, Tom ficou deitado em seu catre durante o longo primeiro turno, no aguardo da meia-noite, a debater consigo mesmo se havia alguma razão para assumir o risco e considerar confirmado o encontro que propusera. A rejeição de Caroline parecera categórica e, contudo, ele sabia com certeza que ela desfrutara aquele perturbador momento de intimidade na cabina de seu pai tanto quanto ele. E que o contato fugidio do lado de fora das acomodações de Walsh tinha confirmado, além da dúvida, que ela não era avessa a uma outra aventura.
- Ela não é a dama superior e altiva que finge ser - Tom disse a si mesmo com raiva. - Debaixo daqueles elegantes trajes, ela gosta de fazer sexo tal como Mary e qualquer uma das outras moças da vila. Aposto um guinéu de ouro contra um monte de esterco seco de cavalo que Caroline sabe como brincar de "enterrar o boneco" como a melhor delas.
Ele arrastara o catre até um nicho atrás de um dos canhões, para que nem Guy nem Dorian pudessem deitar a seu lado e continuar a presenciar suas idas e vindas durante a noite. As horas do turno pareciam intermináveis. Por uma ou duas vezes ele cochilou, mas então acordou num sobressalto, tremendo de ansiedade e consumido pelas dúvidas.
Quando soaram as sete badaladas do primeiro turno no convés acima de onde se encontrava, Tom não conseguiu conter-se mais e deixou o abrigo da manta para seguir resoluto até a entrada do corredor, o fôlego contido na garganta, com receio de que um de seus irmãos o abordasse.
Mais uma vez parou do lado de fora da minúscula cabina onde as garotas dormiam e encostou o ouvido na porta. Não ouviu nada e sentiu a tentação de bater para saber se Caroline estava acordada, tal como ele. O bom senso prevaleceu, contudo, e Tom se afastou para descer até o convés inferior.
Para seu alívio, a chave do paiol estava onde ele a deixara, junto com a caixa de pavios. Destrancou a porta, esgueirou-se por ela, subiu num caixote para alcançar o lampião em seu gancho e, em seguida, levou até a passagem e fechou a porta com cuidado para que uma fagulha da mecha do pavio não voasse até algum grão solto de pólvora no chão do paiol.
Tirou a caixa de pavio de seu esconderijo e, agachando-se, considerou o risco que assumia em acender uma chama na escuridão do navio. Nem era tanto o perigo de explosão que o preocupava, mas que qualquer luminosidade pudesse atrair atenção. A cabina de seu pai ficava no topo do corredor e, ao lado, estava a do sr. Beatty e esposa. Não era improvável que estivessem sem sono ou que um deles saísse da cabina por força das necessidades naturais. O oficial de turno poderia chegar até a ponta da embarcação em sua ronda e descer para investigar qualquer iluminação incomum.
Tom, entretanto, sabia com absoluta certeza que Caroline não teria nem a coragem nem o conhecimento da disposição do casco para achar o caminho até o paiol na completa escuridão. Pelo menos ao acender o lampião, ele poderia lhe dar um pouco de incentivo.
Agachou-se sobre a caixa de pavio, protegendo-a com o corpo, e bateu o bastão de ferro na pederneira. Fagulhas azuis esvoaçaram e o pavio em sua mão se acendeu. O coração de Tom batia disparado ao erguer a tela de proteção do lampião e aproximar o fogo da mecha. Cobriu-a com a mão até que a chama se firmasse. Recolocou então a tela, o que enfraqueceu a luz da chama, porém a impedia de lançar faísca que inflamasse algum grânulo solto de pólvora. Devolveu a chave e a caixa de pavios ao esconderijo e depois levou o lampião de volta ao paiol e colocou-o em seu gancho.
Saiu e puxou a porta atrás de si, ajustando a fresta de maneira que apenas uma réstia de luz aparecesse, insuficiente para atrair atenção indesejável, mas capaz de tentar uma garota tímida a aventurar-se pela escada do corredor.
Então se agachou ao lado da porta, pronto para fechá-la ao primeiro indício de qualquer problema e para bloquear a luz. Não conseguia escutar o sino do navio ali embaixo, tão perto do cavername, e perdeu a noção do tempo.
Ela não vem - disse a si mesmo, depois do que lhe pareceu a passagem de muitas horas. Levantou-se, ainda que não encontrasse vontade de sair dali. - Só um pouquinho mais - resolveu, e acomodou-se contra o tabique de madeira.
Devia ter cochilado, pois o primeiro aviso que teve da chegada dela foi o perfume, aquele cheiro de gatinha, e, em seguida, ouviu o deslizar dos pés descalços pelo convés, bem perto de sua mão.
Ergueu-se de um salto, e Caroline soltou um grito de terror ao vê-lo surgir da escuridão. Segurou-a, em desespero.
- Sou eu! Sou eu! - murmurou. - Não tenha medo.
Ela agarrou-se a ele com surpreendente força.
- Você me assustou! - Tremia violentamente, e por isso ele apertou-a contra o peito. Afagou-lhe os cabelos. Caroline permitiu. Eram grossos e anelados sob seus dedos e chegavam-lhe até o meio das costas.
- Está tudo bem. Você está segura. Estou aqui para cuidar de você.
- À luz tênue, viu que ela usava uma camisola de algodão pálido. Era fechada com uma fita no pescoço e pendia até os calcanhares.
- Eu jamais deveria ter vindo - Caroline murmurou, a face comprimida contra o peito dele.
- Sim, devia. Oh, sim! - Tom lhe disse. - Esperei muito. Queria muito, muito mesmo, que você viesse. - Estava espantado em perceber como ela era miúda e quanto era quente aquele corpo comprimido contra o seu. Abraçou-a com mais força. - Está tudo bem, Caroline. Estamos seguros aqui.
Tom correu as mãos, deslizando-as pelas costas de Caroline. O algodão era fino e frágil e ela não usava nada debaixo da camisola. Ele podia sentir cada protuberância e depressão daquele corpo.
- E se meu pai... - Sua voz era ofegante e entrecortada de medo.
- Não, não - ele a interrompeu. - Venha comigo. - Puxou-a depressa para dentro do paiol e fechou a porta. - Ninguém pode nos encontrar aqui.
Abraçou-a e beijou-lhe o topo da cabeça. Seus cabelos tinham um aroma suave. O tremor de Caroline abrandou-se e ela ergueu a face e fitou-o. Seus olhos pareciam enormes e luminosos à luz fraca do lampião.
- Não seja rude comigo - ela implorou. - Não me machuque.
A simples idéia o horrorizou.
- Oh, minha querida. Eu não poderia fazer uma coisa dessas. - Descobriu que as palavras de conforto lhe subiam aos lábios com naturalidade e convicção. - Eu a amo. Eu a amei desde o primeiro instante em que pousei os olhos no seu lindo rosto. - Ele ainda não se dera conta de que possuía o dom da eloqüência que diferencia os grandes amantes, nem sabia quanto isso lhe serviria bem nos anos vindouros.
- Amei-a mesmo quando me tratava tão friamente. - A cintura dela era tão fina que Tom quase poderia circundá-la com as mãos. Puxou-a com força contra si e aquele ventre quente pareceu incendiar o dele.
- Jamais quis ser indelicada com você - ela lhe disse, num tom compassivo. - Queria estar com você, mas não pude evitar...
- Não precisa explicar - disse Tom. - Eu sei.
Beijou-a na face, numa chuva de beijos na testa e nos olhos, até que por fim encontrou-lhe a boca. A princípio, aqueles lábios estavam fechados com firmeza, mas então, lentamente, abriram-se como as pétalas frescas de alguma flor exótica, tão quentes e úmidos e cheios de néctar que os sentidos de Tom se perderam numa vertigem. Queria extrair tudo deles, sugar-lhe a essência através daquela boca.
Estamos a salvo aqui - reafirmou. - Ninguém nunca desce até aqui. Continuou a murmurar palavras de conforto para distraí-la, enquanto se movia em direção às pilhas de sacos de seda.
Você é tão amável... - Ele empurrou-a de costas. - Tenho pensado em você a cada momento.
Ela relaxou e deixou-se cair sobre o colchão de seda e pólvora. Deitou a cabeça para trás e ele beijou-lhe a garganta. Ao mesmo tempo, soltou a fita que prendia a camisola. Seu instinto o advertia a prosseguir bem devagar para que ela pudesse fingir que não percebia o que estava acontecendo.
Murmurou-lhe no ouvido:
- Seus cabelos são como seda e cheiram a rosas. - Os dedos de Tom era ágeis e leves.
Um dos seios pulou para fora da abertura da camisola e Caroline reagiu, o corpo todo rígido. Gaguejou:
- Não devemos fazer isso. Você precisa parar. Por favor.
O seio era muito branco e muito maior do que ele esperava. Não fez menção de tocá-lo, embora roçasse suavemente contra seu queixo. Tom abraçou-a com mais força e murmurou promessas e palavras de elogio até que, lentamente, a tensão abandonou o corpo de Caroline e uma das mãos dela o segurou pela nuca. Pegou uma porção do rabo-de-cavalo e o aperto aumentou a ponto de lhe marejar os olhos. Ele não se importou com a dor.
Como se inconsciente daquilo que fazia, ela usou a mão agarrada aos cabelos para direcioná-lo. O seio cálido e macio comprimiu-se contra a face de Tom de tal modo que, por um instante, ele não pôde respirar. Então, abriu a boca e sugou o mamilo rosado. Era duro e firme em sua boca. Mary gostava quando ele fazia aquilo - "dar de mamar ao bebê", dizia.
Caroline deixou escapar um resmungo abafado e começou a embalá-lo suavemente como se Tom fosse uma criança. Tinha os olhos fechados e um meio sorriso nos lábios, enquanto ele a sugava com avidez.
- Acaricie-me - Caroline murmurou, tão baixinho que ele não compreendeu o que ela dissera. - Toque-me - repetiu. - Toque-me como fez antes. - Sua camisola havia se embolado até o topo de suas coxas e ela afastou os joelhos. Tom deslizou a mão até o ninho de pêlos e Caroline suspirou. - Sim... assim...
Começou a balançar os quadris como se estivesse montada num pônei em trote. Não levou mais que uns poucos minutos até que suas costas se arquearam e ele sentiu cada músculo daquele corpo miúdo se enrijecer.
É como retesar um arco, pensou Tom, quando a seta está pronta para ser solta.
De súbito, ela estremeceu e soltou um grito que o assustou. Então, caiu de costas e ficou largada em seus braços como uma morta. Aquilo o alarmou. Olhou-a no rosto e viu que estava afogueado, olhos fechados. Gotas de suor cobriam-lhe o lábio superior.
Caroline abriu os olhos e encarou-o com ar vago. Então, de repente, recuou e desferiu-lhe uma bofetada de mão aberta na face.
- Eu o odeio! - murmurou com ferocidade. - Você jamais poderia ter feito o que fez comigo. Jamais deveria ter me tocado desse jeito. É tudo culpa sua! - E prorrompeu em lágrimas.
Ele encolheu-se, atônito, mas antes que pudesse recobrar-se, Caroline levantou-se. Com um farfalhar da camisola e o roçar dos pequenos pés descalços no assoalho de madeira, ela puxou a porta do paiol, abriu-a e fugiu pelo corredor.
Algum tempo se passou antes que Tom pudesse recobrar-se o suficiente do choque e se pôr de pé. Ainda aturdido, apagou o lampião e depois trancou a porta do depósito atrás de si, com cuidado. Teria de achar uma oportunidade de devolver a chave à mesa do pai. Nada urgente. Até então, não parecia haver indícios de que sua ausência da gaveta tivesse sido notada. Era perigoso, contudo, mantê-la consigo e, por isso, ele a devolveu ao esconderijo acima do lintel.
Quando passou pela porta da cabina de Caroline, percebeu que estava tremendo de indignação e raiva. Sentiu uma vontade quase irresistível de arrastá-la do cômodo e despejar tudo o que sentia sobre ela. Esforçou-se por se conter e continuou seu caminho de volta ao catre no convés dos canhões.
Guy o esperava, uma sombra silenciosa agachada ao lado da carreta do canhão.
- Aonde foi? - perguntou, num murmúrio.
- A lugar nenhum. - Tom fora tomado de surpresa e, antes que desse conta, a tola resposta lhe escapara da boca. - Eu estava na proa - você sumiu desde as sete badaladas do primeiro turno. Faz quase duas horas - disse-lhe Guy, muito sério. - Deve ter enchido a barrica de tanto urinar. É de admirar que tenha sobrado alguma coisa de você.
- Fui ao convés - começou Tom, na defensiva, e, então, interrompeu-se De qualquer forma, não tenho que lhe dar satisfações. Você
não é meu guardião. - Jogou-se sobre o colchão de palha, curvou-se como uma bola e puxou a manta sobre a cabeça.
Viborazinha estúpida, pensou com amargura. Eu não me importaria nem um pouco se ela caísse da amurada e fosse devorada pelos tubarões.
o Seraph avançou a sudoeste sem encurtar nunca os velames durante as noites estreladas. Com o sol a pino, todo dia, Tom permanecia no convés de popa com os outros oficiais, usando seu próprio astrolábio, um presente de seu pai, para observar a passagem do meio-dia e para calcular a latitude do navio. Seu pai e Ned Tyler faziam simultaneamente suas medições e depois comparavam os resultados. Num dia inesquecível, Tom terminou o cálculo complexo e ergueu os olhos da lousa.
- Então, rapaz? - perguntou-lhe Hal, com um sorriso indulgente.
- Vinte e dois graus, 16 minutos e 38 segundos de latitude sul - Tom respondeu, em dúvida. - Por minhas contas, devemos estar apenas a poucas léguas ao norte do Trópico de Capricórnio.
Hal franziu a testa com ar teatral e olhou para Ned.
- Um erro grosseiro aí, sr. Imediato?
- Realmente, capitão. Errou por pelo menos dez segundos.
- Eu diria quinze segundos. - A expressão de Hal suavizou-se. - Não há necessidade de tomar o aparelho dele, pois não?
- Não desta vez. - Ned esboçou um de seus raros sorrisos. A diferença entre os três cálculos montava a não mais que umas poucas milhas náuticas da vastidão do oceano. Nenhum ser vivo poderia dizer qual dos três estava certo.
- Muito bem, rapaz.
A onda de prazerque aquelas palavras despertaram em Tom durou pelo resto daquele dia.
Ao cruzarem o Trópico de Capricórnio, o tempo mudou abruptamente. Entravam no quadrante úmido do Atlântico Sul, e o firmamento acima, desde a linha do horizonte até o zénite, se encheu de nuvens escuras e pesadas de chuva, formações imensas e achatadas no formato de bigornas de Vulcano, o ferreiro dos deuses. Raios riscavam e luziam em seus negros ventres. Trovões ribombavam como as batidas do martelo do deus da forja.
Hal passou a ordem para encurtar o velame e fez um sinal para o Yeoman of York a ré: "Continue em contato comigo".
O sol desceu atrás de nuvens de chuva e manchou-as de sangue;
- a chuva caiu em torrentes sobre os dois navios. Compactos lençóis de água martelaram os conveses de madeira com tamanha força que o ruído contínuo encobria as vozes dos homens e lhes bloqueava a visão. Não lhes era possível enxergar nada através das cortinas rumorejantes de água de uma amurada a outra. Os embornais não conseguiam proceder com eficiência o escoamento do tombadilho principal, e o timoneiro tinha água pelos joelhos. A tripulação saltava ao redor daquele mundo de água doce, erguendo as faces, bocas abertas, a beber até as barrigas estufar. Arrancavam as roupas para lavar o sal de seus corpos, riam e brincavam, jogando água uns nos outros.
Hal não fez nenhuma menção de reprimi-los. O sol lhes gretara a pele, em alguns casos formando pústulas supuradas nas axilas e virilhas. Era um alívio lavar os cristais corrosivos dos corpos. Em vez disso, ordenou que enchessem as barricas vazias. Os homens transportaram as barricas para cima e, ao cair da noite, cada barril transbordava de água pura e doce.
A chuva não cessou durante toda aquela noite e no dia seguinte; no terceiro dia, quando o sol se ergueu sobre a imensidão lavada das ondas cremosas e das fímbrias das nuvens imensas, o Yeoman of York não se encontrava em nenhum lugar à vista. Hal ordenou a Tom e Dorian que subissem ao mastro de gávea, pois seus olhos jovens já tinham demonstrado ser os mais aguçados do navio. Embora os garotos ficassem no alto a maior parte daquele dia, não conseguiram vislumbrar as velas do Yeoman of York no horizonte conturbado.
- Não os veremos de novo antes de lançarmos âncora em Boa Esperança - opinou Ned Tyler, e Hal concordou secretamente com ele.
Havia apenas a mais remota possibilidade de que os dois navios se encontrassem de novo naquela infinita extensão de oceano varrida pelo vento. Indubitavelmente, isso não preocupava Hal: havia planejado com Anderson cada detalhe para uma tal eventualidade. O ponto de encontro predeterminado era na baía da Mesa e, doravante, cada embarcação teria de fazer sua passagem independentemente da outra.
No 529 dia da partida de Plymouth, Hal ordenou que o Seraph fosse desviado para boreste. Pelos seus cálculos, estavam a menos de mil milhas da costa da América do Sul. Com o astrolábio e as cartas náuticas, ele poderia colocar a longitude do navio dentro de vinte milhas, com toda a confiança. Entretanto, a determinação da longitude não era uma ciência exata, porém mais um ritual obscuro com base num estudo dos pinos colocados a cada dia no quadro do leme" numa série de suposições e extrapolações da distância e curso compensados do navio.
Hal sabia muito bem que poderia estar a várias centenas de milhas distante de sua estimativa de cálculo. Para atracar em Boa Esperança, teria agora de seguir os ventos até que atingisse os 32 graus de latitude sul e depois manter rumo leste até ver a terra em formato distinto de mesa que caracterizava a ponta do continente africano. Aquela seria a mais lenta e cansativa etapa da viagem: com o vento quase em sua face, ele teria de corrigir a posição das velas a cada poucas horas.
Para evitar passar sem ver pelo cabo da Boa Esperança ao sul e entrar pelo oceano Índico, além, ele devia manter o curso, se quisesse chegar ao selvagem litoral africano a algumas milhas ao norte de Boa Esperança. Havia sempre o perigo de fazer aquela aproximação de terra na escuridão da noite ou sob o denso nevoeiro que tão freqüentemente encobria o cabo ao sul - muitos grandes navios tinham soçobrado e encontrado um túmulo naquele perigoso litoral. Com essa ameaça em mente, Hal sentia-se agradecido de, quando chegasse a hora, poder mandar Tom e Dorian e seus olhos agudos para o cesto da gávea.
Ao pensar em seus dois filhos, ficou feliz com o progresso que faziam no aprendizado da língua árabe. Guy desistira daquelas aulas sob a alegação de que o árabe era pouco falado em Bombaim, porém Tom e Dorian se reuniam toda tarde por uma hora com Alf Wilson no castelo de proa e travavam conversas no idioma, falando como papagaios. Quando Hal os testara, descobrira que poderiam manter uma conversação com ele. A fluência crescente no idioma seria útil aos garotos, mais tarde, na Costa da Febre. Era uma boa estratégia falar a língua do inimigo, pensou Hal.
Além do Yeoman of York, não tinham visto outro navio desde que haviam deixado Ushant, mas aquele oceano não era um lugar desolado e vazio: proporcionava cenas estranhas e maravilhosas de intrigar e encantar Tom e Dorian enquanto se acocoravam ombro a ombro no cesto da gávea acima do tombadilho.
Certo dia, da imensidão das águas, surgiu um albatroz. Circulando o navio em largos adejos, mergulhando e alçando vôo em correntes de ar, flutuando e planando algumas vezes tão perto das cristas das ondas que parecia tornar-se parte da espuma, ele manteve contato com o navio dia após dia. Nenhum dos meninos vira antes uma ave daquele porte. Às vezes voava para perto de onde eles se agachavam no poleiro abaulado, parecendo usar a corrente ascendente de ar da vela mestra do Seraph para manter sua posição, sem nunca bater as asas, apenas gentilmente dedilhando o ar com as pontas das negras penas. Dorian, em particular, deliciava-se com a criatura cuja envergadura era de três a quatro vezes o comprimento de seus próprios braços abertos.
- Mollymawk!
Chamou o albatroz pelo apelido dos marinheiros, que queria dizer Gaivota Estúpida, por sua natureza confiante e amistosa quando pousava em terra. Dorian havia pedido restos de comida ao cozinheiro do navio e os jogava para a ave durante seus vôos rasantes. Em pouco tempo, o albatroz aprendera a confiar nele e o aceitara. Vinha voando a seu assobio e grito. Pairava ao lado, à distância de um toque, quase imóvel no ar, a abocanhar satisfeito as migalhas que ele lhe lançava.
No terceiro dia, enquanto Tom se prendia ao cinto para evitar uma queda, Dorian estendeu a mão tão longe quanto conseguiu, segurando um pedaço de toicinho de porco salgado. Mollymawk o presenteou com um olhar sábio e experiente e aceitou o oferecimento com um delicado estalar de seu formidável bico curvado que poderia facilmente ter arrancado fora um dos dedos do menino.
Dorian assobiou e bateu palmas em triunfo enquanto todas as três meninas Beatty, que vinham acompanhando, do convés lá embaixo, o seu namoro com a ave, gritaram de prazer. Quando ele desceu, ao final do turno, Caroline beijou-o na frente dos oficiais do convés e da guarda.
- Meninas são tão macias! - Dorian comentou com Tom, quando estavam sozinhos na gaiúta de fogo, e fez uma imitação convincente de que iria vomitar.
Durante os próximos dias, Mollymawk tornou-se mais manso e mais confiante em relação a Dorian.
- Acha que ele gosta de mim, Tom? Quero conservá-lo para sempre como meu bicho de estimação.
Na oitava manhã, porém, quando subiram ao mastro de proa, o albatroz desaparecera. Por mais que Dorian assobiasse chamando por ele durante todo o dia, Mollymawk se fora, e, ao pôr-do-sol, o menino chorou amargamente.
Que bebê você é - disse Tom, e abraçou-o até que Dorian parou de soluçar.
Na manhã seguinte ao desaparecimento de Mollymawk, Tom tomou seu lugar usual no banco encostado no tabique na cabina de mestre Walsh. Quando as três meninas entraram, atrasadas como sempre Para as aulas diárias, ele resistiu à tentação de olhar na direção de Caroline. Ainda se remoía de indignação pela maneira como ela o tratara. Sarah Beatty, que o admirava como a um herói e que sempre o enchia de pequenos presentes, tinha, naquele dia, feito uma rosa de papel para servir de marcador de livro, com o qual o presenteou na frente de todos na cabina. Tom corou de humilhação ao resmungar um agradecimento envergonhado, enquanto, por trás das costas de Sarah, Dorian embalava um bebê imaginário nos braços. Tom chutou-lhe a canela e levou a mão para pegar os livros e a lousa, que guardava no baú debaixo do banco.
Ao olhar para a lousa, viu que alguém apagara a equação de álgebra na qual estivera trabalhando arduamente no dia anterior. Estava prestes a acusar Dorian do crime quando percebeu que o autor do feito tinha substituído seus cálculos por uma única linha escrita com giz numa caligrafia floreada: "Hoje à noite à mesma hora".
Tom ficou olhando para a lousa com ar apalermado. A caligrafia era inconfundível. Dorian e as meninas mais novas ainda tinham uma escrita desigual de criança, e a mão de Guy era firme e lhe faltava aos traços a sensibilidade e a arte. Embora ainda odiasse Caroline até as profundezas da alma, ele teria reconhecido a letra dela em qualquer lugar e em qualquer ocasião. De súbito, apercebeu-se de que Guy esticava o pescoço e tentava ler a lousa por sobre o seu ombro. Tom inclinou-a para ocultá-la dos olhos do irmão e com o polegar esfregou as letras em giz até ficarem indecifráveis.
Não conseguiu evitar e olhou para onde Caroline estava sentada. Ela, como sempre, parecia alheada da sua presença, absorta no livro de poesias que mestre Walsh lhe emprestara. Todavia devia ter sentido o olhar de Tom, porque a orelha que ele conseguia enxergar debaixo da boina, em meio aos cachos, tornou-se lentamente de uma tonalidade mais profunda de rosa. Um fenômeno assim tão impressionante o tomou de surpresa e Tom esqueceu que a detestava e encarou-a, fascinado.
- Thomas, resolveu o problema que lhe passei ontem?
Walsh o despertou dos devaneios e ele gaguejou com ar de culpa:
- Sim, quero dizer... não... isto é, quase.
Pelo resto da aula, Tom fervilhava de emoções. Num minuto, resolvia escarnecer do encontro secreto que Caroline propusera e rir na cara dela. Até mesmo deixou escapar a risada caçoísta em voz alta, e todos na cabina interromperam o que estavam fazendo para fitá-lo, espantados.
- Há alguma jóia de sapiência e erudição que queira partilhar conosco, Thomas? - perguntou Walsh, com voz sarcástica.
- Não, senhor. Só estava pensando...
Ah Pensei ter ouvido as engrenagens de seu cérebro rangendo.
- vamos interromper uma tão rara ocorrência. Por favor, continue, senhor.
Durante todo aquele dia, os sentimentos de Tom por Caroline oscilaram da adoração ao ressentimento raivoso. Mais tarde, ao se sentar no cesto da gávea, não viu nada exceto que as águas pareciam tão azuis violeta como os olhos dela. Dorian teve de lhe apontar a pálida ondulação no horizonte, onde emergira uma baleia, e mesmo assim ele a olhou com indiferença.
Quando ficou ao lado do pai para fazer a medição do meio-dia pelo visor de seu astrolábio, lembrou-se da sensação de um suave seio branco de encontro ao rosto, e todos os demais pensamentos foram dragados para longe.
O pai tomou a lousa de navegação de suas mãos e leu seus cálculos. Voltou-se para Ned Tyler.
- Parabéns, sr. Tyler. Durante a noite, deve ter velejado de volta ao hemisfério norte. Despache um bom homem para o mastro principal. A qualquer momento devemos fazer uma aproximação de terra na costa leste da América.
Tom não mostrou apetite no jantar e deu seu pedaço de carne salgada a Dorian, cuja fome era lendária e que a aceitou com alegria e a devorou antes que Tom pudesse mudar de idéia. Depois, quando os lampiões da coberta de artilharia foram apagados durante a noite, Tom ficou deitado, insone, em seu canto atrás da carreta do canhão, a repassar incessantemente os preparativos em sua cabeça.
A chave do paiol e a caixa de pavios ainda se encontravam onde as deixara, no nicho acima da porta. Ele vinha esperando por uma oportunidade para devolver a chave à mesa de seu pai, mas nenhuma se lhe apresentara até então. E agora estava profundamente grato por isso. Descobrira que amava Caroline acima de qualquer coisa no mundo e que não hesitaria em dar a vida por ela.
Com as sete badaladas do primeiro turno, Tom ergueu-se do catre e parou para ver se alguém o vira se levantar. Seus dois irmãos eram pequenas sombras escuras além do catre de Aboli, esparramadas no convés sob a luz difusa dos lampiões fechados da coberta. Passando sobre os corpos a ressonar, encolhidos, do resto da tripulação, ele seguiu sem ser questionado para o corredor.
De novo, a lamparina queimava na cabina de seu pai e Tom ficou a Pensar o que mantinha Hal sempre acordado até depois da meia-noite. Moveu-se sorrateiramente e não conseguiu se impedir de parar outra vez ao lado da cabina das meninas. Julgou ter ouvido o som de uma respiração contida além do tabique e, depois, a voz de uma das meninas falando numa voz engrolada e sonolenta. Passou adiante e pegou a chave de seu esconderijo. Entrou no paiol para tirar o lampião, acendê- lo e colocá-lo em seu gancho.
Sentia-se tão inquieto que pulava em sobressalto a cada ruído estranho no navio em trânsito, com a quizila dos ratos nos porões ou com o ranger e a batida de uma peça solta de corda ou cabo. Agachou-se atrás da porta do paiol e esperou pelo som de passos na escada. Dessa vez, não cochilou e enxergou os brancos pés descalços no momento em que surgiram hesitantes à vista. Assobiou baixinho.
Ela parou e olhou na direção dele. Então, desceu os últimos degraus da escada com pressa. Tom correu para encontrá-la e Caroline jogou-se em seus braços, agarrando-se a ele.
- Queria dizer quanto sinto por ter batido em você - murmurou. - Odiei a mim mesma todos os dias, desde então.
Tom não conseguiu confiar em si mesmo para falar e, sendo que ele continuava em silêncio, Caroline ergueu os olhos e fitou-o. Era meramente uma pálida luminescência sob a luz tênue, mas" Tom inclinou-se para beijá-la, buscando-lhe a boca. Ela avançou ao mesmo tempo e o primeiro beijo tocou-lhe a testa; o próximo, a ponta do nariz, e, em seguida, as bocas de ambos se juntaram.
Caroline foi a primeira a afastar-se.
- Aqui não - murmurou. - Alguém pode aparecer.
Seguiu-o de boa vontade quando ele a tomou pela mão e puxou-a pela porta, para dentro do paiol. Sem hesitação, Caroline dirigiu-se diretamente para a pilha de sacos de pólvora e o arrastou para que se deitasse a seu lado. Tinha os lábios abertos, à espera do próximo beijo, e Tom sentiu-lhe a ponta da língua roçar seus lábios como uma mariposa a esvoaçar sobre a chama de uma vela. Sugou-a.
Ainda boca na boca, ela pegou o cordão que prendia o colarinho da camisa de Tom, e, quando o soltou, enfiou uma mãozinha gelada pela abertura e lhe acariciou o peito.
- Você é peludo. - Parecia surpresa. - Quero ver. - Ergueu-lhe a frente da camisa. - Sedoso. Muito macio. - Pressionou a face sobre o peito dele.
A respiração de Caroline era quente e fazia cócegas. Aquilo o excitou de uma forma que não conhecera jamais. Uma sensação de urgência o dominou, como se ela pudesse ser arrastada para longe dele a qualquer momento. Tentou soltar a fita que fechava a camisola de Caroline, mas os dedos pareciam entorpecidos e inábeis.
Espere. - Ela afastou-lhe as mãos. - Deixe que eu faça isso.
Tom tinha uma vaga consciência de que Caroline se comportava de maneira diferente em relação ao último encontro ali, no paiol: mostrava iniciativa e confiança em si mesma. Agia mais como Mary ou uma das outras garotas com que ele estivera em High Weald. De imediato, convenceu-se de que sua intuição estava correta. Ela já fizera aquilo antes sabia tanto quanto ele ou talvez mais, e a constatação o estimulou Não havia mais motivo para refrear os seus desejos.
Caroline se ajoelhou, ergueu a camisola por sobre a cabeça e tirou-a num só movimento. Jogou-a no chão. Estava absolutamente nua agora, mas tudo que Tom viu foram os seios, grandes, redondos e brancos, parecendo luzir como duas enormes pérolas penduradas acima dele na penumbra. Estendeu a mão e encheu as palmas com aquela macia abundância.
- Não com tanta força. Não seja rude - ela se queixou. Por um instante, deixou que ele fizesse o que queria, e então murmurou: - Toque-me! Toque-me lá, como antes.
Tom fez o que ela pedia, e Caroline fechou os olhos e ficou imóvel. Delicadamente, Tom avançou sobre ela, com cuidado para não assustá-la. Desceu a calça até os joelhos.
De súbito, Caroline tentou se sentar.
- Por que parou? - Olhou para baixo. - O que está fazendo? Não, pare com isso! - Tentou empurrá-lo, mas Tom era mais pesado e mais forte que ela, e Caroline não conseguiu movê-lo.
- Não vou machucá-la - ele prometeu.
Ela empurrou-o pelo ombro, sem sucesso, e por fim desistiu. Parou de se debater e relaxou sob a insistência das carícias. A rigidez abandonou-lhe o corpo. Caroline fechou os olhos e começou a emitir aquele suave ronronar na garganta.
Abruptamente, seu corpo todo se contorceu e ela deixou escapar um grito abafado.
O que está fazendo? Por favor, não! Oh, Tom, o que está fazendo? Debateu-se outra vez, mas ele a segurou com força e, depois de um instante, ela deixou-se abraçar. Então, ambos começaram a se mover no mesmo ritmo, na cadência natural tão antiga como a própria humanidade.
Um bom tempo depois, ambos se deixaram cair, lassos, lado a lado, com o suor a lhes refrescar os corpos, a respiração ofegante a se acalmar aos poucos, até que conseguiram falar novamente.
- É tarde. Agnes e Sarah logo irão acordar. Preciso ir - murmurou Caroline, e estendeu a mão para a camisola.
- Voltará aqui de novo? - ele perguntou.
- Talvez. - Ela enfiou a camisola pela cabeça e amarrou a fita do decote.
- Amanhã à noite? - insistiu Tom.
- Talvez - ela repetiu, e escorregou da pilha. Seguiu até a porta do paiol. Ficou a escutar e depois espiou pela fresta. Entreabriu a porta o suficiente para se esgueirar para fora e se foi.
Gradualmente, o Seraph velejou para o sul, deixando as latitudes tropicais Os dias esfriaram e depois do calor sufocante que haviam suportado, o vento chegou doce e fresco do sudeste. O oceano temperado fervilhava de vida, tingido de verde pelo krill e pelo plâncton. Do mastro mestre, podia-se enxergar a sombra de cardumes de atum, infindáveis procissões de peixes enormes ultrapassando sem esforço o navio em suas misteriosas perambulações pelo esmeraldino oceano.
Por fim, a medição do sol do meio-dia demonstrou que o navio tinha seguido rumo certo ao sul e aos 32 graus de latitude. Hal trouxe a proa para o percurso final até Boa Esperança.
Era um alívio para ele que o fim daquela etapa da viagem se aproximasse e saber que logo estariam prontos para a aproximação de terra. Somente no dia anterior o dr. Reynolds o informara dos primeiros casos de escorbuto entre a tripulação. Aquela misteriosa aflição era a praga de todo capitão a empreender uma longa jornada. Uma vez que um navio estivesse no mar por seis semanas, o nojento miasma que alimentava a enfermidade poderia tomar de assalto a tripulação e derrubar a todos sem razão ou aviso.
Os dois homens doentes eram simplesmente os primeiros de muitos, Hal sabia. Tinham mostrado ao médico suas bochechas inchadas e a sangrar e as primeiras feridas escuras nas barrigas, onde o sangue minava da pele. Nenhum homem poderia ser responsabilizado por aquela pestilência ou pela maneira milagrosa como desaparecia, e suas vítimas ficavam curadas assim que o navio chegava ao porto.
Que seja em breve, Senhor - Hal rezou e ergueu os olhos para o horizonte, a leste, ainda vazio.
Agora, ao se aproximarem de terra, bandos de golfinhos se juntaram a eles, cavalgando as ondas da proa, recuando para trás ou avançando por sob a quilha, surgindo de novo no ponto mais distante e curvando os costados negros e brilhantes, saltando e fazendo piruetas no ar e mergulhando num bater de caudas, a observar os homens no cordame com um olhar reluzente e um sorriso fixo.
Aquele era o oceano das grandes baleias. Em certos dias, seus esguichos a jorrar, brancos ao vento, podiam ser vistos de onde quer que olhassem, desde o mastro principal. As criaturas imensas como montanhas rolavam e saltavam na superfície verde das águas. Algumas eram maiores do que o casco do Seraph e passavam tão perto que os meninos puderam ver as cracas e outros grupamentos de vida marinha incrustados em seus corpos como se fossem recifes de coral, não criaturas vivas.
- Há vinte toneladas de óleo em cada animal desses - Daniel Grande comentou com Tom, ao se debruçarem juntos no gurupés, enquanto admiravam um Leviatã daqueles alçar-se das profundezas, a uma distância de uma amarra adiante, e erguer sua enorme cauda bifurcada para os céus.
- Aquela cauda é tão larga quanto a nossa vela de mezena - maravilhou-se Tom.
- Dizem que é o maior dos seres da criação - concordou Daniel. - Ao preço de dez libras a tonelada de seu óleo, podemos ganhar mais caçando baleias do que piratas.
- Como alguém poderia matar uma coisa assim tão grande? - admirou-se Tom. - Seria como tentar matar uma montanha.
- Tarefa perigosa é, mas existem aqueles que fazem isso. Os holandeses são grandes caçadores de baleias.
- Eu gostaria de tentar - disse Tom. - Gostaria de ser um grande caçador.
Daniel Grande apontou para o gurupés que subia e descia em relação ao horizonte.
- Há muito que caçar no lugar aonde vamos. É uma terra que pulula de criaturas selvagens. Há elefantes com presas de marfim maiores que você. Você pode conseguir o que deseja.
A excitação de Tom crescia a cada dia de percurso. Depois de fazerem a medição do sol, seguiam até a cabina de popa com seu pai para observá-lo marcar a posição do navio: a linha sobre a carta náutica chegava cada vez mais perto da enorme massa de terra, em formato da cabeça de um cavalo.
Seus dias eram tão plenos de ansiedade e atividade frenética que ele deveria estar exausto ao cair da noite. Na maioria das vezes conseguia dormir por umas poucas horas antes da meia-noite, mas então acordava agitado ao fim do primeiro turno de guarda e saltava do catre.
Agora, não mais era preciso implorar ou bajular; Caroline ia ao paiol toda noite por conta própria. Tom descobrira que atiçara uma gata selvagem.
Ela não se mostrava hesitante ou acanhada como antes, mas se emparelhava a ele na urgência da paixão, dando vida às emoções com desvairado excesso. Tom muitas vezes carregava com ele a evidência seus encontros: suas costas arranhadas pelas longas unhas, os lábios mordidos e machucados.
Contudo, tornara-se descuidado em sua pressa em cumprir o compromisso de cada noite e já se defrontara com várias situações perigosas. Certa vez, quando passava pela cabina do sr. Beatty, a porta se abrira de repente e a sra. Beatty saíra. Tom apenas tivera tempo de puxar o barrete por sobre os olhos e de disfarçar a voz ao seguir em frente.
Sete badaladas do primeiro turno e tudo está em ordem - resmungara com voz rouca. Era alto como qualquer homem a bordo agora, e o corredor, parcamente iluminado.
- Obrigada, meu bom homem. - A sra. Beatty ficara tão encabulada por ser pega de camisola que recuara para a cabina como se fosse culpada de alguma coisa.
Em mais de uma noite, Tom teve a sensação de que era seguido ao descer para o convés de artilharia. Numa delas, teve certeza de ouvir passos descendo o corredor atrás de si, mas, ao se voltar, não havia ninguém lá. Numa outra ocasião, saía do convés inferior de madrugada, ao fim do turno do meio, quando ouviu o baque de botas pela escada do tombadilho de popa. Só teve tempo de recuar e Ned Tyler surgiu na passagem, rumo à cabina de seu pai. Das sombras onde se escondera, viu-o bater na porta, e lá de dentro a voz de seu pai respondera:
- Quem é?
- Ned Tyler, capitão. O vento está apertando. A embarcação pode perder o controle de uma verga se a forçarmos. Permissão para alterar as velas de estai e rizar a vela grande.
- Estarei no tombadilho imediatamente, Ned - o pai de Tom respondera.
Um minuto mais tarde, ele irrompera da cabina e passara a uns poucos passos de onde Tom se encontrava, ainda a vestir sua jaqueta estofada na pressa de chegar ao corredor que levava ao convés.
Tom chegara ao catre na coberta de artilharia assim que o assobio do contramestre cortara os ares e a voz de Daniel Grande ressoara na escuridão: "Todas as mãos a encurtar velas". Tom tivera de fingir esfregar os olhos de sono e juntar-se aos homens para enfrentar a noite de ventania.
Era de sua natureza não ficar alarmado ou acovardado com aquelas escapulidas cheias de riscos e, por mais estranho que fosse, serviam-lhe de estímulo. Havia em seu andar agora o jeito arrogante de um jovem galo, o que fez Aboli sorrir maliciosamente e menear a cabeça.
- Tal pai, tal filho!
Certa manhã, quando o navio fora colocado no rumo do porto e seu movimento facilitado pela longa ascensão e empuxo das ondas pesadas do verde Atlântico, Tom estava entre os homens do mastro principal que desciam depois de trabalhar nos panos do velame. De repente, sem nenhuma razão que não fosse a alegria e a confiança arrogante, ele ficou de pé sobre a verga e se pôs a dançar a dança tradicional dos marujos ingleses.
Cada pessoa no convés enregelou-se de pavor ao observar o comportamento suicida de Tom. A doze metros acima do tombadilho, Tom executou dois passos completos, três para a mesura, na ponta do pé descalço, uma das mãos no quadril e a outra sobre a cabeça, e, em seguida, saltou sobre os panos e deslizou até o tombadilho abaixo. Tivera bom senso o bastante para certificar-se de que seu pai estava em sua cabina na ocasião, mas antes que o dia terminasse, Hal ouvira falar da façanha e mandou chamá-lo.
- Por que fez uma coisa tão estúpida e irresponsável? - esbravejou.
- Porque John Tudwell me disse que eu não me atreveria - explicou Tom, como se essa fosse a melhor razão do mundo.
O que talvez fosse, pensou Hal, enquanto estudava o semblante do filho. Para seu aturdimento, deu-se conta de que se encontrava diante de um homem, não de um garoto. Tom estava forte e maduro a ponto de quase não ser reconhecido. Tinha encorpado com o trabalho duro, e seus ombros se alargado com o constante esforço de escalar o cordame e manejar os panos e escotas sob o sopro forte do vento, seus braços musculosos das horas de treinamento de esgrima com Aboli a cada dia, e ele se equilibrava como um gato ao jogo do navio pelas ondas do sul.
Havia, porém, alguma coisa a mais que ele não conseguiu apontar. Sabia que Tom sempre fora o mais precoce entre todos os seus filhos e, embora tentasse controlar suas extravagâncias mais loucas, Hal jamais quisera restringir aquele espírito ousado e aventureiro. Secretamente, admirava a coragem do garoto e sentia orgulho de seus modos determinados e intrépidos. Agora, no entanto, tinha consciência de que alguma coisa acontecera e lhe passara despercebido. Aquele era um homem, maduro, adulto, que o encarava de igual para igual.
- Muito bem! - disse Hal, por fim. - Mostrou a John Tudwell que ele estava errado, não é? Então, não há necessidade de dançar a dança dos marujos de novo.
- Não, pai - Tom concordou prontamente. - Isto é, não até alguém me dizer que me faltam colhões para isso. - Seu sorriso era tão contagiante que Hal sentiu a própria boca se repuxar nos cantos.
- Suma daqui! - Empurrou Tom para a porta da cabina. - Não há como arrazoar com um bárbaro.
Guy sentou-se em seu lugar costumeiro no banco ao lado de Caroline, na cabina de mestre Walsh. Tinha o rosto pálido e falou pouco durante o transcorrer da manhã, respondendo a quaisquer perguntas do professor com concisos monossílabos. Manteve os olhos no livro, sem olhar nem para Tom ou Caroline, mesmo quando liam em voz alta os textos que Walsh lhes pedira.
Caroline finalmente deu-se conta de seu estranho comportamento.
- Não está se sentindo bem, Guy? Sente enjôos de novo? - ela murmurou.
Guy não conseguiu encará-la.
- Estou perfeitamente bem - disse-lhe. - Não precisa se preocupar comigo. - E emendou para si mesmo: nunca mais!"
Guy havia construído um mundo de fantasias durante as últimas semanas, desde que assinara os papéis de admissão e seu emprego na feitoria da Companhia das índias Orientais em Bombaim fora assegurado. Com as ligações de sua família e sob a proteção do sr. Beatty, ele pudera enxergar por antecipação o rápido progresso aos serviços da grande empresa. A família Beatty tomar-se-ia a sua própria, e Caroline estaria lá ao lado dele. Imaginara compartilhar sua companhia todos os dias no paraíso tropical de Bombaim. Iriam cavalgar juntos pelas plantações de palmeiras. Às tardes, haveria recitais de música, Guy a tocar e Caroline a cantar, e leituras de poesias, piqueniques com a família. Passearia de mãos dadas com ela pelas praias brancas, trocariam beijos puros, castos. Em poucos anos, seria um homem feito, com alto status nos serviços da Companhia e em excelentes condições de pedi-la em casamento. Agora, no entanto, todos aqueles sonhos tinham desmoronado.
Ao tentar pensar nas coisas vis que havia descoberto, sua mente recusou-se como um cavalo nervoso. As mãos lhe tremeram e ele sentiu o sangue lhe ferver no cérebro. Não conseguia suportar outro minuto no confinamento da minúscula cabina, junto das duas pessoas a quem odiava mais do que jamais pudera crer ser capaz. Levantou-se abruptamente.
- Mestre Walsh, por favor, desculpe-me. Estou me sentindo atordoado. Preciso dar uma volta no convés. O ar fresco... - Sem esperar por permissão, cambaleou para a porta e subiu em fuga pela escada. Correu até a proa e agarrou-se a uma adriça, deixando que o vento soprasse em sua face. Seu sofrimento era imenso e o resto de sua vida distendeu-se à sua frente como uma planície deserta e sem fim.
Quero morrer! - exclamou em voz alta, e debruçou-se sobre a amurada do navio. A água era verde e linda. Pisou nas correntes e equilibrou-se ali, pendurado por uma das mãos na extensão do cabo. - Será fácil - disse a si mesmo. - Rápido e tão fácil... - Começou a pender sobre as ondas ligeiras e espiraladas da quilha.
Um poderoso aperto fechou-se em seu pulso livre e ele quase perdeu o equilíbrio.
- Não há nada que possa ter perdido lá, Mbili - a voz de Aboli trovejou. - Você nunca foi um bom nadador.
- Deixe-me! - disse Guy com amargura. - Por que sempre interfere, Aboli? Só quero morrer.
- Terá o que deseja, pois é a única certeza nesta vida - Aboli lhe assegurou. - Mas hoje não, Mbili. - O nome pelo qual chamara Guy desde o dia de seu nascimento significava o Número Dois no idioma das florestas. Com gentileza, ele aumentou a pressão do braço.
Guy tentou em vão resistir àquela força.
- Deixe-me, Aboli. Por favor.
- Os homens estão olhando para você - Aboli disse, baixinho. Guy olhou ao redor e viu que alguns dos guardas no convés tinham parado de conversar e observavam aquela pantomima com curiosidade. - Não envergonhe seu pai e a mim com tal estupidez.
Guy capitulou e saltou desajeitado para o tombadilho. Aboli soltou-lhe o pulso.
- Vamos conversar - sugeriu.
- Não quero conversar, com você ou com ninguém.
Então ficaremos calados juntos - concordou Aboli, e empurrou-o para a amurada de sotavento.
Agacharam-se ali, abrigados do vento e dos olhos da guarda. Aboli estava calmo e em silêncio, como uma montanha, uma presença tranquilizadora. Não olhou para Guy nem o tocou, mas estava ali. Longos minutos se escoaram e então Guy exclamou, impulsivamente:
Eu a amo tanto, Aboli! É como se algo me devorasse as entranhas.
Ora essa!, pensou Aboli com tristeza. Guy descobriu a verdade. Klebe não ocultou seus rastros, ponderou consigo mesmo. Este potrinho percebeu que o jovem garanhão arrebentou a cerca. É de admirar que Mbili tenha levado tanto tempo para descobrir.
- Sim, eu sei, Mbili - disse em voz alta. - Eu também amei.
- O que devo fazer? - perguntou Guy, em tom de lástima.
- Não importa quanto machuque, nunca vai matá-lo, e, um dia, muito antes do que possa acreditar possível, terá esquecido o sofrimento.
- Nunca me esquecerei - disse Guy, com profunda convicção. - E jamais esquecerei o meu amor por ela.
- Hal Courtney ouviu o sino do navio soar no início da troca de guarda. Meia-noite - murmurou.
Comprimiu ambos os punhos no meio das costas. Ficara sentado à mesa por muitas horas e se sentia enrijecido e com os olhos cansados e a arder. Levantou-se e girou a coberta do pavio do lampião, ajustando-a para iluminar os documentos sobre a mesa, e depois se sentou de novo na pesada cadeira de carvalho para debruçar-se mais uma vez em seu trabalho.
Os croquis dos construtores do Seraph se espalhavam pela mesa. Ele examinou o plano das cobertas de artilharia por um momento e depois o colocou de lado, puxou o desenho da elevação lateral e comparou os dois.
- Temos de ocultar os canhões e dar à embarcação a aparência de um navio mercante desarmado - murmurou. - Isso significa esconder os tampos das espias de artilharia do convés inferior... - Interrompeu-se e franziu a testa ao ouvir um ligeiro ruído à porta da cabina. - Quem é?! - exclamou. O tempo estava bom, e o vento, leve e constante. Ele não esperava ser interrompido. Não houve resposta e, depois de um instante, resmungou. Devia ter sido um rato ou sua imaginação. Voltou a atenção novamente para os desenhos.
O ruído à porta surgiu de novo. Dessa vez, irritado, ele empurrou a cadeira e se levantou. Encolhido sob as vigas, caminhou para a porta e abriu-a. Uma figura miúda estava ali, envergonhada, diante dele. Custou-lhe um momento para reconhecer seu próprio filho.
Guy? - Examinou-o atentamente. - O que está fazendo aqui a esta hora da noite? Entre, rapaz.
Guy entrou na cabina e puxou a porta atrás de si. Tirou o barrete da cabeça. Tinha o rosto pálido e a expressão nervosa.
Pai, eu tinha de lhe contar... - gaguejou, torcendo o barrete nas mãos.
O que é, rapaz? Fale -, Hal o encorajou. ? Há alguém no paiol de pólvora no porão - Guy falou, num só impulso. - A porta está aberta e há uma luz.
- O quê? - A voz de Hal era aguda de susto. - No paiol? Uma luz? - Uma avalanche de sensações ruins o tomou de assalto.
- Sim, senhor.
Hal girou nos calcanhares e foi até sua mesa. Abriu a gaveta de cima e pegou a caixa de madeira com as pistolas. Abriu-a e tirou uma das armas de cano duplo, verificou rapidamente a pederneira e o gatilho e então a enfiou no cinto. Em seguida examinou a segunda delas e empunhou-a na mão direita.
- Vamos ver isso - resmungou de cara fechada e tirou o lampião do gancho. - Venha comigo, Guy, mas sem barulho. Não queremos alarmar os velhacos, seja lá quem forem.
Abriu a porta da cabina, e Guy o seguiu para o corredor.
- Feche com cuidado - Hal o advertiu e seguiu para a ponta do corredor. Espiou o convés inferior, mas não viu nenhuma réstia de luz. Voltou a cabeça para Guy. - Tem certeza?
- Sim, papai.
Com passos leves, Hal desceu a escada, parando a cada degrau para ouvir e olhar ao redor. Chegou ao pé da escada e parou novamente. Só então enxergou a tênue fresta de luz em torno da-porta do paiol.
- Sim! - murmurou, e armou os dois cães da pistola em sua mão. - Agora, veremos o que estão aprontando. - Avançou para o paiol carregando o lampião atrás das costas para ocultar a chama. Guy estava logo atrás.
Hal aproximou-se da porta e encostou o ouvido no grosso painel de carvalho. Indistintos, acima dos outros ruídos do navio, ouviu sons que o intrigaram, sussurros e gemidos, um roçar e bater que não conseguiu identificar.
Levou a mão à maçaneta, e esta girou com facilidade em sua mão. Apoiou o ombro contra a porta e forçou-a devagar. O batente estalou suavemente e então a porta se abriu. Ele parou à entrada e ergueu o lampião acima da cabeça. Por um instante, viu-se privado do poder de se mexer. A cena que tinha diante de si estava tão longe de suas expectativas que ele não conseguiu dar sentido ao que via.
O lampião de tela pendurado no gancho preso ao tabique, acima das pilhas prontas de pólvora, adicionou luz aos raios de sua própria lamparina. Roupas se amontoavam no chão aos pés de Hal e corpos debatiam-se sobre os sacos de seda diante dele. Levou um momento para perceber que estavam nus. As carnes pálidas brilhavam na penumbra e ele ficou olhando estarrecido para aquilo. Cabelos cacheados de mulher, pernas enrodilhadas, boca vermelha escancarada, pés pequenos que chutavam espasmodicamente as vigas do convés no alto, esguias que agarravam e torciam os cabelos de um homem, a cabeça do homem enterrada entre aquelas coxas peroladas, costas e nádegas batendo contra o colchão de sacos de pólvora enquanto a mulher se contorcia em desvario.
Os dois pareciam inconscientes de qualquer coisa a não ser de si mesmos. Até o lampião a derramar claridade sobre eles não os alarmara pois os olhos da garota estavam cerrados e suas feições tão contorcidas de paixão que pareceu uma estranha a Hal.
Ficou ali, paralisado de perplexidade, e apenas voltou a raciocinar quando Guy tentou adentrar o paiol. Hal bloqueou-lhe a entrada e impediu-o de ver a cena.
Volte, Guy - disse, e sua voz penetrou a cortina de paixão que cobria o casal sobre a pilha.
Os olhos da mulher se abriram e, então, lentamente,,se arregalaram como as pétalas de uma violeta, a fitar Hal com horror e incredulidade. Sua boca torceu-se num silencioso grito de desespero, e ela ergueu-se sobre um cotovelo, os seios balançando redondos e brancos à luz da lamparina. Com ambas as mãos, torceu os cabelos da cabeça alojada entre suas coxas, mas não conseguiu movê-la.
- Tom!
Hal encontrou por fim a voz. Viu os músculos das costas largas do rapaz convulsionarem de espanto, como se uma adaga tivesse sido fincada dentro delas. Então, Tom ergueu a face e encarou o pai. Pareceu transcorrer uma eternidade e os três ficaram congelados ali.
O rosto de Tom estava afogueado de sangue como se ele tivesse disputado uma corrida ou uma luta encarniçada. Seu olhar era tão desfocado e vago como o de um bêbado.
- Em nome de Deus, garota, cubra-se! - Hal esbravejou. Sua própria vergonha queimou-lhe as faces ao perceber que lhe custava um grande esforço tirar os olhos daquele corpo exposto de mulher.
Ao dizer isso, chutou Tom para o lado e jogou-o da pilha sobre o convés. A garota agarrou a camisola descartada e levou-a ao peito, tentando cobrir a nudez, dobrada nos joelhos como um animal selvagem Pego numa armadilha. Hal voltou-se de costas para ela e chocou-se contra Guy, logo atrás de si, que lutava para ver o que estava acontecendo dentro do paiol. Hal o enxotou com rispidez para o corredor.
Volte para a sua cama! - esbravejou. - Isto não é da sua conta.
Guy recuou, tropeçando devido à hostilidade da voz de seu pai.
- Não diga a ninguém o que viu aqui esta noite, pois, se o fizer, eu lhe arrancarei a pele das costas.
Guy retrocedeu lentamente e subiu a escada com relutância, e Hal voltou ao paiol.
Caroline enfiara a camisola pela cabeça e estava coberta agora até os tornozelos. Postou-se diante de Hal de cabeça baixa. Os cachos e caracóis de seus cabelos cobriam-lhe a face. Parecia uma garotinha, infantil e inocente. O que provara - com o diabo por testemunha - não ser, pensou Hal com desagrado, e olhou para o filho, que saltava em uma perna tentando enfiar a outra dentro da calça. Não mais havia traço algum em sua face daquela costumeira autoconfiança ou expressão de bravata. Puxou a calça até a cintura, fechou o cinto e, em seguida, se postou envergonhado ao lado da garota, nenhum deles capaz de enfrentar o olhar severo de Hal.
- Sr ta. Caroline - ordenou Hal -, vá para a sua cabina neste mesmo instante.
- Sim, capitão - ela murmurou.
- Só posso dizer que estou desgostoso com o seu comportamento. Jamais esperei tal coisa de uma dama da sua criação. -"? Sentiu-se vagamente ridículo ao dizer isso. Como se as classes mais baixas fossem as únicas que pudessem fazer sexo, zombou de si mesmo em silêncio, e buscou por alguma reprimenda menos ridícula. - O que seu pai fará quando eu lhe contar? - esbravejou.
Ela ergueu os olhos com terror verdadeiro a lhe dissolver a beleza.
- Não conte a ele! - De súbito, de forma constrangedora, jogou-se aos pés dele e agarrou-o pelos joelhos. - Por favor, não conte a ele, capitão. Farei qualquer coisa, por favor, não conte a ele.
- Levante-se, garota. - Hal ergueu-a nos pés, sua raiva se dissipando. Custou-lhe esforço alimentar as chamas da irritação. - Vá para a sua cabina e fique láaté que eu mande chamá-la.
- Não vai contar a meu pai? - implorou ela. Lágrimas lhe escorriam pelas faces agora.
- Não lhe farei promessas quanto a isso. Você merece muito bem o chicote de cavalo que eu sei ele descarregará em você. - Soltou-a e empurrou-a para fora.
Ela fugiu pela escada e Hal ouviu a porta da cabina abrir e fechar-se suavemente. Voltou-se para Tom e tentou encará-lo com severidade, mas sentiu as labaredas da indignação perderem a intensidade. Mesmo a contragosto, recuou nos anos até visualizar outro rapaz e uma moça numa cabina escura de navio naqueles mares do sul. Ele tinha a idade de Tom e a garota holandesa era cinco anos mais velha, quando o fizera transpor o limiar da adolescência. Tinha cabelos dourados e a face de um anjo inocente, mas o corpo de uma mulher lasciva e a natureza de um ente maligno. Hal pestanejou ao trazer a mente de volta do recuo até vinte anos antes, e descobrir Tom ainda de pé, com ar contrito, diante de si.
A srta. Beatty é uma passageira neste navio e portanto sob os meus cuidados - disse. - Você envergonhou a si mesmo e a mim.
- Sinto muito, papai.
Não creio. - Hal estudou-lhe a face e viu-o lutando com a verdade.
Quero dizer, sinto que tenha envergonhado ao senhor - Tom se desculpou. - Mas, como ninguém além de nós sabe disso, então sua vergonha jamais será tornada pública, senhor.
Hal teve de se conter para não bufar diante da arrogância de seu filho, mas então lhe acompanhou a lógica sagaz.
- Você é um bárbaro, rapaz - disse gravemente, e pensou: Como eu era, como todo jovem de sangue quente da sua idade.
- Tentarei me aprimorar - prometeu Tom.
Hal o encarou com severidade. Nunca ousara se dirigir ao próprio pai daquela maneira. Tinha pavor ao pai. Aquele garoto não estava apavorado diante dele; respeitava e o admirava, talvez; com certeza, amava-o, mas não se deixava intimidar quando estavam face a face tal como naquele instante. Falhei em meu dever? Deveria tê-lo feito me temer?, imaginou. Não, fico feliz com isso. Fiz dele um homem.
- Pai, aceitarei prontamente seja qual for a punição que me impuser. Mas, se contar à família de Caroline sobre isso, trará desgraça a ela e lhe arruinará a vida. - Tom falava com um leve tremor na voz. - Ela ? não merece isso de nós.
- Concordo com você - admitiu Hal com relutância. - Tenho seu compromisso de que nunca mais tentará ficar sozinho com a garota de novo enquanto ela estiver neste navio?
Prometo. - Tom ergueu a mão direita. - Juro ao senhor.
Então não falaremos mais disso e nada direi ao sr. Beatty.
- Obrigado, senhor.
Hal sentiu-se recompensado com a expressão nos olhos de seu filho e teve de tossir para dissipar o aperto na garganta. Relanceou o olhar ao redor buscando de certa forma desviar-se do assunto.
- Como entrou no paiol?
- Emprestei a chave da sua mesa - Tom respondeu com firmeza.
- Emprestou?
- Sim, senhor. Iria devolvê-la quando terminasse com isso.
- Não tem mais necessidade dela agora, eu lhe asseguro - Hal lhe disse com ar severo.
Tom seguiu até a soleira da porta, levou a mão até o nicho no alto e pegou a chave.
- Tranque a porta - ordenou Hal, e, quando Tom o fez, disse: - Dê-me a chave. - Tom entregou-a.
- Acho que é mais do que o bastante para uma noite - disse Hal. - Vá para a sua cama agora.
- Boa noite, papai. E eu sinto muito mesmo por haver lhe causado aborrecimentos.
Hal observou-o desaparecer pela escada e então sorriu, indulgente. Talvez devesse ter conduzido aquele pequeno infortúnio com mais habilidade, pensou, mas, que diabos, como?
Guy esperou ansioso pelo tumulto que deveria se seguir à exposição pública do par pecaminoso. Esperava que Caroline fosse castigada pelo pai, talvez surrada como uma criada pega a roubar, desprezada pela mãe e pelas irmãs, transformada numa tal rejeitada que só teria a ele com quem contar em busca de conforto.
Em sua imaginação, Caroline viria procurá-lo e imploraria por seu perdão por ter traído o amor puro e honesto que ele nutria por ela. Ficaria à sua mercê e prometeria que, se a perdoasse, tentaria pelo resto da vida recompensá-lo por tudo. Tal pensamento o aquecia e suavizava o terrível sofrimento que enfrentara desde a noite em que seguira Tom pela primeira vez até o convés inferior e descobrira a atividade abjeta em que estava engajado.
Depois, nutriu a esperança de que seu pai pudesse arrastar Tom diante de todos no navio e ordenasse que fosse colocado no triângulo e flagelado publicamente, mesmo que em seu coração soubesse que era demasiado esperar por isso. Mas, pelo menos, o pai forçaria Tom a desculpar-se com o sr. e a sra. Beatty e o proibiria de conversar novamente com Caroline ou com qualquer outro membro da família. Tom se tornaria um pária no navio. Talvez seu pai pudesse expulsá-lo do Seraph quando chegassem a Boa Esperança, e até mesmo mandá-lo de volta para a Inglaterra em desgraça, para sofrer a tirania de Billy Preto em High Weald.
Esperava ansiosamente que algumas ou todas aquelas coisas acontecessem. E seu desapontamento crescia a cada dia que se passava e nada ocorria, como se seu torvelinho emocional e sofrimento não encontrassem ressonância ou conseqüência.
Era verdade que, por vários dias depois do episódio degradante, Caroline mostrara-se quieta e retraída, a saltar de susto a cada vez que ouvia passos fora da cabina onde se debruçavam sobre os livros, parecendo apavorada quando ouvia a voz do pai vinda do convés acima, nunca relanceara os olhos na direção de Tom e os mantendo sobre livros. Guy percebeu com alguma satisfação que, se Tom chegava ao tombadilho quando ela estava lá com a mãe e as irmãs, Caroline imediatamente arranjava alguma desculpa e descia para a cabina, ficando sozinha por horas.
Tal situação perdurou por menos de uma semana, e então bem depressa ela recobrou a velha pose e os modos cativantes. O rosado voltou mais uma vez às suas faces, Caroline ria e brincava com mestre Walsh. e cantava com graça os duetos com Dorian durante os recitais musicais. Ao mesmo tempo, Guy se recusava a tomar parte naquelas atividades da tarde, alegando mal-estar e jazia miseravelmente em seu catre junto à coberta de artilharia, a ouvir os sons abafados da música e das risadas no tombadilho acima. Por fim, permitiu que mestre Walsh o persuadisse a retornar com sua cítara, embora sua expressão e postura ao tocar fossem heroicamente trágicas.
Quanto a Tom, mostrava pouco remorso por sua traição e desonestidade. A bem da verdade, por algum tempo não fez nenhuma menção de conversar com Caroline ou mesmo de lhe chamar a atenção, mas isso não era novidade. Não passava de mais um de seus pérfidos estratagemas. Então, durante uma das aulas, Guy interceptou uma troca de olhares entre os dois.
Caroline deixou cair o giz no chão e, antes que Guy pudesse pegá-lo, ela se apressou a procurá-lo sob a mesa. O navio balançava e o giz rolou pela cabina em direção a Tom, que o apanhou e, com um trejeito galante, entregou-o a Caroline, ao mesmo tempo que se aproveitava da oportunidade para espiar por seu decote. Caroline, com olhar matreiro, voltou-se para que mestre Walsh não pudesse ver-lhe a face e apontou a língua para Tom. Não foi um gesto infantil, porém sugestivo e instigante, pleno de conotações sexuais. Tom correspondeu com um olhar lascivo e uma piscadela que fizeram Caroline corar vivamente, o que atingiu Guy como um soco de um punho fechado na face.
Ficou a remoer-se durante o resto daquele dia e só conseguia pensar numa maneira de tentar mostrar a Caroline quanto ela o magoara, como destruíra sua confiança nela e lhe esfacelara a vida. Mudou de lugar na sala de aula. No dia seguinte, sem licença ou explicação, deixou o banco ao lado de Caroline e foi acomodar-se no desconfortável assento no canto mais distante.
Aquela tática trouxe resultados imprevistos e indesejáveis. Mestre Walsh avaliou de relance a nova disposição dos alunos e, em seguida, olhou para Guy.
- Por que mudou de lugar?
- Estou mais confortável aqui - Guy respondeu baixinho, sem olhar para o professor ou Caroline.
- Nesse caso - Walsh dirigiu-se a Tom - acho que seria melhor que Tom ficasse ao lado da srta. Caroline. Convém que fique bem debaixo dos meus olhos.
Tom não precisou de um segundo convite e, pelo resto da manhã, Guy foi forçado a testemunhar o jogo entre os dois. Embora de testa franzida a fitar a lousa, Tom, com gestos sub-reptícios, moveu uma de suas botas pesadas sob a mesa até tocar os elegantes sapatinhos de cetim de Caroline. Ela, por sua vez, sorriu consigo mesma, como se diante de algo que acabara de ler, mas não fez nenhuma menção de afastar o pé.
Depois, pouco mais tarde, Tom escreveu alguma coisa na lousa e, quando Walsh estava ocupado em corrigir o exercício de aritmética de Dorian, ergueu-a para que Caroline pudesse ler. Caroline relanceou os olhos pelo que ele havia escrito e depois corou e jogou a cabeça para trás, num gesto de zanga, mas seus olhos luziam. Rabiscou em seguida em sua própria lousa e deixou que Tom lesse. E este riu maliciosamente como o safado que Guy sabia que ele era.
Guy sentia-se consumir de ciúmes e ira, inutilmente. Foi forçado a observá-los a flertar, a provocar um ao outro, e seu ódio ferveu até que percebeu que não podia mais contê-lo. Era assaltado pelas imagens das coisas terríveis que tinha testemunhado no paiol. A compleição massuda de seu pai o impedira de ver a maior parte do horror daquela noite, e a luz era fraca, mas o brilho daquela pele branca e as formas provocantes, roliças e macias daquele corpo surgiam em lampejos diante de seus olhos, vezes infinitas, a ponto de fazê-lo odiá-la e, ao mesmo tempo, ansiar de desejos por ela. Então, via de novo o irmão e o ato impronunciável que ele cometera, a degradar aquela forma adorável e de perfeita pureza. Tom era como um porco, como um animal imundo se refestelando e arrotando no cocho. Tentou encontrar as palavras mais duras em seu vocabulário para ilustrar a profundeza de sua repulsa, mas lhe pareceram nulas diante de seus verdadeiros sentimentos. Eu o odeio, pensou, enfurecido, e, em seguida, declarou solenemente: vou matá-lo. Sentiu uma ponta de culpa ao pensamento, mas quase de imediato a culpa se evaporou para dar lugar a uma selvagem alegria.
Sim. Vou matá-lo. Era a única maneira agora de se livrar dele.
Guy esperou pela oportunidade. Ao meio-dia do dia seguinte, foi caminhar com o sr. Beatty para cima e para baixo do castelo de proa enquanto os oficiais da guarda, inclusive seu pai e Tom, faziam a medição do sol com seus astrolábios.
O sr. Beatty lhe explicava em detalhes como os assuntos da Companhia eram administrados no Oriente.
- Temos duas feitorias na Costa do Carnático. Sabe onde fica, Courtney?
- Sim, senhor. - Guy tinha estudado a imensa pilha de livros e documentos que o sr. Beatty lhe dera para ler. - O Carnático é aquela extensão de terra no sudeste da índia, entre os Gates Orientais e a Costa de Coromandel. É uma das mais ricas áreas de comércio do Oriente - recitou com obediência.
O sr. Beatty concordou.
- Vejo que está levando seus deveres a sério - disse.
Guy tentou manter a mente na conversa, mas sua atenção continuava a divagar para o grupo no convés de popa. Viu-os conferenciarem sobre a moldura no leme e depois Tom escrever alguma coisa na lousa e mostrar o resultado ao pai.
- Muito bom, rapaz. Farei a marcação na carta náutica.
A voz de seu pai podia ser ouvida mesmo contra o vento. O elogio irritou Guy e fez crescer sua determinação em seguir adiante com seu plano.
Hal realizou uma última inspeção de um lado a outro do convés, examinando com olhares atentos o conjunto de velas e o curso na caixa da bússola. Era uma figura imponente, um homem alto e de ombros largos, com feições bonitas e bem-proporcionadas, com cabelos fartos e negros presos em nó na nuca. Guy sentiu-se desencorajado diante da perspectiva de ter de confrontá-lo. Por fim, seu pai entregou o comando ao oficial da guarda e desapareceu pelo corredor que conduzia a seus aposentos.
- Senhor... - Guy voltou-se para o sr. Beatty. - Poderia me dar licença? Há algo de suma importância que devo discutir com meu pai.
- Claro. - O sr. Beatty o dispensou. - Estarei aqui quando voltar Continuaremos nossa conversa então. Julgo-a bastante produtiva.
Guv bateu na porta da cabina de popa e abriu-a quando a voz de seu pai o convidou de dentro:
Entre! - Hal ergueu os olhos do diário de bordo, no qual anotava a posição do meio-dia, a pena pousada na página. - Sim, rapaz, o que é?
Guy respirou fundo.
Quero desafiar Tom para um duelo.
Cuidadosamente, Hal devolveu a pena de ganso ao tinteiro e coçou o queixo, com expressão pensativa, antes de erguer os olhos novamente.
- A que vem isso agora?
- O senhor sabe, papai, pois estava lá. É tão revoltante que não consigo falar sobre isso, mas Tom ofendeu seriamente a srta. Caroline.
- Ah! - Hal suspirou. - Então é isso... - Ao estudar silenciosamente as feições crispadas de Guy, pensou: se aquilo que a prostitutazinha fazia de costas no paiol de pólvora fosse uma ofensa para ela, então a mocinha tinha uma maneira notável de demonstrar. Por fim, disse: - E o que essa moça representa para você?
- Eu a amo, papai - disse Guy, com uma dignidade tocante que pegou Hal de surpresa.
Conteve o sorriso que quase lhe chegou aos lábios.
- E a dama sabe dos seus sentimentos?
- Não sei - admitiu Guy.
- Não se declarou a ela? Não estão noivos? Não pediu a mão da filha ao sr. Beatty?
Guy hesitou.
- Não, papai, ainda não. Tenho apenas dezessete anos e...
- Então receio que deva deixar a questão para mais tarde. - Hal falava com firmeza, mas sem intenção de magoá-lo, pois se recordava muito bem da agonia do seu primeiro amor. - O que, nas circunstâncias, é provavelmente uma felicidade.
Não compreendo o que quer dizer, senhor. - Guy endireitou-se com esforço.
Tenho de me explicar ao pequeno brioso, ora essa, pensou Hal, divertido.
Digamos simplesmente que agora que está tão dolorosamente ciente das... predileções da srta. Caroline, talvez possa querer rever sua afeição por ela. É merecedora de amor tão nobre como o que nutre por ela? Não teria seu irmão lhe prestado um serviço ao trazer-lhe à tona a verdadeira natureza, mesmo que de forma forçada, como você ulegou, para que a visse como realmente é? - Ia acrescentar: "Parece evidente que a srta. Caroline é um bocado assanhada", mas engoliu as palavras ao pensar: não quero ser desafiado para um duelo por meu próprio filho.
- Tom forçou-a a isso - respondeu Guy, com férrea determinação. - Eis por que devo desafiá-lo.
- Ele a arrastou para baixo até o paiol contra a vontade dela?
- Talvez não, mas a atraiu com tentações. Ele a seduziu.
- Se desafiar Tom, todo o pessoal do navio não ficará ciente do que aconteceu entre Tom e ela? Quer que o pai de Caroline saiba da pequena indiscrição de sua filha? Deseja que ela sofra a força da plena desaprovação paternal?
Guy pareceu tornar-se nervoso e Hal aproveitou-se da vantagem.
- A única razão de eu não ter sido mais severo em minha condenação à participação de seu irmão nos acontecimentos, foi para poupar a reputação e o futuro da jovem. Você deseja expô-la agora?
- Não tenho de dizer a ninguém mais por que estou agindo assim, mas quero lutar com ele.
- Ótimo, então. - Hal desistiu. - Se está tão determinado, e não há nada mais que eu possa dizer para dissuadi-lo, então lute com ele como quer. Arranjarei um confronto de boxe entre os dois...
- Não, pai - interrompeu-o Guy -, o senhor não entendeu. Quero desafiá-lo para um duelo com pistolas.
A expressão de Hal transtornou-se instantaneamente.
- Que bobagem é essa, Guy? Tom é seu irmão!
- Eu o odeio - disse Guy, e sua voz tremeu de paixão.
- Já levou em consideração que, se o desafiar, Tom terá a escolha das armas? Certamente escolherá os sabres. Deseja encarar Tom com um sabre na mão? Não creio que eu me atreveria. Aboli transformou-o num espadachim que pode destacar-se em qualquer situação. Você não duraria um minuto contra ele. Tom iria humilhá-lo ou o mataria - Hal lhe disse com crueza e crueldade.
- Não me importo, quero lutar com ele.
Hal perdeu a paciência. Bateu a palma da mão na mesa com tamanha violência que a tinta espalhou-se do tinteiro por sobre as páginas do diário de bordo.
- Basta! Tentei arrazoar com você. Agora o proíbo de tocar nesse assunto. Não haverá duelo neste navio e certamente nenhum entre meus próprios filhos. Se houver mais uma palavra sua sobre isso, eu o mandarei prender no porão dianteiro e, tão logo cheguemos a Boa Esperança o farei transferir para outro navio e o mandarei de volta para a Inglaterra. Está ouvindo, moleque?
Guy encolheu-se diante da ira de seu pai. Raramente testemunhara uma tal fúria da parte dele. Contudo tentou fincar pé no chão. - Mas, papai...
- Basta! - Hal esbravejou. - Tenho dito e o assunto está encerrado de uma vez por todas. Agora, vá cuidar de seus deveres para com o sr Beatty. Não ouvirei mais uma tal bobagem.
O mar mudou de cor e humor enquanto o Seraph jogava para a frente e para trás, a abrir caminho confiantemente para o sul. As formações de ondas confusas e desordenadas do oceano abandonaram sua característica e se tornaram grandes fileiras serrilhadas, uma armada de gigantes a marchar em formação em direção à terra ainda oculta além do horizonte.
- As ondas do Cabo - Ned Tyler disse a Tom e Dorian, e apontou para o horizonte nublado. - As águas frias encontram os ares quentes da África no ponto em que alguns chamam de cabo da Boa Esperança, mas outros chamam de mar dos Nevoeiros, e outros ainda de cabo das Tormentas.
A cada dia, uma sensação de ansiedade crescia em intensidade pelo navio que estivera por tão longo tempo longe da vista de terra. Os pássaros vieram encontrar a embarcação, vindos do continente distante: gansos-patolas a voar em longas formações, enfeitados com pinceladas de preto que desciam de suas gargantas amarelas; gaivotas com peitos nevados e mantos de zibelina a seguir em bandos, os grasnidos roucos ecoando pelos ares, e pequenas procelárias a tocar a superfície das águas com os pés ligados por membranas.
Então, surgiram à vista as primeiras massas escuras de algas boiando, arrancadas das rochas pelo mar tormentoso, e grupamentos de sargaços semelhantes atentáculos deformados de polvos. Vastos cardumes de pequenos peixes parecidos com sardinhas fervilhavam à superfície das verdes águas frias, e legiões de focas escorregadias e reluzentes brincavam alegremente e se alimentavam de toda aquela abundância. Ao que o navio abria sulcos entre elas, erguiam as cabeças para olhar os homens no convés com enormes olhos e longos bigodes duros de gato.
Agora, a cada tarde, Hal encurtava as velas para que o navio seguisse o próprio embalo, levado pela verde corrente serpentina. A primeira luz do dia, mandava Tom e Dorian ao mastro principal para se assegurar de que não havia nenhum recife ou rocha à frente, com risco de rasgar as entranhas do navio. Tão logo tinha certeza de que o caminho estava livre, subia todos os panos.
No meio da manhã do 73º dia desde a partida de Plymouth, Dorian apontou para o irmão mais velho a nuvem à frente, que se quedava estacionária, acima do horizonte, enquanto os outros nimbos turbilhonavam e deslizavam com o vento. Os dois garotos a examinaram por um momento até que, de súbito, ela rodopiou, se abriu, e eles viram uma firme linha azul sob a formação escura, reta como um talho de sabre.
Terra! - murmurou Tom.
- Será? - perguntou Dorian, em dúvida.
- Sim! Sim! - a voz de Tom elevou-se aguda. - É terra! - Ergueu-se nos pés no cesto da gávea e apontou com o dedo trêmulo para a frente. - Terra! - esgoelou. - Terra à vista!
Abaixo, o tombadilho fervilhou de vida, a guarda a subir pelas amarras e a juntar-se em confusão pelo cordame. Logo, cada cabo e verga estavam cheios de homens, pendurados como cachos de fruta madura, gritando de excitação e a explodirem em risos.
Hal Courtney surgiu apressado da cabina de popa, em mangas de camisa, o tubo de bronze da luneta apertado sob o braço, e subiu até onde estavam seus filhos, na gávea do mastro mestre. Escalou o cordame com rapidez e vigor, sem parar até chegar ao cesto. Tom notou com orgulho que, a despeito da subida forte, a respiração do pai era leve e ritmada.
Ele levou a luneta ao olho e estudou a silhueta azul pelo instrumento, colhendo detalhes das linhas sombreadas e dobras da rocha irregular.
- Bem, mestre Thomas, você fez sua primeira aproximação de terra. - Estendeu a luneta a Tom. - O que acham que é? - Agachado entre os dois garotos, Hal colocou um braço em torno de cada um.
- É uma montanha! - Tom exclamou. - Uma grande montanha com um topo plano.
- A montanha da Mesa! - concordou Hal.
Tom ainda não se dera conta do feito de navegação que aquilo representava. Mais de setenta dias sem sinal de terra, e seu pai os trouxera com precisão aos 34 graus de latitude sul.
Olhem bem para essa terra adiante - Hal lhes disse. Sentiu uma estranha sensação de presciência como se as cortinas que velavam o futuro houvessem se aberto por um átimo diante de seus olhos. - Pois é lá que jazem seus destinos.
O meu também, papai? - Dorian perguntou, com voz esganiçada.
- O de ambos. Eis aonde a Sorte os conduziu.
Os dois rapazes ficaram em silêncio, sem fala pela primeira vez diante da veemência do pai.
Continuaram sentados no cesto do mastro principal enquanto o sol alcançava seu zénite.
- Não é preciso fazer a medição do sol hoje! - Hal exclamou numa risada. - Podemos deixar o encargo para Ned Tyler e Alf Wilson. Sabemos onde estamos, não é?
O sol começou a baixar no céu e o Seraph continuou a jogar, a seguir seu caminho lentamente ao incansável vento sudeste, num avançar tão suave que a montanha de topo de mesa elevou-se com solene majestade acima do mar até que pareceu encher o céu acima e todos puderam ver as brancas partículas de habitações humanas no sopé dos escarpados penhascos.
- Ajudamos a construir aquele forte - Hal apontou. - Aboli, Daniel, Ned Tyler e eu.
- Conte a história! - pediu Dorian.
- Vocês a ouviram centenas de vezes - protestou Hal.
Tom juntou-se no apelo.
- Não importa, papai. Queremos ouvir de novo.
Assim, sentados juntos na gávea, Hal relatou-lhes os acontecimentos da guerra de 25 anos antes, e como a tripulação toda do navio de seu avô fora aprisionada pelos holandeses e levada em correntes para Boa Esperança. Sir Francis Courtney fora torturado para revelar o paradeiro do tesouro que tomara dos galeões holandeses que havia capturado. Quando permaneceu estóico diante de seus inclementes inimigos, a suportar com coragem o mais vil e desumano sofrimento infligido a ele, os holandeses o levaram para o pátio da tropa e o executaram publicamente.
Hal e o resto da tripulação foram condenados a trabalhos forçados nas muralhas do forte holandês e lá sofreram e trabalharam de sol a sol por três longos anos, antes de conseguirem escapar.
- Então, é aquela a montanha onde vovô Francis está sepultado? - perguntou Tom. - Sabe onde fica seu túmulo, papai?
- Aboli sabe, pois foi ele que levou o corpo do cadafalso, à noite. Sob uma lua cheia, ele o carregou montanha acima até um local secreto.
Tom ficou em silêncio por algum tempo, a pensar no sarcófago vazio na capela da colina em High Weald, com o nome de seu avô gravado na lápide. Adivinhou aquilo que seu pai tinha em mente, mas aquele não era o momento para adiantar-se no assunto. Esperaria a hora.
O Seraph chegou ao largo da pequena ilha rochosa que guardava a entrada da baía aos pés da montanha. Florestas de negros sargaços vadios cobriam as águas em torno, e bandos de focas luzidias amontoavam-se na praia pedregosa da ilha Robben, assim chamada porque robben era o nome holandês para foca.
Agora, devo descer para ver que a tripulação proceda à ancoragem com segurança - Hal lhes disse.
Aposto corrida com você até o convés! - Dorian gritou para tom, ao pular no cordame.
Tom deu-lhe uma distância de vantagem e então correu atrás do irmão. Seus pés dançavam sobre os degraus da escada de corda e escorregaram em queda livre, mas logo os usou como freio, ao estar quase emparelhado ao irmão, para deixar que Dorian chegasse ao convés um passo adiante dele.
- Ganhei! Ganhei! - exultou Dorian.
Tom desmanchou-lhe os cachos cor de cobre.
- Não se garganteie disso! - exclamou e o empurrou de leve. Então, olhou para o pequeno grupo na proa do Seraph. O sr. e a sra. Beatty estavam parados ali com todas as filhas, Guy entre eles. Animados e excitados, apontavam aquele famoso platô próximo do cabo das Agulhas, o ponto meridional da massa de terra africana.
- Chamam aquela nuvem branca assentada no topo da montanha de Toalha de Mesa - Guy prelecionava para o grupo. - E a pequena colina ao sul do assentamento é chamada de Cabeça de Leão. Pode-se ver que tem esse formato. - Como sempre, ele estudara os livros de navegação e sabia todos os detalhes.
- Guy, por que não vai até o mastro mestre? - Tom o interrompeu, não sem gentileza. - Terá uma vista melhor de lá.
Guy encarou-o friamente.
- Obrigado, mas estou bastante contente onde me encontro. - Chegou um pouco mais perto de Caroline e começou a se voltar.
Não precisa ter medo - Tom lhe assegurou. - É bem seguro.
Guy virou-se de novo para ele.
Está me chamando de covarde? - Sua face tingira-se de sangue e sua voz soava rouca de indignação.
Não foi o que eu disse. - Tom caiu na risada e girou nos calcanhares para ir ao leme. - Mas entenda como quiser - retrucou por sobre o ombro.
Com as feições contorcidas, Guy o encarou, e uma onda de tormento o envolveu. Tom o ridicularizara pela falta de coragem e, em seguida, o dispensara com desdém na frente da família Beatty e de Caroline. Algo lhe subiu à cabeça e, antes que percebesse de fato o que era, lançou-se pelo tombadilho numa louca corrida.
- Tom, cuidado! - Dorian gritou, mas era tarde.
Tom ia se voltar quando Guy desabou sobre ele com todo o peso e a vantagem da surpresa, no instante em que ele se equilibrava num só pé. Viu-se arrojado contra a amurada com tanta força que o ar lhe fugiu dos pulmões.
Guy montou em suas costas e deu-lhe uma chave de braço no pescoço. Todos os rapazes tinham tomado aulas regulares de luta livre com Daniel Grande. Embora Guy fosse lento e desajeitado no esporte, sabia todos os golpes e lances e, agora que conseguira aquele aperto mortal, dava o melhor de si. Apoiou um joelho nas costas de Tom e usou o contra-apoio de um braço ao gancho do outro para bloquear a traquéia do irmão e lhe forçar a coluna de maneira que a qualquer momento as vértebras se partiriam. Tom se debatia no convés, a puxar com dedos desesperados os braços de Guy, gradualmente fraquejando, a boca escancarada em busca de ar.
A tripulação acorreu para ver o espetáculo, a bater as botas com excitação, aos urros e gritos de encorajamento para seus favoritos. Então, sobre o clamor, uma voz potente vociferou:
- Contragolpe de costas, Klebe!
E Tom reagiu instantaneamente. Em vez de resistir ao abraço que lhe afundava as costas, lançou todo o seu peso e força para executar um salto mortal de costas. Guy se viu arremessado para trás com tanta violência que não teve escolha, a não ser soltar o aperto e apoiar-se nos dois braços para aparar a queda; caso contrário, suas costelas teriam se partido.
Tom girou no ar como um gato e estava em cima do irmão antes que ele batesse no convés. Ao se chocarem contra as pranchas de madeira, ele aterrissou com cotovelos e joelhos sobre o peito e a barriga de Guy.
Guy soltou um grito tão agudo quanto o de uma menina e tentou se dobrar para segurar o estômago atingido, mas Tom já se sentara de pernas abertas sobre ele, prendendo-o ao convés. Fechou o punho e tomou impulso para arremetê-lo direto na face do irmão.
- Tom, não!
Era a voz de seu pai, e Tom se enregelou. A louca fúria desapareceu de seus olhos. Relaxou o punho e se levantou. Olhou para baixo, com uma expressão indignada, para Guy.
Na próxima vez - advertiu -, você não se sairá tão facilmente.
- Afastou-se.
Atrás dele, Guy levantou-se, ainda comprimindo o estômago, e segurou-se num dos canhões. A platéia se dispersou, desapontada que o espetáculo tivesse terminado de forma tão pífia.
- Tom! - Guy chamou, e Tom olhou para trás. - Sinto muito - disse Guy. - Vamos apertar as mãos. Como amigos. - Cambaleou em direção ao irmão, parecendo contrito e envergonhado, a mão direita esticada.
Imediatamente, Tom sorriu e voltou atrás. Segurou a mão estendida.
Não sei por que nunca lutamos antes - disse.
Eu sei - disse-lhe Guy, e a expressão patética em sua face transformou-se num instante num negro ódio. Rápido como uma víbora, ele puxou o punhal da bainha do cinto. A lâmina tinha 15 centímetros de aço brilhante com uma ponta aguçada. Empunhou-a ao nível do umbigo de Tom e golpeou duro, ao mesmo tempo que usava o aperto da mão direita para puxar Tom em sua direção com toda a força, tentando empurrá-lo para a arma.
- Eu o odeio! - berrou, a saliva esguichando de seus lábios. - Vou matá-lo pelo que você fez.
Os olhos de Tom se arregalaram com horror e ele torceu-se todo para o lado. A ponta do punhal atingiu-lhe o flanco, cortou-lhe a camisa e abriu um sulco fundo na carne, embaixo. No mesmo instante, o sangue espirrou, ensopando o tecido e lhe escorrendo pelas pernas.
Caroline deixou escapar um grito pavoroso, agudo e estridente.
- Você o matou!
Entre a tripulação instalou-se um tumulto, enquanto todos acorriam de volta para assistir ao confronto.
Guy sabia que havia desperdiçado o golpe e arrojou-se para a frente, arma em riste, numa tentativa desesperada de atingir a face e o peito de Tom. Mas Tom gingava e se esquivava a cada golpe até que, de repente e de forma inesperada, saltou para a frente e desferiu com o dorso da mão esquerda um soco na base do queixo de Guy. A cabeça de seu gêmeo voou para trás e ele soltou o aperto mortal da mão direita de Tom.
Guy cambaleou para trás contra a amurada, o sangue escorrendo do canto de sua boca onde mordera a língua. Ainda segurava o punhal e apontou-o para a face de Tom, a roscar:
Vou matá-lo! - Seus dentes estavam manchados de sangue. - Vou matá-lo, seu porco nojento!
Com uma das mãos, Tom massageou a garganta machucada, mas com a outra tirou o próprio punhal da bainha.
- Você discursa bem, irmão - disse, sorridente. - Agora vamos ver se faz aquilo do que se gaba.
Foi para cima de Guy, pés plantados no convés, o direito à frente, a arma a se remexer em sua mão como uma cobra ereta, os olhos fixos no rosto do irmão. Guy recuou diante dele.
Hal avançou por entre a multidão e abriu a boca para gritar que parassem, mas antes que pudesse emitir um som, Aboli estava a seu lado e o agarrou pelo antebraço.
- Não, Gundwane! - Sua voz era baixa, mas imperiosa, inaudível a todos a não ser para Hal, em meio aos gritos das mulheres e aos berros dos tripulantes. - Jamais tente separar cães em briga. Só dará a vantagem a um deles.
- Em nome de Deus, Aboli, são meus filhos!
- Há muito deixaram de ser crianças, Gundwane. São homens. Trate-os como tal.
Tom saltou para a frente, a ponta de seu punhal abaixada e mirada na barriga de Guy. Este recuou correndo, quase tropeçando nos próprios pés. Tom cerceou-lhe a fuga, e Guy voltou para a proa. Os homens ali reunidos se amontoaram para dar espaço à briga, e Hal viu o que Tom estava fazendo: conduzia Guy como um cão pastor toca o rebanho, encurralando-o entre as amuradas da quilha.
A expressão de Tom era fria e composta, sem nenhum sinal de emoção, mas seus olhos luziam ao fixar a face do gêmeo. Hal lutara com muitos homens e sabia que apenas o mais perigoso espadachim tinha aquela gélida ameaça no olhar quando pronto para matar. Sabia que Tom não mais enxergava um irmão, e sim um inimigo a ser abatido. Tornara-se um assassino, e Hal teve medo, medo que raramente sentira por si mesmo. Teve medo por Guy, porém sabia que Aboli tinha razão. Não havia nada que pudesse fazer para apartá-los agora. Não poderia dissuadir Tom - seria como tentar dissuadir um leopardo em caça.
Tom ainda sangrava do corte em seu flanco. O rasgo em sua camisa abria-se a cada movimento e deixava à vista a pele branca e a ferida, tal qual uma boca sorridente, de onde o rubro riacho minava. O sangue pingava pelo convés e em seus pés que escorregavam a cada passo que dava. Ele, porém, não tinha consciência do ferimento: tudo que via era o homem que lhe infligira o golpe.
Guy recostou-se contra a amurada. Com a mão esquerda, tateou atrás de si, testando as tábuas de carvalho. A percepção de que estava encurralado se abateu sobre ele, e a raiva cega desvaneceu-se de seus olhos, substituída de imediato pelo medo. Relanceou o olhar ao redor, em busca de uma via de escape. Então, seus dedos tocaram a haste de uma das lanças no suporte abaixo dos pranchões que compunham a ossada do navio, e o medo dissolveu-se como a bruma do mar à chegada do sol. Uma alegria feroz iluminou-lhe as feições ao deixar cair o punhal e puxar a lança do suporte. Diante do pesado arpão com sua cabeça de aço em farpa, Tom recuou um passo. Guy sorriu, a boca um rasgo sangrento.
- Vamos ver agora - tripudiou, e baixou a cabeça da lança. Desferiu o golpe.
Tom girou para trás e Guy avançou, arremetendo a longa lança, agora fora do alcance do punhal na mão direita de Tom. Reuniu forças e atacou de novo. Tom jogou o punhal, pulou para o lado para escapar da reluzente ponta de aço e então saltou para trás antes que Guy pudesse cercá-lo e transpassá-lo com a vara de carvalho.
Enfrentaram-se em avanços e recuos ao longo do convés, com a lança entre os dois, ambos rosnando e a sangrar, resmungando pragas e insultos um ao outro. Por fim, Tom conseguiu empurrar Guy contra o costado do navio e, num movimento ágil, atracou-se ao irmão, face a face e peito a peito, com a lança entre os corpos.
Lentamente, Tom forçou a vara até que estava em linha com a garganta do irmão e, em seguida, impôs todo o seu peso e força para empurrá-la. As costas de Guy vergaram-se quando ele se curvou sobre a amurada, a grossa haste de carvalho sob seu queixo. O medo voltou a seus olhos de novo: podia ouvir a água gorgolejando pelas laterais da embarcação, debaixo dele, e seus pés escorregaram no convés. Estava caindo, e não era nadador - a água o apavorava.
Tom tinha os pés bem plantados, mas escorregaram numa poça do próprio sangue, como em óleo. O chão lhe faltou e ele caiu pesadamente de costas no convés. Guy estava livre, e cambaleou até os cabos do mastro de proa, a respirar com dificuldade, o suor lhe ensopando a camisa. Agarrou-se aos ovéns como apoio e olhou por sobre o ombro.
Tom rolou para o lado e se pôs de pé. Num piscar de olhos, apanhou Punhal e então avançou para Guy como um leopardo no ataque.
Segurem-no! - Guy berrou, aterrorizado. - Façam-no parar!
Mas o clamor dos espectadores era ensurdecedor, e crescia ainda mais de selvagem excitação, enquanto Tom corria em direção ao irmão com o punhal em riste e a loucura nos olhos.
Guy virou-se e, com a urgência do pânico, pendurou-se nos cabos e começou a subir pelo cordame. Abaixo, Tom parou apenas o suficiente para prender o punhal entre os dentes, e então o seguiu.
A platéia no convés ficou imóvel, as cabeças jogadas para trás. Ninguém nunca vira Guy nos cordames antes e mesmo Hal admirou-se em perceber quão rápido ele se movia. Tom conseguia aproximar-se dele apenas gradualmente.
Guy alcançou a verga e escalou-a engatinhando. Olhou para baixo e experimentou um momento de atordoante vertigem. Então, viu a face de Tom logo a poucos passos, a chegar mais perto ao que ele corria pelas escadas de corda. Percebeu o esgar impiedoso de sua boca e o sangue que lhe manchava a face e ensopava a camisa. Desesperado, ergueu os olhos para o mastro, mas seu ânimo fraquejou diante da altura do madeiro e ao se dar conta de que, a cada passo que subia, a vantagem passava cada vez mais para as mãos de Tom. Havia apenas um rumo a tomar, e ele engatinhou penosamente ao longo da verga. Podia ouvir Tom se aproximando, e o som o empurrou para a frente. Não conseguia olhar para baixo, para as verdes águas rumorejantes que pareciam distante àquela altura. Soluçava de pavor, mas ainda continuou a engatinhar até chegar ao fim da verga. Olhou por sobre o ombro.
Tom estava a um passo atrás. Guy se viu encurralado e indefeso. Tom sabia disso e se sentou na verga oscilante. Pegou a lâmina dentre os dentes; era uma visão tenebrosa, todo encharcado de sangue, a face branca e contorcida de raiva, e a arma reluzente agora em sua mão.
- Por favor, Tom - Guy gemeu. - Eu não queria machucá-lo. - Levou ambas as mãos para esconder o rosto e perdeu o precário equilíbrio sobre a verga. Balançou-se loucamente, os braços a girar, e então pendeu mais e mais para trás até que, com um berro horrível, tombou, rodopiando e girando no ar em queda livre, para então atingir a água numa desconjuntada confusão de pernas e afundar.
Tom sentou-se rígido enquanto a névoa da ira assassina clareava em seu cérebro, e olhou para baixo com pavor diante daquilo que causara. Guy sumira, não havia sinal dele sob a superfície esverdeada, nenhuma cabeça a assomar na esteira cremosa do navio.
Ele não sabe nadar! A tenebrosa realidade o atingiu com tamanha intensidade que ele oscilou em seu poleiro. Eu fiz isso. Matei meu próprio irmão. O horror bíblico do feito o perpassou num raio. Saltou nos pés e levantou-se sobre a alta verga e espiou além da popa, no rastro de espuma. Então, viu Guy subir à superfície a se debater, braços se agitando, os gritos abafados e chorosos como os de uma gaivota ferida.
Tom ouviu as ordens de seu pai para o timoneiro, berradas do convés abaixo.
- Meia-volta! Lancem um escaler! Homem ao mar!
Antes que a embarcação pudesse responder ao leme e virar a quilha contra o vento, Tom concentrou energias e saltou da verga. Cabeça primeiro, braços esticados acima da cabeça, atirou-se para a frente, pernas retas. Atingiu a superfície do oceano num mergulho exato e afundou tanto que as águas escuras se fecharam em torno de seu corpo e lhe comprimiram o peito. Então se curvou num trejeito sinuoso e subiu à superfície. Irrompeu para fora até a linha da cintura, a respiração a lhe assobiar na garganta. O navio passou por ele, já virando sua proa e enfrentando o vento.
Ele olhou para trás, para a esteira de espuma e nada viu, mas ainda assim avançou, nadando com toda a potência, revolvendo as águas atrás de si, sem nem mesmo sentir a ferroada do sal na comprida ferida aberta em seu flanco. Calculou por alto a que distância estava de onde vira pela última vez a cabeça de Guy, parou e boiou, arfante a respirar, e olhou ao redor. Não havia sinal de seu irmão.
Oh, Deus, se ele morrer afogado, eu nunca... Não completou o pensamento, mas respirou fundo, dobrou-se sobre si mesmo até que a cabeça apontasse para o fundo do mar, chutou os pés no ar e mergulhou suavemente. Com olhos arregalados, viu somente a imensidão verde, cortada pelos raios do sol, e nadou para baixo até que os pulmões suplicaram por ar. Precisava subir para respirar.
Foi então que percebeu alguma coisa mais ao fundo, uma mancha de branco e azul, a camisa e a jaqueta de Guy, o corpo a girar e girar sem vida como um destroço de naufrágio. Com os pulmões a arder, Tom nadou para baixo até que tocou o ombro do irmão. Segurou-o pelo colarinho do casaco e voltou à superfície. Embora batesse os pés com força, puxar o corpo inerte tolhia seu avanço. Os segundos se arrastaram numa infinitude de sofrimento. Seu peito queimava e a necessidade de ar o consumia. Sentiu a força se esvair de suas pernas. O aperto na gola de Guy fraquejou e ele percebeu que o irmão lhe escapava. O verdor encheu-lhe os olhos e sua visão se toldou, com estrelas luzentes a explodirem silenciosamente na escuridão.
Seja forte! Gritou, mudo, para si mesmo, e então forçou os dedos a se fecharem na jaqueta de Guy e comandou os pés para que continuassem a bater.
A luz tornou-se mais intensa, o verdor empalideceu e, de súbito, sua cabeça irrompeu no ar e no sol. Puxou uma inspiração que lhe encheu o peito a ponto de quase fazê-lo estourar, e depois outra - melíflua, que sentiu lhe perpassar pelo corpo e lhe devolver a força. Estendeu a mão para baixo, agarrou uma porção dos cabelos encharcados de Guy e empurrou-lhe a cabeça para o ar.
Guy estava afogado. Não havia vida naquele corpo lasso. Seus olhos estavam abertos, cegos e estáticos. Sua face era cor de cera.
- Respire! Pelo amor de Deus, respire! - Tom berrou para aquele rosto branco e inerte, e então passou ambos os braços em torno do peito de Guy e apertou. Aboli lhe mostrara aquele truque, e funcionava. O ar morto e estagnado foi expelido para fora juntamente com golfadas de água salgada e vômito. Esguichou na face de Tom e ele afrouxou o aperto. O peito de Guy se expandiu em reflexo, o ar sugado pela boca aberta. Por mais duas vezes Tom expulsou a água de dentro dele, lutando para lhe manter o rosto acima da superfície.
Com a terceira inspiração, Guy tossiu e engasgou. Convulsivamente, começou a lutar para respirar por conta própria. Seus olhos pestanejaram ainda sem enxergar e, em seguida, lentamente, entraram em foco. Respirava com grande dificuldade, sacudido a cada poucos segundos por acessos de tosse. Aos poucos, porém, a expressão'voltou ao seu olhar.
- Eu o odeio - murmurou, fitando a face do irmão. - Eu ainda o odeio, sempre o odiarei.
- Por quê, Guy? Por quê?
- Devia ter deixado que eu me afogasse, pois um dia eu o matarei.
- Por quê? - repetiu Tom.
- Você sabe - disse Guy, arfante. - Você sabe por quê!
Nenhum dos gêmeos ouvira o escaler se aproximar, mas Hal Courtney chamava por eles agora, à distância da mão.
- Agüentem firmes, rapazes! Estou aqui.
Os homens do escafer remavam e, na cana do leme, Hal manobrava para chegar mais perto. À sua ordem, deitaram os remos, e mãos fortes se estenderam para segurar os dois garotos e tirá-los da água.
O dr. Reynolds esperava na amurada quando Guy foi içado a bordo do Seraph. Tom postou-se ao lado do pai no convés e ficou a observar, com uma expressão estranhamente infeliz, enquanto os auxiliares do médico carregavam seu irmão para o tombadilho inferior.
- Ele me odeia, papai - murmurou.
- Vamos ver esse corte, rapaz - disse Hal, num resmungo.
Tom baixou o olhar sem interesse para o ferimento. A água do mar reduzira o sangramento a uma lenta exsudação.
- Não é nada - disse. - Um arranhão. - Então ergueu os olhos outra vez para Hal. - Ele me odeia. Foi a primeira coisa que disse quando o puxei para a superfície. O que devo fazer?
- Guy vai superar isso. - Hal abriu a camisa de Tom para ter acesso ao corte. - Vai esquecer e perdoar.
- Não, não vai. - Tom meneou a cabeça. - Ele disse que sempre me odiará. Ele é meu irmão. Ajude-me, papai. O que posso fazer?
Hal não pôde responder. Conhecia muito bem a obstinação e a tenacidade de Guy: eram, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. Sabia que Tom tinha razão. Guy jamais o perdoaria.
Era a mais bela aproximação de terra em todos os oceanos pelos quais Hal já havia navegado. A montanha era uma muralha imponente contra o céu, e o vento a soprar acima do cume fazia espumar qual leite fervente uma nuvem macia e pulsante, salpicada de sombras nos tons nacarados das conchas de ostras e das pérolas rosadas, cores emprestadas do sol poente. As escarpas da montanha abaixo dos contrafortes rochosos eram verdes de florestas, e as praias, muito brancas, delineadas pela espuma das ondas.
Tal beleza teria encantado Hal, caso todos os seus pensamentos não fossem atormentados pelas lembranças anteriores de sofrimento e horror. As muralhas do castelo eram claras de ver daquele ângulo e, sobre as ameias crenuladas, os canhões o encaravam, suas bocas escuras, suas cavidades vazias. Nas masmorras debaixo daquelas muralhas, ele vivera três cruéis invernos do Cabo, e estremecia agora à recordação do frio nos ossos. Fora naquelas muralhas que Hal trabalhara até que a pele e a carne fossem arrancadas da palma de suas mãos e ele vacilasse de fadiga. Fora dos andaimes de construção que ele vira tantos bons homens caírem e morrerem. E lá, ele enfrentara a difícil transição de garoto para homem.
Levou a luneta ao olho para inspecionar os outros navios ancorados na baía. Espantou-se com o número deles. Contou 23 embarcações, todas enormes navios mercantes. Holandeses na maioria. Localizou uma nave inglesa entre eles, outra embarcação da linha da Inglaterra para a índia, mas percebeu desapontado que não era o Yeoman of York. Não havia sinal de seu companheiro no ancoradouro.
Sem baixar a luneta, examinou as águas da baía na direção da terra. Seus olhos se detiveram na praça de armas abaixo das muralhas do castelo, e as lembranças da execução de seu pai afluíram de volta em todos os seus violentos e terríveis detalhes. Teve de expulsá-las da mente para poder concentrar-se em levar o Seraph até o cais.
- Vamos ancorar fora do alcance dos canhões do forte, sr. Tyler. Deu a ordem, e não havia necessidade de explicá-la. Ned conhecia-lhe a mente, e sua expressão também era sombria. Talvez estivesse a reviver da mesma forma aqueles dias de horror enquanto empunhava o leme e dava a ordem de recolher os panos.
A âncora desceu com uma pancada na água que molhou o castelo de proa, e o cabo de amarra deslizou rapidamente pelo escovém. O Seraph parou de modo brusco e depois piruetou graciosamente com a quilha ao vento, e então se aquietou, transformado de uma criatura marinha cheia de vitalidade, energia e determinação, num ser amável e tranqüilo como um cisne a boiar.
A tripulação alinhou-se pelas vergas nuas do Seraph e pendurou-se nas escadas de corda, a olhar para terra, trocando impressões aos gritos entremeadas de especulações e perguntas, ao observar as chatas se aproximando para encontrá-los. Os marujos chamavam aquele belo cabo de a Taverna dos Mares. Fora colonizado cerca de cinqüenta anos antes para servir como um porto de aprovisionamento para a frota da Companhia Holandesa das índias Orientais, e as chatas eram carregadas de todas as coisas pelas quais uma tripulação ansiava após três meses ao mar.
Hal chamou seus oficiais.
- Veja que nenhuma bebida forte seja contrabandeada para o navio - advertiu a Alf Wilson. - Os vendedores de rum tentarão passá-la clandestinamente pelas espias dos canhões. Teremos metade dos homens caindo de bêbados ao anoitecer se você permitir que eles o façam de trouxa.
- Sim, capitão. - O quarto oficial tocou o quepe. Por ser abstêmio, era uma boa escolha para a tarefa.
- Aboli, posicione homens armados com alfanjes e pistolas na amurada. Não queremos aqueles ladrões patifes subindo a bordo para limpar o navio, nem prostitutas oferecendo sua mercadoria pelas gaiútas de fogo. Caso contrário, os punhais serão sacados... - Quase disse "de novo", mas se calou. Não queria relembrar o conflito entre os dois filhos.
- Sr. Pescador, fará a negociação com os mercadores das chatas, é bom nisso. - Poderia confiar em Daniel Grande para fazer valer seu dinheiro e para inspecionar cada porção de fruta e vegetal que viesse a bordo. - O sr. Walsh o ajudará e pagará aos barqueiros. - Walsh tinha muitos deveres, de professor a escrevente e tesoureiro.
Os oficiais dispersaram-se para cumprir as tarefas designadas, e Hal caminhou até a amurada. Olhou as chatas que se aproximavam. Estavam abarrotadas até a borda de produtos frescos: batatas com a terra ainda nelas, repolhos verdes e maçãs, figos e abóboras, quartos de carne fresca de carneiro, frangos e galinhas depenados. A tripulação iria se esbaldar naquela tarde. A saliva encheu a boca de Hal ao olhar para aquela cornucópia. A fome de comida fresca era uma luxúria voraz que dominava qualquer marinheiro ao final de uma longa viagem. Alguns de seus homens já se inclinavam pelo costado do navio e barganhavam pelas mercadorias. Aqueles com dinheiro pagavam até meio penny por uma única batata fresca: um preço exorbitante. Mostravam-se frenéticos de avidez, a limpar as camisas da terra agarrada às gordas e brancas tuberosas como se fossem maçãs e, em seguida, a devorá-las cruas, mastigando a polpa adstringente com toda a evidência de satisfação.
O dr. Reynolds postou-se ao lado de Hal.
- Bem, senhor, é um alívio estar aportado de novo. Já há 26 casos de escorbuto a bordo, mas os veremos curados antes de seguirmos viagem outra vez. É um milagre e um mistério, porém o ar da terra cura mesmo os piores casos, homens que perderam seus dentes e estão fracos demais para ficar de pé. - Estendeu a Hal uma maçã madura. - Surrupiei duas do estoque de mestre Walsh.
Hal mordeu a fruta e teve de fechar os olhos em êxtase.
- A comida dos deuses - murmurou, enquanto o suco enchia-lhe a boca e escorria como mel por sua garganta. - Meu pai costumava dizer que é a falta de comida fresca que causa o escorbuto - disse ao médico.
O dr. Reynolds sorriu compassivo e deu uma bela mordida na própria maçã.
- Bem, capitão, sem nenhuma censura a seu santo pai, pois todo mundo sabe que era um bom homem, mas o biscoito e a carne salgada do navio são comida suficiente para qualquer marujo. - Reynolds balançou a cabeça com ar de sabedoria. - Ouvem-se algumas teorias mirabolantes de homens não treinados nas artes médicas, mas é o ar do mar que causa o escorbuto, e nada mais.
- Como estão meus dois filhos, doutor? - perguntou Hal, mudando de assunto propositadamente.
- Thomas é um jovem animal saudável e, felizmente, o ferimento não foi profundo e fez pouco estrago. Fiz a sutura com pontos de categute e ele estará curado dentro em breve, ou seja, não é preciso preocupar-se.
- E quanto a Guy?
- Eu o mandei ficar acomodado em sua cabina, capitão. Os pulmões estavam cheios de água salgada, e isso algumas vezes segrega humores mórbidos. Mas em poucos dias ele também não deverá ter nenhuma complicação decorrente de seu afogamento.
- Sou grato ao senhor, doutor.
Naquele momento, instalou-se uma comoção pelo navio. Aboli reconhecera um dos rapazes hotentotes que carregava um engradado de frutas escada acima, vindo da chata, e o agarrara pelo ombro.
Olá, menina bonita - caçoou. - Ou é um rapaz?
Sua vítima tinha uma face em formato de coração, pele dourada sem sardas e olhos puxados, asiáticos. Reagiu ao insulto de Aboli com uma enxurrada de gritos agudos numa linguagem estranha de estalar de língua, e lutou para livrar-se das mãos enormes de Aboli. Com uma gargalhada, Aboli arrancou-lhe o chapéu da cabeça, e uma espessa cabeleira negra caiu por sobre os ombros do camarada. Então, Aboli o levantou para o alto com uma das mãos e, com a outra, lhe puxou a calça até abaixo dos joelhos.
A tripulação explodiu em urros de prazer quando um roliço traseiro amarelo foi desvelado e coxas belamente torneadas surgiram, entre as quais se aninhava a escura, peluda forma triangular da feminilidade. Alçada no ar, a garota desferia socos com ambas as mãos na cabeça calva de Aboli, e, como aquilo não surtiu nenhum efeito, enterrou as longas e afiadas unhas nos olhos dele, ao mesmo tempo que o chutava enfurecida com os dois pés.
Aboli caminhou até a amurada do navio e jogou-a pelo costado sem esforço algum, como se a moça fosse um gatinho de rua. Os companheiros dela a resgataram e a levaram de volta para a chata, a cuspir água e a puxar a calça para cima, ainda esgoelando xingamentos para os marujos que espiavam pela amurada.
Hal voltou-se para ocultar o sorriso e seguiu até onde o sr. Beatty se encontrava parado, com a família ao seu redor, ao pé do mastro principal, todos com os olhos fixos na praia, a conversar animadamente sobre aquela nova terra. Hal tirou o chapéu para as damas, e a sra. Beatty fez uma mesura com evidente prazer. Em contraste, Caroline evitou-lhe o olhar. Mostrava-se envergonhada na presença dele desde a noite no paiol. Hal dirigiu-se ao sr. Beatty:
Ficaremos ancorados aqui por muitos dias, provavelmente semanas. Devo aguardar a chegada do Yeoman of York, e há mais coisas que devo ver. Tenho certeza de que o senhor há de querer levar sua família para terra, a fim de proporcionar às damas uma oportunidade de escapar do confinamento de suas cabinas e de esticar as pernas. Sei que existem alojamentos confortáveisna cidade.
- Que excelente idéia, senhor! - respondeu Beatty, entusiasmado. - Estou certo de que não é sacrifício para o senhor, sir Hal, mas, para nós, marinheiros de primeira viagem, os espaços confinados a bordo se tornam insuportáveis.
Hal concordou com a cabeça.
- Devo mandar o jovem Guy a terra com vocês. Creio que há de querer seu secretário à disposição. - Estava satisfeito de ter alcançado seu mais urgente propósito: primeiro separar Tom de Guy e, em segundo lugar, afastar Tom de Caroline. Ambas as situações poderiam explodir como uma carga de pólvora a qualquer momento. - Providenciarei que sejam desembarcados assim que os escaleres forem lançados ao mar, embora esta noite já seja tarde demais. - Olhou para o sol poente. - Talvez queira arrumar sua bagagem agora e esperar até amanhã para ir a terra.
- É muito gentil, capitão. - Beatty inclinou a cabeça numa mesura.
- Quando tiver a oportunidade, o senhor pode ser de boa ajuda se me fizer a cortesia de visitar o governador holandês. Van der Stel é o seu nome, Simon van der Stel. Estarei muito ocupado com a administração do navio, e o senhor me prestaria um grande serviço assumindo esse dever em meu nome e da minha Companhia.
Beatty repetiu a mesura.
- Com o maior dos prazeres, sir Hal.
Fazia mais de vinte anos desde que Hal fugira com sua tripulação da prisão nas masmorras do castelo, e era improvável que alguém na colônia o reconhecesse, mas ele era um homem condenado com uma sentença de morte pendurada sobre sua cabeça. Durante a fuga do castelo, Hal e seus homens haviam sido forçados, em defesa própria, a matar muitos de seus carcereiros e perseguidores, mas o holandês poderia enxergar isso sob um enfoque diferente. Se fosse reconhecido, poderia se ver diante de um tribunal holandês, acusado daqueles crimes e encarar a perspectiva de cumprir uma sentença de prisão perpétua ou até mesmo de pagar por seus crimes na forca, como seu pai. Uma visita formal ao governador da colônia não seria um passo sábio. Melhor mandar Beatty no lugar.
Mas, por outro lado, precisava coletar todas as notícias disponíveis na colônia. Cada navio a voltar do Oriente, independentemente de sua nacionalidade, passava ali pelo Cabo. Ele não poderia esperar por melhores informações do que aquelas prontamente disponíveis nas tavernas e casas de prostituição do cais. Desculpou-se com a família Beatty e chamou Daniel e Aboli.
- Tão logo escureça, vamos a terra. Tenham um dos escaleres preparados.
Faltavam quatro dias para a lua cheia. A montanha assomava escura e imponente sobre o escaler, suas ravinas e penhascos banhados de prata, enquanto o grupo seguia a trilha bruxuleante do luar para a praia. Hal sentara-se entre Aboli e Daniel Grande nos paneiros. Todos os três estavam camuflados com capas e chapéus, e portavam pistolas e espadas sob os mantos. Os remadores também estavam armados, doze bons homens sob o comando de Alf Wilson.
Chegaram à praia em uma das vagas atlânticas, o casco raspando num rangido pela areia, ao embalo da crista espumosa. Tão logo a onda começou seu refluxo, os remadores saltaram e puxaram o escaler para um ponto alto e seco.
- Mantenha os olhos nos homens, Alf. Não deixe que se safem daqui para procurar bebida e mulheres - Hal avisou a Wilson. - Podemos estar com pressa ao voltarmos.
Caminharam juntos pela macia areia da praia e, assim que acharam a trilha, seguiram para o grupamento de edificações abaixo do forte. Algumas das janelas mostravam o brilho de lampiões e, quando chegaram mais perto, puderam ouvir a música, a cantoria e o berreiro dos bêbados.
- Mudou muito pouco desde a nossa última visita - resmungou Aboli.
- O negócio ainda é bom - concordou Daniel Grande, e entrou Pela porta da primeira taverna nos limites do povoado.
A luz era tão difusa e a névoa de tabaco tão densa que levou uns Poucos segundos para que a visão se lhes ajustasse. A sala estava repleta de figuras escuras e do odor desagradável de corpos suados, e fumaça malcheirosa de cachimbos e de bebida vagabunda. O barulho era ensurdecedor e, ao pararem na entrada, um marujo cambaleante passou por eles. Seguiu com passos incertos até os limites as dunas de areia, caiu de joelhos e Vomitou sonora e copiosamente. Depois, tombou para a frente e desabou de cara na poça do próprio vômito.
Os homens entraram juntos na sala e abriram caminho por entre o ajuntamento em direção a um canto no fundo, onde havia uma mesa tosca e um banco em que outro beberrão comatoso se esparramara. Daniel Grande o ergueu como a uma criança adormecida e colocou-o gentilmente no chão imundo. Aboli limpou o amontoado de canecas vazias e pratos com restos de comida da mesa, enquanto Hal tomava um lugar no banco, de costas para a parede, para melhor examinar o ambiente sombrio e os homens que o lotavam.
Eram na maioria marinheiros, embora houvesse ali uns poucos soldados com seus casacos azuis e cartucheiras brancas, pertencentes à guarnição do castelo. Hal apurou os ouvidos para escutar as conversas, mas era uma balbúrdia de bêbados, recheada de medonhos palavrões, pragas e risadas irracionais.
- Holandeses - murmurou Aboli ao sentar-se no banco ao lado de Hal.
Ficaram a escutar por algum tempo. Por questão de sobrevivência, todos os três tinham aprendido a falar o idioma durante o cativeiro.
Um grupo de cinco marujos de aparência rude sentava-se à mesa ao lado. Pareciam menos embriagados que os outros e falavam muito alto para se fazer ouvir acima do vozerio. Hal acompanhou-lhes a conversa por alguns minutos, mas nada ouviu de interesse. Uma criada hotentote trouxe-lhes canecas de cerveja transbordando de espuma.
Daniel provou a bebida e fez uma careta.
- Puh! Parece urina morna do porco - disse, mas tomou outro gole.
Hal não tocou a sua, porque acabara de ouvir o holandês da mesa ao lado dizer:
- Teremos sorte se o maldito comboio deixar este porto pestilento.
A menção de um comboio intrigou Hal. Normalmente, mercadores viajavam sozinhos. Apenas em tempos de guerra ou noutra emergência formavam comboios e se colocavam sob os protetores canhões de navios de guerra. Inclinou-se para a frente a fim de ouvir o resto.
- Ja. Eu, por mim, não vou chorar se nunca lançar âncora de novo neste ninho de prostitutas negras e hotentotes ladrões. Gastei quase até o último florim da minha bolsa e tudo que tenho para mostrar é uma cabeça machucada e um pênis inflamado.
- Pois eu digo que o comandante deveria aproveitar a chance viajar sozinho. Para o inferno com aquele bastardo Jangiri e a sua tripulação pagã! Die Luipard é um adversário digno de qualquer filho do profeta Não precisamos ficar sentados aqui até que Van Rutyers esteja pronto para nos servir de ama-seca.
A pulsação de Hal acelerou-se ao ouvir o nome de Jangiri. Era a primeira vez que o escutava fora do gabinete de Nicholas Childs.
Quem é Van Rutyers? - Daniel Grande perguntou baixinho, e tomou outro gole de sua cerveja venenosa. Também tinha bisbilhotado a conversa dos marinheiros holandeses.
O almirante holandês do oceano das índias - Hal lhe disse.
- Está baseado na feitoria holandesa na Batávia. - Jogou um xelim de prata sobre a toalha imunda. - Compre para eles uma caneca de cerveja, Danny Grande, e ouça o que têm para lhe contar - ordenou.
Quando, porém, Daniel levantou-se do banco, viu-se confrontado por uma mulher.
Ela parou, braços caídos, e o encarou com um sorriso sedutor ao qual faltavam apenas alguns poucos dentes.
- Venha comigo à sala dos fundos, seu touro - ela lhe disse -, e lhe darei algo que nunca teve antes.
- O que você tem, minha querida? - Daniel Grande lhe mostrou as gengivas nuas num largo sorriso. - Lepra?
Hal examinou a vagabunda rapidamente e percebeu que ela poderia ser uma fonte melhor de informação que qualquer bêbado holandês.
- Que vergonha, mestre Daniel - exclamou -, que não reconheça uma dama de qualidade quando vê uma! - A mulher lançou um olhar de cobiça para Hal, avaliando o corte e a qualidade de seu casaco, os botões de prata em seu colete. - Sente-se, Sua Senhoria - Hal a convidou.
Ela soltou uma risadinha e demonstrou-se encantada como uma menina diante de um elogio. Afastou os cabelos grisalhos da testa com os dedos imundos, cujas unhas estavam quebradas e pretas de sujeira.
Beba alguma coisa para o bem da sua garganta. Daniel, ofereça à ama um copo de gim. Não, não, não sejamos mesquinhos. Compre uma garrafa inteira.
A mulher afofou suas anáguas encardidas e se deixou cair no banco do lado oposto ao de Hal.
Você é um verdadeiro príncipe. - Examinou-lhe as feições. - E belo como o demônio também.
- Qual é o seu nome, minha bela? - perguntou Hal.
- Mevrouw Maakenberg - ela respondeu. - Mas pode me chamar de Hannah.
Daniel voltou com uma garrafa cheia de gim e um copo de vidro. Encheu-o até a boca. Hannah pegou-o com o dedo mínimo erguido e tomou um gole pequeno, como uma dama. Não esboçou nenhuma reação à ferocidade da pálida aguardente.
- Então, Hannah - Hal lhe sorriu, e a mulher se retorceu como um animalzinho contente sob aquele olhar -, não há nada que se passe aqui no Cabo que você não saiba, não é?
- É a verdade verdadeira de Deus, se posso dizer isso de mim mesma. - Mostrou as falhas dos dentes de novo. - Qualquer coisa que queira saber, senhor, pergunte à velha Hannah.
Ela se mostrou digna da afirmação. Durante as horas seguintes, Hal ficou sentado diante da mulher e escutou-a falar. E descobriu que, por trás daquela face arruinada e dos turvos olhos saturados de gim, luziam os remanescentes da brilhante inteligência de um dia.
Parecia que ela sabia das preferências e apetites sexuais de cada homem e mulher do povoado, do governador Van der Stel aos trabalhadores das docas e carroceiros. Poderia dizer o preço de todos os produtos no mercado, de batatas ao mampoer, a forte aguardente de pêssego feita pelos moradores. Sabia quais os escravos à venda, o valor que seus donos pediam e o que aceitariam. Conhecia as datas de partida de cada navio na baía, o nome de seu capitão, sua carga e cada porto de parada em sua rota. Poderia lhes fornecer um relato da última viagem de cada embarcação, os perigos e problemas que haviam enfrentado.
- Diga-me, Hannáh, por que há tantos navios VOC ancorados na baía? - Referia-se à Verenigde Oostindische Compagnie, a Companhia Holandesa das índias Orientais.
- Todos estão de partida para a Batávia. O governador Van der Stel ordenou que qualquer um dos navios em viagem ao Oriente navegue em comboio sob a proteção de vasos de guerra.
- Qual a razão, Hannah, de uma ordem semelhante?
- Por causa de Jangiri. Já ouviu falar de Jangiri, não é?
Hal meneou a cabeça.
- Não. Quem é ele ou isso?
- A Espada do Profeta, é como se autodenomina. Mas não passa mais de um pirata sanguinário, pior que o próprio Franky Courtney, isso é o que ele é.
Hal trocou um olhar com Aboli. Ambos tinham sido pegos de surpresa.
Ao ouvir o nome do pai de Hal lançado na conversa assim, tão descuidadamente, e por saber que sir Francis e seus feitos ainda eram tão bem lembrados pelas redondezas.
Hannah não notou a reação dos dois. Tomou um gole de seu gim e riu um riso estridente.
Nos últimos seis meses, três navios VOC desapareceram no oceano Índico. Todo mundo sabe que foi obra de Jangiri. Dizem que já custou à Companhia um milhão de florins. - Seus olhos luziram, maravilhados. - Um milhão de florins holandeses! Eu não sabia que existia tanto dinheiro no mundo. - Debruçou-se sobre a mesa para encarar o rosto de Hal. Seu hálito fedia como um monte de estrume, mas Hal não se retraiu. Não queria arriscar-se a ofendê-la.
- Você se parece com alguém que eu conheço. - Fitou-o, intrigada por um momento. - Já esteve aqui em Boa Esperança antes? Nunca me esqueço de um rosto.
Hal meneou a cabeça e Daniel Grande caiu na risada.
- Talvez, mocinha, se ele lhe mostrasse a ponta rosada do pau, você o reconhecesse com certeza, melhor do que pelo rosto, é isso.
Hal encarou-o de cara fechada, mas, àquele momento, a garrafa de gim já estava quase vazia e Hannah cacarejava em gargalhadas como uma galinha.
- Eu pagaria um milhão de florins para ver! - Olhou com expressão maliciosa para Hal. - Quer ir até o fundo com Hannah? Não vai lhe custar nada, pois é um homem amável.
- Da próxima vez - Hal lhe prometeu.
Eu o conheço - insistiu ela. - Quando sorri assim, eu me lembro. A qualquer instante vai me ocorrer quem é. Jamais esqueço um rosto.
Fale mais sobre Jangiri - ele sugeriu para distraí-la, mas ela mal raciocinava agora.
Hannah encheu de novo o copo e ergueu no ar a garrafa vazia.
Tudo que amo some e me abandona - disse, as lágrimas afluindo a seus olhos. - Mesmo a garrafa não fica comigo por muito tempo.
- Jangiri - insistiu Hal. - Fale-me sobre Jangiri.
- É um pirata muçulmano sanguinário. Queima os marinheiros cristãos para ouvi-los gritar.
- De onde ele é? Quantos navios comanda? Com que força ele conta?
- um dos meus amigos estava num navio que Jangiri caçou, mas não capturou - ela resmungou com dificuldade. - É um rapaz adorável. Quer se casar comigo e me levar para a casa dele, em Amsterdã.
- Jangiri? - perguntou Daniel Grande.
- Não, seu estúpido - Hannah rezingou. - Meu namorado. Esqueci seu nome, mas ele quer se casar comigo. Ele viu Jangiri. Teve sorte de escapar daquele pagão sedento de sangue.
- Onde isso aconteceu, Hannah? Quando seu amigo fugiu de Jangiri?
- Não faz dois meses. Foi ao largo da Costa da Febre, perto da ilha de Madagascar.
- Que força ele tem? - Hal pressionou.
- Muitos navios enormes - Hannah falou, sem certeza. - Uma frota de navios de guerra. O navio do meu amigo fugiu.
Hal percebeu que ela se atrapalhava, confusa. Havia pouco mais que lhe pudesse contar de importância. Ainda assim, fez a última pergunta:
- Sabe qual a rota que o comboio VOC toma em seu caminho para a Batávia?
- Sul - disse ela. - Chamam de sul longínquo. Ouvi dizer que mantêm distância de Madagascar e das ilhas, pois é onde Jangiri se esconde, o pagão obsceno.
- Quando o comboio na baía vai partir? - perguntou Hal.
Ela, porém, mergulhara nas névoas do álcool.
- Jangiri é o demônio - murmurou. - Ele é o anticristo, e todos os verdadeiros cristãos devem temê-lo. - Lentamente, sua cabeça pendeu para a frente e então caiu de face na poça de gim sobre a toalha da mesa.
Daniel pegou um punhado daqueles cabelos grisalhos sebosos e ergueu-lhe a cabeça para fitá-la nos olhos.
- A dama nos deixou - disse, e soltou a cabeça de novo, que caiu contra a madeira com um baque.
Hannah rolou para fora do banco e caiu no chão, roncando alto.
Hal tirou uma moeda de prata de dez florins da bolsa em seu cinto e enfiou-a no corpete da mulher.
- É mais do que ela ganharia de costas num mês só de domingos.
- Daniel Grande resmungou.
Porém bem proveitosos. - Hal levantou-se. - Foram informações melhores do que poderíamos conseguir do próprio almirante Van Rutyers.
Na praia, Alf Wilson os aguardava com o escaler. Enquanto seguiam pela baía de volta ao Seraph, Hal sentou-se calado, digerindo todas as novas que Hannah lhe contara e integrando-as a seus planos. Ao subir as escadas de corda para o convés principal, já sabia o que precisava fazer.
- Algumas coisas parecem claras diante daquilo que a amiga de Daniel nos contou, a noite passada. - Hal olhou ao redor, para as fisionomias atentas de seus oficiais que se amontoavam na cabina de popa. - A primeira é que Jangiri tem seu ninho em algum lugar por estas bandas.
- Hal debruçou-se sobre a carta náutica aberta sobre sua mesa e colocou o dedo nos contornos de Madagascar. - Daqui, ele pode desferir ataques às rotas mercantis ao sul e a leste com a maior facilidade.
Aboli resmungou:
- O problema é encontrar a porta camuflada da sua fortificação, de onde sai para as suas surtidas. Ele não tem de usar uma das grandes ilhas como sua base. Há centenas de outras menores, espalhadas por duas mil léguas desde a costa de Omã, no mar da Arábia, até as ilhas Mascarenhas, ao sul.
- Tem razão - concordou Hal. - Acrescente-se a isso que há, quase com certeza, dezenas de outras ilhas que não conhecemos, que nem são nomeadas nem assinaladas em qualquer mapa. Podemos navegar por cem anos e não as descobriremos ou exploraremos a todas.
- Olhou ao redor, para as faces sérias. - Se não podemos ir até ele, então, o que faremos?
- Trazê-lo a nós - disse Ned Tyler. De novo, Hal concordou.
- Trazê-lo para fora do seu covil. Dar-lhe uma isca para provocá-lo. O lugar para fazer isso é ao largo da Costa da Febre. Teremos de manter distância das ilhas de Madagascar e Zanzibar, disfarçar nossa rota ao longo do litoral africano.
Todos resmungaram em concordância.
- Podem ter certeza de que ele tem agentes em cada porto no oceano Índico. Eles o mantêm informado de cada presa que faça escala por lá - Daniel lhes disse. - Pelo menos, é isso que eu faria se fosse um pirata pagão.
- Sim. - Hal voltou-se para ele. - Faremos escala em cada porto, deixaremos que saibam quanto somos ricos e como estamos parcamente armados.
Dois navios de combate de 36 canhões cada? - Ned Tyler soltou uma risadinha. - É força suficiente para assombrar qualquer pirata.
Um navio - disse Hal, e sorriu quando o fitaram com suspeita.
- Mandarei o Yeoman of York sozinho para Bombaim tão logo chegue aqui. Ele pode transportar nossos passageiros e toda a carga urgente da qual pudermos nos livrar. Seguirá com o porão abarrotado. Navegaremos pela Costa da Febre sozinhos.
O Seraph ainda é um navio de combate - Alf Wilson ponderou.
- Suficiente para assustar muitos flibusteiros.
Não vai se parecer com um quando estivermos prontos para zarpar. - Hal desenrolou os croquis do casco do navio, nos quais estivera trabalhando desde que haviam cruzado o equador. - Um Cavalo de Tróia, cavalheiros. É isso que iremos preparar para o sr. Jangiri.
Todos se amontoaram em torno da mesa, num coro de aprovação, fazendo comentários e sugestões pertinentes e astutas quando começaram a entender aquilo que Hal tinha em mente.
- O que queremos é transformar a embarcação num navio mercante rico, gordo, desarmado. As vigias de canhão primeiro...
Na manhã seguinte, Hal contornou, num barco a remo, o navio ancorado. Ned Tyler e os dois carpinteiros o acompanhavam, e ele indicou as mudanças que queria que fossem feitas na aparência do Seraph.
- Podemos deixar todas as esculturas e o trabalho em ouro como estão. - Apontou para as belas figuras decorativas na popa e na proa.
- Dão-lhe um bonito ar decadente, como o batelão do sr. prefeito de Londres.
- Mais como um prostíbulo francês - Daniel Grande fungou.
- Além do que, lorde Childs ficará grandemente ofendido se danificarmos sua pequena obra de arte. - Hal apontou para o costado do Seraph. - São as vigias dos canhões que devem ser nossa preocupação maior. - Os peitoris das vigias de canhão eram debruados em folhas de ouro, o que conferia um efeito descontínuo e agradável ao casco, mas enfatizava a capacidade bélica do Seraph. - Começaremos a trabalhar nelas primeiro - Hal ordenou aos carpinteiros. - Quero as junções das tampas das vigias de canhão escondidas. Recubram com alcatrão e pintem de novo, de maneira que se misturem ao trabalho de madeira do casco.
Por uma hora mais, examinaram o navio a partir do escaler e se decidiram por outras pequenas modificações no costado do Seraph que Poderiam fazê-lo parecer mais inofensivo.
Ao remarem de volta ao navio, Hal comentou com Daniel Grande:
- Uma das razões pelas quais ancorei tão distante da praia, longe do alcance dos canhões do forte, foi para ficar fora da vista de olhos bisbilhoteiros. - Apontou com a cabeça para as barcaças e outras pequenas embarcações ainda amontoadas em torno do navio. - Tão logo o trabalho comece, quero que mande embora todos esses barcos. Devemos crer que Jangiri tem agentes no povoado e agir de acordo com essa crença. Não quero olhos atentos a observar tudo o que fazemos e línguas ocupadas em repassar as novidades.
Uma vez de volta à sua cabina, Hal escreveu uma carta ao sr. Beatty, endereçada ao alojamento que este tomara na cidade, explicando que ele e sua família completariam a viagem para Bombaim no Yeoman of York, quando este chegasse, e que Guy os acompanharia. Hal sentiu-se feliz em fazer o comunicado por escrito em vez de ter de persuadir o sr. Beatty a realizar a troca debaixo de discussões e argumentos.
- Ora, ora, que ótimo! - disse, em voz alta, ao secar a tinta no papel. - Esse arranjo também vai dar um jeito nas predisposições amorosas e na inclinação ao pugilismo de mestre Tom. - Assim que lacrou a carta com cera, encarregou Daniel Grande de levá-la para terra. - Nenhum sinal do Yeoman of York ainda? - perguntou, tão logo Daniel Grande enfiou a cabeça pela porta.
- Nada ainda, capitão.
- Diga ao oficial da guarda para me chamar no momento em que ele divisar o mastro mestre no horizonte. - Hal dera a mesma ordem mais de uma vez antes, e Daniel Grande revirou os olhos e chupou as gengivas para ilustrar sua paciência diante daquele exagero. Hal esboçou um sorriso. Tal familiaridade era permitida a Daniel Grande.
Ele estava de pé no cadafalso ao brilhante sol da manhã. Era ainda apenas um rapaz, talvez de uns dezoito anos de idade, certamente não mais velho. Tinha uma boa aparência - Hannah Maakenberg o achou adorável, do lugar onde todos se encontravam. Era alto e de membros compridos, com longos cabelos esvoaçantes, negros como as asas do corvo, que caíam até seus ombros. Parecia apavorado, o que a excitou como excitava a grande aglomeração de gente que a rodeava. Cada homem, mulher e criança do povoado estava ali, cada burguês e dona de casa, escravo e hotentote. Havia um clima de animação, turbulência e diversão no ar. Mesmo as crianças mais novas dentre eles, contaminadas pela espontânea alegria da ocasião, brincavam de pega-pega, aos berros, entre as pernas dos adultos.
Ao lado de Hannah, postava-se uma das esposas de algum burguês livre, uma mulher gorducha, de aparência gentil, com um avental salpicado de farinha. Obviamente, viera diretamente da cozinha onde assava o pão. A filha pequenina agarrava-se a seu avental. Era uma criança angelical que chupava o polegar, a olhar solenemente, com seus imensos olhos azuis, para o homem no cadafalso.
- É a primeira execução que ela vê -, a mãe explicou a Hannah. - Sente um pouco de estranhamento e medo de toda essa gente.
As mãos do prisioneiro estavam manietadas atrás das costas. Vestia roupas sumárias e rasgadas de marujo, e seus pés estavam descalços. O magistrado postou-se à frente do cadafalso para ler as acusações e a sentença, e a multidão remexeu-se e se entrechocou de expectativa.
Agora ouçam o veredicto da Corte da colônia de Boa Esperança, pela graça de Deus e pelo poder investido a mim pela Carta dos Estados Gerais da República da Holanda.
Ande logo com isso! - berrou um dos moradores, no fundo da multidão. - Vamos vê-lo dançar para nós.
E por este instrumento decretado que Hendrik Martinus Ockers, tendo sido julgado culpado do crime de assassinato...
Eu estava lá - Hannah disse, com orgulho, à dona de casa a seu lado. - Vi tudo. Até prestei depoimento no tribunal, sim, prestei!
A mulher pareceu grandemente impressionada.
- Por que ele fez isso? - perguntou.
- Por que qualquer um faz? - Hannah deu de ombros. - Ambos estavam urinando e vomitando de bêbados. - Lembrou-se das duas figuras cercando uma à outra com as longas facas a reluzirem sob a luz trêmula do lampião, as silhuetas projetando sombras distorcidas nas paredes da taverna, e dos gritos e das batidas dos pés dos espectadores.
- Como ele fez isso?
- Com uma faca, queridinha. Foi rápido, apesar de toda aquela bebida na barriga. Como uma pantera. - Fez um gesto de quem desfere um golpe. - Assim, direto na barriga do outro. Abriu-o como um peixe no cepo. Suas tripas caíram para fora, se enrolaram em seus pés e ele tropeçou e caiu de cara no chão.
- Oh! - A dona de casa estremeceu de horror, com uma expressão de fascínio. - São como animais, esses marujos.
- Todos eles, queridinha, não apenas os marujos - Hannah concordou, toda pomposa. - Todos os homens são iguais.
- E isso é a verdade de Deus! - a mulher exclamou, e pegou a criança para colocá-la sobre os ombros.
- Aí está, lieveling. Terá uma visão melhor daí de cima - disse à filha.
O magistrado chegou ao fim da proclamação da sentença:
- O previamente nomeado Hendrik Martinus Ockers é por este instrumento condenado à morte por enforcamento. A sentença será levada a efeito em público, no pátio de guarda do castelo, na manhã do terceiro dia de setembro, às dez horas da manhã. - Desceu pesadamente a escada do cadafalso e um dos guardas o ajudou nos últimos degraus.
O carrasco, que ficara de pé atrás do condenado, avançou e colocou um saco de algodão preto por sobre a cabeça do rapaz.
- Detesto quando fazem isso - Hannah resmungou. - Gosto de ver a expressão deles na ponta da corda, o rosto todo roxo e contorcido.
- João Lerdo nunca cobriu os rostos deles - a mulher ao lado anuiu.
- Ah! Lembra de João Lerdo? Era um artista.
- Nunca vou esquecer quando executou sir Franky, o pirata inglês. Foi um espetáculo.
- Eu me recordo como se fosse ontem - concordou Hannah. Trabalhou nele por quase meia hora a esquartejá-lo, pedaço a pedaço, antes de decepar-lhe a cabeça... - Calou-se quando algo lhe assomou a memória. Algo a ver com os piratas e o belo rapaz no cadafalso. Sacudiu a cabeça com irritação, o gim lhe deixara a mente confusa.
O carrasco colocou o laço em volta do pescoço do prisioneiro e puxou-o para que se encaixasse sob a orelha esquerda. O rapaz estava tremendo agora. Hannah desejou de novo poder lhe ver a face. A cena inteira a fazia recordar-se de alguém.
O carrasco deu um passo atrás e apanhou seu pesado martelo de madeira. Girou-o no ar até mirar a cunha que prendia a porta falsa. O condenado soltou um berro doloroso.
Em nome de Deus, tenha misericórdia!
Os espectadores explodiram em risadas. O executor girou o martelo de novo e o calço foi arrancado fora. Com um baque, a armadilha se abriu, e o homem caiu pela abertura. Logo, apareceu na ponta da corda, o pescoço esticado e a cabeça pendurada para o lado. Hannah ouviu a vértebra se partir como um galho seco, e ficou desapontada de novo. João Lerdo teria feito melhor e o deixaria a chutar e saltar na ponta da corda por muitos horripilantes minutos, com a vida a ser lentamente exaurida de dentro dele. Aquele carrasco era desajeitado, faltava-lhe sutileza. Para Hannah, tudo terminara muito depressa. Uns poucos convulsivos tremores correram pelo corpo do condenado e, então, ele pendeu quieto, girando lentamente pelo laço, o pescoço torcido num ângulo impossível.
Hannah afastou-se, insatisfeita e ressentida. Então, parou. A lembrança que lhe fugira por tanto tempo voltou num ímpeto.
- O garoto filho do pirata! - exclamou. - Sir Franky... o garoto filho do pirata. Nunca esqueci um rosto. Eu disse que o conhecia.
- De quem está falando? - perguntou a mulher com a criança nos ombros. - O garoto de Franky? Que garoto de Franky?
Hannah não se deu ao trabalho de responder e saiu apressada, a acalentar o segredo para si mesma, tremendo de excitação. A recordação dos acontecimentos de vinte anos antes acudiu a seus pensamentos. O julgamento dos piratas ingleses. Hannah era jovem e linda naquela época, e dera a um dos guardas uma "coisinha" de graça para que a deixasse entrar na sala do tribunal. Pudera acompanhar todo o julgamento de seu assento na fila de trás. Era um divertimento melhor que qualquer jogo ou feira.
Visualizou de novo o rapaz, o filho de Franky, acorrentado ao pirata, de pé, lado a lado com o pai, enquanto o antigo governador Van der elde sentenciava o primeiro à morte e o outro à prisão perpétua com trabalhos forçados nas muralhas do castelo. Como era o nome do rapaz? Ao fechar os olhos, conseguiu enxergar-lhe as feições com perfeita clareza com os olhos da mente.
- Henry! - exclamou. - Henry Courtney!
Três anos depois, os piratas liderados por aquele mesmo Henry Courtney tinham escapado dos calabouços do castelo. Hannah jamais esqueceria o som dos tiros e a luta e o fogo dos mosquetes, depois a explosão que fizera tremer o chão e a imensa nuvem de fumaça e poeira que se elevara nos céus quando os rufiões ingleses incendiaram o paiol de pólvora do castelo. Com os próprios olhos, ela lhes presenciar a fuga pelos portões do castelo, na carreta que haviam roubado. Em seguida tomaram a estrada que conduzia ao sertão bruto. Embora as tropas da guarnição os perseguissem até as distantes montanhas selvagens ao norte, eles se safaram ilesos. Depois disso, ela se recordava de ver os cartazes de recompensa no mercado e em todas as tavernas ao longo do cais.
- Dez mil florins! - murmurou consigo mesma. - Eram 10 mil florins. - Tentou imaginar uma tão grande soma de dinheiro. - Com esse dinheiro, eu poderia voltar para Amsterdã. Viveria como uma grande dama pelo resto da minha vida. - Então, seu ânimo anuviou-se. Pagariam a recompensa depois de todos aqueles anos? Seu corpo todo fraquejou de desespero enquanto a grande fortuna lhe fugia das mãos ávidas. - Mandarei Annetjie descobrir por intermédio daquele seu bom camarada do castelo.
Annetjie era uma das prostitutas mais jovens e bonitas que trabalhavam nas tavernas junto ao cais. Entre seus clientes regulares, estava o escrevente do governador, seu "desabafo", no linguajar da profissão. Hannah ergueu as saias e saiu em disparada para o cais. Sabia que Annetjie tinha um quarto no Die Malmok, uma das mais populares das tavernas de marujos, chamada assim por causa dos albatrozes errantes.
Teve sorte. Annetjie ainda estava esparramada em seu colchão imundo no minúsculo cômodo debaixo do beiral. O quarto recendia a suor de homens e lascívia. Annetjie sentou-se, os negros cabelos a caírem emaranhados e os olhos toldados de sono.
- Por que está me acordando a esta hora? Ficou louca? - reclamou com raiva.
Hannah arrojou-se no chão ao lado dela e contou sua história.
A garota endireitou-se e limpou as remelas do canto dos olhos. Sua expressão mudou ao ouvir o relato da outra.
- Quanto? - perguntou, incrédula, e pulou da cama para pegar suas roupas espalhadas pelo chão. - Em que navio esse kerel está? - indagou, enquanto enfiava o vestido pela cabeça e o puxava para baixo sobre as trêmulas nádegas muito brancas.
Hannah hesitou diante da pergunta. Havia mais de vinte navios na baía, e ela não tinha idéia de em qual estaria sua presa. Então, sua expressão se iluminou. Henry Courtney era um pirata inglês e havia apenas dois navios ingleses na flotilha ancorada lá. Devia estar em um deles.
- Deixe que eu me preocupo com isso, lieveling - disse à garota. - Tudo que você tem a fazer é descobrir se ainda há uma recompensa, e como poderemos recebê-la.
O Seraph estava ancorado fazia quinze dias quando o Yeoman of York finalmente entrou na baía da Mesa, tocado pelo sudeste, e lançou âncora a uma amarra de distância a ré de seu companheiro. O próprio Edward Anderson remou o barco e, após escalar a escada para o convés do Seraph, cumprimentou Hal.
- Eu mal o reconheci, sir Henry. O Seraph parece um navio diferente.
- Então tive sucesso em meus propósitos. - Hal tomou-o pelo braço e o conduziu pelo corredor. - O que o reteve por tanto tempo?
- Ventos irregulares desde que nos apartamos. Fui carregado para o sul até avistar a costa do Brasil -, Anderson resmungou. - Porém estou feliz de estarmos juntos de novo.
- Não por muito tempo - Hal contestou ao lhe apontar uma cadeira. Serviu a ele um copo de vinho das Canárias. - Tão logo tenha reabastecido e restaurado o Yeoman of York, vou mandá-lo sozinho a Bombaim, enquanto eu subo a costa para procurar aquele bucaneiro muçulmano.
- Não era isso o que eu esperava. - Anderson lançou um perdigoto ao vinho, ao ver a chance do dinheiro do prêmio lhe escapar. - Tenho um bom navio de combate e uma tripulação...
- Talvez boa demais - Hal o interrompeu. - Pelas notícias que colhi desde que cheguei aqui, parece que a nossa melhor chance de chegar a Jangiri é lhe lançar uma isca. Dois navios de combate provavelmente o afastariam em vez de atraí-lo.
- Ah! Então é por isso que mudou a aparência do barco? - perguntou Anderson.
Hal concordou com a cabeça e prosseguiu:
- Além do que, há passageiros, correspondências urgentes e carga para Bombaim. O sr. Beatty está hospedado na cidade, esperando pelo senhor para levá-lo e à sua família a Bombaim. Os alísios não continuarão tão promissores por muito mais tempo antes que a estação mude e os ventos se tornem inconstantes para a travessia do oceano Índico.
Anderson suspirou.
- Entendo as suas razões, senhor, embora isso seja de escasso conforto. Na verdade, sinto-me relutante em deixar sua companhia de novo.
À época que chegar a Bombaim, a monção terá mudado. Poderá descarregar sua carga e pegar esse vento para apressar sua passagem de volta através do oceano das índias, rumo à Costa da Febre, onde o estarei aguardando.
- Isso levará vários meses, a viagem de ida e volta - Anderson ponderou com ar lúgubre.
Hal ficou feliz que o homem demonstrasse aquele espírito diligente. Outros capitães da Companhia teriam se alegrado em evitar o perigo e estavam bem contentes com a vida pacífica da rota mercante. Tentou adoçar-lhe a frustração.
- Quando nos reunirmos de novo, terei mais e melhores informações de Jangiri. Até então, posso ter farejado seu covil. Pode ter certeza de que haverá necessidade de ambas as nossas forças para acabar com ele, e que não tentarei tal façanha sem a sua assistência e da sua tripulação, senhor.
Anderson animou-se um pouco.
- Então devo apressar-me para preparar a próxima etapa da viagem a Bombaim. - Secou o copo e se levantou. - Irei a terra imediatamente para falar com o sr. Beatty e pedir que se prepare e à família para continuar a viagem.
- Mandarei Daniel Pescador, meu oficial, a terra com o senhor para guiá-lo até o alojamento do sr. Beatty. Iria eu mesmo, mas por várias razões isso não é prudente. - Acompanhou Anderson pelo corredor até o convés e, ao chegarem à amurada, disse-lhe:
Terei toda a mercadoria e a correspondência para o governador Aungier carregada em minhas pinaças até amanhã e a despacharei ao senhor. Pretendo içar âncora dentro de três dias a partir de agora e começar a caçada a Jangiri.
Meus homens estarão esperando para receber sua carga. Com a graça de Deus, devo estar pronto para zarpar dentro de dez dias ou menos.
- Se me der o prazer de ser meu convidado para jantar amanhã, Poderemos usar a oportunidade para acertar os detalhes dos nossos Planos futuros.
Apertaram-se as mãos, e Anderson pareceu grandemente mais feliz ao descer para o escaler, com Daniel Grande a segui-lo.
Hannah sentara-se no cimo de uma das altas dunas de areia acima da praia, de onde poderia examinar a flotilha ancorada na baía. Duas outras pessoas estavam com ela: Annetjie e Jan Oliphant.
Jan Oliphant era o filho bastardo de Hannah. Seu pai era Xia Nka, um poderoso chefe hotentote. Trinta anos antes, quando ainda tinha boa aparência e cabelos louros, Hannah aceitara dele o presente de um belo kaross, feito com a pele do chacal vermelho, em troca de uma noite de seus favores. Relações entre mulheres brancas e homens de cor eram estritamente proibidas pela VOC, mas Hannah nunca dera atenção às ridículas leis elaboradas por dezessete velhos magistrados em Amsterdã.
Embora Jan Oliphant puxasse ao pai em aparência e na cor da pele, tinha orgulho de sua ascendência européia. Falava holandês fluentemente, portava uma espada e um mosquete e se vestia como um burguês. Ganhara o nome de Oliphant em virtude de sua vocação. Era um famoso caçador de elefantes, e um homem empedernido e perigoso. Por decreto da VOC, nenhum dos burgueses holandeses tinha permissão para se aventurar além das fronteiras da colônia. Em razão de sua linhagem hotentote, Jan Oliphant não estava sujeito a essas restrições. Podia ir e vir à vontade, livre para embrenhar-se nos sertões inóspitos além das montanhas, e voltar para vender as preciosas presas de marfim no mercado do povoado.
Suas feições trigueiras eram horrivelmente mutiladas, o nariz torcido e a boca fendida por medonhas cicatrizes brancas que partiam do espesso chumaço de cabelos e desciam até seu queixo. Sua mandíbula estilhaçada era torta, dando-lhe um ar de perpétuo sorriso. Em uma de suas primeiras incursões ao interior, enquanto dormia ao lado da fogueira do acampamento, uma hiena saltara sobre sua forma adormecida e lhe abocanhara a face com as poderosas queixadas.
Somente um homem da formidável compleição física e com a força de Jan Oliphant poderia sobreviver a um tal ataque. A besta o arrastara para a escuridão, bamboleando-o debaixo do peito como um gato faz a um rato. Ignorara os gritos e pedras lançadas pelos companheiros de Jan. Os longos dentes amarelos estavam cravados tão profundamente em sua face que os ossos de sua mandíbula foram esmagados, e sua boca e nariz obstruídos, e ele mal conseguia respirar.
Jan buscara a faca no cinto e com a outra mão apalpara o peito do animal até encontrar a fenda entre as costelas onde podia sentir os batimentos do coração. Posicionou a ponta da faca com cuidado e, então, com um único e poderoso golpe ascendente, matara a fera.
Estava agachado agora sobre a duna, entre as duas mulheres, e sua voz saía distorcida pelas narinas destruídas e o queixo torcido.
Mãe, tem certeza de que é o mesmo homem?
- Meu filho, jamais me esqueço de um rosto - disse-lhe Hannah, evasiva.
- Dez mil florins? - escarneceu Jan Oliphant, com uma gargalhada. - Nenhum homem vivo ou morto vale tanto.
- É verdade - Annetjie o interrompeu com veemência. - A recompensa ainda está de pé. Falei com o meu bom camarada no castelo. Ele disse que a VOC pagará a soma total. - Sorriu com ganância. - Pagarão por ele vivo ou morto, desde que possamos provar que é Henry Courtney.
- Por que não mandam os soldados até o navio e o prendem? - Jan Oliphant quis saber.
- Se o prenderem, acha que darão a recompensa a nós? - Annetjie perguntou, irritada. - Temos que o pegar, nós mesmos.
- Ele pode já ter partido - Jan ponderou.
- Não! - Hannah meneou a cabeça com veemência. - Não, meu lieveling. Nenhum navio inglês levantou velas e recolheu a âncora nos últimos três dias. Um outro chegou, mas nenhum partiu. Olhe! - Apontou pela baía. - Lá estão eles.
As águas eram embaladas por brancas ondas encaracoladas, e os navios da frota dançavam um gracioso minueto à música do vento, fazendo mesuras e prancheando em suas amarras, com suas bandeiras desfraldadas esvoaçando num arco-íris mutante. Hannah sabia o nome de cada um deles. Recitou-os até chegar aos dois barcos ingleses que se encontravam tão distantes na baía que era impossível distinguir suas cores.
- Aquele é o Seraph, e aquele atrás, mais adiante, em direção à ilha obben, é o Yeoman ofYork. - Mutilou os nomes com seu sotaque pesado e, então, levou a mão aos olhos numa viseira. - Há um escaler deixando o Seraph. Talvez a sorte nos soma e o nosso pirata esteja nele.
Vai demorar quase meia hora para chegar à praia. Temos muito tempo - Jan Oliphant deitou-se de costas ao sol e esfregou o membro protuberante. - Estou com um comichão danado aqui. Venha, Annetjie coce para mim.
Ela encolheu-se com um falso ar de recato.
- Você sabe que é contra a lei da Companhia. Nós, mulheres brancas, não podemos "aliviar o quartilho" de vocês, negros bastardos.
Jan Oliphant riu de maneira disfarçada.
- Não vou contar ao governador Van der Stel, embora tenha ouvido dizer que ele mesmo gosta de um naco de carne preta. - Jan Oliphant enxugou o fio de saliva que escorria por entre seus lábios torcidos.
Minha mãe pode ficar de guarda para nós.
- Não confio em você, Jan Oliphant. Da última vez, você me enganou. Deixe-me ver a moeda primeiro - protestou Annetjie.
- Pensei que éramos namorados, Annetjie. - Inclinou-se e afagou-lhe um dos seios redondos e fartos. - Quando tivermos os 10 mil florins da recompensa, posso até mesmo me casar com você.
- Casar comigo? - Ela desabou numa gargalhada. - Eu nem mesmo andaria pela rua com você, seu macaco horroroso.
Ele sorriu.
- Não estamos falando de andar pela rua. - Agarrou-a pela cintura e beijou-a na boca. - Venha, meu pudinzinho, temos muito tempo antes que o escaler chegue à praia.
- Dois florins - ela insistiu. - É o meu preço especial para todos os meus melhores namorados.
- Aqui está meio florim. - Enfiou-lhe a moeda pelo decote.
Ela estendeu a mão e massageou-lhe o membro, sentindo-o crescer contra a palma.
- Um florim, ou você pode dar um mergulho no oceano para se esfriar.
Ele bufou pelas narinas deformadas e enxugou a saliva do queixo, enquanto tirava outra moeda da bolsa. Annetjie pegou-a e então jogou a cabeça para trás, afastando do rosto a cabeleira desgrenhada pelo vento. Levantou-se. Ele ergueu-a nos braços e carregou-a para uma depressão entre as dunas.
Hannah observou-os com desinteresse de seu lugar no topo da duna. Estava preocupada com sua cota do dinheiro da recompensa. Jan Oliphant era seu filho, mas ela não tinha ilusões de que ele a passaria para trás se tivesse a mínima chance. Precisava certificar-se de que o dinheiro do prêmio fosse colocado em suas próprias mãos, mas, por outro lado, nem Annetjie nem Jan confiariam nela. Debateu-se com o dilema enquanto via Jan enterrar-se em Annetjie, o ventre a bater em golpes sonoros contra o dela. Resfolegava e incitava a si próprio aos brados.
h! Ah! Como um furacão! Como Leviatã a esguichar! Como o pai de todos os elefantes arrasando a floresta! Ah! Aí vem Jan Oliphant! Soltou um último berro, escorregou de dentro dela e caiu largado num monte de areia ao lado.
Annetjie levantou-se, puxando as saias, e olhou para baixo com desdém.
Mais como um peixinho soltando bolhas do que para uma baleia esguichando - disse, e subiu a duna de volta para sentar-se ao lado de Hannah.
O escaler vindo do Seraph chegava à praia agora, seus remos a emergir e a afundar de relance, cavalgando a crista de uma das vagas.
- Pode ver os homens na popa? - Hannah perguntou, animada.
Annetjie cobriu os olhos com a mão.
- Ja, dois deles.
- Aquele um - Hannah apontou para a figura no banco de popa - estava com Henry Courtney naquela noite. São companheiros, eu posso afirmar.
Um homenzarrão levantou-se e gritou uma ordem para os remadores. Em uníssono, eles ergueram os longos remos e os sustentaram no ar, como as lanças de uma tropa de cavalaria. O escaler deslizou sobre a areia e foi descansar no seco.
- É um tremendo bastardo - comentou Annetjie.
- É ele, por certo.
Ficaram a observar Daniel Grande e o capitão Anderson que saltavam do escaler e logo seguiam em largas passadas pela praia, rumo ao povoado.
- Vou descer e falar com os barqueiros - Annetjie se ofereceu. - Descobrirei em que navio o nosso homem está e se é realmente o filho de Franky, o pirata.
Hannah e Jan Oliphant viram-na seguir pela beira da água em direção ao escaler. A tripulação a avistara e aguardava que se aproximasse, rindo e cutucando um ao outro, com ar de expectativa.
- Annetjie é que deve receber o dinheiro da recompensa para nós.
- Hannah disse ao filho.
- Já! - Eu estava pensando a mesma coisa. Seu namorado é que faz o Pagamento.
Observaram a garota rir e zombar dos marujos. Então, fez um gesto de concordância e levou um deles para uma pequena moita de alcatira acima da praia.
- Quanto prometeu a ela como parte? - perguntou Jan Oliphant.
- Metade.
- Metade? - Ficou chocado com tamanha prodigalidade. - muito.
O primeiro marujo emergiu da moita, amarrando o pedaço de corda que lhe segurava a calça. Seus companheiros o receberam com um brinde irônico, e um segundo homem saltou do escaler e correu para o mato, seguido por um coro de assobios e aplausos.
- Já, é muito - concordou Hannah. - Ela é uma cadela gananciosa. Veja, vai servir até o último daqueles porcos ingleses.
- Já me cobrou dois florins. É uma vagabunda que só pensa em dinheiro. Teremos de nos livrar dela - murmurou Jan, filosoficamente, dando de ombros.
- Tem razão, meu filho. Ela merece isso. Mas apenas depois que tiver apanhado a recompensa para nós.
Esperaram pacientemente sob o sol quente, conversando sobre frivolidades, fazendo planos para gastar a imensa fortuna que em breve seria deles, enquanto observavam a procissão de marujos ingleses que desapareciam entre as ervas-leiteiras e retornavam minutos mais tarde para enfrentar, envergonhados, os gritos de escárnio e as gargalhadas de deboche dos companheiros.
- Eu disse que ela iria "dar um jeito" em todos eles - resmungou Hannah, com afetada desaprovação, enquanto o último marujo voltava para o escaler.
Uns poucos minutos mais tarde, Annetjie surgiu por entre as árvores, a limpar os grãos de areia dos cabelos e das roupas. Com uma expressão de auto-satisfação na face rosada, caminhou até onde Hannah e Jan Oliphant se sentavam. Deixou-se cair ao lado de Hannah.
- Então? - perguntou Hannah.
- O capitão do Seraph, da Companhia Inglesa das índias Orientais, é sir Henry Courtney - Annetjie anunciou com toda pompa.
- E você tem o testemunho de oito de seus marujos para provar disse Hannah com sarcasmo.
Annetjie nem sequer enrubesceu e continuou:
- Parece que Henry Courtney é um rico milorde inglês. É dono de imensas propriedades na Inglaterra.
Jan Oliphant sorriu.
Como refém, pode valer ainda mais que 10 mil. Eu e os meus rufiões estaremos esperando por ele aqui na praia, quando ele chegar.
Hannah pareceu preocupada.
Não estrague tudo tentando mantê-lo em cativeiro em troca de resgate. Ele me parece um peixe escorregadio. Agarre-o, corte fora sua cabeça e leve-a para a VOC. Pegue a recompensa e esqueça essa história de resgate.
- Vivo ou morto? - Jan Oliphant perguntou a Annetjie.
- Já, foi o que disseram.
- Minha mãe tem razão. Um peixe morto não escorrega dos nossos dedos. Um peixe com a garganta cortada - resmungou Jan.
- Aguardarei com você até que ele chegue à praia. Vou apontá-lo, e depois é com você e os seus rapazes - Hannah disse ao filho.
- Se ele desembarcar uma segunda vez - Annetjie relembrou-lhe, com um toque de malícia vingativa, e Hannah começou a remoer-se de preocupação novamente.
A carga para Bombaim foi retirada do Seraph e levada em balsas para o Yeoman of York. Os barris de água foram esvaziados e novamente enchidos com água do riacho que corria pelas escarpas da montanha da Mesa. Os estoques de óleo para lampião, de sal, farinha, bolachas e outras mercadorias secas que haviam sido consumidos durante a longa viagem para o sul foram repostos. Hal mandou organizar de novo a distribuição da carga para buscar equilíbrio perfeito e a melhor condição de navegabilidade. A tripulação gozava de boa saúde física e mental, empanturrada e feliz com aquela dieta de frutas frescas, vegetais e carne, e os 26 casos de escorbuto tinham se recobrado desde que Hal os mandara para terra, aos alojamentos no povoado. Agora, estavam de volta a bordo, alegres e ansiosos para continuar a viagem.
- Levantarei velas na madrugada de amanhã - Hal disse ao capitão Anderson, do Yeoman of York. - Também tomou todas as providências para se fazer ao mar de novo?
- Nada receie quanto a isso - Anderson lhe assegurou. - Estarei esperando no local de encontro no primeiro dia de dezembro.
- E teremos um bom emprego para o senhor, então - Hal lhe prometeu. - Há uma última questão para a qual preciso da sua ajuda.
- Só tem que dizer.
- Vou a terra hoje à noite para resolver um assunto de suma importância para mim.
- Perdoe minha impertinência, sir Henry, mas isso é prudente? Como me confidenciou, e como eu mesmo me certifiquei por discretas perguntas às autoridades holandesas na colônia, eles têm pendências não encerradas com o senhor. Se cair nas mãos deles, isso certamente redundará em sua desvantagem.
- Sou grato por sua preocupação, senhor, porém meu assunto em terra não pode ser negligenciado. Quando estiver concluído, haverá um pequeno baú a ser levado para Bombaim em meu nome. De lá, estarei em débito para com o senhor, se puder consigná-lo em despacho no próximo navio que zarpar daquele porto para meu filho mais velho, em Devon.
- Pode ter toda a certeza de que eu o farei, sir Henry.
Tom e Dorian tinham observado os preparativos para a expedição a terra com crescente fascinação. Conversaram entre si por vários dias. Quando Hal escolheu os homens que iriam acompanhá-lo e lhes designou equipamento e armas, a curiosidade dos dois transbordou.
Reunindo toda a coragem, desceram até a cabina do pai, sabedores de que ele estaria fechado lá dentro com seus oficiais. Enquanto Dorian ficava de vigia na escada do corredor, Tom esgueirou-se até a porta e encostou o ouvido na madeira. Conseguiu ouvir a voz de seu pai.
- O senhor, Tyler, ficará encarregado do navio enquanto eu estiver em terra. Podemos ser duramente pressionados pelos holandeses e ter alguma pressa quando retornarmos, portanto a tripulação do escaler que irá nos aguardar na praia deve estar alerta e bem armada, pronta para nos tirar de lá a qualquer instante. Deve estar pronto para ir em nossa ajuda, sr. Tyler, e tão logo voltemos a bordo, içar âncora e levantar velas, mesmo na escuridão da noite.
Tom levou Dorian de volta ao convés. Os dois escalaram os cordames e se sentaram lado a lado na verga principal. Aquele era o lugar para onde iam sempre que não queriam ser ouvidos por acaso.
- É hoje. Ouvi papai dando suas ordens. Vai fazer uma batida de surpresa em terra na noite de hoje - Tom contou a seu irmão mais novo. - Então, agora sabemos para que é o baú, certo?
- Sabemos? - perguntou Dorian, em dúvida.
Os dois tinham visto um grupo de homens sob as ordens de Daniel Grande trazer o misterioso baú do porão. Era do tamanho de uma pequena arca de transporte, feita de teca polida, belamente talhada e malhetada, com uma tampa dotada de parafusos.
Claro que sabemos - respondeu Tom, cheio de si. - Papai vai buscar o corpo de vovô do lugar onde Aboli o escondeu.
Dorian sentiu-se espicaçado no mesmo instante.
Será que nos deixará ir junto?
Tom ergueu seu barrete e coçou a cabeça em dúvida.
Dorian insistiu.
- Não temos medo de falar com ele, temos, Tom? - Sabia que desafio era a melhor maneira de induzir Tom a fazer o que ele queria.
- Claro que não -, Tom negou, indignado. Independentemente disso, teve de reunir coragem suficiente a ponto de conseguir se aventurar de novo até a cabina de popa.
- Deixe que eu falo - murmurou a Dorian ao bater na porta.
- Entre! - seu pai exclamou com secura e, então, ao ver quem era -, Oh, são vocês dois? Seja o que for de importância para os seus assuntos, rapazes, não tenho tempo de atendê-los agora. Terão de voltar depois. Conversaremos amanhã.
Barretes na mão, porém com expressões determinadas, o par ficou parado no lugar. Tom apontou para o baú de teca polida que agora repousava no centro da cabina.
- Dorian e eu sabemos que vai buscar o corpo de vovô Francis hoje à noite. Aquele é o caixão que o senhor trouxe de casa para ele.
Hal tirava a carga do par de pistolas que se encontrava sobre a mesa à sua frente, enfiando o saca-rolhas pelos canos e puxando as balas velhas, as buchas e as cargas de pólvora para substituí-las. Ergueu os olhos da tarefa e examinou as fisionomias sérias dos filhos. Por fim, suspirou.
- Vocês me desmascararam. Não há como negar.
- Queremos ir com o senhor - disse Tom.
Hal encarou-os, espantado, e então baixou os olhos de volta para as pistolas e continuou a carregá-las. Com gestos deliberadamente lentos, mediu uma carga de pólvora do frasco, derramou-a pela abertura do cano e socou-a com firmeza. Em seguida pegou um pedaço de pano da caixa marchetada de bronze e enrolou a bala de chumbo de 15 gramas com ele. Aquilo teria de se encaixar perfeitamente ao cano. A pistola era uma bela arma, feita por George Truelock, de Londres. O cabo era de nogueira com arabescos em ressalto.
- Seu ferimento ainda não está curado, Tom - disse, ainda sem erguer os olhos.
- Está cicatrizado - protestou Tom, e tocou o flanco. - Não passou de um arranhão, mesmo quando estava pior.
Hal fingiu admirar o mecanismo de disparo da pistola de cano duplo. Era encravado num bloco de ouro, e os canos octogonais, estriados. Aquilo tinha por objetivo imprimir giro à bala em vôo e estabilizá-la com precisão, qualidades das quais não se tinha notícia em armas leves. Se a empunhasse direito, Hal sabia que poderia atingir com cada tiro um alvo de tamanho de seu dedo polegar, a uma distância de vinte passos.
Com um martelinho de madeira, enfiou a bala embrulhada no lugar e, depois, a caçoleta de escorva. - Mesmo assim, não creio que seja uma boa idéia - disse.
e era nosso avô. Somos a sua família - Tom insistiu.
- É nosso dever estar lá com o senhor.
Escolhera suas palavras com cuidado e ensaiara antes. Família e dever eram dois conceitos que seu pai nunca tomava com leviandade. Agora reagia a elas como Tom havia esperado que fizesse. Deixou de lado a pistola carregada, levantou-se e caminhou até a vigia da popa. Por um instante ficou ali, mãos entrelaçadas atrás das costas, olhando para terra. Por fim, falou:
Talvez tenha razão, Tom. Você já tem idade suficiente e sabe como tomar conta de si numa luta. - Voltou-se para o par.
Tom estava exultante, a expressão radiosa.
- Obrigado, papai.
Dorian continuava tenso, na expectativa, a olhar para os lábios do pai, no aguardo de seu próximo pronunciamento.
- Mas não você, Dorian. É ainda muito jovem. - Hal tentou suavizar o impacto da negativa com um sorriso condescendente. - Não queremos perdê-lo ainda.
Dorian pareceu sucumbir à rejeição. Tinha a expressão ferida e os olhos marejados de lágrimas. Tom lhe deu um safanão e murmurou pelo canto da boca:
- Não chore. Não aja como criança.
Dorian recompôs-se e, com imenso esforço, lutou contra as lágrimas.
- Não sou um bebê. - Empinou-se com um ar corajoso e trágico.
É um belo menino, pensou Hal, ao examinar a face do filho. A pele de Dorian tinha o dourado do sol tropical, e seus cachos, banhados por um raio de luz filtrado pela vigia de popa, reluziam como cobre fundido. Hal levou um choque ao perceber, de novo, a semelhança daquela criança com a mãe, que morrera ao dá-lo à luz. Sentiu a vontade fraquejar.
Não sou um bebê. Dê-me uma chance de provar, por favor, papai.
Muito bem. - Hal não pôde resistir, embora soubesse que era uma imprudência. - Pode vir conosco.
A face de Dorian tornou-se incandescente de alegria e Hal apressou-se a estabelecer as condições de sua concordância.
Mas apenas até a praia. Irá aguardar por nós lá, junto com Alf Wilson e a tripulação do escaler. - Ergueu uma das mãos para obstar aos protestos. - Basta. Sem discussão. Tom, vá até Daniel Grande e diga a ele para municiá-lo com pistola e um sabre.
Desceram para o escaler uma hora antes do pôr-do-sol. Quatro deles já se encontravam lá: Hal, Aboli, Daniel Pescador e Tom. Cada um carregava uma caixa com pavio e pederneira e uma lanterna furta-fogo. Debaixo das pesadas capas escuras, estavam armados com um sabre e um par de pistolas cada. Aboli tinha um largo saco de couro dobrado e amarrado em torno da cintura.
Tão logo se acomodaram nas bancadas, Alf Wilson deu a ordem para soltar amarras. A tripulação empunhou os longos remos e o escaler seguiu em direção à praia. Em cada ponta do barco, proa e popa, estavam montados dois falconetes de cano longo, pequenos e mortais canhões manuais carregados com metralhas. Havia lanças e sabres no fundo, entre os pés dos remadores, ao alcance de suas mãos.
Ninguém falava, e os remos afundavam e gingavam sem ruído, exceto o gotejar da água do mar pelas pás. Alf Wilson havia amortecido as toleteiras. Em meio ao silêncio, Tom e Dorian trocavam sorrisos ansiosos; aquela era uma das sonhadas aventuras sobre as quais tinham conversado em febril excitação tantas vezes, durante as longas horas de vigia na gávea. Começara.
Hannah Maakenberg remexeu-se, reclinada sobre a moita de alcatira acima da praia. Ali se postara a cada hora durante os últimos três dias, mantendo guarda da distante silhueta do Seraph ancorado. Por três vezes, vira escaleres partirem do navio inglês e os examinara ansiosa pelas lentes da longa luneta de bronze que Jan Oliphant lhe emprestara. E, a cada uma delas, ficara desapontada ao ver que Hal Courtney não estava a bordo.
Por fim, começava a sentir o ânimo abalado. Talvez Annetjie estivesse com a razão, talvez ele não voltasse a terra de novo. Seu próprio filho também perdera bem depressa o interesse na caça. Pelos primeiros dois dias, ele ficara ali, a seu lado, a vigiar com ela, mas no fim se desesperançara e fora embora, para se juntar a seus homens nos infernos de bebidas ao longo do cais.
Havia pouco ela avistara o formato de um escaler afastando-se do Seraph, parcamente visível entre as vagas escuras. E não conseguira conter a excitação. Ele vinha na escuridão, como da última vez, para que ninguém o reconhecesse, Hannah exultou. Manteve o escaler no campo redondo das lentes. Observou-o tocar a praia, e seu coração saltou de ansiedade para em seguida disparar. Restava meramente um vislumbre de luz no céu vespertino quando a figura alta saltou do escaler para a areia branca e olhou ao redor, pelas dunas, e esquadrinhou os arbustos com um giro alerta da cabeça. Por um instante, fixou o olhar diretamente para o esconderijo de Hannah e um lampejo de luz feriu-lhe o rosto, aclarando-lhe as feições de forma a não haver engano. Então a luz desmaiou e morreu de maneira que, mesmo através das lentes, o escaler e sua tripulação eram apenas uma mancha escura à beira da praia branca.
- É ele! - murmurou Hannah, ofegante. - Eu sabia que ele viria. Apertou os olhos quando um pequeno grupo destacou-se da sombra escura do escaler.
O grupo seguiu caminho por entre os pedaços de madeira flutuante lançados à praia pela maré alta, e depois tomou a direção do lugar onde ela se encontrava. Hannah fechou a luneta e agachou-se entre as moitas de alcatira.
Os homens se aproximavam sem conversar, até que estavam a uma distância tão próxima que ela julgou que poderia ser descoberta. Então, as botas a rangerem na areia solta, passaram tão perto que ela poderia estender a mão e tocar-lhe as pernas. Ao erguer os olhos, viu a face de Hal Courtney iluminada pelo último raio do poente. Em seguida o grupo prosseguiu para desaparecer pelo terreno fechado de mata da colina.
Hannah esperou vários minutos para sair do esconderijo e depois saltou nos pés e correu pela trilha que levava ao povoado. Seu coração cantava de alegria, e ela exultou em voz alta:
- Agora eu o peguei. Vou ficar rica. Todo aquele dinheiro! Vou ficar rica!
Em fila indiana, Aboli à frente, os homens contornaram o povoado a uma distância segura. Não encontraram vivalma mesmo ao cruzar a estrada que corria ao longo do sopé da montanha, em direção ao rio do Sal e às fazendas dispersas de Constância. Apenas um cão deve tê-los farejado, pois irrompeu num latido histérico quando passaram, mas ninguém lhes barrou o caminho.
A inclinação da montanha acentuava-se debaixo de seus pés e eles tiveram de se inclinar para a frente. A vegetação tornava-se mais densa, mas Aboli parecia por instinto encontrar as estreitas trilhas de caça e os conduzia para cima. A floresta cerrada agora escondia as estrelas do céu e, com a escuridão crescente, Hal e Daniel tropeçavam ocasionalmente em raízes e galhos caídos. Como os olhos de Tom eram jovens, sua visão noturna era ainda aguçada: seguia com passos seguros pelas sombras. Aboli era uma criatura das florestas e se movia silencioso como uma pantera, adiante de todos. De súbito, chegaram a um penhasco de rocha nua, acima da povoação.
- Descansaremos aqui - comandou Hal.
Ao encontrar assento em uma das pedras recobertas de líquen, Tom admirou-se ao ver a altura que haviam escalado. As estrelas pareciam mais próximas, vastas formas espiraladas de pontos prateados a luzirem em sua infinita miríade. Abaixo deles, o bruxulear de velas amarelas nas janelas das edificações era insignificante em contraste com o esplêndido espetáculo no céu.
Tom bebeu do cantil de couro que Aboli lhe estendeu, mas ninguém falou. A noite, entretanto, já não era mais silenciosa. Pequenas criaturas se agitavam na floresta ao redor, e os pássaros noturnos piavam e emitiam guinchos soturnos. Dos sopés da escarpa, vinha o hediondo coro de gargalhadas de um bando de hienas a revirar os montes de lixo e as estrumeiras do povoado holandês. Era um som que fez os pêlos da nuca de Tom se eriçarem, e ele teve de resistir ao impulso de se arrastar para mais perto da silhueta escura e protetora de Aboli.
De repente, uma lufada quente de vento atingiu-o na face, e ele ergueu o olhar para o céu noturno para ver que as estrelas desapareciam rapidamente, enquanto um pesado banco de nuvens se deslocava impetuoso pelo mar.
A Tempestade chegando - resmungou Aboli, e, enquanto falava, outra rajada golpeou-os no penhasco exposto. Em contraste com a primeira, essa era fria como o gelo, e Tom estremeceu. Puxou a capa em torno dos ombros.
Precisamos nos apressar - disse Hal -, antes que a tempestade nos atinja.
Sem uma palavra, todos se levantaram e seguiram pela noite, agora negra com as nuvens tempestuosas, e clamorosa com o vento. As árvores farfalhavam e entrechocavam seus galhos acima de suas cabeças.
Ao caminhar hesitante atrás da figura imponente de Aboli, Tom começou a duvidar de que alguém, mesmo Aboli, pudesse encontrar o caminho em meio àquela noite escura e à floresta, ainda mais negra, para um local secreto onde ele estivera pela última vez fazia vinte anos.
Por fim, quando parecia que metade da noite fora perdida em vão, Aboli parou debaixo de um penhasco quase vertical de rocha fragmentada, cujo pico se perdia contra o céu carregado. Tanto Hal como Daniel Grande ofegavam penosamente da longa escalada. Aboli era o mais velho deles, porém ele e Tom eram os únicos que respiravam com facilidade.
Aboli ajoelhou-se e colocou sua lanterna numa pedra chata à sua frente. Abriu-lhe o postigo e, em seguida, pegou a caixa de pavios. Um reluzir de brilhantes fagulhas esvoaçou da pederneira e do aço, e ele levou a mecha flamejante até o pavio do lampião. Segurando a lanterna no alto, avançou até o sopé do penhasco, lançando um pálido feixe de luz sobre a rocha pintada de líquen.
Uma estreita fissura mostrou-se abruptamente na face do rochedo, e Aboli grunhiu de satisfação. Entrou nela -, era apenas larga o bastante para acomodar seus ombros largos. A uma curta distância lá dentro, a cratera estava bloqueada por cipós entrelaçados e arbustos retorcidos. Aboli arrancou-os com seu sabre e depois caiu de joelhos ao chegar ao fim da fenda.
- Segure a lanterna, Klebe. - Estendeu-a a Tom.
Sob o facho, Tom viu que o fim da abertura estava selado com rochas e fragmentos de pedras. Com as mãos nuas, Aboli soltou uma delas da parede e estendeu-a a Daniel, às suas costas. Trabalharam em silêncio, limpando gradualmente a abertura para um túnel baixo, natural, no penhasco. Quando a passagem estava livre, Aboli voltou-se Para Hal.
- É conveniente que somente você e Klebe entrem no local de descanso de seu pai - disse baixinho. - Daniel e eu esperaremos aqui.
Soltou o saco de couro da cintura e entregou-o a Hal, e, depois, se inclinou para acender os pavios das outras lanternas. Ao terminar, fez um sinal a Daniel, e ambos recuaram até o sopé do penhasco, deixando que Hal e Tom completassem aquele dever sagrado. Ficaram calados por um instante, com o vento tempestuoso a esbofeteá-los e a fazer bater suas capas como asas de abutres. A luz das lanternas lançava sombras sinistras nas paredes rochosas do penhasco.
- Vamos, rapaz.
Hal conduziu Tom para dentro da fenda e, em seguida, agachou-se para entrar engatinhando pela boca negra do túnel. Tom passou-lhe a lanterna e o seguiu. Os sons da tempestade desapareceram gradualmente atrás dos dois, e, de súbito, o túnel abriu-se numa caverna. Hal levantou-se, o teto rochoso a apenas centímetros de sua cabeça.
Tom postou-se ao lado do pai e pestanejou sob a luz amarelada da lanterna. Descobriu-se numa tumba que recendia à poeira da antiguidade, e se viu atingido pela aura de religiosidade que emanava do lugar, que o fez conter a respiração. Suas mãos tremiam.
No fundo da caverna havia uma plataforma natural de pedra. Uma lúgubre figura humana a ocupava, a fitá-lo diretamente com enormes órbitas vazias. Tom encolheu-se instintivamente diante da visão e sufocou o soluço que lhe subiu à garganta.
- Firme, rapaz.
Hal adiantou-se e lhe tomou a mão. Conduziu-o em passos lentos até a figura sentada. A luz bruxuleante da lanterna revelou os detalhes ao chegarem mais perto. A cabeça era uma caveira.
Tom sabia que os holandeses haviam decapitado seu avô, mas Aboli devia ter colocado o crânio sobre os ombros. Fragmentos de pele seca ainda se agarravam ao ossos como a casca morta de um tronco de eucalipto. Compridos cabelos escuros pendiam da parte posterior do crânio, delicadamente arrumados e penteados.
Tom estremeceu de medo, pois os olhos vazios de seu avô pareciam perpassar até o fundo de sua alma. Recuou mais uma vez, mas o pai o segurou pela mão com firmeza e o sacudiu gentilmente.
- Foi um bom homem. Um homem corajoso com um grande coração. Não há razão para que tenha medo dele.
O corpo estava envolto na pele de um animal, um manto de pêlos negros que as larvas haviam transformado em retalhos, dando a ele um aspecto leproso. Hal sabia que o carrasco esquartejara seu pai, decepando-o cruelmente em partes, no cadafalso, com um cutelo de açougueiro. Aboli reunira com ternura aquelas partes e as amarrara com as tiras frescas da pele de um búfalo recém-abatido. No chão, abaixo da plataforma de pedra, estavam os restos de uma pequena fogueira ritual, um círculo de cinzas e negros pedaços de carvão.
Vamos rezar juntos - disse Hal suavemente, e puxou Tom de joelhos, a seu lado, sobre o solo rochoso da caverna.
pai nosso, que estais no céu... - começou Hal, e Tom juntou as mãos diante dos olhos e seguiu a recitação, a voz a ganhar confiança à medida que as palavras familiares rolavam por sua língua. - ...Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no céu.
Enquanto rezava, Tom examinava, por entre os dedos, o arranjo de estranhos objetos que jaziam sobre a lapa, oferendas fúnebres que, percebeu, Aboli devia ter colocado ali anos antes, ao depositar o corpo de seu avô em seu local derradeiro de descanso.
Havia um crucifixo de madeira, incrustado de conchas de haliote e de pérolas de água doce que luziam suavemente sob a luz da lanterna. Havia um modelo rudemente construído de um navio de três mastros, com o nome Lady Edwina escavado em sua verga e, ao lado, um arco de madeira e uma faca. Tom se deu conta de que aqueles eram símbolos das forças que haviam dominado a vida de seu avô. O Deus único verdadeiro, um grande navio e as armas de um guerreiro. Aboli escolhera seus últimos presentes com amor e percepção.
Ao término da prece, ficaram em silêncio por alguns instantes, e então Hal abriu os olhos e ergueu a cabeça. Falou baixinho com a figura esquelética sobre a plataforma acima deles.
- Pai, vim para levá-lo para casa, em High Weald.
Depositou o saco sobre a plataforma.
- Segure-lhe a boca aberta - ordenou a Tom, e, em seguida, subiu na plataforma e ajoelhou-se sobre o corpo de seu pai e ergueu-o nos braços.
Era surpreendentemente leve. A pele ressecada esfarelou-se e pequenos tufos de cabelo caíram. Depois de todo aquele tempo, não havia odor de putrefação, apenas o cheiro de fungos e poeira.
Deslizou o corpo curvado para dentro do saco, pés primeiro, até que apenas o crânio mutilado restava exposto. Parou para alisar as longas mechas de cabelos escuros, salpicados de prata. Ao observar aquele gesto, Tom comoveu-se com o amor e respeito nele contido.
Você o amava - disse.
Hal ergueu os olhos.
- Se o tivesse conhecido, você o amaria também.
- Sei quanto eu o amo, papai - retrucou Tom -, portanto posso imaginar.
Hal pousou um braço em torno dos ombros do filho e abraçou-o com força, embora brevemente.
- Peça a Deus para nunca ter de cumprir um dever tão doloroso para comigo - disse, e, em seguida, puxou o saco sobre a cabeça de Francis Courtney e fechou os laços de couro com firmeza. Levantou-se e saltou da plataforma. - Precisamos ir agora, Tom, antes que a tempestade chegue ao seu auge. - Ergueu o saco com cuidado, colocou-o sobre o ombro e depois retrocedeu até o túnel de entrada da lapa.
Aboli os aguardava do lado de fora da caverna e fez um gesto para aliviar o fardo do ombro de Hal, porém este meneou a cabeça.
- Eu o carregarei, Aboli. Você nos conduzirá na descida da montanha.
A volta foi mais perigosa que a escalada. Na escuridão e ao vento uivante, teria sido fácil perder a trilha e pisar na beirada de um precipício ou tropeçar num dos traiçoeiros degraus das escarpas e quebrar uma perna, mas Aboli conduziu-os inabalavelmente pela noite, até que Tom sentiu que o gradiente tornava-se mais suave, e as rochas e pedregulhos soltos sob seus pés davam lugar a solo firme, e, em seguida, ele pisava a areia da praia.
Um corisco de um vívido azul fendeu as nuvens e, por um instante, tornou a noite tão brilhante quanto o meio-dia. Naquele momento, a enseada da baía resplandeceu adiante, a superfície revolta em confusão pelas vagas que, em borbulhas e espuma, saltavam e rugiam, brancas. Então o negrume fechou-se sobre eles de novo e o trovão ribombou numa avalanche de sons que ensurdeceu seus ouvidos.
- O escaler ainda está lá -, Hal gritou de alívio, acima do vento. A imagem estática e fugidia da embarcação estava impressa em sua vista. - Alerte os homens, Aboli!
- Seraph! - Aboli berrou na noite, e ouviu a resposta abafada pela tempestade.
- Aqui!
Era a voz de Alf Wilson, e eles começaram a descer as dunas em direção a ela. O fardo de Hal, que era tão leve no começo da descida, agora o fazia vergar-se, mas ele se recusou a liberá-lo. Chegaram ao sopé das dunas num grupo compacto. Aboli abriu o postigo de sua lanterna e lançou o débil facho amarelado à frente.
Em guarda! - bradou, num desesperado aviso, ao ver, à luz, estavam rodeados pelas silhuetas escuras de homens ou animais, não poderia ter certeza. - Defendam-se! - gritou, e todos abriram suas capas, e sacaram seus sabres, a formar instintivamente uma roda, costas contra costas, olhar à frente, as pontas de suas armas niveladas num círculo de aço.
Então o raio explodiu de novo nos céus, um relâmpago ofuscante dividiu as nuvens mais baixas iluminou a praia e as águas revoltas. Sob o vibrante clarão, todos viram uma falange de formas ameaçadoras que avançava em carga sobre o grupo. O raio faiscou nas suas lâminas que empunhavam, nos porretes e lanças que brandiam e, por um momento, lhes desvelou as faces. Eram todos hotentotes, nem um rosto holandês dentre eles.
Tom sentiu uma golfada de pavor supersticioso ao ver o homem que avançava em sua direção. Era tão hediondo como um demônio fruto de um pesadelo. Longas madeixas de cabelos negros esvoaçavam ao vento, como serpentes, sobre a face terrível; uma lívida cicatriz corria pelo nariz esparramado e fendia os lábios cor de púrpura, a boca era torcida e deformada, a escorrer saliva, e os olhos luziam ferozmente ao que a criatura investia.
De novo a escuridão cerrou-se, mas Tom tinha visto a espada do homem erguida sobre sua cabeça e antecipou-lhe o percurso, torcendo os ombros para o lado e se abaixando. Ouviu a lâmina assobiar ao passar por seu ouvido e o explosivo grunhido do esforço que seu atacante impusera ao golpe.
Todo o treinamento de Aboli veio à tona. Tom reagiu de imediato em resposta, avançando em direção ao som da respiração do homem, e sentiu sua lâmina afundar em carne viva, uma sensação que jamais vivenciara antes e que o assustou. Sua vítima berrou de dor, e Tom sentiu uma onda de selvagem alegria. Recuou e moveu os pés, rápido como um gato, e avançou cegamente de novo. Uma vez mais sentiu o choque, o ensopado deslizar do aço dentro da carne e depois o baque quando a ponta atingiu o osso. O homem soltou um grito agudo e penetrante e, pela primeira vez em sua vida, Tom vibrou com a selvagem excitação da batalha.
Raios flamejavam pelos céus, e Tom viu sua vítima recuar, a espada caída na areia. Segurava a face deformada. Seu queixo estava aberto até o osso, e o sangue, negro como piche à luz azulada dos relâmpagos, escorria aos borbotões pelo pescoço e sobre o peito.
No mesmo passageiro clarão do raio, Tom viu que tanto seu pai como Aboli haviam acertado seus oponentes; suas vítimas jaziam caídas, uma a se contorcer em convulsões pela areia, a outra, curvada numa bola, a comprimir a ferida com ambas as mãos, a boca escancarada num mudo grito de agonia.
Daniel Grande dava combate, lâmina a lâmina, a uma figura alta e vigorosa, nua até a cintura, o corpo negro e luzidio como a pele de uma enguia. O resto dos atacantes, porém, agora recuava, repelido pelo vigor do pequeno grupo.
A escuridão fechou-se de novo sobre eles como o bater de uma porta, e Tom sentiu os dedos de Aboli em seu antebraço, a voz próxima a seu ouvido:
- Recue para o escaler, Klebe. Mantenha-se junto ao grupo.
Correram às cegas pela areia fofa, entrechocando-se.
- Tom está conosco?
A voz de seu pai era pesada de preocupação por ele.
- Aqui, papai! - gritou.
- Graças a Deus! Danny!
- Aqui! - Daniel Grande devia ter matado seu inimigo, pois sua voz soava próxima e audível.
- Seraph! - Hal bradou. - A mim!
- Seraph!
A voz de Alf dava ciência da ordem, e os raios fulguraram novamente para iluminar a praia. Os quatro estavam ainda a uns cem passos de onde o escaler se encontrava à beira do mar tumultuado. Liderados por Alf, os oito homens que aguardavam com ele correram para juntar-se à luta, brandindo suas lanças, sabres e machados. O bando de hotentotes, porém, voltara a reunir-se e, como cães de caça, eles latiam em seus calcanhares.
Tom olhou por sobre o ombro e viu que o homem que ele ferira havia se recobrado e atacava como cabeça do grupo. Embora sua face fosse uma máscara sanguinolenta, ele retalhava o ar com sua espada e vinha gritando um brado de guerra numa estranha linguagem. Divisara Tom e corria diretamente sobre ele.
Tom tentou estimar quantos eram. Talvez nove ou dez, imaginou, mas a escuridão se fez antes que pudesse ter certeza. Seu pai e Alf Wilson gritavam para manter contato um com o outro e agora os dois grupos estavam próximos. Imperioso, Hal comandou:
- Ao encontro! Linha de combate!
Mesmo na escuridão, todos executaram de imediato a manobra que viam praticado tantas vezes no convés do Seraph. Ombro a ombro, postaram-se para enfrentar o ataque que caiu sobre eles como uma vaga. Ouviram-se o clamor e o retinir de metal contra metal e os gritos e pragas de homens se enfrentando. Então um relâmpago coruscou novamente.
Hannah avançou titubeante pela beira das moitas de alcatira, seguida por quinze homens. A noite fora longa para eles, a fúria da tempestade debilitante, e o tédio da emboscada os dominara. Tinham se metido entre os arbustos para encontrar um local abrigado do vento no qual se amontoar e dormir. Então, os gritos e os sons da batalha os despertaram. Haviam empunhado suas armas e agora avançavam por entre os arbustos.
Os raios desvelaram a refrega, homens igualmente emparelhados, perto da beira da água onde o escaler vazio estava. No mesmo lampejo, Hannah viu Henry Courtney com clareza. Estava na primeira fileira em luta, a face voltada em direção a ela, o sabre erguido no alto, na mão direita, e, logo em seguida, desferido contra a cabeça de um dos hotentotes.
- Hannah esgoelou. - É ele! Dez mil florins pela captura. Kom kerels! Vamos, rapazes! - Sacudiu o forcado com o qual estava armada e avançou a descer pela duna.
Os homens, que haviam parado hesitantes à beira da moita, se viram galvanizados por seu exemplo. Agora corriam atrás dela, uma horda ululante e estridente.
Dorian estava só no escaler. Embolado a dormir no fundo do barco, acordara assustado quando a luta começara, mas agora se agachava na proa, ajoelhado atrás do falconete. Olhos arregalados e ainda sonolentos, ele conseguira vislumbrar, à luz dos raios, Tom e seu pai sob o ataque do inimigo e a nova ameaça que se avizinhava, a descer pelas dunas.
Durante os exercícios práticos de batalha no Seraph, Aboli tinha mostrado a Tom como girar e mirar o falconete em seu eixo basculante e como dispará-lo. Dorian ficara por perto, a observar avidamente, e implorara por uma chance de tentar. Como sempre, fora confrontado com a injuriosa resposta: "Você é muito novo. Quando for mais velho".
Eis que agora surgira a oportunidade que lhe fora negada, e Tom e seu pai precisavam dele. Alcançou a mecha de combustão lenta que queimava no tubo de areia abaixo da'arma. Alf Wilson a acendera e a deixara à mão para o caso de uma tal emergência. Pegou-a com uma das mãos e segurou o longo guidão do falconete com a outra, e girou-o na direção dos gritos e brados do grupo que descia das dunas. Olhou por sobre o cano, mas não conseguiu ver a mira da arma nem vislumbre algum de seu alvo na escuridão.
Então, uma violenta descarga elétrica estourou nos céus diretamente acima e a praia iluminou-se como o dia. A sua frente, Dorian viu o bando chegar, sob a liderança de uma bruxa da mitologia, uma terrível criatura feminina a sacudir um forcado, os longos cabelos grisalhos esvoaçantes e desgrenhados, os peitos brancos dançando e pulando para fora do corpete do vestido, uma face deformada pela idade e pela devassidão, a berrar como louca. Dorian encostou a mecha em chama contra o ouvido do falconete.
Chamas de seis metros irromperam da boca da canhoneta, e uma saraivada de metralha, cada bala do tamanho do olho de um homem, foi cuspida pela praia. O alcance era apenas suficiente para a explosão alcançar sua dispersão ideal. Hannah recebeu o impacto por inteiro: uma dúzia de balas de chumbo chocou-se contra seu peito, e uma atingiu-a no meio da testa, arrancando-lhe o topo do crânio como a casca de um ovo. Ela voou de costas na areia branca com outros seis de seu bando ao lado. O resto cambaleou com o choque e o deslocamento de ar ao derredor. Três daqueles ainda de pé uivaram de terror e correram de volta à proteção dos arbustos. Os demais ficaram aturdidos e davam voltas em confusão, tropeçando nos corpos dos companheiros mortos, alguns com ferimentos sangrentos, incertos acerca do rumo a tomar.
A bucha incandescente do falconete fora lançada sobre a longa fila de madeira flutuante encalhada na orla da maré alta. As chamas se espalharam com rapidez e, assopradas pelo vento, cresceram em brilho e vigor, lançando fagulhas azuis dos cristais de sal que iluminaram a praia com uma luz bruxuleante e tremeluzente.
A luta prosseguia em recuos e avanços. Embora tivessem reduzido a disparidade com lanças e espadas, os homens de Hal ainda eram em número bastante inferior. Hal tinha três homens a atacá-lo, a rodeá-lo como uma alcatéia de hienas a enfrentar um leão de juba negra. Lutava por sua vida e não podia nem mesmo relancear os olhos na direção de seu filho.
Jan Oliphant era todo intenção de vingança pela ferida aberta em seu queixo, e dava combate a Tom, entre rugidos e gritos de raiva, usando apenas a ponta de seu sabre em selvagens cutiladas e golpes por sobre a cabeça do oponente. Tom cedeu terreno diante dele, inferior em altura, alcance e força em comparação ao corpulento hotentote. Por aqueles segundos fatais, Tom estava por conta própria: não poderia contar com nenhuma ajuda de Aboli ou Daniel ou mesmo de seu pai. Sua virilidade teria seu pleno florescimento naquela noite, ou ele morreria naquelas areias encharcadas de sangue. Sentiu medo, mas não se deixou manietar pelo temor. Ao contrário, usou-o para firmar o pulso e o braço da espada. Descobriu alguma coisa dentro de si que, até aquele momento, não sabia que havia lá.
Sentiu-se envolver naturalmente pela graça rítmica do embate que Aboli lhe instilara por todos aqueles anos de treinamento. Agora que o clarão das madeiras em chamas iluminava a praia, percebeu a confiança crescer. O aço transformara-se em extensão de seu braço, ao se dar conta de que o bruto que encarava era um brigão de rua, e não um espadachim, embora o poder de sua lâmina dançante fosse enorme - tão irresistível como um deslizamento de terra. Tom não cometeu o erro de tentar confrontá-lo. Em vez disso, antecipava cada golpe selvagem e fulminante antes que fosse desferido. Não havia nenhum subterfúgio na maneira com que Jan Oliphant assinalava sua intenção com aqueles olhos ferozes e a face contorcida e manchada de sangue, ou em como movia os pés e abria os ombros para desferir o golpe.
Ao que este vinha assobiando para baixo, para o crânio de Tom, ele o recebia e o aparava com sua própria espada, sem tentar barrá-lo no ar apenas o desviando ligeiramente, de maneira que passasse sem perigo a centímetros de sua cabeça. A cada vez que Tom assim agia, a raiva de Jan Oliphant crescia em intensidade até dominá-lo por completo. Foi então que ergueu a espada bem ao alto, acima da cabeça, com ambas as mãos, e correu direto para Tom, berrando como um touro preso no cio. Não tentou proteger-se de algum contra-ataque e seu corpo todo estava vulnerável.
Hal transpassou um de seus antagonistas, ferindo-o na altura do ombro direito, em seu contra-ataque. O homem berrou e rodopiou para trás deixando cair a espada e levando a mão ao ferimento. Os outros dois hotentotes que lutavam de cada lado dele perderam a coragem e recuaram. Hal teve um instante de descanso para relancear os olhos em torno, sob a luz bruxuleante das chamas.
Seu coração enregelou-se no peito ao ver Tom parado no caminho do violento chefe hotentote. Estavam muito distantes de Hal para que ele pudesse intervir antes que Jan Oliphant chegasse em sua carga. Um grito de aviso e desespero brotou-lhe da garganta, mas ele o sufocou de volta. Teria servido apenas para distrair o filho.
Tom estava tão pálido como a areia debaixo de seus pés, porém sua face mostrava-se composta e firme de determinação, os olhos brilhantes e fixos, sem nenhum luzir de medo, enquanto olhava acima da ponta oscilante de sua espada. Hal esperava que ele recuasse ante o ataque da enorme besta que avançava. A postura dos ombros e o equilíbrio do corpo esguio sinalizavam apenas tal intenção. De repente, porém, seu pé esquerdo deslizou para a frente e ele lançou-se em flecha, como uma seta de um arco, direto para a garganta de Jan Oliphant. O homenzarrão não teve tempo para baixar a guarda ou jogar-se de lado para fugir da estocada. A ponta da espada de Tom apanhou-o precisamente na depressão na base do pescoço, uns 2,5 centímetros acima de onde os ossos da clavícula se encontravam. Transpassou fundo, um palmo pela garganta de Jan Oliphant, encontrou a juntura de duas vértebras de sua coluna e as seccionou por completo. O aço mergulhou até que, manchado de rosa do sangue, à luz do fogo, apontou a alguns centímetros da nuca.
A espada erguida caiu dos dedos desenervados de Jan Oliphant, e seus braços se abriram, ao largo, por um instante, formando um negro crucifixo contra as chamas. Então, caiu de costas e desabou na areia com todo o seu peso inerte, sem vida. A lâmina de Tom saltou livre, desembainhou-se da garganta do homem morto pelo próprio peso e o momentum, e o ar dos pulmões de Jan Oliphant foi levado para fora através da traquéia perfurada, num explosivo suspiro decorrente da queda. Irrompeu pela ferida de sua garganta numa massa rosada de saliva espumante.
Decorreu um longo momento, cada homem na praia paralisado a fitar o cadáver grotesco. Então, um dos hotentotes que enfrentavam Hal uivou com desespero, voltou-se e fugiu para as dunas. Num instante, os outros corriam atrás dele em pânico, deixando seus mortos e feridos onde jaziam caídos.
Tom ainda estava de olhos pregados no homem que acabara de matar. Sua face crispou-se e ele começou a tremer de choque e de alívio do medo e da raiva. Hal correu para o filho imediatamente e pousou um braço em torno de seus ombros.
- Bela luta, rapaz - disse e abraçou-o.
- Eu o matei! - murmurou Tom, com incredulidade na voz.
- Antes que ele o matasse - Hal lhe disse. Olhou ao redor para seus homens dispersos pela praia.
- Qual de vocês disparou o falconete? - berrou contra o vento. - Aquilo nos salvou a todos.
- Não fui eu.
- Nem eu.
Todas as cabeças se voltaram para o escaler e encararam a pequena figura na proa.
- Não foi você, foi, Dorian? - Hal perguntou, admirado.
- Sim, papai. - Dorian ergueu o pavio fumegante em sua mão.
- Duas crias do velho leão - disse Aboli, baixinho. - Mas agora devemos ir, antes que a guarnição do castelo venha averiguar esse canhoneio e o fogo. - Gesticulou para as pilhas de madeira flutuante a queimarem.
- Perdemos alguém? - Hal gritou.
- Dick Foster está caído aqui - Alf Wilson bradou de volta, e caiu de joelhos ao lado do corpo. Havia um ferimento medonho no peito do companheiro. Alf levou a mão à artéria carótida na garganta do homem, abaixo da traquéia. - Ele se foi.
- Algum outro? - perguntou Hal.
- Não, apenas um - respondeu Alf.
Hal sentiu uma onda de alívio. Poderia ter sido muito pior; poderia ter perdido um filho ou um amigo querido. - Certo, então. Leve Dick para dentro do escaler. Daremos a ele um sepultamento cristão quando chegarmos ao mar. - Apanhou o saco de couro que continha os restos de seu pai.
O que devo fazer com este lixo? - Daniel Grande chutou um dos hotentotes feridos, e o homem grunhiu. - Deveríamos cortar suas partes.
- Deixe-os. Não perca tempo. - Hal olhou ao redor e viu que metade da sua tripulação tinha cortes superficiais e talhos de espada, mas nenhum se importara em comentar. Aquela era a primeira vez que os vira em luta. Eram homens bons e valentes de verdade, pensou com satisfação. Darão conta de Jangiri ou de qualquer outro inimigo, concluiu.
- De volta ao escaler! - ordenou, e quatro homens ergueram o corpo de Dick Foster, segurando-o com respeito, e o depositaram no fundo do barco.
Hal colocou o saco de couro ao lado e então seguiu para a popa, para tomar seu lugar no leme. Os homens agarraram com firmeza as bordas da embarcação e a deslizaram pela areia tão facilmente como se fosse um barquinho de vime. A proa foi lançada ao alto pela primeira onda e eles saltaram a bordo e empunharam os remos.
- Puxar à frente! - Hal gritou, e a próxima vaga, impulsionada pela tempestade, arrebentou sobre a proa e invadiu o barco, de maneira que ficaram com água pelos joelhos.
- Puxar! - Hal os exortou, e eles investiram para a frente, o barco a subir num ângulo impossível pela corcova quase vertical da próxima onda.
Chegaram à crista e pairaram um instante sobre a própria beira do ponto de emborque e então caíram à frente e atingiram o cavado com um baque.
- Puxar! - Hal rugiu, e eles avançaram pelo claro onde as vagas eram altas, mas não inclinadas o bastante para emborcá-los.
Metade dos homens largou os remos e começou a esvaziar o escaler, enquanto os outros remavam com força em direção ao distante Seraph.
- Dorian! - Hal chamou o menino. - Sente-se aqui comigo. Jogou a aba da capa sobre o filho e, sob sua coberta, abraçou-o contra o peito. - Onde aprendeu a disparar o falconete?
Tom me mostrou - disse Dorian, hesitante. Agi errado?
- Fez bem. - Hal abraçou-o com mais força. - Deus sabe, você não poderia ter feito melhor.
Hal carregou o saco de couro para dentro da cabina de popa. Os dois garotos o seguiram, a água do mar que encharcava suas roupas escorrendo pelo convés. O Seraph jogava e se sacudia em seus cabos de âncora enquanto a tempestade o vergastava inexoravelmente.
Hal depositou o saco e seu precioso conteúdo no assoalho, ao lado do caixão. Os parafusos que prendiam a tampa já tinham sido soltos e foram precisos só alguns poucos giros para livrá-los. Hal removeu a tampa e colocou-a de lado. Com cuidado reverente, pôs o saco de couro dentro do caixão. Teve de virá-lo e ajeitá-lo para que se encaixasse e depois espalhou estopa em torno do cadáver de seu pai para evitar que os ossos frágeis fossem sacudidos e quebrassem durante a longa viagem que eles tinham pela frente. Tom ajudou-o a recolocar a tampa. Pegou a chave de fenda de suas mãos.
- Deixe-me ter a honra, papai.
Ele estendeu ao garoto mais novo uma outra chave de fenda que tirou da caixa de ferramentas e ficou a observar os dois filhos fecharem a tampa do caixão.
- Faremos a seu avô um cerimonial cristão quando o depositarmos no sarcófago de pedra, na cripta que preparei para ele em High Weald, vinte anos atrás - disse-lhes, e imaginou se todos os seus filhos estariam juntos naquele dia. Expulsou a dúvida sombria da mente ao ver que terminavam a tarefa. - Obrigado - falou simplesmente. Vão e vistam roupas secas. Depois verifiquem se, com esse tempo louco, o cozinheiro ainda tem o fogão aceso e pode nos arranjar algo quente para comer e beber.
A porta, ele parou Dorian.
- Não poderemos nunca mais chamá-lo de criança de novo - disse. - Você provou esta noite que é um homem em tudo, a não ser em tamanho. Salvou nossas vidas. - O sorriso de Dorian foi radiante e, mesmo com os cachos ensopados de água do mar grudados em sua face, ele parecia tão belo que o coração de Hal contorceu-se de ternura.
Logo depois, escutou os dois irmãos conversando na minúscula cabina ao lado da sua, que havia ficado vaga com a ausência das filhas de Beatty e, em seguida os passos rápidos pelo corredor, quando foram importunar o cozinheiro.
Hal acendeu duas velas e colocou-as sobre a tampa do caixão de seu pai. Então se ajoelhou no chão em frente a ele e começou a longa vigília. Algumas vezes rezava em voz alta, pela paz da alma de seu pai e pelo perdão dos pecados que pudesse ter cometido em vida. Uma ou duas vezes falou baixinho com ele, recordando incidentes que haviam vivenciado juntos e revivendo a pavorosa agonia da morte de sir Francis. Embora a noite fosse longa, e ele estivesse exausto e com frio, sua vigília terminou apenas quando a luz da aurora, acinzentada pela tempestade, infiltrou-se pelas vigias de popa. Então se levantou e foi para o convés.
Bom dia, sr. Tyler. Chame os dois guardas para colocar o navio a caminho - berrou acima do vento.
O guarda veio tropeçando pelo tombadilho sacudido pelas águas revoltas. Os homens do castelo de proa puseram-se a manejar o cabrestante, e os lingüetes estalavam ao recolher o cabo da âncora. Ao mesmo tempo, os gajeiros escorregavam pelos cordames e guarneciam as vergas.
Hal ordenou que o traquete latino fosse desfraldado por um momento para dar ao navio condição de soltar a farpa da âncora do fundo arenoso, e, em seguida, que a vela fosse colhida de novo quando ficasse pesada. Escutou os lingüetes do cabrestante: tiniam e depois retiniam, silenciosos por um longo momento, e depois rangiam e estalavam, cada vez mais rápido, até que o som se tornou um coro de matraca enquanto a âncora se soltava e o cabo se encolhia pelo escovém.
- Velas de proa - bradou Hal, e assim que os homens acorreram, a tempestade desabou sobre eles sem clemência.
O Seraph estremeceu impaciente e, quando Hal ordenou ao timoneiro que desatracasse, a embarcação "girou em seus calcanhares e saltitou feliz". Os homens nos cordames soltaram um berro de espontânea alegria.
Um momento mais tarde, a voz de Tom clamou do cesto da gávea: Atenção no convés! Um barco! Onde? - Hal berrou de volta. Saindo da praia. Agora são dois... não, três!
Hal correu para a amurada de sotavento e levou a luneta aos olhos. O mar era de um cinza sombrio manchado do branco das cristas das ondas. Nuvens baixas corriam pelo céu e obscureciam o cume da montanha. Ele avistou os três escaleres a lutarem contra o vento e a maré, os remos a empurrá-los pelo mar revolto numa trilha de borrifos, rumo ao Seraph.
- Visitantes, capitão - disse Ned.
Hal resmungou e focou a luneta. Avistou os uniformes holandeses e o faiscar breve das baionetas.
- Não creio que tenham algo a nos dizer que queiramos ouvir, sr Tyler. - Fechou o instrumento com um baque. Era evidente que se tratava de tropas do castelo. A refrega da noite anterior na praia os havia alertado. Voltou-se de costas para a flotilha distante e sorriu ao dar a próxima ordem: - Coloque o navio em curso para passar próximo ao Yeoman of York a sotavento, por favor, sr. Tyler.
À meia amarra de distância do Yeoman of York, o Seraph estacou e lançou um escaler ao mar. O baú de teca foi baixado para dentro dele enquanto a embarcação dançava de lado, e, em seguida, Hal desceu a escada e tomou o leme antes de dar a ordem de avançar até o Yeoman of York ancorado. Anderson estava na amurada e Hal levantou-se na bancada de popa. Gritou:
- Tenho a carga para você.
- Estou pronto para recebê-la - Anderson berrou em resposta, e sua tripulação baixou um moitão da verga principal.
O escaler aproximou-se lentamente e se postou debaixo dele e, num trabalho rápido e hábil, os homens prenderam o baú de teca ao eixo.
- Içar! - Hal gritou, e o caixão de seu pai foi elevado e puxado para o tombadilho do Yeoman of York.
- Fico imensamente penhorado ao senhor! - exclamou Hal, em direção ao tombadilho acima.
- É meu grande prazer, senhor - respondeu Anderson. - Que bons ventos o levem. - Tocou a aba de seu quepe em saudação.
- Até que nos encontremos de novo - disse Hal.
Então, a cabeça de Guy apontou na amurada. Parecia pálido, como se os primeiros sintomas de enjôo já o dominassem. Não obstante, esboçou um sorriso corajoso e acenou com o barrete.
- Adeus, papai, até que nos encontremos em Bombaim.
- Adeus, adeus - respondeu Hal, e sentiu uma aguda pontada de tristeza com aquela separação. Quisera que a nossa sorte nos tratasse a todos mais gentilmente, pensou, mas sorriu para Guy, tentando transmitir uma mensagem de amor e de esperança, até que foi forçado a concentrar toda sua atenção em conduzir o escaler de volta ao Seraph.
Embora a ação pendular de chicote do mastro de proa do Seraph, sob aquele vento e aquele mar, tornasse a subida mais perigosa e aterrorizante Tom e Dorian estavam por fim em segurança no cesto da Gávia. Dali, puderam olhar para baixo, para o convés do Yeoman of York, ao passar tão perto do navio ancorado que conseguiam divisar as expressões nas faces dos passageiros e da tripulação.
" Lá está Guy! - Dorian arrancou seu barrete a fim de acenar para o irmão. - Guy! Ó de bordo aí, Guy!
Guy ergueu a cabeça e os avistou. Mas suas mãos permaneceram entrelaçadas atrás das costas e nenhum sorriso iluminou a severidade de sua fisionomia.
Por que ele não me responde? - perguntou Dorian, ressentido.
- Não lhe fiz nenhuma ofensa.
Não se aborreça, Dorry. Não é a você que ele odeia, é a mim - Tom disse baixinho, e devolveu o olhar rancoroso ao irmão gêmeo.
Atrás de Guy, a família Beatty encontrava-se reunida num grupo. Tinham embarcado com ele dias antes, depois de deixar os alojamentos no povoado, prontos para a viagem para Bombaim no Yeoman of York. Caroline estava uns poucos passos separada do resto da família, e Tom a avistou. Era uma bela imagem com suas saias e anáguas esvoaçantes a namorar o vento, uma das mãos segurando o chapéu, os cachos dançando em suas faces rosadas, os olhos faiscantes quando os focalizou no outro navio.
- Caroline! - Tom berrou. - Aqui em cima! Ó de bordo! - O demônio se apossara dele, e ele a chamou mais para enfurecer o irmão gêmeo do que por qualquer outra razão.
Caroline ergueu o olhar e o enxergou no cesto da gávea. Agitou-se numa ligeira dança de excitação e acenou com a mão livre.
- Tom! - O vento arrastou sua voz para longe, mas os olhos aguçados de Tom puderam ler-lhe os lábios. - Vá com Deus!
Guy voltou-se quando lhe ouviu a voz e, em seguida, atravessou o convés e foi colocar-se ao lado dela. Não a tocou, mas sua postura era possessiva e beligerante ao encarar com raiva o irmão na gávea do outro navio.
O Seraph desfraldou mais velas e adernou nos bordos, a avançar com o vento. As figuras no tombadilho do Yeoman of York encolheram em tamanho e logo sumiram da vista. Do alto do cesto da gávea, os dois garotos olharam para trás, para o outro navio, até que a embarcação era Uma forma distante no horizonte, quase perdida sob a montanha escura e as formações enormes de nuvens hostis e enfezadas.
Agora somos apenas eu e você - disse Dorian com tristeza.
Tom não respondeu. Não conseguiu pensar em nada para dizer.
- Você nunca vai se esquecer do juramento que fez a mim, não é? - insistiu Dorian. - Nunca vai me abandonar?
- Não me esquecerei - Tom afirmou.
- Foi uma jura solene - Dorian o relembrou. - A mais forte de todas.
- Eu sei - disse Tom, e repetiu: - Não me esquecerei. - Esfregou a pequena cicatriz branca na ponta do polegar.
Depois de deixar a baía da Mesa, o Seraph ficou por 23 dias sem vista de terra ou de sol. Seguia debaixo de torrenciais aguaceiros, tão copiosos que parecia que o próprio oceano fora suspenso e agora se derramava sobre o tombadilho. A chuva durou dias e noites sem cessar. Em tais condições, mesmo os planos de navegação de Hal eram superficiais e sem substância, reduzidos inteiramente ao quadro da travessa do leme e ao cálculo de posição, sem uso de observações astronômicas a cada dia.
- Este é normalmente um plácido e ensolarado oceano - Aboli comentou ao olhar para as nuvens baixas e tormentosas acima. - Os demônios do mar o reviraram do avesso.
- Há algum grande distúrbio lá ao leste - concordou Ned Tyler.
- O vento gira como um moinho a mudar de direção sem cessar.
- Já encaramos esses ventos antes - Daniel Grande os relembrou.
- Giram como um pião. Ouvi dizer que não são raros nestas latitudes, nesta estação do ano. Mas não estamos no centro...
Calou-se quando uma vaga gigantesca, mais alta do que as outras, marchou sobre o navio com imponente dignidade. Era tão grande a ponto de apequenar o Seraph, e sua crista chegava até acima da verga do mastro de proa. O cavado escancarado entre ela e a vaga que a precedera tinha mais de uma légua de largura.
Hal deixou sua posição na amurada de sotavento e correu depressa para o leme.
Traga o navio até dois pontos - ordenou baixinho. - De encontro! - disse.
Quando a onda arrebentou, chafurdaram pelo cavado por um longo momento. Os homens em volta da roda do leme contiveram a respiração e então a soltaram juntos ao perceber que o Seraph empinava a proa.
- O sr. Pescador tem razão - disse Hal, com um gesto de concordância. - Essas tormentas se dispersam desde seu centro por centenas de milhas marítimas. Vão varrer o oceano inteiro de ponta a ponta, raças a Deus, porém, não estamos no centro dessa uma. A força do vento poderia provavelmente arrancar o mastro principal, embora não tenhamos içado um pedaço de pano nele.
Daniel Grande comentou:
- Eu vi, nas ilhas Mascarenhas, um desses ventos do demônio arrancar as mais altas palmeiras pelas raízes e carregá-las por uma milha até o mar, a voarem como se fossem uma pipa de papel.
- Rezemos por um sinal de sol - disse Ned Tyler, olhando para o céu sombrio -, para que possamos por fim fixar a nossa latitude.
- Estabeleci uma grande distância da terra. - Hal olhou pela luneta para oeste. - Devemos estar pelo menos a duzentas milhas ao largo da costa africana.
- Mas Madagascar é uma das maiores ilhas do mundo, quase dez vezes do tamanho da Irlanda, e está diretamente no nosso caminho - Ned ponderou, baixinho, para que o timoneiro não o escutasse. Nada haveria a ganhar em alarmar a tripulação ao se discutir os perigos da navegação ao alcance de seus ouvidos.
Naquele instante, ecoou um brado de alerta do mastro principal:
- Tombadilho! Destroços de naufrágio! À deriva, a bombordo!
O grupo de oficiais olhou para diante e Hal gritou-, pela trombeta de alerta:
- Mastro mestre! O que enxergam?
- Parece a mastreação de um navio ou o... - O gajeiro interrompeu-se e, em seguida, continuou com excitação: - Não! É um pequeno escaler, mas quase emborcado. Há homens nele.
Hal correu até a proa e saltou para o gurupés.
- Por Deus, é verdade - disse. - Náufragos, pela aparência. Vivos também. Posso ver um deles se mexendo. Preparem-se para lançar um escaler e recolhê-los.
Levar o Seraph até o pequeno escaler foi difícil, um trabalho perigoso naquelas condições A mar e vento, mas por fim Hal pôde baixar um e mandar Daniel Grande e uma equipe para o resgate. Havia apenas dois homens na embarcação desmantelada, a qual Daniel Grande abandonou, pois não valia a pena o trabalho de salvá-la. Trouxeram os dois sobreviventes para cima numa guindola, já que estavam fracos demais para subirem a escada.
O dr. Reynolds postou-se na amurada para recebê-los e os examinou assim que foram deitados no convés. Ambos estavam apenas semi-conscientes. O sal lhes destroçara a pele das faces. Seus olhos estavam inchados a ponto de se fechar, e suas línguas, azuis e intumescidas pela sede, enchiam suas bocas e avançavam por entre os lábios.
A primeira coisa a fazer é dar-lhes água - o médico resmungou.
Então farei uma sangria em ambos.
Com as línguas tão inchadas, eles não conseguiam engolir. Reynolds, então introduziu uma seringa de bronze até suas gargantas e instilou água pouco a pouco. Em seguida esfregou gordura de porco numa camada espessa pelos lábios, faces e braços abrasados pelo sal. O efeito no mais jovem dos dois foi miraculoso: dentro de duas horas já havia se recobrado o suficiente para ser capaz de falar com lucidez. Contudo, o mais velho continuava inconsciente e parecia definhar com rapidez. A pedido de Reynolds, Hal desceu até o canto da coberta de artilharia, onde os dois náufragos estavam deitados em catres de palha. Ajoelhou-se ao lado deles e viu o médico sangrar o paciente mais jovem.
- Deveria tirar outro quartilho - disse a Hal ao terminar -, mas este aqui está se recompondo bem, e eu sempre fui um médico conservador. Um quartilho basta, por enquanto. - Fechou o corte com uma pequena porção de piche e enfaixou-o com um pano limpo. - O mais velho não está reagindo tão bem. Terei de tirar dois quartilhos dele. - Começou a trabalhar na figura inerte no outro catre.
Hal observou que, na verdade, o jovem parecia mais animado depois do tratamento, e debruçou-se sobre ele para perguntar:
- Fala inglês?
- Sim, capitão. Falo - murmurou o marujo. O sotaque galês era inconfundível.
- Qual é o seu nome, rapaz, e qual o seu navio?
- Taffy Evans, peço seu perdão, capitão. Do navio Nilo, da Companhia, Deus tenha misericórdia dele.
Lenta e gentilmente, Hal extraiu toda a história do rapaz. Como precaução contra a pirataria, o Nilo viajava em comboio com dois outros navios, na rota de volta de Bombaim para a Inglaterra, com uma carga de tecidos e especiarias, quando foram colhidos em cheio por aquela terrível tempestade ciclópica a cem léguas ao norte das ilhas Mascarenhas. Desmantelado pelos ventos ferozes e ondas gigantescas, o Nilo havia se separado dos outros navios do comboio e começara a fazer água. No quinto dia, durante o segundo quarto de vigília, fora atingido por uma vaga monstruosa. Pesada devido à água em seus porões, a embarcação emborcara e afundara. Fora tão rápido o seu fim que apenas uma meia dúzia de homens conseguira escapar num escaler, mas não tinham nem água nem comida consigo, e a maioria pereceu em breve. Depois de doze dias, apenas os dois restavam com vida.
Enquanto ele falava, o dr. Reynolds sangrara dois quartilhos do outro paciente. Tinha acabado de mandar seu assistente esvaziar a bacia cheia de sangue pela amurada quando exclamou, penalizado:
- Com os diabos, o pobre infeliz morreu. Tinha esperança de salvá-lo. - Voltou a atenção de novo para Taffy Evans. - Acho que pelo menos conseguiremos salvar a vida deste aqui.
- Quando estiver plenamente recuperado, haverá um lugar para você com salário integral e com uma participação do dinheiro do prêmio. - Hal disse e levantou-se, curvado sob o convés baixo. - Assinará o registro de guarda?
Taffy levou a mão à testa e esboçou um débil sorriso.
- Com muita alegria, capitão. Eu lhe devo a vida.
- Bem-vindo a bordo, marujo. - Hal subiu correndo a escada para o convés e se pôs a andar de um lado para outro do tombadilho, mesmo com as ondas pesadas e o balançar do navio. Encontrar aqueles náufragos fora um feliz incidente, como era a tempestade que agora perdia gradualmente sua força. Aquela era a desculpa que estava procurando.
Quando tinha todos os detalhes de seu plano elaborados na mente, chamou seus oficiais até a cabina. Reuniram-se em torno da carta náutica aberta sobre a mesa.
- Todos sabem que, por duzentos anos, o centro de todo intercâmbio e comércio na Costa da Febre está aqui - disse, e apontou para o pequeno aglomerado de ilhas marcado na carta náutica. - Zanzibar. Logicamente, é onde nossa busca por Jangiri deve começar.
Todos concordaram. Cada um deles já navegara por aquele oceano antes e sabia bem que as três pequenas ilhas do grupo de Zanzibar situavam-se em ponto estratégico com relação à índia, ao mar Vermelho e ao golfo Pérsico e apenas a umas poucas léguas do continente africano. As ilhas estavam exatamente na trilha das monções, que se invertiam com a mudança das estações. A monção sudeste carregava a navegação da índia para a África e, quando a estação mudava, a monção noroeste facilitava a viagem de retorno. Além disso, Zanzibar tinha um porto seguro na ilha principal, Unguja, e mesmo na pior estação das chuvas, era relativamente livre das terríveis febres da malária que tornavam o continente africano uma armadilha mortal. Desde os antigos tempos da ascensão do islã, sempre fora o entreposto para a África e o oceano das índias, e o mercado onde os produtos da África (escravos, ouro, marfim, goma-arábica e os preciosos olíbanos) eram comercializados.
Alf Wilson falou com uma certa timidez:
Enquanto eu estava no cativeiro, ouvi os piratas falarem várias vezes em Zanzibar. Tive a impressão de que a visitavam regularmente para trocar parte de seus butins, para vender os cativos no mercado de escravos e para reequipar e renovar a provisão da sua frota.
Pareceu a você que Jangiri usava Zanzibar como sua base principal? - Hal perguntou a ele.
Não, capitão, não me pareceu. Creio que ele não se colocaria de bom grado sob o poder do califa de Omã. Acredito que Jangiri tem outro esconderijo secreto, mas que usa Zanzibar como seu porto mercantil.
Era minha intenção, desde que a nossa busca começou, aportar em Zanzibar. Contudo, o que me preocupava era explicar que negócios um navio inglês de combate estaria fazendo naquelas águas, tão longe da rota mercantil regular entre a índia e Boa Esperança. - Hal olhou ao redor pelo círculo de fisionomias atentas e viu que tanto Daniel Grande como Ned Tyler concordavam. - Na verdade, se seguirmos para Zanzibar, vai correr notícia pela costa, dentro de uma semana, que um esquadrão de caçadores de pirata chegou, e Jangiri ficará assustado. Nunca o traremos para a batalha, a menos que tenhamos boas e inocentes razões para estar naquelas águas.
- A tempestade nos deu essa razão - Hal lhes disse -, e os náufragos que encontramos nos deram a desculpa que faltava.
Todos o encararam, curiosos.
- Que história irá contar ao cônsul em Zanzibar? - perguntou Ned Tyler.
- Eu lhe direi que éramos parte do comboio de Bombaim que incluía o infeliz Nilo. Minha história será que estamos carregados de carga valiosa. Vou imaginar os detalhes de um tesouro tão fabuloso que deixará Jangiri babando nas barbas ao ouvi-la. - Todos caíram na gargalhada com a idéia. - Entramos no coração da grande tempestade e fomos desbaratados por ela, da mesma forma que o Nilo. - Hal olhou através da mesa para Ned Tyler. - Já escondemos a maior parte do nosso armamento, mas agora quero que arranque algumas das vergas e mastreação para dar a aparência de danos ao cordame e ao costado, de maneira que possa convencer um observador em terra da verdade da nossa história. Pode fazer isso, sr. Tyler?
- Claro que posso, capitão - Ned respondeu com alegria.
Tais danos nos darão a desculpa para nos demorarmos no atracadouro de Zanzibar, enquanto a notícia da nossa infeliz condição e levada por todo e qualquer espião e espalhada acima e abaixo da costa. - Hal detalhou o seu plano. - Na hora em que zarparmos do porto novamente, cada corsário e bucaneiro desde a costa até Jiddah será atraído por nós como moscas para um pote de mel.
A despeito das ondas turbulentas, o trabalho de transformação do Seraph começou de imediato. Ned parecia inspirado pela tarefa que Hal lhe confiara, e seus carpinteiros usaram a pintura de cores misturadas para imitar remendos e sombras de rombos no casco. Tinha um velho conjunto de velas da viagem do Atlântico no porão e o trouxe para o tombadilho e, em seguida, deliberadamente, o sujou e rasgou. Selecionou determinadas partes do cordame para remoção, inclusive algumas das vergas superiores e mastreação, de maneira que a navegabilidade do navio não fosse afetada em demasia. Tais partes seriam enviadas para baixo tão logo houvesse terra à vista. O Seraph apresentaria uma aparência verdadeiramente triste e desgrenhada quando entrasse no porto de Zanzibar.
Três dias mais tarde, os céus começaram a clarear e, embora as ondas ainda fossem altas e revoltas, o sol tropical brilhou sobre eles mais uma vez. O efeito nos espíritos da tripulação foi gratificante para Hal, ao observá-la cumprir suas tarefas com novo ânimo e vigor. Ao meio-dia, ele conseguiu fazer sua primeira tomada da posição do sol depois de todas aquelas semanas de viagem. Descobriu que a posição do navio estava no 12° paralelo de latitude sul, 250 milhas mais ao norte do que seu cálculo sem instrumentos havia sugerido.
- A depender do nosso meridiano, devemos alcançar a ilha de Madagascar dentro da semana - comentou ao marcar a nova posição no diário de bordo e ordenar uma alteração de curso para oeste, em direção à ilha e ao continente africano.
Como sempre, as aves deram o alerta da proximidade de terra. Eram de espécies que nem Tom nem Dorian jamais tinham visto. Viram maravilhosas andorinhas-do-mar, com brancas plumagens tão nevadas como uma manhã de dezembro em High Weald, e aves dos trópicos de longas caudas pairando sobre os cardumes de pequenos peixes que escureciam a superfície com sua abundância. Mais perto da ilha, passaram por fragatas de aparência agressiva, negras como o demônio, e de papos vermelhos, planando nas altas correntes da monção. Preparavam emboscada para os bandos de andorinhas-do-mar assim que voltassem de suas incursões de pesca. Tom e Dorian viram-nas mergulhar sobre sua caça com as asas dobradas como a lâmina de um canivete entreaberto, e forçar suas vítimas a regurgitar os frutos árduos da labuta e, em seguida, pousar na água para comer avidamente o peixe parcialmente digerido e expelido pelo bando atacado.
O mar mudara de cor, assumindo um matiz amarelado. Quando os garotos perguntaram o porquê, Aboli explicou:
- As chuvas da grande tempestade transbordaram os rios no continente, e eles descarregaram suas águas lamacentas no mar. Estamos muito próximos da terra agora.
Na manhã seguinte, quando a aurora irrompeu no céu do oriente por trás deles, e tingiu o horizonte da cor de opalas em chamas e pétalas de rosa, do mastro principal eles viram uma curva linha azul, adiante da proa do navio.
- Terra! - Os gritos alegres correram pela embarcação.
Hal conhecia bem aquelas ilhas e, assim que o dia se vestiu de sol, ele subiu pelos cordames e conseguiu identificar as montanhas azuis da ponta norte de Madagascar quando se elevaram cada vez mais altas na linha do mar.
Durante todo aquele dia, os dois turnos de marujos suaram no pesado trabalho de arriar os vergalhões dos mastros de topo para fazer Parecer que o navio fora estropiado pela tempestade. Sem seus panos de topo, o Seraph tornou-se pouco cooperativo e recalcitrante e, quando manobrado para navegar à bolina cerrada, recusou-se a avançar mais que oito pontos para o vento. Contudo, os alísios estavam por detrás e Hal conseguiu livrar as velas e posicioná-las num curso direto na direção da terra. Saiu-se tão bem que completaram aquele trabalho antes que o navio chegasse mais perto e encontrasse qualquer um dos pequenos caíques de pesca que relatariam sua chegada naquelas águas e descreveriam a condição do Seraph.
Ao meio-dia seguinte, Cap d'Ambre, o cabo da Fome, na ponta norte de Madagascar, estava a dez léguas de distância de bombordo. Com isso fixo em sua posição, Hal modulou um trajeto diretamente pelo canal de Moçambique para Zanzibar. Aquele mar interior era enfeitado com adoráveis ilhotas. O Seraph abriu caminho entre elas, algumas vezes tão perto que podiam ver os nativos negros, seminus, a vagar pelas praias de areia muito branca. Os marujos subiram nos cordames e acenaram, tomados de luxúria, e especulavam qual seria o sexo das minúsculas figuras.
Aquelas águas eram salpicadas das velas de pequenas embarcações mercantes e caíques de pesca. Quando o Seraph passava, suas tripulações berravam perguntas em árabe e em outros idiomas ininteligíveis. Para delírio dos homens do Seraph, havia mulheres em alguns dos caíques.
- Por Deus, posso ver daqui os bicos daqueles seios. Marrons como um par de bolinhos de Páscoa saídos do forno.
- Então vou lamber a cobertura de açúcar, Deus me ajude, eu vou.
- Diga que vai se casar comigo, ei, você, belezinha pagã, e eu saltarei da amurada agora mesmo - um dos homens no mastro principal gritou.
- Elas não entendem a palavra "casar". Diga "gingar". Vão compreender muito bem! - seu companheiro sugeriu. O tinido abafado de risadas femininas vindas do caíque chegou para confirmar a sabedoria daquele conselho.
Com sua luneta, Hal pôde observar os danos às palmeiras e à vegetação pelas ilhas por que passavam, enquanto os escombros e destroços flutuantes que boiavam na superfície do oceano confirmavam a passagem da tempestade. Sua desculpa para estar naquelas águas seria reforçada quando chegassem a Zanzibar.
- Se não nos defrontarmos com Jangiri primeiro - Ned Tyler ponderou secamente. - Já causamos um tal rebuliço nestas águas que a notícia da nossa chegada deve estar correndo à nossa frente.
Hal tinha consciência do perigo de Jangiri montar a armadilha prematuramente, pois estavam agora em suas águas natais. Redobrou a vigilância. Os gajeiros foram avisados do perigo, e a tripulação, mantida em estado de alerta. Por causa do trabalho na coberta dos canhões, pôde exercitar a equipe de artilharia, mas a manteve ocupada na prática de esgrima e mosquetaria. Tais precauções mostraram-se supérfluas, no entanto, pois não viram grandes navios e, ao final de dez dias, avistaram o continente africano.
Desde a partida de Boa Esperança, aquele era o primeiro sinal da África para Tom e Dorian, e sempre que podiam escapar de suas tarefas na aula de mestre Walsh, das lições de árabe com Alf Wilson e de seus outros deveres, os garotos escalavam uma mastreação e ali se sentavam, por horas, e conversavam sobre a terra misteriosa, as maravilhas e incríveis aventuras que lhes prometia. O Seraph apontava para rumo norte ao longo da costa, algumas vezes bem perto dos promontórios e recifes de coral do continente, e os garotos ansiavam por relances de animais esquisitos e selvagens tribos negras, mas a África parecia vasta, enigmática e deserta.
Finalmente, Unguja surgiu à frente. Havia duas outras ilhas menores no grupamento: Pemba e Latham. Quando, porém, os marinheiros falavam de Zanzibar, normalmente se referiam àquela ilha. Era coroada por um forte compacto, construído de blocos faiscantes de coral branco que reluziam como um iceberg à luz do sol. Seus baluartes abundavam de pesados canhões. Hal mudou a direção para o antigo porto.
Uma coleção de embarcações arranjadas em sentido longitudinal estava ancorada em selvagem desordem, congestionando a enseada. Alguns dos caíques oceânicos eram quase tão grandes como o Seraph. Eram os mercadores da índia, de Mascate e do mar Vermelho. Não havia, entretanto, alguma maneira de afirmar se se tratava de corsários. Provavelmente todos fossem, dada a oportunidade. Hal sorriu consigo mesmo e depois dirigiu toda a atenção em conduzir o Seraph em segurança para descansar. Arriou momentaneamente suas bandeiras para o forte em cortesia ao representante do sultão, e lançou âncora no limite do alcance aleatório das baterias. Aprendera havia muito a não confiar nem mesmo na mais calorosa e franca recepção de boas-vindas de qualquer potentado africano.
Um formigueiro de pequenos escaleres aproximou-se para saudá-os assim que ancoraram, a oferecer mercadorias e provisão para qualquer necessidade ou vício, desde cocos verdes a pacotes de folhas de ang e flores narcóticas, de serviços carnais de rapazinhos e meninas de pele parda escravizados, a espinhos de porco-espinho cheios de ouro em pó.
- Certifique-se de que ninguém dessa ralé seja admitido a bordo - Hal avisou Daniel Grande. - E mantenha um olho atento em nossos adoráveis camaradas para que não tentem se esgueirar para terra em busca de uma garrafa e de um pouco de diversão. Vou visitar o cônsul inglês, embora não espere que seja o mesmo que vi vinte anos atrás quando visitei pela última vez este local. Qual era o nome do sujeito?
- Grey, se me recordo, capitão.
- Isso, Daniel. William Grey, e provavelmente, safado como era deve continuar o mesmo.
Hal levou consigo a terra um pequeno grupo, inclusive Aboli e cinco marujos armados. O escaler os deixou no cais de pedra, abaixo das grossas muralhas brancas do forte. Aboli abriu caminho pela confusão de mercadores e vagabundos, e seguiram pelo amontoamento de pequenas alamedas e becos que mal tinham espaço para três homens caminharem lado a lado.
O fedor dos esgotos a céu aberto que corriam para o porto era forte o bastante para lhes fechar as gargantas e deixar Hal com náuseas. O calor onde nenhuma brisa perpassava era sufocante, e o suor já lhes ensopava as costas das camisas antes que tivessem dado uma centena de passos. Algumas das construções eram de três andares e nenhuma das paredes era em prumo - inclinavam-se e avançavam para fora, quase à altura da cabeça. Os balcões superiores tinham painéis com intricados trabalhos de treliça, e criaturas femininas sem face em negros véus os espiavam pelas telas dos haréns.
Aquela era a estação da monção, que trazia os traficantes de escravos desde todas as praias orientais mais distantes. Aboli conduziu-os através do principal mercado de escravos. Era um grande bazar, aberto para o céu, mas sombreado por um bosquete de figueira-de-bengala, com estranhos troncos serpentinos e folhagem espessa e escura.
As fileiras de escravos à venda acocoravam-se à sombra das galhadas. Hal sabia que usavam correntes desde o dia de sua captura nas profundezas do interior africano, durante as longas jornadas dolorosas rumo à costa e nos porões dos navios negreiros que os haviam trazido pelo canal. Alguns dos homens tinham sido marcados a ferro na testa, as cicatrizes ainda rosadas e recém-curadas. Aquelas marcas denotavam que haviam sido castrados nos barracões das prisões provisórias, nas praias do continente. Eram destinados ao mercado da China: o imperador decretara que nenhum escravo negro poderia ser importado se fosse capaz de contaminar com bastardos a pura linhagem de sangue de seu povo. O preço das pobres criaturas castradas era quase duplicado com as significativas perdas resultantes da cruel cirurgia e cauterização.
Os compradores dos navios no porto inspecionavam as ofertas e barganhavam com os donos, homens em vestes amplas até os tornozelos e alfalemas. Hal abriu passagem com os ombros e entrou no labirinto de ruelas até o fundo do bazar.
Embora duas décadas houvessem transcorrido desde sua última visita, Aboli conduziu-os inarredavelmente até a pesada porta de mogno africano que se abria para a rua barulhenta. Era guarnecida de tachões de ferro e recoberta de elaborados padrões islâmicos esculpidos e textos do Alcorão, nos quais nenhuma figura de homem ou animal - o que poderia ser considerado idolatria - estava representada. Um escravo, em longa túnica negra e turbante, atendeu ao sino desafinado.
- Salaam aliekum. - Tocou o peito e os lábios e inclinou-se em saudação. - Meu mestre sabe da sua chegada e aguarda ansioso para lhe dar as boas-vindas. - Olhou para o pequeno grupo que acompanhava Hal. - Há refresco para seus homens. - Bateu palmas para outro escravo para que os levasse dali, e Hal seguiu-o pelo pátio onde uma fonte jorrava e canteiros de hibiscos suavizavam o fedor das ruas.
Por um instante, não reconheceu a monstruosa figura que jazia sobre uma pilha de almofadas à sombra, ao lado da fonte. Hesitou e examinou a criatura até que, por detrás das feições empapuçadas, conseguiu distinguir os vestígios do homem que ele conhecera um dia.
- Salaam aliekum - William Grey, o cônsul de Sua Majestade junto ao Sultanato de Zanzibar, o cumprimentou.
Hal quase respondeu no mesmo idioma, mas se refreou. Não queria que Grey soubesse que ele era fluente em árabe. Em vez disso, disse:
- Sinto não saber uma palavra dessa língua pagã, senhor. Pensei que o senhor fosse inglês. Não fala um idioma cristão?
Desculpe-me, senhor. É uma questão de hábito. - Grey esboçou um sorriso obsequioso. - Sou William Grey, o representante consular de Sua Majestade junto ao Califado de Omã. Perdoe-me por não me levantar para cumprimentá-lo. - Grey fez um gesto depreciativo que abarcou seu corpo arruinado e as pernas elefantinas, cobertas de úlceras supuradas. Hal reconheceu a devastação provocada pela hidropisia.
Por favor, sente-se, senhor. Espero sua visita desde que recebi informes da sua chegada ao porto.
Nota de Rodapé: Alfalema:
espécie de turbante ou gorro.
Fim da Nota.
- Bom dia ao senhor. Sou o capitão John Black, a seu serviço.
Hal recordou-se de que Grey era um apóstata cristão que abraçara o islamismo. Suspeitava de que a mudança de fé guardasse mais relação com considerações financeiras e econômicas do que com convicção religiosa.
Obviamente, Grey nem reconhecera nem se lembrava de Hal, e seria uma aposta segura não permitir que tal acontecesse. Hal tinha jogado suas fichas nisso ao dar a Grey um nome falso; era essencial que os piratas não se tornassem cientes de sua verdadeira identidade. Vinte anos antes, Hal fora alcunhado com o nome árabe de El Tazar, o Barracuda, por seus feitos em combate quando espalhara o terror pelas frotas do islã durante a guerra da Etiópia, no Corno da África. Se quisesse atrair Jangiri para atacá-lo, seus inimigos não deveriam saber de qualquer traço da verdadeira identidade do homem contra quem teriam de se opor.
Hal sentou-se sobre as almofadas que estavam à sua frente. Uma escrava trouxe uma bandeja na qual havia duas minúsculas xícaras de prata com café, e uma segunda mulher aproximou-se carregando um alto pote de prata com seu próprio braseiro. Eram ambas jovens, esguias e de cinturas flexíveis. Grey devia ter pago por elas pelo menos duzentas rupias cada. Hal recordou-se de que Grey fizera uma imensa fortuna com o tráfico de escravos e venda de licenças e com as comissões recebidas do sultão. Em seu último encontro, ele tentara interessar Hal em ambas as negociatas. Hal imaginava que aquele não era o limite de suas nefastas atividades e não tinha ilusões quanto à integridade ou à moral daquele homem. Que tivesse conexão com Jangiri e seus sequazes, não estava além das fronteiras da probabilidade.
Uma das moças ajoelhou-se diante de Grey e encheu as xícaras com a amarga bebida escura, viscosa como mel. Preguiçosamente, Grey acariciou-lhe o braço como o faria a um gato de estimação, com a mão na qual os anéis de ouro e pedras preciosas afundavam na carne macia de seus brancos dedos intumescidos.
- Fez uma boa viagem, capitão?
- Uma viagem não sem incidentes, senhor - respondeu Hal. Grey já devia saber de cada detalhe da condição do Seraph, e estava meramente em busca de confirmação. - Depois de zarparmos de Bombaim, em comboio com dois outros navios da Honorável Companhia das Índias Orientais, fomos tomados de assalto por um terrível vendaval ao largo da costa de Madagascar. Uma das outras embarcações soçobrou com perda total, e nós escapamos apenas com um grande dano ao nosso casco e cordame. Esta é a principal razão por que atracamos neste porto, o que não era minha intenção original.
- Sinto muito em saber de seu infortúnio - Grey meneou a cabeça em sinal de simpatia -, mas estou agradecido de que tenha nos agraciado com a sua presença e a de seu belo navio. Rezo apenas para que eu possa ser útil ao senhor e consiga providenciar quaisquer que sejam as suas necessidades.
Hal lhe fez um gesto de consideração e pensou: sem dúvida a preços exagerados e por uma boa comissão. Admirou-se mais uma vez com as mudanças que a idade e a doença haviam provocado em Grey. Ele era jovem e vigoroso quando da última vez em que se encontraram, mas, agora, o topo da cabeça era calvo, e sua barba grisalha, quase branca. O olhar era irresoluto e doentio e o cheiro da morte pairava sobre ele.
- Obrigado, senhor. Fico grato por seus bons ofícios, particularmente desde que tenho sob responsabilidade uma carga de peculiar valor e importância política para Sua Majestade, o rei Guilherme.
Grey espichou o imenso corpo e uma fagulha de interesse luziu em seus olhos aguados.
- Como sou o representante direto de Sua Majestade nestas paragens - murmurou -, poderia me ser permitido conhecer a natureza da sua carga?
Hal respirou fundo diante da sugestão e então baixou o olhar para estudar o peixe ornamental que nadava nas águas da fonte. Esfregou as têmporas com ar pensativo e pareceu ponderar a sabedoria de aceder àquele pedido. Por fim, suspirou.
- Como representante de Sua Majestade - disse -, o senhor deve ser informado. - Hesitou de novo, e então pareceu chegar a uma conclusão. Sua voz assumiu um tom conspiratório. - Sou responsável pelo transporte do presente que Aurangzeb, o imperador mongol da índia, mandou a Sua Majestade para celebrar sua coroação.
Grey ergueu seu tronco sobre um cotovelo e fungou. Depois, lentamente, a avidez assomou a seus olhos. Tentou mascarar a cobiça, porém a idéia de um tributo real, o presente de um soberano a outro, o encheu de um respeito quase religioso.
A dinastia mongol fora fundada por Babur, que era, por sua vez, o descendente direto de Timur e Gêngis Khan. Seu pai, Xá Jahan, construíra o fabuloso Taj Mahal como mausoléu para sua esposa favorita. O império mongol era o mais poderoso e mais rico a emergir do Oriente. Qual poderia ser o valor do presente de um tal fabuloso imperador?
Hal abaixou mais ainda a voz para murmurar:
- Fui informado pelo governador de Bombaim, a quem o presente foi entregue, que o mesmo é composto de um jogo de esmeraldas, vinte pedras perfeitas em fulgor e cada uma do tamanho de uma romã verde.
Grey arquejou baixinho e, em seguida, respirou fundo.
Hal continuou:
- O governador Aungier me confidenciou que o valor dessas pedras é de cinco lakhs de rupias.
Grey tentou sentar-se, mas o esforço foi muito grande para ele. Caiu de costas sobre as almofadas e, mudo, cravou os olhos em Hal. Um lakh correspondia a 100 mil rupias. Metade de um milhão de rupias valia cerca de 100 mil libras. Era uma fortuna tão grande que dificilmente se poderia imaginar.
- Na verdade, capitão Black, a um carregamento tão vital deve ser dada toda prioridade. - Grey procurou se recompor. - Pode ter certeza de que farei tudo que estiver ao meu alcance para ajudá-lo com os reparos em seu navio e para propiciar sua partida o mais rápido possível.
- Obrigado, senhor.
- Quanto tempo estima que tais reparos irão ocupá-lo? - Grey perguntou, num tom ansioso. - Quando espera poder prosseguir sua viagem, capitão?
- Com sua ajuda, devo estar pronto para zarpar dentro de um mês.
Grey ficou calado por um momento, evidentemente a fazer rápidos cálculos. Então, pareceu aliviado. A cada uma daquelas pequeninas constatações, Hal se tornava mais convencido de que Grey estava em conluio com os corsários.
O cônsul lhe endereçou um sorriso pastoso, oleaginoso.
- O dano deve ser maior do que pareceu a um exame superficial - disse, o que confirmou o que Hal suspeitava: ele fora ao terraço do telhado olhar o porto para esquadrinhar o Seraph com sua luneta.
- Claro, tentarei zarpar antes disso, mas estamos fazendo água terrivelmente, e acredito que pode haver danos no casco submerso. Ficaremos aqui por duas ou três semanas, pelo menos.
- Ótimo - declarou Grey. - Quero dizer, estou certo de que seu navio estará pronto para se fazer ao mar, em todos os respeitos, a essa época.
Hal sorriu satisfeito e pensou: e, a menos que eu esteja muito enganado, seu sócio nos negócios, Jangiri, também estará pronto na ocasião para nos saudar e nos proporcionar uma vibrante recepção de boas-vindas, tão logo entremos no canal de Moçambique outra vez.
Grey gesticulou para as escravas, para que enchessem de novo as xicarazinhas com café.
- Além das provisões do navio, posso lhe oferecer outros itens para seu lucro pessoal - mercadorias que valerão três ou quatro vezes os preços de compra assim que chegar à Inglaterra. Estaria interessado, capitão?
- A despeito dos decretos da Companhia John contra as transações particulares, creio que todo homem tem direito aos frutos de seu próprio labor e ingenuidade - respondeu Hal.
Grey concordou com entusiasmo.
- É esse inteiramente o meu ponto de vista. Tenho uns doze escravos em meu próprio barracão que são de tal qualidade que raramente se vê no bazar. - Inclinou-se para a frente e piscou para Hal de um jeito tão sugestivo e obsceno que Hal teve de esforçar-se para não demonstrar seu desgosto diante do gesto e expressão. - De fato, posso eu mesmo partilhar de um ou ambos de meus tesouros especiais. - Afagou a cabeça da moça ajoelhada diante de si e então sorriu amavelmente para ela e disse, em árabe: - Sorria para o porco infiel! - A garota olhou de esguelha para Hal e esboçou um tímido sorriso de dentes muito brancos. - Ela não é uma beleza? - perguntou Grey. - E vale bem umas 150 libras em Boa Esperança. Posso concordar que a tenha, como um favor, o senhor compreende, por setenta. - Acariciou a jovem novamente. - Mostre seus seios ao infiel - ordenou, em árabe. A moça hesitou. - Mostre, ou terá a pele arrancada de suas costas com chicote. - Ela dificilmente era mais que uma criança, não além dos dezesseis anos, mas levantou a barra da blusa e exibiu uma parte voluptuosa dos seios morenos, coroada por um mamilo semelhante a uma pérola negra, ao mesmo tempo que pendia a cabeça com ar modesto. - Suas partes mais íntimas são de igual perfeição, caso queira examiná-las - Grey assegurou a Hal.
- É bonita. Mas, que pena, não tenho acomodações para ela a bordo - disse Hal, com firmeza, e a garota cobriu o colo.
Grey não se conteve diante da recusa.
- Tenho uma certa quantidade de olíbano da melhor qualidade - prosseguiu. - Asseguro ao senhor que a demanda por esse incenso é bastante grande. Terá um belo lucro.
Hal sabia que, se quisesse permanecer em termos civilizados com Grey, seria de boa política avalizar pelo menos uma das ofertas daquele homem. Barganhou por dez cestas de olíbano, num peso total de 75 quilos.
Os escravos de Grey trouxeram as cestas e as colocaram em fila no centro do pátio para Hal examinar o conteúdo. Sabia que aquela goma aromática vinha de árvores das montanhas africanas. Eram feitas profundas incisões nos troncos e a seiva que escorria das feridas endurecia assim que exposta ao ar. Depois de quatro meses, a goma formava grandes glóbulos semelhantes a gemas preciosas, que poderiam então ser arrancados. Aquele primeiro látex produzia uma goma de aspecto esverdeado e semi-opaco, que indicava sua superior qualidade. Hal inspecionou a mercadoria com relação a essas características e confirmou sua aceitação.
Grey pareceu impressionado com o seu conhecimento.
- Posso ver que é um cavalheiro de bom gosto e discernimento, capitão. Um par de presas de elefante, puro marfim, chegou ao mercado de Zanzibar recentemente, tal como nunca vi em todos os meus anos na ilha. Eu hesitaria em oferecê-la a qualquer um, a não ser a um cavalheiro da sua qualidade, senhor. - Bateu palmas, e cinco fortes escravos, que deviam estar aguardando por suas ordens, apresentaram-se, vergados sob o peso de uma das grandes presas.
- Três metros de comprimento! - Grey disse a Hal, com orgulho. - Cem quilos de peso!
Era uma peça inacreditável de marfim recurvo. A ponta mais grossa, serrada da cabeça do animal, era de um branco cremoso, enquanto o resto tinha manchas castanho-amareladas da seiva das grandes árvores despedaçadas e retalhadas nas suas cascas. Quando os escravos depositaram, ao lado da primeira, a outra presa do par, era quase impossível distingui-las, tão perfeitas em combinação.
Hal ficara fascinado pelos monstruosos paquidermes desde que pusera os olhos, pela primeira vez, numa manada, nas inóspitas praias africanas. Era então um rapaz da idade de Tom. Correu a mão por uma das presas. E pareceu que tocava a própria alma daquele imenso e selvagem continente. Sabia que tinha de ter aquele par, a qualquer preço. Grey reconheceu o anseio em seus olhos e iniciou uma dura barganha. Hal pagou mais por elas do que o teria feito por uma dúzia de escravas.
Mais tarde, quando as presas foram levadas ao convés do Seraph para jazer lá como âmbar antigo à luz do sol, Hal percebeu que ganhara na barganha. Com sua idade, nas profundezas de um inverno inglês, quando o calafrio final crepitasse em seus ossos, precisaria apenas esticar a mão para tocar sua África e ser transportado de volta a uma idade e local onde seria jovem outra vez, com toda a magia e o fogo daquela terra ainda a lhe vibrar no peito.
Levantou-se, quase reverente, olhando para o magnífico par. Seus filhos vieram postar-se a seu lado. Até Dorian ficou mudo, num silêncio respeitoso, e o mesmo feitiço os prendia a todos. Quando, por fim, encontrou a própria voz, era quase inaudível.
- São enormes - murmurou. - Um dia, eu gostaria de caçar uma criatura tal como essa deve ter sido.
Hal fez executar uma lenta exibição de reparo do Seraph. Queria que a notícia da sua presença em Zanzibar tivesse uma oportunidade de ser disseminada pelas ilhas e descer ao longo da Costa da Febre até chegar aos ouvidos de Jangiri, onde quer que este pudesse estar. Então, haveria tempo para o corsário reunir suas forças e tocaiá-los em emboscada no canal. Hal tinha certeza de que mesmo Jangiri jamais tentaria enfrentar o Seraph enquanto o navio estivesse ancorado no porto. Ele era, afinal, hóspede do sultão e estava sob sua proteção.
Hal compreendia bem os ensinamentos do Profeta, e sabia que no mundo islâmico havia um dever para com o hóspede, um fardo de honra, que o sultão não permitiria a qualquer um de seus súditos violar. Assim que o Seraph se encontrasse em mar aberto, contudo, seria caça livre mais uma vez, e o sultão provavelmente aceitasse sua cota do butim sem a menor indecisão.
Outra consideração que Hal precisava levar em conta era o progresso do Yeoman of York sob as ordens do capitão Edward Anderson, e quando aguardar sua chegada ao ponto de encontro. Hal sentia-se mais que desejoso de encarar Jangiri numa ação isolada em mar aberto, mas tinha certeza de que assim que farejasse a base em terra do corsário, a encontraria pesadamente fortificada e guarnecida: sabia que precisaria de cada homem e navio disponível para atacá-lo e capturá-lo.
Se Edward Anderson partira de Boa Esperança uma semana depois do Seraph, então eraprovável que tivesse escapado do pior da grande tempestade, e os ventos fortes resultantes apressariam sua viagem até Bombaim. Estavam agora na mudança das estações. Em breve, a monção sopraria e ajudaria Anderson em sua viagem de retorno para a costa africana. Independentemente disso, restariam muitas semanas antes que Hal pudesse esperá-lo no ponto de encontro. Não havia, na verdade, razão de muita pressa.
De um jeito preguiçoso, a tripulação do Seraph começou a longa tarefa de içar as vergas superiores e a mastreação e de fixá-las de novo no mastro principal, enquanto os carpinteiros faziam de conta que reparavam o casco e o pintavam de novo.
Uma semana após ter visitado o cônsul britânico, Hal enviou Aboli terra para fazer algumas compras no bazar. Naquela tarde, chamou Tom e Dorian à sua cabina. Ambos o vinham importunando para obter ermissão de descer em terra sempre que um escaler era deslocado ao cais O ânimo impetuoso, por tanto tempo contido, poderia mais tarde incitá-los a alguma brincadeira perigosa, e seria de todo conveniente que desembarcassem do navio para se livrar daquela energia reprimida.
Aboli e eu vamos a terra esta tarde para ouvir os boatos de rua e mercados da cidade - disse. - Preciso de um par de escravos para me acompanhar. - Falou em árabe e sorriu quando Tom entrou no espírito da ocasião e respondeu na mesma língua.
- Reverendo pai, seria para mim uma grande honra se nos desse permissão para acompanhá-lo.
Hal corrigiu-lhe os erros, mas se sentiu gratificado pelo progresso que o rapaz fizera. Claro, não passaria ainda por um nativo da Arábia, mas seria capaz de se fazer compreender em qualquer companhia. Voltou-se para o filho mais novo.
- O que tem o meu filho mais jovem a dizer sobre o assunto?
Dorian fez um gesto de respeitosa obediência.
- Amado pai, por tal gentileza, minha gratidão jorraria como água doce de uma fonte do deserto.
- Gerei um verdadeiro poeta! - Hal caiu na risada. O árabe de Dorian era muito superior ao de seu irmão mais velho. Seu vocabulário era impressionante e exatamente do tipo que um árabe verdadeiro usaria em circunstâncias semelhantes. - Aboli comprou roupas para os dois. Aprontem-se para vir comigo depois que jantarem.
Hal vestiu a longa túnica até os tornozelos e as sandálias que Aboli lhe comprara. Seu cinto largo era de filigranas de ouro, com uma adaga curva na bainha acima de seu estômago. O cabo do punhal era de chifre de rinoceronte, polido como uma lustrosa ágata amarela. Seu colete era bordado com fios de ouro e prata, e seu turbante, negro. Com seu espesso bigode preto, nariz curvo e a pele tingida com óleo de teca, ele parecia um próspero capitão de caíque, talvez um mercador de escravos ou um corsário do mar Vermelho. Tomou a precaução de enfiar o Par de pistolas de cano duplo no cinto de ouro, debaixo da aba de seu colete.
A pele dos dois rapazes estava tão queimada de sol que não precisou de corante, e os alfalemas cobriam-lhes os cabelos. Os olhos de Dorian eram de um verde tão impressionante que ressaltavam contra a pele de um dourado acobreado, porém muitas das tribos dos patan, do norte da índia, tinham pele morena e olhos claros.
Assim que a noite desceu, tomaram o escaler e, em vez de desembarcar no cais de pedra do porto, Hal contornou o quebra-mar até uma praia tranqüila a uma milha dali. Deixou o barco a cargo de Daniel Grande e seguiram a trilha batida para a cidade.
A cidade não era protegida por muralhas e as ruas estreitas não tinham iluminação, exceto por um lampião ocasional pendurado numa janela alta, e eles não encontraram dificuldade em entrar sem ser notados. Ao chegarem ao bazar principal, viram que a maioria das tendas e pequenas lojas ainda estava aberta para o comércio. Hal escolheu a loja de um vendedor de tapetes que lhe chamara a atenção quando de sua última visita ao cônsul Grey. Alguns dos tapetes eram de lindo padrão e textura. O proprietário, cujo nome era Salim bin-Talf, saudou-os efusivamente, sentado num tapete de seda brilhante, e lhes ofereceu café doce e encorpado, perfumado de cardamomo. Aboli e os dois garotos sentaram-se nas sombras e, seguindo as instruções de Hal, permaneceram em respeitoso silêncio por todo o tempo.
- Então, quais são as novidades, efêndi1? - Bin-Talf fez a pergunta ritual a Hal.
- As novidades são boas - Hal lhe disse. Teria dado a resposta costumeira mesmo se tivesse sido roubado de todas as suas posses no mundo, se todas as suas esposas tivessem sido raptadas e se seu filho mais velho tivesse morrido da picada de uma cobra. - O que me diz das suas novas?
- Minhas novas também são boas.
Tomaram um gole de café e, enquanto conversavam, três ou quatro das pessoas da família e amigos de Bin-Talf, atraídas pela presença de um estranho em seu meio, vieram juntar-se ao círculo. Lentamente, e com o devido respeito às maneiras e ao protocolo, as perguntas foram feitas, e o verdadeiro objetivo dos negócios, discutido.
- Sua fala não é do norte, efêndi? - Tinham percebido o sotaque.
- Sou de Morbi, no Gujerate, no Império do Grão-Mogol. Meu navio está ancorado no porto. - Hal examinara alguns dos caíques marítimos ancorados perto do Seraph para poder fazer uma descrição que satisfizesse seus ouvintes. - Vim comprar escravos e trocar mercadorias nos bazares de Zanzibar e Lamu.
Nota de Rodapé: Efêndi: mestre, senhor.
Fim da Nota.
- E como está sua terra?
As tribos dos maratas e os siques estão em revolta contra o imperador, mas com a ajuda de Deus, ele os há de derrotar.
Pela graça de Deus!
Nesta estação de navegação, seu filho mais velho, Asaf Khan, fará uma peregrinação a Meca, com uma frota de cem navios.
- Praza a Deus!
- Há apenas um Deus.
Tudo aquilo eram notícias que Hal colhera em Boa Esperança, mas sua autenticidade lhe confirmava a identidade para Bin-Talf e seu grupo. Tornaram-se mais amistosos e relaxados, a conversa fluiu livremente. Hal barganhou elegantemente por um magnífico tapete de seda da Pérsia e, quando pagou com mohurs de ouro, moedas do valor de quinze rupias, a acolhida calorosa dos vendedores tornou-se irrestrita.
- Viu o navio inglês no porto? - um primo de Bin-Talf perguntou. - Aquele com o casco negro ancorado na ponta do quebra-mar.
- Meu próprio navio está ancorado perto do inglês. Parece ter sofrido danos, pois a tripulação trabalha nos mastros.
- Dizem que isso aconteceu durante a grande tempestade do mês passado.
- Também me defrontei com a mesma tempestade, mas, pela graça de Deus, sobrevivemos à sua fúria.
- Graças a Deus!
- Dizem que o navio inglês está em viagem de volta para o seu país, desde Bombaim, vindo do reino do Grão-Mogol. - Bin-Talf relanceou os olhos ao redor para certificar-se de que não havia espiões para escutá-lo por acaso. - Carrega um tesouro riquíssimo para um rei dos francos... Mandado pelo Mongol.
- Também ouvi falar desse tesouro. - Custou um esforço para Hal reprimir o sorriso. - Comentava-se muito sobre isso quando deixei Allahabad. - Baixou a entonação da voz. - Dizem que é um tesouro em diamantes no valor de vinte lakhs.
- Não! - sussurrou o primo, excitado. - Escutei que era de esmeraldas e valia cinqüenta lakhs. Dizem que o Grão-Mogol esvaziou seu tesouro.
Em verdade, deve ser um dos maiores tesouros que o mundo já viu Hal murmurou, de um jeito admirado. - E agora jaz aqui, entre nós. Gostaria de pousar meus olhos em cima de uma tal riqueza.
Ficaram todos em silêncio, considerando as possibilidades que as Palavras de Hal suscitavam. Os olhos lhes luziam de cobiça ao pensarem naquilo.
Riram então, e um outro disse:
- Al-Auf poria as mãos também.
- Por Deus, é verdade!
- Verdade! Verdade! - Riram descontraidamente.
- Quem é esse O Malvado? - Hal perguntou, num tom de inocência, poi sabia que esse era o significado de al-Auf.
- É um mercador do mar. Não ouviu falar dele? - Bin-Talf admirou-se. - Pensei que todo marinheiro tremesse diante desse nome.
- Sou um ignorante de uma terra distante - Hal retrucou.
- Musallim bin-Jangiri, o tormento dos infiéis e a Espada do Islã. Este é al-Auf, o Malvado.
Hal sentiu o pulso acelerar-se ao ouvir aquele nome, porém manteve a expressão neutra e coçou o queixo, pensativo.
- Al-Auf é então um corsário? - perguntou.
- Ele é pai e mãe de todos os corsários. - Bin-Talf sorriu.
- Parece alguém que deve ser evitado. Mas onde um homem encontraria al-Auf, se fosse estúpido o bastante para procurá-lo?
Bin-Talf riu de maneira disfarçada e puxou uma longa baforada de seu narguilé. A água borbulhava na tigela e a fumaça almiscarada do bhang fluiu por seus lábios.
- Tem razão, efêndi. Apenas um louco gostaria de procurar por al-Auf. Mas, se puder compreender a trilha do tubarão-tigre pelo oceano, então saberá onde procurar por seu navio. Se souber onde a bruma do mar nasce, então poderá discernir as sombras de suas velas negras.
- Soa como um djinn, um espírito do mar, e não um homem de carne e osso - disse Hal.
- É um homem, na verdade. Pois eu o vi com os meus próprios olhos - vangloriou-se o primo.
- Onde o viu? Como é ele?
- Eu o vi em Lamu. Estava no porto, em seu navio. Eu o vi no convés. Tem a postura orgulhosa de um general e o olhar atrevido de um herói da Antiguidade, um homem poderoso e terrível de se ver.
- Como era seu navio? - Hal sabia que qualquer descrição de Jangiri seria colorida brilhantemente de cego terror e dificilmente guardaria muita semelhança com o homem. Tinha melhores perspectivas de uma descrição precisa de seu navio.
Nota de Rodapé: Espécie de cachimbo constituído de um fornilho, um tubo longo e um pequeno recipiente contendo água perfumada, pelo qual passa a fumaça antes de chegar à boca.
Fim da Nota.
- Estranho de dizer, não é um caíque, como se poderia esperar. É um navio com muitas velas - disse o primo. Porém negras.
Um navio como o navio inglês no porto? - perguntou Hal.
Sim! Sim! Como aquele, porém maior e com muito mais canhões.
Aquele certamente devia ser o Minotauro capturado, pensou Hal.
Quantos canhões? - inquiriu.
- Muitos! Talvez uns cem - o primo sugeriu, com ligeira hesitação. Evidentemente, não era nenhum marinheiro e a pergunta não tinha relevância para ele. - Se o navio inglês encontrar al-Auf, então sua tripulação infiel deve erguer os olhos para Alá por misericórdia, pois nada receberão de al-Auf.
Logo depois disso, Hal apresentou suas despedidas e saiu com Aboli e os rapazes.
Quando remavam de volta ao Seraph, sentou-se sozinho na popa e escutou Tom e Dorian conversando, excitados, com Daniel Grande e Alf, relatando em detalhes tudo que haviam visto e ouvido no porto. Hal estava satisfeito com os resultados da visita. Não falara a ninguém, a não ser ao cônsul Grey, do suposto tesouro mongol e, contudo, era conversa corrente no bazar. Por essa hora, as notícias deviam ter chegado aos ouvidos do corsário.
O Seraph demorou-se outras três semanas ancorado no porto, e então Hal fez uma visita final ao cônsul. Depois de trocados todos os floreados cumprimentos e saudações, Hal lhe disse:
- Finalmente completei os reparos no meu navio e estou de novo pronto para o mar.
- Quando planeja partir? - Grey empurrou seu pesado tronco para uma posição sentada e encarou Hal com interesse.
- Dentro de três dias, com a maré matutina.
- Embora eu tenha ficado honrado com a sua presença em minha casa, compreendo-lhe a pressa em recomeçar sua viagem interrompida. Especialmente em vista do fato de que transporta uma carga tão preciosa. Posso apenas lhe desejar bons ventos e a proteção de Deus.
Não mostrou o menor interesse em retardar a partida de Hal; ao contrário, pareceu ansioso de vê-lo a caminho. Para Hal, aquilo significava apenas uma coisa: Jangiri (al-Auf) fora avisado e devia estar agora mesmo postado em emboscada no canal de Moçambique.
Os últimos três dias no porto de Zanzibar foram gastos nos preparativos finais para a batalha. Daniel Grande supervisionou as cargas de artilharia, substituindo-as por novas, e os sacos de seda prontos no paiol foram refeitos e recolocados nas estações de tiro. Aboli se certificou de que todos os mosquetes e pistolas tivessem novas pederneiras e estivessem totalmente carregados. As pedras de amolar zuniam e fagulhas voavam enquanto as lâminas dos sabres eram afiadas até um fio de navalha, e as pontas das lanças amoladas à mão. Toda essa atividade bélica, porém, transcorria sob cautela, oculta de qualquer espião no cais ou nos torreões do forte.
Hal mantinha em observação todo movimento incomum de outros navegantes na ancoragem. Desde que falara pela última vez com Grey, parecia que houvera um aumento no número de pequenos caíques a entrar e sair do porto. Muitos passavam perto do Seraph e as tripulações debruçavam-se na amurada para espiar o grande navio. Aquilo podia ser devido apenas à curiosidade natural, mas Hal tinha certeza a notícia de sua iminente partida havia sido levada a ouvidos interessados lá longe, na imensidão azul.
Durante a última noite no porto de Zanzibar, desabou uma pesada tempestade e, enquanto os trovões ribombavam em formidáveis estrondos pelo céu e os raios transformavam a noite em dia, a chuva jorrava em cascata sobre os conveses do Seraph. Os homens da coberta de artilharia tinham de berrar para se fazer ouvir.
Depois da meia-noite, as nuvens clarearam e miríades de estrelas faiscaram e luziram pelo céu. Tudo mudou para uma calma tão completa que Hal, insone em seu catre, ouviu um vigia árabe em um dos caíques ancorados nas proximidades cantar baixinho:
Deus é Grande.
O homem é como espuma na esteira da monção.
As Plêiades, em coroa, enfeitam-Lhe a fronte, E a Estrela da Manhã é facho de Sua visão.
As rotas do oceano somente Deus todas sabe.
Somente Deus perdura pela eternidade.
Assim que a primeira promessa da alvorada iluminou o céu oriental e apagou as estrelas, Hal levantou-se e foi para o convés. A brisa da terra vinha em mornos bafos da ilha, e o Seraph espreguiçou-se nos cabos de ancoragem, ansioso para seguir caminho. Hal fez um gesto de cabeça para Ned Tyler, que chamou ambos os vigias para colocarem o navio em rota de cruzeiro.
A tripulação subiu nos cordames e as velas foram desenroladas, batidas e sacudidas até que a brisa as inflou a toda corda, e o Seraph adernou e então girou a proa em direção à entrada do porto. Hal voltou para a amurada de popa e viu que quatro caíques tinham recolhido âncora, içado suas velas latinas e agora os seguiam.
Podem ter escolhido o começo da maré para se pôr a caminho - Ned murmurou ao olharem para trás.
Tudo é possível, sr. Tyler, até que o cônsul Grey seja um homem honesto - concordou Hal.
- Acho que podem ter esperado pela lua, capitão - disse Ned, com seriedade.
Hal ergueu os olhos para as altas "muralhas do forte, reluzindo à luz matutina com uma luminosidade perolada, e soltou uma exclamação de espanto. Havia fagulhas de fogo no topo da torre oriental. Ao observá-la com redobrado interesse, uma fina coluna de fumaça branca, subiu ao ar e depois foi arrebatada pela monção.
- Acha que estão trocando avisos lá de cima? - Hal perguntou baixinho.
- Aquela fumaça é fácil de ser vista do continente, através do canal - foi a opinião de Ned.
- Ou a vinte léguas ao mar.
O canal era tão estreito que, quando o sol despontou seu aro reluzente acima do horizonte, todos viram o continente africano delineado em nítidos detalhes diante deles, suas montanhas distantes abrasadas com o fulgor do astro-rei.
Hal olhou para trás, por sobre a popa. A pequena flotilha de caíques do porto ainda seguia em seu rastro. Ele não içara ainda todo o velame e havia três mastaréus encurtados no mastro principal, de maneira que o Seraph avançava preguiçosamente à frente. Duas das embarcações maiores que os seguiam eram mais rápidas que as demais. Começavam a emparelhar com o Seraph, enquanto as outras ficavam gradualmente para trás.
- Tombadilho! Há mais fumaça de terra.
A voz de Tom desceu do mastro de gávea e Hal seguiu para a amurada de sotavento. Uma fina coluna subia da costa verde de um dos promontórios, que guardava uma praia curva de areia de coral branco. A fumaça era de uma brancura prateada inusitada e subia diretamente para cima até que, de repente, o vento a apanhou e espalhou num longo traço pelos cumes das colinas.
Velejaram ao sul durante todo aquele dia. Mantendo passo com seu avanço, mais fogueiras foram acesas na praia, sempre que o Seraph estava em linha com algum promontório ou penhasco, e, de cada uma, emanava a mesma fumaça prateada que devia ser visível por muitas milhas ao redor.
A frota extraviada de pequenos caíques, dispersa na saída do canal, continuava a caçá-los, os dois barcos maiores mantendo posição a duas ou três milhas atrás da esteira do Seraph. Mas, quando o sol mergulhou em direção ao horizonte e pintou de vermelho e dourado os cúmulos do poente, os dois caíques içaram os mastaréus em suas velas e, quase imperceptivelmente, encurtaram a distância, até que, mesmo a débil luminosidade, eram vistos com clareza do convés principal do Seraph. Por meio das lentes, Hal divisou o grupo de homens amontoados dentro deles.
Acho que podemos esperar que algo aconteça muito em breve disse a Ned Tyler. - Quero que a tripulação receba o jantar enquanto ainda há luz do dia. Os homens podem ser requisitados para lutar numa ação noturna.
Ned pareceu preocupado: mesmo um poderoso navio de combate estava em desvantagem numa ação noturna contra um inimigo inferior porém numeroso. Sob a coberta da escuridão, uma frota de pequenos caíques poderia ser capaz de tomar de assalto um navio maior e colocar uma porção de homens armados nos tombadilhos antes que os armeiros pudessem agir para expulsá-los.
Naquele momento, ouviu-se um brado de alerta dos gajeiros.
Tombadilho! Há um pequeno escaler à deriva adiante! Parece estar em dificuldades!
Hal correu para a amurada e ergueu sua luneta. Pela proa, pôde divisar o casco de um pesqueiro que afundava lentamente, com apenas o fundo a boiar, exposto. Havia um amontoado de cabeças humanas em torno. Quando o Seraph se aproximou, eles acenaram e seus gritos vinham trazidos pelo vento.
- Pelo amor de Deus!
- Misericórdia! Deus os mandou para nos salvar!
Ao chegarem perto o suficiente para vislumbrar as feições dos homens que se debatiam em torno dos destroços do naufrágio, Hal deu a ordem para parar. O Seraph rodopiou, proa para o vento, e deslizou para mais perto do caíque emborcado.
- Mande um escaler para recolhê-los! - ordenou Hal, e enquanto o escaler era lançado e empurrado naquela direção, contou as cabeças.
Vinte e dois. Uma tripulação grande para um barco tão pequeno, sr. Tyler.
- Na verdade, capitão, uma tripulação bastante incomum.
Hal seguiu até a amurada onde Daniel Grande e Alf Wilson esperavam com uma equipe de homens armados.
Está pronto para lhes dar uma adequada recepção, sr. Pescador?
Tão calorosa como nunca tiveram deste lado do paraíso - respondeu Daniel Grande, com um ar de malícia.
O escaler estava agora abarrotado com os sobreviventes ensopados do caíque. Começou a voltar para o Seraph, pesado na linha da água.
De súbito, Alf Wilson assobiou baixinho e suas feições morenas e bonitas se iluminaram de um prazer perverso.
- Aquele sujeito grande na proa, de barba. - Apontou para um dos sobreviventes. - Eu o conheço. Por Deus, será um prazer cumprimentá-lo de novo. Era o líder do bando de "corta-goelas" que abordou o Minotauro exatamente em circunstâncias como esta.
- Afaste-se, por favor, sr. Wilson - Hal o advertiu baixinho caso contrário, ele irá reconhecê-lo também. Vamos deixar que esteja a bordo antes que o veja.
O escaler enganchou-se nas correntes do Seraph e o primeiro dos homens resgatados subiu a escada e pulou a amurada. Caiu de joelhos Comprimiu a testa no convés e a água do mar escorreu de seu longo manto encharcado para formar uma poça a seu redor.
- As bênçãos de Alá e de todos os seus santos estejam sobre este navio. Sua bondade e misericórdia serão escritas no livro sagrado...
- Basta com isso, camarada. - Daniel Grande o levantou nos pés com um gesto brusco, e seus homens empurraram o espantado árabe para a amurada do fundo e o rodearam.
O próximo homem a subir a escada e pular para bordo foi o barbudo. Abriu os braços, e suas vestes grudaram-se à sua desengonçada figura.
- Este é um dia muito auspicioso. Meus filhos e meus netos... - começou, em modulações sonoras.
- Salaam aliekum, Rachid - Alf Wilson o cumprimentou. - Meus olhos estavam famintos faz muitos longos dias por enxergar sua face animalesca.
Rachid o encarou com alarme. Alf avançou um passo e lhe sorriu. O árabe o reconheceu e olhou ao redor com louca aflição, procurando uma via de escape, e, então, saltou para o costado do navio. Alf Wilson o agarrou enquanto ele estava no ar e o puxou para o convés. Colocou o joelho no meio de suas costas e apontou a adaga contra a pele macia abaixo de seu ouvido.
- Eu lhe imploro, amado do Profeta, dê-me uma razão para lhe abrir a garganta. - Espetou o homem, que soltou um berro e se contorceu sobre o convés.
Alf correu a mão livre sobre o corpo de Rachid e depois rebuscou sob a veste encharcada. Tirou de lá uma adaga curva. Testou a ponta contra a orelha de Rachid e cortou um lóbulo com facilidade. Um jato de sangue escorreu pela barba do homem.
- Ah! Bastante afiada - disse Alf com alegria. - Esta deve ser a mesma lâmina com a qual você cortou o nariz do meu companheiro Ben Brown e matou Johnnie Waite.
Rachid soluçou, chorou e implorou por misericórdia.
- Deus é minha testemunha, sou inocente. Está me confundindo um outro. Sou um pobre e honesto pescador.
Os demais foram empurrados para o convés e formaram um grupo aturdido, rodeado por um anel de punhais perfilados. Alf ergueu o choroso e assustado Rachid do chão e levou-o aos empurrões pelo tombadilho, para se juntar a seus companheiros.
Se qualquer um de vocês tentar escapar ou sacar uma das armas esconderam sob as roupas, meus homens têm ordens para lhes cortar as cabeças fora - Hal os avisou. Então se voltou para Ned Tyler: - Por favor, coloque o navio a caminho outra vez.
Quando o Seraph estava ao vento e navegando canal abaixo mais uma vez, Hal exclamou para os prisioneiros:
Tirem as roupas, todos! Tudo, até ficarem nus em pêlo!
Ouviram-se gritos de protesto.
- Efêndi, não é certo. Nossa própria nudez pode nos envergonhar aos olhos de Deus.
Hal sacou uma das pistolas do cinto e puxou os percussores. Colocou o cano contra a cabeça de Rachid.
- Todas as roupas! Surpreendam-nos com o diâmetro e o comprimento de seus pênis circuncidados com que vão deliciar as virgens nos jardins do paraíso, quando eu os mandar para lá.
Com relutância, Rachid tirou a túnica molhada e ficou de pé, de ceroulas.
- Tudo! - Hal insistiu, e um após outro, os árabes tiraram suas roupas.
Puseram-nas ao chão com exagerado cuidado para que o que quer que estivesse escondido em suas dobras não tinisse ou caísse pesadamente contra a madeira do convés. Por fim, ficaram parados, num miserável grupo apertado, tentando cobrir suas partes íntimas com as mãos em concha, aos gemidos e protestos de inocência. Suas roupas descartadas estavam amontoadas no chão.
- Façam uma busca! - Hal ordenou, e Aboli e Daniel Grande examinaram cada peça, tirando uma coleção de adagas escondidas dentre as pregas. Ao terminarem, havia uma pilha de armas sobre o tombadilho.
- Rachid! - Hal dirigiu-se ao líder, que caiu de joelhos com as lágrimas escorrendo e se misturando ao sangue de sua orelha ferida. - Qual é o plano de al-Auf? Que sinal você deveria fazer para mostrar a ele que havia assumido o controle do meu navio?
Eu não o compreendo, efêndi. Não conheço nenhum homem de nome al-Auf. Tenha piedade de um pobre pescador! Sem mim para Provê-los, meus filhos morrerão de fome.
- Alá, o Todo Misericordioso, proverá seus órfãos desvalidos Hal lhe assegurou, e correu o olhar por sobre os prisioneiros apavorados. - Aquele! - Selecionou um bastardo de aparência vil, com uma face cheia de cicatrizes e uma órbita vazia. Aboli o puxou para fora do grupo. Enrolou um pedaço de corrente em torno de seu pescoço e fechou-a com um cadeado. - Vou perguntar apenas mais uma vez - Hal sorriu para Rachid. - Qual é o sinal?
- Em nome de Deus, efêndi, não conheço essa pessoa, al-Auf. Não sei de nenhum sinal.
Hal fez um gesto de cabeça para Aboli, que ergueu o árabe acorrentado como se fosse uma criança e o carregou para a amurada. Levantou-o acima da cabeça e lançou-o pelo costado. O homem atingiu a água e desapareceu instantaneamente, puxado para baixo da superfície pelo peso da corrente. Um terrível silêncio desabou sobre cada homem no convés, inclusive os marinheiros ingleses. Jamais haviam imaginado que seu capitão pudesse ser tão cruel. Então, o grupo de prisioneiros nus soltou um gemido e, como um só homem, caiu de joelhos, mãos postas diante dos olhos, a implorar por suas vidas.
- O sinal? - Hal perguntou baixinho, olhando diretamente para Rachid.
- Com Deus por minha testemunha, não sei de nenhum sinal.
- Leve-o - Hal disse a Aboli.
O gigante segurou Rachid pela orelha ferida e arrastou-o, a esgoelar e sangrar, até o costado do navio. Jogou-o de cara no convés, colocou um pé descalço entre suas omoplatas para firmá-lo e enrolou outro pedaço de corrente em torno de seu pescoço. Em seguida ergueu-o com facilidade por sobre a cabeça.
- Jogue-o aos tubarões - ordenou Hal -, embora mesmo eles tenham nojo de um tal refugo nojento.
- Eu lhe direi! - Rachid berrou, chutando o ar. - Diga apenas para este demônio negro me colocar para baixo, e eu lhe direi.
- Segure-o para fora da amurada - Hal ordenou.
Aboli mudou a posição de seu aperto e segurou Rachid pelos tornozelos, com o corpo para fora da quilha espumante do Seraph.
- Fale - resmungou -, pois meus braços estão ficando cansados. Não vão agüentar seu peso por muito tempo.
- Duas luzes - gritou Rachid. - Duas lanternas vermelhas no mastro de proa. Este é o sinal para al-Auf de que tomamos o navio.
Aboli puxou-o de volta a bordo e arrojou-o ao tombadilho, onde o homem se agachou, humilhado e trêmulo.
- que curso ele ordenou que tomasse? Onde devia encontrá-lo? - perguntou Hal - ele me disse para aproar rumo sul e ficar perto de terra, e seguir para RasibnKhum.
Hal sabia que aquele era um promontório avançado que se projetava para o canal.
Acorrente todos. Prenda-os no castelo de proa, com um guarda a vigiá-los o tempo todo. Atire no primeiro que tentar escapar - Hal ordenou a Aboli, em árabe, para ciência dos prisioneiros.
Assim que o sol afundou no mar, Hal encurtou velas e permaneceu ao largo, como qualquer capitão prudente faria, com uma costa de sotavento a assomar bem perto. Velejaram lentamente para o sul e, por uma ou duas vezes, durante o início da noite, os gajeiros vislumbraram uma fraca luz de lanterna num ou noutro dos caíques que os seguiam à sombra.
A bordo do Minotauro, onde quer que estivesse à espreita, al-Auf haveria de esperar que seus homens se apossassem do Seraph somente depois que a maioria de sua tripulação dormisse. Em conseqüência, Hal aguardou até as quatro badaladas do turno do meio - duas da madrugada -, antes de ordenar que as duas lanternas vermelhas de sinal fossem acesas e colocadas na proa e no mastro principal. Brilharam dentro da noite como olhos de dragão.
Em seguida mandou que Aboli e vinte outros homens escolhidos colocassem as roupas ainda molhadas, tiradas dos árabes capturados. Enquanto isso, Hal desceu até sua cabina e vestiu os trajes que usara na noite da visita ao bazar em Zanzibar. Quando ele retornou ao convés, o Seraph navegava tranqüilo pelas águas escuras. A lua se pôs, e a silhueta escura de terra, com seu colar perolado de ondas fosforescentes, perdeu-se na escuridão.
Hal seguiu pelo convés e conversou com cada grupo de homens acocorados debaixo das plataformas da coberta de artilharia.
- Esta é a hora perigosa - disse-lhes baixinho. - Fiquem alertas. Eles podem cair sobre nós antes que os possamos ver.
Duas horas antes da alvorada, naquele momento mais escuro da noite, Hal chamou os dois garotos. Quando chegaram, Tom estava alerta e agitado de excitação, mas Dorian devia ter cochilado em seu catre, pois ainda se mostrava sonolento, a bocejar e a esfregar os olhos.
- Quero que ambos vão agora para seu posto de batalha no mastro principal - disse-lhes com firmeza. - Se o navio for abordado, devem ficar lá, não importa o que esteja acontecendo nos tombadilhos abaixo. Compreendem?
- Sim, papai. - O semblante de Tom era de concentração sob a tênue luz do passadiço.
encarregado de cuidar de seu irmão, Tom - disse Hal, como fizera tantas vezes antes. - Dorian, tem de obedecer a Tom, seja o que for que ele lhe diga para fazer.
- Sim, papai.
- Estarei muito ocupado. Não poderei ficar de olho em vocês. Quero ter certeza de que ambos estarão em segurança e longe da luta.
Caminhou com eles até as enxárcias do mastro de proa e, sob o manto da escuridão, pousou a mão em seus ombros e lhes deu um abraço apertado.
Deus os ama, rapazes, como eu. Não tentem bancar os heróis.
Apenas fiquem bem longe do caminho do perigo. - Observou-os escalarem as enxárcias e, em seguida, desaparecer na escuridão acima. Voltou para seu lugar no convés de popa.
Com a aurora, também chegou a chuva, e assim a noite prolongou-se. Então, simultaneamente ao nascer do sol, as nuvens se partiram e o dia irrompeu sobre eles com dramática brusquidão. Durante a noite, pelo capricho das correntes no estreito canal, o Seraph fora arrastado para perto da terra.
Duas milhas a boreste, o continente africano debruava-se com praias brancas, e as colônias de corais eram uma massa confusa nas rasas lagoas verdes do litoral. Precisamente à frente, estava o promontório de Ras ibn Khum, em formato do dorso de uma baleia, que avançava para dentro do canal. Hal ordenou uma alteração no curso para passar ao largo.
Durante a noite, a frota de caíques em seu encalço, guiada pelas lanternas de sinalização no mastro principal do Seraph, encurtara a distância entre eles. O barco líder, um navio de umas cem toneladas e abarrotado de homens, encontrava-se a menos de uma amarra a ré. Tão logo viram o Seraph aparecer, num mágico repente em meio à escuridão, à frente deles, irromperam em gritos de alegria e dispararam seus mosquetes para o ar. Era evidente que acreditavam, dadas as lanternas de sinal, que o navio já estava nas mãos de al-Auf. Plumas de fumaça das armas volutearam no ar, enquanto as vozes e o espoucar das armas eram carregados através das águas escuras e agitadas, e os homens dançavam e acenavam.
Saúdem-nos, camaradas - Hal disse aos homens em vestes de árabes. Eles cobriram-se com os capuzes e acenaram de volta ao caíque, suas túnicas esvoaçando com a brisa matutina que vinha de terra. Hal não fez menção de reduzir o curso do navio, e assim a distância entre eles não foi diminuída.
Olhou para a frente, buscando avaliar a distância segura da massa verde de terra que sobressaía adiante e, então, sentiu o peito se lhe apertar e a respiração tornar-se ofegante quando viu, a não mais que duas milhas, aproximar-se outro navio de panos redondos, as velas negras contornando o promontório.
De imediato, Hal percebeu que a nau estivera ancorada além da baía, esperando em emboscada enquanto as fogueiras assinalavam pela costa a aproximação do Seraph. Agora, apressava-se para encontrá-lo com a quilha a abrir caminho em meio à espuma branca. Era seguida por uma horda de pequenas embarcações, uma dúzia ou mais de caíques.
Alf Wilson correu para Hal, seus olhos negros dançando de excitação.
- Aquele é o velho Minotauro - berrou. - Eu o reconheceria em qualquer lugar, capitão.
- Obrigado, sr. Wilson, eu suspeitava disso. - Hal manteve a expressão neutra e, em seguida, voltou-se para olhar para Ned Tyler. - Mantenha este curso.
Enquanto os dois grandes navios se aproximavam rapidamente um do outro, Hal examinou o Minotauro com a luneta. Fazia menos de dois anos que fora capturado por al-Auf, mas Hal percebeu que as velas e cordames haviam se deteriorado a um estado deplorável. Nenhum capitão inglês teria negligenciado seu navio assim. Somado a isso, era manejado de forma desastrada. Talvez seu capitão estivesse acostumado ao velame latino e lhe faltasse experiência no complicado ajuste das altas aduchas das velas redondas. Agora mesmo, suas velas de mezena estavam a barlavento, e as mestras, não apropriadamente ajustadas, de maneira que o vento as abafava, o pano negro sacudia e estrebuchava como se acometido de convulsões. Hal poderia afirmar, pela declinação da nau, que seu casco devia estar empestado e grosso de ervas daninhas.
Um desordenado enxame de homens enfileirava-se nos lados e se amontoava nos cordames, brandindo e agitando armas, enlouquecidos de alegria. Hal estimou que havia várias centenas, e sentiu um calafrio de apreensão ao imaginar aquela horda selvagem tomando de assalto o Seraph. Não iniciou, porém, nenhuma ação de desvio que pudesse alertar os corsários. Nesse ínterim, os desgostosos marujos ingleses no Seraph continuavam a delirante pantomima de recepcionar com boas-vindas os piratas.
O Minotauro carregava 25 canhões de lado, e o peso de seu costado era quase o dobro que o do Seraph. Se fosse manejado com perícia, o Seraph não seria páreo para ele. Vamos esperar que sua capacidade de combate se emparede com sua navegabilidade, pensou Hal, enquanto os dois navios corriam para aproximar suas proas até que pareciam em ponto de colisão. Os caíques atendentes do Minotauro seguiam atrás como uma ninhada de patinhos.
Os dois navios estavam tão perto agora um do outro que Hal podia ver a figura de proa em sua quilha, a besta chifruda da mitologia, metade homem, metade touro. Rapidamente, as duas naus fecharam a distância até que Hal conseguiu ler-lhe o nome, Minotauro, embora as letras folheadas a ouro estivessem lascadas, desbotadas e cobertas com cristais de sal.
Ergueu a luneta e varreu o convés com as lentes. Quase de imediato, descobriu uma alta figura em trajes negros que se destacava dentre a multidão barulhenta de marujos árabes. Não teve dúvida de que aquele era al-Auf, o Malvado.
Como o primo de bin-Talf o descrevera? "Tem a postura orgulhosa de um general e o olhar atrevido de um herói da Antiguidade, um homem poderoso e terrível de se ver." Não havia muito exagero, pensou Hal, sério.
O turbante verde de al-Auf era enrolado alto e a gema que prendia suas dobras luzia acima de sua testa aos raios incisivos do sol matutino. A promessa de músculos rijos se mostrava em seus ombros largos e, debaixo dos drapeados de sua túnica, o corpo era gracioso e de um equilíbrio flexível como o dos grandes felinos predadores. Sua barba era untada e penteada em pontas gêmeas que esvoaçavam para trás de seus ombros.
Os dois navios chegaram mais perto um do outro, até que Hal pôde discernir as feições de al-Auf: olhos escuros encimados por emaranhadas sobrancelhas negras, nariz aquilino acima de uma boca fina como o corte de uma espada. Uma face tão dura e cruel como o impiedoso deserto arábico que a moldara.
Hal viu que todas as gaiútas das peças de artilharia do Minotauro estavam abertas, e todas as armas pesadas, preparadas. Um filete de fumaça azul que subia enrolando-se de seus tombadilhos ao vento o alertou que todas as mechas de combustão lenta estavam acesas, que seus artilheiros aguardavam atrás dos canhões. Al-Auf era esperto e Precavido o suficiente para não aceitar como conclusiva a evidência das lanternas vermelhas no mastro mestre do Seraph.
Os olhos de Hal se estreitaram quando a distância entre eles reduziu-se a uma amarra, e al-Auf não demonstrou intenção de desviar.
Alguns da tripulação na proa do Minotauro cessaram de acenar e olharam ao redor, ansiosos.
- Aprontar as armas!
Hal deixara para gritar no último momento possível e sua ordem foi repetida numa onda pelos corredores até o convés abaixo. Imediatamente, o som de pesadas batidas reverberou pelo navio. As cunhas foram arrancadas com martelos. Seguiu-se uma série de baques quando as tampas das cobertas de artilharia caíram abertas e, em seguida, ouviu-se o ranger das carretas. Das aberturas das portas, apontaram os canos negros dos canhões. Hal imaginou a consternação a bordo do Minotauro ao se darem conta de que aquilo em que haviam acreditado fosse uma vítima indefesa e desarmada transformava-se diante de seus olhos num adversário perigoso e combativo.
Sob a mira de observação de Hal, al-Auf reagiu de imediato. Virou-se para o leme, mas a ordem que gritou se perdeu ao vento e em meio aos berros de sua própria tripulação. O Minotauro girou a quilha e virou a proa para o vento. Foi uma manobra imprudente, com a intenção de evitar a colisão e a súbita e inesperada ameaça que vinha do costado aberto aos canhões do Seraph.
- Não é uma decisão sábia - murmurou Hal com satisfação. - Teria feito melhor em trocar tiro a tiro.
Manteve o curso.
- Sr. Pescador - chamou Hal. - Vou interceptá-los pela proa. Atire quando estiver pronto.
Daniel Grande correu para a equipe avançada de tiro de estibordo. Verificou rapidamente a colocação das armas pesadas e arrancou a cunha da canhoneira para reduzir a mira. A amplitude seria à queima-roupa. Mirar abaixo faria as balas atingirem as partes vitais do Minotauro.
O giro mal calculado de al-Auf desestabilizara o Minotauro. A nau estava enfiada, estacada, com o vento a pressionar a frente de suas velas de maneira que não podia cair a sotavento de novo, em outra mudança de rumo.
- Suba um ponto a barlavento - Hal ordenou ao timoneiro.
O Seraph girou ligeiramente em direção ao Minotauro e começou a lhe interceptar a proa, tão de perto que a nau quase entrou pela projeção do gurupés. Nenhum dos canhões do outro navio poderia fazer carga, enquanto cada peça de artilharia em sucessão a estibordo do Seraph estava mirada diretamente para a proa de forma privilegiada. Daniel Grande posicionou a mecha acesa no ouvido do canhão principal, que disparou com um tremendo rugido e deu um coice para trás o batente de recuo. A longa pluma de fumaça tocou a proa do Minotauro e seu casco rasgou-se ao tiro numa nuvem sonora de estilhaços de madeira.
O único disparo adernou o Minotauro, abrindo buracos em seus conveses inferiores, onde seus artilheiros esperavam ao lado dos canhões A bordo do Seraph, puderam ouvir claramente os berros e gritos a Deus, enquanto a bala rasgava as entranhas das cobertas de artilharia Daniel Grande seguiu até o segundo canhão e conferiu a mira. Calmamente, o Seraph avançou para o cambaleante Minotauro até ter a peça de artilharia apontada diretamente para a nau. Daniel descarregou outra rajada ululante de fogo e fumaça. A pesada bala de ferro irrompeu pelo casco, e os uivos de homens feridos e agonizantes foram levados pelo vento.
Um após o outro, os canhões do Seraph dispararam, e o Minotauro estremeceu e cambaleou, incapaz de responder sob a artilharia pesada. Hal podia ver o turbante verde de al-Auf a se destacar em meio à turba tomada de pânico de sua tripulação, na tentativa de os reunir para que manobrassem as velas de maneira que seu navio pudesse colher o vento e escapar dos terríveis golpes que o estavam devastando de proa a popa.
Nos cordames do Seraph, homens disparavam os mosquetes em direção ao convés do Minotauro. Mesmo com suas armas imprecisas, quase todo tiro causava estrago entre o denso amontoamento de figuras enfiadas em túnicas que corriam em total confusão. O estouro ensurdecedor do canhão era pontuado pelo estalar mais agudo dos falconetes, que varriam o tombadilho do Minotauro com balas de chumbo. Hal relanceou os olhos para o mastro mestre, para certificar-se de que os dois garotos se encontravam em segurança, e avistou Tom ocupado em carregar um falconete. A cabeça de Dorian estava próxima à de seu irmão, a balançar de excitação, e Hal pensou ouvir sua voz estridente e ansiosa mesmo acima do fragor da batalha.
Cada uma das baterias de estibordo do Seraph fora descarregada no indefeso Minotauro, e o estrago era terrível. Hal podia ver o sangue a escorrer pelas gaiútas de fogo e pelos embornais, em riachos brilhantes que fluíam pelo costado.
Vou atracar ao lado - Hal avisou a Ned. Esperou até que a última peça de artilharia tivesse sido disparada e o Seraph passado por sua vítima e, então, gritou a ordem no breve intervalo de calma: - Um ataque feroz quando passarmos ao lado, e então o abordaremos em meio à fumaça.
A tripulação explodiu em gritos e brandiu suas armas de mão, lanças, sabres e machados. Assim que avançassem para o tombadilho do Minotauro, seriam inferiores em número, mas Hal confiava em seu treinamento, em seu espírito guerreiro e na confusão dos árabes para tomar o navio na primeira investida.
Deu a ordem, e o Seraph virou de maneira a que os dois navios apresentassem seus costados um ao outro. Estavam, porém, ainda separados por um tiro de mosquete. Hal ordenou que todas as velas de mezena fossem encurtadas para que a nau encurtasse a amplitude do campo de batalha, e, em seguida, colocou em revés o velacho para se afastar um pouco e levar a embarcação mais rapidamente na direção do Minotauro. Um dos pequenos caíques que os seguira ficou diretamente sob a proa do Seraph, incapaz de evitar a colisão. Sua tripulação ergueu os olhos com terror enquanto o imponente navio avançava sobre eles. Alguns se lançaram à água, outros ficaram paralisados de pavor ao serem abalroados pelo Seraph. O casco da pequena embarcação espatifou-se, ela virou sobre si mesma e afundou. Os gritos de seus tripulantes foram engolfados pelas águas, abruptamente.
Assim que o Seraph mudou o curso com o vento, ganhou velocidade e avançou sobre o Minotauro, mas o navio inimigo por fim caíra a sotavento e volteava em direção oposta.
Estavam agora a meia distância de um tiro, uns cem metros separados, e Hal pôde ver al-Auf a comandar seus homens de volta a seus postos de batalha com gritos e socos raivosos. Dois dos pesados canhões do Minotauro cuspiram fogo. Alguns dos tiros voaram ao largo, perdendo o Seraph por cinqüenta metros, e saltaram em ricochete pela superfície da água como numa brincadeira de criança. Umas poucas balas passaram pelos cordames no alto, acima do convés, e um dos brandais partiu-se com um estalo igual ao de um tiro de pistola. Ainda assim, a nau abordava inexorável o outro navio. O Minotauro ganhava velocidade apenas lentamente e a maioria de suas velas ainda tremulava e se apertava contra os mastros. As vergas de ambos os navios estavam tão próximas que quase se tocavam.
- Em compasso de espera para a abordagem de assalto! - Hal gritou, e olhou para os homens com as correntes. Já giraram os pesados ganchos de ferro em círculos sobre suas cabeças, aguardando o momento para lançá-los pela estreita abertura e assim fixar o arpéu de abordagem ao navio inimigo.
Hal viu al-Auf abandonar os inúteis esforços em agrupar seus homens para enfrentar o Seraph. Em vez disso, correu para um dos canhões não disparados que fora desertado por sua tripulação. Não havia sinal de medo em sua face barbada quando tirou uma mecha em chamas do tubo e olhou com ódio para o Seraph. Então, viu Hal e o encarou diretamente, e seus lábios finos se curvaram num esgar raivoso Naquele instante, Hal sentiu que nenhum deles se esqueceria um do outro. Ato contínuo, al-Auf enfiou a mecha fumegante dentro do ouvido do canhão. Não teve tempo de apontá-lo. Era um gesto desesperado de desafio, um louco lançar de dado no jogo de sorte da batalha.
Com um longo vômito de chamas e fumaça, a pesada bala de ferro bateu contra o costado do Seraph, arremessou dois marujos ingleses em farrapos sangrentos pelo ar e, em seguida, chocou-se contra a base do mastro de proa do Seraph. O madeiro estremeceu, pendeu e depois começou a ruir, girando lentamente para fora, brandais e enxárcias saltando e se enroscando, o mastro se partindo e estalando, ganhando velocidade e impulso na queda.
Hal viu seu navio transformar-se, diante de seus olhos, de uma máquina bem equipada de combate em um casco desmantelado. Então, do ninho da gávea no topo do mastro que caía, viu duas figuras humanas lançadas como pedregulhos de uma funda. Por um momento se recortaram contra as nuvens cinzas de chuva e então despencaram em direção à superfície do mar.
- Tom! - berrou Hal, em agonia. - Oh, meu Deus, Dorian!
No cesto da gávea, Tom olhou para baixo, para o convés do Minotauro para a horda de árabes de turbante em suas túnicas multicoloridas. Estava girando o falconete em sua base basculante, a apontá-lo quase em linha reta em direção ao tombadilho, e para isso tinha de se pendurar pela lateral do cesto para levá-lo à carga.
- Atire! - Dorian gritou a seu lado. - Atire, Tom!
Tom podia ver claramente o terrível dano que a artilharia do Seraph havia infligido ao navio inimigo. Suas portas falsas estavam escancaradas, as balizas brancas de madeira nua do arcabouço, expostas, seu gurupés fora arrancado numa confusão de traquetes e cordas pendurados na água. Um dos canhões do tombadilho recebera um tiro direto e saltara de sua carreta. Os corpos de dois atiradores árabes foram prensados sob seu pesado cano preto.
Mortos e feridos jaziam espalhados pelo convés, e a tripulação apavorada escorregava e caía no chão lavado de sangue, tropeçando sobre os cadáveres de seus companheiros ao procurar se amontoar do lado mais distante da ameaçadora artilharia do Seraph.
- Atire! - Dorian socava o ombro direito do irmão com o punho fechado. - Por que não atira?
Tom esperava pelo momento certo. Sabia que poderia levar cinco minutos para recarregar o falconete de cano longo em seu desajeitado poleiro no cesto da gávea e que, nesse tempo, sua melhor oportunidade poderia passar se a arma estivesse vazia.
"Sempre espere pelo seu momento", Daniel Grande introjetara nele. "Não comece a atirar num longo raio de alcance. Restrinja a ação e faça cada tiro valer o máximo."
A amurada posterior do Minotauro estava repleta de gente. Alguns da tripulação haviam escalado o parapeito do navio, preparados para se lançar ao mar e tentar nadar até um dos pequenos caíques em vez de enfrentar as gaiútas laterais de fogo do costado do Seraph e a onda de demônios infiéis que chegaria em massa na abordagem. Empurravam se e lutavam para alcançar a segurança, embolados em grupos de seis ou sete. Tom via claramente suas faces escuras, contorcidas de terror, a olhar para trás por sobre os ombros, enquanto o Seraph seguia inexorável sobre eles.
Mirou cuidadosamente no meio da turba e então disparou o falconete. Fumaça e fragmentos de mecha em chamas voaram numa densa nuvem e foram soprados de volta para o seu rosto pelo vento, e por isso, por alguns segundos, ele se viu cego. Então, a fumaça dissipou-se e Tom avistou o buraco que a rajada de tiros de chumbo havia aberto nas fileiras frenéticas, no tombadilho abaixo. Ao final, uma dúzia de figuras com túnicas jazia caída, a estrebuchar e a chafurdar convulsivamente no próprio sangue.
Oh, bom tiro! Bom tiro! - Dorian berrou, esganiçado.
- Ajude-me a recarregar - Tom lhe disse, e girou o cano atarracado do falconete para cima, até apontar para o céu.
Dorian estendeu a mão, limpou o cano e colocou uma carga de pólvora negra da barrica de couro dentro da boca aberta da arma, e Tom empurrou para dentro com o soquete a mecha de fibras de juta encharcada de piche, para colocá-la no lugar.
Foi naquele momento que o mastro vibrou e estremeceu debaixo deles e o impacto ressonante da bala de ferro de canhão disparada por al-Auf foi absorvido pelo madeiro. Tom deixou cair o soquete da mecha e agarrou-se à alça ao lado do cesto da gávea. Passou o outro braço em torno do corpo de Dorian e abraçou-o com força.
- Tom, o que está acontecendo? - Dorian gritou, tomado de pânico e agarrou-se ao irmão.
- Segure-se firme, Dorry! - Tom tentou controlar seu próprio terror enquanto o mastro vibrava, oscilava, e então começou a envergar até que viram as ondas revoltas diretamente abaixo. - Vamos tombar, Dorry. Segure-se em mim.
Sem pressa, o mastro de proa tombou para a frente e os garotos se viram indefesos em meio aos guinchos das madeiras torturadas, ao açoite e às lategadas das cordas partidas e das talhas que se rompiam. Cada vez mais rápido, o mastro ruído lançou-os em súbito declínio para baixo, tanto que a respiração lhes ficou retida nos pulmões.
Não consigo me segurar... - Tom gritou, em desespero.
Ainda agarrados um ao outro, foram jogados do cesto e caíram, Pelo emaranhado de cordas e vergas tombadas, numa longa, arrebatadora queda de tirar o fôlego, até que atingiram a superfície do mar e mergulharam fundo nas verdes águas.
Dorian foi arrancado das mãos de Tom pela força com que se chocaram contra a água. Embora submerso em profundidade, Tom abriu os olhos e tentou enxergar o menino, explorando desesperado ao redor enquanto nadava para cima. Ao emergir ofegante em busca de ar, seu único pensamento era para seu irmãozinho. Com olhos lacrimejantes e ardendo devido ao sal, procurou à sua volta.
- Dorry! - Engasgou. - Onde está você?
O mastro destroçado jazia pendurado pelo lado, seus panos em pavorosa desordem. Pendia na água como uma enorme âncora flutuante, arrastando a proa ao redor, tirando toda e qualquer condição de manobra do Seraph, de modo que o Minotauro não encontrou dificuldade em se afastar dali rapidamente. Tom se viu emaranhado numa confusão de cordas e panos e lutou para se livrar. Desvencilhou-se de uma porção de cordame que se enrolava em torno de suas pernas e agarrou-se a uma talha despedaçada para erguer-se o suficiente e olhar ao redor.
- Dorry! - Sua voz soou esganiçada de terror e pânico.
Naquele instante, a cabeça de Dorian emergiu num pulo a uns dez metros de onde Tom flutuava. O garoto estava meio afogado, a tossir e engasgar, vomitando golfadas de água. E a maneira com que o navio girava pela água os afastava cada vez mais dele.
- Dorry, agüente firme! - Tom gritou. - Estou indo. - Soltou a talha e deu um impulso com o braço na direção do irmão. Imediatamente, a corda enrolou-se em suas pernas outra vez.
- Tom! - Dorian o enxergou e estendeu-lhe a mão. - Salve-me, Tom. Por favor... por favor, Tom! - Estava sendo levado para o mar aberto e se afastava rapidamente.
- Estou indo, Dorry.
Tom chutou e lutou contra a corda que o retinha, mas era como tentar livrar-se do aperto tenaz de um polvo. Uma onda quebrou sobre a cabeça de Dorian, arrastando-o para baixo novamente. Quando emergiu, estava a uns seis metros dali, a agitar os braços inutilmente, tentando manter a cabeça acima da superfície.
- Nade, Dorry! - Tom gritou a ele. - Como eu lhe ensinei.
Dorian ouviu-o e procurou controlar um pouco os movimentos frenéticos.
- Bata os pés, Dorry! - Tom berrou de novo. - Use as mãos.
Dorian movimentou-se com mais determinação, mas a corrente o tinha em suas garras, e Tom estava sendo arrastado rapidamente pela corda que o prendia à verga quebrada. Mergulhou, procurou pela ponta da corda e tentou desenrolá-la das pernas. Porém o arrasto do mar apertara os laços e, embora ele puxasse a trança rústica com os dedos ela não se soltava. O fôlego lhe faltou e Tom deu um impulso para voltar à superfície.
Aspirou o ar e, assim que seus olhos se aclararam, procurou por Dorian. Avistou-o a uns cem metros de distância, a expressão indecifrável de longe, mas sua voz um desesperado vagido.
Tom... me ajude!
Naquele instante, a talha rolou sobre si mesma pela água, e Tom foi puxado para baixo novamente, mas dessa vez tão fundo que seus ouvidos zuniram e a dor explodiu em seu crânio como uma punção. Ao puxar a corda que o prendia, sentiu a pele dos dedos rasgar-se e suas unhas quebrarem-se nas raízes. A compressão em seu peito e a necessidade de respirar eram insuportáveis, mas ele lutou até que a força se lhe esvaiu. Sua visão apagou-se na negrura, e Tom se viu sem nada, a não ser a vontade de lutar pela vida. Não vou desistir. Era o único pensamento que lhe restava. Dorry precisa de mim. Não posso morrer afogado.
Então, sentiu que mãos poderosas o seguravam. Quando abriu os olhos novamente e expulsou a escuridão, viu a face de Aboli a apenas alguns centímetros da sua, os olhos arregalados e os estranhos padrões de suas tatuagens lhe dando o aspecto de algum monstro terrível das profundezas. Tinha uma faca entre os dentes cerrados e bolhas prateadas fluíam pelos cantos de seus lábios.
Aboli vira os dois garotos caírem com o mastro destroçado e, sem nenhuma hesitação, desertou de seu posto de batalha. No tempo que ele levou para atravessar o convés e chegar ao parapeito, Dorian foi arrastado por cinqüenta metros do costado do Seraph. Em pressa desesperada, Aboli arrancou as vestes islâmicas e, apenas de ceroulas, pulou a amurada e se equilibrou ali por um instante, enquanto decidia qual dos garotos estava em maior perigo.
Dorian parecia estar boiando com alguma facilidade, mas era arrastado para o local onde a frota de caíques árabes estacionara. Tom, entretanto, estava preso na massa confusa de panos que flutuavam embolados e entre as cordas emaranhadas. Aboli hesitara, dilacerado entre seu amor e o dever para com os garotos. Era impossível decidir entre os dois.
Então, com um estouro, uma das vergas do mastro de proa partira-se e caíra na água. Tom estava enredado nas cordas e foi arrastado para o fundo. Aboli lançou um último olhar desesperado para a cabeça flutuante de Dorian, minúscula a distância, tirou a faca da bainha no cinto, prendeu a lâmina entre os dentes e saltou da amurada. Caiu quase sobre o ponto onde Tom sumira, voltou à superfície para um rápido fôlego e mergulhou outra vez. Usou as cordas de guia para ir ao fundo e espiou pela água, uma cortina de turbulentos redemoinhos e nuvens de bolhas brilhantes.
Ao afundar mais, divisara a forma de Tom a se destacar na obscuridade esverdeada abaixo. Movia-se apenas debilmente, perto de se afogar, e a corda amarela estava enrolada em suas pernas como um píton. Aboli estendeu a mão, segurou-o pelos ombros e então examinou a face do garoto. Viu os olhos de Tom abertos. Abraçou-o com força para lhe instilar confiança. Depois, agarrou o punhal dentre os dentes e alcançou a corda que prendia as pernas de Tom. Não usou de muito esforço, pois a lâmina era afiada como uma navalha e poderia infligir um sério ferimento aos membros nus do garoto. Em vez disso, trabalhou com cuidado para afastar os laços emaranhados e cortá-los um a um até que a última trança caiu e Tom estava livre. Em seguida Aboli o segurou pelas axilas e empurrou-o para cima, em direção à superfície. Emergiram juntos e, mesmo enquanto Aboli ofegava à caça de ar, o peito forte a arfar e a se encolher como o fole de um ferreiro, segurava a face de Tom acima da água e buscava em seus olhos um sinal de vida. De súbito, Tom tossiu convulsivamente, vomitou uma golfada de água salgada e lutou para respirar. Aboli arrastou-o para o mastro caído e deitou-o sobre o madeiro, batendo-lhe nas costas com a palma da mão para que a água que Tom engolira regurgitasse de sua boca ofegante e o ar entrasse por sua garganta.
Mesmo enquanto isso, Aboli esquadrinhava ao redor desesperadamente, em busca de sinal de Dorian. A superfície do mar perdia-se em meio à névoa da fumaça da artilharia, que flutuava num pesado banco na direção da terra. As armas ainda espoucavam num coro dissonante, mas gradualmente se calaram, à medida que os dois navios iam se distanciando mais e mais um do outro.
Num relance, Aboli viu que o Minotauro já se encontrava a meia milha ou mais de distância, todas as suas velas içadas e enfunadas, apontadas para o norte. Não fizera nenhuma tentativa de tirar vantagem do estado arruinado do Seraph, atacando-o ao sabê-lo incapaz de manobrar. Ao contrário, fugira para se pôr a salvo. Aboli não perdeu mais tempo com isso, e procurou novamente por Dorian.
Viu três dos pequenos caíques a cercar o Seraph numa distância cautelosa, como chacais em torno de um leão ferido. Se o Seraph mostrasse ter condições de lhes dar caça, Aboli sabia que imediatamente rumariam para a água rasa da lagoa e para o abrigo dos recifes de coral aonde o grande navio não poderia segui-los. Tolhido no emaranhamento dos destroços pendurados de seu lado, o Seraph era incapaz de se fazer ao vento. Rodava à deriva e a corrente o empurrava rumo aos fatídicos corais.
Aboli viu que Daniel Grande já pusera uma equipe de homens com machados para limpar os restos destroçados. Tentou gritar por ajuda aos homens no convés, mas estes estavam concentrados no trabalho e a voz dele não se fez ouvir acima das pancadas e das ordens berradas. Então, de repente, viu o casco de um dos escaleres ser lançado do costado do Seraph e chegar rapidamente à superfície das águas. Homens nos remos puxavam com fúria na direção de onde Aboli e Tom se agarravam ao mastro destruído de proa. Aboli percebeu com espanto que Hal se encontrava ao leme. Devia ter deixado o navio a cargo de Ned Tyler para vir em resgate de seus filhos. Estava agora de pé, gritando para Aboli ao se aproximar:
- Onde está Dorian? Em nome de Deus, você o avistou?
Aboli não podia desperdiçar o ar de seus torturados pulmões para gritar em resposta, mas o escaler alcançou-os dentro de um minuto e três homens debruçaram-se para puxá-los para bordo. Colocaram Tom sobre as tábuas do fundo, entre os assentos, antes de saltarem de volta para seus lugares nos remos. Aboli percebeu com alívio que Tom lutava para se sentar, e estendeu a mão para ajudá-lo, enquanto Hal repetia a pergunta:
- Pelo amor de Deus, Aboli, onde está Dorian?
Como se ainda fosse incapaz de usar a voz, Aboli apontou para os bancos de fumaça flutuante. Hal saltou para o paneiro e equilibrou-se ali facilmente, levando a mão em concha aos olhos para protegê-los do reflexo do sol que nascia.
- Lá está ele! - berrou, com imenso alívio, e então se voltou para os remadores:. - Força, camaradas! Puxem com toda a força possível!
O escaler ganhou velocidade sob o impulso dos longos remos, avançando para onde a minúscula mancha da cabeça de Dorian boiava a um quarto de milha de distância.
Aquele repentino e precipitado avanço em mar aberto, para longe da segurança do Seraph, devia ter atraído a atenção dos homens a bordo de um dos caíques que rondavam o navio. A tripulação árabe apontou para o ponto flutuante da cabeça de Dorian e seus gritos excitados chegaram débeis até os homens no escaler. O homem na popa do caíque alterou o curso numa longa curva. A tripulação correu para manobrar sua única vela latina, e a embarcação deslizou rapidamente em direção a criança, apostando corrida com o escaler para ser o primeiro a alcançar o náufrago.
- Força! - Hal rugiu, ao se dar conta do perigo.
Aboli deitou Tom de costas no fundo do barco e saltou para um lugar nos assentos de remo. Empurrou o homem ali sentado para o lado e colocou toda a força de seu peso formidável no remo. Seus músculos inchavam-se e se retraíam com o esforço.
- Todos juntos, puxem! - Comandou o empuxo, e o escaler saltou para a frente, as ondas chocando-se contra sua proa e espirrando sobre as costas retesadas da tripulação, enquanto seguiam velozmente em direção a Dorian.
Foi então que uma onda mais alta ergueu o menino, e ele viu o escaler se aproximar. Dorian ergueu a mão e acenou. Não estavam perto o bastante para lhe ver a expressão da face, mas era claro que não percebera o caíque singrando as águas em sua direção no rumo oposto.
- Nade, rapaz! - Hal berrou. - Nade para nós!
Dorian, porém, não conseguia ouvi-lo. Acenou de novo, debilmente, e era evidente que suas forças vacilavam. A brisa da manhã era leve e irregular, e o escaler tinha maior velocidade que o caíque, mas estavam bem distantes de Dorian.
- Estamos ganhando, camaradas! - Hal lhes disse. - Vamos alcançá-lo antes deles.
Sentiu o vento soprar em seu rosto, morrer por um momento e então voltar de novo, mais forte e com mais determinação. Viu-o arrepiar a superfície das águas, passar pela cabeça de Dorian e, em seguida, enfunar as velas do caíque, deixando-as tão tesas como um odre de vinho. O caíque arrancou em velocidade para a frente, sua quilha a abrir rastros brancos ao sol nascente.
Dorian devia ter ouvido os gritos dos árabes que corriam céleres ao seu encalço, pois girou a cabeça ao redor e então começou a nadar, os braços a se moverem e a bater pesados de exaustão, ao tentar distanciar-se do veloz caíque em direção ao escaler. Conseguiu apenas um imperceptível avanço pela água revolta e arrepiada.
Tomado de aflição, Hal procurou estimar a distância e a velocidade relativa das duas embarcações e viu que não poderiam ultrapassar o caíque.
- Força! - berrou, em desespero. - Cem guinéus de ouro se o alcançarem antes! Puxem! Pelo amor de Deus, puxem!
Havia pelo menos vinte homens no caíque. Era um barco pequeno e feio, a vela arruinada, remendada e manchada de sujeira, a pintura a descascar no casco, o entabuamento listrado como zebra no lugar em que sua tripulação defecava sobre a amurada. Um deles ergueu um arcabuz de cano longo e apontou-o pela estreita distância para o escaler. Fumaça branca esguichou da arma antiga, e Hal ouviu o zumbido da bala ao passar por sua cabeça, mas nem mesmo se encolheu.
Aboli empuxava os remos com tanta força e empenho que seus olhos saltavam das órbitas, raiados de sangue, e sua face tatuada se contraía num ricto horrível e raivoso. O remo dobrava como um galho verde em suas mãos enormes e a agua assobiava sob a proa para se espalhar numa esteira brilhante em forma de seta, atrás.
O caíque movia-se mais rápido, contudo, e tinha menor distância a percorrer. Hal sentiu o gelo do pavor encarcerar seu peito ao perceber, por fim, que não conseguiria vencer: estavam ainda a uns cem metros de Dorian, enquanto o capitão do caíque já se emparelhava ao menino e arrebanhava o vento, virando a direção apenas o bastante para que cinco de seus homens se debruçassem pela borda e estendessem as mãos para agarrar a criança.
Puxaram Dorian de dentro da água, a se debater e a chutar, a água escorrendo de suas roupas, seus gritos de pavor a retinir nos ouvidos de Hal. Este sacou a pistola de sob o colete e apontou-a, desesperado, mas sabia que era um gesto inútil antes mesmo que Aboli esbravejasse:
- Não, Gundwane! Pode atingir o menino!
Hal baixou a arma e viu quando Dorian foi arrastado pelo imundo parapeito para dentro do barco. O capitão do caíque completou a volta e girou o barco de novo ao vento. Sua vela enfunou-se com um estrépito e a embarcação avançou, alcançando com surpreendente rapidez e presteza seu melhor ponto de navegabilidade. Seguiu velozmente na direção da terra. A tripulação árabe se pôs a gritar palavrões e a caçoar deles. Uns poucos dispararam seus arcabuzes, e as balas perderam-se no mar, em volta do escaler.
A equipe de Hal ficou prostrada nos remos, ofegante, o suor a lhes escorrer pelo corpo, a olhar com olhos tristes o barco adversário se afastar. Ninguém falou, apenas ficaram de olhos pregados no caíque que se distanciava, devastados pela perda do irrequieto garoto que era o favorito de todos.
Então, um dos árabes ergueu o corpinho de Dorian a se debater no ar para que os homens no escaler pudessem ver com clareza o rosto Pálido do menino. Um deles sacou a cimitarra da bainha no cinto e a ergueu bem alto, acima da própria cabeça, para que a lâmina capturasse a luz do sol e faiscasse. Em seguida ergueu o queixo de Dorian e empurrou-lhe a cabeça para trás como faz um carniceiro com um porco. Deliberadamente, encostou a lâmina na garganta do menino e a segurou ali, com um sorriso feroz para os outros homens no caíque.
Hal sentiu que parte de si fraquejava e morria no fundo da própria alma, e um murmúrio brotou de seus lábios:
- Senhor, eu vos imploro, poupai meu menino. Qualquer coisa que me pedirdes, eu farei, mas poupai-me disso.
Dorian ainda se debatia nas garras do árabe e, de súbito, o barrete que ocultava seus cabelos caiu de sua cabeça. Seus cachos de um ouro avermelhado despencaram por sobre seus ombros e reluziram à luz do sol. Com óbvia consternação, o homem afastou a lâmina de seu pescoço. E então se instalou uma repentina comoção pelo caíque e o restante da tripulação irrompeu em gestos e gritos, todos amontoados em torno de Dorian. O menino sumiu de vista. No embalo de sua larga vela triangular, o caíque afastou-se.
Estava já a duas milhas de distância quando Hal conseguiu recobrar-se e dar a ordem para a volta ao Seraph à deriva. Porém, durante todo o caminho, ele ficou olhando para trás, por sobre o ombro. Viu o caíque seguindo a tênue sombra do Minotauro, canal acima, rumo norte.
- É lá onde hei de procurá-los - murmurou. - E nunca cessarei a busca até encontrá-los.
A bordo do Seraph, havia trabalho urgentíssimo a ser feito para salvar o navio. Aquilo ajudou Hal a sobreviver às primeiras horas dolorosas de sua perda. O navio não poderia aproar ao vento com o mastro de proa, velas e cordames caídos na água como uma enorme âncora marinha. Hal ajustou todo o velame nos mastros em pé para tentar livrar a embarcação do sotavento, porém isso apenas retardava o momento em que a nau se veria encalhada.
Liderados por Aboli e Daniel Grande, dez machadeiros subiram no mastro de proa e cortaram fora a massa retorcida de cordas e panos. Era um trabalho perigoso: quando cada corda se partia sob os machados, a tensão era transferida irregularmente e o mastro rolava e revirava, ameaçando lançar os homens à água.
Enquanto o Seraph lutava contra a imensa resistência de seu equipamento desmantelado, para mais perto era arrastado em direção aos recifes de coral, e Hal corria de um lado para outro, observando a terra próxima e dirigindo os lenhadores em seus esforços, a indicar a eles as pernadas vitais de cordame que ainda seguravam o mastro caído.
A verde costa convexa de Ras ibn Khum assomava sempre mais próxima e mais alta, acima do navio, enquanto este batalhava pela vida. As vagas estouravam na quilha, ao mesmo tempo que o casco escorregava devagar em direção ao recife, e os dentes do branco coral sorriam para o Seraph, à espera para lhe arrancar as entranhas.
Finalmente, apenas uma única corda de cânhamo de três metros do estai do traquete prendia o mastro quebrado. Estava esticada, tão tesa e dura como uma barra de ferro, tanto que, sob a imensa tensão, a água do mar passava em jatos pelo cabo retorcido. Daniel Grande mandou todos os outros machadeiros de volta ao convés enquanto se equilibrava de forma precária no topo do mastro inclinado. Preparou-se e avaliou seu golpe e então girou o machado para o alto e o trouxe para baixo de novo sobre o cabo retesado. Desferiu a machadada com tamanha Perícia que a grossa corda do cabo de guia não se seccionou de uma vez e apenas cinco das tranças de cânhamo se partiram.
Assim que as tranças restantes começaram a se desfiar e a ceder sob a tensão, com uma série de estalidos e estouros, e o mastro rolou pesadamente sob seus pés, Daniel Grande teve apenas o tempo suficiente de correr de volta pela extensão inclinada e saltar para o tombadilho. Então, o cabeço do mastro quebrado ringiu e chiou pelo costado e, por fim, caiu e flutuou ao lado do navio.
De imediato, o Seraph respondeu agradecido ao alívio de seus entraves. O tombadilho pesadamente adernado nivelou-se, e a embarcação atendeu ao leme quase com alegria. Sua proa rodopiou, a apontar por fim ao largo e a livrar-se do promontório de Ras ibn Khum, que ameaçava pegá-la numa armadilha.
Hal correu depressa para a amurada de sotavento e observou o mastro de proa descartado flutuar em direção ao recife, e anotou com cuidado o ponto onde ele deveria encalhar. Então, voltou toda sua atenção em conduzir o navio a uma ancoragem segura.
Alterando e ajustando o conjunto de velas nos dois mastros de pé, e fazendo pequenas correções no leme, conseguiu manejar o Seraph gravemente ferido para além da ponta do promontório e para dentro da baía mais adiante. Então viu de imediato por que al-Auf a escolhera como o lugar onde armar sua emboscada.
Era uma baía fechada, de água tão profunda que brilhava, azul como lápis-lazúli, à luz do sol. Era protegida da monção pelo alto promontório e, quando ele olhou pelo costado, pôde ver o fundo macio e arenoso a uns dezoito metros abaixo.
- Em prontidão para lançar âncora, sr. Tyler - disse, e quando esta esparrinhou por sobre a proa e o cabo desceu a roncar pelo escovém, a torrente de dor que o ameaçara por todas aquelas últimas horas o tomou de assalto com um peso tão terrível que quase expulsou a própria vida de dentro dele. Não conseguia pensar em nada, a não ser em Dorian. A imagem de seu corpinho nas mãos dos corsários árabes, a faca mantida em sua garganta, estava gravada em sua mente e ele sabia que jamais poderia ser expurgada. Viu-se assenhoreado pela tristeza. Parecia que toda a força de seus membros lhe fora sugada, o próprio ar dos pulmões. Queria entregar-se ao olvido. Então, ansiou por estar em sua cabina, lançar-se no catre e abandonar-se ao sofrimento.
Quedou-se de pé, sozinho, no convés de popa, pois seus oficiais e toda a tripulação o deixaram desocupado para ele, e ninguém até mesmo olhou em sua direção. Com o tato inato de homens duros e rudes, eles o deixaram a sós com sua agonia. Hal fitou o horizonte vazio a norte. As águas azuis do canal reluziam lindamente ao sol, mas eram desprovidas de velas ou de promessa de socorro. Dorian se fora. Ele não conseguia nem mesmo recompor-se para pensar na ação a seguir, para formular sua próxima ordem aos homens que aguardavam, sem um olhar para ele.
Então, Aboli aproximou-se e lhe tocou o braço.
Gundwane, haverá um tempo para isso mais tarde. Se quiser salvar seu filho, deve ter o navio pronto para segui-lo. - Olhou pelo convés, para o que restava do mastro de proa, a madeira crua esfacelada pela pesada bala de ferro. - Enquanto chora, o dia lhe escapa. Dê as ordens.
Hal o encarou com o olhar vago de um fumante de bhang.
Ele é tão jovem, Aboli, tão pequeno...
- Dê a ordem, Gundwane.
- Estou tão cansado - disse Hal -, cansado demais.
- Não importa quanto isso doa dentro do senhor, não pode descansar - disse Aboli, suavemente. - Agora, dê a ordem.
Hal estremeceu com o esforço e então ergueu o queixo.
- Sr. Tyler! Quero as pinaças e os escaleres lançados ao mar. - As palavras chegaram hesitantes a seus lábios, como se proferidas em língua estranha.
- Sim, capitão. - Ned correu para obedecer-lhe, o alívio aparente em sua face.
Hal sentiu o fluxo de vigor de volta a seu corpo, e sua vontade, fortalecida. Sua voz firmou-se ao prosseguir:
- As tripulações dos escaleres vão recuperar o mastro descartado. Nesse ínterim, os carpinteiros serrarão o toco do mastro de proa para deixar tudo pronto para colocá-lo de volta no lugar. Os mestres veleiros devem tirar as velas de reposição do porão e as cordas e cabos para equipar o novo mastro. - Enquanto desfiava a cadeia de ordens para dar início aos reparos do navio, olhou para o sol. Estava quase em seu zénite. - Mande a tripulação comer em turnos. Haverá pouco tempo, e o tempo é precioso, para descansar ou comer novamente até que tenhamos o navio a caminho mais uma vez.
Hal estava no leme da pinaça de liderança quando a pequena flotilha de barcos contornou o promontório de Ras ibn Khum. As duas pinaças tinham sido remontadas. Eram botes abertos, de cerca de oito metros de comprimento, mas capazes de colher bem o vento, apropriados para longas viagens em mar aberto ou para o tipo de trabalho pesado que Hal tinha em mente.
Nem bem haviam contornado a ponta do promontório, Hal avistou o mastro de popa. Mesmo a duas milhas de distância, era fácil divisá-lo, enrolado em sua própria vela branca contra o negro recife de coral que o prendia. Ao se aproximarem, Hal percebeu que seria tarefa árdua livrar o longo eixo de pinho, pois os panos e as cordas de guia estavam emaranhados no coral pontiagudo e as ondas curvadas que vinham do canal arrebentavam sobre o recife e turbilhonavam pelo mastro em redemoinhos de espuma branca.
Alf Wilson conduziu um dos escaleres através de uma passagem pelo recife de coral, até as águas mansas da lagoa; de lá, foi mais seguro e mais fácil desembarcar uma tripulação no banco de coral, armada com facas e machados. Enquanto as águas estouravam e espumavam em torno, eles se aferraram ao mastro encalhado.
Nesse ínterim, cinco dos nadadores mais fortes, liderados por Aboli e Daniel Grande, tinham nadado das pinaças e escaleres para o recife, puxando linhas leves, presas em torno de suas cinturas. Passaram as pontas aos homens já agarrados ao mastro de proa e, em seguida, nadaram de volta para os botes sem nenhuma dificuldade.
As linhas foram usadas para passar os cabos mais pesados e mais fortes aos homens no mastro. Assim que prenderam as pontas a seu cabeço, os botes pequenos se afastaram e começaram a tentar livrar a pesada extensão de vinte metros de pinho do recife.
Todos os botes tinham tripulações dobradas para que, quando uma equipe se cansasse, a outra pudesse assumir. Prenderam a parte frouxa do cabo nas linhas e esticaram até ficarem firmes, juntos. O machadeiro no mastro cortou as linhas de guia e os panos que agora eram mortalhas nas espinhas pontiagudas e agulhas de coral, tentando libertá-los de seu tenaz abraço. As lâminas dos remos revolviam a água, talhando-a de branco, enquanto os botes deslocavam com esforço sua teimosa carga. O mastro virou, deslizou uns poucos metros, e as equipes berraram em triunfo, mas de novo o madeiro enroscou, encalhado tão firmemente como antes. O exaustivo trabalho teve de recomeçar outra vez. Num passo relutante, o coral desistiu de seu aperto, mas Hal teve de mudar as equipes nos bancos de remo por três vezes, antes que o mastro rolasse para fora do recife e pudessem arrastá-lo para águas mais profundas.
Alf Wilson resgatou seus homens que ainda se agarravam ao mastro. Quando foram tirados da água, seus braços e pernas mostravam lacerações e cortes do contato com o impiedoso coral. Hal sabia que muitas feridas iriam infeccionar, pois o coral era tão peçonhento quanto o veneno de uma serpente.
Àquela hora, o sol se punha. Hal alternou as equipes outra vez, e os nos botes formaram uma longa fila em torno da barreira de coral da lagoa. Com a carga pesada que arrastavam, parecia que estavam parados, quietos na água, os homens a se esfalfarem inutilmente em longas remadas, seus braços e costas vermelhos como carne crua devido ao sol tropical, o suor a pingar no convés sob os assentos. Tolhidos pelo peso, os botes avançavam penosamente por centímetros ao longo do quebra-mar do recife, mas quando tentaram puxar o mastro para o promontório de Ras ibn Khum, a corrente que rodopiava ao redor da ponta de terra tomou-os em suas mandíbulas e segurou-os com força.
Enquanto batalhavam contra ela, o sol afundou no mar. Embora estivessem à beira da exaustão, cada músculo em seus corpos, tenso e dolorido, os olhos luzidios com a agonia de seus esforços, não puderam parar para descansar: se o fizessem, a corrente os lançaria imediatamente contra o recife. Como exemplo para seus homens, Hal arrancou a jaqueta e a camisa e assumiu seu turno nos remos. Nem seus músculos dorsais, nem suas mãos estavam preparados para aquele trabalho pesado como os dos seus homens e, depois da primeira hora, ele se encontrava num estado lamentável de dor, o cabo do remo manchado e grosso do sangue de suas palmas em carne viva. Mas a agonia que fincava dentes em seu corpo e o hipnótico giro e queda dos remos serviram para distraí-lo da dor mais profunda da perda de seu filho.
Um pouco antes da meia-noite, a maré mudou e o fluxo começou a trabalhar em seu favor. Moveram-se lentamente, contornando o banco de coral e para dentro da lagoa fechada. Por fim, ao luar, viram o Seraph descansando placidamente, ancorado nas águas tranqüilas, sob um céu pontilhado de estrelas. Quando prenderam o mastro flutuante ao longo do navio, poucos tinham força para subir a escada para o convés e a maioria amontoou-se no fundo dos pequenos botes, profundamente adormecidos antes que suas cabeças pousassem no chão.
Hal forçou-se a escalar os degraus que o separavam de Ned Tyler, a esperá-lo na amurada. Sob a luz da lanterna, havia respeito no olhar do velho marujo ao avaliar o estado de exaustão de seu capitão e lhe viu as mãos ensangüentadas.
Pedirei ao médico que o examine agora mesmo.
Deu um passo adiante para ajudá-lo a sair da escada, mas Hal o afastou.
- Onde está Tom? - perguntou, apressado. - Onde está meu filho?
Ned olhou para cima e, seguindo-lhe o olhar, Hal avistou uma pequena e solitária figura no alto, no cordame do mastro principal.
- Está lá desde que lançamos âncora - disse Ned.
- Dê aos homens uma porção de rum com seu desjejum, sr. Tyler -, Hal ordenou -, mas faça com que se levantem à primeira luz da alvorada. Deus sabe, merecem um descanso, mas eu não posso prescindir deles, não até que o Seraph esteja pronto para o mar de novo.
Ainda que cada músculo de seu próprio corpo gritasse por alívio e ele se arrastasse nos pés pela fadiga, Hal atravessou o convés até as enxárcias do mastro mestre e começou a longa escalada até a verga.
Quando Hal chegou à verga principal, Tom cedeu espaço a ele e sentaram-se juntos, quietos, calados. A tristeza de Hal, que ele mantivera contida todo o dia e pela noite, voltou-lhe num ímpeto avassalador, superando sua exaustão, tão aguda e dolorosa que queimava como brasa em seu peito. Pousou o braço em torno dos ombros de Tom, em parte para confortá-lo e em parte para buscar conforto para si mesmo.
Tom recostou-se contra ele, porém ainda continuaram em silêncio. As estrelas moveram-se em sua majestosa órbita, e as Plêiades afundaram abaixo do promontório antes que Tom começasse a soluçar de mansinho, seu corpo rijo e jovem dilacerado pela dor insuportável. Hal o abraçou com força, mas a voz de Tom saiu quebrantada e cheia de desolação quando murmurou:
- É minha culpa, papai.
- Não é culpa de ninguém, Tom.
- Eu deveria tê-lo salvado. Prometi. Fiz um juramento solene de que nunca o abandonaria.
- Não, Tom, não é culpa sua. Não havia nada que algum de nós pudesse fazer. - Porém pensou com tristeza: se há alguma culpa, é minha. Eu deveria ter deixado Dorian em segurança em High Weald. Era muito jovem para isso. Todos os dias que restam da minha vida, eu lamentarei não ter agido assim.
Temos de encontrá-lo, papai. Temos de resgatar Dorian. - A voz de Tom estava mais firme. - Ele está lá, em algum lugar. Aboli disse que nunca o matarão. Vão vendê-lo como escravo. Temos de encontrá-lo.
Sim, Tom. Nós o encontraremos.
Devemos fazer juntos um juramento solene - disse Tom e olhou Para a face do pai. Era lúgubre, à luz das estrelas: os olhos, covas escuras, e a boca, dura como se escavada em mármore. Tom buscou a mão de seu pai. Estava grossa com o sangue ressequido.
Faça o juramento por nós dois -, Hal lhe disse, e Tom ergueu as mãos entrelaçadas de ambos para o céu estrelado.
- Ouvi nosso juramento, oh, Deus - disse. - Juramos que jamais descansaremos nem cessaremos de procurar até encontrar Dorian de novo, onde quer que ele possa estar em todo o mundo.
- Amém - murmurou Hal. - E que assim seja!
As estrelas borraram-se com as lágrimas que lhe escorreram dos olhos.
Os carpinteiros chanfraram o toco do mastro de proa quebrado, serrando e cinzelando a ponta fendida e arrebentada para formar um esteio no qual a extremidade do mastro pudesse ser encaixada. Enquanto isso, o mastro em si fora levado para terra e outra equipe trabalhava na ponta para formar a junta. O trabalho varou o dia e continuou depois, no escuro, sob a luz de lanternas. Hal parecia endemoninhado e não poupou a ninguém, especialmente a si mesmo.
Hal e Ned Tyler observavam o movimento das marés na baía e inspecionavam a praia. O fundo arenoso era ideal para seu propósito e a maré alta subia até quatro metros e meio. Quando o mastro estava pronto para ser encaixado em sua base, arrastaram por cordas o Seraph para a praia na maré alta e o prenderam lá, com cabos amarrados às palmeiras à beira da água.
Quando a maré refluiu, o Seraph ficou no alto e em seco nas areias brancas. Usando os cabos, eles o inclinaram num ângulo de 30 graus. Tinham de trabalhar depressa então, pois em seis horas a maré subiria mais uma vez. Com um sistema de blocos e talhas, o velho mastro foi reimplantado em seu toco chanfrado e preso com longos pregos de ferro embebidos em piche fervente.
Hal aproveitou essa oportunidade para inspecionar o fundo do navio em busca de evidências da presença de teredos, que naquelas aguas mornas poderiam corroer o madeirame do fundo do navio. As vezes aquelas criaturas cresciam tanto quanto o braço de um homem e eram tão grossas como o seu polegar. Durante pesadas infestações, perfuravam seus buracos tão próximos um do outro que apenas restava uma película de madeira entre eles. Um navio assim contaminado Poderia ter o fundo arrancado em mares bravios. Hal ficou aliviado ao perceber que a camada de piche e panos que cobria o casco tinha detido não apenas os vermes, mas também impedido o crescimento de ervas daninhas, que tornaria lenta a passagem do Seraph pela água.
Nota de Rodapé:
Designação comum aos moluscos vermiformes, perfuradores de madeira, de ampla distribuição pelos mares do mundo.
Fim da Nota.
A nau estava tão limpa como ele poderia esperar, mas não havia tempo a desperdiçar e tratou de arrancar as ligeiras moitas de ervas e cracas.
Tão logo a maré subiu e tirou o navio da areia, puxaram o Seraph de volta à sua ancoragem, na água profunda da baía. A junta no mastro de proa não estava resistente o bastante para suportar a pressão das velas num vento forte, e os carpinteiros trabalharam para reforçá-la. Primeiro, fizeram chúmeas de madeira dura para atuar como talas sobre a junta. Quando estavam no lugar, fizeram a costura com corda de cânhamo encharcada e a apertaram com o cabrestante. Assim que a corda secasse, ficaria dura como ferro.
Hal inspecionou o trabalho terminado, e o mestre carpinteiro se vangloriou:
- Essa junta é mais forte que o mastro em si. Assim que os estais e as enxárcias forem instalados, não importa o que faça, não importa quantos panos monte em qualquer vendaval, jamais vai se quebrar no mesmo lugar de novo.
- Bom sujeito! - Hal o elogiou. - Agora, em prontidão para puxar para o alto suas novas vergas e a mastreação.
Assim que a tarefa foi cumprida e o Seraph rodou na âncora sob seu novo mastro de proa, com todos os seus panos colhidos nos envergues, prontos para serem soltos, Ned Tyler aproximou-se de Hal no convés de popa, com os demais oficiais do navio atrás de si, e fez o relato formal:
- Em boa ordem e em todos os aspectos pronto para o mar, capitão.
- Muito bem, sr Tyler.
Ned hesitou e então tomou coragem:
- Com sua licença, senhor, qual será nosso destino? Tem um curso ao qual eu deva aproar?
- Espero ter um curso para o senhor muito em breve - Hal lhe prometeu, muito sério. Ninguém o vira sorrir desde que tinham perdido Dorian. - Coloque os prisioneiros em fila no convés.
Os cativos árabes foram trazidos do castelo de proa, vestidos apenas de ceroulas e usando correntes nas pernas. Os elos das cadeias tiniam enquanto eles se arrastavam numa fila imunda, para a frente do convés, e ali ficaram de pé, a pestanejar sob o sol forte.
Hal ignorou-os e caminhou até a amurada do navio. Olhou para a água. Estava tão clara que ele podia ver os pepinos-do-mar se arrastando pelo fundo arenoso, e os cardumes de pequenos peixes que rodeavam o casco do Seraph. Então, abruptamente, uma forma escura destacou-se de sob o navio. Era tão longa e tão larga como um dos escaleres. Seu dorso era listrado com linhas sinuosas mais escuras e a cauda monstruosa se agitava num ritmo preguiçoso.
O Seraph permanecera por tanto tempo em sua atracação que a descarga de esgoto e restos da cozinha que lançara na baía atraíra os tubarões-tigre das águas profundas além do recife. Hal sentiu sua pele formigar ao observar o monstro fazer a volta com um abanar de sua cauda e desaparecer outra vez sob o navio. O tubarão-tigre era a criatura que assombrava os pesadelos de cada marinheiro naquelas águas tropicais.
Hal deixou a amurada e percorreu lentamente a fila de prisioneiros. Por fim, sua tristeza tinha um alvo no qual se focar. Usou de toda sua força de vontade para manter a raiva sob controle e sua expressão neutra ao examinar as faces dos corsários. Rachid era o último da fila. Um trapo imundo empapado de sangue cobria sua orelha ferida. Hal parou diante dele.
- Qual é a punição para a pirataria? - perguntou a Rachid baixinho, ainda mantendo a ira sob controle. - O que diz o Alcorão de assassinos e raptores? Fale-me da Shari'ah. Exponha-me as leis do islã.
Rachid não conseguiu sustentar-lhe o olhar, mas começou a tremer como um homem com febre, e o suor corria por suas faces para pingar de seu queixo. Descobrira quão inclemente era aquele demônio dos mares que o confrontava agora.
- Não diz o Profeta qual deve ser a sorte do assassino? Não entrega o matador nas mãos do pai da vítima? - perguntou Hal. - Não nos exorta a não ter misericórdia daquele que tem o sangue do inocente nas mãos?
Rachid caiu de joelhos no convés e tentou beijar os pés de Hal.
- Misericórdia, grande senhor! Coloco minha alma indigna em suas mãos.
Hal chutou-o para longe como se ele fosse um cão danado, e percorreu de novo a fila.
O Profeta nos diz que a punição por assassinato é a morte. Vocês são todos assassinos com mãos ensangüentadas nos atos de pirataria. Sou um servo do rei da Inglaterra, encarregado por Sua Majestade de livrar esses mares de lixo tal como vocês.
Hal voltou-se para Ned Tyler.
Sr. Tyler, mande pendurar uma corda na ponta da verga para cada um dos prisioneiros. - Ficou parado, mãos entrelaçadas nas costas, cabeça jogada para trás, a observar as cordas serem levadas para o alto e passadas pelas roldanas.
- Prontos para executar a punição - Ned informou por fim, quando os nós corrediços estavam preparados e um grupo de marinheiros se postava na extremidade de cada corda.
- Deixe aquele facínora por último. - Hal gesticulou em direção a Rachid, que ainda continuava de joelhos. - Pendure os outros.
Ainda com suas correntes, gritando e se debatendo, a rogar a Alá por misericórdia, os prisioneiros tiveram os nós passados por cima da cabeça e apertados em torno do pescoço. Então, os homens ao final da corda afastavam-se com elas, batendo os pés descalços no convés em uníssono e cantando como se estivessem içando a vela mestra. De três a quatro de uma vez, os árabes foram levados, aos gritos e chutes, para o alto da verga, as bocas escancaradas, o ar lhes faltando. Gradualmente, suas convulsões se aquietaram e eles penderam de lá como cachos de uma fruta grotesca, seus pescoços torcidos de um jeito estranho, suas línguas penduradas, roxas e inchadas, das bocas ofegantes.
Por fim, Rachid estava sozinho no convés. Hal voltou a ficar diante dele.
- Dei-lhes uma morte fácil - disse. - Mas você me privou de meu filho mais novo. Não será tão afortunado, a menos que possa me dizer o que eu preciso saber.
- Tudo que estiver em meu poder, efêndi - Rachid balbuciou. - Só precisa me perguntar.
- Quero saber onde posso encontrar al-Auf e meu filho.
- Isso eu não sei, efêndi. - Rachid balançou a cabeça com tamanha violência que suas lágrimas espirravam como água das costas de um spaniel molhado.
Hal estendeu a mão e ergueu-o de pé, torceu-lhe um braço entre as omoplatas e marchou com ele até a amurada do navio.
- Olhe para baixo -, murmurou no ouvido mutilado do homem. - Veja o que o espera.
Rachid deixou escapar um gemido agudo quando o tubarão-tigre deslizou pelas claras águas abaixo, a girar ligeiramente para poder ver cada detalhe da grotesca figura na proa. Olhou para eles com um único olho, igual ao de um porco.
- Onde posso encontrar al-Auf? Em que covil se esconde? Diga-me e morrerá rapidamente e irá para o seu Deus num só pedaço, não pelas mandíbulas daquela criatura imunda, lá embaixo.
- Eu não sei - soluçou Rachid. - Muitos poucos homens sabem onde al-Auf tem sua cidadela. Eu sou apenas um pobre pescador.
Aboli -, gritou Hal, e o enorme preto caminhou até o seu lado com a ponta do nó corrediço da última corda preparada na mão. - A cabeça primeiro! - Hal ordenou.
Aboli ajoelhou-se depressa e passou o nó pelas correntes que prendiam os tornozelos do árabe.
Içar! - ordenou aos marinheiros que seguravam a ponta da corda e Rachid foi levantado pelos pés, no ar, e ficou a balançar como um pêndulo sobre o costado do navio.
Onde está al-Auf? - Hal esbravejou. - Onde posso encontrar meu filho?
Não sei. Chamo a Deus por testemunha - Rachid berrou.
Abaixem! - Hal disse aos homens, e Rachid caiu aos solavancos em direção à superfície da água. - Alto! - ordenou quando a cabeça de Rachid estava apenas a poucos centímetros da água. O homem tentou virar a cabeça para olhar para Hal, que se debruçara sobre a amurada.
- Eu não sei. Juro por tudo o que é mais sagrado - ele gritou. - Não sei onde al-Auf mantém seu filho.
Hal fez um gesto para Aboli.
- Alimente a fera!
Aboli ergueu uma de uma fila de barricas de couro cheias de restos de comida que deixara prontas ao lado da amurada. Jogou o conteúdo pela borda, e o amontoado de cabeças de peixe, vísceras e peles bateu na superfície e espalhou-se ao redor. Os cardumes de pequenos peixes saltaram para abocanhar o banquete, e a água parecia ferver com aquela avidez frenética. Aboli jogou os restos de outra barrica pela amurada.
Dentro de um minuto, surgiu uma sombra escura e ameaçadora abaixo dos cardumes em frenesi. Então, um dorso largo e estriado elevou-se das profundezas com aterradora majestade. Os cardumes de peixes menores dispersaram-se e o animal gigantesco, uma besta bíblica, subiu à superfície e escancarou suas mandíbulas, que poderiam engolir o torso de um homem. Suas múltiplas fileiras de dentes ergueram-se eretas ao abocanhar os restos, tumultuando as águas, embora ainda bem abaixo de onde Rachid estava pendurado.
Você nunca passará pelos portões do Paraíso se o seu corpo for devorado por um peixe obsceno e impuro -, Hal berrou para ele.
Seu prisioneiro se contorcia inutilmente na ponta da linha. Sua voz era aguda e incoerente.
Não! Eu não sei. Piedade, poderoso senhor.
Abaixem! - Hal gesticulou aos homens com a corda, e eles deixaram Rachid cair até que sua cabeça e ombros estavam submersos. - Segurem-no lá. - Hal viu que o árabe esperneava e se debatia.
O grande tubarão percebeu o distúrbio e circulou em torno dele subindo lenta e cautelosamente das profundezas. Os movimentos de Rachid tornavam-se fracos e espasmódicos enquanto ele se afogava.
- Içar! - Hal sinalizou, e ergueram o homem acima da superfície.
Ficou ali pendurado, de cabeça para baixo. Tinha perdido a atadura ensangüentada que lhe atava a orelha, e seus longos cabelos ensopados dançavam na água. Lutava para respirar, torcendo-se e girando na ponta da corda.
- Diga-me! - berrou Hal. - Diga onde está meu filho mais novo. - Sentia-se uma estátua de gelo, desprovido de qualquer piedade ou compaixão.
O tubarão cheirou o sangue na atadura flutuante e subiu até ela. De novo, as mandíbulas enormes se abriram e ele sugou o pedaço de pano. Ao mergulhar, arqueando o dorso, a ponta de sua cauda rompeu a superfície e atingiu o homem pendurado com um pesado golpe. Rachid berrou de terror e balançou-se de um lado para outro na corda.
- Fale! - Hal o exortou. - Quero saber de meu filho.
- Não posso dizer o que não sei - Rachid esgoelou em resposta, e Hal acenou aos homens com a corda.
Eles o baixaram de volta à água até a cintura. No fundo, o tubarão girou com uma agilidade e velocidade que pareciam impossíveis para uma tal imensa criatura e avançou para a superfície, parecendo ainda maior ao se aproximar.
- Içar! - Hal berrou com energia, e os marujos ergueram Rachid no instante em que as grandes mandíbulas se fechavam, arrancando-o do alcance da fera por questão de apenas alguns centímetros.
- Não é tarde demais - disse Hal, alto o bastante para a voz chegar a Rachid em meio a seu terror e força declinante. - Diga-me e tudo se acabará depressa.
- Não sei onde possa encontrar al-Auf, mas sei de um homem que pode - Rachid respondeu, sua voz alquebrada e rouca de pavor.
- Dê-me o nome.
- Seu nome é Grey, efêndi em Zanzibar. Foi ele que nos contou do grande tesouro que carregavam no seu navio.
- Baixem! - Hal deu o sinal e, quando os homens baixaram Rachid, o tubarão-tigre apressou-se em encontrá-lo.
Dessa vez, Hal não tentou livrá-lo, pois o homem não tinha mais nenhum valor. Aplicou o castigo a Rachid sem remorso algum, e ficou a observar, imperturbável, a bocarra do tubarão fechar-se sobre a cabeça do pirata, engolindo-o pelos ombros.
O tubarão pendurava-se na corda, metade fora da água, flexionando e sacudindo a cauda de lado a lado, dobrando o corpo enorme como um canivete, os dentes serrilhados a trabalharem numa ação trituradora, cortando carne e ossos. Seu peso imenso e a violência de seus movimentos sacudiam os homens na outra ponta da corda, arrancando-os do chão e fazendo-os escorregar pelo convés.
Então, os dentes se encontraram e deceparam totalmente o tronco superior de Rachid. O tubarão caiu, deixando o cadáver trucidado a dançar e a se retorcer sobre a superfície, o sangue a esguichar das artérias rompidas e a tingir as águas.
Hal tirou a espada da cinta e, com um único golpe, cortou a corda. O corpo acéfalo mergulhou no mar e afundou lentamente, a girar sobre si mesmo nas sombrias cortinas de seu próprio sangue. O tubarão voltou e, como um cão que aceita um petisco, pegou o cadáver quase gentilmente em sua boca em meia-lua e sumiu com ele para a água profunda. Hal afastou-se da amurada do navio.
- A maré subirá em uma hora, sr. Tyler. - Olhou para os homens mortos pendurados na ponta da verga. - Livre o navio desse lixo. Jogue-os pelo costado. Navegaremos para Zanzibar com o fluxo da maré.
Contornaram o promontório de Ras ibn Khum com todo o velame içado nos mastros reais e se fizeram ao vento a pleno pano.
- Seu novo curso é a nordeste-norte, sr. Tyler - disse Hal. - Com este vento, estaremos de novo em Zanzibar antes do pôr-do-sol de amanhã.
Hal não queria dar aviso de sua chegada e, assim, durante a noite levou o navio para dentro do canal e fez o Seraph entrar no porto de Zanzibar durante a madrugada. Baixou suas bandeiras em cortesia ao forte e, no momento em que a âncora agarrou o fundo, ele ordenou que um escaler fosse lançado à água. Em seguida apressou-se em descer até sua cabina, apanhou as duas pistolas de cano duplo da mesa e as enfiou na cinta da espada.
Ao sair da cabina, Tom o esperava. Tinha o barrete na mão, uma adaga na cinta e botas nos pés normalmente descalços.
- Quero ir com o senhor, papai - disse. Hal hesitou, já que poderia haver luta em terra, mas Tom emendou depressa: - Partilhei o juramento com o senhor, papai.
- Vamos, então. - Hal correu para o convés. - Prepare-se para navegar de novo a qualquer instante - disse a Ned Tyler, e, em seguida, desceu para o escaler com Tom e uma dúzia de homens. No cais, deixou Alf Wilson e quatro marujos para tomarem conta do barco. - Fiquem longe da doca, mas prontos para se aproximar e nos recolher depressa - disse a Alf, e então se dirigiu a Aboli: - Leve-nos de volta à casa do cônsul. Rápido. Fiquem juntos, todos.
Seguiram pelas ruas estreitas em passos rápidos e firmes, em fila dupla, as armas em prontidão. Quando chegaram à porta da frente da casa de Grey, Hal fez um gesto a Aboli, que bateu nos painéis esculpidos com o cabo da lança que carregava. As pancadas reverberaram pela casa silenciosa. Depois de alguns momentos, ouviram passos arrastados a se aproximarem do outro lado da porta, e a tranca foi erguida. Uma velha escrava encarou o grupo de homens armados. Suas feições enrugadas vincaram-se de consternação, e ela tentou fechar a porta de novo. Aboli bloqueou o movimento com o ombro.
- Não tem nada a temer, velha mãe - Hal disse a ela, suavemente. - Onde está seu patrão?
- Não me atrevo a dizer - a mulher murmurou, mas seus olhos voaram para a larga escada de pedra que conduzia do pátio aos andares superiores da casa.
Tranque a porta de novo -, Hal ordenou a Aboli - e deixe dois homens a guardá-la.
Numa corrida, subiu a escada, dois degraus de cada vez, e chegou ao segundo piso. Parou ali e relanceou os olhos em torno do salão em que se encontrava. Era ricamente mobiliado com tapetes ornamentais e pesada mobília escura incrustada de marfim e madrepérola. Hal conhecia a disposição costumeira daquele tipo de mansão: o harém estaria no piso superior; onde se encontrava, ficavam as principais salas de estar, com a suíte do dono além dos biombos ricamente esculpidos em ébano e marfim, ao fundo. Hal esgueirou-se silenciosamente por entre os biombos para um salão menor. O chão tinha almofadas de seda espalhadas e, no centro, um narguilé repousava sobre uma mesa baixa, repleta de tigelas com restos de comida. A sala recendia a fumaça confinada de bhang, ao aroma forte de especiarias e ao odor almiscarado, peculiar da doença de Grey.
Hal atravessou outro conjunto de biombos e entrou no quarto adiante. Uma cama baixa ocupava o espaço pela metade. Ele parou à soleira, tomado de surpresa. Sobre a cama, havia uma confusão de corpos, membros brancos e morenos entrelaçados. Levou um longo momento para que Hal se desse conta daquilo que via. O cônsul Grey estava deitado de costas, seus membros inchados abertos, a imensa barriga distendida como se estivesse nos últimos estágios de gravidez, o peito coberto com a pele de um animal de pêlo grosso e encaracolado. Suas pernas totalmente deformadas eram cobertas de úlceras abertas e em carne viva, o estigma de sua doença. O quarto fedia tão fortemente de pus amarelo das feridas descobertas que Hal sentiu a náusea o invadir.
Duas escravas jovens estavam ajoelhadas sobre ele, uma acima de sua face, a outra sentada de pernas abertas sobre seu corpo. Uma delas ergueu a cabeça. Hal e a mulher se encararam, olhos nos olhos, até que ela soltou um grito de susto. As duas jovens se levantaram e fugiram do quarto, desaparecendo por outro biombo como um par de gazelas amedrontadas, deixando Grey afundado na cama.
Grey rolou para o lado e se ergueu sobre um cotovelo.
? O senhor! - Olhou para Hal. - Eu não esperava... - Interrompeu-se, e sua boca escancarou-se e se fechou sem nenhum outro som.
- Sei muito bem o que esperava, senhor - Hal lhe disse. - E peço desculpas por desapontá-lo.
- Não tem o direito de invadir minha casa. - Com as costas da mão, Grey enxugou a saliva das jovens de sua face. Então, a surpresa cedeu lugar à raiva, e ele ameaçou: - Tenho guardas armados. Vou chamá-los.
O homem fez menção de gritar, mas Hal colocou a ponta de sua espada "ontra aquela garganta empapuçada. Grey afundou como uma bexiga furada e tentou desviar-se do aço.
- Cubra-se. - Hal apanhou um robe de seda do chão ao lado da cama e jogou-o para ele. - A vista da sua carcaça me enoja.
Desajeitadamente, Grey vestiu o robe e pareceu recobrar um pouco de seu veneno e confiança.
- Não era minha intenção ameaçá-lo - sorriu, matreiro -, mas o senhor me assustou. Sua chegada foi num momento embaraçoso. - Piscou maliciosamente. - E eu esperava que a esta hora estivesse a meio caminho de Boa Esperança.
- De novo devo desculpar-me - disse Hal. - Não fui muito honesto com o senhor. Não sou um mercador nem um empregado da Companhia das índias Orientais. Meu verdadeiro nome é Henry Courtney. Sou um súdito de Sua Majestade, o rei Guilherme.
- Somos todos súditos do rei. - A entonação de Grey era reverente, e sua expressão, de santarrão. Rolou para a beira da cama e, com um grande esforço, ficou de pé.
Hal pousou a ponta de sua espada na barriga distendida de Grey e o empurrou levemente para trás.
- Por favor, não se faça de sonso - disse com polidez. - Quando digo que sou um súdito do rei, quero dizer que trago comigo a autoridade de Sua Majestade. Inclusive, dentre os poderes a mim conferidos, está o de julgamento sumário e execução de qualquer pessoa apanhada no ato de pirataria ou por ajudar e acobertar qualquer pessoa no crime de pirataria em alto-mar. - Hal tirou o pergaminho enrolado de sob sua capa. - Quer examinar?
- Tenho certeza de que é como disse - Grey falou num tom displicente e com presumida confiança, mas sua cor assumira uma tonalidade doentia de sépia. - Contudo não chego a ver como isso me afeta.
- Rogo para que me permita explicar. - Hal enfiou o pergaminho de volta ao bolso de sua capa. - Não há nenhuma carga de tesouro a bordo do meu navio. O senhor era a única pessoa que acreditava nisso.
- Eu lhe contei o fato como um teste da sua honestidade. Era uma isca ara o pirata conhecido como al-Auf.
Grey o encarou e o suor lhe escorreu num fio de gotas pelo queixo e pela testa.
Eu também lhe disse a data em que zarparia para Zanzibar e a rota que tomaria. Al-Auf não poderia ter ficado à espera do meu navio sem essa informação. Ele teve acesso aos dados sigilosos e precisos que só poderiam vir de uma única pessoa. - Hal tocou-lhe o peito ligeiramente com a ponta da espada. - Do senhor.
Isso não é verdade - Grey gaguejou, em frenesi. - Sou um súdito leal do rei, um homem honrado.
- Se forem necessárias mais evidências, um dos homens de al-Auf me deu o seu nome. O senhor está em conluio com o corsário. É culpado de ajudar e acobertar os inimigos do rei. Não precisamos mais prosseguir nesta discussão. Eu o condeno à morte por enforcamento. - Elevou a voz: - Aboli!
Aboli surgiu por trás do ombro de Hal, sua face tatuada tão ameaçadora que Grey rolou para o outro lado da cama e ficou a tremer e a ofegar como uma arraia fora da água.
- Prepare a corda para uma execução.
Aboli tinha a corda enrolada no ombro. Caminhou até a janela, que ia do chão ao teto, e abriu com um chute as venezianas esculpidas. Olhou para baixo, para o pátio onde a fonte espirrava e borbulhava, balançou o nó e o deixou cair e ficar pendurado até a metade da parede. Em seguida atou a ponta no centro da moldura superior da janela com um nó de laço.
- A queda é muito grande para um tal barril de gordura. Vai lhe decepar a cabeça como a de uma galinha - Aboli resmungou e balançou a cabeça. - Fará uma bagunça.
- Não poderemos ser excessivamente perfeitos e impecáveis quanto a isso - disse Hal. - Coloque-lhe o laço.
Grey soltou um grito agudo e se debateu na cama.
Em nome de Deus, Courtney... não pode fazer isso comigo!
Creio que posso. Vamos colocar minha teoria em teste.
Sou um inglês! Exijo um julgamento justo por um juiz inglês!
Acabou de ter um! - Hal exclamou: - Sr. Pescador, por favor, me ajude a preparar o prisioneiro para o cumprimento da pena!
- Sim, capitão. - Daniel Grande entrou no quarto seguido por seus homens, e eles rodearam o cônsul na cama.
- Sou um homem doente - balbuciou Grey.
- Temos a cura perfeita para seja o que for que o aflija - disse Daniel Grande calmamente.
Rolou Grey de barriga para baixo e, com uma corda fina, atou-lhe os braços atrás das costas.
Seus homens ergueram o pesado corpo do cônsul da cama e o arrastaram para a janela. Aboli tinha o laço pronto e enfiou-o pela cabeça do condenado. Voltaram a face de Grey de novo para Hal. Tiveram que apoiá-lo, pois suas pernas terrivelmente inchadas não conseguiam suportar-lhe o peso.
- Ficará agradecido em saber que seu aliado, Musallim bin-Jangiri, também conhecido como al-Auf, safou-se da armadilha que eu armei para ele. - Hal sentou-se na ponta da cama. - Desapareceu pelo oceano. Devemos presumir que tenha voltado ao seu covil para lamber as feridas que lhe infligi.
- Nada sei a respeito disso. - Grey pendurou-se nos braços de seus captores, a tremer horrivelmente de pavor. - Deve acreditar em mim, sir Henry.
Hal continuou como se o homem não tivesse falado.
- Meu problema se vê exacerbado pela captura, por al-Auf, de meu filho mais novo. Estou certo de que apreciará saber que farei qualquer coisa para resgatar meu menino, e creio que o senhor tem ciência de onde eu posso encontrá-lo. - Estendeu o braço e colocou a ponta da espada na garganta de Grey. - Deixem que fique de pé sozinho - disse aos homens que o sustentavam. Eles deram um passo para o lado.
- Eu lhe imploro, Sir Henry! - Grey desequilibrou-se em direção à janela aberta. - Sou um homem velho.
- E um homem mau - concordou Hal, e pressionou a espada com um pouco mais de força contra a garganta do cônsul. Uma rutilante gota de sangue brotou da pele fendida e manchou a ponta da lâmina cinzelada de Toledo. - Onde posso encontrar al-Auf? E meu filho?
Um ruído balbuciante, intermitente, em esguichos, veio de dentro do robe de Grey, e suas fezes líquidas, escuras como o suco do tabaco, escorreram por suas pernas adiposas para se espalhar no chão entre seus pés. O fedor era ácido e nauseante e invadiu o quartinho abafado, mas a expressão de Hal não se alterou.
Onde posso encontrar meu filho? - repetiu.
- No forte Flor do Mar! - esganiçou Grey. - A antiga fortificação portuguesa na ilha. É lá o esconderijo camuflado de al-Auf. Devo declarar, senhor, que sua capacidade em prestar esta informação confirma sua culpa, além de qualquer sombra de dúvida.
Lentamente, Hal aumentou a pressão do aço na garganta de Grey. Este tentou resistir arqueando as costas, enquanto seus pés escorregavam em seus próprios excrementos até que os calcanhares estavam sobre o beiral da janela. Equilibrou-se a tremer ali, por um momento, e então, com um berro desesperado, caiu de costas. A corda assobiou e, em seguida, ricocheteou com um tranco quando o peso total de Grey esticou-a por completo sobre o desvão.
Hal conduziu seu grupo pelas escadas até o pátio. Lá, parou para olhar o corpo balofo que girava lentamente na ponta da corda. Grey estava suspenso sobre o tanque de peixes. Do bolso de sua capa, Hal tirou o pergaminho que preparara na noite anterior e estendeu-o a Aboli.
- Pendure isto em torno do pescoço do sentenciado.
Aboli saltou para o parapeito da fonte e estendeu a mão para enfiar o cordão de barbante em cima da cabeça de Grey. O pergaminho pendeu sobre o peito do cadáver. A proclamação de Hal estava escrita tanto em inglês como em árabe.
Tendo sido julgado e considerado culpado de cumplicidade com o corsário conhecido como al-Auf em atos de pirataria em alto-mar, o prisioneiro William Grey foi sentenciado à morte por enforcamento. A sentença foi devidamente levada a efeito por mim, Henry Courtney, sob o poder a mim investido por delegação de Sua Majestade, o rei Guilherme III.
Tom postou-se ao lado de seu pai e leu em voz alta o texto em árabe da proclamação. Quando chegou ao fim, disse:
- Está assinado El Tazar. Isso significa O Barracuda. Por quê?
- É o nome que me foi dado pelos muçulmanos quando viajei pela primeira vez por estas águas.
Hal baixou os olhos para o filho. Mais uma vez, sentiu uma ponta de consternação que alguém tão jovem como Tom fosse testemunha de um procedimento tão repugnante. Então se recordou de que Tom estava com dezessete anos e que com espada e canhão já havia matado mais de um homem. Não era uma criança, e fora preparado por vocação e treinamento para um trabalho assim desagradável.
- Nossa tarefa aqui está concluída - disse Hal, baixinho.
volta ao navio.
Virou-se para a alta porta esculpida, e Daniel Grande deu a ordem aos homens que montavam guarda ali. Eles a abriram.
A velha bruxa que haviam encontrado na chegada e lhes dera acesso à casa estava parada agora no limiar da entrada. A rua, às suas costas, fervilhava de guardas. Havia pelo menos uns doze armados com fuzis e cimitarras, um bando de rufiões medonhos que avançou pela porta aberta.
- Vejam o que os infiéis fizeram ao nosso senhor! - a velha ululou, quando viu o corpo de Grey pendurado pela corda. - Assassinos! - Abriu a boca desdentada e soltou o grito alto, lamentoso, que as mulheres árabes usam para incitar seus homens a uma ira assassina.
- Allah akbar! - gritou o líder dos guardas. - Deus é grande! - Apoiou o fuzil de cano longo em seu ombro e disparou contra o grupo de marinheiros ingleses. A bala atingiu um dos marujos de Hal em plena face, arrancou-lhe a maior parte dos dentes, destroçou sua mandíbula e penetrou fundo em seu crânio. O homem caiu sem um grito, e Hal adiantou-se com uma das pistolas de cano duplo na mão esquerda.
O primeiro tiro atingiu o líder da guarda no olho direito. Seu globo ocular explodiu, deixando um buraco na órbita, e o fluido aquoso escorreu-lhe pela face. Quando caiu, Hal disparou a segunda bala no homem que surgiu atrás e acertou-o bem no centro da testa. O guarda morto caiu de costas contra os companheiros, desequilibrando um deles.
- A eles, camaradas! - Hal berrou, e seus marujos avançaram pela soleira da porta numa sólida falange.
- Seraph!
Soltavam o brado de guerra ao caírem sobre o grupo ruidoso de figuras com túnicas, antes que pudessem reagir. Nenhum daqueles inimigos foi capaz de erguer os longos mosquetes no entrechoque de corpos, e todos recuaram diante das lâminas brilhantes das adagas. Mais três caíram quando o grupo de Hal já se encontrava na rua onde teriam mais espaço para duelar.
Hal tinha a segunda pistola não disparada na mão esquerda, mas reservou os tiros e, em seu lugar, usou a espada para abater outro árabe que lhe bloqueava o caminho. Correu o olhar ao redor, para Tom, e avistou-o a um passo atrás de si. Naquele breve relance, percebeu que a espada de Tom era mantida erguida, sua ponta já manchada de san gue. Ele também fizera sua vítima.
- Bom rapaz - resmungou Hal. - Fique perto.
Avançou contra os árabes restantes. Eles tinham visto a sorte de seus companheiros na linha de frente. Agora, eram confrontados pelas ferozes caras brancas que atacavam num só bloco. Recuaram e fugiram pela ruela.
Deixe-os ir! - Hal conteve Tom com dureza. - De volta ao escaler.
E o velho Bobby? - perguntou Daniel Grande, e indicou o marujo morto atrás deles. Estava rodeado pelos cadáveres dos árabes que haviam sido abatidos a golpes de espada.
Tragam-no - ordenou Hal. Era péssimo para os homens ver um de seus companheiros abandonado num campo de batalha. Deviam saber que, mortos ou feridos, jamais seriam desertados. - Tão logo estejamos no mar outra vez, nós lhe daremos um sepultamento decente.
Daniel inclinou-se e Aboli o ajudou a levar o corpo sobre o ombro. Em seguida, adagas desembainhadas nas mãos, os dois homenzarrões conduziram o grupo numa corrida pelas ruas estreitas em direção ao cais. De manhã tão cedo, havia poucas pessoas por ali, e aquelas que os viram desapareceram depressa pelas ruelas e soleiras das portas. O grupo chegou ao porto sem confrontos e Alf Wilson trouxe o escaler para apanhá-los.
Ao remarem de volta para onde o Seraph repousava, umas poucas almas mais corajosas saíram do esconderijo para disparar seus mosquetes e gritar insultos ou lançar desafios pelas águas do porto, mas a distância já era grande e nenhuma das balas chegou perto do escaler. Ned Tyler tinha o cabo da âncora firmado e uma dúzia de homens a postos no cabrestante. Tão logo escalaram a escada e o escaler foi içado da água, ele deu a ordem para recolher âncora e levantar velas.
Assim que o Seraph fez a volta e alinhou-se à entrada do porto, a longa bandeira verde do sultão elevou-se no topo do mastro, na torre oeste do forte, e a bateria de canhões da fortificação abriu fogo.
Mesmo do convés, podiam ver claramente os artilheiros vestidos de branco a prepararem freneticamente suas armas. Servindo-se da luneta, Hal pôde perceber o pânico e a confusão entre eles. Assim que cada um dos enormes canhões era recarregado e disparado de novo, nenhuma tentativa era feita para corrigir sua mira. Enquanto observava, um dos atiradores mais afoitos ateou fogo à mecha da poderosa arma enquanto sua equipe ainda estava por detrás, soltando os calços para empurrar a carreta. O recuo arrastou a carreta sobre eles, estourando ossos e amputando membros. Hal podia ouvir os gritos agonizantes dos atiradores mutilados, mesmo através da distância de duas amarras completas que os separavam.
Avistou a enorme bala de pedra em vôo: partira da fortificação e pareceu parar, como uma minúscula partícula negra, no zénite de sua trajetória, e então declinou em direção a eles. Por um momento, Hal julgou que ela poderia atingir o navio, mas em vez disso mergulhou no mar a alguma distância do costado e ergueu uma torrente de borrifos de água que caiu pela popa e espirrou nas botas de Hal até os joelhos.
- Devemos mostrar reconhecimento por uma despedida tão calorosa. - Hal olhou para Ned Tyler, sem um sorriso. - Recolha as bandeiras em cortesia ao sultão, sr. Tyler. Em seguida conduza o navio para rumo sul.
- Não está assinalado - Hal resmungou ao se debruçar sobre a carta náutica aberta sobre sua mesa -, ainda que eu possa jurar ter ouvido o nome antes. Flor do Mar. Com um tal nome, como Grey disse, deve ser uma das antigas possessões portuguesas, é claro. - Já tinha perguntado aos oficiais e os mandara verificar junto aos homens, mas ninguém sabia.
Empilhados ao lado do mapa, havia oito pesados livros encadernados em couro preto de vaca. Aqueles volumes contavam entre as posses mais estimadas de Hal. Escolheu um da pilha, abriu as páginas grossas e quebradiças e correu os olhos pela bela caligrafia floreada e desenhos a bico-de-pena que cobriam quase a folha toda dos dois lados. A letra era tão familiar que parecia parte de sua própria existência. Era de seu pai, sir Francis Courtney. Aqueles livros de registro, diários de bordo, faziam parte do legado que Hal recebera dele. Os oito volumes cobriam trinta anos das viagens e perambulações de seu pai pelos oceanos do globo, um acúmulo de conhecimento e experiência de uma vida inteira, de tal valor intrínseco e sentimental que, para Hal, estavam além de qualquer valor em ouro.
Quase com reverência, folheou as páginas na busca do nome que lera em algum lugar ali, tantos anos antes. A pesquisa era intermitente, várias vezes interrompida por uma digressão a alguma observação essencial, ou um cativante desenho de um porto estrangeiro, uma exótica paragem, um retrato de um homem, um pássaro ou um peixe, que atraíra os olhos atentos de seu pai e fora fielmente registrado por sua hábil pena.
Malsucedido em sua pesquisa inicial, pôs o primeiro volume de lado e escolheu outro, em cuja capa estava marcado: Oceano das índias, Anni Domini 1632 a 1641. A busca demorou por tanto tempo que ele teve de reabastecer a lamparina de óleo. Então, de súbito, o nome saltou da página para seus olhos vermelhos e ardentes. Soltou um suspiro fundo de alívio. Ilha Flor do Mar: era essa a anotação sob o desenho a bico-de-pena de uma vista de terra cwja representação era claramente e uma ilha. A rosa-dos-ventos e uma escala de distâncias estavam assinaladas abaixo. Mostravam uma extensão de ponta a ponta da massa de terra, do sul ao norte, estimada em cinco milhas marítimas. Abaixo do nome, estava escrita a posição: 11 graus e 25 minutos de latitude sul 47 graus e 32 minutos de longitude leste, e, em letras miúdas, conhecida pelos muçulmanos como Daar Al Shaitan ou o Porto do Demônio.
Rapidamente, Hal consultou de novo a sua carta náutica. Com régua e compasso, utilizou as coordenadas que seu pai havia assinalado Mesmo que julgasse a estimativa de longitude de sir Francis com reservas, descobriu que aquelas medidas lhe davam uma posição de cerca de 150 milhas marítimas ao norte das ilhas Glorieuses. Na carta náutica de Hal, entretanto, nada estava assinalado naquela localização, exceto o mar aberto. Voltou a consultar o registro de seu pai. Sir Francis escrevera uma página inteira com a descrição. Hal começou a ler e se viu de imediato fascinado.
A existência desta ilha foi pela primeira vez relatada por Afonso d'Albuquerque, em 1508, quando se preparava para capturar as cidades árabes ao longo da Costa da Febre, a leste do continente africano. Daquele porto fortificado, ele desferiu seus ataques sobre Zanzibar e Dar es Salaam.
Hal fez um gesto de concordância. Sabia que Albuquerque era conhecido por seus pares como o Grande, e como al-Shaitan, o Demônio, pelos árabes, pelo sucesso de suas incursões navais no oceano Índico. Ele, mais que Tristão da Cunha, fora responsável por assegurar a preeminência do poder e influências portugueses na Costa da Febre e no golfo Pérsico. Seus navios foram os primeiros de qualquer potência européia a penetrar nas fortalezas árabes do mar Vermelho. Hal voltou ao escrito de seu pai.
Albuquerque construiu um forte considerável no ponto norte da ilha, utilizando blocos de coral para a construção e mão-de-obra de prisioneiros muçulmanos para o trabalho pesado. Armou o forte com os canhões capturados durante sua conquista de Ormuz e Aden. Deu à ilha o nome de seu próprio navio capitânia, Flor do Mar. Alguns anos mais tarde, em 1508, esse mesmo navio naufragou nos recifes de coral ao largo da costa de Goa, e Albuquerque perdeu o imenso tesouro pessoal que acumulara durante suas campanhas naqueles oceanos. Após o sucesso de seus ataques ao continente africano, Albuquerque abandonou sua base na ilha e transferiu sua bandeira para Zanzibar. O forte em Flor do Mar caiu em abandono.
Aportei aqui em 2 de novembro de 1637. A ilha tem cinco milhas marítimas e um quarto de extensão e meia milha marítima de largura em seu ponto mais largo. O lado leste é exposto à força das vagas do oceano e aos ventos dominantes, e não oferece ancoragem segura. A baía na extremidade noroeste é bem protegida e guardada por um recife de coral O fundo é de areia e conchas e proporciona excelente fixação. Há uma passagem através do recife que corre diretamente sob as muralhas do forte. Assim, quando a artilharia era manejada pelos portugueses, qualquer nau a entrar na baía poderia ser colocada sob fogo pesado pelas baterias da guarnição.
No meio da página, o pai de Hal fizera um mapa detalhado da baía e do forte, mostrando a passagem através do recife e vários ângulos de rumo e profundidade.
- Obrigado, papai - murmurou Hal com emoção, e prosseguiu com seu estudo do texto.
Desembarquei em terra e constatei que as muralhas do forte haviam suportado bem a passagem de quase um século e meio. Foram erigidas de forma robusta e assim se apresentavam inacessíveis a todos os equipamentos de cerco, a não ser aos modernos. Os canhões de bronze ainda estão situados em seus balestreiros, mas o metal dos canos, muito corroído pelos ares salinos. Os reservatórios e cisternas para a coleta de água da chuva permaneciam conservados, e neles pudemos reabastecer nossos barris. Havia uma vasta colônia de aves marinhas aninhadas na ponta sul da ilha. Durante as horas do dia, multidões dessas aves formavam um dossel negro sobre a ilha, que podia ser divisado de muitas milhas ao largo no mar. O coro de suas vozes combinadas era de tal volume a fazer ofensa aos ouvidos e aturdir os sentidos. A carne desses galiformes era gorda e de sabor fortemente acentuado de peixe, porém, quando salgada e defumada, tornava-se palatável. Despachei uma equipe à praia para recolher seus ovos. Retornaram com dez grandes cestas, e todos se regalaram com eles. Havia, além disso, muitos peixes e ostras na baía, e nos demoramos dez dias e empregamos todas as mãos na captura e defumação dessa fartura para encher os porões do navio. Içamos velas de novo em 12 de novembro, rumo a Bab al Mandeb, no mar Vermelho.
Hal fechou o diário de bordo com a mesma reverência que se fosse a Bíblia da família - o que, de certa forma, era -, e voltou sua atenção para a carta náutica. Marcou com cuidado a posição da ilha que seu pai anotara e, em seguida, regulou o curso e a posição de sua presente localização, na extremidade sul do canal de Zanzibar.
Quando voltou ao convés, o sol estava apenas um dedo acima do horizonte, tão envolto no arabesco púrpura do mar que Hal podia fitar diretamente, a olho nu, sua auréola de flamejante vermelho. Com a chegada do crepúsculo, a monção amainara, mas ainda tinha força suficiente para enfunar cada vela, tesa e perolada como os seios de uma ama-de-leite.
- Sr. Tyler, colha o vento tão de perto quanto a nau possa velejar em seu curso - ordenou, muito sério. - A todo pano.
- A todo pano, sim, capitão. - Ned tocou seu quepe.
Hal deixou-o e afastou-se, olhando para as vergas do mastro de proa ao passar debaixo delas. Tom ainda estava lá, como estivera desde que haviam saído do porto em Zanzibar. Hal solidarizava-se com ele, mas não poderia juntar-se à sua vigília. Também queria ficar a sós.
Ao chegar à roda de proa, parou na base do gurupés e segurou-se no estai do traquete, espiando adiante, para o mar sombrio que transmutava de cor para tonalidades de plumas sobrepostas. A intervalos, o Seraph fendia a crista de uma onda maior e a jogava sobre a proa, e borrifos espirravam no rosto de Hal. Ele não fez menção de enxugá-los, mas os deixou escorrer por seu queixo até o peito.
A ré, ao longe, a África desaparecera a distância e ao nebuloso crepúsculo. Não havia sinal de terra adiante. O oceano escuro estendia-se, ilimitado e imenso. Qual a esperança em encontrar o meu garotinho em toda essa infinita extensão?, pensou.
- Ainda assim, eu o farei, nem que me tome o resto da minha vida - murmurou. - E sem piedade para quem quer que se oponha em meu caminho.
O caíque era um barco de escravos, empregado no transporte de sua carga de angústia desde o continente, através do canal, para os mercados de Zanzibar. Cheirava a excreções do corpo e agonia do espírito humano. Era um miasma terrível que impregnava a pequena nau e permeava o cabelo e as roupas de todos a bordo dela. Entrava pelos pulmões de Dorian a cada respiração, e parecia lhe corroer a própria alma.
Ele estava acorrentado no convés inferior. Os grampos de ferro penetravam pela estrutura principal de madeira pesada e as cabeças eram cravadas. As cadeias de suas pernas eram forjadas à mão e a corrente passava pelo olhai de seus grilhões. Havia espaço para uma centena de cativos na longa prisão baixa, mas Dorian se encontrava sozinho. Agachou-se sob as vigas da estrutura do caíque, tentando manter os pés longe do barulhento madeirame de bojo que deslizava para trás e para a frente a cada arfada e jogo do casco estreito, cheio de escamas de peixe e de pedaços encharcados de polpa de coco seco - a carga alternativa do caíque.
A cada hora ou pouco mais, o alçapão acima de sua cabeça era aberto e um dos árabes da tripulação o espiava com ar ansioso. Seu carcereiro lhe passara, vez ou outra, uma tigela de arroz e peixe cozido ou um coco verde cujo topo fora cortado. A água do coco era doce e levemente efervescente, e Dorian a bebera ávido, embora rejeitasse o cozido feito de peixe seco ao sol, meio podre.
A parte seus grilhões e o terrível confinamento da cabina, seus captores árabes o tinham tratado com absoluta consideração. Mais que isso, estavam evidentemente preocupados com seu bem-estar e procuravam certificar-se de que não ficasse nem com fome nem com sede.
Por quatro vezes nos últimos dois dias, o capitão do caíque descera o convés de escravos e se postara diante dele, a encará-lo atentamente, com uma expressão difícil de decifrar. Era um homem alto com pele muito escura, marcada de pústulas de varíola, e nariz adunco. Fora ele quem puxara Dorian do mar e apertara a adaga em sua garganta. Em sua Primeira visita, tentara interrogar o menino.
- Quem é você? De onde vem? É um crente verdadeiro? O que estava fazendo num navio infiel?
O sotaque do capitão era estranho e sua pronúncia de algumas palavras muito diferente da maneira ensinada por Alf Wilson, porém ele pudera compreender o homem sem dificuldade e...
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