Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MORTALHA PARA UMA ENFERMEIRA
Aula Prática de Morte
Na manhã do primeiro assassínio, Miss Muriel Beale, inspetora de escolas de enfermagem pertencente ao Conselho Geral de Enfermagem, agitou-se, despertando pouco após as seis horas para a lenta percepção de que era segunda-feira, 12 de Janeiro, dia da inspeção ao Hospital John Carpendar. Tinha já registrado em parte os primeiros sons familiares de um novo dia: o despertador de Angela silenciado quase antes de ela se aperceber de que tocara; a própria Angela caminhando com passos abafados e fungadelas pelo apartamento como um animal desajeitado mas benévolo; os agradáveis tinidos antecipatórios do chá matinal a ser feito. Obrigou as pálpebras a descerrarem-se, resistindo a uma insidiosa ânsia de se contorcer no calor envolvente da cama e deixar o espírito voltar a mergulhar na abençoada inconsciência. Por que carga de água teria sido levada a dizer à superintendente Taylor que chegaria pouco depois das nove da manhã, a tempo de assistir à primeira aula das alunas do terceiro ano? Era disparatado, desnecessariamente cedo. O hospital ficava em Heatheringfield, na fronteira entre o Sussex e o Hampshire, um trajeto de cerca de noventa quilômetros, parte dos quais teria de ser feita antes do nascer do dia. E estava a chover, como tinha chovido com monótona insistência desde a semana anterior. Ouvia o débil sussurrar de pneus de automóvel na Cromwell Road e de quando em vez o chuviscar nas vidraças. Graças a Deus tinha-se dado ao trabalho de consultar o mapa de Heatheringfield para verificar exatamente onde se situava o hospital. Uma vila de feira em crescimento, particularmente quando se não estava familiarizado com ela, podia tornar-se um moroso labirinto para o condutor, no emaranhado do trânsito das pessoas que trabalhavam fora numa chuvosa manhã de segunda-feira. Sentiu instintivamente que ia ser um dia difícil e espreguiçou-se sob a roupa como que a ganhar forças para o enfrentar. Alongando os dedos dormentes, quase saboreou a penetrante dor momentânea das articulações retesadas. Havia ali um vestígio de artrite. Bem, era de esperar. No fim de contas, tinha quarenta e nove anos. Já era tempo de começar a levar a vida com mais vagar. Por que carga de água pensara poder chegar a Heatheringfield antes das nove e meia?
A porta abriu-se, deixando entrar uma réstia de luz pela passagem. Miss Angela Burrows afastou os cortinados para o lado e espreitou o negro céu de Janeiro e a janela salpicada de pingos de chuva, voltando a corrê-los.
- Está a chover - disse, com o lúgubre deleite de quem profetizou chuva e não pode ser responsabilizado pelo não atendimento do seu aviso. Miss Beale soergueu-se no cotovelo, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e aguardou. Daí a poucos segundos a amiga regressou, pousando o tabuleiro da manhã. O pano de tabuleiro era de rijo linho bordado, as chávenas às flores estavam dispostas com as asas alinhadas, os quatro biscoitos no prato a condizer encontravam-se colocados com rigor, dois de cada qualidade, e o bule exalava um delicado odor de chá-da-índia acabado de fazer. As duas mulheres possuíam a paixão do conforto e tinham o vício da limpeza e da arrumação. Os padrões que outrora tinham estabelecido na enfermaria particular do seu hospital escolar eram aplicados ao seu próprio conforto, de tal forma que a vida no apartamento não deixava de assemelhar-se à de uma clínica dispendiosa e tolerante.
Miss Beale compartilhava o apartamento com a amiga desde que uma e outra tinham saído da mesma escola de enfermagem havia vinte e cinco anos. Miss Angela Burrows era monitora-chefe num hospital escolar de Londres. Miss Beale considerava-a o paradigma das professoras de enfermagem e, em todas as suas inspeções, subconscientemente, aferia a sua bitola pelas freqüentes afirmações da amiga acerca dos princípios do correto ensino da enfermagem. Miss Burrows, por seu turno, perguntava a si própria como se arranjaria o Conselho Geral de Enfermagem quando Miss Beale atingisse a reforma. Os casamentos mais felizes assentam em reconfortantes ilusões deste teor, e a relação entre Miss Beale e Miss Burrows, muito diferente mas essencialmente inocente, tinha alicerces similares. Afora a capacidade de uma e outra se admirarem mútua mas tacitamente, eram muito diferentes. Miss Burrows era forte, atarracada e imponente, ocultando uma vulnerável sensibilidade sob uma aparência de rude senso comum. Miss Beale era miúda e semelhante a um pássaro, rigorosa na linguagem e nos movimentos e ameaçada por uma antiquada delicadeza que por vezes a colocava próximo de ser tida por ridícula. Até os hábitos psicológicos de uma e outra eram diferentes. A pesada Miss Burrows acordava instantaneamente para a vida ao primeiro som do despertador, andava positivamente cheia de energia até à hora do chá e a seguir caía numa sonolenta letargia à medida que a tarde avançava. Miss Beale abria todos os dias com relutância as pálpebras coladas, tinha de fazer um esforço para entrar em atividade logo de manhã e, com o correr do dia, ia ficando cada vez mais vivamente alegre. Tinham logrado conciliar mesmo essa incompatibilidade. Miss Burrows sentia prazer em fazer o chá da manhã e Miss Beale lavava a louça depois do jantar e preparava o cacau da noite.
Miss Burrows encheu ambas as chávenas de chá, deixou cair dois cubos de açúcar na chávena da amiga e levou a sua para a cadeira junto à janela. O treino antigo impedia Miss Burrows de se sentar na cama.
- Tens de sair cedo - disse. - O melhor é pôr-te o banho a correr. A que horas começa?
Miss Beale murmurou debilmente que dissera à superintendente que chegaria o mais cedo que pudesse depois das nove horas. O chá estava abençoadamente doce e vivificante. A promessa de chegar tão cedo fora um erro, mas começou a pensar que no fim de contas talvez conseguisse chegar às nove e um quarto.
- É a Mary Taylor, não é? Tem uma fama notável, atendendo a que não passa de uma enfermeira superintendente de província. É espantoso como nunca veio para Londres. Nem sequer concorreu ao nosso lugar quando Miss Montrose se reformou.
Miss Beale murmurou qualquer coisa incompreensível que, por já terem tido aquela conversa antes, a amiga interpretou corretamente como um protesto segundo o qual Londres não era a opção de toda a gente e as pessoas se convenciam com demasiada facilidade de que nada de notável surgia alguma vez na província.
- Lá isso é verdade, não há dúvida - concedeu a amiga. - E o John Carpendar fica numa região do mundo muito agradável. Gosto daquela zona campestre na fronteira do Hampshire. É uma pena não ires lá no Verão. Mesmo assim, não é a mesma coisa do que ser enfermeira superintendente de um hospital escolar importante. com a sua competência, poderia facilmente sê-lo; podia ter-se tornado uma das superintendentes gerais.
No seu tempo de alunas de enfermagem, tanto ela como Miss Beale tinham padecido às mãos de uma das superintendentes gerais, mas nunca deixavam de lamentar o desaparecimento daquela aterrorizadora espécie.
- A propósito, o melhor é partires cedinho. A estrada está em reparação até se chegar quase ao desvio para Guildford.
Miss Beale não perguntou como sabia ela que a estrada estava em reparação. Tratava-se do gênero de coisas que Miss Burrows invariavelmente sabia mesmo. A voz cordial prosseguiu:
- Vi a Hilda Rolfe, a monitora-chefe de lá, esta semana, na Biblioteca de Westminster. Que mulher extraordinária! Inteligente, sem dúvida, e com fama de ser uma professora de primeira categoria, mas estou em crer que aterroriza as alunas.
Miss Burrows aterrorizava freqüentemente as suas próprias alunas, mas ficaria espantada se lho dissessem. Miss Beale perguntou:
- Ela disse alguma coisa acerca da inspeção?
- Referiu-se a ela, mais nada. Ia simplesmente devolver um livro e estava com pressa, de modo que não falamos muito tempo. Ao que parece, têm um grande surto de gripe na escola e metade do pessoal está retido em casa.
Miss Beale achou estranho que a monitora-chefe conseguisse arranjar tempo para ir a Londres devolver um livro à biblioteca, sendo os problemas com pessoal assim tão complicados, mas não o disse. Antes do pequeno-almoço, Miss Beale reservava as energias mais para pensar do que para falar. Miss Burrows contornou a cama para voltar a encher as chávenas.
- Bom, com este tempo e metade do pessoal docente em casa com gripe - disse -, acho que te podes preparar para um dia bastante aborrecido.
Conforme as amigas viriam a dizer uma à outra durante anos, com a cômoda predileção por reafirmar o óbvio que constitui um dos prazeres da longa intimidade, dificilmente podia estar mais enganada. Miss Beale, não esperando daquele dia nada pior do que uma viagem enfadonha, uma inspeção penosa e uma possível contenda com os membros da Comissão Pedagógica de Enfermagem do hospital que se dessem ao trabalho de estar presentes, pôs o roupão pelos ombros, enfiou os pés nas chinelas de quarto e afastou-se, arrastando os pés, até à casa de banho. Tinha dado os primeiros passos para presenciar um assassínio.
Apesar da chuva, a viagem foi menos difícil do que Miss Beale receara. Não demorou muito e entrou em Heatheringfield pouco antes das nove horas, a tempo de apanhar a última vaga do movimento matinal das pessoas para o trabalho. A larga rua principal jorgiana estava obstruída de veículos. As mulheres conduziam os maridos que trabalhavam fora à estação ou os filhos à escola, caminhões cobertos descarregavam mercadorias e autocarros largavam e embarcavam passageiros. Nas três séries de semáforos os peões jorravam, atravessando a rua, de guarda-chuvas em riste contra o leve chuviscar. Os jovens tinham o aspecto janota e superfardado das crianças de colégios particulares; os homens, na sua maioria, tinham chapéu de coco e pasta; as mulheres vestiam com simplicidade, de acordo com aquele agradável compromisso entre a elegância citadina e o à-vontade da província, típico do seu gênero. Vigiando os semáforos, a passagem de peões e o letreiro que indicava a direcção do hospital, Miss Beale teve apenas uma fugaz oportunidade de reparar na elegante câmara municipal oitocentista, na fiada de casas de fachada de madeira cuidadosamente conservadas e no esplêndido pináculo com florões da Igreja da Santíssima Trindade, mas reteve a impressão de uma comunidade próspera que cuidava de preservar o seu patrimônio arquitetônico apesar de a correnteza de modernas lojas de cadeias comerciais no extremo da rua principal sugerir que esse cuidado podia ter começado trinta anos antes.
Mas lá estava finalmente o letreiro. O caminho para o Hospital John Carpendar subia a seguir à rua principal por entre uma ampla avenida arborizada. À esquerda ficava um alto muro de pedra que delimitava os terrenos do hospital.
Miss Beale fizera o seu trabalho de casa. A pasta, de tampa abaulada, sobre o banco de trás do automóvel, continha um apontamento completo sobre a história do hospital, juntamente com uma cópia do último relatório da inspetora do Conselho Geral de Enfermagem e as observações da Comissão de Gestão do hospital quanto à medida em que fora possível dar cumprimento às otimistas recomendações da inspetora. Conforme era do seu conhecimento, através de pesquisas a que procedera, o hospital tinha uma longa história. Fora fundado em 1791 por um rico comerciante que nascera na vila, abandonando-a na penúria da juventude em busca de fortuna em Londres e regressado ao reformar-se para gozar o tratamento condescendente que dispensava aos seus conterrâneos e à impressão que neles provocava. Podia ter comprado a fama e assegurado a salvação amparando as viúvas e órfãos ou reconstruindo a igreja. Mas a era da ciência e da razão sucedia à da fé e estava na moda doar um hospital destinado aos doentes pobres. E assim, com a quase obrigatória reunião num café da vila, nascera o Hospital John Carpendar. O edifício primitivo, de certo interesse arquitetônico, tinha sido substituído havia muito, primeiro por um sólido monumento vitoriano à piedade ostentosa e a seguir pela desgraciosidade mais funcional do século XX.
O hospital tinha sempre florescido. A comunidade local era predominantemente constituída por gente da classe média e próspera, com um sentido de caridade bem desenvolvido e demasiadamente poucos objetos onde exercê-la. Pouco antes da Segunda Grande Guerra tinha sido acrescentada uma bem equipada ala para doentes particulares. Tanto antes como depois do Serviço Nacional de Saúde, tinha atraído doentes ricos, e conseqüentemente clínicos eminentes, quer de Londres, quer de mais longe. Miss Beale reflectiu que Angela podia muito bem falar do prestígio de um hospital escolar londrino, mas o John Carpendar tinha a sua própria reputação. Qualquer mulher podia muito bem pensar que havia empregos piores do que ser enfermeira-superintendente de um hospital distrital em progresso, gozando de boa fama no seio da comunidade que servia, agradavelmente situado e fortificado pelas suas próprias tradições locais.
Chegara já ao portão principal. Havia um casinhoto de porteiro à esquerda, uma enfeitada casa de bonecas de tijolos dispostos em xadrez, uma relíquia do hospital vitoriano, e - à direita o parque de estacionamento dos médicos. Um terço dos espaços assinalados estava já ocupado pelos Daimlers e Rolls. Parara de chover e a alvorada tinha dado lugar à cinzenta normalidade de um dia de Janeiro. O hospital tinha as luzes todas acesas. Erguia-se diante dela como um grande navio fundeado, fortemente iluminado, cheio de atividade e potência latentes. À esquerda estendiam-se os edifícios baixos e de fachada de vidro da nova secção de doentes externos. Um débil fluxo de doentes avançava já desalentadamente para a entrada.
Miss Beale parou junto da portinhola do casinhoto, baixou a janela do automóvel e declinou a identidade. O porteiro, grave e fardado, cheio de importância, dignou-se emergir e apresentar-se.
- A senhora deve ser do Conselho Geral de Enfermagem - 13
declarou com grandiloqüência. - Foi uma pena ter decidido entrar por este portão. A Escola de Enfermagem fica na Nightingale House, a coisa de uns cem metros da entrada da Winchester Road. Utilizamos sempre a entrada das traseiras para a Nightingale House.
Falou com uma resignação recriminatória, como se deplorasse uma estranha ausência de discernimento que lhe custaria caro em termos de trabalho extra.
- Mas hei de poder ir dar à escola por aqui, não?
Miss Beale não estava na disposição de voltar à confusão da High Street nem tão-pouco fazia tenção de dar a volta ao terreno do hospital em busca de uma insondável entrada das traseiras.
- Lá poder, pode, minha senhora. - O tom do porteiro subentendia que só uma pessoa intencionalmente obstinada o tentaria, e encostou-se à porta do automóvel como quem fosse fornecer indicações confidenciais e complicadas. Não obstante, estas revelaram-se notavelmente simples. A Nightingale House situava-se nos terrenos do hospital, por detrás do serviço de doentes novos.
- É só meter por essa rua à esquerda, minha senhora, e seguir sempre em frente, passando a morgue, até chegar aos alojamentos dos internos. Depois, é virar à direita. Há um letreiro na bifurcação do caminho. Não tem que enganar.
Por uma vez, aquela afirmação notoriamente imprópria parecia justificada. Os terrenos do hospital eram extensos e muito arborizados, formando um misto de jardim convencional, relva e árvores amontoadas e hirsutas que fizeram lembrar a Miss Beale os terrenos de um velho hospício. Era raro encontrar-se um hospital geral tão bem fornecido de espaço. Porém, os vários caminhos estavam bem sinalizados e só um deles ia dar ao lado esquerdo do novo serviço de doentes externos. Foi fácil identificar a morgue, um pequeno edifício atarracado e feio diplomaticamente implantado entre as árvores e que o estratégico isolamento tornava ainda mais sinistro. A residência dos médicos era nova e inconfundível. Miss Beale teve tempo para alimentar o seu habitual ressentimento, freqüentemente bem injustificado, pelo fato de as comissões de gestão dos hospitais estarem sempre mais prontas para realojar os seus médicos do que para proporcionar acomodações apropriadas à escola de enfermagem, antes de reparar no prometido letreiro. Uma tabuleta pintada de branco apontava para a direita e dizia: ”Nightingale House, Escola de Enfermagem”.
Meteu Doutra velocidade e fez cuidadosamente a curva. A nova estrada era estreita e sinuosa marginada de ambos os lados por um monte alto de folhas empapadas, de tal maneira que mal havia espaço para aquele único automóvel. Tudo era umidade e abandono. As árvores erguiam-se perto da faixa de rodagem e entrelaçavam-se sobre ela, escorando o sombrio túnel com os seus fortes galhos negros. De quando em quando uma lufada de vento fazia tombar um borrifo de gotas de chuva no tejadilho do carro ou espalmava uma folha caída de encontro ao pára-brisas. A orla da relva era sulcada de canteiros, uniformes e rectangulares como túmulos e trespassados de arbustos atrofiados. A escuridão era tal sob as árvores que Miss Beale acendeu os faróis. A estrada brilhou diante dela como uma fita oleada. Tinha deixado a janela aberta e sentia, mesmo por sobre o inevitável odor de gasolina e vinilo quente do automóvel, uma desagradável exalação fungóide de decadência. Sentiu-se estranhamente isolada na obscura quietude e subitamente viu-se atingida por um irracional mal-estar, uma insólita sensação de viajar fora do tempo para qualquer nova dimensão, impelida para diante em direção a um horror incompreendido e inelutável. Foi apenas um devaneio de um segundo e rapidamente o afastou, recordando o alegre bulício da High Street a menos de dois quilômetros dali e a proximidade da vida e da atividade. Mas fora uma experiência singular e desconcertante. Irritada consigo própria devido àquela queda num devaneio mórbido, fechou a janela e pisou o acelerador. O pequeno automóvel saltou em frente.
Subitamente verificou que tinha contornado o último cotovelo do caminho e tinha a Nightingale House diante de si. A surpresa por pouco não a fez calcar o travão. Tratava-se de uma casa extraordinária, um imenso edifício vitoriano de tijolo vermelho, acastelado e provido de ornatos até à extravagância e coroado por quatro enormes torreões. Estava profusamente iluminado na escura manhã de Janeiro e, depois da obscuridade da estrada, cintilava aos seus olhos como um castelo de qualquer mitologia da infância. Havia uma enorme estufa enxertada no flanco direito da casa, afigurando-se, pensou Miss Beale,, mais própria para os jardins de Kew do que para aquilo que outrora fora com certeza uma residência particular. Estava menos profusamente iluminada do que a casa mas, por entre- o vidro debilmente luminoso, distinguia as esguias folhas verdes de aspidistras, o vermelho berrante das poinsétias e as manchas amarelas e cor de bronze dos crisântemos.
O recente instante de pânico que Miss Beale conhecera sob as árvores foi completamente esquecido no seu espanto perante a Nightingale House. Apesar da normal confiança no seu próprio gosto, não era completamente imune às excentricidades da moda e perguntou a si própria se em determinada companhia não seria apropriado admirá-la. No entanto tinha-se tornado um hábito seu olhar para qualquer edifício com o olho na sua adequabilidade como escola de enfermagem - certa vez, durante umas férias em Paris, dera horrorizadamente por si a rejeitar o Palácio do Eliseu como desmerecendo qualquer observação ulterior - e, como escola de enfermagem, a Nightingale House era evidentemente nada mais nada menos do que impossível. Bastava-lhe olhar para o edifício, que logo lhe vinham objeções ao espírito. A maioria dos quartos havia de ser excessivamente grande. Onde, por exemplo, poderiam descobrir-se gabinetes aconchegados para a monitora-chefe, orientadora clínica ou secretária escolar? Depois, o edifício seria decerto extremamente difícil de aquecer adequadamente e aquelas janelas de sacada fechadas, sem dúvida pitorescas para quem gostasse do género, roubariam muita luz. Pior ainda, havia qualquer coisa de repulsivo, até mesmo de assustador, na casa. Quando a Profissão (Miss Beale, a despeito de uma comparação infeliz, pensava sempre nela com um P maiúsculo) ascendia tão penosamente ao século XX, arredando a pontapé as pedras que eram as atitudes e métodos cediços. - Miss Beale era freqüentemente solicitada para fazer discursos e certas frases favoritas tendiam a não lhe sair da cabeça -, era realmente uma pena alojar alunas jovens naquele mamarracho vitoriano. Não faria mal nenhum incluir no relatório um vigoroso comentário acerca da necessidade de uma escola nova. A Nightingale House foi rejeitada mesmo antes de entrar lá.
No entanto, nada houve a criticar relativamente ao acolhimento que lhe dispensaram. Ao chegar ao último degrau, a pesada porta rodou nos gonzos deixando passar uma lufada de ar quente e o cheiro a café acabado de fazer. Uma criada uniformizada afastou-se deferentemente para o lado, perfilada, e atrás dela, ao fundo da larga escadaria de carvalho, sobressaindo contra os escuros lambrins como um retrato renascentista em cinzentos e doirados, emergiu a figura da superintendente Mary Taylor, de mão estendida. Miss Beale compôs o seu radioso sorriso profissional, constituído por alegre expectativa e confiança geral, e avançou ao encontro dela. Iniciara-se a infortunada inspecção à Escola de Enfermagem do John Carpendar.
Um quarto de hora mais tarde, quatro pessoas desceram a escadaria principal até à sala de aulas práticas situada no andar térreo, onde iriam assistir à primeira aula do dia. Tinha sido servido café na sala de estar da superintendente, numa das alas dos torreões, onde Miss Beale tinha sido apresentada à monitora, Miss Hilda Rolfe, e a um chefe clínico, Mr. Courtney-Briggs. Conhecia ambos de nome. A presença de Miss Rolfe era necessária e esperada, mas Miss Beale ficou um pouco surpreendida com o facto de Mr. Courtney-Briggs estar na disposição de dedicar tanto tempo da sua manhã à inspecção. Tinha sido apresentado como vice-presidente da Comissão Pedagógica de Enfermagem do hospital e ela esperaria conhecê-lo, juntamente com outros membros da comissão, durante a reunião para debater conclusões no final do dia. Não era habitual um chefe clínico assistir a uma aula e constituía motivo de satisfação o facto de ele dedicar um interesse tão pessoal à escola.
Os corredores de lambrins de madeira eram suficientemente largos para permitir a passagem de três pessoas lado a lado, e Miss Beale viu-se escoltada pelas figuras altas da superintendente e de Mr. Courtney-Briggs, sentindo-se um pouco como se fosse uma minúscula delinquente. Mr. Courtney-Briggs, solidamente impressionante com as cerimoniosas calças listadas de chefe clínico, seguia à sua esquerda. Cheirava a loção para depois da barba. Miss Beale conseguiu distingui-lo mesmo por sobre o odor saturado a desinfectante, café e cera dos móveis. Achou-o surpreendente, mas não desagradável. A superintendente, a mais alta dos três, caminhava em sereno silêncio. O seu vestido formal de tecido de gabardina cinzento era abotoado até ao pescoço e tinha uma estreita tira de linho branco na gola e nos punhos. O cabelo loiro de trigo, que mal se distinguia da pele na cor, estava penteado bem para trás da testa alta e solidamente seguro por um imenso triângulo de musselina, cujo vértice quase lhe chegava aos rins. A touca recordava a Miss Beale as usadas na última guerra pelas enfermeiras do Serviço de Enfermagem do Exército. Desde então, raramente as vira. No entanto, a sua simplicidade ficava bem a Miss Taylor. Aquele rosto, de malares altos e olhos grandes e salientes - que irreverentemente faziam lembrar a Miss Beale groselhas pálidas e raiadas -, bem poderia ter um ar grotesco sob os enfeites de uma cobertura de cabeça mais ortodoxa. Atrás dos três, Miss Beale sentia a presença perturbante da enfermeira-chefe Rolfe, desconfortavelmente colada atrás deles. Mr. Courtney-Briggs estava a falar:
- Esta epidemia de gripe tem sido um rematado aborrecimento. Tivemos de adiar a remoção do grupo seguinte das enfermarias e a certa altura chegámos a pensar que este grupo teria de voltar para lá. Esteve por pouco.
”Não me admira nada”, pensou Miss Beale. Sempre que havia qualquer crise no hospital, as primeiras pessoas a ser sacrificadas eram as enfermeiras-alunas. O seu programa de formação podia sempre ser interrompido. Isso constituía para ela uma pedra no sapato, mas não era aquela decerto a ocasião indicada para protestar. Produziu um ruído vagamente aquiescente. Começaram a descer o último lanço de escadas. Mr. Courtney-Briggs prosseguia no seu monólogo:
- Parte do pessoal docente também se foi abaixo com ela. A aula prática desta manhã vai ser dada pela nossa orientadora clínica, Mavis Gearing. Tivemos de chamá-la novamente à escola. Em condições normais, é evidente que não estaria a fazer qualquer outra coisa mais do que instrução nas enfermarias. A ideia de que deve haver uma instrutora qualificada para ensinar as raparigas nas enfermarias, utilizando os doentes como material clínico, é comparativamente nova. Hoje em dia, as chefes das enfermarias não têm pura e simplesmente tempo para isso. Claro que toda a concepção do sistema global de formação é relativamente nova. Quando eu era estudante de medicina, as aprendizas, como então lhes chamávamos, recebiam toda a instrução nas enfermarias, com uma ou outra palestra nos próprios tempos livres dada pelo pessoal médico. Havia pouco ensino formal e tirá-las todos os anos das enfermarias para um período na escola de enfermagem era coisa que não se fazia. Todo o conceito de formação das enfermeiras se modificou.
Miss Beale era a última pessoa a precisar de uma explicação sobre as funções e deveres das orientadoras clínicas ou a evolução dos métodos de formação de enfermeiras. Perguntou a si própria se Mr. Courtney-Briggs teria esquecido quem ela era. Aquela informação elementar estava mais indicada para novos membros de uma comissão de gestão hospitalar, os quais normalmente ignoravam tanto a formação das enfermeiras como o que quer que se relacionasse com hospitais. Experimentava o pressentimento de que o médico tinha qualquer coisa em mente. Ou tratar-se-ia apenas da conversa sem sentido, desprovida de toda e qualquer relação com o ouvinte, de um egotista que não era capaz de tolerar sequer um momento sem a confortante ressonância da própria voz? Se assim era, quanto mais depressa regressasse à sua consulta dos doentes externos ou à ronda das enfermarias, deixando a inspecção prosseguir sem o benefício da sua presença, tanto melhor para todos os interessados.
A pequena procissão atravessou o corredor axadrezado em direcção a um compartimento que ficava na parte da frente do edifício. Miss Rolfe passou discretamente adiante para abrir a porta e afastou-se para o lado enquanto os outros entravam. Mr. Courtney-Briggs fez Miss Beale entrar à sua frente. Esta sentiu-se imediatamente em casa. A despeito das anomalias do compartimento em si - as duas grandes janelas com o seu borrifo de vidraças coloridas, a enorme lareira de mármore lavrado com as suas figuras artísticas sustentando a prateleira da chaminé, o elevado tecto com ornatos profanado pelos três tubos de luz fluorescente -, era agradavelmente evocativo dos seus próprios tempos de estudante, um mundo absolutamente aceitável e familiar. Encontravam-se ali todos os apetrechos da sua profissão: as fiadas de armários de portas de vidro, com os instrumentos dispostos com cintilante precisão; os mapas de parede representando em lúgubres diagramas a circulação do sangue e os improváveis processos da digestão; o quadro de parede manchado do pó de apontamentos de lições anteriores mal apagados; os carrinhos de rodas de demonstração com os seus tabuleiros cobertos de panos brancos; as duas camas de demonstração, uma contendo um manequim de tamanho natural apoiado entre as almofadas; o inevitável esqueleto suspenso da sua forca em abandonada decrepitude. Impregnando tudo havia o cheiro adstringente e intenso de desinfectante. Miss Beale aspirou-o como uma viciada. Fossem quais fossem os defeitos que mais tarde pudesse detectar no compartimento em si, na justeza do equipamento de ensino, na iluminação ou no mobiliário, nunca deixava de se sentir em casa naquela atmosfera intimidativa.
Brindou as alunas e a professora com o seu fugaz sorriso de tranquilização e encorajamento e empoleirou-se numa das quatro cadeiras previamente alinhadas a um dos lados da sala. A superintendente Taylor e Miss Rolfe sentaram-se cada uma de seu lado, tão tranquila e discretamente quanto possível em face da determinação de Mr. Courtney-Briggs de ser espalhafatosamente galante no puxar as cadeiras para as senhoras se sentarem. A chegada do reduzido grupo, por mais diplomaticamente preparada que tivesse sido, pareceu temporariamente ter atrapalhado a enfermeira monitora. Uma inspecção dificilmente podia considerar-se uma situação pedagógica natural, mas era sempre interessante ver quanto tempo levava a monitora a restabelecer o rapport, com a classe. Uma instrutora de primeira categoria, como Miss Beale sabia por experiência própria, era capaz de manter o interesse da classe mesmo durante um bombardeamento cerrado, quanto mais durante a visita de uma inspectora do Conselho Geral de Enfermagem; não lhe parecia, porém, que Mavis Gearing tivesse probabilidades de se revelar um elemento desse raro e devotado grupo. A rapariga - ou melhor, a mulher - carecia de autoridade. Tinha um aspecto conciliador; dir-se-ia que era capaz de sorrir tolamente com facilidade. Além disso estava demasiado pintada para uma mulher que devia ter em mente artes menos efémeras. Porém, no fim de contas, era apenas a orientadora clínica, e não uma professora de enfermagem qualificada: Estava a dar a aula tendo sido prevenida com pouca antecedência e sob condições difíceis. Miss Beale tomou a resolução mental de não a julgar com demasiada severidade.
Conforme verificou, a classe ia praticar a alimentação de um doente por intubação gástrica. A aluna que devia fazer de doente encontrava-se já numa das camas de demonstração, de vestido de xadrez protegido por um babeiro de oleado e a cabeça amparada pelo apoio de cabeça e um monte de almofadas. Era uma rapariga simples, de rosto vigoroso, obstinado e estranhamente maduro, e cabelo baço impropriamente repuxado para trás da fronte alta e elegante. Encontrava-se ali imóvel sob a crua luz fluorescente, com um ar levemente ridículo mas estranhamente digna, como quem estivesse concentrado num mundo privativo e se dissociasse de todo o procedimento à custa de um esforço de vontade. Subitamente ocorreu a Miss Beale que a rapariga podia estar intimidada. A ideia era disparatada, mas persistia. De repente deu por si sem vontade de fitar aquele rosto resoluto. Irritada devido à própria sensibilidade despropositada, desviou a atenção para a enfermeira instrutora.
A enfermeira-chefe Gearing lançou um olhar apreensivo e inquiridor à superintendente, obteve um aceno confirmatório e retomou a lição.
- Esta manhã é a estagiária Pearce que faz as vezes da nossa
doente. Acabámos de passar em revista a sua história clínica. É Mrs. Stokes, de cinquenta anos de idade e mãe de quatro filhos, casada com um funcionário da recolha de lixo da câmara. Foi submetida a uma laringectomia para tratamento de um cancro.
Voltou-se para uma estagiária sentada do seu lado direito.
- Estagiária Dakers, é capaz de descrever o tratamento de Mrs. Stokes até agora?
A estagiária Dakers começou obedientemente. Era uma rapariga pálida e magra que corava despropositadamente ao falar. Era difícil ouvi-la, mas sabia os factos e apresentava-os bem. Uma coisinha conscienciosa, pensou Miss Beale, não extraordinariamente inteligente, mas trabalhadora e digna de confiança. É uma pena ninguém lhe ter tratado daquela acne. Manteve o ar de vivo interesse profissional enquanto a estagiária Dakers expôs a história clínica fictícia de Mrs. Stokes e aproveitou a oportunidade para observar detidamente as restantes alunas da aula, procedendo à habitual avaliação privada do carácter e dotes de cada uma.
Não havia dúvida de que a epidemia de gripe tinha feito os seus estragos. Na sala de aulas práticas encontrava-se apenas um total de sete raparigas. As duas que estavam de pé de um e outro lado da cama de demonstração causavam uma impressão imediata. Eram obviamente gémeas idênticas, fortes e de rosto corado, com o cabelo cor de cobre amontoado numa franja espessa sobre uns notáveis olhos azuis. As toucas, de copas engomadas que pareciam pratos, estavam encarrapitadas bem para a frente, com as duas enormes asas de linho branco protuberantes atrás. Miss Beale, que sabia dos seus tempos de estudante o que se podia fazer com um par de alfinetes de chapéu de cabeça branca, ficou mesmo assim intrigada com a arte que lograva prender daquele modo firme um edifício tão singular e imaterial num tufo de cabelo tão levantado. Impressionou-a o interessante carácter antiquado do uniforme do John Carpendar. Quase todos os hospitais que havia visitado tinham substituído aquelas desactualizadas toucas de asas pelo tipo americano, mais pequeno, que era mais simples de usar, mais rápido de armar e mais barato, quer na compra, quer no lavar e engomar. Alguns hospitais, para desgosto de Miss Beale, estavam mesmo a lançar toucas de papel de usar e deitar fora. No entanto, o uniforme de enfermeira de um hospital era sempre ciosamente defendido e alterado com relutância, e o John Carpendar era obviamente agarrado às tradições. Até os vestidos do uniforme eram levemente antiquados. Os roliços e sardentos braços das gémeas sobressaíam de mangas de guingão cor-de-rosa axadrezado que recordava a Miss Beale os seus próprios tempos de estudante de enfermagem. O comprimento das saias não fazia concessões à moda actual e os pés robustos assentavam em sapatos de salto baixo pretos, de atacadores.
Deitou um rápido olhar às restantes alunas. Havia uma rapariga tranquila, de óculos e rosto simples e inteligente. A reacção imediata de Miss Beale foi de que gostaria de tê-la em qualquer enfermaria. Junto dela sentava-se uma rapariga morena, de ar carrancudo, um tanto arranjada de mais e afectando um ar de Cuidadoso desinteresse pela demonstração. Bastante vulgar, pensou Miss Beale. Miss Beale, para ocasional embaraço dos seus superiores, gostava de adjectivos antiquados, utilizava-os sem vergonha e sabia exactamente o que queria dizer com eles. A sua máxima ”A superintendente recruta um tipo muito fino de raparigas” significava que elas provinham de respeitáveis famílias da classe média, tinham recebido o privilégio de uma educação liceal, usavam saias pelo joelho ou mais compridas ainda e tinham a devida consciência do privilégio e responsabilidade de serem estudantes de enfermagem. A última aluna da classe era uma rapariga muito bonita, de cabelos loiros penteados formando uma franja que lhe caía até às sobrancelhas sobre um rosto petulante e contemporâneo. Era suficientemente atraente para um cartaz de recrutamento, pensou Miss Beale, mas por qualquer razão era o último rosto que escolheria. Enquanto perguntava a si própria porquê, a estagiária Dakers chegou ao final do relato.
- Correcto, estagiária - disse a enfermeira Gearing. - Estamos, portanto, perante o problema de uma doente no pós-operatório, já gravemente subnutrida e agora impossibilitada de ingerir alimentos pela boca. Que quer isto dizer, estagiária?
- Alimentação por intubação gástrica ou por via rectal, senhora enfermeira.
Foi a rapariga morena de ar carrancudo quem respondeu, com uma voz que reprimia cuidadosamente qualquer nota de entusiasmo ou mesmo interesse. Estava longe de ser uma rapariga agradável, pensou Miss Beale.
Houve um murmúrio por parte da classe. A enfermeira Gearing ergueu interrogativamente o sobrolho. A aluna de óculos disse:
- Alimentação por via rectal não, senhora enfermeira. O recto não pode absorver alimento suficiente. Alimentação por intubação gástrica, quer pela boca, quer pelo nariz.
- Exacto, estagiária Goodale, e foi isso que o médico prescreveu para Mrs. Stokes. Pode continuar, por favor, estagiária? Vá explicando tudo à medida que actua.
Uma das gémeas empurrou o carrinho para diante e mostrou o tabuleiro do equipamento necessário: o frasco contendo a mistura de bicarbonato de sódio para a limpeza da boca e das narinas; o funil de polietileno e vinte centímetros de sonda para ser-lhe adaptado; o dispositivo de ligação; o lubrificante; a cuvette com o abaixa-língua, o fórceps para a língua e o abre-boca: Ergueu a sonda esofágica de Jacques, que lhe ficou a baloiçar, obscenamente suspensa da mão sardenta, como uma cobra amarela.
- Muito bem, estagiária - animou-a a enfermeira Gearing. Agora vamos ao alimento. Que está a dar-lhe?
- Na realidade, apenas leite morno, senhora enfermeira.
- Mas se estivesse a lidar com uma doente a sério?
A gémea hesitou. A aluna de óculos disse com calma autoridade:
- Podíamos adicionar proteínas solúveis, ovos, compostos vitaminados e açúcar.
- Exacto. No caso de ser necessário continuar a alimentação por intubação para além de quarenta e oito horas, devemos assegurar-nos de que a dieta seja adequada em termos de calorias, proteínas e vitaminas. A que temperatura está a administrar o alimento, estagiária?
- À temperatura do corpo, senhora enfermeira: 38 graus Centígrados.
- Correcto. E, como a nossa doente está consciente e capaz de engolir, estamos a alimentá-la pela boca. Não se esqueça de tranquilizar a sua doente, estagiária. Explique-lhe de forma simples o que vai fazer e porquê. Lembrem-se disto, meninas: nunca iniciem nenhum procedimento de enfermagem sem dizerem ao vosso doente o que se vai passar.
Eram alunas do terceiro ano, pensou Miss Beale. Já era altura de saberem aquilo. No entanto, a gémea, que sem dúvida se teria facilmente mostrado à altura com uma doente a sério, achava embaraçosamente difícil explicar o seu procedimento a uma colega. Abafando uma risadinha, murmurou umas palavras à figura rígida na cama e quase a trespassou com a sonda esofágica. A estagiária Pearce, continuando com o olhar fixo em frente, procurou a sonda com a mão esquerda e guiou-a pela boca dentro. A seguir, fechando os olhos, engoliu. Houve um espasmo convulsivo dos músculos da garganta. A rapariga fez uma pausa para retomar o fôlego, após o que engoliu de novo.
A sonda tornou-se mais curta. Na sala de aulas práticas reinava um grande silêncio. Miss Beale apercebeu-se de que não se sentia bem, mas não tinha a certeza da razão desse mal-estar. Talvez fosse um pouco invulgar praticar-se a alimentação por entubação daquela maneira numa aluna, mas não era inédito. Num hospital, podia ser mais comum o médico encarregar-se da introdução da sonda, mas era muito possível essa responsabilidade recair na enfermeira; era melhor praticarem umas nas outras do que num doente em estado grave, e o manequim de demonstração não era realmente um substituto satisfatório de um sujeito vivo. Já uma vez tinha feito o papel de doente na escola onde andara e verificara ser inesperadamente fácil engolir o tubo. Observando os movimentos convulsivos da garganta da estagiária Pearce e engolindo por inconsciente simpatia, conseguiu quase recordar, trinta anos volvidos, a repentina frialdade à medida que a sonda deslizava pelo macio palato e o leve sobressalto de surpresa perante a facilidade de tudo aquilo. Havia, porém, qualquer coisa de patético e perturbante naquela figura rígida de rosto pálido, na cama, de olhos cerrados com força, babeiro como os bebés e o delgado tubo arrastando-se e coleando como um verme pelo canto da boca. Miss Beale sentiu que estava a presenciar um sofrimento gratuito, que toda aquela demonstração era uma afronta. Por um segundo, teve de lutar contra um impulso de protestar.
Uma das gémeas estava agora a ligar uma seringa de 20 ml à extremidade da sonda, preparando-se para aspirar uma porção de suco gástrico a fim de verificar se a ponta tinha chegado ao estômago. As mãos da rapariga estavam bem firmes. Talvez fosse apenas produto da imaginação de Miss Beale a impressão de que a sala se encontrava sobrenaturalmente silenciosa. Deitou uma olhadela a Miss Taylor. A superintendente tinha os olhos pregados na estagiária Pearce. Franzia levemente o cenho. Mexia os lábios e agitava-se na cadeira. Miss Beale perguntou a si própria se não estaria à beira de emitir um protesto. Mas a superintendente não emitiu qualquer som. Mr. Courtney-Briggs curvava-se para diante na cadeira, com as mãos enclavinhadas nos joelhos. Fitava intensamente, não a estagiária Pearce, mas o conta-gotas, como que hipnotizado pela suave oscilação da tubagem. Miss Beale ouvia o forte som áspero da sua respiração. Miss Rolfe estava sentada muito direita, com as mãos frouxamente entrelaçadas no regaço e os olhos negros inexpressivos. Miss Beale, porém, notou que estavam poisados, não na rapariga deitada na cama, mas na aluna bastante bonita. E, durante um instante fugaz, a rapariga devolveu-lhe o olhar, com igual ausência de expressão.
A gémea que estava a administrar a alimentação, patentemente certificada de que a extremidade da sonda esofágica estava em segurança no estômago, ergueu o funil bem acima da cabeça da estagiária Pearce e começou lentamente a verter a mistura com leite pela sonda. A classe parecia estar a reter a respiração. E foi então que aconteceu. Ouviu-se um grito, agudo, horrivelmente inumano, e a estagiária Pearce precipitou-se da cama para fora como se impelida por uma força irresistível. Num segundo estava deitada, imóvel, apoiada no monte de almofadas, e no segundo imediato encontrava-se fora da cama, vacilando para diante sobre os pés arqueados numa imitação de bailarina clássica, e agarrando ineficazmente o ar como que procurando freneticamente a tubagem. E durante tudo isso gritava, gritava sem parar, como um apito encravado. Miss Beale, aterrada, mal teve tempo de registar o rosto contorcido, os lábios a espumar, antes de a rapariga cair no chão com um baque e ali ficar em contorções, dobrada sobre si como um arco, com a testa a tocar o chão e todo o corpo a estremecer num paroxismo.
Uma das alunas gritou. Por um instante ninguém se mexeu. A seguir houve uma precipitação para a frente. A enfermeira Gearing puxou pela sonda, arrancando-a da boca da rapariga. Mr. Courtney-Briggs, adiantou-se resolutamente para o meio do ajuntamento, de braços abertos. A superintendente e a enfermeira Rolfe curvaram-se sobre a figura que se contorcia, deixando-a fora de vista. A seguir, Miss Taylor ergueu-se e olhou em redor, fitando Miss Beale.
- As alunas... Será capaz de tomar conta delas, por favor? Há uma sala vazia aqui mesmo ao lado. Mantenha-as juntas.
Tentava manter a calma, mas a urgência tornava-lhe a voz cortante.
- Depressa, por favor.
Miss Beale acenou com a cabeça. A superintendente voltou a inclinar-se sobre a figura contorcida. Os gritos tinham já cessado. Seguiu-se-lhes um gemer lamentável e um aterrorizante martelar de saltos em staccato no soalho de madeira. Mr. CourtneyBriggs despiu o casaco, atirou-o para o lado e começou a arregaçar as mangas.
Murmurando suaves expressões de encorajamento, Miss Beale pastoreou o pequeno grupo de alunas pelo corredor fora. Uma ’delas, não percebeu bem qual, perguntou numa voz estridente: ”Que foi que lhe aconteceu? O que é que sucedeu? Que foi que correu mal?” Mas ninguém respondeu. Deslocaram-se, no meio ”’ da estupefacção de quem sofreu um abalo, até à sala contígua. Ficava nas traseiras da casa e tratava-se de uma sala pequena, de forma singular, que fora visivelmente dividida a partir da primitiva sala de visitas de tecto alto e que agora servia de gabinete da monitora-chefe. O primeiro relance de Miss Beale registou uma secretária de tipo comercial, uma fiada de armários de arquivo de aço pintado de verde, um quadro de parede sobrecarregado de avisos, uma pequena barra de madeira com perfurações provida de grampos dos quais pendia uma porção de chaves, e um mapa que ocupava toda uma parede representando o programa do curso e os progressos de cada uma das alunas. A divisória cortava a meio a janela de pinázios, de tal maneira que o gabinete, desagradável nas proporções, era também inconvenientemente escuro. Uma das alunas ligou o interruptor e o tubo fluorescente do meio começou a acender às piscadelas. Realmente, pensou Miss Beale, cujo espírito se agarrava desesperadamente ao conforto das suas preocupações normais, tratava-se de um compartimento perfeitamente inadequado para uma monitora-chefe, ou para qualquer monitora, aliás.
Aquela breve recordação do objectivo da sua visita suscitou um momentâneo bem-estar. Mas a terrível realidade da ocasião Voltou a afirmar-se quase de imediato. As alunas - um pequeno cacho patético e desorganizado - tinham-se apinhado no meio do compartimento como que incapazes de qualquer acção. Olhando rapidamente em redor, Miss Beale viu que havia apenas três cadeiras. Por um instante sentiu-se tão embaraçada e desorientada como uma anfitriã que não tem bem a certeza da maneira como vai sentar todos os convidados. A preocupação não era totalmente irrelevante. Tinha de conseguir proporcionar conforto e descontracção às raparigas, se é que havia alguma possibilidade de lograr que elas se distraíssem do que se passava na sala - contígua; e elas podiam permanecer encarceradas durante muito tempo.
- Venham cá - disse com vivacidade. - Vamos encostar à parede a secretária da enfermeira-chefe, para depois quatro de vocês poderem empoleirar-se nela. Eu sento-me na cadeira da secretária e duas de vocês podem ficar com as poltronas.
Pelo menos constituía uma actividade. Miss Beale viu que a estagiária loira e magra estava a tremer. Ajudou-a a sentar-se numa das poltronas, e a rapariga morena e carrancuda ocupou imediatamente a outra. Confia nela para cuidar da número um, pensou Miss Beale. Afadigou-se a ajudar as outras alunas a esvaziarem a secretária e encostá-la à parede. Se ao menos pudesse mandar uma delas fazer chá! Apesar da sua concordância com métodos mais modernos de combater traumatismos, Miss Beale ainda depositava a sua fé em chá forte, doce e quente. Mas não havia possibilidade de o obter. Não valia a pena incomodar e alertar o pessoal da cozinha.
- E que tal se nos apresentássemos? - sugeriu de modo encorajador. - Eu sou Miss Muriel Beale. Escusado será dizer-vos que sou inspectora do C. G. E. Sei alguns dos vossos nomes, mas não estou bem certa das pessoas a que correspondem.
Cinco pares de olhos fitaram-na com espantada incompreensão. Porém, a aluna eficiente - como Miss Beale ainda a considerava - identificou-as calmamente.
- As gémeas são a Maureen e a Shirley Burt. A Maureen é cerca de dois minutos mais velha e é a que tem mais sardas. Afora isso, não achamos fácil distingui-las. Ao lado da Maureen está a Julia Pardoe. A Christine Dakers está sentada numa das poltronas e a Diane Harper na outra. Eu sou a Madeleine Goodale.
Miss Beale, que nunca tinha facilidade em recordar nomes, fez a sua costumada recapitulação mental. As gémeas Burt. Bonitas e buliçosas. Seria bastante fácil recordar-lhes o nome, embora impossível estabelecer qual era uma e qual a outra. Julia Pardoe. Um nome atraente para uma rapariga atraente. Muito atraente, para quem gostasse daquela beleza loira, um tanto felina. Sorrindo para aqueles indiferentes olhos azul-arroxeados, Miss Beale concluiu que algumas pessoas, e nem todas elas do sexo masculino, poderiam gostar mesmo muito. Madeleine Goodale. Um bom nome sensato para uma boa rapariga sensata. Pensou que não teria dificuldade em lembrar-se de Goodale. Christine Dakers. Ali havia qualquer coisa que não estava nada bem. A rapariga parecera doente durante toda a breve aula prática e agora parecia a ponto de desmaiar. Tinha uma pele doentia, de uma maneira invulgar para uma enfermeira. Naquele momento achava-se desprovida de cores, de tal forma que em torno da boca e na testa as manchas sobressaíam numa assanhada brotoeja. Estava profundamente aninhada na poltrona, com as mãos delgadas àlternadamente a alisar e a plissar o avental. A estagiária Dakers era sem dúvida a mais afectada de todo o grupo. Talvez tivesse sido especialmente amiga da estagiária Pearce. Miss Beale procedeu supersticiosamente a uma rápida mudança de tempo do verbo. Talvez fosse especialmente amiga. Se ao menos pudessem dar à rapariga um revivificante chá quente! A estagiária Harper, de baton e sombra dos olhos igualmente berrantes no rosto empalidecido, comentou subitamente:
- Devia haver qualquer coisa no alimento.
As gémeas Burt viraram-se simultaneamente para ela. Mau- reen disse:
- Claro que havia! Leite.
- Refiro-me a qualquer coisa além do leite - hesitou. - Veneno.
- Mas não podia haver! A Shirley e eu fomos logo de manhã
buscar uma garrafa de leite recente ao frigorífico da cozinha.
Miss Collins estava lá e viu-nos. Deixámo-la na sala de aulas práticas e só o deitámos no copo de medida imediatamente antes da demonstração, não é verdade, Shirley?
- Exactamente. Era uma garrafa recente. Tirámo-la por volta das sete da manhã.
- E não lhe juntaram nada por engano?
- O quê, por exemplo? Claro que não.
As gémeas falavam em uníssono, parecendo tenazmente confiantes, quase imperturbadas. Sabiam com exactidão o que tinham feito e quando e, conforme Miss Beale verificou, ninguém tinha probabilidades de as fazer vacilar. Não eram o género de pessoas que se atormentassem com desnecessários sentimentos de culpa ou se ralassem com aquelas dúvidas irracionais que afligem personalidades menos fleumáticas e mais imaginativas. Miss Beale reflectiu que as compreendia muito bem.
- Talvez outra pessoa tenha misturado qualquer coisa no alimento - alvitrou Julia Pardoe.
Percorreu as colegas com um olhar sub-reptício através das pálpebras semicerradas, provocante e levemente divertida.
- Porque é que alguém faria semelhante coisa? - inquiriu calmamente Madeleine Goodale.
”’ A estagiária Pardoe encolheu os ombros e apertou os lábios num pequeno sorriso confidencial.
- Por acidente - disse. - Ou podia tratar-se de uma partida. Ou talvez fosse de propósito.
- Mas isso seria tentativa de homicídio! - Foi Diane Harper quem falou, num tom de incredulidade. Maureen Burt riu-se.
- Não sejas pateta, Julia. Quem é que havia de querer matar a Pearce?
Ninguém respondeu. A lógica era aparentemente inexpugnável. Era impossível imaginar alguém que quisesse matar a Pearce. Miss Beale apercebeu-se de que ou a Pearce pertencia ao grupo das pessoas naturalmente inofensivas, ou era uma personalidade demasiado negativa para inspirar o ódio atormentador que pode levar ao assassínio. Foi então que a estagiária Goodale observou secamente:
- A Pearce não era propriamente a menina bonita de toda a gente.
Miss Beale deitou um olhar à rapariga, surpreendida. Tratava-se de um estranho comentário, vindo da estagiária Goodale, um tanto insensível dadas as circunstâncias, desconcertantemente a despropósito. Reparou igualmente, na utilização do passado. Ali estava uma aluna que não tencionava voltar a ver a estagiária Pearce viva.
A estagiária Harper reafirmou resolutamente:
- É uma tolice falar de assassínio. Ninguém havia de querer matar a Pearce.
A estagiária Pardoe encolheu os ombros:
- Talvez não se destinasse à Pearce. Quem devia fazer de doente hoje era ajo Fallon, não era? O nome que vinha a seguir na lista era o da Fallon. Se ontem à noite não tivesse adoecido, quem estaria esta manhã naquela cama seria a Fallon.
Ficaram caladas. À estagiária Goodale voltou-se para Miss Beale.
- Ela tem razão. Desempenhamos todas rigorosamente à vez o papel de doente; realmente esta manhã não era à Pearce que competia. No entanto, a Josephine Fallon recolheu ontem à noite à enfermaria (já deve ter ouvido falar na epidemia de gripe) e quem estava logo a seguir na lista era a Pearce. A Pearce ocupou o lugar da Fallon.
Miss Beale sentiu-se momentaneamente desorientada. Achava que tinha de pôr termo àquela conversa, que lhe competia distraí-las do acidente, e decerto poderia não ter passado de um acidente. Mas não sabia como. Além disso, havia um tenebroso fascínio na pesquisa dos factos. Para ela, sempre o houvera. Por outro lado, talvez fosse melhor que as raparigas cedessem àquele interesse desprendido, investigador, em lugar de ficarem para ali a manter uma conversa artificial e sem objectivo. Verificava já que o abalo cedia lugar àquela excitação meio envergonhada que pode suceder à tragédia, desde que, evidentemente, se trate de uma tragédia alheia.
A voz calma, um tanto infantil, de Julia Pardoe prosseguiu:
- Portanto, se realmente a vítima em vista era a Fallon, não pode ter sido nenhuma de nós, pois não? Todas nós sabíamos que não era a Fallon que ia fazer de doente esta manhã.
- É de crer que toda a gente soubesse - disse Madeleine Goodale. - Pelo menos toda a gente na Nightingale House. Falou-se suficientemente disso ao pequeno-almoço.
Ficaram novamente caladas, ponderando sobre aquele novo aspecto. Miss Beale notou com interesse que não houve protestos de que ninguém quereria matar a Fallon. Nessa altura Maureen Burt disse:
- A Fallon não pode estar tão doente como tudo isso. Esta manhã regressou à Nightingale House, pouco depois das oito e meia. A Shirley e eu vimo-la escapulir-se pela porta lateral imediatamente antes de nos dirigirmos para a sala de aulas práticas, a seguir ao pequeno-almoço.
A estagiária Goodale perguntou bruscamente:
- Que levava ela vestido?
Maureen não mostrou surpresa ante aquela pergunta aparentemente irrelevante.
- Calças. E o casaco comprido. E aquele lenço de cabeça vermelho que costuma usar. Porquê?
A estagiária Goodale, visivelmente abalada e surpresa, fez uma tentativa de o.ocultar, e disse:
- Enfiou essa roupa antes de a levarmos para a enfermaria ontem à noite. Suponho que voltou para ir buscar ao quarto qualquer coisa que pretendia. Mas não devia ter saído da enfermaria. Foi uma estupidez. Quando baixou, estava com quarenta graus. Foi uma sorte para ela a enfermeira Brumfett não a ter visto.
A estagiária Pardoe observou maliciosamente:
- De qualquer maneira é esquisito, não é?
Ninguém respondeu. Era realmente esquisito, pensou Miss Beale. Recordou o longo e húmido trajecto entre o hospital e a escola de enfermagem. A estrada tinha muitas curvas; era evidente que devia haver um atalho pelo meio das árvores. Mas era um estranho passeio para uma rapariga doente em Janeiro, de manhã cedo. com certeza houvera qualquer razão de peso que a fizera regressar à Nightingale House. No fim de contas, se realmente queria alguma coisa do quarto, não havia nada que a proibisse de a pedir. Qualquer das alunas a teria levado de bom grado à enfermaria. E tratava-se da rapariga que devia ter feito o papel de doente nessa manhã, que devia, segundo a lógica, estar deitada no compartimento contíguo no meio do emaranhado de tubos e lençóis. A estagiária Pardoe disse:
- Bem, há uma pessoa que sabia que a Fallon não faria de doente esta manhã. A própria Fallon.
- Se estás disposta a ser estúpida e maliciosa, acho que não te posso impedir. No entanto, se fosse a ti, deixava-me de calúnias disse a estagiária Goodale, pálida, fitando-a.
A estagiária Pardoe pareceu despreocupada, mesmo levemente satisfeita. Surpreendendo-lhe o sorriso dissimulado e contente, Miss Beale decidiu que era tempo de fazer cessar aquela conversa. Estava à procura de uma maneira de mudar de assunto, quando a estagiária Dakers disse debilmente, das profundezas da poltrona:
- Sinto-me mal.
Registou-se imediata preocupação. A estagiária Harper foi a única que não fez qualquer menção de ajudar. As restantes agruparam-se em redor da rapariga, satisfeitas por terem a possibilidade de fazer alguma coisa.
- Vou levá-la ao lavabo do andar de baixo - disse a estagiária Goodale.
Levou a rapariga para fora da sala, amparando-a. Para surpresa de Miss Beale, a estagiária Pardoe foi com ela, esquecendo ambas aparentemente o antagonismo de pouco antes enquanto amparavam a estagiária Dakers, uma de cada lado. Miss Beale ficou sozinha com as gémeas Burt e a estagiária Harper. Caiu outro silêncio. Porém, Miss Beale tinha aprendido a lição. Fora imperdoavelmente irresponsável. Não haveria mais conversas de mortes ou assassínios. Já que ali estavam e à sua guarda, podiam muito bem trabalhar. Fitou asperamente a estagiária Harper e convidou-a a descrever os indícios, sintomas e tratamento da embolia pulmonar.
Dez minutos depois, as três ausentes estavam de volta. A estagiária Dakers vinha ainda pálida, mas recompusera-se. Quem parecia preocupada era a estagiária Goodale. Como se fosse incapaz de o guardar para si, disse:
- O frasco de desinfectante que devia estar na casa de banho desapareceu. Sabem a qual me refiro. Está sempre na prateleira pequena. Nem a Pardoe nem eu conseguimos encontrá-lo.
A estagiária Harper interrompeu a sua enfadada mas surpreendentemente competente narrativa e observou:
- Referes-te àquele frasco com uma mistura leitosa? Ontem à noite a seguir ao jantar estava lá.
- Isso já foi há muito tempo. Alguém foi àquela casa de banho esta manhã?
Aparentemente, ninguém lá fora. Olharam silenciosamente umas para as outras.
Foi então que a porta se abriu. A superintendente entrou tranquilamente e fechou a porta atrás de si. Ouviu-se um estalar de tecido engomado quando as gémeas se deixaram escorregar da secretária para baixo, perfilando-se. A estagiária Harper ergueu-se delicadamente da cadeira. Viraram-se todas para Miss Taylor.
- Minhas filhas - disse ela, e a suave e inesperada expressão deu-lhes a conhecer a verdade antes mesmo de ela falar.
- Minhas filhas, a estagiária Pearce morreu há minutos. Não sabemos como nem porquê, mas quando sucede qualquer coisa de inexplicável como esta há que chamar a Polícia. É o que o secretário do hospital está a fazer neste momento. Quero que sejam corajosas e sensatas como sei que serão. Até à chegada da Polícia, penso que o melhor é não falarmos do sucedido. Vão buscar os vossos livros e a estagiária Goodale conduzir-vos-á à minha sala de estar, onde aguardarão. vou mandar vir café forte e quente, que vos será servido dentro em pouco. Entendido?
Houve um submisso murmúrio: ”Sim, superintendente.” Miss Taylor voltou-se para Miss Beale.
- Lamento imenso, mas isto significa que vai ter de esperar também aqui.
- com certeza, superintendente, compreendo perfeitamente. Por sobre as cabeças das alunas, os olhares de uma e outra
cruzaram-se, em desorientada especulação e tácita compreensão.
Miss Beale, porém, ficou um tanto horrorizada ao recordar mais tarde a banalidade e irrelevância do seu primeiro pensamento consciente:
”Esta deve ser a inspecção mais curta de que há notícia. Que vou eu dizer ao Conselho Geral de Enfermagem?”
Poucos minutos antes, as quatro pessoas presentes na sala de aulas práticas tinham-se endireitado, olhando umas para as outras, pálidas e completamente exaustas. Heather Pearce estava morta. Estava morta segundo qualquer critério, quer legal, quer clínico. Sabiam-no desde os últimos cinco minutos, mas tinham continuado a trabalhar, obstinadamente e sem falar, como se ainda houvesse alguma hipótese de o flácido coração voltar a palpitar com vida. Mr. Courtney-Briggs tinha despido o casaco para tratar da rapariga e a parte da frente do colete estava coberta de manchas de sangue. Ele fitava a mancha que ia secando, de cenho e nariz enfadadamente franzidos, quase como se o sangue fosse uma substância estranha para si. A massagem cardíaca tinha sido tão suja como ineficaz. Surpreendentemente suja para Mr. Courtney-Briggs, pensou a superintendente. Mas a tentativa fora decerto justificada, não? Não houvera tempo de transportar a rapariga para o bloco operatório. Era uma pena a enfermeira-chefe Gearing ter arrancado a sonda esofágica. Fora porventura uma reacção natural, mas podia ter custado à Pearce a única hipótese de sobrevivência. Enquanto a sonda estava no lugar, podiam pelo menos ter tentado uma lavagem ao estômago imediata. No entanto, gorara-se uma tentativa de introduzir outra sonda pela narina devido aos espasmos agónicos da rapariga e, uma vez cessados estes, era demasiado tarde e Mr. Courtney-Briggs, vira-se obrigado a abrir a caixa torácica e tentar o único meio que lhe restava. Os esforços heróicos de Mr. Courtney-Briggs eram bem conhecidos. O único aspecto a lamentar era deixarem o corpo tão pateticamente retalhado e a sala de aulas práticas a cheirar a matadouro. Semelhantes coisas eram mais bem conduzidas num bloco operatório, ocultas e dignificadas pelos apetrechos da cirurgia ritual. Foi ele o primeiro a falar.
- Não foi uma morte natural. Havia qualquer coisa mais do que leite naquele nutriente. Bem, estou em crer que isso é evidente para todos nós. O melhor é chamarmos a Polícia. Vou entrar em contacto com a Yard. Por acaso conheço alguém de lá. Um dos comissários adjuntos.
Conhecia sempre alguém, pensou a superintendente. Sentiu uma ânsia de o contrariar. O abalo que sofrera tinha deixado uma esteira de irritação e, irracionalmente, esta concentrou-se nele. Calmamente, disse:
- Quem deve ser chamada é a Polícia local, e acho que a pessoa a fazê-lo é o secretário do hospital. Vou entrar em contacto com Mr. Hudson pelo telefone interno. Se acharem necessário, eles ligarão para a Yard. Mas a decisão cabe ao comissário, e não a nós.
Deslocou-se até ao telefone de parede, contornando cuidadosamente a figura dobrada de Miss Rolfe. A monitora-chefe estava ainda de joelhos. Mais parecia, pensou a superintendente, uma personagem de um melodrama vitoriano, com aqueles olhos sem chama no rosto pálido de morte, o cabelo preto um tanto despenteado sob a touca pregueada e aquelas mãos ensanguentadas. Virava-as muito lentamente e examinava a massa rubra com um interesse desprendido e especulativo como se também ela tivesse dificuldade em acreditar que o sangue fosse verdadeiro. - Se há suspeitas de qualquer tramóia, será que devíamos deslocar o corpo? - perguntou.
- Não tenciono deslocar o corpo - redarguiu Mr. CourtneyBriggs de modo cortante.
- Mas não podemos deixá-la aqui, no estado em que está! Miss Gearing quase chorava, ao protestar. O médico fulminou-a com o olhar:
- Ó minha santa, a rapariga está morta! Morta! Que diferença faz o sítio onde deixemos o corpo? Ela não sente nada. Nem sabe. Por amor de Deus, não comecem com sentimentalismos a propósito da morte. A afronta está em morrermos, só nisso, e não no que acontece aos nossos corpos.
Virou-se com brusquidão e dirigiu-se à janela. A enfermeira Gearing esboçou um movimento como se fosse segui-lo, mas logo se abateu na cadeira mais próxima, começando a chorar baixinho como um animal fungador. Ninguém lhe deu qualquer atenção. A enfermeira Rolfe pôs-se rigidamente de pé. De mãos estendidas diante do corpo na atitude ritual de enfermeira de sala de operações, encaminhou-se para um lavatório ao canto, actuou a torneira com o cotovelo e começou a lavar as mãos. No telefone instalado na parede, a superintendente marcava um número de cinco algarismos. Ouviu-se a sua voz calma:
- É do gabinete do secretário do hospital? Mr. Hudson está? Fala a superintendente. - Houve uma pausa. - bom dia, Mr. Hudson. Estou a falar da sala de aulas práticas do andar de baixo da Nightingale House. Poderá vir aqui imediatamente? Sim. Muito urgente. Lamento dizer que sucedeu qualquer coisa de trágico e horrível e vai ser necessário o senhor ligar para a Polícia. Não, preferia não o dizer pelo telefone. Obrigada. Voltou a colocar o aparelho no descanso e informou tranquilamente: - Vem imediatamente. Temos de pôr o vice-presidente também ao corrente... É uma maçada Sir Marcus estar em Israel... Mas a primeira coisa a fazer é comunicar com a Polícia. E agora o melhor é eu ir informar as outras alunas.
A enfermeira Gearing estava a tentar controlar-se. Assoou-se ruidosamente, voltou a meter o lenço no bolso da farda e levantou o rosto manchado.
- Desculpem. Acho que foi o choque. É que foi tudo tão horrível. É terrível ter acontecido uma coisa assim. E ainda por cima da primeira vez que eu dava uma aula! com toda a gente sentada a assistir a tudo. As outras alunas também. Que horroroso acidente!
- Acidente, enfermeira? - Mr. Courtney-Bríggs virou-se da janela. Avançou para ela e inclinou a cabeça taurina até ficar junto da sua. com voz cortante e desdenhosa, quase lhe atirou as palavras à cara. - Acidente? Estará a sugerir que um veneno corrosivo se introduziu naquele alimento por acidente? Ou que alguma rapariga no seu juízo perfeito optaria por se matar dessa maneira horrível? Ora vamos, enfermeira, que tal sermos honestos uma vez na vida? O que acabamos de presenciar chama-se assassínio!
Final ao soar da meia-noite
Naquele final de tarde de quarta-feira, dia 28 de Janeiro, dezasseis dias decorridos sobre a morte da estagiária Pearce, na sala de estar das alunas, situada no primeiro andar da Nightingale House, a estagiária Dakers estava a escrever a sua carta do meio da semana à mãe. Era seu costume acabá-la a tempo da tiragem do correio do fim da tarde, mas naquela semana tinha-lhe faltado energia e disposição para se dedicar à tarefa. O cesto de papéis aos seus pés continha já os exemplares amarrotados dos dois primeiros rascunhos rejeitados. E nesse momento estava a tentar de novo.
Encontrava-se sentada a uma das escrivaninhas gémeas defronte da janela, com o cotovelo esquerdo quase a roçar os pesados cortinados que isolavam a sala da fria e húmida escuridão da noite e o antebraço dobrado de modo protector sobre o bloco de papel de carta. Do lado oposto a ela, o candeeiro de mesa brilhava sobre a cabeça curvada de Madeleine Goodale, tão perto que a estagiária Dakers distinguia o crânio branco e limpo no sítio da risca e sentia o cheiro antisséptico do champô. A estagiária Goodale tinha dois livros de estudo na frente e tomava notas. Nada, pensava a estagiária Dakers com ressentida inveja, a preocupava; não havia coisa alguma, naquela sala ou para lá dela, que pudesse perturbar-lhe a tranquila concentração. A admirável e segura Goodale estava a garantir que a medalha de ouro John Carpendar para a aluna mais classificada no exame final acabaria por vir a ser-lhe posta no imaculado avental.
Assustada com a intensidade daquele súbito e aviltante antagonismo, que sentia não poder deixar de se transmitir à colega Goodale, a estagiária Dakers desviou os olhos da cabeça curvada tão desconcertantemente próxima e relanceou a vista pela sala. Esta era-lhe de tal modo familiar, no fim de quase três anos de estudos, que normalmente mal dava pelos pormenores da arquitectura ou do mobiliário. Nessa noite, porém, via-a com inesperada clareza, como se não tivesse qualquer relação consigo ou com a sua vida. Era demasiado ampla para ser aconchegadora e encontrava-se mobilada como se ao longo dos anos tivesse adquirido peças desirmanadas e as houvesse assimilado. Devia ter sido outrora uma elegante sala de visitas, mas as paredes haviam perdido o papel há muito e presentemente eram pintadas e achavam-se escalavradas, esperando - ao que se dizia - remodelação, assim que as disponibilidades financeiras o permitissem. A lareira, ornada de mármore lavrado e emoldurada de madeira de carvalho, estava equipada com um grande fogareiro a gás, velho e feio no estilo, mas ainda notoriamente eficaz, assoprando um intenso calor que atingia mesmo os mais sombrios recantos da sala. A elegante mesa de mogno encostada à parede do fundo, com a sua salgalhada de revistas, poderia ter sido legada pelo próprio John Carpendar. No entanto, hoje em dia encontrava-se riscada e baça, sendo limpa regularmente mas raras vezes encerada, com a superfície sulcada de mossas e manchas circulares. À esquerda da lareira, em incongruente contraste, via-se um grande e moderno televisor, oferta da Liga dos Amigos do Hospital. Defronte dele achava-se um enorme sofá forrado de cretone com as molas deprimidas e uma única poltrona condizente. As restantes cadeiras eram semelhantes às do serviço de doentes externos do hospital, mas estavam já demasiado velhas e coçadas para que se tolerasse a sua utilização pelos doentes. Os braços de madeira pálida estavam carunchosos e os assentos de vinilo colorido encontravam-se retesados e com mossas e naquele momento deitavam um cheiro desagradável sob o calor do fogo. Uma das cadeiras estava vaga. Era a cadeira de assento vermelho que a estagiária Pearce invariavelmente usara. Menosprezando a intimidade do sofá, costumava sentar-se ali, um pouco afastada da barafunda de alunas em redor do televisor, observando a tela com cuidado desinteresse, como tratando-se de um prazer que podia dispensar facilmente. De quando em quando baixava os olhos para um livro que tinha no regaço como se a fantasia apresentada para sua distracção se tivesse tornado demasiada, a ponto de não conseguir já suportá-la. A sua presença, pensava a estagiária Dakers, fora sempre um pouco importuna e opressiva. A atmosfera da sala de estar das alunas fora sempre mais leve e descontraída sem aquela figura aprumada e severa. No entanto, a cadeira vazia, o assento com mossas, eram quase piores. A estagiária Dakers desejou ter a coragem de avançar para ela, deslocá-la colocando-a em fila com as outras em redor do televisor e instalar-se desprendidamente nas suas curvas deprimidas, exorcizando de uma vez para sempre aquele espectro opressivo. Perguntou a si própria se as outras alunas sentiriam o mesmo. Era impossível perguntar-lho. Estariam as gémeas Burt, muito juntas e afundadas no sofá, realmente tão absortas como pareciam no velho filme de gangsters que estavam a ver? Estavam uma e outra a tricotar uma das grossas camisolas que invariavelmente vestiam de Inverno, com os dedos a avançarem com um ruído metálico pelo trabalho fora e sem nunca desviarem os olhos do televisor. Ao lado delas, a estagiária Fallon estava refastelada na poltrona, com uma perna envolvida pelas calças a baloiçar sem cerimónia por sobre o braço da cadeira. Era o seu primeiro dia de regresso à escola desde que faltara por doença e tinha ainda um ar pálido e fatigado. Estaria realmente o seu espírito concentrado no herói de cabelo liso e lustroso com o ridículo chapéu mole de fita larga e ombros enchumaçados, cuja voz roufenha, entrecortada por disparos de pistola, enchia a sala? Ou também ela estaria morbidamente consciente da cadeira vazia, do assento cheio de mossas, das extremidades arredondadas dos braços polidos pela mão da Pearce?
A estagiária Dakers estremeceu. O relógio de parede mostrava que passava já das nove e meia. Lá fora, o vento aumentava. Ia ser uma noite agreste. Nos raros intervalos de silêncio da televisão, ouvia o estalar e o suspiro das árvores e visualizava as últimas folhas caindo levemente na relva e no carreiro, isolando a Nightingale House num lamaçal de silêncio e decadência, Fez um esforço para voltar a pegar na caneta. Tinha mesmo de prosseguir! Não tardava que fossem horas de deitar e, uma a uma, as alunas dariam as boas-noites e desapareceriam, deixando-a a enfrentar sozinha a escadaria debilmente iluminada e o obscuro corredor que se lhe seguia. Claro que a Jo Fallon ainda ali ficaria. Nunca ia para a cama antes de o programa da televisão terminar. Nessa altura subiria sozinha as escadas para preparar o seu uísque quente com limão de todas as noites. Toda a gente conhecia o hábito invariável da Fallon. Mas a estagiária Dakers sentia que não seria capaz de enfrentar a ideia de ficar sozinha com a Fallon. A sua companhia seria a última que escolheria, até mesmo naquela solitária e assustadora caminhada entre a sala de estar e a cama.
Recomeçou a escrever:
Ora bem, mamã, agora vê lá se não te pões a empreender sobre o assassínio.
Mal viu as palavras no papel, deu-se conta da impossibilidade da frase. Fosse como fosse, tinha de evitar o emprego daquela palavra emotiva e manchada de sangue. Tornou a tentar.
Ora bem, mamã, agora vê se não ficas aí a ralar-te com o que vem nos jornais. Palavra que não vale a pena. Estou absolutamente segura e feliz e não há ninguém que acredite sinceramente que a Pearce tenha sido morta deliberadamente.
Claro que aquilo não era verdade. Alguém havia de pensar que a Pearce tinha sido morta deliberadamente; caso contrário, por que razão estaria a Polícia ali? E era disparate supor que o veneno pudesse ter entrado acidentalmente no alimento, ou que a Pearce, temente a Deus, conscienciosa e essencialmente desprovida de imaginação como era, tivesse resolvido matar-se daquela maneira angustiosa e espectacular. Continuou a escrever:
Ainda cá temos o pessoal do Departamento de Investigação Criminal da terra, mas agora já não vêm com tanta frequência. Têm sido muito simpáticos para com todas nós, as alunas, e não me parece que suspeitem de ninguém. A pobre da Pearce não era muito popular, mas não faz sentido pensar que alguém de cá quisesse fazer-lhe mal.
”Seria mesmo verdade que os polícias tinham sido simpáticos?”, pensou. Não havia dúvida de que haviam sido muito correctos, muito delicados. Tinham proferido todas as habituais banalidades acerca da importância de as pessoas colaborarem com eles na resolução daquela terrível tragédia, de dizerem sempre a verdade e de nunca omitirem coisa nenhuma, por mais trivial e insignificante que lhes parecesse. Nenhum deles havia levantado a voz; nenhum tinha sido agressivo ou intimidante. E todos haviam sido atemorizadores. A simples presença deles na Nightingale House, masculina e segura, fora, tal como a porta fechada da sala de aulas práticas, uma constante recordação de tragédia e medo. Para a estagiária Dakers, o mais atemorizador tinha sido o inspector Bailey. Tratava-se de um homem enorme, vermelhusco 39
e com cara de bolacha, cuja voz e modos encorajadores e paternais constituíam um enervante contraste com os frios olhos de porquinho. Os interrogatórios nunca mais paravam. Ela recordava ainda as sessões intermináveis e a força de vontade necessária para suportar aquele inquiridor olhar fixo.
- Ora bem, consta-me que a menina foi quem ficou mais perturbada quando a estagiária Pearce morreu. Porventura se tratava de uma amiga especial ?
- Não. A falar verdade, não. Não era uma amiga especial. Eu mal a conhecia.
- Bem, aí está o que se chama uma surpresa! Depois de cerca de três anos no mesmo curso com ela? Vivendo e trabalhando tão juntas, sempre pensei que todas vocês ficassem a conhecer-se bastante bem umas às outras.
Ela esforçava-se por explicar.
- Sob certos aspectos, ficamos. Conhecemos os hábitos umas das outras. Mas eu não sabia realmente como ela era; como pessoa, quero eu dizer.
Uma resposta disparatada. De que outra maneira se podia conhecer alguém, a não ser como pessoa? E não era verdade. Ela conhecia a Pearce. Conhecia-a muito bem.
- Mas davam-se bem uma com a outra? Não tinham tido nenhuma discussão, ou coisa que o valha? Nenhum desentendimento?
Uma palavra estranha. Desentendimento. Tinha visto novamente aquela figura grotesca, estendendo-se de modo vacilante para a frente, em sofrimento, com os dedos a esgaravatarem debalde no ar e a estreita sonda a alargar-lhe a boca como uma ferida. Não, não houvera desentendimentos.
- E as outras alunas? Também se davam bem com a estagiária Pearce? Tanto quanto sabe, não tinha havido nenhum amargo de boca?
Amargo de boca. Uma expressão idiota. Perguntou a si própria qual seria o antónimo. Doçura de boca? Só havia doçura de boca entre nós. Mas à Pearce não tinha ficado a boca doce. O que respondera fora:
- Tanto quanto sei, não tinha inimizades. E, se alguém não gostava dela, não seria a ponto de a matar.
- É o que todas vocês me dizem. Mas houve mesmo alguém que a matou, não houve? A menos que o veneno não se destinasse à estagiária Pearce. Ela só fez o papel de doente por acaso. Sabia que a estagiária Fallon tinha adoecido na noite anterior?
E assim por diante. Perguntas acerca de cada minuto daquela última e terrível aula prática. Perguntas acerca do desinfectante do lavabo. O frasco vazio, perfeitamente limpo de impressões digitais, fora encontrado pela Polícia caído entre os arbustos nas traseiras da casa. Qualquer pessoa o poderia ter atirado pela janela de um quarto ou casa de banho na obscuridade encobridora daquela manhã de Janeiro. Perguntas acerca dos seus movimentos desde o momento em que acordara. E a constante repetição, naquela voz ameaçadora, de que nada devia ser omitido, nada devia ser ocultado.
Perguntava a si própria se as outras alunas se teriam assustado como ela. As gémeas Burt tinham parecido meramente aborrecidas e resignadas, obedecendo às esporádicas convocações do inspector com um encolher de ombros e um fatigado: ”Oh, meu Deus, outra vez não!”
A estagiária Goodale nada havia dito ao ser chamada para o interrogatório, como nada dissera subsequentemente. A estagiária Fallon tinha sido igualmente reticente. Sabia-se que o inspector Bailey a tinha entrevistado na enfermaria mal ela ficara suficientemente boa para receber visitas. Ninguém sabia o que acontecera durante essa entrevista. Era voz corrente que a Fallon admitira ter regressado à Nightingale House ao começo da manhã do crime mas se recusara a dizer porquê. Isso seria mesmo coisa da Fallon. E agora tinha voltado para a Nightingale House, a juntar-se novamente ao grupo. Até ao momento, nem sequer se tinha referido ainda à morte da Pearce. A estagiária Dakers interrogava-se sobre se e quando o faria; e, morbidamente sensível ao significado oculto de cada palavra, prosseguiu penosamente a carta:
Não voltámos a utilizar a sala de aulas práticas depois da morte da estagiária Pearce, mas, afora isso, o grupo continua a trabalhar de acordo com o programa estabelecido. Só uma das alunas, a Diane Harper, abandonou a escola. O pai veio buscá-la dois dias depois da morte da estagiária Pearce e a Polícia não pareceu importar-se com o facto de ela partir. Todas nós achámos uma estupidez ela desistir tão perto dos exames finais, mas o pai nunca simpatizou grandemente com o facto de ela estudar enfermagem e, seja como for, está noiva, de modo que penso que ela tenha achado que não fazia mal. Ninguém mais pensa sair e não há realmente o menor perigo. Por isso, querida mãe, peço-te que não te preocupes mais por minha causa. Agora vou passar a falar-te do programa para amanhã.
Agora já não havia necessidade de continuar a fazer rascunho. O resto da carta seria fácil. Releu o que tinha escrito e concluiu que serviria. Tirando uma folha nova do bloco, começou a escrever a carta definitiva. Com um pouco de sorte terminá-la-ia antes de o filme acabar e as gémeas porem de lado a malha e reV colherem à cama.
Começou rapidamente a escrevinhar e, meia hora mais tarde, terminada a carta, viu com alívio que o filme atingira o holocausto final e o último abraço. Nesse preciso momento, a estagiária Goodale tirou os óculos de ler, ergueu a vista do trabalho e fechou o livro. A porta abriu-se e apareceu Julia Pardoe.
- Já cheguei - anunciou ela, bocejando. - O filme era uma porcaria. Alguém vai fazer chá?
Ninguém respondeu, mas as gémeas cravaram as agulhas de tricotar nos novelos de lã e foram ter com ela à porta, desligando o televisor de caminho. A Pardoe nunca se dava ao trabalho de fazer chá se arranjasse alguém que o fizesse, e normalmente as gémeas prestavam esse serviço. Saindo da sala de estar no encalço delas, a estagiária Dakers virou-se a observar a figura silenciosa e imóvel da Fallon agora sozinha com Madeleine Goodale. Sentiu um súbito impulso de falar com a Fallon, de lhe dar as boas-vindas de regresso à escola, de lhe perguntar pela saúde ou pura e simplesmente de lhe dirigir as boas-noites. Mas as palavras pareciam prender-se-lhe na garganta, o momento passou e a última coisa que viu ao fechar a porta atrás de si foi o rosto pálido e individual da Fallon, de olhos inexpressivos ainda presos no televisor, como se não se tivesse dado conta de que a tela estava muda e queda.
Num hospital, até o próprio tempo é documentado: os segundos medidos nas pulsações, no gotejar do sangue ou do plasma; os minutos na paragem de um coração; as horas na subida e descida de um gráfico de temperaturas, na duração de uma operação. Quando os acontecimentos da noite de 28 para 29 de Janeiro acabaram por ser documentados, havia poucos protagonistas no Hospital John Carpendar que não tivessem a noção do que haviam estado a fazer ou onde se encontravam a qualquer dado momento das horas em que se achavam acordados. Podiam não optar por dizer a verdade, mas pelo menos sabiam onde estava a verdade.
Fora uma noite de tempestade violenta mas errática, com o vento a variar de intensidade e mesmo de direcção de uma hora para outra. Às dez horas pouco mais era que um soluçante obbligato por entre os ulmeiros. Uma hora depois atingiu subitamente um crescente de fúria. Os grandes ulmeiros em redor da Nightingale House estalavam e gemiam sob a arremetida, enquanto o vento uivava por entre eles como a casquinada dos demónios. Pelos carreiros desertos, os montes de folhas mortas, ainda empapados da chuva, deslizavam arrastadamente, para a seguir se dividirem em correntes, levantando-se em furiosos remoinhos como insectos dementes e acabando por se colarem às cascas das árvores. No bloco operatório situado no último piso do hospital, Mr. Courtney-Briggs demonstrava a sua imperturbabilidade perante uma crise murmurando para o estagiário que o assistia que estava uma noite terrível, antes de voltar a inclinar a cabeça para a deleitosa contemplação do intrigante problema cirúrgico que palpitava entre os bordos retraídos da ferida. Por baixo dele, nas enfermarias silenciosas e debilmente iluminadas, os doentes murmuravam e viravam-se em pleno sono como se tivessem consciência do alvoroço do exterior. A radiologista, que fora chamada de casa para tirar uma radiografia urgente ao doente de Mr. Courtney-Briggs, voltou a colocar as capas no aparelho, apagou as luzes e perguntou de si para si como se aguentaria no caminho o seu pequeno automóvel. As enfermeiras de vela passavam silenciosamente entre os doentes verificando as janelas e correndo melhor os cortinados como que para isolar lá fora uma qualquer força estranha e ameaçadora. O porteiro de serviço no casinhoto do portão principal mexeu-se inquieto na cadeira, após o que se levantou entorpecido e meteu mais uns pedaços de carvão na lareira. No seu isolamento, sentia necessidade de calor e conforto. O casinhoto parecia estremecer a cada rajada de vento.
Pouco antes da meia-noite, porém, a tempestade amainou, como se pressentisse a proximidade da hora das bruxas, a calada da noite em que o pulso humano bate mais lento e os doentes moribundos deslizam mais facilmente para o derradeiro olvido. Houve um silêncio fantasmagórico durante cerca de cinco minutos, seguido de um leve gemer rítmico à medida que o vento se precipitava e zunia por entre as árvores como que exausto devido à sua própria fúria. Mr. Courtney-Briggs, terminada a operação, retirou as luvas e dirigiu-se ao vestiário dos cirurgiões. Mal se despiu, fez uma chamada pelo telefone de parede para o piso das enfermeiras da Nightingale House e pediu à enfermeira Brumfett, que era a encarregada da enfermaria particular, que voltasse à enfermaria a fim de superintender nos cuidados a dispensar ao seu doente durante a primeira hora crítica. Verificou com satisfação que o vento amainara. Ela podia fazer o trajecto atravessando os terrenos conforme já fizera a seu pedido vezes sem conta. Escusava de se sentir na obrigação de ir buscá-la no automóvel.
Decorridos menos de cinco minutos, a enfermeira Brumfett marchava resolutamente por entre as árvores, de capa enrolada no corpo como uma bandeira cingida ao respectivo mastro e capuz baixo sobre a pregueada touca de enfermeira. O tempo estava curiosamente calmo, naquele breve interlúdio da tempestade. A enfermeira progredia silenciosamente pela relva ensopada, sentindo a tracção do solo empapado através das grossas solas dos sapatos ao mesmo tempo que, de quando em quando, um galho delgado, quebrado pela tempestade, se soltava da última fibra de casca e se abatia surdamente aos seus pés com uma suave inadvertência. No momento em que alcançara a tranquilidade da enfermaria particular e estava a ajudar a estagiária do terceiro ano a fazer a cama pós-operatória e a preparar o suporte para o frasco de sangue, o vento aumentara de novo. A enfermeira Brumfett, porém, embrenhada na sua tarefa, já não deu por isso. Pouco após a meia-noite e meia hora, Albert Colgate, o porteiro da noite no casinhoto principal, que cabeceava sobre o jornal da tarde, foi sobressaltadamente chamado à realidade por um feixe de luz varrendo a janela do casinhoto e pelo ronronar de um automóvel que se aproximava. ”Deve ser o Daimler de Mr. Courtney-Briggs”, pensou. Portanto, a operação tinha terminado. Contava que o automóvel saísse rapidamente pelo portão principal, mas, inesperadamente, o carro deteve-se. Ouviram-se dois toques peremptórios de buzina. Resmungando, o porteiro enfiou os braços no sobretudo e atravessou a porta do casinhoto. Mr. Courtney-Briggs baixou o vidro da janela e gritou-lhe através da ventania:
- Tentei sair pelo portão de Winchester, mas há uma árvore caída que ficou atravessada no caminho. Achei melhor vir informá-lo. Mande tratar disso o mais depressa possível.
O porteiro enfiou a cabeça pela janela, deparando-se-lhe um imediato e requintado odor de fumo de charuto, loção para depois da barba e couro. Mr. Courtney-Briggs recuou ligeiramente daquela proximidade. O porteiro disse:
- Deve ser com certeza um daqueles ulmeiros antigos, senhor doutor. vou comunicá-lo logo de manhãzinha. Agora de noite não posso fazer nada, senhor doutor, no meio desta tempestade.
Mr. Courtney-Briggs começou a fechar a janela. A cabeça de Colgate fez uma retirada súbita.
- Não há necessidade de fazer nada agora de noite - disse o cirurgião. - Amarrei o meu lenço de pescoço branco a um dos galhos. Duvido que mais alguém passe por aquele caminho antes de amanhã de manhã. Se tal acontecer, hão-de ver o lenço. Mas o senhor pode avisar quem quer que siga nessa direcção. Boa noite, Colgate.
O grande automóvel afastou-se, ronronando, do portão da frente e Colgate retrocedeu pelo mesmo caminho até ao casinhoto. Meticulosamente, viu as horas no relógio de parede por sobre a lareira e registou no livro respectivo: ”00.32 - Mr. CourtneyBriggs informou haver uma árvore caída a obstruir o caminho da Winchester Road.”
Tinha voltado a instalar-se na cadeira e já retomara nas mãos o jornal quando o assaltou a ideia de que era estranho Mr. Courtney-Briggs ter tentado sair pelo portão de Winchester. Não era o caminho mais rápido para sua casa e tratava-se de um trajecto que raramente usava. Mr. Courtney-Briggs utilizava invariavelmente a entrada da frente. Provavelmente, pensou Colgate, Mr. Courtney-Briggs tinha uma chave do portão da Winchester Road. Mr. Courtney-Briggs tinha chaves da maioria dos locais do hospital. Mas, ainda assim, era estranho.
Momentos antes das duas da madrugada, no silencioso segundo piso da Nightingale House, Maureen Burt remexeu-se no sono, murmurou incoerentemente através dos húmidos lábios apertados e acordou para a desagradável consciência de que, em lugar das três chávenas de chá antes de dormir, se devia ter limitado a uma. Permaneceu imóvel por instantes, sonolentamente cônscia do gemer da borrasca, perguntou a si própria se no fim de contas não conseguiria voltar a pegar no sono, apercebeu-se de que o mal-estar era demasiado intenso para conseguir suportá-lo razoavelmente e tacteou em busca do interruptor do candeeiro da mesa-de-cabeceira. A luz acendeu-se instantaneamente, ofuscante, despertando-a por inteiro com um sobressalto. Enfiou os pés nos chinelos de quarto, pôs o roupão pelos ombros e arrastou-se até ao corredor. Ao fechar silenciosamente a porta do quarto atrás de si, uma súbita rajada de vento enfunou os cortinados na janela ao fundo do corredor. Atravessou-o para a fechar. Através do sacudido rendilhado de ramos e das suas sombras saltitantes na vidraça, viu o hospital galgando a tempestade como um grande navio fundeado, no qual se viam as janelas das enfermarias apenas debilmente luminosas em comparação com a linha vertical de olhos profusamente iluminados que revelava os gabinetes das enfermeiras e as cozinhas das enfermarias. Fechou cuidadosamente a janela e, cambaleando ligeiramente de sono, avançou às apalpadelas pela passagem até ao lavabo. Decorrido menos de um minuto voltou a sair para o corredor, fazendo uma momentânea pausa a fim de acostumar a vista à claridade. No meio da confusão de sombras no cimo das escadas, sobressaiu uma sombra mais carregada, que avançou e se revelou como uma figura de capa e capuz. Maureen não era uma rapariga nervosa e, no seu estado de sonolência, apenas teve consciência de um sentimento de surpresa pelo facto de outra pessoa estar acordada e andar por ali. Verificou de imediato que se tratava da enfermeira Brumfett. Dois penetrantes olhos munidos de óculos perscrutaram na sua direcção no meio da obscuridade. A voz da enfermeira era inesperadamente cortante: - É uma das gémeas Burt, não é verdade? Que faz aqui? Está alguém mais a pé?
- Não, senhora enfermeira. Pelo menos não me parece. Acabo de ir à casa de banho.
- Ah, compreendo. Bem, se estão todas bem, é o que interessa. Pensei que a tempestade as tivesse perturbado. Acabo de regressar da minha enfermaria. Um dos doentes de Mr. Courtney Briggs teve uma recaída e ele teve de o operar de urgência.
- Sim, senhora enfermeira - respondeu a estagiária Burt, não sabendo bem que mais se esperava dela. Surpreendia-a o facto de a enfermeira Brumfett se dar ao trabalho de explicar a sua presença a uma simples aluna de enfermagem, e ficou a observar um tanto insegura enquanto a enfermeira apertava melhor a capa ao corpo e percorria pesada e apressadamente o corredor em direcção às escadas mais distantes. O quarto dela ficava no piso de cima, imediatamente a seguir ao apartamento da superintendente. Quando atingiu o fundo das escadas, a enfermeira Brumfett voltou-se e pareceu prestes a dizer qualquer coisa. Foi nesse momento que a porta de Shirley Burt se abriu lentamente, surgindo uma cabeça ruiva desgrenhada.
- Que se passa? - inquiriu, sonolenta.
A enfermeira Brumfett avançou para elas.
- Nada, estagiária. vou pura e simplesmente voltar para a cama. Venho da minha enfermaria. E a Maureen teve de se levantar para ir à casa de banho. Não há motivo para preocupações. Shirley não dava a impressão de estar ou alguma vez ter estado preocupada. Naquele momento trotou até ao patamar, embrulhando-se no roupão. Resignada e um tanto complacente, disse:
- Quando a Maureen acorda, acordo também. Desde bebés que somos assim. A mamã que o diga!
Levemente vacilante de sono mas não descontente pelo facto de a teuria da família ainda funcionar, fechou a porta do quarto atrás de si com a determinação de quem, uma vez que está de pé, tenciona manter-se de pé.
- Não vale a pena tentar voltar a pegar no sono, com este vento. vou preparar cacau. Podemos levar-lhe uma caneca lá acima, senhora enfermeira? Sempre a ajudava a adormecer.
- Não, obrigada, estagiária. Não me parece que tenha qualquer dificuldade em adormecer. Façam o menos barulho que puderem. Não hão-de querer incomodar as outras, com certeza. E vejam lá, não apanhem frio.
Voltou-se uma vez mais para a escadaria. Maureen disse:
- A Fallon está acordada. Pelo menos o candeeiro da mesa-de-cabeceira dela ainda está aceso.
Olharam as três para o fundo do corredor, onde uma réstia de luz, coando-se pelo buraco da fechadura do quarto da estagiária Fallon, sulcava a escuridão e lançava uma pequena sombra luminosa no lambrim fronteiro da parede com ornatos.
- Nesse caso levamos-lhe uma caneca - disse Shirley. - Provavelmente está acordada e a ler. Vamos, Maureen! Boa noite, senhora enfermeira.
Cruzaram juntas o corredor, arrastando os pés, até à pequena sala comum que ficava ao fundo. Depois de uma pausa de um segundo, a enfermeira Brumfett, que tinha estado a olhá-las fixamente, de rosto fechado e inexpressivo, virou-se finalmente para as escadas e apressou-se a recolher à cama.
Precisamente uma hora mais tarde, mas sem que ninguém na Nightingale House o ouvisse ou registasse, uma vidraça enfraquecida da estufa, que durante toda a noite estremecera espasmodicamente, caiu para dentro, explodindo em estilhaços no pavimento de mosaicos. O vento precipitou-se por aquela brecha como um animal em perseguição. O seu hálito frio roçou as revistas nas mesas de verga, ergueu as frondes das palmeiras e agitou de leve as folhas dos fetos. Finalmente deu com o amplo armário centrado sob as prateleiras de plantas. Ao princípio da noite, a porta tinha sido deixada aberta de par em par pelo visitante desesperado e pressuroso que enfiara a mão nas profundezas do armário. Durante toda a noite a porta ficara aberta, imóvel nas dobradiças. Agora, porém, o vento obrigava-a a oscilar suavemente de um lado para outro e finalmente, como que cansado da brincadeira, fechou-a com um leve e decisivo baque.
Sob o tecto da Nightingale House tudo o que estava vivo dormia.
A estagiária Dakers foi acordada pelo zumbido do despertador da mesa-de-cabeceira. O mostrador debilmente luminoso marcava seis e um quarto. Mesmo com as cortinas arredadas para o lado, o quarto permanecia completamente envolto na escuridão. O quadrado de luz mortiça vinha, como sabia, não da porta, mas sim das luzes distantes do hospital, onde o pessoal de vela deveria estar já a servir as primeiras chávenas de chá da manhã. Manteve-se quieta por momentos, adaptando-se ao estado vigil e lançando antenas hesitantes para sondar o dia. Tinha dormido bem apesar da tempestade, da qual apenas momentaneamente se dera conta. Percebeu com um sobressalto de júbilo que podia realmente enfrentar o dia animada de confiança. A tristeza e apreensão da noite anterior, das semanas anteriores, parecia ter-se dissipado. Afigurava-se agora não ser mais que o efeito do cansaço e de uma depressão temporária. Tinha atravessado um túnel de tristeza e insegurança desde a morte da Pearce, mas nessa manhã, miraculosamente, voltara novamente à luz do dia. Assemelhava-se à manhã do dia de Natal na infância. Era o início de umas férias de Verão da escola. Era acordar fresca outra vez no final de uma doença febril, com a confortável noção de que a mamã estava ao pé e tinha diante de si todo o refrigério da convalescença. Era a vida familiar retomada.
O dia brilhava diante dela. Contabilizou as suas promessas e prazeres. De manhã haveria a palestra sobre farmacologia. Era importante. Fora sempre fraca em medicamentos e doses. Depois, a seguir ao intervalo para o café, Mr. Courtney-Briggs ministraria o seu seminário de cirurgia do terceiro ano. O facto de um cirurgião tão eminente se preocupar tanto com o ensino das estagiárias de enfermagem constituía um privilégio. Ela temia-o um pouco, em especial as suas cortantes perguntas em staccato. Nessa manhã, pórém, seria corajosa e falaria confiantemente em voz alta. Depois, à tarde, o autocarro do hospital conduziria o grupo à maternidade e à clínica pediátrica da terra a fim de assistirem ao trabalho do pessoal especializado. Também isso era importante para uma pessoa que alimentava a esperança de vir a ser enfermeira-visitadora. Deixou-se estar deitada por momentos a contemplar aquele animador programa e a seguir saiu da cama, enfiou os pés nos chinelos, envergou atabalhoadamente o roupão barato e percorreu a passagem até à sala de uso geral das estagiárias.
As estagiárias eram pontualmente acordadas todas as manhãs às sete horas por uma das criadas, mas a maioria das alunas, habituadas a levantarem-se cedo no serviço das enfermarias, punham os despertadores para as seis e meia a fim de terem tempo para fazer chá e tagarelar. As madrugadoras estavam já ali. A pequena sala encontrava-se fortemente iluminada, animadamente doméstica, cheirando, como sempre, a chá, leite fervido e detergente. A cena era tranquilizadoramente normal. As gémeas Burt estavam lá, de caras ainda inchadas do sono, cada uma delas solidamente embrulhada no seu roupão vermelho-vivo. Maureen trazia o rádio portátil sintonizado para a Rádio 2 e sacudia levemente as ancas e os ombros ao ritmo sincopado do programa do início da manhã da BBC. A outra gémea estava a colocar as enormes canecas de ambas num tabuleiro e vasculhava numa lata em busca de biscoitos. A única outra aluna presente era Madeleine Goodale, que, envergando um antigo roupão de escocês, vigiava, de bule na mão, o aparecimento do primeiro bafo de vapor da chaleira. Optimista e aliviada como estava, a estagiária Dakers seria muito capaz de as abraçar a todas.
- Onde pára esta manhã a Fallon? - perguntou Maureen Burt sem grande interesse.
A estagiária Fallon era bem conhecida por se levantar tarde, mas normalmente uma das primeiras a fazer chá. Era seu costu’me levá-lo de volta para o saborear ociosamente na cama, onde se deixava ficar até ao último momento possível de modo a poder chegar a tempo à mesa do pequeno-almoço. Nessa manhã, contudo, o seu bule pessoal e a chávena e o pires a condizer estavam ainda na prateleira do armário ao lado da lata de chá-da-china que a Fallon preferia à forte infusão castanha que o resto do grupo achava necessário para poder enfrentar o dia.
- Eu vou chamá-la - sugeriu a estagiária Dakers, satisfeita por ser útil e ansiando por festejar a sua libertação da tensão das últimas semanas através de uma benevolência geral.
- Espera um bocadinho, que podes levar-lhe uma chávena do meu bule - disse Maureen.
- Ela não há-de gostar de chá-da-índia. vou só ver se está acordada e dizer-lhe que a chaleira já ferve. Por um instante ocorreu à estagiária Dakers preparar o chá da Fallon. Mas o impulso desvaneceu-se. Não que a Fallon fosse particularmente temperamental ou imprevisível, mas em qualquer caso as pessoas não interferiam nas suas coisas pessoais nem esperavam que ela as compartilhasse. Tinha poucas coisas, mas as que tinha eram caras, elegantes, cuidadosamente escolhidas e faziam de tal modo parte da sua persona que pareciam sacrossantas.
A estagiária Dakers quase correu pela galeria até ao quarto da Fallon. A porta estava no trinco, o que não a surpreendeu. Desde a ocasião em que uma aluna tinha adoecido de noite, havia uns anos, e se sentira demasiado fraca para se arrastar ao longo do quarto a fim de abrir a porta, estabelecera-se uma norma que proibia as raparigas de se fecharem por dentro à noite. A partir da morte da Pearce, uma ou outra tinha começado a dar a volta à chave e, se as enfermeiras suspeitavam do facto, nada diziam. Talvez elas também dormissem mais profundamente com a porta fechada à chave. Mas a Fallon não se intimidara.
As cortinas estavam bem fechadas. O candeeiro da mesa-de-cabeceira estava aceso, mas com o quebra-luz ajustável inclinado de tal modo que lançava uma luz pálida na parede mais afastada e deixava a cama envolta na penumbra. Na almofada via-se um emaranhado de cabelos negros. A estagiária Dakers tacteou a parede em busca do interruptor e fez uma pausa antes de dar ao botão. Depois premiu-o muito ao de leve, como se fosse possível iluminar muito suave e gradualmente o quarto e poupar à Fallon aquele primeiro despertar violento. O quarto inundou-se de luz e a estagiária Dakers piscou os olhos sob o inesperado clarão. A seguir cruzou muito lentamente o quarto até à cama. Não gritou nem desmaiou. Ficou absolutamente imóvel por um instante, fitando o corpo da Fallon e sorrindo ligeiramente como que surpreendida. Não tinha dúvidas de que a Fallon estava morta. Os olhos estavam ainda arregalados, mas encontravam-se frios e opacos, como os dos peixes mortos. A estagiária Dakers baixou-se e fitou-os bem como se quisesse forçá-los a recuperar o brilho ou procurando em vão qualquer vestígio do seu reflexo. Seguidamente virou-se devagar e abandonou o quarto, apagando a luz e fechando a porta atrás de si. Cambaleava como uma sonâmbula pelo corredor, firmando as mãos contra a parede.
Inicialmente, as alunas não deram pelo seu regresso. A seguir, fixaram-se subitamente nela três pares de olhos e três figuras assumiram uma postura imóvel, num quadro de intrigada interrogação. A estagiária Dakers encostou-se à ombreira da porta e abriu a boca sem produzir qualquer som. As palavras recusavam-se a sair. Dir-se-ia que algo acontecera à garganta. Todo o maxilar tremia incontrolavelmente e a língua estava presa ao céu da boca. Os seus olhos endereçavam uma súplica às colegas. Pareceram decorrer minutos enquanto elas observavam a sua luta. Quando as palavras finalmente saíram, a voz dela era calma, suavemente surpreendida.
- É a Fallon. Está morta.
Sorriu como alguém que acordasse de um sonho, explicando pacientemente:
- Alguém assassinou a Fallon.
A sala esvaziou-se. Ela não se apercebeu da debandada concertada das outras pelo corredor fora. Viu-se sozinha. A chaleira apitava já, com a tampa a chocalhar sob a pressão do vapor. Cuidadosamente, fechou o gás, franzindo o sobrolho de concentração. Muito lentamente, como uma criança encarregada de uma missão preciosa, retirou para baixo a lata, o delicado bule e a chávena e o pires a condizer e, trauteando de leve para consigo, fez o chá matinal da Fallon.
Estranhos em casa
- Chegou o médico legista, senhor inspector.
Um agente enfiou a cabeça de cabelo rapado pela porta e ergueu o sobrolho interrogativamente.
O inspector-chefe Adam Dalgliesh virou-se, suspendendo o exame do vestuário da rapariga morta, com o seu metro e oitenta e sete desconfortavelmente encurralado entre os pés da cama e a porta do guarda-vestidos. Consultou o relógio. Passavam oito minutos das dez. Sir Miles Honeyman, como sempre, tinha vindo depressa.
- Muito bem, Penning. Peça-lhe que tenha a bondade de aguardar um momento, está bem? Dentro de um minuto acabamos o que temos de fazer aqui. Nessa altura alguns de nós podem sair e arranjar espaço para ele.
A cabeça desapareceu. Dalgliesh fechou a porta do guarda-vestidos e conseguiu apertar-se de modo a caber entre ele e os pés da cama. Não restavam dúvidas que, de momento, não havia espaço para uma quarta pessoa. O corpo volumoso do homem das impressões digitais ocupava o espaço entre a mesa-de-cabeceira e a janela enquanto, quase dobrado ao meio, espalhava carvão cuidadosamente com um pincel na superfície da garrafa de uísque, virando-a segura pela rolha. Junto da garrafa estava um copo de vidro com as impressões digitais da rapariga, notando-se perfeitamente as formas em espiral e em turbilhão.
- Alguma coisa por aí? - perguntou Dalgliesh.
O homem das impressões digitais fez uma pausa e perscrutou mais detidamente.
- Está a aparecer um belo conjunto de impressões; senhor inspector. Não há dúvida de que são dela. Mas mais nada. Parece que o tipo que a vendeu lhe fez a limpeza do costume antes de a embrulhar. Há-de ser interessante ver o que tiramos do copo.
Deitou um olhar ciosamente possessivo ao copo, que estava no lugar onde tinha tombado da mão da rapariga, levemente poisado numa curva da coberta. Só depois de tirada a última fotografia o levantariam para ser examinado.
Voltou a curvar-se sobre o seu trabalho na garrafa. Atrás dele, o fotógrafo da Yard manobrava o tripé e a máquina - uma nova cambo monocarril, notou Dalgliesh - para a extremidade inferior direita da cama. Houve um estalido, uma explosão de luz, e a imagem da rapariga morta saltou na direcção deles, ficando suspensa no ar, ardendo na retina de Dalgliesh. As cores e formas intensificaram-se e distorceram-se naquele cruel clarão momentâneo. O comprido cabelo negro era uma cabeleira emaranhada sobre o fundo alvo das almofadas; os olhos vidrados eram berlindes exoftálmicos, como se o rigor mortis os estivesse a expulsar das órbitas para fora; a pele era muito branca e macia, com um aspecto repulsivo ao tacto, uma membrana artificial, dura e impermeável como vinilo. Dalgliesh piscou os olhos, apagando a imagem de objecto de brinquedo de bruxa, uma grotesca boneca arremessada ao acaso para cima da almofada. Quando voltou a olhar para ela, era uma rapariga morta numa cama; nem mais, nem menos. Por duas outras vezes a imagem distorcida saltou ao seu encontro e ficou petrificada no ar quando o fotógrafo tirava duas fotografias com a máquina Polaroid Land a fim de fornecer a Dalgliesh as duas chapas imediatas que ele pedia sempre. Depois tudo terminou.
- Foi a última. Acabei, senhor inspector - disse o fotógrafo. Agora vou deixar entrar Sir Miles.
Meteu a cabeça pela porta enquanto o homem das impressões digitais, rosnando de satisfação, erguia amorosamente o copo da coberta com uma pinça e o poisava ao lado da garrafa de uísque.
Sir Miles devia estar à espera no umbral da porta, visto que entrou imediatamente num passo ligeiro, revelando a sua familiar figura rotunda com a enorme cabeça de cabelo negro encaracolado e ávidos olhos brilhantes como contas. Trazia consigo um ar de bonhommi de espectáculo musical e, como sempre, um leve odor de suor ressequido. A espera não o perturbara. Mas a verdade é que Sir Miles, presente de Deus à medicina legal ou charlatão amador, consoante se quisesse considerá-lo, não se ofendia facilmente. Tinha conquistado boa parte da fama e também, possivelmente, o recente grau de cavaleiro aderindo ao
princípio de que nunca se deve ofender deliberadamente ninguém, por mais humilde que seja. Saudou o fotógrafo e o funcionário das impressões digitais, ambos de partida, como se fossem velhos amigos, e Dalgliesh pelo nome próprio. No entanto, as cortesias não passavam de uma formalidade; ao insinuar-se até junto da cama, a sua preocupação precedia-o como um miasma.
Dalgliesh desprezava-o como vampiro; dificilmente aquilo podia considerar-se, reconhecia-o, motivo racional de antipatia. Num mundo perfeitamente organizado, os feiticistas dos pés tornar-se-iam pedicuros; os feiticistas de cabelos, cabeleireiros; e os vampiros, mórbidos anatomistas. Era surpreendente que tão poucos o fizessem. Porém, Sir Miles ficava a descoberto para a insinuação. Acercava-se de cada novo cadáver com avidez, quase com satisfação; as suas piadas macabras tinham sido ouvidas em metade dos restaurantes de Londres; era um especialista da morte que gostava visivelmente do seu trabalho. Dalgliesh sentia-se inibido na sua companhia devido à consciência da sua aversão pelo homem. Dir-se-ia que a antipatia crepitava do seu ser. Sir Miles, porém, não tinha noção desse facto. Gostava demasiado de si próprio para conceber que outros homens pudessem achá-lo menos cativante, e essa simpática ingenuidade conferia-lhe uma espécie de fascínio. Até os colegas que mais deploravam a sua presunção, a sua ânsia de publicidade e a irresponsabilidade da maioria das suas declarações públicas, tinham dificuldade em antipatizar tanto com ele como achavam que deviam. Dizia-se que as mulheres o consideravam atraente. Talvez exercesse sobre elas uma fascinação mórbida. Sem sombra de dúvida, a sua disposição era o bom humor contagiante de um homem que acha necessariamente o mundo um lugar agradável visto que o contém a ele.
Soltava sempre exclamações de censura diante dos cadáveres. Assim fazia agora, afastando o lençol com um curioso gesto petulante dos dedos sapudos. Dalgliesh avançou até à janela e contemplou o rendilhado de ramos através do qual o hospital distante, ainda cheio de luzes, cintilava como um palácio imaterial suspenso no ar, Ouviu o débil restolhar da roupa de cama. Sir Miles devia estar a fazer um simples exame preliminar, mas a simples ideia daqueles dedos sapudos insinuando-se nos moles orifícios do corpo bastava para uma pessoa desejar uma morte tranquila no seu próprio leito. O verdadeiro trabalho seria feito mais tarde na mesa do necrotério, aquela banca de alumínio com os seus lúgubres acessórios de drenos e pulverizadores na qual o corpo de Josephine Fallon seria sistematicamente desmembrado em nome da justiça, ou da ciência, ou da curiosidade, ou do que quer que fosse. E mais tarde, o assistente de Sir Miles na morgue ganharia o seu quinhão voltando a cosê-lo para lhe conferir um aspecto decente de humanidade de modo que a família pudesse observá-lo sem ficar traumatizada. Se é que havia família. Perguntou a si próprio quem seriam os componentes do cortejo fúnebre da Fallon, se os houvesse. À primeira vista, não havia nada no quarto dela - nem fotografias, nem cartas - que indicasse laços estreitos entre ela e qualquer ser vivo.
Enquanto Sir Miles suava e resmungava, Dalgliesh procedeu a uma segunda revista ao quarto, tomando o cuidado de não olhar para o médico legista. Sabia que essa susceptibilidade era irracional e sentia-se meio envergonhado dela. Os exames post mortem não o perturbavam. O que não conseguia suportar era aquele escrutínio impessoal do corpo da mulher ainda quente. Poucas horas antes, ela teria direito a um certo pudor, a escolher o seu próprio médico, possuiria a liberdade de rejeitar aqueles dedos sobrenaturalmente brancos e avidamente exploradores. Poucas horas antes era um ser humano. Agora não passava de carne morta.
Tratava-se do quarto de uma mulher que preferia não estar atravancada. Continha as necessárias comodidades básicas e um ou dois elementos decorativos cuidadosamente escolhidos. Era como se ela tivesse catalogado as suas necessidades e as satisfizesse dispendiosamente mas com rigor e sem extravagância. O espesso tapete junto da cama não era, pensou ele, do tipo fornecido pela Comissão de Gestão do hospital. Havia apenas um quadro, mas tratava-se de uma aguarela original, uma encantadora paisagem da autoria de Robert Hills, colocada no sítio em que a luz da janela a iluminava melhor. No parapeito da janela via-se o único ornamento, uma figura em cerâmica de Staffordshire representando John Wesley1 a pregar no púlpito. Dalgliesh fê-la rodar nas mãos. Era perfeita; uma peça de coleccionador. Mas não se via nenhum dos triviais pertences que as pessoas que vivem em instituições muitas vezes espalham para lhes proporcionar conforto ou segurança.
Avançou até à estante ao lado da cama e voltou a examinar os
livros. Também estes se diriam escolhidos de modo a contribuir para estados de espírito previsíveis. Uma colecção de poesia moderna, que incluía o último livro de Dalgliesh; um conjunto completo de Jane Austen, bastante usado mas com encadernações de pele e impresso em papel bíblia; alguns livros de filosofia que eram um harmonioso compromisso entre o erudito e obras de divulgação; cerca de duas dúzias de exemplares brochados de romances modernos: Greene, Waugh, Compton Burnett, Hartley, Powell, Gary. Mas a maior parte dos livros eram de poemas. ”A avaliar por eles”, pensou, ”tínhamos os mesmos gostos. Se nos tivéssemos conhecido, pelo menos teríamos alguma coisa a dizer um ao outro.” ”Não há morte de alguém que não me diminua.” Mas com certeza, doutor Donne1. Aquela máxima exploradíssima tinha-se convertido numa frase feita em voga num mundo superlotado em que o não envolvimento era praticamente uma necessidade social. Mas algumas mortes conservavam ainda o poder de diminuírem mais do que outras. Pela primeira vez em anos tinha consciência de uma sensação de desperdício, de ilógica perda pessoal.
Passou adiante. Aos pés da cama ficava um guarda-vestidos com cómoda acoplada, uma engenhoca bastarda de madeira clara, concebida, se é que alguém tinha concebido deliberadamente um objecto tão feio, para proporcionar o máximo de arrumação num mínimo de espaço. O tampo da cómoda destinava-se a servir de toucador e tinha poisados a escova e o pente da rapariga. Nada mais.
Abriu a pequena gaveta do lado esquerdo. Continha os acessórios de maquilhagem, com os frascos e bisnagas muito arrumados num pequeno tabuleiro de papier mâché. Havia bastantes mais coisas do que ele esperara encontrar: creme de limpeza, uma caixa de lenços de papel, creme de base, pó-de-arroz compacto, sombra para os olhos e rimmel. Era visível que a rapariga se pintava com esmero. No entanto havia apenas uma coisa de cada. Nada de experiências, de compras por entusiasmo de momento, nem de bisnagas meio utilizadas e postas de parte com o produto de maquilhagem coagulado em torno da carrapeta. O conjunto dizia: ”Isto é o que me fica bem. É disto que preciso. Nem de mais, nem de menos.”
Abriu a gaveta do lado direito. Não continha mais nada além
de um arquivo de tipo fole, com todos os compartimentos etiquetados com as letras do alfabeto. Passou em revista o conteúdo, dedilhando-o. Uma certidão de nascimento. Um atestado de baptismo. Um livro de cheques de uma conta-depósito a prazo. O nome e a morada do advogado. Não havia cartas particulares. Enfiou o arquivo debaixo do braço.
Prosseguiu até ao guarda-vestidos e voltou a examinar a colecção de roupas. Três pares de calças. Blusas de cachemira. Um casaco de Inverno de tecido escocês vermelho-vivo. Quatro vestidos de boa lã, de fino corte. Todos eles tinham um ar de qualidade. Tratava-se de um guarda-roupa caro para uma estagiária de enfermagem.
Ouviu um grunhido final de satisfação por parte de Sir Miles e fez meia volta. O médico legista estava a endireitar-se e retirava as luvas de borracha. Estas eram tão finas que se diria estar a descascar a epiderme.
- Morta, diria eu, há cerca de dez horas - disse. - Baseio-me fundamentalmente na temperatura rectal e no grau de rigidez dos membros inferiores. Mas não passa de uma estimativa, meu caro. Estas coisas estão sujeitas a risco, como sabe. Vamos dar uma olhadela ao conteúdo do estômago; pode ser que nos forneça alguma pista. De momento, e a julgar pelos sinais clínicos, diria que morreu por volta da meia-noite, mais hora, menos hora. Encarando as coisas do ponto de vista do bom senso, evidentemente, morreu quando tomou aquela última bebida antes de dormir.
O funcionário das impressões digitais tinha deixado a garrafa de uísque e o copo na mesa e ocupava-se agora da maçaneta da porta. Sir Miles deu a volta, trotando, até junto deles e, sem lhe tocar, curvou a cabeça e colocou o nariz junto da borda do copo.
- Uísque. Mas que mais? É sobre isso que nos interrogamos, meu caro. É sobre isso que nos interrogamos. Uma coisa é certa, não se tratava de nenhum corrosivo. Desta vez, não foi ácido fénico. A propósito, não fui eu que fiz a autópsia daquela outra rapariga. Quem se encarregou desse trabalhinho foi o Rikki Blake. Coisa feia. Presumo que procura uma ligação entre as duas mortes, não?
- É possível - retorquiu Dalgliesh.
- Pode ser. Pode ser. Não tem ar de ser morte natural. Mas teremos de esperar os resultados da toxicologia. Nessa altura talvez fiquemos a saber qualquer coisa. Não há indícios de estrangulamento ou sufocação. Nem marcas exteriores de violência, por falar nisso. A propósito, ela estava grávida. De uns três meses, diria eu. Dei ali com um belíssimo ballottement1. Era indício que já não encontrava desde os meus tempos de estudante. Claro que a autópsia o confirmará. Os seus olhinhos brilhantes esquadrinharam o quarto.
- Aparentemente, não há recipiente do veneno. Se é que se tratou de veneno, claro. E nenhum bilhete de suicídio?
- Isso não é prova concludente - observou Dalgliesh.
- Eu sei. Eu sei. Mas a maioria delas deixa um pequeno billet doux2. Gostam de contar a história, meu caro. Gostam de contar a história. A propósito, já aí está a carrinha da morgue. Se já acabaram o que tinham a fazer nela, levo-a.
- Eu acabei - disse Dalgliesh.
Aguardou, observando os funcionários do necrotério a enfiarem a maca no quarto e, com desembaraçada eficiência, depositarem nela o peso morto. Sir Miles impacientava-se em redor deles ’’ com a nervosa ansiedade de um especialista que descobriu um espécime particularmente bom e tem de superintender cuidadosamente no seu transporte em segurança. Era estranho que a remoção daquela massa inerte de ossos e músculos retesados, perante a qual ambos, cada um à sua maneira distinta, tinham esta} do a oficiar, tivesse deixado o quarto tão vazio, tão abandonado.
Dalgliesh notara-o antes, quando o corpo estava a ser evacuado: aquela sensação de palco vazio, de adereços descuidadamente dispostos e destituídos de significado, de ar esvaziado. Os recém-falecidos possuíam o seu carisma; por alguma razão as pessoas falavam num sussurro na sua presença. Mas agora ela partira, e nada mais havia para ele fazer naquele quarto. Deixou o homem das impressões digitais a registar e a fotografar as suas conclusões e saiu para o corredor.
Passava já das onze da manhã mas o corredor encontrava-se ainda muito escuro, apenas se distinguindo, como uma névoa quadrada, por detrás das cortinas corridas, a única janela clara no extremo distante. A princípio, Dalgliesh só conseguiu divisar
a forma e cor dos três baldes de incêndio cheios de areia e o cone de um extintor cintilando contra os lambrins de carvalho trabalhado das paredes. Os grampos de aço, enfiados com brutalidade no madeiramento, do qual se encontravam suspensos, formavam um incongruente contraste com a fiada de elegantes candeeiros de latão enrolado que brotavam do centro dos quadrifólios esculpidos. Os candeeiros tinham sido obviamente concebidos de início para gás, mas haviam sido grosseiramente adaptados a electricidade, sem imaginação nem talento. O latão estava por polir e a maioria dos delicados quebra-luzes de vidro, recurvados à semelhança de pétalas de flor, encontravam-se partidos ou falhados. Em cada um dos cachos desflorados encontrava-se agora um único suporte monstruosamente enxertado de uma suja e fraca lâmpada cuja luz mortiça e difusa lançava sombras pelo pavimento e apenas servia para acentuar a obscuridade geral. À parte a única janelinha ao fim do corredor, pouca mais luz natural havia. A enorme janela por sobre o vão da escada, uma representação pré-rafaelita em vidro acobreado da expulsão do Paraíso, tinha pouco de funcional.
Perscrutou os quartos contíguos ao da rapariga. Um encontrava-se vago, com a cama despida de roupa, a porta do guarda-vestidos escancarada e as gavetas, forradas de papel de jornal novo, todas abertas como que para demonstrar o vazio essencial do quarto. O outro estava a uso mas tinha o ar de haver sido precipitadamente abandonado; a roupa da cama estava descuidadamente atirada para o fundo e o tapete junto do leito encontrava-se amarrotado. Na mesa-de-cabeceira havia uma rima de livros de estudo; abrindo a primeira folha em branco daquele que estava mais à mão leu a inscrição ”Christine Dakers”. Tratava-se, portanto, do quarto da rapariga que encontrara o corpo. Inspeccionou a parede entre os dois quartos. Era uma estreita e leve divisória de cartão prensado pintada, que estremeceu e produziu um ligeiro ressoar quando lhe bateu. Perguntou a si próprio se a estagiária Dakers teria ouvido alguma coisa durante a noite. A menos que Josephine Fallon tivesse morrido instantaneamente e quase silenciosamente, decerto algum indício da sua aflição havia de ter penetrado aquela imaterial divisória. Estava ansioso por interrogar a estagiária Christine Dakers. De momento ela encontrava-se na enfermaria das estagiárias, ao que constava sob o efeito de estado de choque. O estado de choque era provavelmente mais que genuíno mas, mesmo que o não fosse, nada podia fazer a esse respeito. A estagiária Dakers achava-se de momento eficazmente protegida pelos médicos de qualquer interrogatório por parte da Polícia.
Prosseguiu um pouco mais a exploração. Defronte da correnteza de quartos das estagiárias ficava uma sucessão de cubículos de banho e sanitários, emergindo de um amplo vestiário quadrado provido de quatro lavatórios, cada um deles rodeado de um cortinado de chuveiro. Qualquer dos cubículos de banho dispunha de uma pequena janela de guilhotina de vidro opaco, incomodamente localizada mas não difícil de abrir. Cada uma delas proporcionava uma perspectiva das traseiras da casa e das duas pequenas alas, ambas erigidas sobre o seu claustro de tijolo, um e outro incongruentemente enxertados no corpo principal do edifício. Dir-se-ia que o arquitecto, esgotadas as possibilidades do gótico renascido e do barroco, decidira introduzir uma influência mais contemplativa e eclesiástica. O terreno entre os claustros era uma selva demasiado crescida de moitas de loureiro e árvores por podar, que se erguiam tão próximas da casa que certos ramos pareciam arranhar as janelas do piso inferior. Dalgliesh conseguia distinguir figuras esbatidas buscando entre as moitas e ouvir o débil sussurro de vozes. O frasco de desinfectante que tinha vitimado Heather Pearce, deitado fora, tinha ’sido encontrado entre aquelas moitas e era possível que um segundo recipiente, de conteúdo igualmente letal, tivesse também sido arremessado da mesma janela, pela calada da noite. Na prateleira da casa de banho estava uma escova de unhas; pegando nela, Dalgliesh atirou-a num arco amplo pela janela, na direcção das moitas. Não conseguiu ver nem ouvir a queda, mas surgiu um rosto jubiloso entre as folhas afastadas, uma mão acenou num cumprimento e os dois agentes que exploravam recuaram, internando-se mais no matagal.
A seguir, percorreu o corredor até à sala de uso geral das estagiárias, no extremo mais afastado. Estava lá o sargento Masterson com a enfermeira Rolfe. Encontravam-se ambos a inspeccionar um heterogéneo conjunto de objectos poisados na sua frente na superfície de trabalho, como se estivessem embrenhados num jogo de Kim. Havia dois limões espremidos, uma taça de açúcar granulado, um sortido de chávenas com chá frio, cuja superfície se apresentava furta-cores e encrespada, e um delicado bule Worcester com uma chávena, pires e leiteira a condizer. Havia também um quadrado amarrotado de fino papel de embrulho branco onde se liam as palavras ”Scunthorpe’s Wine Stores, 149, High Street, Heatheringfield” e um recibo com uns rabiscos, alisado e mantido na posição de esticado por meio de um par de latas de chá.
- Ela comprou o uísque ontem de manhã, senhor inspector disse Masterson. - Felizmente para nós, Mr. Scunthorpe é meticuloso com os recibos. Isto é a conta e isto é o papel de embrulho. Portanto, dá a ideia que a primeira vez que ela abriu a garrafa foi ontem ao ir para a cama.
- Onde estava ela guardada? - perguntou Dalgliesh. Foi a enfermeira Rolfe quem respondeu:
- A Fallon guardava sempre o uísque no quarto. Masterson riu-se.
- Não me admira nada, com uma marca a custar perto de três libras A garrafa.
A enfermeira Rolfe olhou-o com desprezo.
- Não me parece que a Fallon se preocupasse com isso. Não era do género de reparar no rótulo da garrafa.
- Era liberal? - perguntou Dalgliesh.
- Não, pura e simplesmente despreocupada. Guardava o uísque no quarto porque a superintendente lho pedia.
”Mas trouxe-o ontem para aqui a fim de preparar a bebida da noite”, pensou Dalgliesh, que mexeu levemente o açúcar com o dedo.
- Esse é inócuo - disse a enfermeira Rolfe. - As alunas disseram-me que todas o utilizaram ao prepararem o chá da manhã. E as gémeas Burt, pelo menos, beberam parte do delas.
- Seja como for, vamos enviá-lo para o laboratório, juntamente com o limão - observou Dalgliesh.
Levantou a tampa do pequeno bule e espreitou lá para dentro. Respondendo à pergunta por formular, a enfermeira Rolfe disse:
- Ao que parece, a estagiária Dakers fez o chá da manhã nele. O bule é da Fallon, evidentemente. Não há mais ninguém que faça o chá da manhã em loiça Worcester antiga.
- A estagiária Dakers fez chá para a estagiária Fallon antes de saber que a rapariga estava morta?
- Não, depois. Imagino que se tratou de uma reacção puramente automática. Deve ter ficado em estado de choque. No fim de contas, acabava de ver o corpo da Fallon. Decerto não estava à espera de curar a rigidez cadavérica com chá quente, mesmo tratando-se da melhor mistura da China. Suponho que há-de querer falar com a Dakers, mas terá de esperar. De momento encontra-se na enfermaria. Creio que foi informado. Faz parte da ala particular e quem está a tratar dela é a enfermeira Brumfett. É por isso que eu estou aqui neste momento. Tal como a Polícia, a nossa profissão é hierarquizada e, quando a superintendente não se encontra na Nightingale House, quem se lhe segue em antiguidade é a Brumfett. Em condições normais, quem estaria a assisti-lo seria ela, e não eu. com certeza já o informaram de que Miss Taylor se encontra de regresso de uma conferência em Amsterdão. Teve de seguir inesperadamente em substituição da presidente da Comissão Regional de Formação de Enfermeiras, felizmente para ela. Assim, há pelo menos um membro superior do pessoal com um álibi.
Dalgliesh tinha sido informado, e mais de uma vez. A ausência da superintendente parecia ser um facto que toda a gente com que deparara, por mais fugazmente que fosse, achava necessário referir, explicar ou lamentar. Mas a enfermeira Rolfe era a primeira a fazer uma referência cáustica ao facto de isso proporcionar um álibi a Miss Taylor, pelo menos relativamente ao momento da morte da Fallon.
- E o resto das alunas?
- Estão na pequena sala de aulas do andar de baixo. A enfermeira Gearing, a nossa orientadora clínica, está a tomar conta delas durante um período de estudo individual. Não me parece que estejam a ler grande coisa. Teria sido melhor arranjar-lhes algo mais activo, mas não é fácil, assim de um momento para o outro. Quer encontrar-se com elas lá?
- Não, mais tarde. E na sala de aulas práticas onde a estagiária Pearce morreu.
Ela endereçou-lhe um olhar e logo afastou rapidamente a vista, mas não tão rapidamente que ele deixasse passar o ar de surpresa e, pensou, reprovação. Ela esperara que ele mostrasse mais sensibilidade, mais consideração. A sala de aulas práticas não voltara a ser usada desde a morte da estagiária Pearce. Entrevistar lá as alunas decorrido tão pouco tempo sobre aquela segunda tragédia seria instalar novo horror na memória. Se alguma delas estivesse a ponto de se enervar, podia ser aquele o rastilho, e nem lhe passara pela cabeça utilizar outra sala. A enfermeira Rolfe, pensou, era como todos os outros. Queriam que os assassinos fossem apanhados, mas apenas pelos métodos mais cavalheirescos. Queriam vê-los castigados, mas só se o castigo não ofendesse a sua própria sensibilidade.
- Como fica a casa fechada de noite? - perguntou Dalgliesh.
- A enfermeira Brumfett, a enfermeira Gearing e eu ficamos responsáveis durante uma semana cada uma. Esta semana é a vez de Gearing. Somos as únicas enfermeiras-chef es que residem cá. Fechamos e trancamos a porta da frente e a da cozinha pontualmente às onze horas. Há uma pequena porta lateral com uma fechadura Yale e um ferrolho interior. Se alguma aluna ou membro do corpo docente tem licença para vir mais tarde, é-lhe confiada uma chave dessa porta e tranca-a depois de entrar. As enfermeiras-chefes estão permanentemente de posse de uma chave. Há apenas outra porta, e essa é de comunicação entre o apartamento da superintendente e o terceiro piso. Ela tem uma escada particular e, evidentemente, a sua própria chave. À parte estas, há as portas de saída em caso de incêndio, mas essas estão permanentemente fechadas por dentro. Não seria difícil assaltar a casa. Acho que é o que acontece com a maior parte das instituições de assistência. Mas até hoje, tanto quanto sei, nunca fomos assaltados por nenhum ladrão. A propósito, há uma vidraça em falta na estufa. Alderman Kealey, o vice-presidente, parece pensar que foi por aí que o assassino da Fallon entrou. É especialista em descobrir explicações cómodas para todos os problemas embaraçosos da vida. Cá a mim parece-me que a vidraça foi quebrada pelo vento, mas o senhor certamente tirará as suas próprias conclusões.
”Está a falar de mais”, pensou ele. A loquacidade era uma das mais comuns reacções ao choque ou aos nervos, que qualquer funcionário inquiridor explorava ao máximo. Amanhã ela desprezar-se-ia por tê-la tido e tornar-se-ia tanto mais difícil, tanto menos colaborante. Entretanto, estava a dizer-lhe mais do que julgava.
Claro que teria de se dar uma olhadela à vidraça partida e de se examinar a caixilharia de madeira em busca de indícios de entrada, mas parecia-lhe pouco provável que a morte da estagiária Fallon tivesse sido obra de qualquer intruso.
- Quantas pessoas dormiram cá a noite passada? - perguntou.
- A Brumfett, a Gearing e eu. A Brumfett esteve fora durante parte da noite. Constou-me que Mr. Courtney-Briggs voltou a chamá-la à enfermaria. Miss Collins esteve cá. É a governanta. E estavam cinco alunas de enfermagem: a estagiária Dakers, as gémeas Burt, a estagiária Goodale e a estagiária Pardoe. E a Fallon dormiu cá, evidentemente. Isto é, se a Fallon teve tempo de dormir! A propósito, a luz da mesa-de-cabeceira dela ficou toda a noite acesa. As gémeas Burt estiveram a fazer cacau pouco depois das duas da manhã e por pouco não levaram uma caneca à Fallon. Se o tivessem feito, o senhor poderia ter uma ideia mais precisa da hora da morte. Mas ocorreu-lhes que ela tivesse adormecido com a luz acesa e não lhe agradasse propriamente ser acordada, mesmo ante a visão e o cheiro do cacau. O alívio invariável das gémeas é a comida, mas pelo menos viveram o suficiente para se aperceberem de que nem toda a gente compartilha da sua preocupação e que a Fallon, em particular, poderia preferir o sono e a privacidade ao cacau e à sua companhia.
- Hei-de falar com as gémeas Burt. E quanto aos terrenos do hospital? Ficam abertos durante a noite?
- Há sempre um porteiro de serviço no casinhoto da frente.
O portão principal não é fechado por causa das ambulâncias de acidentes, mas ele vigia toda a gente que entra ou sai. A NightinH gale House fica muito mais perto da entrada das traseiras para o terreno, mas normalmente não fazemos esse caminho a pé porf que o trajecto é mal iluminado e um tanto ou quanto atemorizador. Além disso, vai dar à Winchester Road, que fica a quase três quilómetros e meio do centro da vila. O portão das traseiras é fechado ao anoitecer, quer de Verão, quer de Inverno, por um dos porteiros, mas todas as enfermeiras-chefes e a superintendente têm uma chave.
- E as estagiárias com licença para regressar mais tarde?
- É de esperar que usem o portão da frente e percorram o caminho principal que contorna o hospital. Há um atalho muito mais curto por entre o arvoredo que utilizamos de dia (são cerca de duzentos metros), mas não há muita gente que opte por segui-lo de noite. Creio bem que Mr. Hudson, que é o secretário do hospital, lhe poderá dar uma planta dos terrenos e da Nightingale House. A propósito, ele e o vice-presidente estão à sua espera neste momento na biblioteca. O presidente, Sir Marcus Cohen, está em Israel. Mesmo assim, é uma bela comissão de recepção. Até Mr. Courtney-Briggs adiou a consulta dos doentes externos para dar as boas-vindas à Yard a Nightingale House.
- Nesse caso - disse Dalgliesh -, talvez a senhora queira ter a bondade de lhes dizer que vou ter com eles dentro de pouco tempo.
Era uma despedida. O sargento Masterson, como que para a suavizar, disse subitamente e em voz alta:
- A enfermeira-chefe Rolfe foi muito prestável.
A mulher emitiu uma curta fungadela de escárnio.
- Ser prestável à Polícia! Não há nessa frase uma conotação sinistra? Seja como for, não me parece que possa ser particularmente prestável. Não matei nenhuma delas. E a noite passada fui ver um filme no novo cinema daqui. Estão a passar um ciclo de Antonioni. Esta semana vai L’Aventura. Quando cá cheguei já passava das onze e fui direita para a cama. Nem sequer vi a Fallon.
Dalgliesh anotou com fatigada resignação a primeira mentira e perguntou de si para si quantas mais, importantes e não importantes, seriam proferidas antes de a investigação estar concluída. Mas não era a ocasião própria para interrogar a enfermeira Rolfe. Não havia de ser uma testemunha fácil. Tinha respondido cabalmente às suas perguntas, mas com indisfarçado ressentimento. Não estava bem certo se era com ele ou com o seu trabalho que ela antipatizava, ou se qualquer homem teria suscitado aquele tom de irritado desprezo. O rosto dela condizia com a sua personalidade, rebarbativa e defensiva. Era vigoroso e inteligente mas desprovido de doçura ou feminilidade. Os olhos profundamente implantados e escuros poderiam ser atraentes, mas localizavam-se sob um par de sobrancelhas pretas absolutamente direitas, tão negras e hirsutas que conferiam ao rosto uma leve sugestão de deformidade. O nariz era grande e de poros abertos, os lábios uma estreita linha inflexível. Era o rosto de uma mulher que nunca aprendera a reconciliar-se com a vida, e tinha, porventura, desistido de o tentar. Pensou de repente que, caso viesse a revelar-se uma assassina e a sua fotografia fosse finalmente publicada, outras mulheres procurariam avidamente naquela máscara inflexível indícios de depravação e protestariam se não os surpreendessem. Subitamente teve pena dela, com um misto de irritação e compaixão como o que qualquer pessoa sente por uma pessoa desproporcionada ou fisicamente deformada. Voltou-se depressa a fim de que ela não surpreendesse aquele súbito espasmo de piedade. Sabia que, para ela, seria o último dos insultos. E, quando tornou a voltar-se para lhe agradecer formalmente o auxílio, viu que ela já saíra.
O sargento Charles Masterson tinha um metro e noventa de altura e ombros largos. Sustentava agilmente a estatura, e todos os seus movimentos eram surpreendentemente controlados e rigorosos para um homem tão peremptoriamente masculino e corpulento.
Era geralmente considerado bem-parecido, particularmente por ele próprio, e com aquele rosto vigoroso, os lábios sensuais e os olhos protegidos parecia-se notavelmente com um actor de cinema americano muito conhecido da escola dos duros e dos pistoleiros. De quando em vez, Dalgliesh desconfiava que o sargento, consciente como dificilmente poderia deixar de estar dessa semelhança, a acentuava por sua conta, assumindo um vestígio de sotaque americano.
- Muito bem, sargento. Teve ocasião de observar o local e falou com algumas das pessoas. Conte-me coisas.
Este convite tinha fama de inspirar terror no íntimo dos subordinados de Dalgliesh. Significava que o inspector-chefe esperava naquele momento ouvir um relato do crime breve, sucinto, rigoroso, elegantemente formulado, mas global, que fornecesse todos os factos mais relevantes até então conhecidos a uma pessoa que há pouco entrara em contacto com ele. O dom de saber o que se quer dizer e dizê-lo no mínimo de palavras adequadas é tão invulgar entre os polícias como no seio de outros membros da comunidade. Os subordinados de Dalgliesh tinham tendência para se queixar de não se terem apercebido de que a nova qualificação para integrar o Departamento de Investigação Criminal fosse uma licenciatura em Letras. Porém, o sargento Masterson ficava menos intimidado do que a maioria. Tinha as suas fraquezas, mas a falta de confiança não figurava entre elas. Sentia-se satisfeito por trabalhar naquele caso. Era bem sabido na Yard que o inspector-chefe Dalgliesh não era capaz de tolerar um pateta e que a sua definição de fantasia era individual e rigorosa. Masterson respeitava-o porque Dalgliesh era um dos investigadores com mais êxitos na Yard e, para Masterson, o êxito era o único verdadeiro critério. Considerava-o muito competente, o que não significava que o considerasse tão competente como Charles Masterson. A maior parte das vezes, e por razões que lhe parecia inútil explorar, antipatizava cordialmente com ele. Desconfiava que a antipatia era mútua, mas isso não o perturbava particularmente. Dalgliesh não era homem para prejudicar a carreira de um subordinado por não gostar dele e tinha fama de ser meticuloso, embora prudente, em atribuir louros quando eram devidos. Mas seria preciso vigiar a situação, e Masterson tencionava vigiá-la. Um homem ambicioso na escalada cuidadosamente planeada para o posto superior era tolo se não reconhecesse precocemente que era francamente idiota criar inimizade com um funcionário superior. Masterson não fazia tenção de cair nesse género de idiotice. Mas um pouco de colaboração da parte do inspector-chefe nessa campanha de mútua boa-vontade não deixaria de ser bem recebida. E não tinha a certeza de vir a recebê-la.
- vou tratar separadamente as duas mortes, senhor inspector - disse. - A primeira vítima...
- Para quê falar como um repórter criminal, sargento? Vamos certificar-nos de que temos uma vítima antes de utilizar a palavra.
Masterson principiou:
- A primeira falecida... a primeira rapariga a morrer era uma estagiária de enfermagem de vinte e um anos, Heather Pearce.
E prosseguiu o relato das circunstâncias da morte de ambas as raparigas, tanto quanto se conheciam, tendo a precaução de evitar os exemplos mais flagrantes de calão policial, aos quais sabia ser o inspector-chefe morbidamente sensível, e resistindo à tentação de evidenciar os seus recém-adquiridos conhecimentos de alimentação por entubação, acerca da qual tivera o trabalho de extrair da enfermeira Rolfe uma explicação global, dada embora de má vontade. E terminou:
- Temos, portanto, senhor inspector, as possibilidades de uma ou ambas as mortes terem sido suicídio, de uma ou ambas as mortes terem sido acidentais, de a primeira ter sido assassínio mas ter sido morta a vítima errada, ou de ter havido dois assassínios com duas vítimas premeditadas. Uma escolha intrigante, senhor inspector.
- Ou de a morte da Fallon ser devida a causas naturais - disse Dalgliesh. - Enquanto não recebermos o relatório da toxicologia, estamos a estabelecer teorias à frente dos factos. Mas de momento consideremos ambas as mortes como assassínios. Bem, vamos lá até à biblioteca, a ver o que tem para nos dizer o vice-presidente da Comissão de Gestão do hospital.
A biblioteca, facilmente identificada por uma grande tabuleta pintada por cima da porta, era uma agradável sala de tectos altos no primeiro piso, contígua à sala de estar das estagiárias. Uma das paredes era inteiramente ocupada por três janelas salientes com ornatos, mas as outras três continham fileiras de livros até ao tecto, deixando o centro da sala nu. Estava mobilada com quatro mesas dispostas em frente das janelas e dois sofás puídos, um a cada lado da lareira de pedra, onde naquele momento um antigo calorífero a gás sibilava as suas sinistras boas-vindas. Defronte dela, sob as duas calhas de luz fluorescente, um grupo de quatro homens, murmurando conspirativamente entre si, virou-se em uníssono à entrada de Dalgliesh e Masterson, observando-os com prudente curiosidade. Tratava-se de um momento familiar para Dalgliesh, composto como sempre de interesse, apreensão e esperança, aquela primeira confrontação dos protagonistas de um caso de assassínio com o forasteiro, o especialista exterior em morte violenta que se introduzira entre eles, hóspede indesejado, para mostrar os seus detestáveis talentos.
A seguir, o silêncio quebrou-se e as figuras rígidas descontraíram-se. Os dois homens que Dalgliesh já conhecia - Stephen Courtney-Briggs e Paul Hudson, o secretário do hospital adiantaram-se com formais sorrisos de acolhimento. Mr. Courtney-Briggs, que aparentemente se encarregava de toda e qualquer situação abrilhantada pela sua presença, fez as apresentações. O secretário de grupo, Raymond Grout, apertou molemente a mão. Tinha um rosto suavemente lúgubre, agora enrugado de angústia como o de uma criança prestes a chorar. O cabelo assentava em fios de seda prateada sobre uma fronte alta e abobadada. Era provavelmente mais novo do que parecia, pensou Dalgliesh, mas, mesmo assim, devia estar muito perto da idade da reforma.
Ao lado da figura alta e curvada de Grout, Alderman Kealy parecia tão vivo como um terrier. Era um homenzinho ruivo e arruçado, de pernas arqueadas como um cavaleiro de corridas e de fato de xadrez, no qual o horroroso do padrão era realçado pela excelência do corte. Dava-lhe um ar antropomórfico, como um animal numa história em quadradinhos para crianças, e Dalgliesh por pouco não esperou vê-lo agitar uma pata estendida.
- Foi muito amável em vir, senhor inspector, e tão rapidamente - disse.
Aparentemente, o disparatado da observação assaltou-o assim que a fez, pois lançou um olhar penetrante, por sob as eriçadas sobrancelhas ruivas, aos companheiros, como que desafiando-os a sorrir. Ninguém o fez, mas o secretário de grupo ficou com um ar tão humilhado como se o solecismo tivesse sido da sua autoria e Paul Hudson desviou o rosto para ocultar um esgar envergonhado. Era um jovem bem-parecido que, quando Dalgliesh chegara ao hospital da primeira vez, revelara simultaneamente eficiência e autoridade. Agora, porém, a presença do seu vice-presidente e do secretário de grupo parecia ter-lhe inibido a fala. e assumia o ar de pedir desculpas de um homem cuja presença fosse apenas tolerada. Mr. Courtney-Briggs disse:
- Creio que seria esperar demasiado querer já novidades, não? Vimos a carrinha da morgue sair e troquei umas palavras com o Miles Honeyman. Nesta altura, claro que não se podia comprometer, mas ficará surpreendido caso se trate de morte natural. A rapariga matou-se. Bem, sempre pensei que isso era evidente para quem quer que fosse.
- Por enquanto, nada é evidente - objectou Dalgliesh. Houve um silêncio. O vice-presidente pareceu achá-lo embaraçoso, pois aclarou ruidosamente a garganta e disse:
- Decerto vai querer um gabinete de trabalho. O pessoal do Departamento de Investigação Criminal da terra trabalhou baseado na esquadra da Polícia. Na verdade, incomodaram-nos pouquíssimo. Mal nos apercebemos da presença deles.
Olhou com ténue optimismo para Dalgliesh, como se não alimentasse grandes esperanças de que a brigada móvel fosse igualmente acomodatícia. Dalgliesh respondeu secamente:
- Vamos querer uma sala. Será possível arranjarem-nos uma na Nightingale House? Seria o mais cómodo.
O pedido pareceu desconcertá-los. O secretário de grupo disse hesitantemente:
- Se a superintendente cá estivesse... É difícil para nós sabermos o que está vago. Ela já não deve tardar.
Alderman Kealey rosnou:
- Não podemos deixar tudo à espera da superintendente. O inspector quer uma sala. Arranjem-lhe uma.
- Bem, há o gabinete de Miss Rolfe no piso térreo, mesmo ao lado da sala de aulas práticas. - O secretário de grupo inclinou os olhos tristes para Dalgliesh. - com certeza já conhece Miss Rolfe, a nossa monitora-chefe. Ora bem, se Miss Rolfe puder mudar-se temporariamente para o gabinete da secretária dela... Miss Buckfield está ausente com gripe, de modo que se encontra vago. É bastante acanhado, na realidade não passa de um cubículo, mas se a superintendente...
- Diga a Miss Rolfe que transfira as coisas de que precise. Os serventes podem fazer a mudança dos ficheiros. - Alderman Kealey virou-se e latiu para Dalgliesh: - Serve assim?
- Se for reservado, razoavelmente à prova de som e tiver fechadura na porta, dispuser de espaço suficiente para comportar três homens e tiver telefone directo à rede, serve. Se além disso for dotado de água corrente, tanto melhor.
O vice-presidente, amansado por aquela tremenda lista de requisitos, disse hesitantemente:
- Há um pequeno lavabo e quarto de banho no piso térreo mesmo defronte do quarto de Miss Rolfe. Pode ser posto à sua disposição.
A infelicidade de Mr. Grout aprofundou-se. Lançou um olhar a Mr. Courtney-Briggs, como que procurando um aliado, mas o cirurgião mantivera-se misteriosamente calado durante os últimos minutos e parecia relutante em cruzar o olhar com o dele. Nessa altura soou o telefone. Mr. Hudson, aparentemente satisfeito pela oportunidade de se tornar activo, correu a atender. Voltou-se para o vice-presidente.
- É do Clarion, senhor. Perguntam por si em pessoa. Alderman Kealey agarrou resolutamente no auscultador.
Tendo resolvido afirmar-se, estava aparentemente pronto para assumir o comando de qualquer situação, e esta encontrava-se bem dentro das suas capacidades. O assassínio podia estar fora das suas preocupações habituais, mas lidar diplomaticamente com a imprensa era qualquer coisa que compreendia.
- Fala Alderman Kealey. O vice-presidente da Comissão de Gestão. Sim, tenho cá a Yard. A vítima? Ah, não me parece que se deva falar de vítima. Pelo menos para já. Fallon. Josephine Fallon. Idade? - Tapou o bocal com a mão e virou-se para o secretário de grupo. Bastante estranhamente, foi Mr. Courtney-Briggs quem respondeu:
- Tinha vinte e um anos e dez meses - disse. - Era precisamente vinte anos mais nova do que eu, nem mais um dia nem menos um dia.
Alderman Kealey, sem se surpreender com a informação gratuita, regressou ao interlocutor.
- Tinha vinte e um anos. Não, ainda não sabemos como morreu. Ninguém sabe. Estamos à espera do relatório da autópsia. Sim, é o inspector-chefe Dalgliesh. Encontra-se aqui de momento, mas está demasiadamente ocupado para falar. Espero emitir esta noite um comunicado à imprensa. Nessa altura já devemos estar de posse do relatório da autópsia. Não, não há motivo para suspeitar de homicídio. O comissário-chefe chamou a Yard como medida de precaução. Não, tanto quanto sabemos, não há qualquer ligação entre as duas mortes. Muito triste. Sim, imenso. Se quiser telefonar por volta das seis, pode ser que eu já tenha mais informações. Tudo o que sabemos até agora é que a estagiária Fallon foi encontrada morta na cama esta manhã pouco depois das sete horas. Pode muito bem ter sido um ataque cardíaco. Estava ainda em convalescença de uma gripe. Não, não havia qualquer mensagem. Nada que se parecesse.
Escutou por momentos e a seguir voltou a tapar o bocal com a mão e a virar-se para Grout.
- Perguntam por familiares. Que sabemos nós sobre eles?
- Não tinha nenhuns. A Fallon era órfã.
Foi novamente Mr. Courtney-Briggs quem respondeu.
Alderman Kealey transmitiu a informação e poisou o auscultador no descanso. Sorrindo torvamente, endereçou a Dalgliesh um olhar misto de presunção e alerta. Dalgliesh ficara interessado ao ouvir que a Yard tinha sido chamada como medida de precaução. Tratava-se de uma concepção nova das responsabilidades da brigada móvel, que ele considerava pouco susceptível de iludir os fulanos da imprensa da terra, e menos ainda os repórteres de Londres, que não tardariam a vir farejar. Perguntou a si próprio como iria o hospital haver-se com a publicidade. Alderman Kealey ia precisar de conselho, se é que se pretendia que a investigação não fosse prejudicada. Mas havia tempo de sobra para isso. De momento, tudo o que desejava era ver-se livre deles, iniciar a investigação. Aqueles preliminares sociais eram sempre um moroso incómodo. E não tardava que houvesse uma superintendente a apaziguar, a consultar, possivelmente mesmo a defrontar. A julgar pela relutância do secretário de grupo em dar um passo sem o seu consentimento, dir-se-ia que se tratava de uma mulher de personalidade forte. Não lhe agradava a perspectiva de a esclarecer, diplomaticamente, de que naquela investigação não haveria lugar para mais do que uma personalidade forte.
Mr. Courtney-Briggs, que tinha estado em pé junto da janela, observando o jardim maltratado pela borrasca, fez meia volta, sacudiu-se para espantar as preocupações e disse:
- Receio bem não’poder perder mais tempo. Tenho um doente para ver na ala particular e a seguir uma ronda pelas enfermarias. Devia fazer uma palestra às alunas lá para o fim da manhã, mas agora terei de a cancelar. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, Kealey, informe-me.
Ignorou Dalgliesh. A impressão transmitida, e sem dúvida pretendida, era a de ser um homem atarefado que já desperdiçara demasiado tempo com uma banalidade. Dalgliesh resistiu à tentação de o retardar. Por mais agradável que fosse domar a arrogância de Mr. Courtney-Briggs, tratava-se de um prazer que presentemente não podia permitir-se. Havia questões mais prementes.
Foi nessa altura que ouviram o som de um automóvel. Mr. Courtney-Briggs voltou à janela e espreitou, mas nada disse. O resto do pequeno grupo assumiu uma atitude rígida e virou-se, como que puxado por uma força comum, para a porta. Uma porta de automóvel bateu. A seguir houve um silêncio que durou uns segundos, ao qual se sucedeu o som cadenciado de pés apressados num pavimento de mosaicos. A porta abriu-se e entrou a superintendente.
A primeira impressão de Dalgliesh foi a de uma elegância altamente individual mas não obstante descontraída e de uma confiança que era quase palpável. Viu uma mulher alta e esguia, sem chapéu, de pele clara cor de mel doirado e cabelo quase da mesma cor, puxado para trás de uma testa alta e colhido num intrincado rolo na nuca. Vestia um casaco de tecido escocês cinzento com um lenço verde-vivo atado ao pescoço e trazia uma carteira preta e uma pequena pasta de viagem. Entrou calmamente na sala e, poisando a pasta na mesa, descalçou as luvas e examinou silenciosamente o pequeno grupo. Quase instintivamente, como que observando uma testemunha, Dalgliesh reparou nas suas mãos. Os dedos eram muito brancos, compridos e afilados, mas de nós invulgarmente ossudos. As unhas estavam cortadas curtas. No terceiro dedo da mão direita um enorme anel com uma safira num engaste ornamentado cintilava em contraste com o nó do dedo. Dalgliesh perguntou irrelevantemente a si próprio se ela o tiraria quando estava em serviço e, se o fazia, como conseguiria fazê-lo deslizar sobre as nodosas articulações.
Mr. Courtney-Briggs, depois de um breve ”bom dia, superintendente”, encaminhou-se para a porta e ali ficou de pé como um hóspede aborrecido, demonstrando a sua ânsia por proceder a uma rápida retirada. Os outros, porém, apinharam-se em torno dela. Houve uma imediata sensação de alívio. Fizeram-se apresentações sussurradas.
- Bom dia, senhor inspector. - A voz dela era profunda, um pouco velada, uma voz tão individual como ela própria. Parecia mal dar por ele, e no entanto ele apercebeu-se de uma fugaz apreciação por parte dos verdes olhos exoftálmicos. O seu aperto de mão foi vigoroso e fresco, mas tão momentâneo que se assemelhou a um fugaz encontro das palmas das mãos, nada mais.
O vice-presidente disse:
- A Polícia vai querer uma sala. Pensámos que talvez pudesse ser o gabinete da Miss Rolfe.
- Demasiado pequeno, acho eu, e insuficientemente recatado, tão perto do átrio principal. Seria melhor Mr. Dalgliesh utilizar a sala de estar das visitas do primeiro andar e a casa de banho que fica logo a seguir a ela. A sala tem chave. Há uma secretária com gavetas que podem fechar-se na secretaria geral e pode ser mudada lá para cima. Assim a Polícia terá alguma privacidade e haverá um mínimo de interferência no funcionamento da escola.
Houve um murmúrio de assentimento. Os homens pareceram aliviados.
- Vai precisar de quarto? - perguntou a superintendente a Dalgliesh. - Quer dormir no hospital?
- Não será necessário. Ficamos na vila. No entanto, preferiria trabalhar daqui. Provavelmente estaremos cá até tarde todas as noites, de modo que seria útil podermos dispor de chaves.
- Durante quanto tempo? - perguntou subitamente o vice-presidente. À primeira vista, tratava-se de uma pergunta estúpida, mas Dalgliesh reparou que todos os rostos se voltaram para ele como se esperassem que ele pudesse dar uma resposta cabal. Sabia que tinha fama de ser rápido. Sabê-lo-iam eles também?
- Mais ou menos uma semana - respondeu. Mesmo que o caso se arrastasse por mais tempo, dentro de sete dias saberia tudo o que precisava sobre a Nightingale House e os seus ocupantes. Se a estagiária Fallon tinha sido assassinada - e pensava que o fora -, o círculo de suspeitos seria reduzido. Se o caso não se solucionasse dentro de uma semana, poderia nunca ter solução. Pensou ter havido um pequeno suspiro de alívio.
- Onde está ela? - perguntou a superintendente.
- Levaram o corpo para a morgue, superintendente.
- Não me referia à Fallon. Onde está a estagiária Dakers? Constou-me que foi ela quem encontrou o corpo.
Alderman Kealey respondeu:
- Está a ser assistida na enfermaria particular. Estava bastante abalada, de modo que pedimos ao doutor Snelling para lhe dar uma vista de olhos. Ele deu-lhe um sedativo e a enfermeira-chefe Brumfett está a tomar conta dela.
E acrescentou:
- A enfermeira-chefe Brumfett estava um bocado preocupada com ela. Ainda por cima tem uma data de pessoal doente. Se não fosse isso, teria ido esperá-la ao aeroporto. Todos nós ficámos aborrecidos por a senhora vir sem ninguém ir esperá-la, mas pareceu-nos que o melhor era telefonar deixando-lhe o recado de ligar para nós assim que aterrasse. A enfermeira-chefe foi de opinião de que o choque seria menor se recebesse a notícia dessa maneira. Por outro lado parecia mal não ter lá ninguém. Eu queria mandar o Grout, mas...
A voz roufenha interrompeu-o com uma calma admoestação.
- Sempre esperei que poupar-me o choque fosse a última das vossas preocupações,
Voltou-se para Dalgliesh:
- Daqui a cerca de três quartos de hora estarei na minha sala de estar aqui no terceiro piso. Se lhe convier, gostaria de ter uma conversa consigo nessa altura.
Dalgliesh, resistindo ao impulso de responder com um dócil
”sim, superintendente”, disse que lhe convinha. Miss Taylor voltou-se para Alderman Kealey.
- vou falar já com a estagiária Dakers. A seguir, o inspector há-de querer entrevistar-me e depois estarei no meu gabinete principal no hospital, se o senhor ou Mr. Grout precisarem de mim. Evidentemente que estarei à disposição todo o dia.
Sem mais uma palavra ou olhar, recolheu a pasta de viagem e a carteira e saiu da sala. Mr. Courtney-Briggs abriu cerimoniosamente a porta para ela passar e preparou-se depois para a seguir.
De pé no limiar da porta aberta, disse com jovial beligerância:
- Bom, agora que a superintendente está de volta e a importante questão do alojamento para a Polícia está resolvida, talvez possa permitir-se que o trabalho do hospital continue. Se eu fosse a si, Dalgliesh, não chegaria atrasado à entrevista. Miss Taylor não está habituada à insubordinação.
Fechou a porta atrás de si. Alderman Kealey pareceu momentaneamente perplexo, após o que disse:
- Está irritado, evidentemente. Bem, é natural. Não correram certos rumores...
Nessa altura, o seu olhar iluminou-se perante Dalgliesh.
Interrompeu-se de súbito e voltou-se para Paul Hudson:
- Bem, Mr. Hudson, ouviu o que a superintendente disse. A Polícia utilizará a sala de estar das visitas neste piso. Trate disso,meu caro. Trate disso!
Miss Taylor fardou-se antes de se deslocar à enfermaria particular. Na altura pareceu-lhe uma atitude instintiva, mas, ao apertar firmemente a capa ao corpo enquanto atravessava a passo vivo o pequeno carreiro que conduzia da Nightingale House ao hospital, apercebeu-se de que o instinto fora instigado pela razão. Era importante para o hospital o facto de a superintendente estar de volta, e importante verificar-se que estava de volta.
O caminho mais rápido para a enfermaria particular era através do átrio dos doentes externos. O serviço estava já fremente de actividade. Os círculos de confortáveis poltronas, cuidadamente dispostas para dar uma ilusão de sem-cerimónia e descontraída comodidade, enchiam-se rapidamente. Voluntárias da Comissão Feminina da Liga dos Amigos presidiam já ao samovar fumegante, servindo chá aos doentes habituais, que preferiam esperar uma hora antes da consulta pelo prazer de estarem sentados no quente, a ler as revistas e a conversar com os seus parceiros regulares. A superintendente apercebeu-se de cabeças a voltarem-se à sua passagem para a observar. Houve um breve silêncio, seguido do costumado murmúrio de cumprimento deferente. Tomou consciência do pessoal médico estagiário vestido de branco a afastar-se momentaneamente para o lado quando passava, das estagiárias de enfermagem a encostarem-se à parede.
A enfermaria particular ficava no segundo piso daquilo a que se chamava ainda o edifício novo, conquanto houvesse sido terminado em 1945. Miss Taylor subiu de elevador, compartilhando-o com dois radiologistas e um jovem servente, que murmuraram o seu cerimonioso ”bom dia, superintendente” e permaneceram imóveis num silêncio pouco natural até o elevador parar, após o que recuaram enquanto ela passava adiante deles.
A enfermaria particular consistia numa sucessão de vinte quartos particulares, de um e outro lado de um corredor central. O gabinete da chefe de enfermaria, a cozinha e a sala de uso geral ficavam mesmo à entrada da porta. Mal Miss Taylor entrou, uma jovem estagiária do primeiro ano surgiu da cozinha. Corou ao ver a superintendente e murmurou qualquer coisa acerca de ir chamar a enfermeira-chefe.
- Onde está a enfermeira-chefe, estagiária?
- No quarto 7 com Mr. Courtney-Briggs, superintendente. O doente dele não está lá muito bem.
- Não os incomode; diga apenas à enfermeira-chefe, quando ela aparecer, que vim falar com a estagiária Dakers. Onde está ela?
- No quarto 3, superintendente - hesitou.
- Não há novidade, estagiária, eu mesma procuro. Continue o que estava a fazer.
O quarto 3 ficava no extremo mais afastado do corredor, sendo um de seis quartos particulares, normalmente reservados para estagiárias doentes. Só quando todos esses quartos estavam ocupados é que o pessoal do hospital ficava internado nos quartos laterais das enfermarias. Não se tratava, notou Miss Taylor, do quarto em que Josephine Fallon tinha ficado instalada. O quarto 3 era o mais ensolarado e agradável dos seis quartos reservados para estagiárias. Uma semana antes tinha sido ocupado por uma estagiária com pneumonia, resultante de complicações originadas por uma gripe. Miss Taylor, que visitava uma vez por dia todas as enfermarias do hospital e que recebia relatórios diários sobre o estado de todas as estagiárias doentes, achou pouco natural que a estagiária Wilkins já estivesse suficientemente boa para ter alta. A enfermeira Brumfett devia tê-la transferido a fim de deixar o quarto 3 livre para a estagiária Dakers. Miss Taylor não tinha dificuldade em imaginar a razão. A única janela proporcionava uma perspectiva dos relvados e dos canteiros lisamente gadanhados da frontaria do hospital; daquele lado da enfermaria era impossível divisar a Nightingale House, mesmo por entre as ramagens despidas de Inverno. A boa e querida Brumfett, tão pouco simpaticamente rígida nas suas opiniões, mas tão imaginativa quando se tratava do bem-estar e conforto dos seus doentes! A Brumfett, que falava embaraçadamente de dever, obediência e lealdade, mas que sabia exactamente o que queria dizer com esses impopulares termos e vivia de acordo com o que sabia. Era uma das melhores chefes de enfermaria que o John Carpendar tinha, ou alguma vez teria. Mas Miss Taylor sentia-se satisfeita com o facto de a dedicação ao serviço ter impedido a enfermeira Brumfett de ir esperar o avião a Heathrow. Já era suficientemente mau regressar deparando com aquela segunda tragédia, sem ter de suportar o fardo adicional da dedicação e preocupação caninas da Brumfett.
Puxou o banco de sob a cama e sentou-se ao lado da rapariga. Apesar do sedativo do doutor Snelling, a estagiária Dakers não dormia. Estava muito quieta na cama, de barriga para cima, fitando o tecto. Nessa altura desviou os olhos a fim de encarar a superintendente. Estavam inexpressivos de sofrimento. No armário ao lado da cama estava um exemplar de um livro de estudo, Farmacologia para Enfermeiras. A superintendente pegou nele.
- É muito consciencioso da sua parte, estagiária, mas, ao menos durante o pouco tempo que aqui está, que tal um romance da biblioteca itinerante da Cruz Vermelha ou uma revista mundana? Quer que lhe traga uma?
A resposta que obteve foi um mar de lágrimas. A figura esguia contorceu-se convulsivamente na cama, enterrou a cabeça na almofada e enclavinhou nela as mãos trémulas. O leito estremeceu sob aquele paroxismo de desgosto. A superintendente levantou-se, deslocou-se até à porta e correu a portinhola que tapava o postigo de observação das enfermeiras. Voltou rapidamente para o assento e aguardou sem falar, não fazendo qualquer movimento a não ser poisar a mão na cabeça da rapariga. Passados minutos, os terríveis estremecimentos cessaram e a estagiária Dakers sossegou. Começou a murmurar, com a voz entrecortada de soluços, meio abafada pela almofada:
- Sinto-me tão infeliz, tão envergonhada!
A superintendente curvou a cabeça para captar as palavras. Sentiu-se percorrida por um arrepio de horror. Não era possível que estivesse a ouvir uma confissão de assassínio, com certeza! Deu por si a rezar baixinho:
- Não, por favor, meu Deus. Esta criança, não! Não há-de ter sido certamente esta criança!
Aguardou, não ousando perguntar nada. A estagiária Dakers voltou-se e ergueu os olhos para ela, avermelhados e inchados como duas luas amorfas num rosto coberto de manchas e informe de tristeza.
- Sou perversa, superintendente, perversa. Fiquei satisfeita quando ela morreu.
- A estagiária Fallon ?
- Oh, não, a Fallon não! Da Fallon tive pena. A estagiária Pearce.
A superintendente colocou ambas as mãos nas espáduas da rapariga, obrigando-a a recostar-se na cama. Prendeu firmemente o corpo trémulo e olhou-a nos olhos rasos de água.
- Quero que me diga a verdade, estagiária. Matou a estagiária Pearce?
- Não, superintendente.
- Nem a estagiária Fallon?
- Não, superintendente.
Miss Taylor deixou o ar sair dos pulmões. Abrandou a pressão com que segurava a rapariga e endireitou-se no assento.
- Acho que o melhor é contar-me tudo.
E assim, agora calmamente, a história patética brotou. Na altura não tinha parecido roubar. Parecera um milagre. A mãezinha precisava imenso de um casaco quente de Inverno e a estagiária Dakers tinha estado a pôr de parte trinta xelins do seu ordenado todos os meses. Só que o dinheiro tinha levado imenso tempo a juntar e o tempo já estava a ficar frio; e a mãezinha, que nunca se queixava, e nunca lhe pedia fosse o que fosse, tinha de esperar quase um quarto de hora pelo autocarro certas manhãs e constipava-se com muita facilidade. E, se realmente apanhasse uma constipação, não podia faltar ao emprego, porque Miss Arkwright, a chefe de secção do armazém, só estava à espera de uma oportunidade para a despedir. Realmente, trabalhar numa loja não era o emprego adequado para a mãezinha, mas não era fácil arranjar emprego quando se tinha mais de cinquenta anos e não se possuíam habilitações especiais, e as jovens ajudantes da secção não eram lá muito simpáticas. Passavam a vida a dar a entender que a mãezinha não dava o que podia, o que não era verdade. A mãezinha podia não ser tão rápida como elas, mas realmente afadigava-se com os clientes.
Nessa altura, a estagiária Harper tinha deixado cair duas notas novinhas de cinco libras praticamente aos seus pés. A estagiária Harper, que tinha tanto dinheiro para gastos seus dado pelo pai que podia perder dez libras sem se ralar grandemente. Tinha sucedido havia cerca de quatro semanas. A estagiária Harper vinha com a estagiária Pearce do Lar das Enfermeiras para o refeitório do hospital a fim de irem tomar o pequeno-almoço, e a estagiária Dakers seguia uns passos atrás. As duas notas tinham caído do bolso da capa da estagiária Harper e ali tinham ficado a esvoaçar levemente. O seu primeiro instinto fora chamar as outras duas alunas, mas havia qualquer coisa que a detivera ao ver o dinheiro. As notas eram tão inesperadas, tão inacreditáveis, tão bonitas na sua rigidez primitiva! Não se imobilizara a olhar para elas por mais de um segundo, quando se apercebeu de que aquilo que olhava era na realidade o casaco novo da mãezinha. E, nessa altura, as outras duas alunas já estavam praticamente fora de vista, as notas encontravam-se dobradas na sua mão e era tarde demais.
- Como soube a estagiária Pearce que tinha as notas? - perguntou a superintendente.
- Disse que me tinha visto. Calhou deitar uma olhadela em redor quando eu estava a curvar-me para apanhar as notas. Na altura não significou nada para ela, mas, quando a estagiária Harper disse a toda a gente que tinha perdido o dinheiro e que as notas lhe deviam ter caído do bolso da capa quando ia para o pequeno-almoço, a estagiária Pearce imaginou o que tinha sucedido. Ela e as gémeas foram com a estagiária Harper procurar pelo caminho, a ver se conseguiam encontrar o dinheiro. Suponho que foi nessa altura que ela se lembrou de me ter visto a baixar-me.
- Quando foi que ela lhe falou disso pela primeira vez?
- Uma semana depois, superintendente, quinze dias antes de o nosso grupo ter vindo para a escola. Creio que antes disso não conseguiu acreditar. Deve ter andado a tentar resolver-se a falar comigo.
Portanto, a estagiária Pearce tinha esperado. A superintendente perguntava a si própria porquê. Não podia ter levado uma semana inteira a esclarecer as suspeitas. Devia ter-se recordado de ver a Dakers a baixar-se para apanhar as notas assim que ouvira dizer que elas tinham desaparecido. Sendo assim, por que razão não se dirigira logo à rapariga? Seria porventura mais gratificante para a sua retorcida personalidade esperar até o dinheiro estar gasto e a ré se encontrar seguramente à sua mercê?
- Ela andava a fazer chantagem consigo? - perguntou.
- Oh, não, superintendente! - protestou, escandalizada, a rapariga. - Limitou-se a recuperar cinco xelins por semana, e isso não foi chantagem. Mandava o dinheiro todas as semanas para uma obra destinada a ex-presidiários. Mostrou-me os recibos.
- E por acaso explicou por que motivo não o restituía à estagiária Harper?
- Pensava que seria difícil explicá-lo sem me envolver e eu implorei-lhe que não o fizesse. Seria o fim de tudo, superintendente. Quando acabar o curso, quero fazer um estágio para enfermeira-visitadora, para poder cuidar da mãezinha. Se conseguisse arranjar um sítio na província, poderíamos arranjar uma casa de campo a meias e talvez mesmo um automóvel. A mãezinha já poderia deixar a loja. Contei isso à estagiária Pearce. Além disso, observou que a Harper era tão descuidada com dinheiro que não lhe faria mal nenhum uma ensinadela. Enviou os pagamentos para a obra de ex-presidiários porque lhe parecia vir a propósito. No fim de contas, se ela não me tivesse protegido, eu poderia ter ido parar à prisão.
A superintendente retorquiu com secura:
- Isso é evidentemente um disparate, e a menina tinha obrigação de saber que era um disparate. Ao que parece, a estagiária Pearce era uma jovem muito estúpida e arrogante. Tem a certeza de que ela não lhe fez mais nenhuma exigência? Há mais do que uma forma de chantagem.
- Mas ela não faria tal coisa, superintendente! - A estagiária Dakers esforçou-se para erguer a cabeça da almofada. - A Pearce era... bem, era boa.
Pareceu achar a frase inadequada e franziu as sobrancelhas como se estivesse desesperadamente ansiosa por explicar.
- Costumava falar bastante comigo e deu-me um cartão com uma citação da Bíblia, que eu tinha de ler todos os dias. Uma vez por semana interrogava-me sobre ela.
A superintendente foi percorrida por uma sensação tão aguda de ofensa moral que se viu obrigada a buscar alívio na acção. Levantou-se do banco e avançou até à janela, refrescando a face afogueada de encontro à vidraça. Sentia o coração aos saltos e notou com interesse quase clínico que as mãos lhe tremiam. Passado um momento regressou novamente para junto do leito.
- Não diga que ela era boa. Obediente, conscienciosa e bem-intencionada, se quiser, mas boa, não. Se alguma vez encontrar a verdadeira bondade, há-de ver a diferença. E, se eu fosse a si, não me ralava com o facto de ter ficado satisfeita com a morte dela. Dadas as circunstâncias, não seria uma pessoa normal se sentisse outra coisa. com o tempo, pode ser que venha a lamentá-la e a perdoar-lhe.
- Mas, superintendente, quem tem de ser perdoada sou eu. Sou uma ladra.
Haveria um indício de masoquismo no tom lamuriento da voz, do perverso rebaixamento da vítima nata? Miss Taylor redarguiu vivamente:
- A menina não é nenhuma ladra. Roubou uma vez, o que é muito diferente. Todos nós temos na vida um incidente qualquer de que nos envergonhamos ou arrependemos. A menina descobriu recentemente uma coisa acerca da sua própria pessoa, do que é capaz de fazer, que lhe abalou a confiança. Agora terá de viver com essa descoberta. Só podemos começar a compreender e a perdoar os outros depois de termos aprendido a compreender-nos e a perdoar-nos. A menina não vai voltar a roubar. Eu sei que não voltará, e a menina também. Mas fê-lo uma vez. É capaz de roubar. Essa certeza impedi-la-á de se sentir demasiado satisfeita consigo própria, de ser excessivamente autocomplacente. Pode torná-la uma pessoa muito mais tolerante e compreensiva e uma melhor enfermeira. Mas não se continuar a entregar-se a sentimentos de culpa, ao remorso e à amargura. Essas emoções insidiosas podem ser muito agradáveis, mas não a vão auxiliar, nem a si, nem a ninguém.
A rapariga ergueu o olhar para ela.
- Será preciso a Polícia saber?
Era essa, evidentemente, a questão. E só poderia haver uma resposta.
- Sim. E vai ser a menina quem terá de lhes contar tudo, tal como me contou a mim. Mas primeiro darei eu uma palavrinha ao inspector. É um novo investigador, desta vez da Scotland Yard, e penso que se trata de um homem inteligente e compreensivo.
Tratar-se-ia realmente? Como podia saber? Aquele primeiro encontro fora brevíssimo, não tendo passado de um olhar e de um contacto de mãos. Estaria ela pura e simplesmente a consolar-se com a impressão fugaz de que tinha diante de si um homem dotado de autoridade e imaginação, que podia ser capaz de solucionar o mistério de ambas as mortes com um mínimo de dano, tanto para os inocentes como para o culpado? Sentira-o instintivamente. Mas seria a sensação racional? Acreditara na história da estagiária Dakers; a verdade, porém, é que estava predisposta para acreditar. Como soaria ela a um funcionário da Polícia confrontado com uma multiplicidade de suspeitos mas nenhum outro motivo discernível? E não havia dúvida de que o motivo lá estava. Era todo o futuro da estagiária Dakers, bem como o da mãe. E a Dakers tinha-se comportado de uma maneira bem estranha. É certo que fora uma das alunas mais abaladas com a morte da Pearce, mas tinha-se recomposto com uma rapidez notável. Mesmo submetida a apertado interrogatório por parte da Polícia, guardara o seu segredo. Que fora, então, que precipitara aquela desintegração na confissão e no remorso? Seria apenas o choque ao descobrir o corpo da Fallon? E por que razão havia a morte da Fallon de ser de tal modo cataclísmica, se ela nada tivera a ver com isso?
Miss Taylor voltou a pensar na Pearce. Como as pessoas sabiam pouco acerca de qualquer das alunas! A Pearce, se uma pessoa se pusesse sequer a pensar nela, era o protótipo da aluna apagada, conscienciosa e desengraçada, que estava provavelmente a utilizar a enfermagem como compensação para a falta de satisfações mais ortodoxas. Normalmente havia uma aluna assim em todas as escolas de enfermagem. Era difícil recusá-las quando concorriam, visto que forneciam habilitações literárias mais do que suficientes e referências impecáveis. E, regra geral, não davam más enfermeiras. Apenas raramente vinham a ser as melhores. Mas agora começava a interrogar-se. Se a Pearce possuía uma tal ânsia secreta de poder que era capaz de utilizar o sentimento de culpa e a desorientação daquela criança como alimento para o seu próprio eu, afinal estava longe de ter sido vulgar ou incapaz. Fora uma jovem perigosa.
E tinha engendrado tudo aquilo com grande esperteza. Deixando passar uma semana para poder ficar razoavelmente segura de que o dinheiro fora gasto, não deixara à Dakers por onde escolher. A criança dificilmente poderia argumentar que cedera a um súbito impulso mas tencionava devolver o dinheiro. E, mesmo que a Dakers tivesse resolvido confessar, porventura à superintendente, a estagiária Harper teria de ser informada: a Pearce ter-se-ia encarregado disso. E só a Harper podia decidir se levaria ou não a acusação por diante. Teria sido porventura possível influenciá-la, persuadi-la a compadecer-se. Mas supondo que não fora possível? A estagiária Harper teria quase seguramente contado ao pai, e a superintendente não conseguia imaginar Mr. Ronald Harper a mostrar compaixão para com alguém que se tivesse apoderado do seu dinheiro. O contacto que Miss Taylor tivera com ele fora breve mas revelador. Aparecera no hospital dois dias a seguir à morte da Pearce: era um homem encorpado, de ar opulento e agressivo, desproporcionado dentro do casacão de automobilista. Sem preliminares ou explicação, tinha-se lançado na tirada previamente ensaiada, tratando a superintendente como se fosse um dos seus garagistas. Não ia permitir que a filha passasse mais um minuto sequer numa casa onde havia um assassino à solta, estivesse lá a Polícia ou não. Antes do mais, aquela ideia do curso de enfermagem tinha sido uma perfeita tolice, e agora ia terminar. Aliás, a sua Diane não precisava de exercer nenhuma profissão. Estava noiva, não era verdade? E ainda por cima de um riquíssimo partido! O filho do seu sócio. Podiam antecipar o casamento em lugar de esperar até ao Verão e, entretanto, a Diane podia ficar em casa e dar-lhe uma ajuda no escritório. Ia levá-la com ele imediatamente, e gostava de ver alguém a tentar impedi-lo de o fazer.
Ninguém o impedira. A rapariga não pusera objecções. Tinha permanecido de pé, imóvel, no gabinete da superintendente, notoriamente grave, mas sorrindo levemente como que satisfeita com todo aquele espalhafato, com a peremptória masculinidade do pai. A Polícia não podia impedi-la de partir, nem pareceu preocupada em tentar. Era estranho, pensou a superintendente, ninguém ter suspeitado seriamente da Harper; e, se as duas mortes eram obra da mesma pessoa, a sua intuição revelara-se acertada. Vira a rapariga pela última vez entrando no enorme e feio automóvel do pai, de pernas esguias sob o novo casaco de peles que ele lhe tinha comprado para a compensar do desapontamento de lhe cortar o curso a meio e virando-se para um aceno de despedida ao resto do grupo, como uma estrela de cinema condescendente perante uma legião de admiradores. Não, não se tratava de uma família particularmente atraente. Miss Taylor teria pena de quem quer que lhes caísse nas garras. E, no entanto, tais eram os caprichos da personalidade. Diane Harper fora uma enfermeira eficiente, sob diversos aspectos uma enfermeira melhor do que a Pearce.
Mas havia mais uma pergunta a fazer, e precisou de um segundo para reunir a coragem necessária à sua formulação.
- A estagiária Fallon tinha conhecimento desse assunto?
A rapariga respondeu imediatamente, confiante, levemente surpreendida:
- Oh, não, superintendente! Pelo menos não me parece que tivesse. A Pearce jurou que não diria nada a ninguém, e não era propriamente uma amiga particular da Fallon. Tenho a certeza de que ela não iria contar à Fallon.
- Pois não - disse a superintendente -, acho que não contaria. Meigamente, levantou a cabeça da estagiária Dakers e alisou
as almofadas.
- Agora quero que tente dormir um pouco. Sentir-se-á muito melhor quando acordar. E tente não se preocupar.
O rosto da rapariga descontraiu-se. Ergueu a cabeça, sorrindo para a superintendente e, estendendo a mão, tocou de leve o rosto de Miss Taylor. A seguir aninhou-se entre os lençóis como se estivesse decidida a dormir. Portanto, estava tudo bem. Mas com certeza que estava. Resultava sempre. Como era fácil e insidiosamente agradável aquela distribuição de conselho e conforto, em que cada porção era aromatizada individualmente ao gosto de cada um! Dir-se-ia a esposa de um vigário vitoriano presidindo a uma sopa dos pobres. A cada um consoante as suas necessidades. Acontecia todos os dias no hospital. A voz animadamente profissional de uma enfermeira do serviço das enfermarias: ”Está aqui a superintendente para a ver, Mrs. Cox. Quer-me parecer que Mrs. Cox não está a sentir-se lá muito bem esta manhã, superintendente.” Um fatigado rosto torturado pela dor sorrindo valorosamente da almofada, boca ávida da sua ração de afecto e tranquilização. As enfermeiras-chefes a levarem-lhe os seus problemas, os eternos problemas insolúveis referentes ao trabalho e a personalidades incompatíveis.
”Já se sente mais descansada acerca disso, enfermeira?”
”Sinto, obrigada, superintendente, muito mais descansada.”
O secretário de grupo, enfrentando desesperadamente as suas próprias limitações:
”Sentir-me-ia melhor se pudéssemos trocar uma palavrinha sobre a questão, superintendente.”
Claro que se sentiria melhor! Todos eles queriam trocar uma palavrinha sobre o problema. E todos eles saíam muito mais descansados. Ouvi as palavras de conforto que a nossa superintendente profere. Toda a sua vida de trabalho parecia uma blasfema liturgia de tranquilização e absolvição. E quão mais fácil, quer de dar, quer de receber, era aquele doce bálsamo de bondade humana, do que o ácido da verdade! Ela bem imaginava a vazia incompreensão, o ressentimento com que acolheriam o seu credo íntimo:
”Não tenho nada para dar. Não há qualquer auxílio. Estamos inteiramente sozinhos, todos nós, desde o momento em que nascemos até à hora da morte. O nosso passado é o nosso presente e o nosso futuro. Temos de viver conosco próprios até não haver mais tempo disponível. Se queres a salvação, olha para ti próprio. Não há mais nenhum sítio para onde olhar.”
Deixou-se ficar sentada por alguns minutos mais e depois abandonou calmamente o quarto. A estagiária Dakers fez um breve sorriso de despedida. Ao entrar no corredor viu a enfermeira Brumfett e Mr. Courtney-Briggs a saírem do quarto do doente deste. A enfermeira Brumfett adiantou-se pressurosamente.
- Desculpe, superintendente, não sabia que estava aqui na enfermaria.
Usava sempre o título formal. Podiam passar todo o tempo livre juntas passeando de automóvel ou jogando uma partida de golfe; podiam ir ver um espectáculo a Londres uma vez por mês com a aconchegada e enfadonha regularidade de um velho casal; podiam beber o seu chá da manhã e o leite quente da noite juntas num indissolúvel tédio. Apesar disso, no hospital, a Brumfett tratava-a sempre por superintendente. Os olhos astutos buscaram os seus.
-Já falou com o novo investigador, o homem da Yard?
- Apenas de fugida. Está previsto ter uma sessão com ele assim que regresse lá.
Mr. Courtney-Briggs disse:
- Por acaso conheço-o; não bem, mas já nos encontrámos. Há-de achá-lo compreensivo e inteligente. Claro que tem bastante fama. Dizem que trabalha muito rapidamente. Pela parte que me toca, é uma vantagem considerável. O hospital não suporta mais que um certo grau de desorganização. Suponho que ele há-de querer falar comigo, mas terá de esperar. Diga-lhe que dou um salto à Nightingale House assim que terminar a ronda das enfermarias, se faz favor, superintendente.
- Se ele perguntar, digo-lho - retorquiu calmamente Miss Taylor. Voltou-se para a enfermeira Brumfett.
- A estagiária Dakers já está mais calma, mas achava melhor ela não ser incomodada com visitas. Provavelmente conseguirá dormir qualquer coisa. vou mandar umas revistas e flores frescas para ela. Quando é que ficou o doutor Snelling de a ver?
- Disse que viria cá antes do almoço, superintendente.
- Talvez possa perguntar-lhe se ele não se importa de ter uma conversa comigo. vou estar todo o dia no hospital.
- Suponho que o investigador da Scotland Yard também há-de querer falar comigo - disse a enfermeira Brumfett. - Espero que isso não leve muito tempo. Tenho uma data de pessoal doente.
A superintendente fez votos para que a Brum não se mostrasse demasiado difícil. Seria lamentável que ela pensasse poder tratar um inspector-chefe da Polícia metropolitana como se fosse um interno recalcitrante. Mr. Courtney-Briggs, evidentemente, seria tão arrogante como nele era habitual, mas ela tinha um pressentimento de que o inspector Dalgliesh seria capaz de chegar para Mr. Courtney-Briggs.
Seguiram juntas até à porta da enfermaria. O espírito de Miss Taylor estava já ocupado por novos problemas. Tinha de se fazer qualquer coisa relativamente à mãe da estagiária Dakers. Ainda faltavam vários anos para a rapariga poder ser enfermeira-visitadora. Até lá, urgia libertá-la da constante ansiedade com a mãe. Talvez fosse útil ter uma conversa com Raymond Grout. Podia haver qualquer lugar administrativo no hospital que servisse para ela. Mas seria justo? Uma pessoa não podia satisfazer a sua ânsia de ajudar à custa de outrem. Por muitos problemas de recrutamento de pessoal que o serviço hospitalar pudesse ter em Londres, Grout não tinha dificuldade em preencher os lugares administrativos. Assistia-lhe o direito de esperar eficiência; e as Mrs. Dakers deste mundo, tão perseguidas pelas suas próprias insuficiências como pela pouca sorte, raramente podiam proporcioná-la. Imaginava que teria de telefonar à mulher e igualmente aos pais das outras alunas. O importante era tirar as raparigas da Nightingale House. O programa do curso não podia ser desmembrado; já assim era suficientemente apertado. O melhor que tinha a fazer era combinar com o ecónomo para elas passarem a dormir no Lar das Enfermeiras - decerto haveria espaço bastante, com tantas enfermeiras internadas por doença - e poderiam deslocar-se ali todos os dias para utilizarem a biblioteca e a sala de aulas. E depois seria preciso consultar o vice-presidente da Comissão de Gestão do hospital, enfrentar a imprensa, acompanhar a investigação e combinar os pormenores do funeral. Haveria pessoas querendo contactá-la a toda a hora. Mas primeiro e acima de tudo, tinha de se avistar com o inspector Dalgliesh.
Perguntas e respostas
A superintendente e as enfermeiras-chefes tinham os alojamentos no terceiro piso da Nightingale House. Quando atingiu o cimo das escadas, Dalgliesh viu que a ala sudoeste tinha sido separada do resto do patamar por uma divisória especialmente construída de madeira pintada de branco na qual uma porta, de proporções insignificantes e imaterial, em contraste com o tecto alto e as paredes forradas de madeira de carvalho, apresentava a legenda ”Apartamento da Superintendente”. Havia um botão de campainha, mas, antes de premi-lo, explorou rapidamente o corredor. Era semelhante ao do andar de baixo, mas tinha uma passadeira vermelha que, embora desbotada e coçada, dava uma ilusão de conforto à nudez daquele piso superior.
Dalgliesh passou silenciosamente de porta em porta. Cada uma delas tinha um nome escrito à mão num cartão enfiado no respectivo caixilho de latão. Reparou que a enfermeira Brumfett ocupava o quarto logo pegado ao apartamento da superintendente. A seguir ficava a casa de banho, funcionalmente dividida em três diminutos cubículos, cada um deles com a sua banheira e retrete. O caixilho da porta seguinte continha o nome da enfermeira-chefe Gearing; os dois seguintes estavam vagos. A enfermeira-chefe Rolfe ficava no extremo norte do corredor, imediatamente ao lado da cozinha e da sala de uso geral. Dalgliesh não tinha autoridade para entrar em nenhum dos quartos, mas rodou tentativamente as maçanetas de cada uma das portas. Conforme esperava, estavam fechadas à chave.
Foi a própria superintendente quem lhe abriu a porta do apartamento no espaço de segundos após ele ter tocado, e seguiu-a até à sala de estar. O tamanho e a magnificência desta deixavam uma pessoa sem fôlego. Ocupava todo o torreão sudoeste, constituindo uma enorme sala octogonal pintada de branco, de tecto ornamentado com motivos dourados e azul-pálido, e com duas imensas janelas que davam para o hospital. Uma das paredes encontrava-se forrada de alto a baixo de prateleiras brancas com livros. Dalgliesh resistiu à impertinência de avançar descontraidamente até lá na esperança de avaliar o temperamento de Miss Taylor pelos seus gostos literários. No entanto, do local onde estava podia ver que não havia livros de estudo, nem relatórios oficiais encadernados, nem inclinadas pilhas de pastas de arquivo. Tratava-se de uma sala de estar e não de um gabinete de trabalho.
Na lareira ardia um fogo vivo, com a madeira ainda a estalar de ter sido acesa havia pouco. Ainda não imprimira a sua marca no ar, que estava frio e muito parado. A superintendente vestia uma curta romeira escarlate por cima do vestido cinzento. Tinha tirado a touca e o grande rolo de cabelo loiro repousava como um fardo na nuca frágil e anémica.
Tinha a sorte, pensou ele, de ter nascido numa época capaz de apreciar a individualidade dos traços e da forma, devendo tudo à estrutura óssea e nada aos suaves matizes da feminilidade. Um século atrás ter-lhe-iam chamado feia, até mesmo grotesca. Hoje em dia, porém, a maioria dos homens achá-la-ia interessante e alguns poderiam mesmo defini-la como bonita. Para Dalgliesh era uma das mulheres mais bonitas que alguma vez encontrara.
Colocada rigorosamente a meio das três janelas estava uma robusta mesa de carvalho contendo um grande telescópio preto e branco. Dalgliesh notou que não se tratava de um brinquedo de amador, mas sim de um instrumento caro e sofisticado, dominando a sala. A superintendente apercebeu-se de que ele o fitava e perguntou:
- Interessa-se por astronomia?
- Nem por isso. Ela sorriu.
- Lê silence éternel de cês espaces infinis m’effraie1?
- Inquieta-me mais do que me amedronta. É provavelmente a minha vaidade. Não consigo interessar-me por aquilo que, além de não compreender, sei que não tenho perspectivas de alguma vez compreender.
- Para mim, é precisamente esse o atractivo. É uma forma de escapismo, até mesmo de voyeurismo, penso eu, esta absorção de
um universo impessoal que não posso fazer nada para influenciar ou controlar e, melhor ainda, ninguém espera que eu o faça. É uma abdicação da responsabilidade. Devolve os problemas pessoais à sua dimensão própria.
Indicou a Dalgliesh o sofá de couro preto diante da lareira. Defronte deste via-se uma mesinha com um termo de café, leite quente, açúcar cristalizado e duas chávenas.
Ao sentar-se, ele sorriu e disse:
- Se eu quiser entregar-me à humildade ou especular sobre o incompreensível, prefiro contemplar uma primavera. A despesa é nula, o prazer é mais imediato e a moral igualmente válida.
A boca plástica endereçou-lhe um trejeito trocista.
- E pelo menos restringe o entregar-se a essas perigosas especulações filosóficas a umas escassas semanas na Primavera.
”Esta conversa”, pensou ele, ”é uma pavana verbal. Se não tomo cuidado, começo a gostar. Pergunto a mim próprio quando passará ela aos factos. Ou estará à espera de que seja eu a dar o primeiro passo? E por que não? O requerente, o intruso, sou eu.”
Como se lhe lesse o pensamento, ela disse subitamente:
- É estranho tratar-se em ambos os casos de raparigas tão destituídas de amizades, uma e outra órfãs. Torna-me a tarefa menos pesada. Não há pais desolados a consolar, graças a Deus. A estagiária Pearce tinha apenas os avós que a criaram. Ele é mineiro reformado e vivem numa certa pobreza numa quinta dos arredores de Nottingham. Pertencem a uma seita religiosa muito puritana e a única reacção que tiveram à morte da pequena foi dizer: ”Seja feita a vontade de Deus.” Afigurou-se-me uma reacção estranha para uma tragédia que foi visivelmente obra da vontade humana.
- Nesse caso pensa que a morte da estagiária Pearce foi assassínio ?
- Não necessariamente. Mas não acuso Deus de adulterar o alimento usado na intubação.
- E quanto aos parentes da estagiária Fallon?
- Nem um, tanto quanto sei. Quando se matriculou, foi-lhe perguntado pela família mais chegada e disse-nos que era órfã e não tinha familiares consanguíneos vivos. Não havia motivo para o pôr em dúvida. Era provavelmente verdade. Mas amanhã os jornais hão-de publicar a sua morte e, se houver alguns parentes ou amigos, decerto teremos notícias deles. Presumo que tenha falado com as alunas.
- Acabo de ter uma conversa preliminar com elas em grupo. Falei com elas na sala de aulas práticas. Foi inútil para me proporcionar um pano de fundo neste caso. Todas concordaram em fornecer as impressões digitais e é isso que está a ser feito neste momento. vou precisar das impressões digitais de todas as pessoas que se encontravam na Nightingale House ontem à noite e hoje de manhã, quanto mais não seja para efeitos de eliminação. E claro que terei de entrevistar toda a gente em particular. Mas agradeço esta oportunidade de contactar primeiro com a senhora. No fim de contas, estava em Amsterdão quando a estagiária Fallon morreu. Isso significa que é menos um suspeito com que tenho de me preocupar.
Viu com surpresa os nós dos dedos dela tornarem-se brancos em redor da pega da cafeteira e o rosto ruborizar-se. Fechou os olhos e ele pensou ouvir um suspiro. Observou-a um tanto desconcertado. O que acabara de dizer teria certamente de ser evidente para uma mulher com a inteligência dela. Mal sabia mesmo porque se dera ao trabalho de o dizer. Se aquela segunda morte fosse assassínio, qualquer pessoa que dispusesse de um álibi abrangendo toda a tarde e noite do dia anterior devia estar livre de suspeitas. Como que pressentindo a surpresa dele, ela disse:
- Desculpe. Devo parecer obtusa. Bem sei que é uma tolice sentir tamanho alívio por saber que não se é suspeito quando de qualquer modo se sabe estar inocente. Talvez seja porque nenhum de nós é inocente em nenhum sentido propriamente dito. Tenho a certeza de que um psicólogo poderia explicá-lo. Mas deverá o senhor ser tão confiante? Não poderia o veneno (se é que de veneno se tratava) ter sido introduzido na garrafa de uísque da Fallon em qualquer altura antes de ela a ter comprado, ou outra garrafa envenenada, ter sido colocada em lugar da que ela comprou? Isso poderia ter sido feito antes de eu partir para Amsterdão, na tarde de terça-feira.
- Receio bem que tenha de resignar-se à inocência. Miss Fallon comprou aquela garrafa de uísque específica na loja de bebidas Scunthorpe, na High Street, ontem à tarde, e tomou a primeira e única bebida dessa garrafa na noite em que morreu. A garrafa está ainda praticamente cheia, o uísque que resta, tanto quantos sabemos, é absolutamente normal, e as únicas impressões digitais na garrafa são as da própria Miss Fallon.
- Trabalhou muito depressa. Portanto, o veneno ou foi posto no copo depois de ela ter vertido nele a bebida quente ou no açúcar.
- Se é que ela foi envenenada. Não podemos ter a certeza de nada enquanto não tivermos o relatório da autópsia, e talvez nem sequer nessa altura. O açúcar está a ser analisado, mas na realidade isso não passa de uma formalidade. A maior parte das estagiárias serviu-se daquele açucareiro quando tomou o chá da manhã e pelo menos duas das raparigas beberam o seu. Ficamos, portanto, reduzidos ao copo de uísque e limão quente. Miss Fallon facilitava imenso as coisas a qualquer assassino. Aparentemente, toda a Nightingale House sabia que, quando não saía à noite, ficava a ver televisão até ao final do programa. Dormia pouco e nunca ia para a cama cedo. Quando a televisão fechava, ia para o quarto e despia-se. Depois, de roupão e chinelos, dirigia-se à pequena copa do segundo piso e preparava aquela última bebida. Guardava o uísque no quarto mas não podia preparar lá a bebida porque não há lá água corrente nem maneira de a aquecer. Por isso, era seu costume levar o copo de vidro isolado com o uísque já servido e juntar-lhe o limão quente na copa. Havia lá uma provisão de limões, no guarda-loiças, juntamente com o cacau, o café, o chocolate e outras coisas que as estagiárias utilizam para preparar as suas bebidas antes de deitar. Depois voltava a levar o copo para o quarto e deixava-o no armário de cabeceira enquanto tomava banho. Tomava sempre um banho rápido e gostava de ir para a cama imediatamente enquanto ainda estava quente. Quero crer que era por isso que preparava a bebida antes de ir à casa de banho. Quando voltava ao quarto e se metia na cama, a bebida estava precisamente à temperatura ideal. E, aparentemente, esta rotina nunca se alterava.
- Chega a ser assustador a quantidade de coisas que uma pessoa fica a saber dos hábitos de cada uma numa pequena comunidade fechada como esta - disse a superintendente. - Mas claro que é inevitável. Não há verdadeira privacidade. Como pode haver? Evidentemente que eu sabia do uísque, mas não me pareceu que fosse da minha conta. A rapariga não era de modo nenhum uma alcoólica incipiente e não o passava às alunas mais novas. Na idade dela, tinha o direito de escolher a bebida que lhe apetecesse antes de dormir.
Dalgliesh perguntou como soubera a superintendente do uísque.
- Foi a estagiária Pearce que me contou. Pediu para falar comigo e deu-me a informação com a intenção de ”não quero andar a contar coisas mas acho que a senhora deve saber”. Para a estagiária Pearce, a bebida e o demónio eram uma e a mesma coisa. Mas não me parece que a Fallon fizesse algum segredo do facto de beber uísque. Como podia fazê-lo? Conforme disse, conhecemos os pequenos hábitos umas das outras. Mas claro que há certas coisas que não sabemos. A Josephine Fallon era uma pessoa muito reservada. Não posso fornecer-lhe qualquer informação sobre a vida dela fora do hospital e duvido que alguém possa.
- Quem era a amiga dela cá dentro? Decerto havia de ter alguém com quem se abrisse, não? Não é isso necessário para qualquer mulher neste género de comunidade fechada?
Ela fitou-o de maneira estranha.
- Sim. Todas nós precisamos de alguém. Mas acho que a Fallon precisava menos de uma amiga do que qualquer outra pessoa. Era notavelmente auto-suficiente. Se se abria com alguém, seria com a Madeleine Goodale.
- Aquela rapariga vulgar, de cara redonda e óculos grandes? Dalgliesh recordou-a. Não era um rosto desprovido de
atracção, principalmente devido à pele e à inteligência daqueles grandes olhos cinzentos por detrás dos grossos aros de chifre. No entanto, a estagiária Goodale nunca poderia ser senão vulgar. Pensou que era capaz de imaginar-lhe o futuro: os anos de curso suportados com determinação, o êxito nos exames, as responsabilidades gradualmente crescentes até, finalmente, chegar também ela a superintendente. Não era invulgar uma rapariga do género tornar-se amiga de uma mulher mais atraente. Era uma maneira de obter, ao menos por delegação, um quinhão de uma vida mais romântica, menos dedicada. Como se lhe lesse os pensamentos, Miss Taylor disse:
- A estagiária Goodale é uma das nossas enfermeiras mais eficientes. Sempre esperei que ela ficasse connosco terminado o curso, para ocupar um lugar de enfermeira do quadro. Mas isso é muito pouco provável. Está noiva do vigário da terra e querem casar na próxima Páscoa.
Deitou uma olhadela a Dalgliesh, um pouco maliciosamente.
- Consideram-no um jovem muito aceitável. Parece surpreendido, senhor inspector.
Dalgliesh riu-se:
- Com vinte e cinco anos de Polícia em cima, já devia ter aprendido a não fazer juízos superficiais. Acho que o melhor é falar em primeiro lugar com a estagiária Goodale. Consta-me que a sala que vão pôr à minha disposição ainda não está pronta. Suponho que posso continuar a utilizar a sala de aulas práticas. Ou há probabilidades de virem a precisar dela?
- Preferia que falasse com as raparigas noutro sítio qualquer, se não se importa. Essa sala encerra recordações tristes e dramáticas para elas. Nem sequer voltámos ainda a usá-la para aulas práticas. Enquanto a pequena sala de visitas do primeiro piso não estiver pronta, gostaria muito que entrevistasse as alunas aqui.
Dalgliesh agradeceu-lhe e voltou a colocar a chávena de café na mesinha. Ela hesitou e a seguir disse:
- Mr. Dalgliesh, há uma coisa que quero dizer-lhe. Sinto-me, sou, in loco parentis1 para as minhas alunas. Se em determinada ocasião algum problema... Se por acaso começasse a suspeitar de que alguma delas estava implicada, posso confiar que mo comunicaria? Nessa altura, precisariam de protecção. Pôr-se-ia certamente a questão de arranjar um advogado.
Voltou a hesitar.
- Peço que me desculpe se estou a ser ofensiva. É que uma pessoa tem tão pouca experiência destes assuntos... O que eu não gostaria é que elas...
- Fossem apanhadas numa armadilha?
- Fossem levadas a dizer coisas que pudessem erradamente incriminá-las, ou a outros membros do pessoal.
Dalgliesh deu por si ilogicamente irritado.
- Há regras estabelecidas, não sei se sabe - disse.
- Ora, regras! Bem sei que há regras. Mas tenho a certeza de que o senhor é simultaneamente experimentado e inteligente demais para deixar que elas o entravem por aí além. Estou simplesmente a recordar-lhe que estas raparigas são menos inteligentes e em certos assuntos não têm a mínima experiência.
Lutando contra a irritação, Dalgliesh redarguiu formalmente:
- Só lhe posso dizer que as regras existem e que é do nosso interesse mantê-las. Não está a ver o presente de bandeja que seria qualquer infracção para a defesa? Uma jovem desprotegida, uma aluna de enfermagem acossada por um funcionário superior da Polícia com anos de experiência de apanhar os incautos em armadilhas. Neste país já existem dificuldades suficientes colocadas no caminho da Polícia; não as acrescentemos voluntariamente.
Ela corou e ele seguiu interessadamente a vaga de cor alastrar pelo pescoço acima sobre a luzidia pele cor de mel-pálida que momentaneamente a fazia assumir o aspecto de quem tivesse fogo a correr nas veias. Mas logo, instantaneamente, aquilo passou.
A alteração foi tão súbita que ele não podia garantir que tivesse realmente visto a reveladora metamorfose. Ela disse com compostura:
- Ambos temos as nossas responsabilidades. Cabe-nos esperar que elas não colidam. Entretanto, deve contar que eu me preocupe tanto com as minhas como o senhor com as suas. E, a propósito, tenho uma informação a dar-lhe. Diz respeito à Christine Dakers, a estagiária que descobriu o corpo da estagiária Fallon.
Descreveu rápida e sucintamente o que sucedera durante a sua visita à enfermaria particular. Dalgliesh notou com interesse que ela não fez qualquer comentário, não avançou qualquer opinião e não ensaiou qualquer justificação da rapariga. Não lhe perguntou se ela acreditava na história. Era uma mulher altamente inteligente. Devia saber que aquilo que lhe proporcionara era o primeiro móbil. Perguntou-lhe quando poderia entrevistar a estagiária Dakers.
- De momento está a dormir. O doutor Snelling, que é o médico assistente das enfermeiras, ficou de vê-la lá para o fim da manhã. Nessa altura falará comigo. Se ele estiver de acordo, talvez o senhor possa falar com ela esta tarde. E agora vou mandar chamar a estagiária Goodale. Isto é, se não há mais nada que lhe possa dizer.
- vou precisar de muitas informações sobre a idade, o passado das pessoas e há quanto tempo se encontram no hospital. Isso não constará dos seus processos individuais? Seria útil se eu pudesse consultá-los.
A superintendente pensou. Dalgliesh notou que quando o fazia o rosto dela assumia uma expressão de repouso absoluto. Passado um momento, ela disse:
- Claro que todo o pessoal tem o seu processo individual. Legalmente, são propriedade da Comissão de Gestão do hospital. O presidente não voltará de Israel a não ser amanhã à noite, mas falarei com o vice-presidente. Suponho que ele me pedirá para consultar os processos e, caso eles não contenham nada de particular que seja irrelevante para a sua investigação, passar-lhos a si.
Dalgliesh resolveu que seria prudente não remexer para já na questão de quem deveria decidir do que era irrelevante para a sua investigação.
- Há perguntas pessoais que terei de fazer, evidentemente disse. - Mas seria muito mais cómodo e pouparia tempo se pudesse obter as informações de rotina através dos processos individuais.
Era estranho a voz dela ser tão desagradável e ao mesmo tempo tão obstinada.
- Compreendo que seria muito mais cómodo; seria igualmente uma maneira de conferir a veracidade do que lhe disserem. Mas os processos só podem ser-lhe passados nas condições que acabo de referir.
Portanto, ela estava confiante na aceitação e adesão do vice-presidente à sua opinião sobre o que estava certo. E assim seria, indubitavelmente. Eis uma mulher espantosa. Confrontada com um problema bicudo, meditara no assunto, tomara uma decisão e declarara-a firmemente, sem desculpas ou hesitações. Uma mulher admirável. Seria uma pessoa de trato fácil, desde que, evidentemente, todas as suas decisões fossem tão aceitáveis como aquela.
Perguntou se podia utilizar o telefone; chamou o sargento Masterson da inspecção que este fazia às diligências tomadas para adaptar a pequena sala de visitas para servir de gabinete e preparou-se para o longo tédio das entrevistas individuais.
A estagiária Goodale foi convocada telefonicamente e chegou daí a dois minutos com um aspecto pouco apressado e tranquilo. Miss Taylor pareceu pensar que qualquer explicação ou tranquilização era desnecessária para aquela jovem segura de si, limitando-se a dizer:
- Sente-se, estagiária. O inspector Dalgliesh quer falar consigo.
Depois tirou a romeira da poltrona, colocando-a pelos ombros, e saiu sem mais um olhar para qualquer deles. O sargento Masterson abriu o bloco de apontamentos. A estagiária Goodale sentou-se numa cadeira direita à mesa, mas, quando Dalgliesh lhe indicou uma poltrona junto da lareira, mudou de lugar sem hesitação. Sentou-se rigidamente mesmo à borda do assento, com as costas direitas e as pernas, surpreendentemente bem feitas e elegantes, recatadamente unidas. No entanto, as mãos poisadas no regaço estavam perfeitamente descontraídas e Dalgliesh, sentado diante dela, deu por si a enfrentar uns olhos desconcertantemente inteligentes.
- A menina tinha provavelmente mais intimidade com Miss Fallon do que qualquer outra pessoa no hospital. Fale-me dela.
Ela não revelou surpresa perante a formulação da primeira pergunta, mas fez uma pausa de segundos antes de responder, como que ordenando as ideias. A seguir disse:
- Gostava dela. Tolerava-me melhor a mim do que à maioria das colegas, mas não me parece que os sentimentos dela relativamente à minha pessoa fossem muito mais fortes do que isso. No fim de contas tinha vinte e um anos, e todas nós lhe devíamos parecer bastante imaturas. Tinha uma língua bastante sarcástica que não ajudava nada, e acho que algumas das raparigas tinham um certo receio dela.
”Raras vezes me falou do seu passado, mas disse-me que ambos os pais morreram em 1944 num bombardeamento aéreo de Londres. Foi criada por uma tia velha e educada num daqueles internatos que admitem crianças de muito tenra idade e as mantêm até estarem preparadas para sair. Desde que as propinas sejam pagas, evidentemente, mas tenho a impressão de que por esse lado não havia qualquer dificuldade. Ela sempre quis ser enfermeira, mas apanhou tuberculose logo a seguir ao colégio e teve de passar dois anos num sanatório. Não sei onde. Depois disso houve dois hospitais que a recusaram por motivos de saúde, de modo que teve uma série de empregos temporários. Disse-me pouco depois de iniciarmos o curso que já tinha estado noiva mas que não resultara.
- Nunca lhe perguntou porquê?
- Nunca lhe perguntei coisa nenhuma. Se ela mo quisesse contar, tê-lo-ia feito.
- Ela disse-lhe que estava grávida?
- Disse. Contou-me dois dias antes de adoecer. Deve ter tido suspeitas antes disso, mas o relatório de confirmação chegou nessa manhã. Perguntei-lhe o que tencionava fazer relativamente a isso e ela disse que ia desembaraçar-se da criança.
- Fez-lhe notar que isso era provavelmente ilegal?
- Não. Ela não queria saber de legalidades. Disse-lhe que achava mal.
- Mas mesmo assim ela tencionava ir por diante com o aborto?
- Sim, disse que conhecia um médico que o faria e que não haveria qualquer perigo propriamente dito. Perguntei-lhe se precisava de dinheiro e ela disse que não havia novidade; que o dinheiro era o último dos seus problemas. Nunca me disse a quem é que iria, e eu não lho perguntei.
- Mas estava pronta a avançar-lhe dinheiro se ela precisasse, mesmo estando em desacordo com o facto de ela querer desembaraçar-se da criança?
- O meu desacordo não era importante. O importante era que estava mal. Mas, quando soube que ela estava decidida, tive de resolver se a ajudaria ou não. Tinha receio que ela fosse a qualquer abortadeira de rua esconsa, sem habilitações, e arriscasse a vida e a saúde. Bem sei que a lei foi alterada, que hoje em dia é mais fácil obter uma recomendação médica, mas não me pareceu que ela reunisse condições para isso. Tive de tomar uma decisão moral. Se uma pessoa está disposta a cometer um pecado, então que o cometa com inteligência. Se assim não for, além de desafiar Deus, estará a insultá-lo, não lhe parece?
Dalgliesh redarguiu sisudamente:
- Trata-se de um interessante argumento teológico que não tenho competência para discutir. Ela disse-lhe quem era o pai da criança?
- Não directamente. Penso que possa ter sido um jovem escritor de quem ela era amiga. Não sei o nome dele nem onde possa encontrá-lo, mas sei que a Jo passou uma semana com ele na ilha de Wight em Outubro passado. Tinha uma semana de férias ainda por gozar e disse-me que decidira explorar a ilha a pé com um amigo. Presumo que fosse ele o amigo. O que é certo é que não era ninguém de cá. Foram lá durante a primeira semana e ela disse-me que tinham ficado numa pequena estalagem a uns oito quilómetros para sul de Ventnor. Foi tudo o que ela me contou. Creio que é possível que tenha ficado grávida durante essa semana, não?
- As datas conferem - respondeu Dalgliesh. - E ela nunca se abriu consigo quanto ao pai da criança?
- Não. Perguntei-lhe porque não casava com o pai e ela respondeu que seria injusto para a criança sobrecarregá-la com dois pais irresponsáveis. Lembro-me de ela dizer: ”Ele ficaria estarrecido com a ideia, fosse como fosse, a menos que tivesse uma ânsia repentina de experimentar a paternidade só para ver como era. E pode ser que gostasse de ver o bebé nascer para um dia ter a possibilidade de escrever uma descrição chocante de um parto. Mas realmente não se compromete com ninguém a não ser com ele próprio.”
- Mas ela gostava dele?
A rapariga fez uma pausa durante um bom minuto antes de responder. De seguida, disse:
- Acho que sim. Acho que pode ter sido por isso que se matou.
- O que é que a leva a pensar que ela o tenha feito?
- Creio que é por a alternativa ser ainda mais improvável. Nunca pensei que a Jo fosse o género de rapariga que se suicidasse... se é que existe um género. Mas na realidade eu não a conhecia. Nunca conhecemos realmente outro ser humano. Qualquer 1 coisa é possível para quem quer que seja. Sempre acreditei nisso. é com certeza mais provável que ela se tenha matado do que alguém tê-la assassinado. Isso parece absolutamente inacreditável. Porque havia alguém de o fazer?
- Contava que fosse capaz de mo dizer.
- Pois não sou. Tanto quanto sei, não tinha inimigos no John Carpendar. Não era popular. Era demasiado reservada, demasiado solitária. Mas as pessoas não antipatizavam com ela. E, mesmo que antipatizassem, decerto o assassínio sugere mais do que simples antipatia. Parece muito mais provável que ela tenha regressado ao serviço demasiado cedo depois da gripe, tenha sido subjugada por uma depressão psicológica, sentindo que não era capaz de fazer frente ao desembaraçar-se da criança mas ao mesmo tempo não conseguindo encarar a ideia de ter um filho ilegítimo, e resolvesse pôr termo à vida, obedecendo a um impulso.
- Quando a interroguei na sala de aulas práticas, disse-me que tinha sido provavelmente a última pessoa a vê-la com vida. O que foi exactamente que aconteceu quando estiveram juntas ontem à noite? Ela deu-lhe a impressão de poder estar a pensar em suicidar-se?
- Se tivesse dado, era pouco natural que eu a deixasse ir para a cama sozinha. Não disse nada. Não me parece que tenhamos trocado mais de uma dúzia de palavras. Perguntei-lhe como se sentia e ela disse-me que estava bem. Não estava visivelmente com disposição para conversar, de modo que eu não quis importuná-la. Passados cerca de vinte minutos fui para a cama. Nunca mais voltei a vê-la.
- E ela não se referiu à gravidez?
- Não se referiu a nada. Pareceu-me cansada e um tanto ou quanto pálida É angustiante para mim pensar que ela podia precisar de ajuda e que me fui embora sem pronunciar as palavras que podiam tê-la salvo. Mas ela não era pessoa que desse azo a confidências. Fiquei para trás quando as outras saíram porque pensei que ela poderia querer falar. Quando se tornou evidente que queria estar sozinha, fui-me embora.
Falava em ficar angustiada, pensou Dalgliesh, mas não parecia, nem pelo aspecto, nem pelo tom, que o estivesse. Não sentia remorsos. E por que havia de senti-los, de facto? Duvidava que ela sentisse algum desgosto especial. Fora mais íntima de Josephine Fallon do que qualquer das outras alunas. Mas não gostava realmente dela. E haveria alguém no mundo que tivesse gostado?
- E a morte da estagiária Pearce?
- Penso que se tratou fundamentalmente de acidente. Houve alguém que meteu veneno no alimento por brincadeira ou por maldade indefinida, sem se dar conta de que o resultado seria fatal.
- O que seria estranho numa estagiária do terceiro ano cujo programa de aulas incluía presumivelmente elementos básicos sobre venenos corrosivos.
- Não estava a insinuar que se tratasse de uma estagiária. Não sei quem foi. Não me parece que agora venha a descobrir. Mas não posso acreditar que se tratasse de homicídio voluntário.
Tudo aquilo era muito bonito, pensou Dalgliesh, mas era seguramente pouco franco numa rapariga tão inteligente como a estagiária Goodale. Era, evidentemente, a opinião geral, quase oficial. Isentava toda a gente do pior dos crimes e não acusava ninguém de qualquer coisa mais que maldade e descuido. Era uma teoria reconfortante e, a menos que tivesse sorte, podia nunca ser desmentida. Mas nem ele próprio acreditava nela, e não podia aceitar que a estagiária Goodale acreditasse. No entanto era ainda mais difícil aceitar que tinha na sua frente uma rapariga que se reconfortasse com teorias falsas ou fechasse deliberadamente os olhos a factos repulsivos.
Dalgliesh passou então a interrogá-la sobre os movimentos na manhã da morte da Pearce. Já os conhecia através das anotações do inspector Bailey e do depoimento anterior da rapariga, e ficou surpreendido quando a estagiária Goodale os confirmou sem hesitar. Tinha-se levantado às seis e quarenta e cinco e bebera o chá da manhã com o resto do grupo na sala de uso geral. Falara-lhes da gripe da Fallon porque era para o seu quarto que a estagiária Fallon tinha ido quando adoecera durante a noite. Nenhuma das alunas mostrara especial preocupação, mas tinham perguntado a si próprias como prosseguiria a aula prática agora que o grupo se encontrava tão desfalcado, e haviam especulado, não sem maldade, como se sairia a enfermeira Gearing perante uma inspecção do C. G. E. A estagiária Pearce bebera o chá com o resto do grupo e a estagiária Goodale pensava recordar-se de ela ter dito: ”Com a Fallon doente, creio bem que serei eu que terei de fazer de paciente.”
A estagiária Goodale não conseguia lembrar-se de qualquer comentário ou discussão acerca disso. Era ponto assente que fosse a estagiária seguinte na lista a substituir a que adoecesse.
Depois de tomar o chá, a estagiária Goodale vestira-se e dirigira-se à biblioteca para fazer uma revisão do tratamento da laringectomia a fim de estar preparada para a sessão dessa manhã. Para que o seminário fosse um êxito, era importante haver uma resposta rápida e viva às perguntas. Tinha principiado a trabalhar por volta das sete e um quarto e a estagiária Dakers juntara-se-lhe pouco depois, compartilhando uma devoção pelo estudo que, pensou Dalgliesh, fora pelo menos recompensada com um álibi para a maior parte do tempo antes do pequeno-almoço. Ela e a Dakers não tinham dito nada de interesse uma à outra enquanto trabalhavam e haviam saído ao mesmo tempo da biblioteca, seguindo juntas para o pequeno-almoço. Isso fora por volta das dez para as oito. Sentara-se à mesa com a Dakers e as gémeas Burt, mas saíra do refeitório antes delas. Fora às oito e um quarto. Tinha voltado ao quarto para fazer a cama, após o que se dirigira à biblioteca a fim de escrever umas cartas. Feito isto, tinha ido à casa de banho por momentos e encaminhara-se para a sala de aulas práticas um tudo-nada antes das nove menos um quarto. Apenas se encontravam já ali a enfermeira Gearing e as gémeas Burt, mas o resto do grupo tinha-se-lhes juntado pouco depois; não se lembrava por que ordem. Pensava que a Pearce tinha sido uma das últimas a chegar.
- Que aspecto tinha a estagiária Pearce? - perguntou Dalgliesh.
- Não lhe notei nada de especial, mas a verdade é que não contava notar. A Pearce era a Pearce. Quase não se dava por ela.
- Ela disse alguma coisa antes do começo da aula prática?
- Sim, efectivamente disse. É estranho o senhor fazer essa pergunta. Não o tinha dito ainda, porque o inspector Bailey não o perguntou, acho eu. Mas realmente ela falou. Percorreu-nos a todas com o olhar (nessa altura o grupo estava já todo reunido) e perguntou se alguém tinha tirado alguma coisa do quarto dela.
-E disse o quê?
- Não. Limitou-se a ficar ali imóvel com aquele ar acusador e um tanto beligerante que às vezes assumia e perguntou: ”Alguém esteve esta manhã no meu quarto ou tirou de lá alguma coisa?”
Ninguém respondeu. Acho que todas abanámos a cabeça. Não era uma pergunta que levássemos particularmente a sério. A Pearce tinha tendência para fazer um grande escarcéu por causa de ninharias. Fosse como fosse, as gémeas Burt estavam ocupadas a fazer os seus preparativos e o resto de nós conversava. A Pearce não suscitou lá muita atenção para a pergunta. Duvido mesmo que metade de nós a tenha realmente ouvido.
- Reparou em como ela reagiu? Estava irritada, ou zangada, ou aflita?
- Nem uma coisa nem outra. Realmente, é esquisito. Agora me lembro. Parecia satisfeita, quase triunfante, como se algo de que desconfiava se tivesse confirmado. Não sei por que razão reparei nisso, mas reparei. Depois a enfermeira Gearing chamou-nos à ordem e a aula prática começou.
Dalgliesh não falou logo a seguir ao final do relato da rapariga e, passado algum tempo, ela interpretou o seu silêncio como despedida, levantando-se para sair. Abandonou a cadeira com a mesma graciosidade controlada com que se sentara, alisou o avental com um gesto quase indiscernível, endereçou-lhe um último olhar inquiridor e encaminhou-se para a porta. Nessa altura fez meia volta, como que cedendo a um impulso.
- Perguntou-me se alguém tinha um motivo para matar a Jo, e eu disse que não sabia de ninguém. É verdade. Mas suponho que um motivo legal é algo diferente. Tenho de lhe dizer que há quem possa pensar que eu tinha um motivo.
- Tinha? - perguntou Dalgliesh.
- Suponho que vai pensar que sim. Sou a herdeira da Jo, ou pelo menos penso que o sou. Há cerca de três meses ela tinha-me dito que fizera testamento e que me ia deixar tudo o que tinha. Deu-me o nome e a morada do advogado. Posso passar-lhe esses dados. Ainda não me escreveram de lá, mas espero que o façam, isto se a Jo realmente fez testamento. Mas estou em crer que o fez. Não era pessoa para fazer promessas que não cumprisse. Talvez o senhor prefira entrar já em contacto com os advogados? Estas coisas levam o seu tempo, não levam?
- Ela disse-lhe por que razão a escolhia como legatária?
- Disse que tinha de deixar o dinheiro a alguém e que eu seria provavelmente quem melhor uso dele faria. Não levei o assunto muito a sério, e creio que ela também não. No fim de contas, tinha apenas trinta e um anos. Não esperava morrer. E avisou-me de que provavelmente mudaria de ideias muito antes de envelhecer o suficiente para transformar a herança numa perspectiva séria para mim. Vendo bem, provavelmente casaria. No entanto sentiu que tinha a obrigação de fazer testamento e na altura eu era a única pessoa que ela se dera ao trabalho de lembrar. Encarei-o apenas como uma formalidade. Nunca me passou pela cabeça que ela pudesse ter grande coisa para deixar. Só quando tivemos aquela conversa sobre o preço de um aborto é que ela me disse quanto tinha.
- E era... é... muito?
A rapariga respondeu, calmamente:
- A volta de 16 mil libras, creio eu. Provém dos seguros dos pais. - Sorriu um pouco forçadamente. - Não é coisa que não valha a pena ter, está a ver, senhor inspector? Penso que poderia contar-se como um motivo perfeitamente respeitável, não lhe parece? Assim já poderíamos instalar aquecimento central no vicariato. E, se visse o vicariato do meu noivo (doze divisões, todas elas viradas a norte ou a nascente), pensaria que eu tinha um belo motivo para a matar.
A enfermeira Rolfe e a enfermeira Gearing aguardavam com as alunas na biblioteca; tinham-se mudado da sala de estar das enfermeiras por forma a ocuparem o tempo de espera a ler e a fazer revisões. Quanto aproveitariam realmente as raparigas, era uma questão problemática, mas não havia dúvidas de que a cena tinha um ar tranquilo e de estudo. As estagiárias tinham-se sentado às mesas defronte da janela e encontravam-se aparentemente absorvidas, com os livros abertos na frente. A enfermeira Rolfe e a enfermeira Gearing, como que para realçarem a sua superioridade hierárquica e solidariedade, tinham-se retirado para o sofá defronte da lareira e estavam sentadas ao lado uma da outra. A enfermeira Rolfe marcava com uma esferográfica verde uma pilha de exercícios de alunas do primeiro ano, apanhando cada caderneta de uma rima que tinha no chão, aos pés, e juntando-a, depois de despachada, à rima que ia crescendo encostada ao espaldar do sofá. A enfermeira Gearing tomava ostensivamente apontamentos para a lição seguinte, mas parecia incapaz de tirar os olhos dos decisivos hieroglifos da colega.
A porta abriu-se e Madeleine Goodale regressou. Sem uma palavra, voltou à carteira, pegou na caneta e retomou o trabalho.
A enfermeira Gearing sussurrou:
- A Goodale está com um ar bastante calmo. É estranho, tendo em atenção que era considerada a melhor amiga da Fallon.
A enfermeira Rolfe não ergueu a vista, observando secamente:
- Ela não queria realmente saber da Fallon para nada. A Goodale tem apenas um capital de emoções limitado e imagino que o consome todo naquele indivíduo extremamente apagado com o qual resolveu casar.
- No entanto, ele é bem-parecido. Se queres que te diga, muita sorte tem a Goodale em o ter apanhado.
Mas o assunto tinha interesse secundário para a enfermeira Gearing, e não o levou mais além. Passado um minuto perguntou rabugentamente:
- Porque é que a Polícia não chamou mais ninguém?
- Hão-de chamar. - A enfermeira Rolfe acrescentou outro livro de exercícios, liberalmente embelezado de tinta verde, a uma rima inteira ao seu lado. - Provavelmente estão ainda a discutir a contribuição da Goodale.
- Tinham obrigação de falar primeiro connosco. No fim de contas, somos enfermeiras-chefes. A superintendente devia ter explicado. E porque é que a Brumfett não está aqui? Não vejo por que razão há-de ser tratada de uma maneira e nós de outra.
A enfermeira Rolfe:
- Demasiado atarefada. Ao que parece, agora houve um par de alunas do segundo ano lá da enfermaria que apanhou a gripe. Ela mandou um recado qualquer a Mr. Dalgliesh por um servente, naturalmente fornecendo informações sobre os seus movimentos ontem à noite. Encontrei-me com ele quando o vinha entregar. Perguntou-me onde podia encontrar o senhor da Scotland Yard.
A voz da enfermeira Gearing tornou-se petulante.
- Tudo isso é muito bonito, mas ela devia estar aqui. Deus sabe como andamos também atarefadas! A Brumfett vive na Nightingale House; teve as mesmas oportunidades de matar a Fallon que qualquer outra pessoa.
A enfermeira Rolfe disse de mansinho:
- Teve mais hipóteses.
- Que queres tu dizer com mais hipóteses?
A voz cortante da enfermeira Gearing cruzou o silêncio e uma das gémeas Burt levantou a cabeça.
- Teve a Fallon à sua mercê na enfermaria durante estes últimos dez dias.
- Mas com certeza não queres insinuar?... A Brumfett não faria tal coisa!
- Exactamente - redarguiu friamente a enfermeira Gearing.
- Portanto, para quê fazer observações estúpidas e irresponsáveis ?
Houve um silêncio, quebrado apenas pelo restolhar de papel e pelo sibilar do calorífero a gás. A enfermeira Gearing inquietou-se.
- Suponho que, se a Brumfett ficou sem outras duas enfermeiras, há-de estar a pressionar a superintendente para convocar algumas deste bloco. Tem os olhos postos nas gémeas Burt, eu bem sei.
- Nesse caso está com azar. Este grupo já teve o programa suficientemente alterado. No fim de contas, é o último período escolar antes dos exames finais. A superintendente não vai deixar que o interrompam.
- Não estou assim tão certa disso. Lembra-te de que é a Brumfett. A superintendente não costuma dizer-lhe que não. No entanto, é estranho: ouvi o boato de que este ano não vão de férias uma com a outra. Um dos assistentes de farmácia ouviu a secretária da superintendente dizer que a superintendente tenciona explorar a Irlanda de automóvel por conta própria.
”Meu Deus”, pensou a enfermeira Rolfe, ”não haverá qualquer privacidade nesta casa?” Mas não disse nada, limitando-se a afastar-se uns centímetros da irrequieta figura ao seu lado.
Foi então que o telefone da parede tocou. A enfermeira Gearing ergueu-se de um salto e atravessou a sala para ir atender. Voltou-se para o resto do grupo, o rosto vincado de desapontamento.
- Era o sargento Masterson. O inspector Dalgliesh pede o favor de falar agora com as gémeas Burt. Mudou-se para a sala de estar das visitas neste piso.
Sem uma palavra e sem indícios de nervos, as gémeas Burt fecharam os livros e dirigiram-se para a porta.
Era meia hora mais tarde e o sargento Masterson estava a fazer café. A sala de estar das visitas tinha sido provida de uma pequena cozinha, um amplo recesso equipado com um lava-loiças e um armário coberto de fórmica, em cima do qual se encontrava um pequeno fogão de duas bocas. O armário tinha sido libertado de todos os apetrechos, excepto de quatro grandes chávenas, uma caixa de açúcar e outra de chá, uma lata de biscoitos, um grande jarro de barro, um coador e três embalagens herméticas transparentes de café acabado de moer. Ao lado do lava-loiças estavam duas garrafas de leite. A linha da nata era facilmente discernível, mas o sargento Masterson premiu a tampa de uma das garrafas, retirando-a, e farejou desconfiadamente o leite antes de aquecer um pouco numa caçarola. Aqueceu o jarro de barro com água quente da torneira, limpou-o cuidadosamente com o pano de chá pendurado ao lado do lava-loiças, deitou umas generosas colheradas de café e ficou à espera do primeiro bafo de vapor da chaleira. Concordava com as disposições que haviam sido tomadas. Se a Polícia tinha de trabalhar na Nightingale House, aquela sala era tão cómoda e confortável como qualquer outra e o café era um bónus inesperado, que mentalmente atribuía aos bons ofícios de Paul Hudson. O secretário do hospital tinha-lhe dado a impressão de ser um homem eficiente e imaginativo. O seu trabalho não havia de ser fácil. Provavelmente, o desgraçado tinha uma vida infernal, ensanduichado entre aqueles dois velhos tontos, o Kealey e o Grout, e aquela megera tirânica da superintendente.
Coou o café com meticulosa cautela e levou uma chávena ao chefe. Sentaram-se a beber sociavelmente juntos, circunvagando o olhar pelo jardim arruinado devido à tempestade. Ambos detestavam comida mal confeccionada ou café sintético, e Masterson pensava que nunca estavam tão perto de gostar um do outro como quando comiam e bebiam juntos, deplorando as imperfeições da comida na estalagem, ou como naquele momento, regozijando-se com bom café. Dalgliesh reconfortou as mãos em torno da chávena e pensou que era típico da eficiência e imaginação de Mary Taylor certificar-se de que lhes era posto à disposição café genuíno. O trabalho dela não havia de ser fácil. Aquela parelha ineficiente, o Kealey e o Grout, não havia de ser grande ajuda para ninguém, e Paul era demasiado jovem para fornecer um apoio que se visse.
Passado um momento a beberricar apreciadoramente, Masterson disse:
- Foi uma entrevista decepcionante, senhor inspector.
- A das gémeas Burt? Pois foi, tenho de confessar que esperava qualquer coisa mais interessante. No fim de contas, elas estiveram no centro do mistério; administraram o alimento fatal; surpreenderam a estagiária Fallon a sair da Nightingale House; encontraram-se com a enfermeira-chefe Brumfett nas suas preambulações a horas mortas. Mas já sabíamos tudo isso. E agora não ficámos a saber mais nada.
Dalgliesh pensou nas duas raparigas. Masterson tinha puxado outra cadeira à entrada de ambas e as raparigas haviam-se sentado do ao lado uma da outra, de mãos sardentas ritualmente poisadas no regaço e pernas recatadamente traçadas, cada uma delas uma imagem no espelho da outra. As suas corteses respostas de antífona às perguntas dele, pronunciadas com os rr guturais da parte ocidental da Inglaterra, eram tão agradáveis ao ouvido como o seu resplandecente ar saudável à vista. Simpatizara bastante com as gémeas Burt. Claro que podia muito bem estar diante de uma parelha de experientes cúmplices no mal. Tudo era possível. Sem dúvida tinham tido a melhor oportunidade de envenenar o alimento e tão boas hipóteses como qualquer outra pessoa na Nightingale House de adulterar a última bebida da Fallon. Apesar disso tinham parecido perfeitamente à vontade com ele, porventura um pouco aborrecidas por terem de repetir a maior parte da história, mas nem amedrontadas nem particularmente preocupadas. De quando em quando tinham-no fitado com um leve interesse especulativo, como se ele fosse um paciente difícil cujo estado começasse a dar origem a alguma ansiedade. Ele notara esse olhar concentrado e compassivo nos rostos de outras enfermeiras durante o seu primeiro encontro na sala de aulas práticas e achara-o desconcertante.
- E não notaram nada de estranho no leite?
Elas haviam respondido quase em uníssono, repreendendo-o na voz tranquila do senso comum.
- Oh, não! Bem, se tivéssemos notado, com certeza não continuaríamos a verter o alimento, não acha?
- Lembram-se de ter tirado a cápsula da garrafa? Estava solta? Dois pares de olhos azuis olharam um para o outro, como que trocando um sinal. A seguir, Maureen respondeu:
- Não nos lembramos se estava. Mas, mesmo que estivesse, não teríamos suspeitado de que alguém tivesse mexido no leite. Havíamos de pensar pura e simplesmente que o leiteiro o tinha colocado assim.
Nessa altura Shirley falara por si:
- Acho que, fosse como fosse, não teríamos notado nada de mal no leite. Sabe, é que estávamos concentradas na administração do alimento, a certificar-nos de que tínhamos todos os instrumentos e aparelhagem de que precisávamos. Sabíamos que Miss Beale e a superintendente chegariam de um momento para o outro.
Era essa, evidentemente, a explicação. Tratavam-se de raparigas que tinham sido ensinadas a observar, mas a sua observação era específica e limitada. Se estivessem a vigiar um doente, não deixariam escapar nada dos seus sinais ou sintomas, fosse um bater de pálpebras, fosse uma alteração do pulso; qualquer outra coisa que acontecesse na sala, por mais dramática que fosse, passar-lhes-ia provavelmente despercebida. A atenção delas estivera concentrada na demonstração, na aparelhagem, no equipamento, no paciente. A garrafa de leite não apresentava problemas. Tinham-na tomado por garantida. E no entanto eram filhas de agricultor. Uma delas - fora Maureen - tinha mesmo vertido o líquido da garrafa. Poderiam realmente ter confundido a cor, a textura, o cheiro do leite?
Como se lhe lesse o pensamento, Maureen disse:
- Não é que nos tivesse sido possível detectar o cheiro do ácido fénico. Toda a sala de aulas práticas cheira a desinfectante que fede. Miss Collins encharca tudo dele como se fôssemos todas leprosas.
Shirley riu-se:
- O ácido fénico não é eficiente contra a lepra!
Olharam uma para a outra, sorrindo numa cumplicidade feliz.
E assim prosseguira a entrevista. Não tinham teorias a propor, nem tão-pouco sugestões a apresentar. Não sabiam de ninguém que pudesse querer a Fallon ou a Pearce mortas, e no entanto uma e outra morte - dado que tinham ocorrido - não pareciam provocar-lhes grande surpresa. Recordavam todas as palavras da conversa entre a enfermeira Brumfett e elas às primeiras horas dessa manhã, e contudo o encontro, aparentemente, não as impressionara grandemente. Quando Dalgliesh perguntou se a enfermeira tinha um ar invulgarmente preocupado ou aflito, fitaram-no simultaneamente, de sobrancelhas enrugadas de perplexidade, antes de responder que a enfermeira tinha o mesmíssimo ar de sempre.
Como se estivesse a seguir os pensamentos do chefe, Masterson disse:
- A não ser que lhes perguntasse de caras se a enfermeira Brumfett estava com cara de quem tivesse acabado de assassinar a Fallon, não podia ter posto as coisas de maneira mais clara. São uma parelha estranhamente pouco comunicativa.
- Pelo menos estão certas das horas. Foram buscar aquele leite pouco passava das sete horas e dirigiram-se imediatamente à sala de aulas práticas com ele. Poisaram a garrafa por abrir no carrinho de instrumentos enquanto se entregavam aos preparativos preliminares para a demonstração. Saíram da sala de aulas práticas às sete e vinte e cinco para irem tomar o pequeno-almoço e a garrafa estava ainda no carrinho quando regressaram, por volta das vinte para as nove, a fim de terminarem os preparativos. A seguir meteram-na, ainda por abrir, num jarro de água quente para a levar à temperatura do sangue, e ali ficou até verterem o leite da garrafa num copo de medida cerca de dois minutos antes da chegada de Miss Beale e da superintendente, com a respectiva comitiva. A maioria dos suspeitos estava reunida a tomar o pequeno-almoço entre as oito e as oito e vinte e cinco, de modo que a má acção ou foi cometida entre as sete e vinte e cinco e as oito horas, ou durante o curto espaço entre o final do pequeno-almoço e o regresso das gémeas à sala de aulas práticas.
- Continuo a achar estranho que elas não notassem nada de especial naquele leite - observou Masterson.
- Podem ter notado mais do que presentemente se dão conta. No fim de contas, é a enésima vez que contam a história. Ao longo das semanas desde a morte da Pearce, as suas primeiras declarações fixaram-se-lhes no espírito como sendo a verdade imutável. Foi por isso que não lhes fiz a pergunta crucial sobre a garrafa de leite. Se elas me fornecessem a resposta errada agora, nunca a modificariam. Há que lhes provocar um abalo que as faça recordar completamente. Não estão a ver nada do que sucedeu com um olhar novo. Não simpatizo nada com reconstituições do crime; fazem-me sempre sentir um detective de histórias. No entanto, acho que neste caso pode haver motivos para reconstituição. Tenho de estar amanhã cedo em Londres, mas você e o Greeson podem encarregar-se disso. Provavelmente, o Greeson vai-se divertir.
Disse sucintamente a Masterson o que pretendia e concluiu:
- Não vale a pena incluir as enfermeiras. Suponho que arranjará maneira de Miss Collins lhe fornecer uma provisão de desinfectante. Mas, por amor de Deus, mantenha o produto debaixo de olho e a seguir dê-lhe sumiço. Não queremos outra tragédia.
O sargento Masterson pegou nas duas chávenas e foi pô-las no lava-loiças, dizendo:
- A Nightingale House parece ter sido atingida pelo mau-olhado, mas não estou a ver o assassino a tentar mais alguma coisa enquanto estivermos por perto.
Esta observação havia de revelar-se singularmente má como profecia.
Desde o seu encontro com Dalgliesh na sala de uso geral das enfermeiras, ao princípio dessa manhã, a enfermeira Rolfe tivera tempo de se recompor do abalo e de ponderar a sua situação. Tal como Dalgliesh esperara, estava agora francamente menos acessível. Tinha já fornecido ao inspector Bailey um depoimento claro e sem ambiguidades acerca dos preparativos para a aula prática e a alimentação por entubação e sobre os seus próprios movimentos na manhã em que a estagiária Pearce morrera. Confirmou o depoimento com rigor e sem espalhafato. Concordou que tinha conhecimento prévio de que era a estagiária Pearce quem desempenharia o papel de paciente e observou sarcasticamente que de pouco valeria negar esse conhecimento, uma vez que fora ela quem Madeleine Goodale chamara quando a Fallon adoecera.
Dalgliesh perguntou:
- Teve alguma dúvida sobre a autenticidade da doença? -Na altura?
- Nessa ocasião ou agora.
- Creio que está a insinuar que a Fallon podia ter encenado uma gripe, a fim de se assegurar de que a Pearce tomava o seu lugar e regressar depois sub-repticiamente à Nightingale House antes do pequeno-almoço para adulterar o alimento, não? Não. sei por que razão ela realmente voltou, mas pode tirar da ideia qualquer suspeita de que estivesse a fingir-se doente. Nem a Fallon seria capaz de simular uma temperatura de quarenta graus, uma leve rigidez e o pulso acelerado. Nessa noite encontrava-se muito doente, e permaneceu doente durante perto de dez dias.
Dalgliesh observou que era mais estranho ela ter-se achado suficientemente bem para regressar à Nightingale House na manhã seguinte. A enfermeira Rolfe replicou que era tão estranho que apenas podia imaginar que a Fallon tivera uma necessidade imperiosa de lá voltar. Instigada a especular sobre que necessidade poderia ter sido essa, respondeu que não lhe competia apresentar teorias. Depois, como que submetida a uma compulsão, acrescentou:
- Mas não era para assassinar a Pearce. A Fallon era muito inteligente, de longe a mais inteligente do seu ano. Se a Fallon tivesse voltado atrás para introduzir o corrosivo no nutriente, dar-se-ia perfeitamente conta de que havia um risco considerável de ser vista na Nightingale House, mesmo que não dessem pela sua falta na enfermaria, e tomaria todas as precauções no sentido de ter uma história preparada. Não teria sido difícil inventar qualquer coisa. Tal como as coisas se passaram, consta-me que se recusou simplesmente a fornecer qualquer explicação ao inspector Bailey.
- Talvez fosse suficientemente esperta para se dar conta de que essa invulgar reticência despertaria a atenção de outra mulher inteligente exactamente nesse sentido.
- Uma espécie de duplo bluffi Não me parece. Seria apostar forte demais contra a inteligência da Polícia.
Admitiu calmamente que não dispunha de álibi para qualquer momento compreendido entre as sete da manhã, hora a que as gémeas tinham ido buscar a garrafa de leite à cozinha, até às nove, altura em que se tinha juntado à superintendente e a Mr. Courtney-Briggs na sala de estar de Miss Taylor aguardando a chegada de Miss Beale, a não ser para o período limitado entre as oito e as oito e vinte e cinco, durante o qual estivera a tomar o pequeno-almoço na mesma mesa com a enfermeira Brumfett e a enfermeira Gearing. A enfermeira Brumfett tinha-se levantado da mesa primeiro, e seguira-se-lhe ela, por volta das oito e vinte e cinco. Havia-se dirigido primeiramente ao seu gabinete, contíguo à sala de aulas práticas, mas, reparando que este se encontrava ocupado por Mr. Courtney-Briggs, regressara imediatamente ao seu quarto-sala de estar, no terceiro piso.
Quando Dalgliesh inquiriu se a enfermeira Gearing e a enfermeira Brumfett estavam com o seu ar habitual ao pequeno-almoço, ela retorquiu secamente que não exibiam sinais de mania homicida iminente, se era aí que ele pretendia chegar. A Gearing estava a ler o Daily Mirror e a Brumfett o Nursing Times, se isso tinha algum significado, e a conversa fora mínima. Lamentava não poder apresentar testemunhas dos seus próprios movimentos antes ou depois da refeição, mas isso era decerto compreensível: havia já alguns anos que preferia lavar-se e utilizar os sanitários em privado. Afora isso, apreciava o tempo livre antes do trabalho diário e preferia passá-lo sozinha.
Dalgliesh perguntou:
- Ficou admirada ao encontrar Mr. Courtney-Briggs no seu gabinete quando lá foi depois do pequeno-almoço?
- Nem por isso. Parti do princípio de que tinha passado a noite nos alojamentos dos médicos e viera cedo para a Nightingale House para esperar a inspectora do C. G. E. Provavelmente queria um sítio qualquer onde pudesse escrever uma carta. Mr. Courtney-Briggs arroga-se o direito de utilizar como gabinete particular qualquer compartimento do John Carpendar que lhe dê na cabeça.
Dalgliesh interrogou-a sobre os seus movimentos na noite anterior. Repetiu que tinha ido ao cinema sozinha mas desta vez aduziu que encontrara Julia Perdoe à saída e que haviam regressado juntas ao hospital. Haviam entrado pelo portão da Winchester Road, do qual tinha uma chave, e regressado à Nightingale House passava pouco das onze horas. Ela dirigira-se imediatamente para o seu quarto e não tinha falado com ninguém. Imaginava que a estagiária Pardoe ou tinha ido directa para a cama, ou se juntara ao resto do grupo na sala de estar das alunas de enfermagem.
- Portanto não tem nada para me dizer, senhora enfermeira? Nada que possa ajudar?
-Nada.
- Nem mesmo por que razão, por certo sem necessidade nenhuma, mentiu dizendo ter ido ao cinema sozinha?
- Nada. E não me parece que os meus assuntos particulares lhe digam minimamente respeito.
Dalgliesh tornou calmamente:
- Miss Rolf, morreram duas das suas alunas. Estou aqui para descobrir como e por que razão morreram. Se não quer colaborar, diga. Não é obrigada a responder às minhas perguntas. Mas não tente dizer-me quais são as perguntas que devo fazer. Quem está encarregado da investigação sou eu, e conduzo-a à minha maneira.
- Estou a ver. Estabelece as regras à medida que vai progredindo. A única coisa que podemos dizer é que não queremos jogar. Esse seu jogo é perigoso, Mr. Dalgliesh.
- Diga-me uma coisa sobre estas alunas. A senhora é a monitora-chefe; devem ter-lhe passado muitas raparigas pelas mãos. Penso que é uma boa avaliadora de pessoas. Vamos começar pela estagiária Goodale.
Se sentiu surpresa ou alívio ante a escolha dele, ocultou-o.
- Espera-se confiantemente que seja a Madeleine Goodale a conquistar a medalha de ouro para a melhor enfermeira do seu ano. É menos inteligente que a Fallon... do que a Fallon era, mas é trabalhadora e extremamente conscienciosa. É de cá. O pai é muito conhecido na vila: trata-se de um agente imobiliário extremamente bem sucedido que herdou uma empresa familiar fundada há muito. É membro do Conselho Municipal e fez parte da Comissão de Gestão do hospital durante uma série de anos. A Madeleine frequentou o liceu da terra e depois veio para cá. Não me parece que alguma vez tenha encarado a hipótese de qualquer outra escola de enfermagem. Toda a família tem uma grande lealdade à terra. Está noiva do jovem vigário da Santíssima Trindade e consta-me que projectam casar mal ela acabe o curso. Outra bela carreira perdida para a profissão, mas acho que ela lá sabe as suas prioridades.
- E as gémeas Burt?
- Boas raparigas, simpáticas e assisadas, com mais imaginação e sensibilidade do que normalmente lhes é reconhecido. Os pais são agricultores perto de Gloucester. Não sei bem por que razão escolheram este hospital. Tenho a impressão de que uma prima fez cá o curso e gostou. São o género de raparigas que escolheriam uma escola com esses fundamentos familiares. Não são particularmente inteligentes, mas também não são estúpidas. Graças a Deus, não somos obrigadas a ter cá raparigas estúpidas. Ambas têm namorado e a Maureen está noiva. Não me parece que qualquer delas encare a enfermagem como profissão permanente.
- Se este abandono automático com o casamento se tornar regra, vão começar a ter dificuldades em encontrar dirigentes para a profissão - observou Dalgliesh.
-Já agora temos dificuldades - redarguiu ela secamente. - Em quem mais está interessado?
- Na estagiária Dakers.
- Pobre pequena! Outra rapariga da terra, mas com antecedentes muito diferentes da Goodale. O pai era um modesto funcionário do governo aqui na terra que morreu com um cancro, tinha ela doze anos. A mãe tem vivido desde então com dificuldades, de uma magra pensão. A rapariga foi educada na mesma escola que a Goodale, mas nunca foram amigas, tanto quanto sei. A Dakers é uma aluna conscienciosa e trabalhadora, com muita ambição. Há-de ter resultados satisfatórios, mas nunca mais do que isso. Cansa-se com facilidade, não é propriamente robusta. As pessoas consideram-na tímida e altamente emotiva, seja lá o que for que esse eufemismo significa. Mas a Dakers é suficientemente rija. Não se esqueça de que é uma aluna do terceiro ano. Nenhuma rapariga chega tão longe no curso se for fundamentalmente fraca, quer mental, quer fisicamente.
- A JuliaPardoe?
A enfermeira Rolfe conseguira já atingir completo domínio sobre si própria e não se registou qualquer alteração na sua voz ao prosseguir.
- É filha única de pais divorciados. A mãe é uma daquelas mulheres bonitas mas egoístas que acham impossível permanecer muito tempo com o mesmo marido. Penso que já vai no terceiro. Não tenho a certeza se a rapariga sabe realmente quem é o pai. Não passou lá muito tempo em casa. A mãe pô-la numa escola pré-primária aos cinco anos. Teve uma vida escolar agitada e veio para cá directamente do sexto ano de um desses colégios internos independentes para raparigas, onde não lhes ensinam nada mas elas conseguem aprender uma porção de coisas. Começou por concorrer a um dos hospitais escolares de Londres. Não conseguiu corresponder às exigências de admissão de lá, quer social, quer academicamente, mas a superintendente encaminhou-a para aqui. As escolas do género da nossa tem este tipo de contrato com os hospitais escolares. Eles têm doze concorrentes para cada lugar. Trata-se essencialmente de snobismo e de esperanças de caçar marido. Nós ficamos bem felizes por admitir parte das que eles rejeitam; suspeito que muitas vezes dão melhores enfermeiras do que aquelas que eles admitem. A Pardoe foi uma delas. É um espírito inteligente mas por adestrar. Uma enfermeira meiga e atenciosa.
- Sabe muito sobre as suas alunas.
- Faço por isso. Mas espero não ter de expender opinião sobre as minhas colegas.
- A enfermeira Gearing e a enfermeira Brumfett? Não. Mas gostaria de saber a sua opinião sobre a estagiária Fallon e a estagiária Pearce.
- Sobre a Fallon, pouco lhe posso dizer. Era uma rapariga reservada, quase sigilosa. Inteligente, claro, e mais madura do que a maioria das alunas. Parece-me que só tive uma conversa pessoal com ela. Foi no final do primeiro ano, quando a convoquei para uma entrevista e lhe perguntei as suas impressões sobre a enfermagem. Estava interessada em saber que reacção provocavam os nossos métodos numa rapariga tão diferente do nosso love habitual de alunas acabadas de vir da escola. Respondeu-me que não era justo fazer um juízo enquanto não se passava de uma aprendiz e se era tratada como uma criada de cozinha atrasada mental, mas mesmo assim pensava que a enfermagem era a sua profissão. Perguntei-lhe o que lhe tinha despertado a atracção pela profissão e ela respondeu-me que queria adquirir habilitações que a tornassem independente em qualquer parte do mundo, uma qualificação da qual houvesse sempre procura. Não me parece que tivesse qualquer ambição específica a atingir na profissão. O curso limitava-se, para ela, a um meio de atingir um fim. Mas pode ser que me engane. Como disse, nunca a conheci propriamente.
- Portanto não pode dizer se ela tinha inimigos?
- Não posso dizer se alguém quereria matá-la, se é isso que quer dizer. Sempre me pareceu que a Pearce fosse uma vítima muito mais provável.
Dalgliesh perguntou-lhe porquê.
- Não simpatizava com a Pearce. Não a matei, mas a verdade é que não sou atreita a assassinar as pessoas pelo simples facto de antipatizar com elas. Mas era uma rapariga estranha, uma semeadora de discórdia e uma hipócrita. Não vale a pena perguntar-me como é que sei. Não tenho nenhuma prova autêntica e, se tivesse, duvido que lha fornecesse.
- Portanto não constituiu surpresa para si o facto de ela ter sido assassinada?
- Achei-o assombroso. Mas nem por um momento pensei que a morte dela fosse suicídio ou acidente.
- E quem é que acha que a matou?
II A enfermeira Rolf e olhou para ele com uma espécie de lúgum bre satisfação.
- Diga-me o senhor, inspector. Diga-me o senhor!
- Portanto ontem à noite foi ao cinema, e sozinha?
- Sim, já lho disse.
- Para ver uma reposição de L’Avventura. Terá porventura pensado que era mais fácil apreender as subtilezas de Antonioni sem companhia? Ou não terá arranjado ninguém que estivesse na disposição de ir consigo?
É claro que ela não podia resistir àquilo.
- Se eu quiser, arranjo montes de pessoas para me levarem ao nimas.
Ao nimas. Quando Dalgliesh tinha a idade dela, era o cinema. Mas o fosso entre gerações era mais fundo do que uma questão de simples semântica, a alienação mais completa. Não tinha a mais leve ideia do que se passaria por detrás daquela testa lisa e infantil. Não a compreendia, pura e simplesmente. Os notáveis olhos azul-violeta, bem afastados um do outro sob as sobrancelhas curvas, fitavam-no, circunspectos mas imperturbados. O rosto felino, com o pequeno queixo arredondado e os malares largos, não exprimia nada a não ser uma vaga repugnância pela questão em apreço. Era difícil, pensou Dalgliesh, alguém idealizar a visão de uma figura mais bonita ou mais agradável do que Julia Pardoe junto do seu leito de doente; a menos, evidentemente, que estivesse realmente em sofrimento ou em aflição, ocasião em que o sólido bom senso das gémeas Burt ou a calma eficiência de Madeleine Goodale seriam bem mais aceitáveis. Podia ser um preconceito pessoal, mas não conseguia imaginar nenhum homem a expor voluntariamente a sua fraqueza ou miséria física àquela jovem insolente e egoísta. E que seria precisamente, perguntou de si para si, que ela obtinha da enfermagem? Se o John Carpendar fosse um hospital escolar, poderia compreendê-lo. Aquela habilidade de arregalar os olhos ao falar, de tal modo que o interlocutor era brindado com um súbito flamejar de azul, de lábios húmidos levemente descerrados por sobre os regulares dentes ebúrneos, iria muito bem num grupo de estudantes de medicina.
Não deixava, pensou, de produzir o seu efeito no sargento Masterson.
Mas o que fora que a enfermeira Rolf e dissera a respeito dela?
”Um espírito inteligente mas por adestrar; uma enfermeira meiga e atenciosa.”
Bom, podia ser. Mas Hilda Rolfe era preconceituosa. E Dalgliesh, à sua própria maneira, era-o também.
Continuou o interrogatório, resistindo ao impulso de ser sarcástico, de ceder às reles zombarias da antipatia.
- Gostou do filme ?
- Não era mau.
- E quando regressou à Nightingale House desse filme que não era mau?
- Não sei. Faltava pouco para as onze, acho eu. Encontrei Miss Rolfe à saída do cinema e regressámos juntas a pé. Presumo que ela lhe tenha contado.
Portanto, devem ter falado uma com a outra depois desta manhã. Era esta a história delas, e a rapariga estava a repeti-la, sem sequer fingir importar-lhe que acreditassem nela ou não. Claro que aquilo poderia ser verificado. A rapariga da bilheteira do cinema podia lembrar-se do facto de elas terem chegado juntas ou não. Mas quase não merecia a pena investigar. Que importância tinha, efectivamente, a menos que elas tivessem passado a noite a forjar o assassínio ao mesmo tempo que absorviam cultura? E, se assim tivesse sido, ali estava uma companheira na iniquidade que aparentemente não se preocupava.
- Que sucedeu quando regressaram? - perguntou Dalgliesh.
- Nada. Fui para a sala de estar das estagiárias e estavam todas a ver TV. Bem, para dizer a verdade, desligaram-na quando eu cheguei. As gémeas Burt vieram fazer chá à cozinha das estagiárias e levámo-lo para o quarto da Maureen a fim de o bebermos. A Madeleine Goodale ficou com a Fallon. Não sei a que horas subiram. Eu fui para a cama logo a seguir a tomar o chá. Adormeci antes da meia-noite.
Podia ser que sim. Mas tinha sido um assassínio muito simples. Não houvera nada que a impedisse de esperar, porventura num dos cubículos dos lavabos, até ouvir a Fallon pôr o banho a correr. Uma vez a Fallon na casa de banho, a estagiária Pardoe saberia o que todas as outras alunas sabiam: que na mesa-de-cabeceira da Fallon estaria uma caneca com uísque e limão à espera. Como era simples qualquer pessoa infiltrar-se no quarto e juntar qualquer coisa à bebida! Juntar o quê? Era de enlouquecer, aquele trabalhar no escuro com a sua inevitável tendência para teorizar em antecipação aos factos. Antes de terminada a autópsia e de se poder dispor dos resultados da toxicologia, nem sequer podia ter a certeza de estar a investigar um homicídio.
Subitamente mudou de rumo, retomando um curso anterior de inquirição.
- Lamenta a morte da estagiária Pearce?
De novo os olhos arregalados, a pequena moue1 de meditação, a sugestão de que se tratava de uma pergunta assaz disparatada.
- Claro que sim. - Uma ligeira pausa. - Ela nunca me tinha feito mal nenhum.
- E tinha feito mal a alguém?
- O melhor é perguntar às pessoas. - Outra pausa. Talvez achasse que tinha sido imprudentemente disparatada e desabrida.
- Que mal podia a Pearce fazer a quem quer que fosse?
Pronunciou a frase sem vestígios de desprezo, quase com desinteresse, a simples enunciação de um facto.
- Alguém a matou. Isso não dá a entender que ela fosse inócua. Alguém devia odiá-la o bastante para querer fazê-la desaparecer da circulação.
- Pode ter-se suicidado. Quando engoliu aquela sonda, sabia com certeza o que a esperava. Estava aterrorizada. Qualquer pessoa que a observasse podia verificá-lo.
Julia Pardoe era a primeira aluna a referir o medo da estagiária Pearce. A única outra pessoa presente que dera por tal fora a inspectora do Conselho Geral de Enfermagem, a qual, no seu depoimento, tinha sublinhado o ar de apreensão, quase de sofrimento, da rapariga. Era interessante e surpreendente a estagiária Pardoe ter sido tão observadora. Dalgliesh perguntou:
- Mas acredita realmente que tenha sido ela própria a introduzir um veneno corrosivo no alimento?
Os olhos azuis cruzaram-se com os dele, e a rapariga endereçou-lhe o seu sorrisinho secreto.
- Não. A Pearce ficava aterrorizada sempre que tinha de fazer as vezes de paciente. Detestava-o. Nunca dizia nada, mas qualquer pessoa era capaz de ver o que ela sentia. Engolir a sonda deve ter sido particularmente desagradável para ela. Disse-me uma vez que não era capaz de suportar a ideia de um exame ou uma operação à garganta. Em criança tinha tirado as amígdalas e o médico... ou talvez tenha sido uma enfermeira... foi duro com ela e magoou-a muito. Fosse como fosse, tinha sido uma experiência horrível, que lhe provocara aquela fobia relativamente à garganta. Claro que podia ter explicado isto à enfermeira Gearing e qualquer uma de nós tomaria o seu lugar. Não era obrigada a fazer o papel de paciente. Ninguém a forçava a isso. Mas acho que a Pearce pensou que era seu dever ir até ao fim. Tinha uma tremenda noção do dever.
Com que então, todas as presentes podiam ter visto o que a Pearce sentia. Efectivamente, porém, só duas o tinham visto. E uma delas fora aquela jovem aparentemente insensível.
Dalgliesh sentiu-se intrigado, mas não particularmente surpreendido, com o facto de a estagiária Pearce ter resolvido fazer confidências a Julia Pardoe. Já não era a primeira vez que se lhe deparava aquela perversa atracção que as pessoas possuidoras de beleza e popularidade experimentavam pelas desengraçadas e desprezadas. Por vezes era mesmo correspondida: uma estranha fascinação mútua que, suspeitava ele, constituía o fundamento de muitas amizades e casamentos que o mundo achava inexplicáveis. Porém, se Heather Pearce estivera a fazer uma patética tentativa de conquistar amizade ou simpatia por meio de um relato de infortúnios da infância, não tivera sorte. Julia Pardoe respeitava a força, e não a fraqueza. Seria insensível a rogos de piedade. E contudo - quem sabe? - talvez a Pearce tivesse obtido alguma coisa dela. Não amizade, nem simpatia, nem sequer piedade, mas um tudo-nada de compreensão.
Cedendo a um súbito impulso, ele disse:
- Acho que a menina provavelmente sabia mais da estagiária Pearce do que qualquer outra pessoa daqui, e provavelmente compreendia-a melhor. Não acredito que a morte dela fosse suicídio, e a menina tão-pouco. Quero que me conte tudo acerca dela que possa ajudar-me a descobrir um motivo.
Houve uma segunda pausa. Seria imaginação sua, ou ela estava realmente a resolver-se a dizer qualquer coisa? A seguir ela disse naquela voz aguda, pouco enérgica e infantil:
- Imagino que andava a exercer chantagem sobre alguém. Tentou-o relativamente a mim uma vez.
- Conte-me isso.
Ela ergueu especulativamente o olhar para ele, como que a avaliar se ele seria digno de confiança ou perguntando a si própria se a história tinha importância suficiente para que valesse a pena contá-la. Depois, os lábios arquearam-se-lhe num pequeno sorriso reminiscente, e disse calmamente:
- Há cerca de um ano, o meu namorado passou uma noite comigo. Não aqui; no lar principal das enfermeiras. Abri uma das portas de saída de incêndio e deixei-o entrar. Para dizer a verdade, fizemo-lo por pirraça.
- Tratava-se de alguém do John Carpendar?
- Hum, hum. Um dos cirurgiões internos.
- E como foi que a Heather Pearce descobriu?
- Foi na noite da véspera dos nossos preliminares: o primeiro exame para o registo oficial. A Pearce tinha sempre dores de estômago antes das provas. Creio que percorria o corredor para ir à casa de banho e viu-me a abrir a porta ao Nigel. Ou então podia estar de volta para a cama e ter-se posto a escutar à porta. Talvez nos ouvisse às risadinhas, ou coisa que o valha. Imagino que ficou a ouvir durante todo o tempo que pôde. Pergunto a mim própria o que pensou ela que fosse. Nunca ninguém quis fazer amor com a Pearce, de maneira que suponho que ficava toda entusiasmada só de ouvir alguém na cama com um homem. Seja como for, atacou-me acerca disso na manhã seguinte e depois ameaçou contar à superintendente e fazer com que me expulsassem da escola de enfermagem.
Falava sem ressentimento, quase com uma ponta de divertimento. Aquilo não a tinha incomodado na altura, nem a incomodava presentemente.
- E que preço pedia ela pelo silêncio?
Não tinha dúvidas de que, fosse qual fosse o preço, não fora pago.
- Disse que ainda não tinha decidido; teria de pensar nisso. Haveria de ser adequado. Só queria que visse a cara dela. Estava toda molhada e vermelha como um pavão enjoado. Não sei como consegui manter-me séria. Fingi estar terrivelmente ralada e contrita e perguntei-lhe se quereria conversar sobre isso nessa noite. Isto destinava-se apenas a proporcionar-me o tempo suficiente para entrar em contacto com o Nigel. Ele vivia com a mãe viúva mesmo à saída da vila. Ela adora-o e eu sabia que não poria qualquer entrave a jurar que ele passara a noite em casa. Nem sequer se importaria com o facto de termos estado juntos. Acha que o seu precioso Nigel tem o direito de se apropriar de tudo aquilo de que goste. Mas eu não queria que a Pearce falasse antes de poder combinar tudo isso. Quando me encontrei com ela nessa noite, disse-lhe que ambos desmentiríamos completamente a história e que o Nigel apoiaria esse desmentido com um álibi. Ela não se tinha lembrado da mãe. E havia outra coisa de que tão-pouco se tinha lembrado. O Nigel é sobrinho de Mr. Courtney-Briggs. Assim, se ela falasse, o mais que sucederia era Mr. Courtney-Briggs arranjar maneira de ela ser expulsa, e não eu. Realmente, a Pearce era tremendamente estúpida.
- A menina parece ter enfrentado a questão com admirável eficiência e compostura. Então nunca chegou a saber que castigo lhe reservava a Pearce?
- Ah, claro que cheguei! Deixei-a falar antes de lhe contar aquilo. Assim tinha mais graça. Não era uma questão de castigo; estava mais perto da chantagem. Queria juntar-se a nós, fazer parte da minha seita.
- A sua seita?
- Bem, eu, a Jennifer Blain e a Diane Harper, exactamente. Na altura eu andava com o Nigel, e a Diane e a Jennifer tinham os seus amigos. Não conhece a Blain: é uma das estagiárias que estão com a gripe. A Pearce queria que lhe arranjássemos um rapaz para poder ser o quarto par.
- Achou isso surpreendente? Pelo que tenho ouvido dela, Heather Pearce não era exactamente o tipo de rapariga que se interessasse pelo sexo.
- Toda a gente se interessa pelo sexo, cada pessoa à sua maneira. Mas a Pearce não colocou as coisas nesse pé. Partia do princípio de que nós as três não éramos de confiança e tínhamos de ter alguém em quem se pudesse confiar para nos vigiar. Escusado será dizer de quem se tratava! Mas o que ela queria realmente, sei eu. Queria o tom Mannix, que era na altura o interno de pediatria. Para dizer a verdade, era um fulano cheio de sinais e bastante papa-açorda, mas a Pearce tinha um fraquinho por ele. Pertenciam ambos à Sociedade Cristã e o tom ia ser missionário ou coisa assim, terminados os seus dois anos aqui. Estaria mesmo bem para a Pearce, e estou em crer que teria conseguido que ele saísse com ela uma ou duas vezes, se o pressionasse. Mas isso não lhe faria bem nenhum a ela. Ele não queria a Pearce; queria-me a mim. Bem, o senhor sabe como é.
Dalgliesh sabia, realmente. No fim de contas, tratava-se da mais vulgar, mais banal das tragédias pessoais. Uma pessoa gostava de alguém. Esse alguém não gostava da pessoa. Pior ainda, em detrimento dos seus melhores interesses e para destruição da paz da pessoa, amava outra. Que fariam metade dos poetas e romancistas do mundo sem esta tragicomédia universal? Mas Julia Pardoe não se deixava comover por ela. Se ao menos, pensou Dalgliesh, a voz dela contivesse um vestígio de piedade, ou sequer interesse! Mas a desesperada necessidade da Pearce, a sua ânsia de amor que a levara àquela patética tentativa de chantagem, não provocava qualquer efeito na sua vítima, nem ao menos um divertido desprezo. Nem sequer se incomodava a pedir-lhe a ele que mantivesse a história em sigilo. E então, como se lhe lesse os pensamentos, disse-lhe porquê.
- Agora não me importa que o senhor saiba. Por que me havia de importar? No fim de contas, a Pearce está morta. E a Fallon também. Quero eu dizer, com dois assassínios na casa, a superintendente e a Comissão de Gestão do hospital têm coisas mais importantes para se preocuparem do que com o facto de eu e o Nigel termos ido para a cama. Mas quando penso nessa noite!... Palavra que dava vontade de rir. A cama era estreitíssima e chiava imenso, e o Nigel e eu ríamos tanto que mal... E pensar na Pearce de olho colado ao buraco da fechadura!
Nessa altura, riu-se. Era uma gargalhada de alegria espontânea e reminiscente, inocente e contagiosa. Erguendo o olhar para ela, o rosto sisudo de Masterson coruscou num rasgado esgar indulgente e, por um segundo invulgar, ele e Dalgliesh tiveram de fazer um esforço para não se desatarem a rir em coro com ela.
Dalgliesh não tinha convocado os membros do pequeno grupo para a biblioteca por nenhuma ordem especial e não fora com maldade premeditada que deixara a enfermeira Gearing para o fim de tudo. Porém, a longa espera tinha sido cruel para ela. Era visível que arranjara tempo, de manhã cedo, para se pintar com extremo cuidado; sem dúvida como instintiva preparação para quaisquer encontros traumáticos que o dia pudesse proporcionar. No entanto a pintura tinha saído em grande parte. O rímel derretera e agora tinha-se fundido e esborratado com a sombra dos olhos, havia gotas de suor pela testa fora e um vestígio de baton na cova do queixo. Talvez tivesse estado inconscientemente a mexer na cara. Não havia dúvidas de que experimentava dificuldade em manter as mãos quietas. Sentada, retorcia o lenço entre os dedos e cruzava e voltava a cruzar as pernas num nervoso desassossego. Sem esperar que Dalgliesh falasse, prorrompeu numa frenética tagarelice em voz aguda:
- O senhor e o seu sargento estão hospedados na estalagem Falconer’s Arms, dos Maycrofts, não é verdade? Espero que eles estejam a proporcionar-lhes todo o conforto. A Sheila é um bocado chata, mas o Bob é boa pessoa, quando a gente o apanha sozinho.
Dalgliesh tomara todas as precauções para não apanhar Bob sozinho. Tinha escolhido a Falconer’s Arms por ser pequena, cómoda e tranquila e encontrar-se meio vazia; e não tardara a descobrir porquê. O comandante de agrupamento Robert Maycroft e a mulher preocupavam-se mais em impressionar os visitantes com a sua própria nobreza do que em velar pelo conforto dos hóspedes, e Dalgliesh esperava ardentemente ver-se livre da estalagem lá para o fim da semana. Entretanto não fazia tenção de comentar os Maycrofts perante a enfermeira Gearing e conduziu-a, cortês mas firmemente, para questões mais relevantes.
Ao contrário dos outros suspeitos, ela achou necessário consumir os primeiros cinco minutos a expressar o seu horror perante a morte das duas raparigas. Tudo aquilo tinha sido muitíssimo horrível, trágico, terrível, sinistro, brutal, inesquecível, inexplicável. A emoção, pensou Dalgliesh era bem genuína, conquanto a sua expressão não fosse original. A mulher encontrava-se autenticamente desolada. Suspeitava que devia estar também muito assustada.
Transportou-a aos acontecimentos de segunda-feira, 12 de Janeiro. Ela tinha pouca coisa de novo e com interesse para narrar, e o seu relato condizia com aquilo que estava já registado. Tinha acordado muito tarde, vestira-se à pressa e conseguira por pouco chegar lá abaixo à sala de jantar às oito horas. Aí, juntara-se à enfermeira Brumfett e à enfermeira Rolfe durante o pequeno-almoço e soubera pela boca daquelas que a estagiária Fallon tinha adoecido durante a noite. Dalgliesh perguntou-lhe se recordava qual das enfermeiras lhe tinha dado a notícia.
- Bem, não posso dizer que me recorde exactamente. Penso que foi a Rolfe, mas não tenho bem a certeza. Nessa manhã estava um bocadinho baralhada, sabe, por causa de umas tantas coisas. O facto de me ter deixado dormir não tinha contribuído para melhorar nada, e claro que estava um pouco nervosa com a inspecção do Conselho Geral de Enfermagem. No fim de contas, não sou enfermeira monitora habilitada. Estava simplesmente a substituir a enfermeira Manning. E já é suficientemente mau dar a primeira aula prática a um grupo, quanto mais ter a superintendente e a inspectora do C. G. E., Mr. Courtney-Briggs e a enfermeira Rolfe ali sentados com os olhos postos no menor dos nossos movimentos. Dei-me conta de que, com a falta da Fallon, apenas restariam cerca de sete estagiárias no grupo. Bem, isso para mim era óptimo; pela parte que me tocava, quantas menos fossem, melhor. Só esperava que os estafermozinhos soubessem responder e revelassem alguma inteligência.
Dalgliesh perguntou-lhe quem tinha saído primeiro da sala de jantar.
- Foi a Brumfett. Morta como de costume por voltar para a sua enfermaria, acho eu. A seguir saí eu. Levei os meus apontamentos para a estufa juntamente com uma chávena de café e sentei-me a dar-lhes uma leitura de dez minutos. Estavam lá a Christine Dakers, a Diane Harper e a Julia Pardoe. A Harper e a Pardoe estavam a conversar uma com a outra, e a Dakers estava sentada sozinha a ler uma revista. Não fiquei muito tempo e quando saí ainda lá estavam. Subi ao meu quarto por volta das oito e meia, recolhendo de caminho a minha correspondência, e a seguir voltei a descer e fui direita à sala de aulas práticas, era quase um quarto para as nove. As gémeas Burt estavam já na sala a ultimar os preparativos e a Goodale chegou quase de imediato. O resto do grupo entrou todo ao mesmo tempo por volta das dez para as nove, excepto a Pearce, que só chegou à última hora. Houve o costumado tagarelar das raparigas antes de nos lançarmos ao trabalho, mas não me recordo de nada do que se disse. O resto já o senhor sabe.
Dalgliesh sabia-o, de facto. Porém, achando embora pouco provável obter algo de novo do testemunho da enfermeira Gearing, voltou a remetê-la aos acontecimentos da traumatizante aula prática. No entanto, ela não tinha nada de inédito a revelar. Tudo aquilo fora muitíssimo horroroso, terrível, sinistro, pavoroso, inacreditável. Enquanto vivesse, nunca o esqueceria.
Nessa altura Dalgliesh passou à morte da Fallon. Aí, porém, a enfermeira Gearing tinha uma surpresa para ele. Era a primeira pessoa suspeita a fornecer um álibi, ou aquilo que visivelmente esperava que o fosse, e apresentou-o com compreensível satisfação. Das oito até depois da meia-noite tinha estado na companhia de um amigo no quarto. Forneceu o seu nome a Dalgliesh com tímida relutância. Era Leonard Morris, o farmacêutico-chefe do hospital. Convidara-o para jantar, confeccionara uma refeição simples de espaguete à bolonhesa na cozinha das enfermeiras, no terceiro piso, e servira-a na sua sala de estar às oito horas, pouco após a chegada dele. Tinham estado juntos durante essas quatro horas, descontando os escassos minutos em que ela fora buscar o prato à cozinha, um par de minutos por volta da meia-noite em que ele tinha ido à casa de banho e um período semelhante, a uma hora anterior, em que ela o deixara com o mesmo objectivo. Afora isso nunca tinham deixado de estar à vista um do outro. Aduziu avidamente que Len - queria dizer, Mr. Morris - teria o maior prazer em confirmar a sua história. Len havia de lembrar-se perfeitamente das horas. Como farmacêutico que era, anotava os pormenores com precisão e rigor. O único problema era que nessa manhã não se encontrava no hospital. Tinha telefonado para a farmácia momentos antes das nove dizendo estar doente. Mas havia de estar de volta ao trabalho amanhã, disso ela tinha a certeza. Len detestava faltar.
Dalgliesh perguntou a que horas tinha ele realmente abandonado a Nightingale House.
- bom, não havia de passar muito da meia-noite. Lembro-me de que, quando o relógio bateu a meia-noite, o Len disse que realmente eram horas de ir andando. Saiu cerca de cinco minutos depois, pela escadaria das traseiras, a que servia o apartamento da superintendente. Deixei a porta aberta: o Len recolheu a bicicleta do sítio onde a tinha deixado e eu acompanhei-o a pé até à primeira curva do caminho. Não estava propriamente noite para passeios, mas ainda tínhamos um ou dois assuntos do hospital a discutir (o Len dá aulas de farmacologia ao segundo ano) e eu pensei que me sabia bem apanhar um pouco de ar. O Len não queria que eu voltasse para trás sozinha, de modo que tornou comigo até à porta. Suponho que seria para aí meia-noite e um quarto quando finalmente nos separámos. Entrei pela porta da superintendente e fechei-a à chave depois de entrar. Fui direita ao meu quarto, levei a loiça do jantar para a cozinha para a lavar, fui à casa de banho e à uma menos um quarto estava deitada. Não vi a Fallon durante toda a noite. A seguir, a única coisa de que me lembro é da enfermeira Rolfe a acordar-me precipitadamente com a notícia de que a Dakers tinha encontrado a Fallon morta na cama.
- Portanto a senhora saiu e regressou pelo apartamento de Miss Taylor. Nessa altura a porta dela tinha ficado por fechar?
- Ah, pois claro! Normalmente, a superintendente deixa-a aberta quando sai. Sabe que nós achamos cómodo e mais discreto utilizar a escadaria dela. No fim de contas, somos mulheres adultas. Não somos propriamente proibidas de receber amigos nos nossos aposentos, e não é lá muito agradável fazê-los sair pelo edifício principal, com todas as estagiariazinhas a deitar o olho. Assim, a superintendente é uma jóia. Penso que até deixa a sala de estar dela aberta quando não está na Nightingale House.
Creio que é para a enfermeira Brumfett a utilizar se lhe apetecer.
A Brumfett, se por acaso ainda não o sabem, é a cadelinha da superentendente.
A maioria das superintendentes tem um cãozinho, sabe? A Mary Taylor tem a Brumfett.
A nota de azedo cinismo era tão inesperada que a cabeça de Masterson se ergueu da tarefa de tirar apontamentos com um repelão e fitou a enfermeira Gearing como se ela fosse um candidato pouco promissor que de súbito houvesse revelado potencialidades inesperadas. Mas Dalgliesh deixou passar e perguntou:
- Ontem à noite, a enfermeira-chefe Brumfett estava a utilizar o apartamento da superintendente?
- À meia-noite? A Brumfett, nem pensar! Deita-se sempre cedo, a não ser quando anda na vila na gandaia com a superintendente. Normalmente prepara a última chávena de chá lá para as dez e um quarto. Seja como for, ontem à noite foi chamada. Mr. Courtney-Briggs telefonou a pedir-lhe que fosse à enfermaria particular receber um dos seus doentes acabado de sair do bloco operatório. Julguei que toda a gente sabia. Foi pouco antes da meia-noite.
Dalgliesh perguntou se a enfermeira Gearing a tinha visto.
- Não, mas o meu amigo sim. O Len, quero eu dizer. Deitou a cabeça de fora da porta a ver se o caminho estava livre para ir à casa de banho antes de saírmos e viu a Brumfett embrulhada na capa, com aquela velha saca, desaparecendo pela escada abaixo. Era evidente que ia a sair, e imaginei que tivesse sido chamada à enfermaria. Trata-se de algo que está sempre a acontecer à Brumfett. Repare que, em parte, é culpa dela. Há uma coisa que se chama ser demasiadamente conscienciosa.
Não era, pensou Dalgliesh, defeito a que a enfermeira Gearing devesse ser propensa. Era difícil imaginá-la palmilhando o terreno à meia-noite em plena invernia respondendo ao apelo fortuito de qualquer médico, por mais eminente que fosse. Mas sentia uma certa pena dela. Tinha-lhe fornecido um deprimente relance da neutralizante falta de privacidade e das pequenas mesquinharias e subterfúgios com os quais as pessoas que vivem numa proximidade indesejada tentam preservar a sua intimidade ou imiscuir-se na das outras. A ideia de um homem feito a espreitar sub-repticiamente pela porta antes de sair, de dois amantes adultos esgueirando-se furtivamente por umas escadas das traseiras para não serem detectados era grotesca e humilhante. Recordou as palavras da superintendente. ”Uma pessoa fica a saber coisas; não há verdadeira privacidade.” Até a bebida que a pobre Brumfett costumava tomar antes de se deitar e a hora a que habitualmente se recolhia eram do conhecimento geral. Não era de admirar que a Nightingale House gerasse a sua própria espécie de neurose, que a enfermeira Gearing achasse necessário justificar um passeio com o amante pelos terrenos, o seu óbvio e natural desejo de prolongar as derradeiras boas-noites com o pouco convincente palavrório sobre a necessidade de discutir assuntos do hospital. Achava tudo aquilo profundamente depressivo e não sentiu pena quando chegou a altura de a dispensar.
Dalgliesh gostou bastante da sua meia hora com a governanta, Miss Martha Collins. Era uma mulher magra, de tez acastanhada, frágil e nodosa como um ramo morto, com o ar de alguém a quem a seiva tivesse secado há muito nos ossos. Dava a impressão de ter encolhido gradualmente dentro da roupa sem de tal se ter apercebido. O fato de trabalho que envergava, de grosso algodão ruço, pingava-lhe em compridos vincos dos ombros estreitos até às barrigas das pernas e estava amarrado na cintura com um cinto de estudante às listas vermelhas e azuis apertado com uma fivela de serpente. As meias eram um harmónio à volta dos tornozelos e ou ela gostava de usar sapatos pelo menos dois números acima, ou tinha os pés curiosamente desproporcionados relativamente ao resto do corpo. Aparecera mal a tinham chamado, abatera-se pesadamente na cadeira defronte de Dalgliesh, com os enormes pés firmemente assentes e escarranchados, e fitara-o com antecipatória malevolência, como se se preparasse para entrevistar uma criada particularmente recalcitrante. Ao longo da entrevista, não sorriu uma única vez. Não havia reconhecidamente nada na situação susceptível de provocar divertimento, mas ela parecia incapaz de esboçar sequer o mais fugaz sorriso de reconhecimento formal. Apesar destes preliminares pouco auspiciosos, porém, a entrevista não correra mal. Dalgliesh perguntava a si próprio se o tom acidulado e a aparência perversamente desprovida de atractivos da mulher não fariam parte de uma personalidade calculada. Talvez quarenta anos atrás ela tivesse decidido tornar-se uma personagem do hospital, o adorado tirano da ficção, tratando toda a gente, da superintendente à mais humilde criada, com igual irreverência, e houvesse achado a caracterização tão bem-sucedida e satisfatória que nunca mais conseguisse libertar-se dela. Resmungava incessantemente mas era sem maldade, uma simples questão de forma. Dalgliesh suspeitava, na realidade, de que ela gostava do seu trabalho e não era tão infeliz nem tão insatisfeita como pretendia parecer. Dificilmente se teria mantido naquele lugar durante quarenta anos se ele fosse tão sofrível como o fazia passar por ser.
- Leite! Não me fale cá de leite! O leite nesta casa dá mais complicações do que todo o resto dos víveres juntos, e isto diz alguma coisa. Despachamos quinze quartilhos por dia cá na casa, mesmo com metade do pessoal doente com a gripe. Não me pergunte onde tudo isso vai parar. Deixei de ser responsável por ele e bem o disse à superintendente. Há um par de garrafas que vai logo de manhãzinha para o piso das enfermeiras, para elas poderem preparar o chá da manhã. Mando lá para cima entre duas e três garrafas. Seria de pensar que chegassem para toda a gente. Claro que a da superintendente é à parte. Ela recebe um quartilho e nem mais uma mísera gota. Mas as complicações que o leite provoca! Suponho que a primeira enfermeira ao recebê-lo retira toda a nata. Não é lá muito delicado, e eu bem o disse à superintendente. Muita sorte têm elas em receber uma ou duas garrafas de leite Channel Island; é coisa que não sucede a mais ninguém da casa. É só reclamações. A enfermeira Gearing a dar-lhe que o leite é demasiado aguado para ela, a enfermeira Brumfett que não é todo Channel Island e a enfermeira Rolfe a querer que lho mandem em garrafas de meio quartilho, coisa que sabe tão bem como eu que já não se encontra. Depois há o leite para o chá da manhã das estagiárias e aquele cacau e lá o que é que elas preparam à noite. Está previsto elas registarem as garrafas que tiram do frigorífico. A coisa não é restrita, mas a regra é essa. Pois bem, vá o senhor dar uma vista de olhos no livro de registo! Nove em cada dez vezes, não se dão ao trabalho de escrever nada. E depois há o vasilhame. Está previsto passarem-no por água e devolvê-lo à cozinha. Dá a ideia de que não seria uma maçada por aí além. Em vez disso, deixam as garrafas pela casa toda, nos quartos, nos armários, na sala de uso geral (ainda por cima mal passadas por água) até o sítio ficar a cheirar mal. As minhas moças já têm bastante que fazer mesmo sem andarem atrás das estagiárias do vasilhame, e eu bem o disse à superintendente.
”Que pergunta é essa, se eu estava na cozinha quando as gémeas Burt foram buscar o seu quartilho? Bem sabe que estava. Eu disse-o ao outro polícia. Onde havia eu de estar senão lá, àquela hora? Estou sempre na minha cozinha às sete menos um quarto e deviam passar perto de três minutos dessa hora quando as gémeas Burt lá entraram. Não, não fui eu que lhes entreguei a garrafa. Foram elas próprias que a tiraram do frigorífico. Não faz parte do meu serviço andar sempre à volta das estagiárias para as servir, e eu bem o disse à superintendente. Mas quando saiu da minha cozinha, aquele leite não tinha nada de especial. Só o foram entregar às seis e meia e eu tenho demasiado que fazer antes do pequeno-almoço para andar a meter desinfectante no leite. Além disso, tenho um álibi. Das seis e quarenta e cinco em diante estive com Mrs. Muncie. É a mulher-a-dias que vem da vila para dar uma ajuda quando eu estou com falta de pessoal. Pode falar com ela quando quiser, mas não me parece que lhe consiga arrancar grande coisa. A pobre coitada não tem muito que se veja dentro da cabeça. Pensando bem, duvido que ela reparasse se eu tivesse passado a manhã inteira a envenenar o leite. Mas, para o que der e vier, estava comigo. E eu estive todo o tempo com ela. Não sou dessas que, volta não volta, estão a correr para a casa de banho, não senhor. Faço tudo isso na ocasião própria.
”O desinfectante da casa de banho? Calculei que me havia de perguntar por isso. Sou eu própria que encho os frascos com a lata grande que eles mandam uma vez por semana do armazém principal do hospital. Não é propriamente incumbência minha, mas não gosto de o deixar para as criadas. São tão descuidadas!
Haviam de conseguir era deixar o pavimento das casas de banho todo ensopado do produto. Enchi o frasco do W.C. do andar de baixo na véspera da morte da estagiária Pearce, de modo que devia estar praticamente cheio. Algumas estagiárias lá se dão ao trabalho de deitar um bocadinho na retrete depois de se servirem dos sanitários, mas a maioria não o faz. Qualquer pessoa imaginaria que as estagiárias de enfermagem haviam de ser meticulosas relativamente a pequenas coisas como essa, mas não são melhores que o resto da gente nova. O produto é utilizado principalmente pelas criadas depois de terem feito a limpeza das retretes. Todas as casas de banho são limpas uma vez por dia. Sou muito meticulosa na limpeza dos sanitários. O do andar de baixo estava para ser limpo pela Morag Smith depois de almoço, mas a estagiária Goodale e a estagiária Pardoe repararam que o frasco tinha desaparecido antes disso. Constou-me que o outro polícia o tinha encontrado vazio entre os arbustos nas traseiras da casa. E quem foi que lá o pôs, gostaria eu de saber.
”Não, não pode falar com a Morag Smith. Não lhe disseram? Está a gozar um dia de licença. Saiu ontem a seguir ao chá, felizmente para ela. Não podem atingir a Morag com os borrifos desta última maçada. Não, não sei se ela foi para casa. Não perguntei. As criadas já são responsabilidade que chegue quando estão sob a minha vista na Nightingale House. Não cuido de saber do que fazem quando estão de folga. E é o melhor que faço, a julgar por certas coisas que oiço. O mais provável é regressar lá para a noitinha, e a superintendente deixou instruções no sentido de ela ser transferida para o lar do pessoal residente. Ao que parece, este sítio é de momento demasiado perigoso para nós. Bem, ninguém me vai mudar a mim. Não sei como é que esperam que eu me arranje de manhã se a Morag não põe cá os pés a não ser mesmo antes do pequeno-almoço. Não posso controlar o pessoal se não o tiver sob a minha vista, e bem o disse à superintendente. Não é que a Morag seja grande espingarda. É tão teimosa como todas agora são, mas não é má trabalhadora quando se consegue que comece. E se lhe vierem dizer que a Morag Smith mexeu no alimento, não lhes dê ouvidos. A rapariga pode ser um bocado estúpida, mas não é nenhuma doida furiosa. Não vou permitir que o meu pessoal seja caluniado sem razão.
”Já agora, deixe que lhe diga uma coisa, senhor investigador.
- Ergueu o magro traseiro da cadeira, inclinou-se para diante por sobre a secretária e fitou Dalgliesh com aqueles olhinhos brilhantes.
Ele fez um esforço para sustentar aquele olhar sem pestanejar, e ficaram a fixar-se um ao outro como um par de pugilistas antes de um assalto.
- Sim, Miss Collins?
Ela espetou um dedo esguio e nodoso e enfiou-lho secamente no peito. Dalgliesh estremeceu.
- Ninguém tinha o direito de tirar aquele frasco da casa de banho sem autorização minha nem de o usar para qualquer outro fim que não fosse a limpeza da retrete. Ninguém!
Era evidente onde residia, aos olhos de Miss Collins, toda a imensidade do crime.
À uma menos vinte, Mr. Courtney-Briggs apareceu. Bateu à porta com vivacidade, entrou sem esperar qualquer convite e disse secamente:
- Posso dispensar-lhe um quarto de hora neste momento, Dalgliesh, se lhe der jeito.
O seu tom dava a entender que daria. Dalgliesh assentiu e indicou-lhe a cadeira. O médico fitou o sargento Masterson, impassivelmente sentado do lado oposto com o bloco de apontamentos preparado, hesitou, e a seguir virou a cadeira de modo a ficar de costas para o sargento. Depois sentou-se e enfiou a mão no bolso do colete. A cigarreira de que puxou era de oiro finamente lavrado e tão chata que dificilmente parecia funcional. Ofereceu um cigarro a Dalgliesh mas não a Masterson e não pareceu surpreendido nem especialmente interessado ante a recusa do inspector-chefe. Acendeu o dele, e as mãos que colocou em concha ao redor do isqueiro eram grandes e de dedos quadrados; não as mãos sensíveis dos cirurgiões da ficção, mas mãos fortes de carpinteiro, elegantemente tratadas.
Dalgliesh, manifestamente embrenhado nos seus papéis; observou o homem. Era robusto mas sem chegar a ser gordo. O fato cerimonioso assentava-lhe quase bem demais, cingindo um corpo médio bem nutrido e realçando o efeito de poder latente apenas imperfeitamente controlado. Podia considerar-se atraente. O cabelo comprido, puxado completamente para trás a partir de uma testa alta, era forte e escuro, à parte uma única madeixa branca. Dalgliesh perguntou a si próprio se não seria pintada. Tinha uns olhos demasiado miúdos para o rosto largo, um tudo-nada corado, mas eram bem conformados e bastante afastados. Não denunciavam fosse o que fosse.
Dalgliesh sabia que fora Mr. Courtney-Briggs o principal responsável pelo facto de o comissário-chefe ter chamado a Yard. A julgar pelo relato um tanto ou quanto azedo do inspector Bailey durante a breve conversa tida quando Dalgliesh tomara conta do caso, era fácil compreender porquê. Desde o princípio que o médico se revelara importuno, e os seus motivos, se bem que susceptíveis de explicação racional, davam azo a interessantes especulações. Inicialmente afirmara com vigor que a estagiária Pearce tinha sido obviamente assassinada, sendo impensável que alguém ligado ao hospital pudesse ter qualquer relação com o crime, e que a Polícia local tinha o dever de partir desse pressuposto e descobrir e prender o assassino com um mínimo de delongas. Quando as investigações policiais não forneceram resultados imediatos, ficara irrequieto. Era um homem acostumado a exercer o poder e não restavam dúvidas de que o possuía. Havia pessoas importantes em Londres, que lhe deviam a vida, e algumas delas dispunham de considerável potencial para incomodar. Houvera telefonemas, uns diplomáticos e meio em tom de quem se desculpa, outros francamente críticos, tanto para o comissário-chefe como para a Yard. À medida que o inspector encarregado da investigação se convencia cada vez mais de que a morte da estagiária Pearce fora resultado de uma partida que acidentalmente redundara em trágicas consequências, tanto mais alto Mr. Courtney-Briggs e os seus parceiros agitadores proclamavam que ela tinha sido assassinada e mais fortes pressões exerciam no sentido de o caso ser confiado à Yard. A seguir a estagiária Fallon fora encontrada morta. Seria de esperar que o Departamento de Investigação Criminal da terra tivesse sido galvanizado no sentido de redobrar de actividade, que a luz difusa que tremulara sobre o primeiro crime se tornasse mais crua e se concentrasse nesta segunda morte. Fora nesse momento que Mr. Courtney-Briggs optara por telefonar ao comissário-chefe para anunciar que não valia a pena prosseguirem, que era evidente para ele que a estagiária Fallon se tinha suicidado, que isso só podia dever-se aos remorsos ante o trágico resultado da partida que vitimara a colega, e que agora o interesse do hospital era encerrar o caso com um mínimo de estardalhaço antes do recrutamento de enfermeiras, e na realidade todo o hospital estava em perigo. Não se pode dizer que falte à Polícia experiência destas súbitas reviravoltas de disposição, o que não significa que as acolha de bom grado. Dalgliesh pensou que devia ter sido com grande satisfação que o comissário-chefe decidira que, fossem quais fossem as circunstâncias, seria prudente chamar a Yard para investigar ambas as mortes.
Durante a semana subsequente à morte da estagiária Pearce, Courtney-Briggs tinha mesmo telefonado a Dalgliesh, que fora seu doente havia três anos. Tratara-se de um caso de apendicite isento de quaisquer complicações e, embora a vaidade de Dalgliesh tivesse ficado lisonjeada com a pequenez e elegância da cicatriz resultante, achava que a perícia do cirurgião tinha sido adequadamente recompensada na ocasião. Não estava de modo nenhum disposto a servir de instrumento para os fins particulares de Courtney-Briggs. O telefonema fora embaraçoso e ele ficara ressentido com isso. Verificou com interesse que o cirurgião decidira aparentemente tratar-se de um incidente que era aconselhável ambos esquecerem.
Sem levantar os olhos dos papéis, Dalgliesh inquiriu:
- Depreendo que o senhor é de opinião que Miss Fallon se matou?
- com certeza. É a explicação óbvia. Não está a insinuar que alguém lhe tenha deitado qualquer coisa no uísque, pois não? Porque havia alguém de o fazer?
- Há o problema do recipiente que não aparece, não é verdade? Isto é, caso se tenha tratado de veneno. Só o saberemos quando tivermos o relatório da autópsia.
- Qual problema? Não há problema nenhum. A caneca era opaca, com isolamento térmico. Ela podia ter deitado a coisa lá dentro mais cedo nessa mesma noite. Ninguém teria dado por nada. Ou podia ter levado o pó num pedaço de papel e depois deitá-lo na retrete. O recipiente não é problema. A propósito, desta vez não foi nenhum corrosivo. Até aí, era evidente quando vi o corpo.
- O senhor foi o primeiro médico a comparecer no local?
- Não. Eu não estava no hospital quando a encontraram. Quem a viu foi o doutor Snelling, que é o clínico geral assistente das estagiárias aqui. Percebeu imediatamente que não havia nada a fazer. Eu fui até lá dar uma vista de olhos ao corpo assim que soube. Cheguei ao hospital eram quase nove horas. Nessa altura, claro que a Polícia já tinha chegado. Refiro-me ao pessoal da terra. Não imagino por que razão não os deixaram continuar a investigação. Telefonei ao comissário-chefe para lhe dar conta da minha opinião. A propósito, o Miles Honeyman disse-me que ela morreu por volta da meia-noite. Encontrei-me com ele ia precisamente a sair.
- Bem vejo.
- Fez bem em chamá-lo. Consta-me que é geralmente considerado o melhor.
Falou complacentemente, como se fosse o êxito condescendendo em reconhecer o êxito. Os seus critérios tinham bem pouco de subtil. Dinheiro, prestígio, reconhecimento público, poder. Sim, Courtney-Briggs exigiria sempre o melhor para si, confiante na capacidade de o pagar.
- Ela estava grávida. Sabia? - perguntou Dalgliesh.
- O Honeyman disse-mo. Não, não sabia. São coisas que acontecem, mesmo hoje em dia, que o controlo de natalidade é seguro e fácil de obter. Mas sempre esperei que uma rapariga inteligente como ela tomasse a pílula.
Dalgliesh recordou o episódio daquela manhã na biblioteca, em que Mr. Courtney-Briggs mostrara saber a idade da rapariga com a aproximação ao dia. Fez a pergunta seguinte sem se desculpar.
- Conhecia-a bem?
A insinuação era clara e o cirurgião não respondeu de imediato. Dalgliesh não esperava que ele tivesse uma tirada de fanfarrão ou que prorrompesse em ameaças, e ele não fez uma coisa nem outra. Havia um respeito acrescido no olhar penetrante que lançou ao interrogador.
- Durante uns tempos, conheci. - Fez uma pausa. - Posso dizer que a conheci intimamente.
- Foi sua amante?
Courtney-Briggs olhou para ele, impassível, meditando. A seguir, disse:
- Isso é colocar as coisas de uma maneira bastante formal. Dormimos regularmente um com o outro durante os primeiros seis meses que ela cá passou. Tem alguma objecção?
- Não me parece que me compita a mim colocar objecções, se ela o não fez. Parto do princípio de que ela consentia, não?
- Pode dizê-lo, sim.
- Quando foi que acabou?
- Julgava que lho tinha dito. Durou até ao fim do primeiro ano dela. Há um ano e meio, portanto.
- Zangaram-se?
- Não. Ela resolveu que tinha, digamos, esgotado as possibilidades. Há mulheres que gostam de variar. Eu próprio sou assim.
Não teria começado a andar com ela se pensasse que ela era do género das que armam complicações. E não me interprete mal. Não é meu costume dormir com estagiárias. Sou razoavelmente exigente.
- Não foi difícil manter a ligação em segredo? Num hospital há muito pouca privacidade.
- O senhor tem noções românticas, inspector. Nós não trocávamos beijos e carícias na casa de banho. Quando disse que dormia com ela, queria dizer exactamente isso. Não uso eufemismos para o sexo. Ela ia ao meu apartamento da Wimpole Street quando tinha uma noite livre, e dormíamos lá. Não tenho lá criado residente e a minha casa fica perto de Selborne. O porteiro de Wimpole Street deve ter percebido, mas é capaz de manter o bico calado. Se assim não fosse, já não haveria muitos inquilinos no prédio. Não havia qualquer risco, desde que ela não falasse, e ela não era de falar. Não que eu me ralasse por aí além. Há certas áreas de comportamento privado nas quais eu faço o que entendo. com certeza o mesmo acontece consigo.
- Portanto a criança não era sua?
- Não. Não sou descuidado. Além disso, a ligação tinha terminado. Mas, mesmo que não tivesse, dificilmente eu a teria matado. Esse tipo de solução provoca mais embaraços do que aqueles que evita.
- Que teria feito? - perguntou Dalgliesh.
- Isso dependeria das circunstâncias. Teria de ter a certeza de que a criança era minha. Mas este problema específico está longe de ser invulgar e não é insolúvel, desde que a mulher seja razoável.
- Constou-me que Miss Fallon projectava abortar. Ela abordou-o?
-Não. -Podiafazê-lo?
- Claro que podia tê-lo feito. Mas não fez.
- Tê-la-ia ajudado, se fosse o caso? O médico fitou-o.
- Quer-me parecer que essa pergunta não se enquadra lá muito bem no âmbito das suas atribuições.
Dalgliesh respondeu:
- É a mim que me compete julgar disso. A rapariga estava grávida; aparentemente, projectava abortar; disse a uma amiga que conhecia alguém que a ajudaria. Estou naturalmente interessado em saber quem tinha ela na ideia.
- O senhor conhece a lei. Eu sou cirurgião, e não ginecologista.
Prefiro ater-me à minha especialidade e praticá-la legalmente.
- Mas há outros tipos de ajuda. Encaminhá-la para um médico apropriado, ajudá-la a pagar os honorários.
Era bem pouco provável que uma rapariga com 16 mil libras de herança quisesse ajuda para pagar os honorários de um aborto. Mas o legado de Miss Goodale não tinha sido tornado público e Dalgliesh estava interessado em saber se Courtney-Briggs tinha conhecimento do capital da Fallon. No entanto, o cirurgião não deu qualquer indicação.
- Bem, ela não veio ter comigo. Pode ser que estivesse a pensar em mim, mas não veio. E, se tivesse, eu não a teria ajudado. Faço por assumir as minhas próprias responsabilidades, mas não me encarrego das dos outros. Se ela tinha resolvido virar-se para outro lado a fim de obter satisfação, podia virar-se para outro lado a fim de obter ajuda. Eu não a engravidei. Alguém o fez. Ele que cuidasse dela.
- Teria sido essa a sua resposta?
- Certamente que sim. E com toda a razão.
A voz dele continha uma nota de cruel satisfação. Olhando para ele, Dalgliesh verificou que corara. O homem não conseguia controlar facilmente a sua emoção. E Dalgliesh tinha poucas dúvidas sobre a natureza de tal emoção. Era ódio. Prosseguiu o interrogatório.
- Ontem à noite encontrava-se no hospital?
- Sim. Fui chamado para uma operação de urgência. Um dos meus doentes teve uma recaída. Não foi totalmente inesperada, mas muito grave. Acabei de operar à meia-noite menos um quarto. A hora há-de estar assente nos registos do bloco operatório. Depois telefonei à enfermeira Brumfett, para a Nightingale House, pedindo-lhe que fizesse o favor de voltar à enfermaria dela por coisa de uma hora. O meu doente era um doente particular. A seguir telefonei para casa dizendo que voltava nessa mesma noite em lugar de ficar a dormir aqui nos alojamentos dos médicos, como faço de vez em quando se opero muito tarde. Abandonei o edifício principal pouco passava da meia-noite. Tencionava sair com o carro pelo portão da Winchester Road. Tenho uma chave de lá. No entanto, estava uma noite de tempestade, como provavelmente notou, e descobri que estava um ulmeiro tombado a impedir a passagem. Foi uma sorte não ter ido contra ele. Saí do carro e amarrei o meu lenço de pescoço branco a um dos ramos, para alertar quem quer que seguisse aquele caminho. Não era provável que isso acontecesse, mas a árvore era um perigo evidente e não havia possibilidades de removê-la antes do nascer do dia. Fiz inversão de marcha e saí pela entrada principal, informando de caminho o porteiro sobre a árvore caída.
- Reparou que horas eram nessa altura?
- Não. Pode ser que ele tenha reparado. Mas, por cálculo, devia ser para aí meia-noite e um quarto, talvez mais tarde. Perdi um certo tempo com a árvore.
- Teria de passar pela Nightingale House para alcançar o portão das traseiras. Não entrou lá?
- Não tinha motivo para lá entrar e não entrei, fosse para envenenar a estagiária Fallon ou por qualquer outra razão.
- E não viu ninguém nos terrenos ?
- Depois da meia-noite e no meio de uma tempestade? Não, não vi ninguém.
Dalgliesh alterou o curso do interrogatório.
- Claro que o senhor assistiu à morte da estagiária Pearce. Presumo que não tenha chegado a haver nenhuma hipótese séria de a salvar, não ?
- Eu diria que não. Tomei medidas bastante enérgicas, mas não é fácil quando a pessoa não sabe o que está a tratar.
- Mas sabia que se tratava de veneno ?
- Sim, não demorei muito a perceber. Mas não sabia qual. Não é que isso tivesse feito qualquer diferença. O senhor viu o relatório da autópsia. Sabe o que a droga lhe fez.
Dalgliesh inquiriu:
- A partir das oito horas da manhã em que ela morreu, esteve na Nightingale House?
- Sabe perfeitamente que estive, se, como suponho, se deu ao trabalho de ler o meu depoimento inicial. Cheguei à Nightingale House pouco depois das oito. O meu contrato aqui é de seis meios dias teóricos de trabalho por semana; segundas, quintas e sextasfeiras, passo o dia inteiro no hospital, mas não é invulgar ser chamado para operar de urgência, especialmente tratando-se de um doente particular, e de vez em quando faço uma sessão ao sábado de manhã no bloco operatório, se as listas são grandes. Tinha sido chamado pouco depois das onze da noite de domingo para uma apendicectomia urgente (um dos meus doentes particulares) e convinha-me ficar a pernoitar nos alojamentos do pessoal médico.
- Que ficam onde?
- Naquele novo edifício de traçado deplorável junto ao serviço dos doentes externos. Servem o pequeno-almoço a uma hora perfeitamente imprópria, sete e meia.
- Certamente chegou aqui bastante cedo. A aula prática estava prevista para começar só às nove.
- Não estive cá simplesmente para a aula prática, senhor inspector. Realmente o senhor percebe muito pouco de hospitais, não é verdade? O chefe de clínica não assiste normalmente a aulas de enfermagem, a não ser que seja ele a dá-las às estudantes. Só assisti à do dia 12 de Janeiro porque estava previsto encontrar-se lá a inspectora do C. G. E. e eu sou vice-presidente da Comissão Pedagógica de Enfermagem. O facto de estar cá para receber Miss Beale foi uma questão de delicadeza para com ela. Vim cedo porque queria trabalhar nuns apontamentos clínicos que tinha deixado no gabinete da enfermeira Rolfe depois de uma leitura prévia. Queria também ter uma conversa com a superintendente antes de a inspecção começar e certificar-me de que estava lá a tempo de receber Miss Beale. Subi ao apartamento da superintendente às oito e trinta e cinco, encontrando-a a terminar o pequeno-almoço. E, se está a pensar que eu podia ter adicionado o corrosivo ao leite da garrafa em qualquer ocasião entre as oito e as oito e meia, tem toda a razão. Acontece que não o fiz.
Consultou o relógio de pulso.
- E agora, se não precisa de me perguntar mais nada, tenho de ir almoçar. Tenho outra sessão de consultas de doentes externos à tarde e o tempo urge. Se for mesmo preciso, posso provavelmente dispensar-lhe mais uns minutos antes de me ir embora, mas espero que não seja. Já assinei um depoimento sobre a morte da Pearce e não tenho nada a acrescentar ou a alterar. Não vi a Fallon ontem. Nem sequer sabia que ela já tinha saído da enfermaria. A criança de que ela estava grávida não era minha e, mesmo que o fosse, não teria sido tão tolo que a matasse. A propósito, aquilo que lhe contei sobre a nossa antiga relação foi evidentemente a título confidencial.
Lançou um olhar significativo ao sargento Masterson.
- Não é que eu me importe muito que se saiba. Mas, no fim de contas, a rapariga está morta. Já agora, podemos-muito bem proteger a sua reputação.
Dalgliesh teve dificuldade em acreditar que Mr. CourtneyBriggs se interessasse pela reputação de alguém que não ele próprio. Mas, sisudamente, deu-lhe as necessárias garantias. Viu o cirurgião sair sem pena. Um filho da mãe egoísta que apetecia provocar, por infantil que isso fosse. Mas um assassino? Tinha a arrogância, o descaramento e o egoísmo de um assassino. Mais objectivamente, tinha tido a oportunidade. E o motivo? Não tinha sido um pouco calculado da sua parte ter confessado tão prontamente a sua ligação com Josephine Fallon? Havia que reconhecer que não podia esperar manter o segredo, por muito tempo: os hospitais estavam longe de ser as mais discretas das instituições. Estaria ele a fazer da necessidade uma virtude, certificando-se de que Dalgliesh tomava conhecimento da sua versão da ligação antes que o inevitável diz-que-diz-que lhe chegasse aos ouvidos? Ou teria sido simplesmente a franqueza da presunção, a vaidade sexual de um homem que não se daria ao trabalho de ocultar qualquer feito que proclamasse os seus atractivos e a sua virilidade?
Juntando os papéis, Dalgliesh deu-se conta de que tinha fome. Tinha começado o dia muito cedo e fora uma longa manhã. Era tempo de afastar Stephen Courtney-Briggs do pensamento e começarem ambos, tanto ele como Masterson, a pensar no almoço.
Conversa à mesa
As enfermeiras e estagiárias residentes em Nightingale House só tomavam o pequeno-almoço e o chá da tarde na sala de jantar da escola. Para as refeições principais do meio-dia e da noite, juntavam-se ao resto do pessoal do hospital na respectiva cafetaria, onde todos menos os chefes de clínica comiam numa proximidade institucionalizada e ruidosa. A comida era invariavelmente alimentícia, bem confeccionada, e tão variada quanto o compatível com a necessidade de satisfazer os gostos diferentes de várias centenas de pessoas, evitando ofender as suas susceptibilidades religiosas ou dietéticas e respeitando o orçamento do despenseiro. Os princípios que regulavam o planeamento das ementas eram invariáveis. Nunca havia fígado ou rim nos dias em que o cirurgião urologista operava e as enfermeiras nunca eram confrontadas com o mesmo prato que tinham acabado de servir aos doentes.
O sistema de cafetaria tinha sido introduzido no Hospital John Carpendar contra a vigorosa oposição de todos os escalões do pessoal. Oito anos atrás havia refeitórios separados para as enfermeiras e estagiárias, um para o pessoal administrativo e não especialista e uma cantina para os serventes e operários. Este sistema agradava a toda a gente, na medida em que estabelecia uma adequada distinção entre categorias e garantia que as pessoas gozavam de uma razoável tranquilidade e da companhia daqueles com quem preferiam passar o intervalo para almoço. Agora porém, apenas o pessoal clínico superior gozava da paz e privacidade de uma sala de jantar à parte. Este privilégio, ciosamente defendido, encontrava-se sob constante ataque de inspectores do Ministério, consultores de abastecimento do governo e peritos em estudos de trabalho, que, armados de estatísticas de custos, não tinham dificuldade em provar que o sistema era antieconómico.
Mas, até ver, os médicos tinham ganho. O seu mais forte argumento era a necessidade de falar sobre os doentes em particular. Esta insinuação de que nunca paravam de trabalhar, nem sequer durante as refeições, era acolhida com certo cepticismo, mas era difícil de refutar. A necessidade de manter o sigilo dos assuntos dos doentes tocava aquela área da relação médico-doente que os médicos se apressavam sempre a explorar. Ante essa mística, até os inspectores do Tesouro se revelavam impotentes para levar a sua avante. Além disso, tinham tido o apoio da superintendente. Miss Taylor fizera saber que considerava eminentemente razoável que o pessoal clínico superior continuasse a dispor da sua própria sala de jantar. E a influência de Miss Taylor junto do presidente da Comissão de Gestão do hospital era tão óbvia e estabelecera-se havia já tanto tempo que quase deixara de dar azo a comentários. Sir Marcus Cohen era um rico e atraente viúvo e hoje em dia a única surpresa residia em ele e a superintendente não terem casado. Isso devia-se, na opinião geral, ou ao facto de Sir Marcus, um reconhecido dirigente da comunidade judaica local, não querer casar-se com uma pessoa que não partilhava da mesma fé, ou à circunstância de Miss Taylor, casada com a sua vocação, ter optado por nunca contrair matrimónio com quem quer que fosse.
Não obstante, a dimensão da influência de Miss Taylor sobre o presidente e, consequentemente, sobre a Comissão de Gestão do hospital situava-se para além de qualquer especulação. Sabia-se que ela era particularmente irritante para Mr. CourtneyBriggs, uma vez que diminuía consideravelmente a sua. No tocante à sala de jantar dos clínicos, porém, tinha sido exercida em seu benefício e revelara-se decisiva.
Contudo, se o resto do pessoal tinha sido obrigado à proximidade, não fora forçado à intimidade. A hierarquia era ainda visível. A enorme sala de jantar tinha sido dividida em áreas de comer mais pequenas, separadas umas das outras por painéis de entrançado e recipientes de plantas, e em cada uma dessas alcovas era recriada a atmosfera de uma sala de jantar privativa.
A enfermeira Rolfe serviu-se de solha e batatas às rodelas, levou o tabuleiro para a mesa que, durante os últimos oito anos, compartilhava com a enfermeira Brumfett e a enfermeira Gearing, e relanceou o olhar pelos habitantes daquele estranho mundo. Na alcova mais próxima da porta encontravam-se os técnicos de laboratório com os seus fatos-macaco manchados, ruidosamente animados. Ao lado deles estava o velho Fleming, o farmacêutico dos doentes externos, fazendo bolinhas de miolo de pão como quem fizesse comprimidos com os dedos manchados de nicotina. Na mesa seguinte estavam quatro dos estenógrafos médicos, com os seus fatos-macaco azuis de trabalho. Miss Wright, a secretária-chefe, que estava há vinte anos no John Carpendar, comia com furtiva rapidez como sempre, ansiosa por regressar à máquina de escrever. Atrás do painel adjacente estava uma ninhada, do pessoal técnico não médico: a técnica radiologista principal, Miss Bunyon, a chefe das assistentes sociais clínicas, Mrs. Nethern, e duas das fisioterapeutas, mantendo cuidadosamente a sua posição por meio de um ar de eficiente calma e sem pressas, um desinteresse aparentemente total pela comida que iam ingerindo e a escolha de uma mesa tão afastada quanto possível da do pessoal administrativo de menor categoria.
E em que pensariam todos eles? Provavelmente na Fallon. Era impossível que houvesse alguém no hospital, dos assistentes até às serventes das enfermarias, que não soubesse já que uma segunda aluna da Nightingale morrera em circunstâncias misteriosas e que a Scotland Yard tinha sido chamada. Naquela manhã, a morte da Fallon era provavelmente o tema do falatório na maior parte das mesas. Isso, porém, não impedia as pessoas de comer o seu almoço ou de continuar a realizar o seu trabalho. Havia demasiado para fazer; havia demasiadas outras preocupações prementes; havia até demasiados outros motivos de falatório. Não era apenas o facto de a vida ter de continuar; num hospital, esse nariz-de-cera assumia particular relevância. A vida continuava efectivamente, impelida pela imperiosa energia do nascimento e da morte. Entravam novos doentes com admissão previamente marcada; as ambulâncias vomitavam diariamente as suas emergências; afixavam-se listas de operações; os mortos eram amortalhados e os curados recebiam alta. A morte, mesmo a morte súbita e inesperada, era mais corriqueira para aquelas jovens estagiárias de rosto fresco do que para o mais experiente dos investigadores principais. E havia um limite para a sua capacidade de impressionar. Ou uma pessoa se reconciliava com a morte no primeiro ano, ou desistia de ser enfermeira. Mas matar? Isso era diferente. Mesmo naquele mundo violento, o homicídio mantinha ainda a sua macabra e primitiva capacidade de impressionar. Mas quantas pessoas na Nightingale House acreditavam realmente que a Pearce e a Fallon tinham sido mortas? Seria preciso mais do que a presença do menino prodígio da Scotland Yard e do seu séquito para conferir credibilidade a uma ideia tão fora do vulgar. Havia muitíssimas outras explicações possíveis, qualquer delas mais simples e mais crível do que o homicídio. Dalgliesh podia acreditar no que lhe aprouvesse; prová-lo era uma coisa completamente diferente.
A enfermeira Rolfe baixou a cabeça e lançou-se sem entusiasmo à tarefa de dissecar a solha. Não tinha grande fome. O forte cheiro a comida impregnava pesadamente o ar, cortando o apetite. O barulho da cafetaria vibrava-lhe nos ouvidos. Era incessante e inelutável, um confuso contínuo de dissonância no qual os sons individuais mal se discerniam.
Ao seu lado, com a capa cuidadosamente dobrada nas costas da cadeira e a deformada saca de tapeçaria que a acompanhava para todo o lado caída aos pés, a enfermeira Brumfett comia bacalhau cozido e molho de salsa com beligerante vigor, como se levasse a mal a necessidade de comer e estivesse a desabafar a sua irritação na comida. A enfermeira-chefe Brumfett optava invariavelmente por peixe cozido e a enfermeira-chefe Rolfe sentiu subitamente que não era capaz de enfrentar outra hora de almoço a ver a Brumfett comer bacalhau.
Recordou a si própria que não havia nada que a tal a obrigasse. Nada a impedia de se sentar noutro sítio qualquer, a não ser a petrificação da vontade que conferia ao simples acto de levar o tabuleiro dois passos mais adiante para outra mesa um carácter impossivelmente cataclísmico e irrevogável. À sua esquerda, a enfermeira Gearing remexia na carne estufada e partia o molho de couves em quadrados certinhos. Quando começava realmente a comer, atirava-se avidamente à comida como uma colegial voraz. No entanto havia sempre aqueles preliminares miudinhos e salivatórios. A enfermeira-chefe Rolfe perguntou a si própria quantas vezes resistira à ânsia de dizer: ”Por amor de Deus, Gearing, deixa-te lá de remexer nisso e come!” Um dia, sem dúvida, dir-lho-ia. E mais uma enfermeira de meia-idade e antipática seria contemplada com o veredicto de ”está a tornar-se difícil; deve ser da idade”.
Tinha encarado a hipótese de viver fora do hospital. Era admissível e ela dispunha do dinheiro necessário. A compra de um apartamento ou de uma pequena vivenda seria o melhor investimento para a reforma. Mas Julia Pardoe tinha posto a ideia de lado com meia dúzia de comentários meio desinteressados e destrutivos que haviam caído como frias pedras no lago profundo das suas esperanças e projectos. Parecia ainda à enfermeira Rolfe ouvir aquela voz aguda e infantil:
- Viver fora! Para o que te havia de dar! Ver-nos-íamos muito menos.
- Isso é que não, Julia. E ver-nos-íamos com muito mais privacidade e sem todos estes riscos e embustes. Seria uma casinha confortável e simpática. Havias de gostar.
- Não seria tão fácil como dar uma saltada ao andar de cima para ir ter contigo quando me apetece.
Quando lhe apetecia? Quando lhe apetecia o quê? A enfermeira Rolfe tinha repelido desesperadamente a pergunta que nunca se atrevia a permitir-se fazer.
Conhecia a natureza do seu dilema. No fim de contas, não era específico dela. Em toda e qualquer relação havia uma pessoa que amava e outra que se deixava amar. Isto não era mais do que afirmar a brutal lei económica do desejo: de cada um conforme as suas capacidades, a cada um consoante as suas necessidades. Mas seria egoísta ou presunçoso esperar que quem recebia reconhecesse o valor da dádiva; que não estivesse a desperdiçar o amor numa vigaristazinha promíscua e pérfida que obtinha o seu prazer onde lhe apetecesse procurá-lo? Dissera:
- Poderias provavelmente ir lá duas ou três vezes por mês, talvez até com mais frequência. Eu não me mudaria para longe.
- Ah, não sei como conseguiria tal coisa. Não percebo para que queres tu o trabalho e as maçadas de uma casa. Estás aqui muito bem.
”Não estou nada bem aqui”, pensou a enfermeira Rolfe. ”Este lugar está a tornar-me azeda. Não são apenas os doentes que passam muito tempo cá a transformarem-se em internados. Está a acontecer-me a mim. Sinto antipatia e desprezo pela maioria das pessoas com as quais tenho de trabalhar. Até a profissão está a perder o seu ascendente. A cada nova fornada que entra, as alunas são mais estúpidas e menos educadas. Já nem sequer tenho a certeza do valor daquilo que presumivelmente faço.”
Ouviu-se um estrépito perto do balcão. Uma das serventes tinha deixado cair um tabuleiro de loiça de barro usada. Olhando instintivamente para o outro lado, a enfermeira Rolfe viu que o investigador acabara de entrar, e recolhera o seu tabuleiro no fim da bicha. Observou a figura, alta, ignorada pela tagarela fila de enfermeiras, começando a avançar lentamente entre um servente de casaco branco e uma parteira estagiária, servindo-se de pãozinho e manteiga e aguardando que a rapariga lhe desse o prato que escolhera. Surpreendeu-se ao vê-lo ali. Nunca lhe ocorrera que ele comesse no refeitório do hospital nem que andasse sozinho. Seguiu-o com o olhar enquanto ele chegava ao fim do balcão, entregava o talão da refeição e se voltava em busca de um lugar vago. Parecia inteiramente à vontade e quase alheado daquele mundo estranho em seu redor. Pensou que se tratava provavelmente de um homem ao qual não fosse possível imaginar-se em desvantagem fosse qual fosse a companhia, uma vez que se firmava no seu mundo particular; que estava possuído daquele âmago de amor-próprio íntimo que constitui a base da felicidade. Perguntou a si própria que espécie de mundo seria o dele, após o que baixou a cabeça para o prato ante aquele invulgar interesse que ele nela despertava. Provavelmente a maioria das mulheres considerá-lo-ia bem-parecido, com aquele rosto magro e ossudo, ao mesmo tempo arrogante e sensível. Constituía provavelmente um dos seus trunfos profissionais e, ou não fosse homem, ele havia de tirar o máximo partido do facto. Fora decerto essa uma das razões pelas quais lhe tinham entregue este caso. Se o tapado do Bill Bailey não é capaz de chegar a nada, o menino prodígio da Yard que tome conta do assunto. com um sem-número de mulheres e três solteironas de meia-idade como principais suspeitos, por certo ele imaginava ter as suas hipóteses. Pois bem, que fosse muito feliz!
Mas não foi ela a única pessoa da mesa a dar-se conta da chegada dele. Sentiu, mais do que viu, a enfermeira Gearing inteiriçar-se e, decorrido um momento, ouviu-a dizer:
- Olha, olha! O chui giro! O melhor é vir comer connosco, se não ainda se vê metido no meio de um montão de estagiárias. Alguém havia de ter explicado ao pobrezinho como funciona o sistema.
E agora, pensou a enfermeira Rolfe, vai deitar-lhe um daqueles olhares esquinados tipo anda cá e vamos ter de o suportar durante o resto da refeição. O olhar foi endereçado e o convite não foi recusado. Dalgliesh, transportando o tabuleiro com ar despreocupado e aparentemente com inteiro à-vontade, abriu caminho pelo refeitório fora e dirigiu-se à mesa delas. A enfermeira Gearing disse-lhe:
- Que fez o senhor àquele seu atraente sargento ? Pensava que os polícias andavam sempre aos pares, como as freiras.
- O meu atraente sargento está a analisar relatórios e a almoçar sandes e cerveja no gabinete enquanto eu colho os frutos da superioridade hierárquica convosco. Esta cadeira está ocupada?
A enfermeira Gearing puxou a dela para mais perto da enfermeira Brumfett e ergueu o rosto sorridente para ele:
- Passou a estar agora.
Dalgliesh sentou-se, perfeitamente cônscio de que a enfermeira Gearing desejava a sua presença, a enfermeira Rolfe não e a enfermeira Brumfett, que tinha acolhido a sua chegada com um leve aceno, tanto fazia que ele se lhes juntasse como não. A enfermeira Rolfe fitou-o sem sorrir e disse à enfermeira Gearing:
- Não penses que Mr. Dalgliesh vem compartilhar a nossa mesa por causa dos teus beaux yeux1. O senhor inspector tenciona ingerir informações juntamente com a carne estufada.
A enfermeira Gearing soltou uma risadinha:
- Não precisas de me avisar, minha querida! Se um homem realmente atraente metesse na cabeça arrancar-me qualquer coisa, eu seria incapaz de a guardar para mim. Seria inútil para mim cometer um assassínio. Não tenho miolos para isso. Não é que eu pense que alguém tenha... Refiro-me a cometer um assassínio. Seja como for, deixemos esse assunto macabro durante o almoço. Eu já fui espremida, não é verdade, senhor inspector?
Dalgliesh dispôs os talheres em redor do prato de carne estufada e, empinando a cadeira para trás a fim de poupar o trabalho de se levantar, juntou o tabuleiro usado à pilha de outros no suporte próximo.
- Dá-me a ideia que as pessoas daqui estão a encarar a morte da estagiária Fallon com bastante tranquilidade - disse Dalgliesh.
A enfermeira Rolfe encolheu os ombros:
- Esperava que andassem com braçadeiras de luto, a falar em sussurros e recusando-se a almoçar? O trabalho continua. Seja como for, não eram muitas as que a conheciam pessoalmente, e ainda eram menos as que conheciam a Pearce.
- Ou que gostavam dela, ao que parece - observou Dalgliesh.
- Sim, de uma maneira geral não me parece que gostassem. Era demasiado farisaica, demasiado religiosa.
- Se é que se pode chamar àquilo ser religioso - comentou a enfermeira Gearing.
- Não é assim que eu entendo a religião. Nil nisi2 etc. e tal, mas a rapariga não passava de uma pretensiosa. Dava sempre a ideia de se preocupar bem mais com os defeitos dos outros do que com os dela. Era por isso que as outras pequenas não gostavam
dela. Respeitam as verdadeiras convicções religiosas. Suponho que a maioria das pessoas é assim. Mas não gostavam de ser vigiadas.
- Ela vigiava-as? - inquiriu Dalgliesh.
A enfermeira Gearing pareceu meio arrependida de ter dito aquilo.
- Talvez seja uma maneira um pouco forte demais de o exprimir. No entanto, se alguma coisa corresse mal no grupo, era mais que certo a estagiária Pearce saber tudo a esse respeito. E habitualmente conseguia arranjar maneira de o levar ao conhecimento de quem de direito. Sempre com as melhores razões, sem dúvida.
A enfermeira Rolfe observou secamente:
- Tinha o desgraçado costume de se meter na vida das pessoas para seu próprio bem. Não é coisa que granjeie popularidade.
A enfermeira Gearing afastou o prato para o lado, puxou para si uma taça de ameixas e leite-creme e começou a extrair os caroços aos frutos com tanto cuidado como se se tratasse de uma operação cirúrgica
- No entanto, não era má enfermeira - disse. - Podia confiar-se na Pearce. E os doentes pareciam gostar dela. Suponho que achavam reconfortante aquele comportamento de ”mais piedosa do que vós”.
A enfermeira Brumfett levantou os olhos do prato e falou pela primeira vez.
- Não estás em posição de dar opinião sobre ela como enfermeira. Nem a Rolfe. Vocês só contactam com as raparigas na escola de enfermagem. Eu é que as vejo nas enfermarias.
- Eu também as vejo nas enfermarias. Não te esqueças de que sou a orientadora clínica. A minha missão é ensiná-las nas enfermarias.
A enfermeira Brumfett mostrava-se impenitente:
- Todo o ensino de estagiárias que haja na minha enfermaria é ministrado por mim como bem sabes. As outras enfermeiras-chefes que recebam a orientadora clínica, se quiserem, mas na enfermaria particular quem ensina sou eu. E prefiro que assim seja, quando vejo algumas das ideias mirabolantes que aparentemente vocês lhes metem na cabeça. E, a propósito soube por acaso (aliás, foi a Pearce que mo disse) que foste à minha enfermaria quando eu estava de folga, no dia 7 de Janeiro, e deste uma aula. De futuro, agradeço que fales comigo antes de utilizar os meus doentes como material clínico.
A enfermeira Gearing corou. Tentou rir-se, mas o seu divertimento soou artificialmente. Deitou um olhar à enfermeira Rolfe como que a solicitar-lhe auxílio, mas esta manteve os olhos cravados no prato. Depois, belicosamente e um tanto ou quanto como uma criança determinada a ter a última palavra, disse, com aparente despropósito:
- Aconteceu qualquer coisa que perturbou a Pearce quando estava na tua enfermaria.
Os olhinhos penetrantes da enfermeira Brumfett dardejaram na direcção dela.
- Na minha enfermaria? Não houve nada que a perturbasse na minha enfermaria!
A firme asserção queria iniludivelmente significar que nenhuma enfermeira digna desse nome poderia irritar-se com qualquer coisa que acontecesse na enfermaria particular; que, quando era a enfermeira Brumfett a pessoa encarregada, não eram pura e simplesmente permitidas coisas perturbantes.
A enfermeira Gearing encolheu os ombros.
- Pois bem, houve qualquer coisa que a perturbou. Creio que pode ter sido qualquer coisa sem relação nenhuma com o hospital, mas uma pessoa nunca imaginou que a pobre Pearce tivesse vida propriamente dita fora destas paredes. Foi na quarta-feira da semana anterior à entrada deste grupo na escola. Fui à capela pouco depois das cinco horas para arranjar as flores (é por isso que me lembro do dia da semana que era) e ela estava lá sentada, sozinha. Nem ajoelhada, nem a rezar, apenas sentada. Pois bem, fiz o que tinha a fazer e depois saí sem falar com ela. No fim de contas, a capela está aberta para proporcionar repouso e meditação e, se as alunas quiserem meditar, não tenho nada a opor. No entanto, quando lá voltei quase três horas mais tarde porque tinha deixado a tesoura na sacristia, ela ainda lá estava, sentada perfeitamente imóvel e no mesmo assento. Pois bem, está muito certo que se medite, mas quatro horas é um tanto excessivo. Não me parece que a rapariga pudesse ter jantado. Além disso estava com um ar muito pálido, de modo que me dirigi a ela e perguntei-lhe se se sentia bem, se podia fazer alguma coisa por ela. Respondeu: ”Não, obrigada, enfermeira. Havia uma coisa a incomodar-me que tive de ponderar com muito cuidado. Realmente vim aqui em busca de auxílio, mas não seu.”
Pela primeira vez durante o almoço, a enfermeira Rolfe pareceu divertida.
- A pestezinha cáustica! Como quem diz, penso eu, que tinha ido consultar um poder mais elevado do que a orientadora clínica.
- Como quem diz meta-se na sua vida. E eu assim fiz. Como achasse que a presença da colega num lugar de culto merecia explicação, a enfermeira Brumfett disse:
- A enfermeira Gearing tem muito jeito para arranjar flores. Foi por isso que a superintendente lhe pediu para cuidar da capela. Trata das flores todas as quartas e sábados. E faz uns arranjos encantadores para o jantar anual das enfermeiras.
A enfermeira Gearing fitou-a por momentos e depois riu-se.
- Ah, a pequena Mavis não é apenas um palminho de cara. Mas obrigada pelo elogio.
Fez-se um silêncio. Dalgliesh concentrou-se na carne estufada. Não se sentia perturbado com a falta de conversa e não fazia tenção de as auxiliar apresentando um tema novo. A enfermeira Gearing, porém, parecia sentir que o silêncio na presença de um estranho era condenável e disse animadamente:
- Verifiquei pelas actas que a Comissão de Gestão do hospital deu a sua concordância à introdução das propostas da Comissão Salmon. Mais vale tarde que nunca. Suponho que isso significa que a superintendente vai ficar a chefiar os serviços de enfermagem de todos os hospitais do grupo. Oficial-chefe de enfermagem! Para ela vai ser importante, mas pergunto a mim própria como vai o C. B. encarar tal coisa. Se as coisas corressem como ele queria, a superintendente ficaria com menos autoridade, e não com mais. Já assim ela é um espinho grande demais que ele tem cravado na carne.
- Já era tempo de se fazer qualquer coisa para despertar o hospital psiquiátrico e as unidades geriátricas - disse a enfermeira Brumfett. - Mas não sei por que querem eles alterar o título. Se a superintendente chegou para a Florence Nightingale, chega também para a Mary Taylor. Não me parece que ela tenha vontade especial de ser tratada por oficial-chefe de enfermagem. Parece um posto militar. Um disparate.
A enfermeira Rolfe encolheu os ombros magros.
- Não esperem que eu fique entusiasmada com o relatório Salmon. Começo a perguntar a mim própria o que está a acontecer à enfermagem. Cada relatório e cada recomendação que há parecem afastar-nos cada vez mais da cabeceira dos doentes. Temos dietistas para cuidar da alimentação, fisioterapeutas para exercitar os doentes, assistentes sociais médicas para escutarem os seus problemas, serventes de enfermaria para fazerem as camas, técnicos de laboratório para tirar sangue, recepcionistas de enfermaria para arranjarem as flores e entrevistar os familiares, técnicos de bloco operatório para passarem os instrumentos ao cirurgião. Se não nos precatamos, a enfermagem acaba por se transformar numa arte residual, no trabalho que fica depois de todos os técnicos terem metido a sua colherada. E agora aparece-nos o relatório Salmon, com toda aquela conversa de primeiro, segundo e terceiro nível de gestão. Gestão para quê? Há demasiados palavrões técnicos. Uma pessoa interroga-se sobre qual será a função da enfermeira hoje em dia. Que é que procuramos exactamente ensinar a estas raparigas ?
- A obedecer implicitamente às ordens e a serem leais para com os superiores - respondeu a enfermeira Brumfett. - Obediência e lealdade. Desde que se ensine isso às alunas, obter-se-á boas enfermeiras.
Partiu a batata em duas com tamanho rancor que a faca arranhou o prato. A enfermeira Gearing riu-se.
- Estás atrasada vinte anos, Brumfett. Isso estava muito bem para a nossa geração, mas estas miúdas perguntam se as ordens serão razoáveis antes de começarem a obedecer e o que fizeram os seus superiores para lhes merecerem respeito. E, de uma forma geral, ainda bem que assim é. Não me dirás como se pode esperar atrair raparigas inteligentes para a enfermagem, tratando-as como imbecis? Temos a obrigação de as encorajar a questionar os procedimentos estabelecidos, e até mesmo a responder à letra, uma vez por outra.
A enfermeira Brumfett fez o ar de quem, pela parte que lhe tocava, abdicaria de bom grado da inteligência, se as suas manifestações eram tão desagradáveis.
- A inteligência não é tudo. É esse o problema dos tempos que correm. Ás pessoas pensam que sim.
A enfermeira Rolfe interveio:
- Dá-me uma rapariga inteligente, que eu faço dela uma boa enfermeira, pense ela que tem vocação ou não para isso. Podes ficar com as estúpidas. Pode ser que satisfaçam o teu ego, mas nunca darão boas profissionais.
Olhava para a enfermeira Brumfett ao mesmo tempo que falava e havia na sua voz um inconfundível fundo de desprezo. Dalgliesh baixou os olhos para o prato e fingiu mais interesse do que sentia na cuidadosa dissociação entre a carne, a gordura e a cartilagem. A enfermeira Brumfett reagiu previsivelmente:
- Profissionais! Estamos a falar de enfermeiras,; Uma boa enfermeira pensa sempre em si como enfermeira antes e depois de tudo. Claro que é uma profissional! Julguei que já todas tivéssemos aceite esse facto, nos tempos que correm. Mas hoje em dia pensa-se e fala-se demasiadamente em situação. O importante é executar o trabalho.
- Mas que trabalho, ao certo? Não é precisamente sobre isso que nos andamos a interrogar?
- Talvez tu andes, mas eu tenho a perfeita noção do que faço. O que, de momento, é chegar para uma enfermaria com imenso pessoal doente.
Afastou o prato para o lado, pôs a capa pelos ombros com enérgica perícia, endereçou-lhes um aceno de despedida que tinha tanto de aviso como de adeus e saiu empertigada do refeitório com aquele seu vivo bamboleio de lavrador e a saca de tapeçaria a oscilar-lhe ao lado. A enfermeira Gearing riu-se e ficou a vê-la afastar-se.
- Coitada da Brum! Pelo que diz, tem sempre a enfermaria cheia de pessoal doente.
A enfermeira Rolfe observou secamente:
- Invariavelmente, tem.
Terminaram a refeição quase em silêncio. Depois, a enfermeira Gearing levantou-se e saiu, murmurando qualquer coisa sobre uma aula clínica na enfermaria de O. R. L. Dalgliesh viu-se a regressar à Nightingale House na companhia da enfermeira Rolfe. Abandonaram o refeitório juntos e ele recolheu o casaco do cabide. A seguir, percorreram um longo corredor e atravessaram a secção de doentes externos. Esta tinha aberto havia pouco tempo e o mobiliário e a decoração possuíam um ar alegre e novo. O amplo salão de espera, com as suas mesas de tampo de fórmica e poltronas, os seus recipientes de plantas de interior e os quadros que não diziam nada a ninguém, era bastante animado, mas Dalgliesh não sentia vontade de se demorar por lá. Tinha a antipatia e a repulsa de um homem saudável pelos hospitais, assente por um lado em medo e por outro em repugnância, e achava aquela atmosfera de decidida animação e normalidade espúria pouco convincente e atemorizadora. O cheiro a desinfectante, que para Miss Beale era o elixir da vida, impregnava-o das mais sinistras sugestões de mortalidade. Não lhe parecia que temesse a morte.
Durante a sua carreira tinha estado perto dela uma ou duas vezes e não o assustara excessivamente. No entanto receava atrozmente a velhice, as doenças letais e a invalidez. Apavorava-o a perda da independência, as humilhações da senilidade, a renúncia à privacidade, a abominação da dor, os fulgores de compaixão paciente no rosto dos amigos que sabiam que a indulgência não lhes seria solicitada por muito tempo. Um dia podia vir a ter de enfrentar tudo isso, a menos que a morte o levasse rápida e tranquilamente. Pois bem, enfrentá-lo-ia. Até lá, contudo, preferia que lho não lembrassem.
O serviço de doentes externos ficava junto da entrada do banco e, ao passarem ambos, ia a entrar um doente numa maca. Tratava-se de um velho emaciado: os seus lábios molhados vomitavam debilmente por sobre a borda de uma cuvette e os olhos enormes rolavam com ar de incompreensão na cabeça escaveirada. Dalgliesh deu-se conta de que a enfermeira Rolfe o observava. Virou a cabeça a tempo de surpreender o seu olhar de reflexão e, pensou, de desprezo.
- Não lhe agrada este sítio, pois não? - perguntou ela.
- Realmente, não me sinto lá muito feliz aqui, não.
- Neste preciso momento, eu também não: mas desconfio que por razões muito diferentes.
Caminharam em silêncio durante um minuto. A seguir, Dalgliesh perguntou se Leonard Morris almoçava no refeitório do pessoal quando estava no hospital.
- Não é frequente. Acho que traz sanduíches e as come no gabinete da farmácia. Prefere a companhia dele próprio.
- Ou a da enfermeira Gearing? Ela riu-se desdenhosamente.
- Ah, com que então isso chegou ao seu conhecimento! Pois é claro! Consta-me que ela recebeu a visita dele ontem à noite. Não sei se foi a comida ou a actividade subsequente que parecem ter excedido a capacidade do homenzinho. Que meticulosos os polícias são para remexer na porcaria! Deve ser um estranho trabalho, esse de andar a farejar o mal como os cães fazem às árvores.
- Mal não será uma palavra demasiado forte para as ocupações sexuais de Leonard Morris?
- Claro que sim. Eu estava apenas a armar em esperta. Mas não devo permitir que o caso Morris-Gearing o preocupe. Há tanto tempo que eles se encontram aos bochechos, que quase já se tornou respeitável. Já nem sequer serve para falatório. Ela é o género de mulher que tem de ter sempre alguém à trela, e ele gosta de ter alguém a quem possa fazer confidências sobre o que a família é horrorosa e o pessoal médico do hospital insuportável. Considera ele que não o tomam propriamente por um profissional que esteja em pé de igualdade com eles. Tem quatro filhos, a propósito. Creio bem que, se a mulher decidisse divorciar-se, e ele e a Gearing ficassem livres para casar, nada os desorientaria mais. É certo que a Gearing havia de querer um marido, mas não me parece que escolhesse o pobre do Morris para o papel. É mais provável...
Interrompeu-se. Dalgliesh perguntou:
- Acha que ela tem em mente um candidato com mais possibilidades?
- Porque não experimenta fazer-lhe a pergunta a ela? Ela não me faz confidências.
- Mas a senhora é responsável pelo trabalho dela, não é? A orientadora clínica não está subordinada à monitora-chefe?
- Sou responsável pelo trabalho dela e não pela sua moral. Tinham chegado à porta mais afastada do banco e, quando a
enfermeira Rolfe estendeu a mão para a empurrar, entrou Mr. Courtney-Briggs, de rompante. Era seguido por meia dúzia de médicos auxiliares a falarem uns com os outros, de bata branca e estetoscópios presos ao pescoço. Os dois que o ladeavam acenavam com diferente atenção enquanto o grande homem falava. Dalgliesh pensou que ele tinha a presunção, a patina da vulgaridade e o savoir-faire1 levemente grosseiro que associava um determinado tipo de homem bem sucedido. Como se lhe lesse o pensamento, a enfermeira Rolfe disse:
- Não sei se sabe que nem todos eles são parecidos. Veja Mr. Molravey, o nosso cirurgião oftalmológico. Faz-me lembrar um arganaz. Todas as terças-feiras de manhã gatinha por aí adentro e passa cinco horas de pé no bloco operatório sem pronunciar uma única palavra desnecessária, agitando os bigodes e remexendo com as patinhas miúdas numa sucessão de olhos dos doentes. Depois agradece cerimoniosamente a toda a gente, incluindo a mais humilde enfermeira da sala de operações, despe as luvas e volta a gatinhar lá para fora para ir brincar com a sua colecção de borboletas.
- Um homenzinho modesto, de facto.
Ela virou-se para ele, e o inspector voltou a detectar nos seus olhos aquele desconfortável fulgor elíptico de desprezo.
- Ah, não! Modesto, não! Representa doutra maneira, mais nada. Mr. Molravey está precisamente tão convencido como Mr. Courtney-Briggs, de que é um cirurgião absolutamente notável. São ambos vaidosos, do ponto de vista profissional. A vaidade, Mr. Dalgliesh, é o grande defeito dos cirurgiões, tal como o das enfermeiras é a subserviência. Ainda nunca encontrei um cirurgião bem sucedido que não estivesse convencido de estar apenas um degrau mais abaixo de Deus Todo-Poderoso. Têm todos o vírus da arrogância.
Fez uma pausa, após o que inquiriu:
- Será isso também verdade para os assassinos?
- Para um determinado tipo de assassino. Deve ter em conta que o assassínio é um crime altamente individual.
- Ah, sim? Pensava que os motivos e os processos lhe haviam de ser monotonamente familiares. Mas é claro que o entendido é o senhor.
- Ao que parece, não nutre lá grande respeito pelos homens, pois não, enfermeira?
- Muito respeito, mesmo. Acontece simplesmente que não gosto deles. Mas é forçoso respeitar um sexo que conseguiu elevar o egoísmo à condição de uma tal arte. É isso que vos confere a vossa força, essa capacidade de se dedicarem inteiramente aos vossos próprios interesses.
Dalgliesh disse, um tanto ou quanto maldosamente, admirar-se pelo facto de Miss Rolfe, que se ressentia tão visivelmente da subserviência da sua profissão, não ter escolhido uma ocupação mais masculina. A medicina, por exemplo. Ela riu-se amargamente.
- Eu queria ir para medicina, mas tinha um pai que era contra as mulheres tirarem cursos. Não se esqueça de que tenho quarenta e seis anos. Quando andei na escola, ainda não havia educação secundária gratuita para todos. O meu pai ganhava demasiado para eu ter direito a ensino gratuito, de modo que teve de pagar. E deixou de pagar mal pôde fazê-lo sem ser escandaloso, quando eu fiz dezasseis anos.
Dalgliesh não conseguiu arranjar nada apropriado para dizer. A confidência surpreendera-o. Não teria imaginado que ela pertencesse ao género de mulheres capazes de expor um agravo pessoal a um estranho, e não era lisonjeiro para consigo próprio ao ponto de pensar que ela o achara compreensivo. Ela nunca acharia nenhum homem compreensivo. A explosão não devia ter passado de um escape espontâneo de azedume reprimido, mas era difícil saber se contra o pai, os homens em geral ou as limitações e a subserviência da sua profissão.
Tinham já abandonado o hospital e percorriam o estreito caminho que conduzia à Nightingale House. Nenhum deles pronunciou uma palavra mais até chegarem ao edifício. A enfermeira Rolfe embrulhou-se bem na capa e baixou o capuz, como se este pudesse protegê-la de algo mais do que a algidez do vento. Dalgliesh seguia mergulhado nos seus pensamentos particulares. E assim, separados pela largura do carreiro, atravessaram-no em silêncio sob as árvores.
No gabinete, o sargento investigador Masterson dactilografava um relatório. Dalgliesh disse:
- Imediatamente antes de vir para a escola, a estagiária Pearce trabalhava na enfermaria particular sob a direcção da enfermeira Brumfett. Quero saber se aconteceu lá alguma coisa significativa. E quero um relato pormenorizado do seu serviço durante a última semana e uma descrição, hora a hora, do que fez no último dia lá. Descubra quem era o restante pessoal de enfermagem, que tarefas desempenhava, quando tinha folga, a impressão que dela tinha o resto do pessoal. Quero os nomes dos doentes que estavam na enfermaria enquanto ela prestou lá serviço e o que lhes aconteceu. O melhor que tem a fazer é falar com as outras estagiárias e tomar como base de trabalho os relatórios do serviço de enfermagem. Hão-de ter um livro de registo diário.
- Acha que me dirija à superintendente para o obter?
- Não. Peça-o à enfermeira Brumfett. Tratamos directamente com ela e, por amor de Deus, use de tacto. Já tem esses relatórios prontos ?
- Tenho, sim, senhor inspector. Já estão dactilografados. Quer lê-los agora?
- Não. Dê-me conhecimento se houver alguma coisa que eu deva saber. Esta noite dou-lhes uma vista de olhos. Imagino que seria esperar demasiado contar com a eventualidade de algum suspeito ter já cadastro, não?
- Se o têm, senhor inspector, não consta dos processos individuais. A maioria deles contém uma quantidade notoriamente reduzida de informações. No entanto, a Julia Pardoe foi expulsa do liceu. Parece ser a única delinquente de todas.
- Meu Deus! Porquê?
- O processo dela não diz. Ao que parece, teve qualquer coisa a ver com uma professora de Matemática convidada. A reitora achou por bem mencionar o facto quando mandou as referências à superintendente antes de a rapariga entrar cá. Não é lá muito específica. Dizia que a Júlia foi mais objecto de pecado do que pecadora e que esperava que o hospital lhe desse a oportunidade de se preparar para a única carreira relativamente à qual alguma vez mostrara interesse ou indícios de inclinação.
- Uma bela observação ambígua. com que então foi por isso que os hospitais escolares de Londres não a aceitaram. Pareceu-me que a enfermeira Rolfe estava a ser um tudo-nada dissimulada quanto às razões. Há alguma coisa acerca dos outros? Alguma ligação anterior entre eles?
- A superintendente e a enfermeira Brumfett estudaram juntas no Norte, na Nethercastle Royal Infirmary, fizeram o estágio para parteiras no Hospital Municipal Maternity de lá e vieram para aqui há quinze anos, ambas como chefes de enfermaria. Mr. Courtney-Briggs esteve no Cairo entre 1946 e 47, do mesmo modo que a enfermeira Gearing. Ele era major do R. A. M. C.1 e ela enfermeira do Q. A. R. N. S.2 Não há indicações de que se tenham conhecido lá.
- Mesmo que se tenham conhecido, não havia de esperar ver esse facto registado nos seus processos individuais. Mas é provável que sim. O Cairo em 1946 era um lugar onde toda a gente se dava, ao que dizem os meus amigos do Exército. Pergunto a mim próprio se Miss Taylor prestou serviço no Q. A. R. N. S. A touca que ela usa é de um serviço de enfermagem do Exército.
- Se prestou, senhor inspector, não figura no seu processo individual. O documento mais antigo são as referências da escola de enfermagem quando ela veio para cá como enfermeira-chefe. Em Nethercastle tinham-na em grande conta.
- E aqui também a têm em grande conta. Confirmou as declarações de Courtney-Briggs?
- Confirmei, sim, senhor inspector. O porteiro do casinhoto toma nota de todos os automóveis que entram ou saem depois da meia-noite. Mr. Courtney-Briggs saiu à meia-noite e trinta e dois.
- Mais tarde do que nos fez crer. Quero uma verificação do horário dele. A hora exacta a que terminou a operação há-de figurar no livro de registo da sala de operações. O médico que o assistiu deve saber a que horas ele saiu: Mr. Courtney-Briggs pertence ao género de pessoas que são acompanhadas ao carro. Depois faça de carro o caminho que ele seguiu e cronometre o percurso. Por esta altura já devem ter retirado a árvore, mas há-de ser possível ver onde foi que tombou. Ele não pode ter levado mais que uns minutos, no máximo, a amarrar lá o lenço de pescoço. Descubra o que foi feito dele. É pouco provável que ele mentisse numa coisa tão fácil de refutar, mas é suficientemente arrogante para pensar que pode fazer impunemente o que quer que seja, incluindo o homicídio.
- O guarda Greeson pode proceder a essa verificação, senhor inspector. Gosta desses trabalhos de reconstituição.
- Diga-lhe que refreie a sua ânsia de verosimilhança. Não é preciso enfiar nenhuma bata cirúrgica e entrar no bloco operatório. Não é que o deixassem lá entrar. Já há alguma novidade da parte de Sir Miles ou do laboratório?
- Não, senhor inspector, mas temos o nome e a morada do homem com quem a estagiária Fallon passou aquela semana na ilha de Wight. é telefonista da noite nos Correios e vive em North Kensington. As pessoas de lá perceberam-nos quase imediatamente. A Fallon simplificou-lhes bastante a tarefa. Registou-se com o próprio nome e ficaram cada um em seu quarto de solteiro.
- Era uma mulher que apreciava a privacidade. Mesmo assim, não foi com certeza, mantendo-se no seu quarto que engravidou. vou falar com o homem amanhã de manhã, depois de ver o advogado de Miss Fallon. Sabe se o Leonard Morris já está no hospital?
- Ainda não, senhor inspector. Informei-me na farmácia de que telefonou esta manhã dizendo que estava doente. Ao que parece, sofre de uma úlcera do duodeno. Pensam que ela está novamente a apertar com ele.
- E há-de apertar bastante mais, se ele não regressar depressa para ser entrevistado. Não quero incomodá-lo indo visitá-lo a casa, mas não podemos esperar indefinidamente para confirmar a história da enfermeira Gearing. Ambos os assassínios, se é que de assassínios se tratou, giram à volta da questão do tempo. Temos de saber dos movimentos de toda a gente, se possível, com aproximação ao minuto. O tempo é crucial.
- É isso que me surpreende no alimento envenenado - disse Masterson. - Não era possível juntar o ácido fénico ao leite sem grandes cautelas, especialmente no voltar a colocar o selo na garrafa, na verificação de que a concentração era a adequada e de que a coisa ficava com a textura e a coloração do leite. Isso não pode ter sido feito às pressas.
- Não tenho dúvidas de que foi feito com grandes cautelas e consumindo muito tempo. Mas penso que sei como foi.
Enunciou a sua teoria. O sargento Masterson, irritado consigo próprio por ter deixado escapar o óbvio, observou:
- Claro. Foi necessariamente assim.
- Não foi necessariamente, sargento: foi provavelmente assim.
No entanto, o sargento Masterson via uma objecção e exprimiu-a.
- Mas isso não se aplicaria a uma mulher - retorquiu Dalgliesh. - Qualquer mulher poderia fazê-lo com facilidade, e em particular uma determinada mulher. Admito, porém, que seria mais difícil para um homem.
- Portanto, há a suposição de que o leite tenha sido envenenado por uma mulher?
- Há a probabilidade de ambas as raparigas terem sido assassinadas por uma mulher. Mas ainda assim é apenas uma probabilidade. Já soube se a estagiária Dakers se encontra suficientemente boa para ser entrevistada? Estava previsto o doutor Snelling vê-la esta manhã.
- A superintendente telefonou pouco antes do almoço a dizer que a rapariga ainda estava a dormir, mas provavelmente se encontrará em condições assim que acordar. Está sob o efeito de calmantes, de modo que só Deus sabe quando isso será. Quer que eu lhe vá dar uma olhadela, quando for à enfermaria particular?
- Não. Irei vê-la mais tarde. Mas pode confirmar esta história de a Fallon ter regressado à Nightingale House na manhã do dia 12 de Janeiro. Pode ser que alguém a tenha visto sair. E onde ficou a roupa dela enquanto ela esteve internada? Poderia alguém ter-se apoderado dela a fim de se fazer passar pela rapariga? Parece pouco provável, mas tem de ser investigado.
- O inspector Bailey fez essa investigação, senhor inspector. Ninguém viu a Fallon sair, mas admitem que ela possa ter abandonado a enfermaria sem ser detectada. Estava toda a gente muito atarefada e ela ocupava um quarto particular. Se dessem com ele vazio, suporiam provavelmente que ela tinha ido à casa de banho. A roupa dela estava no guarda-vestidos do quarto. Qualquer pessoa autorizada a estar na enfermaria podia ter-se apoderado dela desde que, evidentemente, a Fallon estivesse a dormir ou ausente do quarto. Mas ninguém acha provável que alguém o tenha feito.
- Nem eu. Acho que sei por que razão a Fallon regressou à Nightingale House. A estagiária Goodale disse-nos que a Fallon só tinha recebido a confirmação de estar grávida dois dias antes de adoecer. É possível que não a tenha destruído. Sendo assim, tratava-se do seu único pertence que não havia de querer deixar para alguém descobrir. O que é certo é que ela não se encontra entre os papéis dela. A minha suposição é que ela voltou para a recolher, rasgou-a em pedaços e deitou-a pela retrete abaixo.
- Não podia ter telefonado à estagiária Goodale pedindo-lhe que a destruísse?
- Não sem dar azo a suspeitas. Não podia ter a certeza de que seria a própria Goodale a atender quando telefonasse e certamente não quereria dar o recado a mais ninguém. Essa insistência em falar com uma determinada estagiária e a relutância em aceitar auxílio de qualquer outra pessoa havia de parecer bastante estranha. Mas isto não passa de uma teoria. A busca da Nightingale House já terminou?
-Já, sim, senhor inspector. Não encontraram nada. Nem vestígios de veneno nem recipiente. A maior parte dos quartos tem frascos de aspirina e quer a enfermeira Gearing, quer a enfermeira Brumfett, quer a superintendente têm uma pequena provisão de comprimidos para dormir. Mas a Fallon com certeza não morreu de envenenamento por hipnóticos ou soporíferos, pois não?
- Não. Foi mais rápido do que isso. Só nos resta enchermo-nos de paciência até recebermos os resultados do laboratório.
Precisamente às duas e trinta e quatro da tarde, no maior e mais luxuoso dos quartos particulares, a enfermeira Brumfett perdeu um doente. Era sempre nestes termos que encarava a morte. O doente perdera-se; a batalha chegara ao fim; ela, a enfermeira Brumfett, tinha sido pessoalmente derrotada. O facto de tantas das suas batalhas estarem de antemão votadas ao malogro, de o inimigo, mesmo que repelido na escaramuça do momento, ter sempre a garantia da vitória final, nunca mitigava a sua sensação de insucesso. Os doentes não davam entrada na enfermaria da enfermeira Brumfett para morrer; entravam lá para melhorarem e, com a indómita vontade da enfermeira Brumfett a fortalecê-los, normalmente melhoravam, muitas vezes ante a sua própria surpresa e de vez em quando a despeito dos seus próprios desejos.
Não alimentava grandes esperanças de vencer aquela batalha específica, mas só aceitara o desaire quando Mr. CourtneyBriggs levantara a mão para interromper a transfusão de sangue. Não restavam dúvidas de que o doente lutara valorosamente; um doente difícil, um doente exigente, mas um bom lutador. Fora um rico homem de negócios cujos meticulosos projectos de futuro não incluíam decerto a morte aos quarenta e dois anos. Recordou a expressão de desvairada surpresa, quase de escândalo, com que acolhera a percepção de que a morte era algo que nem ele nem o seu contabilista podiam resolver. A enfermeira Brumfett tinha visto demasiadas vezes a jovem viúva durante as visitas diárias dessa senhora para imaginar que ela sofresse grande desgosto ou incómodo. O doente era o único que teria ficado furioso com o malogro dos heróicos e dispendiosos esforços de Mr. Courtney-Briggs para o salvar e, felizmente para o cirurgião, o doente era a única pessoa que não estava em posição de exigir nem explicações, nem desculpas.
Mr. Courtney-Briggs iria visitar a viúva e apresentar-lhe-ia as suas condolências, de ordinário expressas numa cuidadosa linguagem e a garantia de que fora feito tudo o que era humanamente possível. Neste caso a dimensão da conta seria uma garantia disso e um poderoso antídoto, sem dúvida, para a inevitável sensação de culpa pelo falecimento. Mr. Courtney-Briggs tinha realmente muito jeito para as viúvas; e, justiça lhe fosse feita, tanto as pobres como as ricas recebiam a consolação da sua mão no ombro e das estereotipadas frases do consolo e pesar.
Puxou a dobra do lençol para cima, cobrindo o rosto subitamente inexpressivo. Cerrando os olhos mortos com dedos práticos, sentiu os globos oculares ainda quentes sob as pálpebras enrugadas. Não se deu conta de desgosto nem de raiva. Havia apenas, como sempre, aquele arrastado peso de malogro, repuxando-lhe como uma carga física os fatigados músculos do estômago e das costas.
Afastaram-se do leito em uníssono. Olhando para o rosto do cirurgião, a enfermeira Brumfett ficou impressionada com a sua expressão de fadiga. Pela primeira vez, também ele se mostrava ameaçado pelo insucesso e pela idade. É certo que era raro um doente morrer enquanto ele ali estava para ver. E era ainda mais raro morrerem na mesa de operações, conquanto a precipitada corrida da sala de operações para a enfermaria fosse por vezes um tudo-nada aviltante. Mas, ao invés da enfermeira Brumfett, Mr. Courtney-Briggs não era obrigado a velar os doentes até ao último suspiro. Apesar disso, ela não acreditava que esta morte em especial o tivesse deprimido. No fim de contas, não fora inesperada. Ele nada tinha a censurar-se, mesmo que fosse propenso à autocrítica. Parecia-lhe que ele estava sob o efeito de uma preocupação mais subtil, e perguntava a si própria se teria algo a ver com a morte da Fallon. ”Perdeu um bocado da prosápia”, pensou a enfermeira Brumfett. ”De um momento para o outro, parece dez anos mais velho.”
Avançou à frente dela pelo corredor até ao seu gabinete. Ao aproximarem-se da cozinha da enfermaria, ouviram o som de vozes. A porta estava aberta. Uma estagiária colocava os tabuleiros do chá da tarde num carrinho. O sargento Masterson estava encostado ao lava-loiças a observá-la com o ar de um homem inteiramente à vontade. Quando a enfermeira e Mr. CourtneyBriggs surgiram no umbral, a rapariga corou, balbuciou um ”boa tarde, senhor doutor”, em voz sumida e impeliu o carrinho pela frente deles até ao corredor com desajeitada precipitação. O sargento Masterson observou-a ao desaparecer com tolerante condescendência, após o que deslocou o olhar directamente para a enfermeira. Pareceu não ter dado por Mr. Courtney-Briggs.
- Boa tarde, senhora enfermeira, poderei ter uma conversa consigo?
Frustrada na iniciativa, a enfermeira Brumfett disse repressivamente:
- No meu gabinete, se faz favor, sargento. Era onde devia ter esperado por mim, para começar. As pessoas não andam a entrar e a sair da enfermaria conforme muito bem lhes apetece, e isto também se aplica à Polícia.
O sargento Masterson, impenitente, pareceu levemente agradado com este discurso, como se ele confirmasse qualquer coisa que lhe desse prazer. A enfermeira Brumfett apressou-se a seguir para o seu gabinete, de lábios comprimidos e pronta para a batalha. Para considerável surpresa da enfermeira, Mr. CourtneyBriggs seguiu-lhe no encalço.
- Senhora enfermeira, seria possível eu ter acesso ao livro de registo da enfermaria que abrange o período durante o qual a estagiária Pearce prestou serviço nesta enfermaria? - perguntou o sargento Masterson. - Interessa-me especialmente a última semana que ela cá passou.
Mr. Courtney-Briggs interrompeu rudemente:
- Não se trata de registos confidenciais, enfermeira? Decerto a Polícia há-de ter de solicitar a requisição judicial para a obrigar a revelá-los, não?
- Ah, não me parece, senhor doutor. - A voz do sargento Masterson, calma, quase demasiado respeitosa, continha no entanto uma nota de divertimento que não passou despercebida ao interlocutor. - A verdade é que os registos de enfermagem não são registos médicos propriamente ditos. Pretendo unicamente ver quem esteve aqui a ser tratado durante esse período e se aconteceu alguma coisa que possa ter interesse para o inspector. Insinuou-se que aconteceu qualquer coisa que perturbou a estagiária Pearce enquanto ela estava a prestar serviço na sua enfermaria. Lembre-se que ela foi directamente daqui para a escola.
A enfermeira Brumfett, com a cara coberta de manchas e a tremer com uma fúria que deixava pouco espaço para o medo, conseguiu recuperar a fala.
- Não aconteceu nada na minha enfermaria. Nada! Tudo isso são boatos estúpidos e maldosos. Quando uma enfermeira executa o seu trabalho como deve ser e cumpre as ordens, não tem precisão de ficar perturbada. O inspector está aqui para investigar um assassínio, e não para se intrometer na minha enfermaria.
Mr. Courtney-Briggs interveio com brandura:
- E mesmo que ela tivesse ficado... perturbada, creio que foi o termo que usou, sargento, não vejo que importância isso tenha para a morte dela.
O sargento Masterson sorriu-lhe como se estivesse a evitar contrariar um miúdo propositadamente obstinado.
- O que quer que tenha acontecido à estagiária Pearce na semana imediatamente anterior a ter sido morta pode ter importância, senhor doutor. É por isso que estou a pedir para ver o livro de registo da enfermaria.
Como nem a enfermeira Brumfett nem o cirurgião fizessem qualquer menção de o satisfazer, acrescentou:
- Trata-se apenas de confirmarmos informações que possuímos já. Sei o que ela esteve a fazer na enfermaria durante essa semana. Consta-me que dedicou todo o tempo a cuidar de um doente específico. Um tal Mr. Martin Dettinger. Esteve de ”especial”, acho que é esse o nome que lhe dão. Segundo as informações de que disponho, raramente abandonou o quarto dele enquanto prestou aqui serviço durante a sua última semana de vida.
”com que então”, pensou a enfermeira Brumfett, ”tinha andado a mexericar com as estagiárias.” Mas com certeza! Era assim que a Polícia trabalhava. Era inútil tentar manter fosse o que fosse em confidencialidade relativamente a ela. Aquele jovem impertinente havia de meter o nariz em tudo, até mesmo nos segredos clínicos da sua enfermaria, nos cuidados de enfermagem dispensados aos seus próprios doentes, e comunicá-lo-ia ao seu superior. Não havia nada no livro de registo da enfermaria que ele não pudesse obter por meios mais tortuosos e descobrir, aumentar, interpretar erradamente e utilizar para lançar a discórdia. Incapaz de articular palavra, devido à raiva e a qualquer coisa próxima do pânico, ouviu a voz suave e tranquilizadora de Mr. Courtney-Briggs,
- Nesse caso, o melhor é passar-lhe o livro, enfermeira. Se a Polícia insiste em perder o seu tempo, é escusado encorajá-la a fazer-nos perder o nosso.
Sem mais uma palavra, a enfermeira Brumfett dirigiu-se à sua secretária e, curvando-se, abriu a funda gaveta da direita e retirou de lá um grande livro de capa dura. Em silêncio e sem olhar para ele, estendeu-o ao sargento Masterson. Este agradeceu-lhe profusamente e virou-se para Mr. Courtney-Briggs:
- E agora, senhor doutor, se o doente ainda cá está, gostaria de trocar umas palavras com Mr. Dettinger.
Mr. Courtney-Briggs não fez qualquer tentativa para esconder na voz a satisfação que sentia.
- Acho que isso é capaz de desafiar mesmo um engenho como o seu, sargento. Mr. Dettinger morreu no dia em que a estagiária Pearce deixou esta enfermaria. Se bem me lembro, estava junto dele quando ele morreu. Portanto estão um e outro a bom recato da sua inquirição. E agora, se quiser ter a bondade de nos desculpar, a enfermeira e eu temos que fazer.
Segurou a porta aberta e a enfermeira Brumfett saiu empertigadamente à frente dele. O sargento Masterson ficou sozinho, com o livro de registo na mão.
- O raio do filho da mãe! - exclamou em voz alta.
Ficou imóvel por momentos, a pensar. Depois foi procurar a secção de registos clínicos.
Dez minutos depois estava de volta ao gabinete. Trazia debaixo do braço o livro de registo da enfermaria e uma pasta de arquivo cor de pele, com um aviso em maiúsculas pretas de que não devia ser facultada ao doente, e contendo o nome do hospital e o número de registo clínico de Martin Dettinger. Poisou o livro na mesa e estendeu a pasta a Dalgliesh.
- Obrigado. Conseguiu arranjá-lo sem problemas?
- Consegui, sim, senhor inspector - retorquiu Masterson.
Não viu razão para explicar que, encontrando-se o encarregado dos registos clínicos ausente da secção, tinha meio convencido, meio intimidado o funcionário subordinado de serviço a entregar-lhe a pasta, com a fundamentação, na qual nem por um momento acreditava, de que as normas sobre a confidencialidade dos processos clínicos deixavam de ser válidas quando o doente estava morto e que, quando um inspector-chefe da Yard pedia qualquer coisa, tinha o direito de a obter sem complicações nem delongas. Analisaram juntos a pasta.
- Martin Dettinger - disse Dalgliesh. - Idade, quarenta e seis anos. Deu como morada a do seu clube de Londres. Igreja Anglicana. Divorciado. Parente mais próximo, Mrs. Louise Dettinger, 23 Saville Mansions, Marylebone. Mãe. O melhor é ir falar com a senhora, Masterson. Combine encontrar-se com ela amanhã ao fim da tarde. vou precisar de si aqui durante o dia, enquanto eu estiver na cidade. E não se poupe com ela. Deve tê-lo visitado bastantes vezes durante a permanência dele no hospital. A estagiária Pearce estava a dar-lhe assistência especial. É provável que ambas se tenham visto bastante. Houve qualquer coisa que perturbou a Pearce enquanto esteve a trabalhar na enfermaria particular durante a sua última semana de vida e quero saber o que foi.
Voltou ao registo clínico.
- Há aqui uma porção de papelada. O pobre tipo parece ter tido uma história clínica atribulada. Havia dez anos que sofria de colite, e antes disso há registos de demorados acessos de uma enfermidade não diagnosticada, talvez precursora da doença que o vitimou. Esteve três vezes hospitalizado durante o serviço militar no Exército, incluindo uma temporada de dois meses num hospital militar do Cairo em 1947. Foi reformado por doença em 1952 e emigrou para a África do Sul. Isso não deve ter-lhe feito lá muito bem. Há aqui indicações de um hospital de Joanesburgo.
Foi o Courtney-Briggs que escreveu a pedi-las; não há dúvida de que ele não regateia esforços. As próprias anotações dele são bastante copiosas. Tomou conta do caso há uns anos e, ao que parece, para o Dettinger, foi ao mesmo tempo cirurgião e uma espécie de médico de clínica geral. A colite tornou-se aguada há cerca de um mês, e o Courtney-Briggs operou-o para extrair uma grande porção do intestino na sexta-feira, dia 2 de Janeiro. O Dettinger sobreviveu à operação, embora na altura se encontrasse em bastante mau estado, e registou algumas melhoras até ao princípio da manhã de segunda-feira, 5 de Janeiro, altura em que teve uma recaída. Depois disso raramente se manteve consciente por muito tempo, e morreu às cinco e meia da tarde de sexta-feira, 9 de Janeiro.
- A estagiária Pearce estava junto dele quando ele morreu disse Masterson.
- E aparentemente tratou-o quase por sua conta durante a última semana de vida dele. Pergunto a mim próprio o que dirá o registo da enfermaria.
Porém, o registo da enfermaria era muito menos elucidativo do que o processo clínico. A estagiária Pearce tinha registado com a sua cuidadosa mão de colegial os pormenores da temperatura, respiração e pulso do doente, os seus desassossegos e breves horas de sono, a sua medicação e alimentação. Como meticuloso registo de cuidados de enfermagem, não havia nada a apontar-lhe.
Dalgliesh fechou o livro.
- O melhor é devolvê-lo à enfermaria, e o processo clínico à secção respectiva. Já tirámos daí tudo o que era possível. Mas há qualquer coisa cá dentro que me diz que Martin Dettinger tem algo a ver com este caso.
Masterson não respondeu. Como todos os investigadores que tinham trabalhado com Dalgliesh, nutria um salutar respeito pelos palpites do velho. Podiam parecer inoportunos, perversos e rebuscados, mas tinham-se revelado acertados demasiadas vezes para poderem ser tranquilamente ignorados. Por outro lado, não tinha nada a opor a uma viagem vespertina a Londres. O dia seguinte era sexta-feira. O horário afixado no quadro do corredor mostrava que as aulas das estagiárias terminavam mais cedo às sextas -feiras. Deviam ficar livres pouco depois das cinco. Perguntou a si próprio se Julia Pardoe estaria na disposição de dar um passeio até à cidade. No fim de contas, porque não? Dalgliesh não estaria de volta antes da hora a que ele deveria sair.
Com jeito, podia combinar-se. E havia certos suspeitos que seria um prazer garantido entrevistar a sós.
Pouco antes das quatro e meia, Dalgliesh, desafiando as convenções e a prudência, estava a tomar chá sozinho no quarto-sala de estar da enfermeira Gearing. Esta tinha-o encontrado acidentalmente ao atravessar o corredor do piso térreo no instante em que as alunas debandavam da sala de aula após a última palestra do dia. Tinha feito o convite espontaneamente e sem acanhamento, embora Dalgliesh notasse que ele não fora extensivo ao sargento Masterson. Teria aceite o convite nem que ele lhe houvesse sido entregue em papel de carta cor-de-rosa rescendente de perfume e acompanhado da mais flagrante das insinuações de carácter sexual. O que lhe apetecia depois do interrogatório formal da manhã era sentar-se confortavelmente a ouvir um jorro de cavaqueira despretensiosa, franca e levemente maliciosa; escutar com a superfície do espírito em sossego, sem se empenhar, mesmo um tudo-nada cinicamente divertido, mas com as aguçadas pinças da inteligência afiadas para apanharem qualquer coisa. Tinha ficado a saber mais sobre as enfermeiras-chefes da Nightingale House através da sua conversa ao almoço do que em todas as entrevistas formais, mas não podia passar todo o tempo a andar atrás das enfermeiras a apanhar fragmentos de mexeriquice como se de lenços caídos se tratasse. Perguntava a si próprio se a enfermeira Gearing teria algo para dizer ou algo para perguntar. Em qualquer dos casos, não esperava que uma hora na sua companhia fosse tempo perdido.
Dalgliesh ainda não tinha estado em nenhum dos quartos do terceiro piso, a não ser no apartamento da superintendente, e ficou impressionado com o tamanho e as agradáveis proporções do quarto da enfermeira Gearing. Dali, mesmo de Inverno, não se via o hospital, e o quarto tinha uma serenidade toda sua, distante da frenética vida das enfermarias e dos serviços. Dalgliesh pensou que no Verão devia ser muito agradável, sem nada, a não ser um coágulo de cumes de árvores, a tapar a vista dos montes distantes. Mesmo agora, com as cortinas corridas contra a luz que ia morrendo e o gás a soltar o seu alegre assobio, era quente e acolhedor. Era de presumir que o sofá-cama ao canto, com a sua colcha de cretone e a fileira de almofadas cuidadosamente arranjada, tivesse sido fornecido pela Comissão de Gestão do hospital, tal como duas confortáveis cadeiras de braços de estofo similar e o resto do mobiliário, desinteressante mas funcional. Porém, a enfermeira Gearing tinha imprimido a sua personalidade no quarto. Havia uma comprida prateleira no extremo mais afastado do compartimento onde ela tinha disposto uma colecção de bonecas com diferentes trajes nacionais. Noutra parede havia uma prateleira mais pequena com um sortido de gatos de porcelana de diferentes tamanhos e raças. Havia um espécime particularmente repelente de azul-sarapintado, de olhos protuberantes e enfeitado com um laço de fita azul; e, de pé, junto dele achava-se um postal ilustrado mostrando um pisco fêmea, cujo sexo era indicado por um avental plissado e um chapéu florido, empoleirado num galho. Aos seus pés, um pisco macho pronunciava, formada por pequenos vermes, a palavra ”Felicidades”. Dalgliesh desviou apressadamente os olhos daquela coisa abominável e prosseguiu o diplomático exame do quarto.
A mesa diante da janela destinava-se presumivelmente a servir de secretária, mas na realidade cerca de meia dúzia de fotografias em molduras prateadas ocupava a maior parte do espaço de trabalho. A um canto encontrava-se um gira-discos, com um suporte para discos ao lado, e um cartaz de um recente ídolo pop colado na parede por cima. Havia um grande número de almofadas de todos os tamanhos e cores, três pufes de formato pouco atraente, um tapete de imitação de pele de tigre feito de nylon castanho e branco e uma mesa de café onde a enfermeira Gearing tinha disposto o chá. No entanto, o objecto mais notável naquele compartimento, aos olhos de Dalgliesh, era um vaso alto de folhagem de Inverno e crisântemos, muito bem arranjados, sobre uma mesinha de canto. A enfermeira Gearing tinha fama pelos seus arranjos de flores, e aquele possuía uma simplicidade de cor e linha que era inteiramente agradável. Era estranho, pensou, que uma mulher dotada de tal gosto instintivo para os arranjos florais se sentisse bem naquele compartimento mobilado em demasia e com vulgaridade. Dava a entender que a enfermeira Gearing era capaz de ser uma pessoa mais complicada do que a princípio poderia supor-se. À primeira vista, era fácil decifrar-lhe o carácter. Tratava-se de uma solteirona de meia-idade, desconfortavelmente apaixonada, sem cultura ou inteligência especiais e que disfarçava as suas frustrações sob uma vivacidade levemente apócrifa. Contudo, vinte e cinco anos de serviço na Polícia tinham-lhe ensinado que não havia carácter que não tivesse as suas complexidades, as suas inconsistências. Só as pessoas verdes ou as muito arrogantes supunham existir um retrato-robô para identificar automaticamente o espírito humano.
Ali, na sua própria casa, a enfermeira Gearing era menos manifestamente namoriscadora do que em grupo. É certo que tinha optado por servir o chá enroscada numa ampla almofada aos pés dele, mas ele concluiu, com base na quantidade e variedade de almofadas dessas espalhadas pelo quarto fora, que devia tratar-se mais de um confortável hábito seu do que de um felino convite para que ele se lhe juntasse. O chá era excelente. Estava quente e feito de fresco e era acompanhado de pequenas tostas magnanimamente cobertas de manteiga e pasta de anchovas. Havia uma admirável ausência de paninhos de mesa e bolos pegajosos e a pega da chávena podia ser confortavelmente segura sem ter de deslocar os dedos. Ela olhava por ele com calma eficiência. Dalgliesh pensou que a enfermeira Gearing era uma daquelas mulheres que, quando a sós com um homem, consideram seu dever dedicarem-se inteiramente ao seu conforto e à tarefa de lhe lisonjearem o ego. Isto pode despertar fúria em mulheres menos dedicadas, mas é insensato esperar que um homem lhe oponha objecções.
Descontraída pelo calor e conforto do seu quarto e estimulada pelo chá, a enfermeira Gearing estava manifestamente na disposição de conversar. Dalgliesh deixou-a tagarelar à vontade, intercalando uma pergunta apenas de quando em quando. Nenhum deles fez referência a Leonard Morris. As confidências despretensiosas com que Dalgliesh contava não seriam certamente suscitadas pelo embaraço ou pela reserva.
- Claro que aquilo que aconteceu àquela pobre pequena, a Pearce, é absolutamente consternador, seja o que for que o tenha causado. E com todo o grupo a ver tudo como viu! O que me surpreende é isso não ter perturbado todo o trabalho delas, mas hoje em dia os jovens são bastante duros. E elas não gostavam lá muito dela. No entanto, não posso acreditar que alguma delas tenha posto aquele corrosivo no alimento. No fim de contas, são alunas do terceiro ano. Sabem que o ácido fénico absorvido directamente pelo estômago naquela concentração é letal. Que diabo, tinham tido uma palestra sobre venenos no período anterior! Portanto, não pode ter sido uma partida que deu mau resultado.
- Mesmo assim, parece ser essa a opinião geral.
- Bem, é natural, não é verdade? Ninguém quer acreditar que a morte da Pearce tenha sido assassínio. E, se por acaso se tratasse de uma turma no primeiro ano, eu podia acreditar. Uma das alunas podia ter adulterado o alimento por impulso, talvez com a ideia de que o lisol é um emético e que a aula prática pudesse resultar mais animada se a Pearce vomitasse a inspectora do C. G. E. toda. Uma noção de humor estranha, mas a gente nova é capaz de ser muito cruel. No entanto, estas pequenas haviam de saber o que o produto faria ao estômago.
- E quanto à morte da estagiária Fallon?
- Oh, quero crer que tenha sido suicídio. No fim de contas, a pobre rapariga estava grávida. Provavelmente teve um momento de depressão intensa e não viu interesse em continuar. Três anos de estudo desperdiçados e ninguém de família a quem recorrer. Pobrezinha da Fallon! Não me parece que ela fosse o tipo de pessoa capaz de se suicidar, mas provavelmente foi um impulso. Houve algumas críticas ao facto de o doutor Snelling (é o médico que trata das estagiárias) a ter deixado regressar ao bloco tão depressa a seguir à gripe. Mas ela detestava faltar e não era propriamente a mesma coisa do que trabalhar nas enfermarias. Não estamos realmente na época do ano ideal para dar licenças de convalescença às pessoas. Ela estava tão bem na escola como em qualquer outro sítio. Mesmo assim, com certeza a gripe não ajudou nada. Provavelmente deixou-a bastante abatida. Esta epidemia está a ter alguns efeitos retardados bastante aborrecidos. Se ao menos ela se abrisse com alguém... É horrível pensar que ela pôs assim termo à vida com uma porção de gente à volta que teria todo o prazer em ajudá-la se pura e simplesmente ela pedisse. Dê cá, deixe-me servir-lhe outra chávena. E experimente um destes biscoitos. São caseiros. É a minha irmã casada que mos manda de tempos a tempos.
Dalgliesh serviu-se de um biscoito da lata que lhe ofereciam e observou que havia quem pensasse que a estagiária Fallon podia ter tido outro motivo para se suicidar, afora a gravidez. Podia ter sido ela quem pusera o corrosivo no alimento. A verdade é que tinha sido vista na Nightingale House à hora crucial.
Avançou a sugestão manhosamente, aguardando a reacção dela. Não seria certamente nova para ela; devia ter ocorrido a toda a gente na Nightingale House. Mas ela era demasiado simplória para a surpreender o facto de um investigador-chefe estar a discutir aquele caso tão abertamente com ela, e demasiado estúpida para se interrogar sobre o porquê.
Rechaçou a teoria com uma fungadela.
- A Fallon, nem pensar! Seria uma brincadeira parva e ela não era parva. Como lhe disse, qualquer estagiária de enfermagem do terceiro ano saberia que aquilo era letal. E, se está a insinuar que a Fallon tencionava matar a Pearce (e por que carga de água havia ela de o fazer?), eu diria que havia de ser a última pessoa a sentir remorsos. Se a Fallon decidisse cometer um homicídio, não desperdiçaria tempo a arrepender-se depois, quanto mais matar-se por remorsos. Não, a morte da Fallon é bastante compreensível. Estava sob uma depressão na sequência da gripe e não conseguiu encarar a questão da criança.
- Nesse caso, acha que ambas se suicidaram?
- Bem, no caso da Pearce não estou assim tão certa. Seria preciso ser bastante desparafusada para escolher uma morte tão dolorosa, e a Pearce parecia-me suficientemente equilibrada. Mas é uma explicação possível, não é verdade? E não estou a ver que o senhor possa provar qualquer outra coisa, por mais tempo que aqui passe.
Pareceu-lhe detectar uma nota de enfatuada complacência na voz dela e fitou-a abruptamente. Porém, a cara magra não mostrava mais nada a não ser a costumada expressão de vaga insatisfação. Estava a comer um biscoito, mordiscando-o com uns dentes aguçados e muito brancos. Ouvia-os mesmo roçar nos bolinhos.
- Quando uma explicação é impossível, o improvável deve ser verdadeiro - comentou ela. - Houve alguém que disse uma coisa deste género. G. K. Chesterton, não foi? As enfermeiras não se assassinam umas às outras. Nem assassinam ninguém, aliás.
- Houve a enfermeira Waddingham - disse Dalgliesh.
- Quem era?
- Uma mulher desinteressante e desagradável que envenenou com morfina uma das suas doentes, uma tal Miss Baguley. Miss Baguley tinha sido suficientemente mal avisada para deixar todo o seu dinheiro e propriedades à enfermeira Waddingham a troco de esta a tratar durante toda a vida na sua clínica. Fez um mau negócio. A enfermeira Waddingham foi enforcada.
A enfermeira Gearing estremeceu de simulada repugnância.
- As pessoas horríveis com que o senhor se envolve! Seja como for, era provavelmente uma dessas enfermeiras não diplomadas. com certeza não me vai dizer que essa Waddingham estava inscrita no Conselho Geral de Enfermagem.
- Pensando bem, não me parece que estivesse. E eu não estive envolvido nisso. Aconteceu em 1935.
- Ah, portanto já vê - disse a enfermeira Gearing, como que vingada.
Esticou-se para lhe servir uma segunda chávena de chá, após o que se enroscou mais confortavelmente na almofada, encostando-se ao braço da cadeira dele, de tal forma que o cabelo roçava o seu joelho. Dalgliesh deu por si a examinar com moderado interesse a estreita faixa de cabelo mais escuro de cada um dos lados do risco onde a tinta havia desaparecido. Visto de cima, o rosto escorçado parecia mais velho e o nariz mais afilado. Conseguia distinguir os papos latentes sob as pestanas inferiores e os salpicos de veias rebentadas por sobre os malares, os sulcos violáceos só meio disfarçados pela maquilhagem. Já não era jovem, ele bem o sabia. E havia muito mais coisas sobre ela do que ele tinha respigado do seu processo individual. Tinha estagiado num hospital do East End londrino depois de uma série de empregos de escritório mal sucedidos e pouco lucrativos. A sua carreira de enfermeira tinha sido variada e as referências obtidas eram suspeitosamente prudentes. Houvera dúvidas quanto à sensatez de a apoiar no estágio para orientadora clínica, sugestão que tinha sido motivada menos por qualquer desejo de ensinar do que pela esperança de um trabalho mais fácil que o de encarregada de uma enfermaria. Sabia que ela estava a ter problemas com a menopausa. Sabia mais sobre ela do que ela julgava, mais do que ela pensaria que ele tinha o direito de saber. Mas ainda não sabia se ela era uma assassina. Por instantes concentrado nos seus pensamentos pessoais, por pouco não lhe escapavam as palavras seguintes que ela pronunciou.
- É estranho o senhor ser poeta. A Fallon tinha o seu último livro de versos no quarto, não tinha? A Rolf e contou-me. Não é difícil conciliar a poesia com o facto de ser polícia?
- Nunca pensei que a poesia e o trabalho de Polícia precisassem de se conciliar desse modo ecuménico.
Ela riu-se acanhadamente.
- Sabe muito bem o que eu quero dizer. No fim de contas, é um bocado invulgar. Não há ninguém que imagine os polícias como poetas.
Claro que ele sabia o que ela queria dizer. Mas não era assunto que estivesse disposto a discutir. Respondeu:
- Os polícias são indivíduos como as pessoas em qualquer outra profissão. No fim de contas, as senhoras, que são as três enfermeiras, não têm muito em comum, pois não? A senhora e a enfermeira Brumfett dificilmente poderiam ter temperamentos mais diferentes. Não consigo imaginar a enfermeira Brumfett a dar-me tostas com anchova e biscoitos caseiros.
Ela reagiu de imediato, como ele sabia que aconteceria:
- Oh, a Brumfett é boa pessoa, o que é preciso é conhecê-la bem. Claro que está atrasada vinte anos. Como eu disse ao almoço, as pequenas hoje não estão dispostas a dar ouvidos a todas aquelas tretas acerca da obediência, do dever e do sentido da vocação. Mas é uma esplêndida enfermeira. Não consinto que ninguém diga nada contra a Brum. Há uns quatro anos fiz uma apendicectomia cá. A coisa correu um bocado para o torto e a costura rebentou. Depois apanhei uma infecção resistente aos antibióticos. Foi tudo uma complicação. Não se tratou de um dos esforços mais bem sucedidos do nosso Courtney-Briggs. Fosse como fosse, sentia-me como se fosse morrer. Uma noite estava com dores pavorosas, sem conseguir dormir, e sentia-me absolutamente certa de que não passaria dessa noite. Estava aterrorizada. Pura e simplesmente em pânico. Não me venham cá falar em medo da morte! Nessa noite é que eu percebi o que isso era. Foi então que a Brumfett apareceu. Era ela própria quem estava a cuidar de mim; não deixava as estagiárias fazerem-me fosse o que fosse quando estava de serviço. Perguntei-lhe: ”Não vou morrer, pois não?” Ela olhou para mim. Não me disse que me deixasse de tolices nem me veio com nenhuma das habituais mentiras tranquilizadoras. Limitou-se a dizer com aquela sua voz áspera: ”Não; se eu o puder evitar, não vais.” E o pânico desapareceu imediatamente. Eu sabia que, se a Brumfett estava a lutar do meu lado, havia de conseguir vencer. Dito assim, parece um bocado pateta e sentimental, mas foi isso que eu pensei. É assim que ela é com todos os doentes que estão realmente mal. Não me venham cá falar de confiança! A Brumfett faz-nos sentir que seria capaz de nos puxar da beira da sepultura para fora à custa de pura força de vontade, mesmo que todos os demónios do Inferno estivessem a fazer força do outro lado; o que, no meu caso, estavam provavelmente a fazer. Já não aparecem outras como ela.
Dalgliesh produziu adequados ruídos de assentimento e fez uma breve pausa antes de pegar nas referências a Mr. CourtneyBriggs. Perguntou com toda a ingenuidade se havia muitas das operações do cirurgião a correr tão espectacularmente mal. A enfermeira Gearing riu-se:
- Não, meu Deus! As operações de Courtney-Briggs correm geralmente da maneira que ele quer. Não quer isto dizer que fosse a maneira que o doente escolheria se soubesse de tudo. C. B. é aquilo a que se chama um cirurgião heróico. Se quer que lhe diga, a maior parte do heroísmo tem de ser mostrada pelos doentes. Mas ele trabalha extraordinariamente bem. É um dos grandes cirurgiões gerais que ainda restam. Sabe como é; os que aceitam seja o que for, quanto mais desesperado melhor. Suponho que os cirurgiões se parecem bastante com os advogados. Não há glória nenhuma em conseguir a absolvição de alguém que esteja obviamente inocente. Quanto maior for a culpa, maior é a glória.
- Como é Mrs. Courtney-Briggs? Presumo que ele seja casado. Ela aparece alguma vez no hospital?
- Não é muito frequente, embora seja supostamente membro da Liga dos Amigos. Foi ela que distribuiu os prémios o ano passado, quando à última hora a Princesa não pôde vir. Loira, muito elegante. Mais nova que C. B., mas começando já a ficar um pouco gasta. Por que razão pergunta? com certeza não suspeita de Muriel Courtney-Briggs, pois não? Nem sequer estava no hospital na noite em que a Fallon morreu. Provavelmente estava metida na cama na bela casinha que eles têm perto de Selborne. E a verdade é que ela não tinha motivo nenhum para matar a pobre Pearce.
Portanto tinha efectivamente um motivo para se ver livre da Fallon. Provavelmente, a ligação de Mr. Courtney-Briggs tinha sido mais notada do que ele se dera conta. Dalgliesh não ficou surpreendido por a enfermeira Gearing estar ao corrente. O seu nariz afilado havia de ser perito em farejar escândalos sexuais.
- Pergunto a mim próprio se ela teria ciúmes - disse ele.
A enfermeira Gearing, sem se aperceber do que tinha dito, continuou alegremente a divagar.
- Não me parece que ela estivesse ao corrente. Normalmente as mulheres não sabem. De qualquer maneira, C. B. não ia desfazer o casamento para casar com a Fallon. Olha quem! Mrs. C. B. tem muito dinheiro mesmo seu. É filha única do Price, da Price and Maxwell, a empresa de construções... e, que diabo, com o que C. B. ganha e mais os proventos mal adquiridos do papá, vivem muito bem. Não me parece que a Muriel se rale muito com o que ele faz, desde que se porte como deve ser para com ela e o dinheiro continue a escorrer. Cá por mim, sei que não me havia de ralar. Além disso, se o que consta é verdade, a nossa Muriel não satisfaz propriamente os requisitos para a Liga da Pureza.
- Alguém de cá? - inquiriu Dalgliesh.
- Oh, não, nada disso. Anda simplesmente por aí com gente muito elegante. Normalmente, a fotografia dela aparece em todas as terceiras edições das revistas mundanas. E além disso também se dão muito com a gente do teatro. C. B. tinha um irmão que era actor, Peter Courtney. Enforcou-se há uns três anos. Deve ter lido qualquer coisa sobre isso.
A profissão de Dalgliesh proporcionava-lhe poucas oportunidades de ver peças, e ir ao teatro era um dos prazeres de que mais falta sentia. Só tinha visto Peter Courtney representar uma vez, mas tratara-se de uma actuação difícil de esquecer. Tinha sido um Macbeth muito jovem, tão introspectivo e sensível como Hamlet, sexualmente dominado por uma mulher muito mais velha, e cuja coragem física era um misto de violência e histerismo. Tinha sido uma interpretação perversa mas interessante, que estivera muito perto de resultar. Pensando agora na actuação, Dalgliesh imaginou ser capaz de detectar uma certa semelhança entre os irmãos, talvez qualquer coisa ligada à implantação dos olhos. Mas Peter devia ser perto de vinte anos mais novo. Gostaria de saber que opinião teriam um do outro dois homens tão profundamente afastados pela idade e pelo talento.
Súbita e irrelevantemente, Dalgliesh perguntou:
- Como é que a Pearce e a Fallon se entendiam?
- Não se entendiam. A Fallon desprezava a Pearce. Não quero dizer que a detestasse ou que fosse capaz de lhe fazer mal; desprezava-a, mais nada.
- Havia alguma razão especial?
- A Pearce tomou a seu cargo informar a superintendente das beberriquices de uísque da Fallon à noite. O estafermozinho da hipócrita! Oh, bem sei que ela está morta e não devia ter dito isto. Mas, com franqueza, a Pearce tinha o condão de ser insuportavelmente hipócrita. Aparentemente, o que aconteceu foi que a Diane Harper (por esta altura já saiu da escola de enfermagem) tinha tido uma forte constipação cerca de uma quinzena antes de o grupo vir para a escola, e a Fallon preparou-lhe um uísque quente com limão. A Pearce sentiu o cheiro daquilo a meio do corredor e concluiu que agora a Fallon andava a tentar seduzir as colegas mais novas com a demoníaca bebida. De maneira que apareceu na sala de uso geral (claro que nessa altura estavam no lar principal das enfermeiras) de camisa de noite, farejando o ar como um anjo vingador, e ameaçou fazer queixa da Fallon à superintendente a menos que ela prometesse mais ou menos de joelhos nunca mais voltar a tocar na bebida. A Fallon disse-lhe onde havia de ir e o que devia fazer quando lá chegasse. Quando se irritava, a Fallon tinha um fraseado bastante pitoresco.
A estagiária Dakers desatou a chorar, a Harper perdeu as estribeiras e a barulheira geral atraiu a enfermeira encarregada do lar ao local. Efectivamente, a Pearce fez queixa à superintendente, mas ninguém sabe com que resultado, excepto na medida em que a Fallon passou a guardar o seu uísque no quarto. Mas tudo aquilo provocou grande sensação no terceiro ano. A Fallon nunca foi muito popular no grupo, era demasiado reservada e sarcástica. Mas da Pearce ainda gostavam um bom pedaço menos.
- E a Pearce antipatizava com a Fallon?
- Bem, isso é difícil de dizer. A Pearce nunca pareceu importar-se com o que os outros pensavam dela. Era uma rapariga estranha, e além disso bastante insensível. Por exemplo, podia não concordar com a Fallon e com o facto de ela beber uísque, mas isso não a impedia de lhe pedir o cartão da biblioteca.
- Quando foi que isso aconteceu?
Dalgliesh inclinou-se para a frente, voltando a pousar a chávena no tabuleiro. Falara num tom uniforme, despreocupado, mas sentia de novo aquele sobressalto de entusiasmo da antecipação, a noção intuitiva de que fora dito algo de importante. Era mais do que um palpite; era, como sempre, uma certeza. com sorte, podia suceder várias vezes durante um caso, mas também podia nunca ocorrer. Não podia fazê-lo acontecer por vontade própria e temia analisar demasiado perto as suas raízes, pois suspeitava de que se tratasse de uma planta que a lógica fizesse murchar com facilidade.
- Pouco antes de ela vir para a escola, penso eu. Deve ter sido na semana anterior à da morte da Pearce. Acho que foi na quinta-feira. Fosse como fosse, ainda não tinham passado para a Nightingale House. Foi logo a seguir ao jantar no refeitório principal. A Fallon e a Pearce iam a sair ambas a porta e eu ia mesmo atrás delas com a Goodale. Nessa altura, a Fallon virou-se para a Pearce e disse: ”Aqui tens a ficha da biblioteca que te prometi. É melhor dar-ta agora, pois não me parece que nos vejamos de manhã. O melhor é levares também o cartão de leitor, caso contrário podem não te emprestar o livro.” A Pearce murmurou qualquer coisa e pegou na ficha de uma maneira que me pareceu bastante pouco delicada, e pronto. Porquê? Não é importante, pois não?
- Não vejo por que razão havia de ser - retorquiu Dalgliesh.
Permaneceu o quarto de hora seguinte numa atitude de exemplar paciência. Dada a sua atenção cortês à tagarelice da enfermeira Gearing e a maneira ociosa como bebeu a terceira e última chávena de chá, a interlocutora não poderia imaginar que cada instante era agora concedido a contragosto. Quando o chá terminou, transportou por ela o tabuleiro até à pequena copa das enfermeiras ao fundo do corredor, com ela a correr pressurosamente na sua peugada, guinchando os seus protestos. A seguir disse ”obrigado” e foi-se embora.
Dirigiu-se de imediato ao quarto de cama semelhante a uma cela que continha ainda quase todos os pertences que a estagiária Pearce possuíra no John Carpendar. Demorou um instante a procurar a chave certa no meio do pesado molho que tinha no bolso. O quarto tinha sido fechado à chave após a morte dela e continuava fechado. Entrou, acendendo a luz. A cama estava desfeita e todo o quarto estava muito limpo e arranjado como se também ele tivesse sido amortalhado para o enterro. Os cortinados estavam afastados de maneira a que, do exterior, o quarto não tivesse um aspecto diferente de qualquer dos outros. A janela estava aberta mas o ar possuía um ténue odor de desinfectante como se alguém houvesse tentado apagar a recordação da morte da Pearce por meio de uma purificação ritual.
Ele não tinha precisão de refrescar a memória. Os resíduos daquela vida específica eram pateticamente escassos. Porém, tornou a rebuscar as coisas que constituíam o seu espólio, voltando-as nas mãos cautelosas como se o toque do tecido e do couro pudessem comunicar as suas próprias pistas. Não demorou muito. Nada tinha sido modificado desde a primeira inspecção. O guarda-vestidos do hospital, idêntico ao do quarto da estagiária Fallon, era mais do que suficiente para os poucos vestidos de lã, sóbrios na cor e no corte, que, sob as suas mãos inquiridoras, oscilaram nos cabides providos de chumaços e soltaram um leve odor de fluido de limpeza e bolas de naftalina. O espesso casaco de Inverno de cor fulva era de boa qualidade mas manifestamente velho. Procurou uma vez mais nos bolsos. Não continham nada a não ser o lenço que já ali se encontrava no seu primeiro escrutínio, uma amarrotada bola de algodão branco cheirando a hálito azedo.
Passou à cómoda. Novamente aí, o espaço disponível era mais do que suficiente. As duas gavetas de cima estavam cheias de roupa interior, fortes e ajuizadas camisolas interiores e cuecas, confortavelmente quentes sem dúvida para um Inverno inglês, mas sem quaisquer concessões à sedução ou à moda. As gavetas estavam forradas a papel de jornal. As folhas já tinham sido tiradas uma vez, mas ele passou a mão por debaixo delas e nada sentiu, afora a granulosa superfície da madeira crua e sem polimento. As restantes três gavetas continham camisas, blusas e casacos de lã; uma carteira de pele, cuidadosamente embrulhada em papel de seda; um par de sapatos melhores num saco de corda; uma embalagem bordada de lenços com uma dúzia deles cuidadosamente dobrados; um sortido de lenços de pescoço; três pares de meias de nylon idênticas ainda dentro dos invólucros respectivos.
Virou-se novamente para o armário de cabeceira e para a pequena prateleira fixada por cima dele. Sobre o armário havia um candeeiro de mesa-de-cabeceira, um pequeno despertador num estojo de couro que deixara de trabalhar havia muito, um pacote de lenços de papel com um deles meio puxado através da abertura e uma garrafa de água vazia. Havia também uma Bíblia encadernada a pele e um estojo de papel de carta. Dalgliesh abriu a Bíblia na folha em branco inicial e voltou a ler a inscrição em cuidadosa letra desenhada. ”Prémio de assiduidade e diligência atribuído a Heather Pearce. Escola de Catequese de St. Mark.” Diligência. Uma palavra fora de moda, atemorizante, mas com a qual, pressentia-o, a estagiária Pearce teria concordado.
Abriu o estojo de papel de carta, mas com poucas esperanças de encontrar o que procurava. Nada tinha mudado desde o seu primeiro exame. Lá estava ainda a carta meio acabada para a avó, um enfadonho relato dos afazeres da semana escrito tão impessoalmente como um relatório de enfermaria, e um envelope de formato in-quarto; endereçado a ela no dia da sua morte e evidentemente enfiado no estojo de papel de carta por alguém que, tendo-o aberto, não fora capaz de imaginar que outra coisa lhe havia de fazer. Era uma brochura ilustrada sobre o trabalho de um lar para refugiados de guerra alemães em Suffolk, aparentemente enviado na esperança de uma contribuição.
Desviou a atenção para a pequena colecção de livros da prateleira na parede. Já os tinha visto antes. Na ocasião, tal como agora, impressionara-o o convencionalismo da escolha dela e a exiguidade daquela biblioteca. Um prémio escolar de bordado. Contos Tirados de Shakespeare, de Lamb. Dalgliesh nunca acreditara que alguma criança os lesse, e não havia indícios de que a estagiária Pearce o tivesse feito. Havia dois livros de viagens, No Rasto de S. Paulo e No Rasto do Mestre. Num e noutro a rapariga tinha inscrito cuidadosamente o nome. Havia um exemplar conhecido mas antiquado de um livro de enfermagem. A data escrita na página inicial tinha perto de quatro anos. Perguntou a si próprio se ela o teria comprado antes do curso, apenas para descobrir que os seus conselhos de aplicar sanguessugas e ministrar clisteres estavam desactualizados. Havia um exemplar do Golden Treasury de Palgrave,1 igualmente um prémio escolar, mas desta feita, inadequadamente, de comportamento. E também este revelava poucos indícios de ter sido lido. Finalmente havia três brochuras - romances da autoria de uma escritora popular, qualquer deles publicitado como O Livro do Filme - e uma narrativa fictícia e altamente sentimental das deambulações pela Europa de um cão e um gato extraviados, que Dalgliesh recordava ter sido um êxito de livraria alguns anos atrás. Este tinha a inscrição ”Para a Heather, com amor, da tia Edie, Natal de 1964”. A colecção inteira revelava-lhe pouco acerca da rapariga desaparecida, a não ser que as suas leituras tinham sido aparentemente tão restritas como a sua vida. E não encontrou em lugar algum aquilo que procurava.
Não foi revistar novamente o quarto da estagiária Fallon. O funcionário encarregado de investigar o local do crime tinha-o inspeccionado de ponta a ponta, e ele próprio seria capaz de descrever o quarto em minucioso pormenor e fornecer um rigoroso inventário de todo o seu conteúdo. Estivessem a ficha e o cartão de leitor da biblioteca onde estivessem, podia ter a certeza de que não estavam ali. Ao invés, subiu com ligeireza a larga escadaria até ao andar superior, onde tinha visto um telefone de parede ao transportar o tabuleiro do chá da enfermeira Gearing até à sala de uso geral. Ao lado do aparelho estava um cartão com a lista das extensões internas e, passado um momento de reflexão, ligou para a sala de estar das estagiárias. Foi Maureen Burt quem atendeu. Sim, a estagiária Goodale ainda ali estava. Quase de imediato, Dalgliesh ouviu a voz e pediu à rapariga que viesse ter com ele ao quarto da estagiária Pearce.
Ela acorreu tão depressa que ele mal tinha atingido a porta quando viu a figura segura de si e fardada ao cimo das escadas. Afastou-se para o lado e ela penetrou no quarto adiante dele e examinou silenciosamente a cama desfeita, o silencioso relógio
de cabeceira, a Bíblia fechada, deixando os olhos pousar por breves instantes em cada um dos objectos com um interesse desprovido de curiosidade. Dalgliesh avançou até à janela e, ambos de pé, fitaram-se em silêncio, com a cama de permeio. A seguir ele disse:
- Constou-me que a estagiária Fallon emprestou um cartão da biblioteca à estagiária Pearce em determinada altura da semana anterior à morte dela. Nessa ocasião você estava a sair do refeitório com a enfermeira Gearing. Será capaz de recordar o que se passou?
A estagiária Goodale não era propensa a mostrar surpresa.
- Sim, acho que sou. A Fallon tinha-me dito antes, nesse dia, que a Pearce queria ir a uma das bibliotecas de Londres e lhe tinha pedido emprestados o cartão de leitor e a ficha. A Fallon era sócia da Biblioteca de Westminster. Eles têm uma série de filiais na City, mas realmente não está previsto as pessoas serem sócias a não ser que vivam ou trabalhem em Westminster. Antes de vir tirar o curso para cá, a Fallon tinha um apartamento em Londres e tinha conservado o cartão de leitor e a ficha. É uma biblioteca excelente, muito melhor do que a daqui, e é útil ter a possibilidade de requisitar livros. Acho que a enfermeira Rolfe também é sócia. A Fallon levou o cartão de leitor e a ficha quando foi para o almoço e deu-os à Pearce na altura em que iam a sair do refeitório.
- A estagiária Pearce disse para que os queria?
- A mim, não. Pode ser que tenha dito à Fallon. Não sei. Desde que quisesse, qualquer uma de nós podia pedir emprestada à Fallon uma das fichas dela. A Fallon não exigia explicações.
- Qual é exactamente o aspecto dessas fichas ?
- São pequenas peças rectangulares de plástico azul-pálido com as armas da cidade estampadas. A biblioteca dá normalmente quatro a cada leitor e entrega-se uma de cada vez que se requisita um livro, mas a Jo só tinha três. Podia ter perdido a quarta. Além disso há o cartão de leitor. Trata-se do habitual cartãozinho com o nome, morada e data de validade. Por vezes a funcionária da biblioteca pede para ver o cartão de leitor e creio que foi por isso que a Jo o emprestou juntamente com a ficha.
- Sabe onde estão as outras duas?
- Sei, no meu quarto. Pedi-as há cerca de quinze dias quando fui à cidade com o meu noivo para assistir a uma cerimónia religiosa especial na Abadia. Pensei que talvez tivéssemos tempo de ir à filial da Great Smith Street para ver se tinham o último livro da Iris Murdoch. No entanto, encontrámos uns amigos da universidade teológica do Mark a seguir à missa e acabámos por não ir à biblioteca. Tencionava devolver as fichas à Jo, mas enfiei-as no estojo de papel de carta e esqueci-me delas. Ela não mo recordou. Se servir para alguma coisa, posso mostrar-lhas.
- É capaz de servir. Sabe se a Heather Pearce utilizou a ficha dela?
- Bem, imagino que sim. Vi-a à espera do autocarro da Green Line para a cidade nessa tarde. Estávamos ambas de folga, de modo que deve ter sido quinta-feira. Presumo que ela tencionava ir à biblioteca.
Pareceu intrigada.
- Não sei porquê, tenho praticamente a certeza de que ela trouxe realmente um livro da biblioteca, mas não consigo descobrir por que razão hei-de estar assim tão certa.
- Não consegue? Ora faça lá um bom esforço para se lembrar. A estagiária Goodale manteve-se quieta e silenciosa, com as mãos recatadamente entrelaçadas como se estivesse a rezar sobre a rigidez branca do avental. Ele não a apressou. Ela manteve o olhar fixo em frente, após o que desviou a vista para a cama e disse:
-Já sei. Vi-a a ler um livro da biblioteca. Foi na noite em que a Jo adoeceu, a noite anterior à morte da própria Pearce. Entrei no quarto dela pouco passava das onze e meia para lhe pedir que ficasse a olhar pela Jo, enquanto eu ia chamar a enfermeira. Ela estava sentada na cama com o cabelo em duas tranças, a ler. Agora me lembro. Era um livro grande, de capa escura, julgo que azul-escura, com um número de referência gravado a dourado na base da lombada. Parecia um livro antigo e bastante pesado. Não me parece que fosse de ficção. Lembro-me de que ela o tinha encostado aos joelhos erguidos. Quando eu entrei, fechou-o rapidamente e enfiou-o debaixo da almofada. Foi uma atitude estranha, mas na altura não lhe atribuí significado nenhum. A Pearce era sempre estranhamente reservada. Além disso, estava demasiado preocupada com a Jo. Mas agora já estou recordada.
Ficou novamente silenciosa por alguns momentos. Dalgliesh aguardou. A seguir ela disse tranquilamente:
- Sei o que o preocupa. Onde está agora esse livro? Não estava entre as coisas dela quando eu e a enfermeira Rolfe arrumámos o quarto e fizemos uma lista dos seus pertences a seguir à morte dela. Os polícias estavam lá também e não encontrámos nenhum livro que se parecesse com aquele. E o que aconteceu ao cartão? Também não estava entre as coisas da Fallon.
- Que aconteceu ao certo nessa noite? - perguntou Dalgliesh. Você disse que foi ao quarto da estagiária Fallon pouco depois das onze e meia. Julgava que ela não se deitava antes da meia-noite.
- Nessa noite deitou-se. Creio que foi porque não se sentia bem e esperava que, indo para a cama cedo, ficasse boa. Não disse a ninguém que estava doente. A Jo nunca faria tal coisa. E não fui eu que me dirigi a ela. Ela é que veio ter comigo. Pouco depois das onze e meia, acordou-me. Estava com um aspecto pavoroso. Era evidente que tinha um febrão e mal se conseguia ter de pé. Ajudei-a a regressar à cama, fui pedir à Pearce que ficasse com ela e a seguir liguei para a enfermeira Rolfe. Normalmente é ela a responsável por nós quando estamos na Nightingale House. A enfermeira veio ver a Jo e a seguir telefonou para a ala particular e pediu para uma ambulância a vir buscar. Depois ligou para a enfermeira Brumfett informando-a do sucedido. A enfermeira Brumfett gosta de estar informada do que se passa na enfermaria dela mesmo quando não está de serviço. Não havia de gostar de chegar ao hospital na manhã seguinte e descobrir que a Jo tinha baixado à enfermaria sem ninguém a avisar. Veio dar uma olhadela à Jo, mas não seguiu na ambulância com ela. Não valia realmente a pena.
- Quem foi que a acompanhou ?
- Fui eu. A enfermeira Rolfe e enfermeira Brumfett voltaram aos quartos respectivos e a Pearce ao seu.
Portanto era pouco natural que o livro pudesse ter sido retirado nessa noite, pensou Dalgliesh. Decerto a Pearce teria dado pela sua ausência. Mesmo que tivesse resolvido não prosseguir a leitura, era pouco natural que se deitasse para dormir com um livro volumoso debaixo da almofada. Assim, o mais provável era que alguém o tivesse tirado de lá depois da sua morte. Uma coisa era certa: havia um determinado livro que estava na sua posse na noite que precedera a sua morte e no entanto não se encontrava no quarto dela quando a Polícia, Miss Rolfe e a estagiária Goodale o haviam examinado inicialmente por volta das dez e dez da manhã seguinte. Oriundo ou não da biblioteca de Westminster, o livro não aparecia; por outro lado, se não era da biblioteca, que tinha sido feito da ficha e do cartão de leitor? Nem uma nem outro se encontravam entre as suas coisas. E, se ela resolvera não os utilizar e os devolvera à Fallon, por que não se encontravam entre os pertences da Fallon?
Perguntou à estagiária Goodale o que sucedera imediatamente a seguir à morte da estagiária Pearce.
- A superintendente mandou-nos a todas, as estagiárias, para a sua sala de estar e pediu para aguardarmos lá. A enfermeira Gearing juntou-se-nos daí a cerca de meia hora e depois veio o café e tomámo-lo. Ficámos ali todas a conversar e a tentar ler até à chegada do inspector Bailey e da superintendente. Isso deve ter sido por volta das onze horas, talvez um pouco antes.
- E estiveram todas juntas nessa sala durante todo esse tempo?
- Nem todo o tempo. Eu fui à biblioteca buscar um livro que queria e estive ausente durante coisa de três minutos. A estagiária Dakers também abandonou a sala. Não sei bem porquê, mas tenho a impressão de que ela murmurou qualquer coisa a respeito de ir à casa de banho. Afora isso, tanto quanto me lembro, estivemos todas juntas lá. Miss Beale, a inspectora do C. G. E., estava connosco.
Fez uma pausa.
- O senhor pensa que esse livro da biblioteca desaparecido tem qualquer coisa a ver com a morte da Pearce, não pensa? Acha que é importante.
- Penso que pode ser. É por isso que quero que não fale a ninguém sobre esta nossa conversa.
- Decerto, se assim o quer - retorquiu ela, e fez uma pausa.
- Mas eu não poderia tentar descobrir o que foi feito do livro? Podia perguntar com toda a naturalidade às outras estagiárias se tinham o cartão e a ficha. Podia fingir que queria utilizar-me deles.
Dalgliesh sorriu:
- Deixe as investigações comigo. Preferia de longe que não dissesse nada.
Não viu razão para lhe dar a entender que, na investigação de um crime, saber demasiado podia ser perigoso. Ela era uma rapariga sensata. Não tardaria que ela própria o depreendesse. Tomando o silêncio do inspector por despedida, voltou-se para sair. Ao chegar à porta, hesitou e virou-se:
- Inspector-chef e Dalgliesh, desculpe se estou a meter-me. Não posso acreditar que a Pearce tenha sido assassinada. Mas, se o foi, com certeza o livro pode ter sido retirado do quarto dela em qualquer momento a seguir às nove menos cinco, altura em que a Pearce entrou na sala de aulas práticas. O assassino saberia que ela não havia de sair dessa sala com vida e que seria seguro para ele, ou ela, retirá-lo. Se o livro foi retirado depois da morte da Pearce, podia ter sido tirado por quem quer que fosse e por um motivo absolutamente inócuo. Mas se foi tirado antes de ela morrer, nesse caso foi removido pelo assassino. Isso seria verdade mesmo que o livro em si não tivesse nada a ver com o motivo pelo qual ela foi morta. E a pergunta da Pearce a todas nós acerca de qualquer coisa que lhe desaparecera do quarto dá a entender que o livro foi retirado antes de ela morrer. E por que havia o assassino de se incomodar a retirá-lo se ele não tivesse uma relação com o crime?
- Exactamente - disse Dalgliesh. - Você é uma rapariga inteligente.
Pela primeira vez viu a estagiária Goodale desconcertada. Corou, ficando repentinamente tão rosada e bonita como uma jovem noiva, após o que lhe sorriu, virou-se rapidamente e saiu. Dalgliesh, intrigado pela metamorfose, concluiu que o vigário local tinha revelado muito senso e discernimento na escolha da esposa. Aquilo que a assembleia da igreja paroquial faria da sua intransigente inteligência era outra questão. E esperava não ter de a prendrer por homicídio antes de eles terem oportunidade de se decidirem.
Encaminhou-se no seu encalço para o corredor. Como de costume, encontrava-se lugubremente sombrio, apenas iluminado pelas duas lâmpadas encarrapitadas num cacho de latão entrelaçado. Ia já no topo da escada quando o instinto o obrigou a deter-se e a regressar pelo mesmo caminho. Acendendo a lanterna, baixou-se e fez o feixe luminoso incidir lentamente na superfície de areia dos dois baldes de incêndio. A do mais próximo formava uma crosta e estava cinzenta de pó; era evidente que não havia sido mexida desde o enchimento. Porém, a superfície do segundo tinha um aspecto mais recente. Dalgliesh calçou as suas finas luvas de algodão próprias para pesquisas, tirou do quarto da estagiária Pearce um pedaço de papel de jornal do forro de uma das gavetas, estendeu-o no corredor e despejou lentamente a areia formando uma pirâmide crescente. Não descobriu nenhum cartão da biblioteca escondido. Porém, tombou de lá uma lata achatada, com tampa roscada e ostentando um rótulo manchado. Dalgliesh afastou os grãos de areia descobrindo a inscrição negra de uma caveira e da palavra VENENO em maiúsculas. Por baixo liam-se as palavras: ”Pulverizador para plantas. Liquida os insectos, inofensivo para plantas. Utilizar com cuidado de acordo com as instruções.”
Não precisou de ler as instruções para saber o que tinha descoberto. Aquilo era quase nicotina pura. Tinha finalmente nas mãos o veneno que havia liquidado a estagiária Fallon.
Fim de um longo dia
Decorridos cinco minutos depois de ter falado com o director do laboratório de medicina legal e com Sir Miles Honeyman, Dalgliesh ergueu os olhos para o sargento Masterson, que mostrava uma atitude carrancudamente defensiva.
- Começo a perceber por que razão a corporação tem tanta predilecção por formar investigadores civis. Disse ao funcionário encarregado do local do crime para confinar as suas buscas ao quarto, que nós nos encarregaríamos do resto da casa. Não sei bem porquê, imaginei que os polícias seriam capazes de usar os olhos.
O sargento Masterson, tanto mais furioso quanto sabia que a admoestação era justificada, controlou-se com dificuldade. Não aceitava críticas com facilidade; vindas de Dalgliesh, era-lhe quase impossível. Assumiu uma rígida posição de sentido como um velho soldado num assalto, sabendo perfeitamente que aquele formalismo teria mais o condão de exasperar Dalgliesh que de o aplacar e logrou assumir um tom simultaneamente ofendido e contrito.
- O Greeson é um bom investigador, senhor inspector. Até hoje, nunca o vi deixar escapar nada. E não há dúvida de que sabe usar os olhos, senhor inspector.
- O Greeson tem uma vista excelente. O problema é que não há ligação entre os seus olhos e o cérebro. E é aí que o senhor entra. Agora o mal está feito. Não vale a pena remexer em cadáveres. Não sabemos se esta lata estava no balde ou não quando o corpo da Fallon foi descoberto esta manhã. Mas pelo menos encontrámo-la agora. A propósito, o laboratório tem as vísceras. Sir Miles telefonou a dizê-lo há coisa de uma hora. Estão já a submeter parte daquilo ao cromatógrafo de gás. Agora que sabem o que procurar, as coisas podem correr mais depressa.
O melhor é fazermos chegar-lhe esta lata o mais depressa possível. Mas primeiro vamos dar-lhe uma vista de olhos.
Foi ao saco de material de investigação criminal buscar o pó de analisar impressões digitais, o espalhador e a lupa. A latinha achatada ficou empoada sob as suas mãos cautelosas. Mas não havia impressões digitais, apenas uns pequenos borrões amorfos no rótulo sumido.
- Muito bem - disse ele. - Chame as três enfermeiras, se faz favor, sargento. São as pessoas que têm mais probabilidades de saber de onde veio esta lata. Vivem cá. A enfermeira Gearing está na sua sala de estar. As outras devem estar algures por aí. E, se a enfermeira Brumfett ainda estiver na sua enfermaria, terá de a abandonar. Quem morrer dentro da próxima hora terá de fazê-lo sem a sua assistência.
- Quer falar com elas em separado ou ao mesmo tempo?
- Tanto faz. Não importa. Chame-as, apenas. A que tem mais probabilidade de ser útil é a Gearing. É ela que trata das flores.
A primeira a chegar foi a enfermeira Gearing. Surgiu desenvoltamente, de rosto arrebitado de curiosidade e rosado da euforia remanescente da anfitriã bem sucedida. Depois o seu olhar caiu sobre a lata. A transformação foi tão imediata e surpreendente que quase chegava a ser cómica. Soltou um ”Oh, não!” ofegante, levou a mão à boca e deixou-se cair na cadeira defronte de Dalgliesh, mortalmente pálida.
- Onde foi que o senhor?... Oh, meu Deus! Quererá dizer que a Fallon ingeriu nicotina?
- Ingeriu, ou fizeram-na ingeri-la. Reconhece esta lata, enfermeira?
A voz da enfermeira Gearing era quase inaudível.
- Claro. É a minha... não é a lata do pulverizador das roseiras? Onde foi que a encontrou?
- Algures por aí. Quando e onde a viu pela última vez ?
- O lugar dela é aquele armário branco por baixo da prateleira, na estufa, mesmo à esquerda da porta. É lá que são arrumadas todas as minhas coisas de jardinagem. Não consigo lembrar-me de quando a vi pela última vez.
Estava à beira das lágrimas; a alegre confiança sumira-se completamente.
- Dou-lhe a minha palavra que isto é por de mais horrível! É assustador! Sinto-o de uma maneira horrorosa. Palavra que sinto. Mas como podia eu adivinhar que a Fallon sabia que aquilo estava ali e que o utilizaria? Nem eu própria me lembrava disso.
Imagino que não haja dúvidas! Ela morreu realmente por envenenamento com nicotina?
- Há muitas dúvidas enquanto não estivermos de posse do relatório da toxicologia. Mas, vendo as coisas pelo prisma do senso comum, parece que foi isto que a matou. Quando foi que a comprou?
- Sinceramente, não me lembro. Em qualquer altura, no princípio do Verão passado, pouco antes da época das rosas. Pode ser que uma das outras enfermeira se recorde. Sou eu a responsável pela maioria das plantas aqui da estufa. Pelo menos, não sou verdadeiramente responsável; nunca houve nenhuma combinação oficial nesse sentido. Mas gosto de flores e não há mais ninguém que esteja para isso, de modo que faço o que posso. Estava a tentar fazer um pequeno canteiro de roseiras no exterior do refeitório, também, e precisava disso para matar os parasitas. Comprei-a nas Bloxham’s Nurseries, na Winchester Road. Repare, pode ver a morada carimbada no rótulo. E guardava-a juntamente com as minhas outras coisas de jardinagem, as luvas, o cordel, os regadores e as pás e tudo isso, no armário do canto, na estufa.
- É capaz de se lembrar de quando o viu pela última vez?
- Não, isso não sou. Mas sábado passado, de manhã, fui ao armário buscar as luvas. Tínhamos uma cerimónia especial na capela, domingo, e queria arranjar as flores. Pensei que talvez pudesse encontrar alguns galhos interessantes, pedaços da folhagem de Outono ou vagens de sementes no jardim para ajudar à decoração. Não me lembro de ter lá visto a lata no sábado, mas penso que teria reparado se ela realmente não estivesse no sítio. Mas não tenho a certeza.. Há meses que não a usava.
- Quem mais sabia que ela se encontrava ali?
- Bom, qualquer pessoa podia saber. Quero eu dizer, o armário não fica fechado à chave e não havia nada que impedisse as pessoas de espreitarem lá para dentro. Suponho que tinha a obrigação de o fechar à chave, mas ninguém vai pensar... Quer dizer, quando as pessoas estão dispostas a matar-se, hão-de arranjar processo de o fazer, seja como for. Sinto horrivelmente o que se passou, mas não permitirei que me façam sentir responsável. Não permitirei! Não é justo! Ela podia ter utilizado fosse o que fosse. Fosse o que fosse!
- Quem?
- Ora essa, a Fallon. Se é que realmente se suicidou. Oh, já nem sei o que digo.
- A estagiária Fallon tinha conhecimento da nicotina?
- Não, a menos que tenha procurado no armário e a tenha encontrado. As únicas pessoas que posso dizer ao certo que realmente sabiam são a Brumfett e a Rolfe. Lembro-me de que estavam sentadas na estufa quando guardei a lata no armário. Peguei nela e fiz qualquer observação estúpida sobre o facto de ter ali veneno suficiente para matar todas, e a Brumfett disse-me que o devia guardar fechado à chave.
-Mas não o fez?
- Bem, enfiei-a imediatamente no armário. Não tem chave, de modo que não podia fazer nada. De qualquer maneira, o rótulo da lata é bem claro. Qualquer pessoa pode ver que se trata de veneno. E ninguém está à espera de que as pessoas se matem. Além disso, a nicotina porquê? As enfermeiras têm imensas oportunidades de se apoderarem de drogas. Não é justo deitarem-me as culpas para cima. No fim de contas, o desinfectante que vitimou a Pearce era igualmente letal, e ninguém se queixou pelo facto de ter sido deixado na casa de banho. Não se pode dirigir uma escola de enfermagem como se fosse uma unidade psiquiátrica. Não me vão deitar as culpas. Parte-se do princípio de que as pessoas daqui são equilibradas, e não homicidas furiosas. Não vou deixar que me façam sentir culpada. Não vou!
- Se não utilizou o produto na estagiária Fallon, não há motivo para se sentir culpada. Quando trouxe a lata, a enfermeira Rolfe disse alguma coisa?
- Acho que não. Limitou-se a erguer a vista do livro. Mas não me lembro realmente. Nem sequer posso dizer-lhe exactamente quando foi. No entanto, estava um dia quente e cheio de sol. Disso, lembro-me. Acho que deve ter sido em fins de Maio ou princípios de Junho. Pode ser que a Rolfe se lembre, e a Brumfett lembra-se com certeza.
- Perguntar-lho-emos. Entretanto, o melhor é eu dar uma vista de olhos a esse armário.
Deixou a lata de nicotina para Masterson embalar e fazer seguir para o laboratório, ordenou-lhe que convocasse a enfermeira Brumfett e a enfermeira Rolfe à estufa e abandonou a sala no encalço da enfermeira Gearing. Esta conduziu-o ao piso térreo, ainda a resmungar os seus indignados protestos. Entraram no refeitório vazio. A descoberta de que a porta que dava para a estufa se encontrava fechada sacudiu a enfermeira Gearing do estado de espírito de atemorizado ressentimento.
- Diabo! Já me esquecia. A superintendente achou que era melhor fechá-la à chave depois do escurecer porque alguns vidros não estão lá muito firmes. Não se lembra de uma vidraça ter caído durante a tempestade? Receia que alguém possa entrar por aqui. Habitualmente não nos damos ao trabalho de a fechar antes de fecharmos tudo à chave quando nos vamos deitar. A chave deve estar no chaveiro do gabinete da Rolfe. Espere aqui. Não demoro nada.
Regressou quase imediatamente e enfiou a grande e antiquada chave na fechadura. Penetraram no tépido odor fungóide da estufa. A enfermeira Gearing procurou o interruptor sem falhar, e os dois compridos tubos de luz fluorescente, suspensos do alto tecto côncavo, tremeluziram irregularmente, para a seguir terem uma explosão de brilho, revelando a selva arbórea em todo o seu carácter luxuriante. A estufa era uma visão impressionante. Dalgliesh tinha colhido essa noção na primeira visita geral a toda a casa, mas agora, deslumbrado pela reverberação violenta nas folhas e no vidro, piscou os olhos de admiração. Em seu redor uma floresta miniatural de verdura enroscava-se, brotava, trepava e explodia numa profusão ameaçadora, enquanto, no exterior, o seu pálido reflexo pairava no ar da noite e se estendia, imóvel e insubstancial, numa infinidade verde.
Certas plantas tinham o aspecto de florescerem na estufa desde o dia em que esta havia sido construída. Brotavam como palmeiras maduras, conquanto miniaturais, de floreiras ornadas, espalhando um dossel de folhas cintilantes sob o vidro. Outras, mais exóticas, lançavam rebentos de folhagem dos caules marcados de cicatrizes e dentados ou, como cactos gigantes, erguiam lábios de borracha, esponjosos e obscenos, para sugar o ar húmido. Entre elas, os fetos espalhavam-uma sombra verde, agitando as débeis frondes sob a corrente de ar da porta. Em torno dos lados do grande compartimento havia prateleiras brancas sobre as quais se viam vasos das plantas mais domésticas e aprazíveis, que constituíam o objecto dos cuidados da enfermeira Gearing: crisântemos vermelhos, cor-de-rosa e brancos e violetas africanas. A estufa deveria evocar uma cena terna de vitoriana vida doméstica, de leques a adejar e confidências segredadas por detrás das palmas. Para Dalgliesh, porém, nenhum recanto da Nightingale House estava isento da opressiva atmosfera do mal; as próprias plantas pareciam sugar o seu maná de um ar contaminado.
Mavis Gearing foi direita a um armário - baixo, de um metro e vinte de largo, de madeira pintada de branco, localizado debaixo da prateleira da parede, à esquerda da porta e dificilmente visível atrás da cortina de fetos ondulantes. Possuía uma inadequada porta próvida de um pequeno puxador e sem fechadura. Agacharam-se juntos para o revistar. Embora as lâmpadas fluorescentes por cima deles fossem desagradavelmente cruas, os recessos do armário eram obscuros e a sua visão era obstruída pela sombra das cabeças. Dalgliesh acendeu a lanterna. O foco revelou o ferramental costumeiro dos jardineiros de interior. Procedeu a um inventário mental. Havia novelos de fio verde, um par de regadores, um pequeno pulverizador, embalagens de sementes, algumas abertas e meio usadas, com a parte de cima dobrada para trás, um pequeno saco de plástico de terra para vasos e outro de adubo, cerca de duas dúzias de potes de flores de diversos tamanhos, uma pequena pilha de tabuleiros de sementes, tesoura de podar, uma pá e um pequeno gadanho, uma desordenada rima de catálogos de casas de sementes, três livros de jardinagem forrados a pano, de capas manchadas e sujas, um sortido de vasos de flores e rolos de cerca de arame.
Mavis Gearing apontou para um espaço no canto mais distante.
- Era ali que estava. Meti-o bem lá para trás. Não podia constituir uma tentação para quem quer que fosse. Uma pessoa nem sequer daria por ele só ao abrir a porta. Realmente estava bastante escondido. Olhe, é este espaço; pode ver onde ele estava.
Falou num tom de pressurosa autojustificação, como se o espaço vazio a absolvesse de toda e qualquer responsabilidade. A seguir, a voz alterou-se-lhe. Descendo um tom, tornou-se roucamente implorativa, como se fosse a de uma actriz amadora interpretando uma cena de sedução.
- Bem sei que a coisa parece feia. Primeiro, era eu que estava encarregada da sala de aulas práticas quando a Pearce morreu. E agora isto. Mas não toquei naquilo desde que o usei o Verão passado. Juro que não! Sei que algumas delas não acreditarão em mim. Ficarão satisfeitas (sim, satisfeitas) e aliviadas se as suspeitas recaírem sobre mim e o Len. Isso deixá-las-á de fora. Além disso têm inveja. Sempre tiveram inveja. É porque eu tenho um homem e elas não. Mas o senhor acredita em mim, não acredita? Tem de acreditar!
Era patético e vexante. Comprimiu o ombro contra o dele, enquanto ali se mantinham ajoelhados, acotovelando-se, num ridículo arremedo de oração. Ele sentia a respiração dela no rosto. A mão-direita dela, cujos dedos se contorciam nervosamente, rastejou pelo chão fora em direcção à dele.
Nesse momento, a atitude dela alterou-se de chofre. Ouviram, proveniente da porta, a voz fria da enfermeira Rolfe.
- O sargento disse-me para vir ter consigo aqui. Interrompi alguma coisa?
Dalgliesh sentiu aliviar-se de imediato a pressão no ombro e a enfermeira Gearing pôs-se precipitada e desajeitadamente de pé. Ele ergueu-se mais devagar. Não se sentia nem parecia embaraçado, mas não lamentava o facto de Miss Rolfe ter escolhido aquela ocasião para aparecer.
A enfermeira Gearing prorrompeu em explicações:
- É o pulverizador das roseiras. Aquele produto que contém nicotina. A Fallon deve tê-lo tomado. Sinto-me absolutamente horrorizada com isso, mas como havia eu de adivinhar? O inspector encontrou a lata.
Virou-se para Dalgliesh
- Não disse onde, pois não?
- Não - redarguiu Dalgliesh. - Não disse onde. Dirigiu-se a Miss Rolfe:
- Sabia que aquilo estava guardado no armário ?
- Sabia, sim, vi a Gearing metê-lo lá. Numa ocasião qualquer no Verão passado, não foi?
- Não mo referiu.
- Não tinha pensado nisso, a não ser agora. Nunca me ocorreu que a Fallon pudesse ter ingerido nicotina. E, presumivelmente, ainda não sabemos se o fez.
- Enquanto não recebermos o relatório da toxicologia, não disse Dalgliesh.
- E mesmo nessa altura, senhor inspector, pode ter a certeza de que a nicotina provém desta lata? Decerto existem outras fontes de nicotina no hospital, não? Isto pode ser uma falsa pista.
- Claro, embora me pareça altamente improvável. Mas o laboratório de medicina legal deve ser capaz de nos dizer isso. Esta nicotina está misturada com uma proporção de detergente concentrado. Há-de ser identificável por cromatografia de gás.
Ela encolheu os ombros.
- Bem, nesse caso isso há-de resolver a questão. Mavis Gearing exclamou:
- Que queres tu dizer com outras fontes de abastecimento? Onde pretendes tu chegar? Tanto quanto sei, a nicotina não é armazenada na farmácia. E, de qualquer maneira, o Len tinha saído da Nightingale House antes de a Fallon morrer.
- Não estava a acusar o Leonard Morris. Mas ele estava no local quando ambas morreram, não te esqueças, e achava-se aqui na estufa quando meteste a nicotina no armário. É um suspeito como todas nós.
- Mr. Morris estava consigo quando comprou a nicotina?
- Bem, efectivamente estava. Tinha-me esquecido, senão ter-lho-ia dito. Tínhamos saído juntos nessa tarde e regressámos para o chá.
Voltou-se iradamente para a enfermeira Rolfe.
- Isto não tem nada a ver com o Len, já te disse! Ele mal conhecia a Pearce ou a Fallon. A Pearce não tinha nada com o Len.
Hilda Rolfe redarguiu calmamente:
- Não me tinha apercebido de que ela tivesse fosse o que fosse com alguém. Não sei se estás a tentar meter ideias na cabeça de Mr. Dalgliesh, mas o que é certo é que mas estás a meter na minha.
O rosto da enfermeira Gearing desfez-se em. infelicidade. Resmungando, sacudiu a cabeça para um lado e para outro como se buscasse desesperadamente ajuda ou refúgio. O seu rosto, doentio e surrealista, era inundado pela luz verde da estufa.
A enfermeira Rolfe deitou um olhar penetrante a Dalgliesh e a seguir, ignorando-o, aproximou-se da colega e disse com inesperada suavidade:
- Escuta, Gearing, desculpa. Claro que não pretendo acusar o Leonard Morris nem acusar-te a ti. Mas o facto de ele estar aqui contigo havia de vir a lume, desse por onde desse. Não deixes a Polícia desorientar-te. É assim que ela funciona. Não me parece que o inspector queira saber para alguma coisa se tu ou eu ou a Brumfett matámos a Pearce e a Fallon, desde que possa provar que alguém o fez. Pois bem, deixa-o tratar disso. Limita-te a responder às perguntas dele e mantém-te calma. Que tal se te ocupasses do teu trabalho e deixasses a Polícia ocupar-se do seu?
Mavis Gearing gemeu como uma criança em busca de tranquilização:
- Mas é tudo tão horrível!
- Claro que é! Mas não há-de durar sempre. E entretanto, se tens de fazer confidências a um homem, arranja um advogado, um psiquiatra ou um padre. Pelo menos podes estar razoavelmente certa de que estarão do teu lado.
Os olhos preocupados de Mavis Gearing passaram de Dalgliesh para a Rolfe. Parecia uma criança hesitando em decidir a quem devia obediência. Depois as duas mulheres aproximaram-se imperceptivelmente e fitaram Dalgliesh, a enfermeira Gearing com um olhar de intrigada censura e a enfermeira Rolfe com o apertado sorriso de satisfação de uma mulher que acaba de levar a bom termo uma maldadezinha.
Nesse momento Dalgliesh apercebeu-se do som de passos que se aproximavam. Havia alguém que se abeirava do refeitório. Virou-se para a porta, esperando verificar que a enfermeira Brumfett tinha finalmente chegado para ser entrevistada. A porta da estufa abriu-se, mas, em lugar da sua figura atarracada, viu um homem alto e calvo com uma gabardina cintada e um pedaço de gaze fixado a atravessar o olho esquerdo. Uma voz rabugenta falou do umbral da porta:
- Que é feito de toda a gente? Isto aqui parece a morgue.
Antes que alguém pudesse responder, Miss Gearing já se tinha precipitado para diante e agarrara-se-lhe ao braço. Dalgliesh viu com interesse o seu franzir de sobrolho e o estremeção de involuntário recuo.
- Que é isso, Len? Estás ferido! Não me tinhas dito nada! Pensei que fosse a úlcera. Nunca me disseste que te tinhas magoado na cabeça!
- E foi a úlcera. Mas isto não a melhorou em nada. Falou directamente para Dalgliesh:
- O senhor deve ser o inspector-chefe Dalgliesh, da New Scotland Yard. Miss Gearing disse-me que queria falar comigo. vou ao meu médico de clínica geral, mas estou à sua disposição durante meia hora.
Porém, a enfermeira Gearing não se deixava afastar dos seus cuidados.
- Mas não me disseste nada acerca de um acidente! Como foi isso? Por que não me contaste nada quando te telefonei?
- Porque tínhamos outras coisas para discutir e porque não queria que te afligisses.
Sacudiu o braço dela que o retinha e sentou-se numa cadeira de verga. As duas mulheres e Dalgliesh acercaram-se mais dele. Houve um silêncio. Dalgliesh reconsiderou as suas noções irrazoavelmente preconcebidas acerca do amante de Miss Gearing. Deveria ter um ar ridículo, ali sentado com a gabardina de má qualidade, o olho vendado e a cara esfolada e a falar com aquela áspera voz sarcástica. Mas exercia, curiosamente, uma certa impressão. A enfermeira Rolfe tinha de certo modo transmitido a noção de um homem pequeno, nervoso, incapaz e facilmente intimidado. Aquele homem tinha força. Podia não passar da manifestação de energia nervosa reprimida; podia ser o obsessivo ressentimento filho do falhanço ou da impopularidade. Porém, a sua personalidade não era confortável nem negligível.
- Quando foi que soube que a Josephine Fallon tinha morrido ? - perguntou Dalgliesh.
- Quando telefonei para o meu gabinete da farmácia logo às nove e meia, esta manhã, a dizer que não vinha trabalhar. Foi o meu ajudante que me disse. Suponho que nessa altura já todo o hospital sabia.
- Como reagiu à notícia?
- Reagir? Não reagi. Mal conhecia a rapariga. Fiquei surpreendido, acho eu. Duas mortes na mesma casa e tão próximas no tempo uma da outra; bem, para não dizer mais, é invulgar. Aliás, é chocante. Pode-se dizer que fiquei chocado.
Falava como um político bem sucedido condescendendo em expressar uma opinião imputável a um repórter inexperiente.
- Mas não ligou as mortes uma à outra?
- Na altura, não. O meu ajudante limitou-se a dizer que outra Nightingale (chamamos Nightingales às estagiárias quando estão na escola) que outra estagiária da Nightingale, a Jo Fallon, tinha sido encontrada morta. Perguntei-lhe como e ele referiu-se a qualquer coisa como um ataque cardíaco na sequência da gripe. Pensei que se tratasse de morte natural. Imagino que inicialmente foi o que toda a gente pensou.
- Quando foi que passou a pensar de modo diferente?
- Creio que foi quando Miss Gearing me telefonou cerca de uma hora depois a dizer que o senhor estava cá.
Portanto a enfermeira Gearing tinha telefonado a Morris para casa deste. Devia querer apanhá-lo com urgência, para ter corrido esse risco. Seria porventura para o alertar, para arranjarem versões coincidentes? Enquanto Dalgliesh perguntava a si próprio que desculpa, se houvera alguma, ela teria dado a Mrs. Morris, o farmacêutico respondeu à pergunta tácita.
- Miss Gearing não costuma telefonar-me para casa. Sabe que eu gosto de manter uma separação completa entre a vida privada e a vida profissional. Mas ficou naturalmente preocupada com a minha saúde quando telefonou depois do pequeno-almoço para o laboratório e lhe disseram que eu não estava. Sofro de uma úlcera do duodeno.
- A sua mulher seria sem dúvida capaz de a tranquilizar.
Ele respondeu calmamente, mas com um olhar penetrante na direcção da enfermeira Rolfe, que tinha passado para a periferia do grupo:
- Às sextas-feiras, a minha mulher leva as crianças a casa da mãe durante todo o dia.
Coisa que Mavis Gearing sem dúvida sabia. Assim, no fim de contas, tinham tido ocasião de conversarem um com o outro, de decidirem as respectivas versões. Mas, se estavam a forjar um álibi, porquê arranjá-lo para a meia-noite? Porque sabiam, pela melhor ou pior das razões, que a Fallon tinha morrido a essa hora? Ou porque, conhecendo os seus hábitos, estimavam que a meia-noite fosse a hora mais provável? Só o assassino, e talvez nem ele, poderia saber com precisão a que horas tinha morrido a Fallon. Podia ter sido antes da meia-noite. Podia ter sido tão tarde como às duas e meia. Nem Miles Honeyman, com os seus trinta anos de experiência, seria capaz de estabelecer rigorosamente a hora da morte unicamente com base em indícios clínicos. A única coisa certa era que a Fallon estava morta e que tinha morrido quase imediatamente após ter bebido o uísque. Mas quando fora isso exactamente? Era seu costume habitual preparar a bebida da noite assim que subia ao andar de cima para se deitar. Mas ninguém admitia tê-la visto depois de ter saído da sala de estar das estagiárias. Havia a mera possibilidade de a Fallon estar viva quando a enfermeira Brumfett e as gémeas Burt tinham visto luz através do buraco da fechadura do quarto dela, pouco depois das duas da manhã. E, se estava viva nesse momento, que fizera ela entre a meia-noite e as duas da manhã? Dalgliesh concentrara-se até então nas pessoas que tinham acesso à escola. Mas suponhamos que a Fallon tinha saído da Nightingale House nessa noite, talvez para comparecer a uma entrevista amorosa. Ou suponhamos que tinha retardado a preparação da sua bebida nocturna de uísque e limão devido a estar à espera de um visitante. Na manhã seguinte, tanto a porta da frente como a das traseiras da Nightingale House tinham sido encontradas fechadas à chave, mas a Fallon podia ter franqueado a saída ao visitante a qualquer hora da noite, voltando a fechar a porta após a sua partida.
Porém, Mavis Gearing estava ainda preocupada com a cabeça magoada e a cara esfolada do amante.
- Que foi que te aconteceu, Len? Tens de me dizer. Caíste da bicicleta?
A enfermeira Rolfe riu-se indelicadamente. Leonard Morris brindou-a com um comedido olhar de desprezo intimidatório e a seguir voltou-se para a enfermeira Gearing.
- Se queres efectivamente saber, Mavis, caí mesmo. Foi depois de te ter deixado ontem à noite. Um dos grandes ulmeiros estava tombado no caminho e fui embater direito a ele.
A enfermeira Rolfe falou pela primeira vez.
- Mas com certeza que o havia de ver à luz do farol da bicicleta, não?
- O farol da minha bicicleta, enfermeira, está ajustado como seria de esperar para iluminar a estrada. Eu vi o tronco de árvore. O que não vi a tempo foi um dos galhos salientes. Tive muita sorte em não ficar sem uma vista.
A enfermeira Gearing, previsivelmente, soltou um ganido angustiado.
- A que horas aconteceu isso? - perguntou Dalgliesh.
- Ainda agora disse. Ontem à noite depois de ter saído da Nightingale House. Ah, estou a perceber! Quer saber precisamente a que horas? Por acaso posso responder a isso. Com o choque, caí da bicicleta e receei que o relógio se tivesse avariado. Felizmente, não. Os ponteiros marcavam precisamente meia-noite e dezassete.
- Não havia nenhuma indicação... um lenço de pescoço branco... atado ao ramo?
- Claro que não, senhor inspector. Se houvesse, decerto eu não teria ido direito a ele.
- Se estivesse amarrado a uma altura muito elevada num galho, podia não ter reparado.
- Não estava lá para alguém poder reparar. Depois de ter apanhado a bicicleta e de estar um tanto ou quanto recomposto do abalo, examinei cuidadosamente a árvore. A minha primeira ideia foi que talvez a pudesse deslocar pelo menos ligeiramente e deixar parte do caminho livre. Verifiquei que era obviamente impossível. A tarefa exigiria um tractor e um guincho. Mas não havia lenço nenhum em qualquer parte da árvore à meia-noite e dezassete.
- Mr. Morris - disse Dalgliesh -, acho que é tempo de termos uma pequena conversa.
Mas a enfermeira Brumfett esperava-o no exterior da sala das entrevistas. Antes que Dalgliesh pudesse falar, disse acusadoramente:
- Fui convocada para vir falar consigo a esta sala. Vim prontamente e com certo prejuízo para a minha enfermaria. Quando aqui cheguei, disseram-me que o senhor não se encontrava no quarto e pediram-me o favor de descer à estufa. Não tenciono andar atrás de si por toda a Nightingale House. Se quer falar comigo, posso dispensar-lhe meia hora neste momento.
- Miss Brumfett - disse Dalgliesh -, parece apostada, pelo seu comportamento, em dar-me a impressão de que matou aquelas raparigas. Pode ser que o tenha feito. Chegarei a uma conclusão a esse respeito tão depressa quanto me seja razoavelmente possível. Até lá, peço-lhe o favor de refrear o seu entusiasmo em hostilizar a Polícia e esperar até eu poder falar consigo, o que acontecerá quando acabar de conversar com Mr. Morris. Pode esperar aqui à porta do gabinete ou ir para o seu quarto, conforme queira. Mas vou precisar de si dentro de uma meia hora e tão-pouco eu faço tenção de andar a correr a casa toda à sua procura.
Não fazia ideia da maneira como ela acolheria esta admoestação. A reacção dela foi surpreendente. Os olhos por detrás dos grossos óculos suavizaram-se e piscaram. O rosto dela abriu-se num sorriso momentâneo e endereçou-lhe um pequeno aceno satisfeito como se tivesse finalmente conseguido provocar uma estagiária particularmente dócil ao ponto de a fazer mostrar uma centelha de génio.
- Espero aqui - e deixou-se cair na cadeira à porta do gabinete, fazendo depois um gesto com a cabeça na direcção de Morris.
- E, se eu fosse a si, não o deixava fazer todas as despesas da conversa, caso contrário só com muita sorte é que se despacha em meia hora.
Porém, a entrevista durou menos de trinta minutos. O primeiro par deles foi gasto por Morris a pôr-se à vontade. Tirou a gabardina coçada, sacudindo-a e alisando os vincos como se ela tivesse ficado de algum modo contaminada na Nightingale House, após o que a dobrou com exagerada precisão sobre as costas da cadeira. A seguir sentou-se diante de Dalgliesh e tomou a iniciativa.
- Peço-lhe o favor de não disparar perguntas, senhor inspector. Não gosto de ser interrogado. Prefiro contar a minha história cá à minha maneira. Não tem de se preocupar com a questão do rigor. Se eu não tivesse cabeça para os pormenores e uma boa memória para os factos, não seria farmacêutico-chefe de um hospital importante.
Dalgliesh disse com suavidade:
- Nesse caso, pode fazer o favor de me fornecer alguns factos, começando talvez pelos seus movimentos ontem à noite.
Morris continuou como se não tivesse ouvido este pedido eminentemente razoável.
- Miss Gearing concede-me desde há seis anos o privilégio da sua amizade. Não tenho dúvidas de que certas pessoas de cá, certas mulheres que vivem na Nightingale House, dão a sua própria interpretação a essa amizade. Outra coisa não é de esperar. Quando se apanha uma comunidade de solteironas de meia-idade vivendo juntas, está-se sujeito ao aparecimento do ciúme sexual.
- Mr. Morris - disse suavemente Dalgliesh. - Não estou aqui para investigar as suas relações com Miss Gearing nem as dela com as colegas. Se essas relações têm alguma coisa a ver com as mortes daquelas duas raparigas, fale-me delas. Se não, deixemos de parte a psicologia de amador e cinjamo-nos aos factos materiais.
- As minhas relações com Miss Gearing têm implicações com a sua investigação na medida em que me trouxeram a esta casa por volta das ocasiões em que a estagiária Pearce e a estagiária Fallon morreram.
- Muito bem. Nesse caso, fale-me dessas duas ocasiões.
- A primeira foi a manhã em que a estagiária Pearce morreu. O senhor conhece, evidentemente, os pormenores. Claro que comuniquei a minha visita ao inspector Bailey, uma vez que ele tinha mandado afixar um aviso em todos os quadros de afixação do hospital pedindo os nomes das pessoas que tinham ido à Nightingale House na manhã em que a estagiária Pearce morreu. Mas não ponho qualquer objecção a repetir a informação. Vim pelo caminho para a farmácia para deixar uma mensagem a Miss Gearing. Era, aliás, um cartão, um daqueles cartões de ”felicidades” que é habitual mandar às pessoas amigas antes de qualquer acontecimento importante. Sabia que Miss Gearing teria de se encarregar da primeira aula prática do dia, aliás, a primeira aula prática desta escola, visto a enfermeira Manning, que é a primeira adjunta de Miss Rolfe, estar doente com gripe. Miss Gearing estava naturalmente nervosa, particularmente na medida em que estaria presente a inspectora do Conselho Geral de Enfermagem. Infelizmente deixei passar o correio da tarde anterior. Fazia muito empenho em que ela recebesse o meu cartão antes de ir para a aula prática, de modo que decidi enfiá-lo eu próprio no receptáculo dela. Vim para o trabalho anormalmente cedo, cheguei à Nightingale House pouco passava das oito e saí de lá logo a seguir. Não vi ninguém. Presumo que o pessoal e as estagiárias estivessem a tomar o pequeno-almoço. Evidentemente que não entrei foi na sala de aulas práticas. Não estava particularmente interessado em atrair as atenções sobre mim. Limitei-me a enfiar o cartão, dentro do respectivo envelope, no receptáculo de Miss Gearing e retirei-me. Era um cartão bastante bem apanhado. Representava dois piscos, o macho a escrever a palavra ”felicidades”, com vermes aos pés da fêmea. É muito provável que Miss Gearing tenha guardado o cartão; tem um fraquinho por essas insignificâncias. Não tenho dúvidas de que, se lhe pedir, ela lho mostrará. Serviria de confirmação à minha história do que estava a fazer na Nightingale House.
Dalgliesh observou com seriedade:
-Já vi o cartão. Sabia sobre que seria a aula prática?
- Sabia que era sobre alimentação por intubação intragástrica, mas não sabia que a estagiária Fallon tinha adoecido durante a noite, nem quem ia fazer o papel de doente.
- Tem alguma ideia sobre a maneira como o veneno corrosivo pode ter ido parar ao recipiente do alimento?
- Gostaria que me deixasse seguir o meu próprio andamento. Já lá ia chegar. Não, não tenho nenhuma. A explicação mais provável é que alguém estava a pregar uma partida estúpida e não se apercebeu de que o resultado seria fatal. Ou isso, ou um acidente. Há antecedentes. Ainda há três anos um recém-nascido morreu na ala da maternidade de um hospital (nenhum dos nossos, felizmente) em consequência de se ter confundido uma garrafa de desinfectante com uma de leite. Não posso explicar como o acidente aqui possa ter ocorrido ou quem na Nightingale House pudesse ser tão ignorante e tão estúpido que pensasse que o resultado de adicionar um veneno corrosivo ao leite para alimentação divertisse alguém.
Fez uma pausa, como que desafiando Dalgliesh a interrompê-lo com outra pergunta. Deparando apenas com um brando olhar interrogativo, prosseguiu:
- Sobre a morte da estagiária Pearce, é tudo. Quanto a isso, não posso ajudá-lo mais. No tocante à estagiária Fallon, é uma questão inteiramente diferente.
- Alguma coisa que aconteceu ontem à noite? Alguém que viu?
A irritação soltou-se bruscamente:
- Nada que se relacione com ontem à noite, senhor inspector, Miss Gearing já lhe disse o que havia a dizer sobre ontem à noite. Não vimos ninguém. Saímos do quarto dela logo a seguir à meia-noite e descemos pela escada das traseiras, pelo apartamento de Miss Taylor. Recolhi a minha bicicleta dos arbustos nas traseiras da casa (não vejo razão para que as minhas visitas sejam publicitadas entre todas as mulheres mal-intencionadas das redondezas) e caminhámos juntos até à primeira curva do caminho. Aí parámos a conversar, vim acompanhar Miss Gearing novamente à Nightingale House e vi-a entrar pela porta das traseiras. Tinha-a deixado aberta. Finalmente pus-me a caminho e, conforme lhe disse, cheguei ao ulmeiro tombado à meia-noite e dezassete. Se alguém passou por aquele caminho depois de mim e prendeu um lenço branco a um ramo, a única coisa que posso dizer é que não o vi. Se veio de automóvel, deve tê-lo deixado estacionado do outro lado da Nightingale House. Não vi carro nenhum.
Nova pausa. Dalgliesh não fez qualquer sinal, mas Masterson permitiu-se um suspiro de fatigada resignação ao mesmo tempo que passava, com um restolhar, uma folha do seu bloco de apontamentos.
- Não, senhor inspector, o acontecimento que vou relatar deu-se na Primavera passada, quando o actual grupo de alunas, incluindo a estagiária Fallon, estava no segundo ano do estágio. Como era habitual, dei a minha palestra sobre venenos. Quando acabei a exposição, todas as alunas menos a Fallon recolheram os livros e saíram. Ela veio até à minha secretária e pediu-me o nome de um veneno que matasse sem dor e instantaneamente e ao qual uma pessoa vulgar pudesse ter acesso. Pareceu-me uma pergunta fora do vulgar, mas não vi razão para me recusar a responder-lhe. Não me ocorreu nem por um instante que a pergunta tivesse qualquer aplicação pessoal e, em qualquer caso, tratava-se de um dado que ela poderia obter em qualquer livro da biblioteca do hospital sobre fármacos ou medicina legal.
- E que lhe disse exactamente, Mr. Morris? - perguntou Dalgliesh.
- Disse-lhe que um desses venenos era a nicotina e que podia obter-se em qualquer pulverizador de roseiras.
Verdade ou mentira? Quem poderia adivinhá-lo? Dalgliesh supunha-se normalmente capaz de detectar uma mentira em qualquer suspeito; mas naquele suspeito, não. E, se Morris insistisse na sua versão, como poderia alguma vez demonstrar a sua falsidade? Por outro lado, se fosse mentira, o seu objectivo era claro: sugerir que Josephine Fallon se suicidara. E a razão evidente que ela teria para fazer tal coisa era proteger a enfermeira Gearing. Amava-a. Este homem um tanto ridículo e pedante e aquela mulher tonta, namoriscadora e a caminho de velha... amavam-se. E por que não? O amor não era prerrogativa de gente jovem e desejável. Era, porém, uma complicação em qualquer investigação - lamentável, trágica ou caricata, consoante o caso, mas nunca de desprezar. O inspector Bailey, conforme sabia pelos apontamentos sobre o primeiro crime, nunca acreditara completamente na história do cartão de felicidades. Na sua opinião, tratava-se de um gesto disparatado e infantil para um adulto, e particularmente discrepante em relação ao temperamento de Morris; portanto desconfiava dele. Dalgliesh, contudo, pensava de modo diverso. Aquilo condizia com as solitárias e pouco românticas deslocações de bicicleta de Morris para ir ver a amante; com o velocípede ignominiosamente oculto entre os arbustos nas traseiras da Nightingale House; com o lento passeio a dois em pleno frio da meia-noite de Janeiro para prolongar aqueles últimos minutos preciosos; com a sua desajeitada mas entranhamente digna defesa da mulher que amava. E esta última declaração, verdadeira ou não, era, quanto mais não fosse, incómoda. Se ele a sustentasse, seria um poderoso argumento para os que preferiam acreditar que a Fallon tinha morrido por suas próprias mãos. E ele sustentá-la-ia. Olhou para Dalgliesh, agora com a expressão inflexível e inflamada de um mártir em perspectiva, sustentando o olhar do adversário, desafiando-o a duvidar. Dalgliesh suspirou.
- Muito bem - disse. - Não percamos tempo com especulações. Vamos analisar novamente o horário dos seus movimentos ontem à noite.
A enfermeira Brumfett, fiel à sua promessa, aguardava à porta quando Masterson acompanhou Leonard Morris à saída. Todavia, a sua anterior disposição de jovial aquiescência tinha desaparecido e instalou-se na cadeira diante de Dalgliesh como se fosse travar uma batalha. Diante daquele matriarcal olhar fixo, ele sentiu algo da insegurança de uma jovem aluna de enfermagem acabada de chegar à enfermaria particular; e qualquer coisa mais forte e horrivelmente familiar. O seu espírito seguiu certeiramente aquele temor surpreendente até à origem. Era daquele mesmo modo que a directora da escola primária o tinha encarado outrora, provocando no miúdo de oito anos cheio de saudades de casa a mesma insegurança, o mesmo temor. E por um segundo teve de fazer um esforço para sustentar o olhar dela.
Era a primeira oportunidade que tinha de a observar detidamente e a sós. Tratava-se de um rosto sem atractivos e, apesar disso, vulgar. Os pequenos olhos astutos olhavam fixamente os seus através de óculos de aço, de ponte meio embutida na funda depressão carnuda por sobre o nariz mosqueado. Usava o cabelo cinzento de aço cortado curto, emoldurando em ondas caneladas as faces rechonchudas e marsupiais e a obstinada linha do maxilar. A elegante touca plissada que em Mavis Gearing parecia tão delicada como um merengue de açúcar rendilhado e que favorecia os traços andróginos de Hilda Rolfe, caía sobre as sobrancelhas da enfermeira Brumfett como uma cercadura de tarte à volta de uma crosta particularmente pouco apetecível. Retirando-lhe aquele símbolo de autoridade e substituindo-o por um vulgar chapéu de feltro e tapando a farda com um casaco fulvo sem formas, ter-se-ia o protótipo da dona de casa suburbana de meia-idade, correndo o supermercado, de mala informe na mão e olhos atentos ao artigo da semana em promoção. No entanto, aparentemente, tratava-se de uma das melhores chefes de enfermaria que o John Carpendar alguma vez tivera. Tratava-se, o que era mais surpreendente, da amiga directa de Mary Taylor.
Antes que ele pudesse começar a interrogá-la, disse:
- A estagiária Fallon suicidou-se. Primeiro matou a Pearce e depois matou-se. A Fallon assassinou a Pearce. Por acaso sei que o fez. Portanto, porque não pára de aborrecer a superintendente e não deixa prosseguir o trabalho do hospital? Já não pode fazer nada para ajudar nenhuma delas. Estão ambas mortas.
Pronunciada naquele tom autoritário e desconcertantemente evocativo, a declaração tinha a força de uma ordem. A resposta de Dalgliesh foi irrazoavelmente cortante. Diabos levassem a mulher! Não se deixaria intimidar por ela.
- Se tem a certeza disso, deve possuir alguma prova. E o que quer que saiba deve ser dito. Estou a investigar um assassínio, enfermeira, e não o roubo de uma arrastadeira. A senhora tem o dever de não ocultar provas.
Ela riu-se: um silvo penetrante e irónico como a tosse de um animal.
- Prova! O senhor não lhe chamaria prova. Mas eu sei!
- A estagiária Fallon falou consigo enquanto estava a ser assistida na sua enfermaria? Entrou em delírio?
Não passava de uma suposição. Ela fungou zombeteiramente.
- Se tivesse entrado, não seria minha obrigação contar-lho. Aquilo que um doente deixa escapar durante o delírio não é coisa para se andar a espalhar aos quatro ventos. Pelo menos na minha enfermaria. E tão-pouco constitui prova. Limite-se a aceitar o que lhe digo e deixe de se afligir. A Fallon matou a Pearce. Por que razão pensa que ela tenha regressado à Nightingale House naquela manhã, com quarenta graus de febre? Por que razão pensa que ela se recusou a fornecer uma razão à Polícia? A Fallon matou a Pearce. Vocês, os homens, gostam imenso de complicar as coisas. Mas na realidade é tudo bem simples. A Fallon matou a Pearce, e não há dúvida de que tinha as suas razões.
- Não há razões válidas para assassinar alguém. E, mesmo que a Fallon tenha mesmo matado a Pearce, duvido que se tenha suicidado. Não tenho dúvidas de que as suas colegas lhe falaram no pulverizador das roseiras. Lembre-se de que a Fallon não tinha estado na Nightingale House desde que aquela lata de nicotina estava no armário da estufa. O grupo dela não esteve na Nightingale House desde a Primavera do ano passado e a enfermeira Gearing comprou o pulverizador das roseiras no Verão. A estagiária Fallon adoeceu na noite em que esse período escolar começou e só voltou à Nightingale House na noite anterior a morrer. Como explica o facto de ela saber onde ir buscar a nicotina?
A enfermeira Brumfett pareceu surpreendentemente imperturbada. Houve um momento de silêncio e a seguir murmurou qualquer coisa ininteligível. Dalgliesh aguardou. A seguir, ela disse defensivamente:
- Não sei como foi que ela lhe deitou a mão. Cabe-lhe a si descobri-lo. Mas é óbvio que o fez.
- A senhora sabia onde a nicotina tinha sido arrumada?
- Não. Não tenho nada a ver com o jardim nem com a estufa. Nos dias de folga gosto de sair do hospital. Normalmente jogo golfe com a superintendente ou vamos dar um passeio de carro. Tentamos fazer coincidir as folgas.
O seu tom era inchado de satisfação. Não fazia qualquer tentativa para ocultar a complacência. Que estaria ela a querer transmitir? - interrogou-se Dalgliesh. Seria aquela referência à superintendente a sua maneira de lhe dizer que era a menina bonita da professora, que devia ser tratada com deferência?
- Não estava na estufa nessa tarde, no Verão passado, em que Miss Gearing trouxe o produto? - perguntou.
- Não me lembro.
- Acho que o melhor é tentar lembrar-se, enfermeira. Não deve ser difícil. Há outras pessoas que se lembram perfeitamente.
- Se dizem que eu estava lá, é provável que estivesse.
- Miss Gearing diz que mostrou a garrafa a todas vós e que fez uma observação irónica acerca do facto de ter a possibilidade de envenenar a escola inteira apenas com algumas gotas. A senhora disse-lhe que não fosse infantil e que se certificasse de que a lata ficava bem fechada. Já se lembra?
- É o tipo de observação tola que a Mavis Gearing faria, e estou em crer que lhe disse para ter cuidado. É pena ela não me ter dado ouvidos.
- Encara estas mortes com muita calma, enfermeira.
- Encaro todas as mortes com muita calma. Se assim não fosse, não poderia desempenhar o meu trabalho. Num hospital a morte está sempre a acontecer. Está provavelmente a acontecer neste momento na minha enfermaria, como aconteceu esta manhã a um dos meus doentes!
Falou num tom de súbito e apaixonado protesto, empertigando-se como que escandalizada por o dedo da morte poder tocar alguém confiado à sua responsabilidade. Dalgliesh achou desconcertante a mudança súbita de estado de espírito. Era como se aquele corpo compacto e isento de atractivos alojasse o temperamento de uma prima donna1, apaixonado e irracional. Até então, os olhos, miúdos e insignificantes por detrás das grossas lentes, cruzavam-se com os dele com uma expressão de monótono ressentimento, enquanto a pequena boca obstinada ia soltando as suas queixas. E nessa altura, repentinamente, deu-se aquela metamorfose. Fitava-o, coruscante, com o rosto de tal modo afogueado de indignação que se animou ferozmente. Ele teve uma breve visão daquele amor ardente e possessivo com que ela rodeava quem estivesse confiado aos seus cuidados. Eis uma mulher, exteriormente insignificante, que tinha consagrado toda a sua vida a um único objectivo com tremenda determinação. Se algo - ou alguém - se interpusesse no caminho daquilo que ela considerava o maior bem, até onde poderia levá-la essa determinação? Parecia a Dalgliesh uma mulher fundamentalmente pouco inteligente. Mas o assassínio era muitas vezes o último recurso
dos pouco inteligentes. E seriam aqueles assassínios, apesar de toda a sua complexidade, obra de uma mulher arguta? Um frasco de desinfectante rapidamente agarrado; uma lata de nicotina à mão. Não denunciariam ambas as mortes um súbito impulso descontrolado, uma impensada confiança nos meios mais fáceis? Decerto haveria num hospital métodos mais subtis de uma pessoa se desembaraçar de outra.
Os olhos astutos fitavam-no com vigilante desagrado. Todo o interrogatório era para ela uma ofensa. Qualquer tentativa de conquistar as boas graças de semelhante testemunha estava condenada ao malogro, e ele não tinha ganas de a empreender.
- Quero passar em revista os seus movimentos na manhã em que a estagiária Pearce morreu, e na noite passada - disse ele.
- Quanto à manhã em que a Pearce morreu, já disse tudo ao inspector Bailey. E mandei-lhe um texto escrito a si.
- Eu sei. Obrigado por ter-mo mandado. Agora quero que a senhora mo relate de viva voz.
Ela não emitiu mais protestos, mas relatou a sequência dos seus movimentos e acções como se fosse um horário de comboios.
A descrição dos seus movimentos na manhã da morte da Heather Pearce condizia quase exactamente com o depoimento escrito que tinha já fornecido ao inspector Bailey. Descreveu apenas as suas acções, sem adiantar teorias ou fornecer opiniões. Após aquela primeira explosão reveladora, resolvera aparentemente cingir-se aos factos.
Tinha acordado às seis e meia na segunda-feira, 12 de Janeiro, após o que se juntara à superintendente para o chá da manhã, que habitualmente tomavam juntas no apartamento de Miss Taylor. Tinha deixado a superintendente às sete e um quarto e a seguir fora tomar banho e vestir-se. Tinha ficado no quarto até perto das oito menos dez, altura em que recolhera o seu jornal do cacifo respectivo no átrio e fora tomar o pequeno-almoço. Não tinha visto ninguém nas escadas nem no átrio. A enfermeira Gearing e a enfermeira Rolfe tinham-se-lhe juntado no refeitório, tomando o pequeno-almoço na sua companhia. Fora a primeira a terminar o pequeno-almoço e a sair do refeitório; não sabia dizer exactamente quando, mas provavelmente não fora depois das oito e vinte; regressara à sua sala de estar no terceiro piso e depois encaminhara-se para o hospital, onde chegara à sua enfermaria pouco após as nove horas. Tivera conhecimento da inspecção do Conselho Geral de Enfermagem, dado que, evidentemente, a superintendente lhe falara dele. Tivera conhecimento da aula prática, dado que os pormenores do programa do curso das estagiárias estavam afixados no quadro do átrio. Tivera conhecimento da doença de Josephine Fallon, dado que a enfermeira Rolfe lhe telefonara durante a noite. Contudo, não tivera conhecimento de que a estagiária Pearce iria tomar o lugar da Fallon. Reconheceu que poderia tê-lo sabido facilmente, deitando uma olhadela ao quadro de afixação dos avisos, mas não se dera ao trabalho de o consultar. Ter um certo interesse pelo programa geral do curso das estagiárias era uma coisa; dar-se ao incómodo de verificar quem iria desempenhar o papel de doente, outra muito diferente.
Não tivera conhecimento de que a estagiária Fallon tinha voltado à Nightingale House nessa manhã. Se tivesse, teria repreendido severamente a rapariga. Quando chegara à enfermaria, a estagiária Fallon estava no seu quarto, deitada. Ninguém na enfermaria tinha dado pela sua ausência. Aparentemente a encarregada da enfermaria pensara que ela estivesse na casa de banho ou nos sanitários. Era censurável o facto de a encarregada não ter verificado, mas a enfermaria tinha registado um movimento particularmente intenso e não seria de esperar que algum doente, especialmente tratando-se de uma estagiária de enfermagem, se comportasse como uma idiota. Provavelmente a estagiária Fallon não teria abandonado a enfermaria por mais do que vinte minutos. Aparentemente, o passeio em plena escuridão da manhã não lhe fizera mal. Restabelecera-se rapidamente da gripe e não houvera complicações. Não parecera particularmente deprimida enquanto estivera na enfermaria e, se havia alguma coisa que a preocupava, não se abrira com a enfermeira Brumfett. Na opinião da enfermeira Brumfett, a rapariga estava suficientemente bem, ao ter alta da enfermaria, para se juntar novamente ao seu grupo na Nightingale House.
A seguir, passou em revista os seus movimentos na noite anterior, na mesma voz descolorida e falha de empatia. A superintendente encontrava-se em Amsterdão na Conferência Internacional, de modo que passara o serão sozinha a ver televisão na sala de estar das enfermeiras. Fora para a cama às dez da noite e tinha sido acordada por volta da meia-noite menos um quarto pelo telefonema de Mr. Courtney-Briggs. Tinha-se dirigido ao hospital através de um atalho pelo meio das árvores e ajudara a estagiária de turno a preparar a cama para o regresso do doente. Mantivera-se junto do doente até considerar que o oxigénio e o soro estavam a ser satisfatoriamente administrados e que o seu estado geral era tão bom como se poderia esperar. Regressara à Nightingale House pouco depois das duas da manhã e, no caminho para o quarto, tinha visto Maureen Burt a sair dos sanitários. A outra gémea tinha surgido quase de imediato e ela havia tido uma breve conversa com ambas. Declinara a oferta delas no sentido de lhe prepararem cacau e fora direita ao quarto. Sim, nessa ocasião via-se luz através do buraco da fechadura do quarto da Fallon. Não tinha entrado no quarto da Fallon e não tinha maneira de saber se a rapariga se encontrava viva ou morta. Dormira bem e acordara mal passava das sete horas, quando a enfermeira Rolfe correra a dar-lhe a notícia de que tinham encontrado o corpo da Fallon. Não tinha voltado a ver a Fallon desde que a rapariga tinha tido alta da sua enfermaria na terça-feira a seguir ao jantar.
No final do relato houve um silêncio, após o qual Dalgliesh perguntou:
- Gostava da estagiária Pearce, enfermeira? Ou da estagiária Fallon?
- Não. Nem tão-pouco desgostava delas. Não sou a favor de se terem relações pessoais com as estagiárias. O gostar e o desgostar não vêm ao caso. Ou são boas enfermeiras ou não.
- E eram boas enfermeiras?
- A Fallon era melhor que a Pearce. Tinha mais inteligência e mais imaginação. Não era uma colega fácil, mas os doentes gostavam dela. Havia pessoas que a achavam insensível, mas não se encontrava um doente que dissesse isso. A Pearce esforçava-se demasiado. Aplicava-se como uma jovem Florence Nightingale, ou assim pensava. Sempre a pensar na impressão que causava. Fundamentalmente uma rapariga pateta. Mas podia-se confiar nela. Fazia sempre o que era correcto. A Fallon fazia o que estava bem. Para isso é preciso ao mesmo tempo instinto e aprendizagem. Espere até estar a morrer, meu caro. Nessa altura saberá a diferença.
Portanto, Josephine Fallon era inteligente e imaginativa. Não lhe custava acreditar. Mas tratava-se das duas últimas qualidades que esperaria ver a enfermeira Brumfett louvar. Recordou a conversa da hora de almoço, a insistência dela na necessidade de obediência incondicional. Cuidadosamente, disse:
- Estou admirado por contar a imaginação entre as virtudes de uma estagiária de enfermagem. Julguei que colocava a obediência absoluta acima de tudo. É difícil conciliar a imaginação, que é indubitavelmente individual, até mesmo iconoclasta, com a submissão à autoridade dos bons subordinados. Lamento se pareço presunçoso. Bem sei que esta conversa não tem muito a ver com a minha missão aqui. Mas sou curioso.
Tinha muito a ver com a sua missão ali; a sua curiosidade não era irrelevante. Mas ela não tinha necessidade de saber isso.
- A obediência à autoridade legítima está em primeiro lugar disse ela rudemente. - O senhor tem uma profissão disciplinada; não devia ser preciso que lho dissessem. Só quando a obediência é automática, quando a disciplina é aceite e mesmo bem acolhida, é que a pessoa aprende a sabedoria e a coragem, que podem infringir as normas em segurança quando chega a ocasião. Na enfermagem, a imaginação e a inteligência são perigosas se não se alicerçarem na disciplina.
Portanto, ela não era tão simplória nem tão obstinadamente conformista como parecia, ou pretendia parecer, às colegas. E também ela possuía imaginação. Perguntou a si próprio se seria aquela a Brumfett que Mary Taylor conhecia e apreciava. E contudo estava convencido de que as suas primeiras impressões não estavam erradas. Fundamentalmente, não era uma mulher inteligente. Não estaria ela, mesmo neste momento, a debitar a teoria, talvez palavra por palavra, de outrem? ”A sabedoria e a coragem de infringir as normas.” Pois bem, havia alguém na Nightingale House que as tinha infringido, a alguém não faltara a coragem. Olharam um para o outro. Ele começava a interrogar-se se a Nightingale House não teria lançado qualquer feitiço sobre a sua pessoa, se a sua atmosfera ameaçadora não teria começado a influenciar-lhe o julgamento. Isto porque, por detrás dos grossos óculos, pensou ver os olhos alterarem-se, julgou detectar uma ânsia de comunicar, de ser compreendida, até mesmo um pedido de ajuda. E logo a ilusão passou. Deparava-se-lhe novamente o mais vulgar, mais inflexível e menos complexo de todos os suspeitos. E a entrevista tinha chegado ao fim.
Passava já das nove horas, mas Dalgliesh e Masterson estavam ainda os dois no gabinete. Tinham, pelo menos, um par de horas de trabalho pela frente antes de poderem dar por findas as tarefas desse dia, para verificar e comparar depoimentos, procurar a discrepância reveladora, planear as actividades do dia seguinte. Dalgliesh resolveu deixar Masterson continuar o trabalho e, marcando o número do telefone interno do apartamento da superintendente, perguntou se ela lhe poderia dispensar vinte minutos. Razões simultaneamente de política e de cortesia determinavam que a mantivesse informada, mas havia outro motivo para falar com ela antes de deixar a Nightingale House.
Ela deixara a porta do apartamento aberta e ele atravessou o corredor directamente até à sala de estar, bateu à porta e entrou. Deparou-se-lhe tranquilidade, sossego e luz. E frescura. O compartimento estava estranhamente gélido. Um fogo vivo ardia na lareira, mas o seu calor chegava com dificuldade aos cantos mais remotos da sala. Ao dirigir-se ao encontro dela, viu que se encontrava adequadamente vestida, com as compridas pernas cobertas por umas calças de veludo castanho encimadas por uma camisola de gola alta de cachemira de cor fulva-clara, de mangas arregaçadas dos pulsos frágeis. Enrolado ao pescoço tinha um lenço de seda verde-vivo.
Sentaram-se ambos no sofá. Dalgliesh viu que ela tinha estado a trabalhar. Havia uma pasta aberta encostada à perna da mesa de café e uma série de papéis espalhados no tampo desta. Sobre a pedra da lareira encontrava-se uma cafeteira, e o quarto estava impregnado do cheiro reconfortante de lenha quente e café.
Ela ofereceu-lhe café ou uísque; nada mais. Ele aceitou o café e ela levantou-se para ir buscar uma segunda chávena. Depois de ela regressar e lhe servir o café, ele disse:
- Creio que já lhe terão dito que encontrámos o veneno.
- Sim. A Gearing e a Rolfe vieram ambas falar comigo depois de o senhor ter acabado de as interrogar. Suponho que isso quer dizer que deve tratar-se de assassínio, não?
- Penso que sim, a menos que tenha sido a própria estagiária Fallon que tenha escondido a lata. Mas isso parece de algum modo improvável. Fazer um mistério deliberado do suicídio, com o objectivo de provocar um máximo de complicações, seria atitude de uma exibicionista ou neurótica. A rapariga não parecia ser uma coisa nem outra, mas quis saber a sua opinião.
- Concordo consigo. Eu diria que a Fallon era essencialmente uma pessoa racional. Se resolvesse matar-se seria por razões que na altura lhe pareciam boas, e eu esperaria que ela deixasse uma mensagem, breve mas lúcida, a explicá-las. Há muitos suicidas que se matam para causar complicações a outrem. Mas não a Fallon.
- Era o que me parecia, mas quis perguntar a alguém que a conhecesse realmente.
- Que diz a Madeleine Goodale? - perguntou ela.
- A estagiária Goodale pensa que a amiga se matou; mas isso foi antes de termos achado a nicotina.
Não disse onde e ela não lho perguntou. Não fazia tenção de dizer a ninguém da Nightingale House onde tinha sido encontrada a lata. Mas havia uma pessoa que saberia onde ela tinha sido escondida e, com sorte, poderia inadvertidamente revelar esse culposo conhecimento.
Prosseguiu:
- Há outra questão. A enfermeira Gearing disse-me que ontem à noite recebeu um amigo no quarto; disse que o acompanhou à saída pela sua porta. Isto surpreende-a?
- Não. Quando não estou, deixo o apartamento aberto, para que as enfermeiras possam utilizar a escada das traseiras. Isso dá-lhes pelo menos uma ilusão de privacidade.
- À custa, sem dúvida, da sua?
- Oh, penso que se subentende que não vêm ao apartamento. Eu confio nas minhas colegas. Mesmo que não confiasse, não há aqui nada que lhes interesse. Guardo todos os documentos oficiais no meu gabinete no hospital.
Claro que tinha razão. Não havia ali nada que interessasse a alguém a não ser a ele. A sala de estar, apesar de toda a sua individualidade, era quase tão simples como o apartamento dele, sobre o Tamisa, em Queenhithe. Talvez fosse uma das razões por que se sentia ali tão em casa. Ali não havia fotografias que convidassem à especulação, nem cómoda abarrotando da costumada horda de insignificâncias, nem quadros que traíssem um gosto particular; nem qualquer convite demonstrativo da diversidade, ou sequer existência, de uma vida social. Ele mantinha o seu próprio apartamento inviolado; ser-lhe-ia intolerável pensar que as pessoas pudessem lá entrar e sair a seu bel-prazer. Mas aqui havia uma reticência ainda maior: a auto-suficiência de uma mulher tão reservada que nem sequer ao que a rodeava permitia qualquer pista reveladora.
- Mr. Courtney-Briggs disse-me que foi amante da Josephine Fallon durante um curto período no primeiro ano dela - disse ele. - Tinha conhecimento disso?
- Tinha. Sabia-o da mesma maneira que sei que o visitante da Mavis Gearing na noite passada foi quase de certeza Leonard Morris. Num hospital, os boatos espalham-se por uma espécie de osmose. Uma pessoa nem sempre se lembra de lhe terem contado o último escândalo, acaba por saber, e pronto.
- E há muita coisa para saber?
- Talvez mais do que em instituições menos sensacionais.
Será assim tão surpreendente? Os homens e as mulheres que têm de observar diariamente o que o corpo pode sofrer em degradação e sofrimento dificilmente poderiam ter demasiados escrúpulos em servirem-se do seu consolo.
Quando, e com quem, perguntava ele a si próprio, encontraria ela o seu conforto? Na profissão, no poder que essa profissão sem dúvida lhe conferia? Na astronomia, seguindo através de longas noites as trajectórias das estrelas móveis? com a Brumfett? com a Brumfett de certezinha que não!
- Se está a pensar que Stephen Courtney-Briggs pode tê-la matado para proteger a sua reputação - disse ela -, bem, não acredito. Acabei por saber da ligação. E o mesmo aconteceu com metade do hospital, não tenho dúvidas. O Courtney-Briggs não é particularmente discreto. Além disso, um móbil desses só se aplicaria a um homem vulnerável à opinião pública.
- Não há nenhum homem que não seja de certa maneira vulnerável à opinião pública.
Ela deitou-lhe uma súbita mirada penetrante com aqueles olhos extraordinariamente exoftálmicos.
- Claro. O Stephen Courtney-Briggs é sem dúvida tão capaz de matar para evitar qualquer desastre pessoal ou desgraça pública como qualquer de nós. Mas não, penso eu, para evitar que as pessoas soubessem que uma mulher jovem e atraente estava disposta a ir para a cama com ele; ou que, por muito que ele possa ser um homem de meia-idade, ainda é capaz de gozar o prazer sexual quando a oportunidade se lhe apresenta.
Não haveria na voz dela um resquício de desprezo, quase de ressentimento? Por um instante apercebeu-se de um eco da enfermeira Rolfe.
- E a amizade de Hilda Rolfe por Julia Pardoe? Sabia disso? Ela sorriu um pouco amargamente.
- Amizade? Sei, sim, e acho que compreendo. Mas não tenho a certeza de que o senhor compreenda. A reacção ortodoxa, se a ligação viesse a ser conhecida, seria de que a Rolfe está a corromper a Pardoe. Mas, se essa jovem foi corrompida, desconfio de que isso aconteceu antes de vir para o John Carpendar. Não tenciono interferir. A ligação resolver-se-á por si mesma. Dentro de alguns meses a Pardoe deve obter o diploma de enfermeira oficial. Acidentalmente sei que ela tem projectos para o futuro e decerto não faz parte deles permanecer aqui. Receio bem que esteja reservada muita tristeza para a enfermeira Rolfe. Mas isso é uma coisa que teremos de enfrentar quando surgir.
A voz dela deu-lhe a conhecer que sabia, que se mantinha vigilante, que mantinha a situação sob controlo. E que não era questão para mais conversas.
Ele terminou o café em silêncio e depois ergueu-se para sair. Não havia nada mais que precisasse de perguntar, de momento, e encontrava-se desagradavelmente sensível a todos os cambiantes da voz dela, a todos os silêncios que pudessem dar a entender que a sua presença era fastidiosa. Dificilmente poderia ser bem-vinda, isso sabia ele. Estava acostumado a ser o mensageiro, na melhor das hipóteses, de más notícias e, na pior, de desastre. Mas pelo menos podia evitar forçar a sua presença diante dela um minuto mais do que o necessário.
Quando ela se levantou para o acompanhar à porta, ele fez uma referência casual à arquitectura da casa e perguntou há quanto tempo pertencia ao hospital. Ela respondeu:
- É uma história trágica É bastante horrível. O edifício foi construído em 1880 por um tal Thomas Nightingale, um fabricante de cordoaria local que tinha subido na vida e queria uma casa para conferir dignidade à sua nova situação. O nome é fortuitamente adequado; não tem nada que ver com a Florence nem com a ave1. Nightingale viveu aqui com a mulher, até 1886; não tinham filhos. Em Janeiro desse ano o cadáver de uma das criadas, chamada Nancy Gorringe, que tinha sido retirada de um orfanato por Mrs. Nightingale, foi encontrado suspenso numa árvore nos terrenos anexos. Quando desprenderam o corpo, verificou-se que tinha sido sistematicamente sujeito a maus tratos, espancado, até mesmo torturado, durante uma série de meses. Um dos traços mais horríveis do caso consiste no facto de os outros elementos da criadagem estarem de certo modo ao corrente do que se passava, mas não terem feito nada. Aparentemente eram bem tratados; no julgamento de Nightingale prestaram-lhe um comovente tributo como um patrão compreensivo e bom. Deve ter-se assemelhado a um daqueles casos modernos de crueldade infantil nos quais apenas um membro da família é seleccionado como objecto de violência e desprezo e os outros dão a sua aquiescência aos maus tratos. Uma certa queda para o sadismo por interposta pessoa, acho eu, ou simplesmente a necessidade desesperada de preservarem a sua própria segurança. E no
entanto é estranho. Nem um só deles se virou contra Nightingale, nem mesmo quando o sentimento local atingiu o auge, nas semanas subsequentes ao julgamento. Tanto ele como a mulher foram condenados e passaram muitos anos na prisão. Tenho a impressão de que morreram lá. Seja como for, nunca voltaram para a Nightingale House. A casa foi vendida a um fabricante de botas reformado, que residiu nela apenas dois anos antes de concluir que não lhe agradava. Vendeu-a a um dos administradores do hospital, que aqui passou os doze últimos anos de vida e a legou ao John Carpendar. Foi sempre um certo empecilho para o hospital; nunca ninguém soube muito bem que destino lhe dar. Não é especialmente indicada para escola de enfermagem, mas é difícil saber para que fim seria exactamente indicada. Diz-se que nesta altura do ano se ouve o fantasma de Nancy Gorringe a carpir-se pelos terrenos anexos. Eu nunca a ouvi, e trata-se de uma lenda que tentamos evitar que as estagiárias saibam. No entanto, nunca foi uma casa feliz.
E presentemente era menos feliz que nunca, pensou Dalgliesh, no caminho de regresso ao gabinete. Agora havia dois assassínios a acrescentar à sua história de violência e ódio.
Disse a Masterson que podia ir de licença e depois instalou-se para proceder ao exame solitário dos papéis. Mal o sargento saíra, tocou o telefone. Era o director do laboratório de medicina legal a dizer que tinham terminado as análises. Josephine Fallon tinha morrido de envenenamento por nicotina, e a nicotina viera da lata de pulverizador das roseiras.
Passaram-se duas horas até fechar por fim a porta lateral da Nightingale House atrás de si e empreender o caminho de regresso à Falconer’s Arms.
O caminho era iluminado por candeeiros públicos do modelo antigo, mas estes eram muito espaçados e mortiços, de modo que a maior parte do tempo caminhou na escuridão. Não encontrou ninguém e não lhe custava nada acreditar que aquele caminho solitário não fosse da predilecção das estagiárias depois do cair da noite. A chuva tinha parado, mas o vento crescia de intensidade, sacudindo as últimas gotas dos ramos entrelaçados dos ulmeiros. Sentia-os fustigarem-lhe o rosto e infiltrarem-se por sob a gola do casaco, e por momentos lamentou ter decidido nessa manhã não trazer carro. As árvores erguiam-se muito próximas do caminho, separadas deste por uma estreita berma de relva empapada. Estava uma noite cálida apesar do vento que aumentava, e uma ténue neblina avançava por entre as árvores e enrolava-se em torno dos candeeiros. O caminho tinha uns três metros de largura. Devia ter sido em tempos um caminho principal para a Nightingale House, mas serpenteava inconsequentemente por entre as moitas de ulmeiros e vidoeiros como se o proprietário inicial da casa tivesse alimentado a esperança de aumentar a sua sensação de importância através do comprimento do acesso à casa.
Enquanto caminhava, pensou em Christine Dakers. Tinha falado com a rapariga às três e quarenta e cinco da tarde. Nessa ocasião a enfermaria particular estava muito tranquila e, se a enfermeira Brumfett estivesse por lá, tinha tido o cuidado de se manter afastada. Fora recebido pela enfermeira de turno, que o conduzira ao quarto da estagiária Dakers. A rapariga estava soerguida na cama, apoiada em almofadas, com um ar tão rosado e triunfante como uma mulher que acabasse de dar à luz, e acolhera-o como se esperasse felicitações e ramos de flores. Alguém a tinha já fornecido de uma jarra de narcisos e havia dois vasos de crisântemos junto do tabuleiro de chá na mesa-de-cabeceira e um monte de revistas espalhado sobre a colcha da cama.
Ela tentara assumir um ar despreocupado e compungido ao contar-lhe a história, mas a representação não fora convincente. Na realidade estava radiante de felicidade e alívio. E porque não? A superintendente tinha ido vê-la. Confessara e fora perdoada. Agora sentia-se inundada pela doce euforia da absolvição. E, o que vinha ainda mais ao caso, as duas raparigas que mais podiam constituir para ela uma ameaça tinham-se ido de vez. Diane Harper tinha abandonado o hospital. E Heather Pearce morrera.
E o que fora exactamente que a estagiária Dakers confessara? Porquê aquela extraordinária libertação de espírito? Quem lhe dera sabê-lo! Contudo saíra do quarto dela pouco mais esclarecido do que quando lá entrara. Mas pelo menos, pensava, confirmara o testemunho de Madeleine Goodale segundo o qual tinham estado a estudar juntas na biblioteca. A menos que houvesse conluio, o que parecia improvável, tinham fornecido um álibi uma à outra para o período de tempo anterior ao pequeno-almoço. E, a seguir ao pequeno-almoço, ela tinha levado a sua última chávena de café para a estufa, onde se sentara a ler o Nursing Mirror até serem horas de seguir para a aula prática.
A estagiária Pardoe e a estagiária Harper tinham estado com ela. As três raparigas tinham abandonado a estufa ao mesmo tempo, haviam feito uma breve passagem pelos sanitários e casa de banho do segundo piso e seguidamente tinham avançado directas para a sala de aulas práticas. Era muito difícil imaginar como poderia Christine Dakers ter envenenado o alimento.
Dalgliesh tinha percorrido uns cinquenta metros quando se deteve a meio de uma passada, imobilizado por aquilo que, pelo espaço de um inacreditável segundo, lhe pareceu ser o som de uma mulher a chorar. Manteve-se imóvel, esforçando-se por distinguir aquela desesperada voz estranha. Por um momento tudo foi silêncio e até o vento parecia ter amainado. A seguir voltou a ouvi-lo, desta vez de modo inconfundível. Não se tratava do grito nocturno de nenhum animal nem da invenção de um cérebro fatigado mas sobreestimulado. Algures na moita de árvores à sua esquerda, uma mulher gemia angustiadamente.
Não era supersticioso, mas tinha a sensibilidade aos ambientes das pessoas imaginativas. Ali sozinho na escuridão e ouvindo aquela voz humana a gemer à desgarrada com o vento crescente, sentiu um arrepio de temor. O terror e o desamparo daquela criada do século XIX roçaram-no momentaneamente, como se se tratasse do próprio dedo gélido da rapariga. Por um aterrador segundo penetrou na sua infelicidade e desespero. O passado fundiu-se com o presente. O terror era eterno. O derradeiro acto desesperado era o instante imediato. E logo o momento passou. Tratava-se de uma voz verdadeira, de uma mulher viva. Apertando a lanterna, saiu do caminho, embrenhando-se na completa escuridão das árvores.
A uns dez metros da orla da relva distinguiu uma cabana de madeira com cerca de três metros e meio de lado, cuja única janela escassamente iluminada projectava um quadrado de luz no tronco do ulmeiro mais próximo. Encaminhou-se para lá, com passos silenciosos no solo ensopado, e empurrou a porta, abrindo-a. Sentiu vir flutuando ao seu encontro o cheiro cálido e suculento de lenha e parafina. E havia qualquer coisa mais. O cheiro de vida humana. Sentada e encolhida numa cadeira de verga quebrada, com uma lanterna de mau tempo no caixote de pernas para o ar ao seu lado, encontrava-se uma mulher.
A impressão de um animal encurralado no seu covil era imediata e inevitável. Fitaram-se silenciosamente. Apesar do choro desabalado, imediatamente sustido à sua entrada como se fosse simulado, os olhos que perscrutaram os seus estavam desanuviados e brilhantes de ameaças. Aquele animal podia estar em dificuldade, mas encontrava-se no seu terreno e tinha todos os sentidos alerta. Quando falou, fê-lo num tom sombriamente beligerante, mas sem indícios de curiosidade ou medo.
- Quem é vossemecê?
- Chamo-me Adam Dalgliesh. E você?
- Morag Smith.
- Já ouvi falar de si, Morag. Deve ter regressado ao hospital esta tarde.
- Pois foi. E Miss Collins pediu-me para me apresentar, se fizesse favor, no lar do pessoal residente. Pedi para voltar aos alojamentos do pessoal médico, se não podia continuar na Nightingale House. Mas qual voltas! Isso é que era bom! Dava-me bem de mais com os médicos, era o que era. De maneira que lá vou recambiada para o lar. Nesta casa fartam-se de chatear uma pessoa, lá isso fartam. Pedi para falar com a superintendente, mas a enfermeira Brumfett disse que não se devia causar-lhe arrelias.
Fez uma pausa no seu recital de infortúnios para remexer no pavio da lanterna. A luz aumentou. Ela assentou os olhos semicerrados nele.
- Adam Dalgliesh. Um nome bem apanhado. Vossemecê é novo por cá, não é?
- Cheguei só esta manhã. Imagino que lhe tenham contado da estagiária Fallon. Sou investigador. Estou aqui para descobrir como foi que ela e a estagiária Pearce morreram.
De início pensou que a notícia iria dar azo a novo surto de gemidos. Ela abriu muito a boca, mas depois, pensando melhor, soltou um leve ofego e voltou a fechá-la bruscamente.
- Eu é que não a matei - disse rudemente.
- A estagiária Pearce? Claro que não. Porque é que havia de a ter matado?
- Não era isso que o outro pensava.
- Qual outro ?
- Aquele inspector, o estafermo do inspector Billy Bailey. Eu bem via o que ele pensava. A fazer aquelas perguntas todas e com os olhos espetados em cima de mim o raio do tempo todo. O que é que esteve a fazer desde que se levantou? Que diabo pensava ele que eu tinha andado afazer? A trabalhar, é o que eu andava a fazer! Gostava da estagiária Pearce? Ela alguma vez a tratou mal? Ela que experimentasse, que eu sempre gostava de ver! Seja como for, nem a conhecia. Pois se há mais de uma semana que não punha os pés na Nightingale House! Mas eu bem vi onde ele queria chegar. É sempre a mesma coisa. Toca a atirar as culpas para cima da pobre da criada.
Dalgliesh penetrou na cabana e sentou-se num banco, encostando-se à parede. Teria de interrogar Morag Smith e a ocasião parecia tão boa como outra qualquer.
- Acho que está enganada, sabe? - disse. - O inspector Bailey não suspeitava de si. Ele disse-mo.
Ela soltou uma fungadela irónica.
- A gente não pode acreditar em tudo o que a Polícia nos diz. Palavra, o seu pai nunca lhe disse isso? Suspeitava de mim, sim senhor, esse chato de uma figa do Bailey. Meu Deus, o meu pai podia contar-lhe umas coisas da Polícia.
Sem dúvida a Polícia poderia, contar muita coisa do pai, pensou Dalgliesh, mas rejeitou essa linha de conversa dada a improbabilidade de ser proveitosa. O próprio nome do inspector prestava-se a abusos aliterativos1 e a Morag estava em maré de se deliciar com isso. Dalgliesh apressou-se a defender o colega.
- O inspector Bailey estava simplesmente a fazer o seu trabalho. Não tinha a intenção de a aborrecer. Eu também sou da Polícia e terei de lhe fazer umas perguntas. Todos temos. Se não me ajudar, não chegarei a lado nenhum. Se a estagiária Pearce e a estagiária Fallon foram mortas, vou descobrir quem o fez. Eram jovens, compreende? A estagiária Pearce tinha mais ou menos a sua idade. Não me parece que desejassem morrer.
Não tinha a certeza de qual seria a reacção de Morag àquilo que considerava um bonito apelo à justiça e aos sentimentos, mas viu os olhinhos penetrantes perscrutarem através da semiobscuridade.
- Ajudá-lo! - A voz dela estava cheia de escárnio. - Não goze comigo. A gente da sua laia não precisa de ajuda. Vossemecê não há-de precisar que eu ensine o Padre Nosso ao vigário.
Dalgliesh ficou a meditar naquela espantosa metáfora e concluiu, na ausência de indicação em contrário, que pretendia ser um elogio. Equilibrou a lanterna de pé sobre o banco, de tal modo que ela derramou uma mancha brilhante de luz no tecto, retorceu as coxas mais firmemente contra a parede e apoiou a cabeça num espesso molho de ráfia suspenso de um prego por sobre ele. Sentiu-se surpreendentemente confortável. Em tom de conversa, perguntou:
- Vem aqui muitas vezes ?
- Só quando estou aborrecida. - A entoação dela dava a entender que se tratava de uma eventualidade para que qualquer mulher sensata devia estar preparada. - Isto aqui é isolado. - E acrescentou, de modo defensivo: - Pelo menos, costumava ser isolado.
Dalgliesh sentiu-se repreendido.
- Desculpe. Eu não volto cá.
- Ah, o senhor não faz mal. Pode voltar cá, se quiser.
A voz podia ser rude, mas o elogio era iniludível. Mantiveram-se por instantes num silêncio curiosamente sociável.
As sólidas paredes da cabana rodeavam-nos, isolando-os, num silêncio irreal, do gemido do vento. Lá dentro, o ar era frio mas bafiento, cheirando acremente a madeira, parafina e húmus. Dalgliesh olhou em redor. O lugar não era desconfortável. Havia um fardo de palha ao canto, uma segunda velha cadeira de junco semelhante àquela em que Morag estava anichada e um caixote virado ao contrário e coberto por um oleado que servia de mesa. Sobre este, apenas conseguiu distinguir a forma de um primitivo fogareiro de petróleo. Numa das prateleiras da parede via-se um bule de alumínio e um par de chávenas. Imaginou que o jardineiro utilizara em tempos a cabana como confortável refúgio das agruras do trabalho e ao mesmo tempo barracão de vasos e arrumações. Na Primavera e no Verão, isolada na tranquilidade do arvoredo e rodeada pelo canto dos pássaros, devia ser um aprazível esconderijo, pensou Dalgliesh. Mas estava-se em pleno Inverno.
- Desculpe a pergunta - disse -, mas não seria mais confortável estar aborrecida no seu próprio quarto? E mais isolada?
- A Nightingale House não é acolhedora. E o lar do pessoal residente também não é acolhedor. Gosto disto aqui. Tem o cheiro do barracão do meu pai na courela. E depois do anoitecer ninguém cá vem. Toda a gente tem medo do fantasma.
- E você não tem.
- Não acredito nisso.
Era, pensou Dalgliesh, a derradeira defesa do sólido cepticismo. Não se acreditava numa coisa, portanto ela não existia. Livre das tonturas da imaginação, a pessoa podia gozar o prémio da sua própria certeza mesmo que ela residisse tão somente na posse indisputada de um barracão de jardim quando se sentia aborrecida. Achava isto admirável. Perguntou a si próprio se havia de a interrogar sobre a causa do aborrecimento, se havia porventura de lhe sugerir que se abrisse com a superintendente. Aquela choradeira desabalada não teria sido realmente provocada por mais nada além das atenções de Bill Bailey, apaixonadamente levadas a mal? Bailey era um bom investigador, mas não era particularmente subtil com as pessoas. Mas ninguém podia permitir-se ao luxo de ser crítico. Qualquer investigador, por muito competente que fosse, sabia como era desassisado hostilizar uma testemunha. Sucedido isso, era o diabo arrancar-lhe qualquer coisa de útil - e normalmente tratava-se de mulheres -, mesmo que a antipatia fosse em parte subconsciente. O êxito de uma investigação criminal dependia em larga medida de conseguir que as pessoas quisessem ajudar, de levá-las a falar. Bill Bailey falhara surpreendentemente com Morag Smith. A seu tempo, também Dalgliesh falhara.
Lembrava-se do que o inspector Bailey, naquela breve conversa de uma hora ao passar o caso, lhe dissera sobre as criadas:
”Estão de fora. A velha, Miss Martha Collins, está há quarenta anos no hospital e, se tivesse tendências homicidas, já as teria revelado antes. Está principalmente preocupada com o roubo do desinfectante dos sanitários. Parece considerá-lo uma afronta pessoal. Provavelmente entende que os sanitários são da sua responsabilidade e o assassínio não. A rapariga nova, Morag Smith, se quer que lhe diga, é meio tonta, e teimosa como um burro. Creio que pode ter sido ela, mas macacos me mordam se sou capaz de imaginar porquê. E, seja como for, dificilmente teria tido tempo. A Morag só foi transferida para a Nightingale House na véspera da morte da Pearce. Parece-me que não ficou lá muito satisfeita com a mudança, mas isso não é propriamente motivo para desatar a matar as estagiárias. Além disso, a rapariga não está com medo. É teimosa, mas não está com medo. Se foi realmente ela, duvido que alguma vez consiga prová-lo.”
Mantiveram-se em silêncio. Ele não estava propriamente morto por sondá-la acerca do aborrecimento e desconfiava de que a rapariga tinha cedido a uma irracional ânsia de chorar à vontade. Tinha escolhido o seu local secreto para isso e cabia-lhe o direito à privacidade emocional, mesmo que a privacidade física tivesse sido invadida. Ele próprio era demasiado reticente para ter a coragem de se entregar ao bisbilhotar das emoções alheias que dá a tantas pessoas a confortável ilusão de preocuparem-se com os outros. Ele raramente se preocupava. Os seres humanos eram para ele perpetuamente interessantes, e já nada havia neles que o surpreendesse. No entanto, não se envolvia.
Não se admirava que ela gostasse do barracão, tendo este o cheiro do lar.
Apercebeu-se de um resmungar indistinto como ruído de fundo. Ela retomara a ladainha dos seus infortúnios.
- Não parava de olhar para mim, palavra. E passou todo o santo tempo a fazer a mesmíssima pergunta. Ainda por cima, presumido. Via-se perfeitamente que tinha a mania que era bom.
Subitamente, voltou-se para Dalgliesh.
- Vossemecê sente-se excitado?
Dalgliesh encarou a pergunta com sisuda atenção.
- Não. Sou demasiado velho para me sentir excitado quando estou com frio e cansado. Na minha idade, uma pessoa precisa de conforto material se quiser sair-se com algum prazer para a companheira ou mérito para si próprio.
Ela lançou-lhe um olhar em que a descrença se debatia com a comiseração.
- Não é assim tão velho. De qualquer maneira, obrigada pelo lenço.
Soltou uma última fungadela convulsiva antes de o devolver. Dalgliesh enfiou-o rapidamente no bolso, resistindo à tentação de o deixar cair discretamente para detrás do banco. Esticando as pernas como preparação para se mexer, ouviu apenas parcialmente o que ela disse a seguir.
- Que foi que disse? - perguntou, cuidando de manter a voz átona, sem tom inquiridor.
Ela retorquiu amuadamente:
- Disse que ele nunca descobriu que eu tinha bebido o leite, lá o gajinho. Nunca lho cheguei a contar.
- Era o leite utilizado como alimento para a aula prática?
Tentou assumir um tom coloquial, apenas levemente interessado. Contudo, tinha consciência do silêncio na cabana e daquele penetrante par de olhos cravados em si. Seria possível que ela não se desse conta do que estava a dizer-lhe?
- Foi às oito horas, talvez um minuto antes. Fui à sala de aulas práticas para ver se lá tinha deixado a lata da cera. E estava lá aquela garrafa de leite no carrinho e eu bebi um bocado. Só um pedacinho do cimo.
- Directamente da garrafa?
- Bem, não havia lá nenhuma caneca à mão, não é verdade? Estava com sede, vi o leite e apeteceu-me um bocadinho, e pronto. De maneira que bebi uma golada.
Ele fez a pergunta crucial.
- Bebeu só a nata do cimo?
- Não havia nata nenhuma. Não era leite desse. Ele sentiu um baque no coração.
- E que fez a seguir?
- Não fiz nada.
- Mas não receou que a monitora reparasse que a garrafa não estava cheia?
- Mas é que a garrafa estava cheia. Tornei a enchê-la até acima com água da torneira. De qualquer maneira, só bebi uns golinhos.
- E voltou a colocar a cápsula no gargalo da garrafa?
- Isso mesmo. com cuidado para ninguém dar por nada.
- E nunca contou isso a ninguém?
- Ninguém me perguntou. O inspector perguntou-me se eu tinha estado na sala de aulas práticas e eu respondi-lhe que só antes das sete horas quando fui lá dar uma limpeza. com certeza que não lhe ia contar coisa nenhuma. Para já, o leite não era dele; não tinha sido ele a pagá-lo.
- Tem a certeza, mas mesmo a certeza, das horas, Morag?
- Oito horas. De qualquer maneira, era o que o relógio da sala de aulas práticas marcava. Olhei para ele porque tinha ficado de ajudar a servir os pequenos-almoços, visto que as empregadas do refeitório estavam com a gripe. Há pessoas que julgam que a gente pode estar em três sítios ao mesmo tempo. Seja como for, fui para o refeitório, onde as enfermeiras e as estagiárias já tinham todas começado a comer. Nessa altura, Miss Collins lançou-me um daqueles olhares dela. Outra vez atrasada, Morag! De maneira que deviam ser oito horas. As estagiárias começam sempre o pequeno-almoço às oito.
- E estavam todas lá?
- Claro que estavam! Já lhe disse! Estavam a tomar o pequeno-almoço.
Mas ele sabia que estavam lá. O período de vinte e cinco minutos entre as oito e as oito e vinte e cinco fora o único em que todas as suspeitas tinham estado juntas, comendo sob a vigilância de Miss Collins e bem à vista umas das outras. Se a história de Morag era verdadeira, e ele nem por um instante duvidava dela, o âmbito da investigação tinha sido extraordinariamente reduzido. Havia apenas seis pessoas que não dispunham de um álibi firme para o total desse intervalo de tempo entre as oito horas e a reunião da turma às oito e quarenta. Claro que teria de verificar os depoimentos, mas sabia o que encontraria. Tratava-se do género de informação que fora treinado para recordar sempre que quisesse, e os nomes vieram-lhe obedientemente ao espírito. Enfermeira Rolfe, enfermeira Gearing, enfermeira Brumfett, estagiária Goodale, Leonard Morris e Stephen Courtney-Briggs. com suavidade, fez a rapariga erguer-se.
- Vamos, Morag, vou acompanhá-la novamente ao lar. Você é uma testemunha muito importante e não quero que apanhe uma pneumonia antes de ter a possibilidade de registar o seu depoimento.
- Eu não quero escrever nada. Não tenho estudos.
- Alguém o escreverá por si. Você apenas terá de o assinar.
- Isso não me importo de fazer. Não sou nenhuma burra. Acho que sou muito capaz de assinar o meu nome.
E ele teria de lá estar para se certificar de que ela o faria. Tinha um pressentimento de que o sargento Masterson não seria mais bem sucedido que o inspector Bailey na maneira de lidar com Morag. Seria mais seguro encarregar-se ele próprio de registar o seu depoimento, ainda que isso pudesse atrasar a sua partida para Londres relativamente ao que planeara.
No entanto, seria tempo bem empregue. Ao voltar-se para puxar firmemente a porta do barracão atrás de ambos - não possuía fechadura - sentia-se mais satisfeito do que em qualquer outro momento desde a descoberta da nicotina. Começava a fazer progressos. De uma maneira geral, não fora um dia lá muito mau.
Dança macabra
Faltavam cinco minutos para as sete da manhã seguinte. O sargento Masterson e o agente Greeson estavam na cozinha da Nightingale House com Miss Collins e Mrs. Muncie. Para Masterson, dir-se-ia estarem a meio da noite, dada a escuridão e o frio. A cozinha cheirava bem, a pão fresco, um odor de campo, nostálgico e reconfortante. Porém Miss Collins não era o protótipo da cozinheira rechonchuda e acolhedora. Observou, de lábios apertados e mãos na cinta, Greeson colocar uma garrafa cheia de leite na prateleira do meio do frigorífico e perguntou:
- Qual é que irão tirar?
- A primeira garrafa que estiver à mão. Foi o que fizeram da outra vez, não foi?
- É o que dizem. Eu tenho mais que fazer do que ficar especada a observá-las. E tenho mais que fazer neste momento.
- Por nós, não se prenda. Nós encarregamo-nos de observar. Quatro minutos depois, entraram as gémeas Burt. Ninguém
falou. Shirley abriu a porta do frigorífico e Maureen tirou a primeira garrafa que encontrou à mão. Seguidas por Masterson e Greeson, as gémeas dirigiram-se para a sala de aulas práticas, atravessando o corredor silencioso e ressonante. A sala estava vazia e tinha as cortinas corridas. As duas lâmpadas fluorescentes brilhavam sobre um semicírculo de cadeiras vagas e na alta e estreita cama onde um grotesco manequim de demonstração, de boca redonda e narinas que eram duas aberturas negras escancaradas, se encontrava soerguido sobre almofadas. As gémeas procederam aos seus preparativos em silêncio. Maureen poisou a garrafa no carrinho e a seguir arrastou o aparelho de intubação para junto da marquesa. Shirley retirou uma série de instrumentos e bacias dos diversos armários e dispô-los no carrinho. Os dois polícias observavam. Passados vinte minutos, Maureen disse:
- Antes do pequeno-almoço, foi só isto que fizemos. Deixámos a sala exactamente como está neste momento.
- Muito bem - disse Masterson. - Nesse caso vamos adiantar os nossos relógios até às oito e quarenta, hora a que regressaram aqui. Não vale a pena estar a fazer tempo. Podemos chamar já o resto das estagiárias.
Obedientemente, as gémeas acertaram os relógios de bolso enquanto Greeson telefonava para a biblioteca, onde as restantes estagiárias aguardavam. Estas apareceram quase de imediato e pela ordem da entrada original. Primeiro Madeleine Goodale, seguida de Júlia Pardoe e Christine Dakers, que surgiram juntas. Ninguém fez qualquer menção de falar e todas ocuparam silenciosamente os seus lugares no semicírculo de cadeiras, estremecendo um pouco como se a sala estivesse fria. Masterson notou que mantinham os olhos afastados do grotesco manequim deitado na cama. Depois de todas se instalarem, disse:
- Muito bem, estagiária. Pode continuar agora com a demonstração. Comece a aquecer o leite.
Maureen olhou para ele, surpreendida.
- O leite? Mas ninguém teve ocasião de... - e a voz sumiu-se-lhe.
- Ninguém teve ocasião de o envenenar? - disse Masterson. Não faz mal. Siga, e pronto. Quero que faça precisamente o que fez da outra vez.
Ela encheu um grande jarro com água quente da torneira, após o que mergulhou nele a garrafa por segundos a fim de amornar o leite. Recebendo o impaciente aceno de cabeça de Masterson para prosseguir, premiu a cápsula da garrafa e verteu o líquido num copo de medida de vidro. A seguir tirou um termómetro de vidro do carrinho e verificou a temperatura do líquido. A turma observava num silêncio fascinado. Maureen deitou um olhar a Masterson. Não obtendo qualquer sinal, pegou na sonda esofágica e introduziu-a na boca rígida do manequim. Tinha a mão perfeitamente firme. Por fim ergueu um funil de vidro bem acima da cabeça e deteve-se.
- Prossiga, estagiária - disse Masterson. - Não fará mal nenhum ao manequim ficar um tanto ou quanto molhado. É para isso que foi feito. Não são uns decilitros de leite morno que lhe hão-de estragar as entranhas.
Maureen fez uma pausa. Desta vez o fluído tornou-se visível e todos os olhares estavam presos do curvo fluxo branco. Nesse momento, subitamente, a rapariga parou, com o braço ainda erguido, e ficou imóvel, como um modelo numa postura forçada.
- Então? - perguntou Masterson. - É ou não é?
Maureen baixou o copo de medida até à altura das narinas, após o que, sem pronunciar palavra, o passou à sua gémea. Shirley farejou-o e fitou Masterson.
- Isto não é leite, pois não? É um desinfectante. O senhor’ queria verificar se éramos capazes de distinguir!
- Quererá dizer que da outra vez era desinfectante? Que o leite foi envenenado antes de tirarmos a garrafa do frigorífico? perguntou Maureen.
- Não. Da outra vez o leite não tinha nada de especial quando o tiraram do frigorífico. Que foi que fizeram à garrafa depois de terem deitado o leite no copo de medida?
Foi Shirley quem respondeu:
- Levei-a até ao lavatório ali ao canto e passei-a por água, Lamento ter-me esquecido. Devia tê-lo feito mais cedo.
- Não faz mal. Faça-o agora.
Maureen tinha poisado a garrafa na mesa ao lado do lavatório, com a cápsula amarrotada ao lado. Shirley pegou nela. A seguir parou. Masterson disse muito calmamente:
-Então?
A rapariga virou-se para ele, perplexa.
- Há qualquer coisa diferente, qualquer coisa que não está bem. Não estava assim.
- Não estava? Então pense. Não se apoquente. Descontraia-se. Descontraia-se apenas e pense.
A sala estava sobrenaturalmente silenciosa. Nessa altura Shirley girou sobre si, virando-se para a irmã.
- Já sei, Maureen! É a cápsula da garrafa. Da outra vez tirámos uma das garrafas homogeneizadas do frigorífico, daquelas que têm cápsula prateada. Mas quando voltámos à sala de aulas práticas depois do pequeno-almoço era diferente. Não te lembras? A cápsula era dourada. Era leite Channel Island.
A estagiária Goodale disse calmamente da cadeira:
- Pois foi. Também me lembro. A única cápsula que vi era dourada.
Maureen desviou os olhos para Masterson numa intrigada interrogação.
- Nesse caso alguém deve ter trocado a cápsula, não? Antes que ele tivesse oportunidade de responder, ouviram a voz tranquila de Madeleine Goodale.
- Não necessariamente a cápsula. Alguém trocou a garrafa inteira.
Masterson não respondeu. Portanto, o velho tinha razão! A solução de desinfectante tinha sido preparada cuidadosamente e com tempo e a garrafa pela qual Morag Smith bebera tinha sido substituída pela sua congénere letal. E que fora feito da garrafa original? Tinha sido deixada quase com certeza na pequena cozinha do piso das enfermeiras. Não fora a enfermeira Gearing que se queixara a Miss Collins de que o leite estava aguado?
Dalgliesh terminou rapidamente o que tinha a fazer na Yard e às onze e meia encontrava-se já em North Kesington.
O número 49 da Millington Square, W. 10, era uma grande casa de estilo italiano arruinada, com uma fachada de estuque esboroado. Não tinha nada de espectacular. Havia centenas de casas do seu género naquela zona de Londres. Encontrava-se visivelmente dividida em quartos-sala, dado que cada janela mostrava um conjunto diferente de cortinados, ou nenhum, e ressumava aquela curiosa atmosfera de recatada e solitária sobre-ocupação que pairava em todo o bairro. Dalgliesh verificou que não havia fileira de campainhas no alpendre nem qualquer lista minuciosa dos inquilinos. A porta da frente estava aberta. Cruzou a porta de painéis de vidro que conduzia ao átrio de entrada e deparou-se-lhe imediatamente o cheiro a comida, cera do chão e roupa por lavar. As paredes do átrio tinham sido forradas com um espesso papel com incrustações e agora estavam pintadas de castanho-escuro, que brilhava como se exsudasse gordura e transpiração. O pavimento e a escada estavam recobertos de linóleo com um motivo desenhado, remendado com outro de padrão mais recente e vivo nos sítios onde os rasgões pudessem ser perigosos, mas, afora isso, esfolado e sem emendas. A pintura era de um verde institucional. Não havia sinais de vida mas, mesmo àquela hora do dia, ele sentia a sua presença por detrás das portas bem fechadas e numeradas ao progredir sem encontrar oposição até aos andares superiores.
O número 14 ficava no último andar, do lado das traseiras. Ao aproximar-se da porta ouviu o matraquear entrecortado e nítido de uma máquina de escrever. Bateu com força e o ruído Cessou. Houve uma pausa de mais de um minuto antes de a porta se entreabrir e deparar-se-lhe um par de olhos desconfiados e inóspitos.
- Quem é o senhor? Estou a trabalhar. Os meus amigos sabem que não recebo ninguém de manhã.
- Mas eu não sou um amigo. Posso entrar?
- Suponho que sim. Mas não lhe posso dispensar muito tempo. E também não me parece que lhe valha a pena. Não quero fazer-me sócio de coisa nenhuma; não tenho tempo para isso. E não quero comprar nada porque não tenho dinheiro. De qualquer maneira, tenho tudo aquilo de que preciso.
Dalgliesh mostrou-lhe o cartão.
- Não ando a comprar nem a vender; nem sequer informações, que é o que me traz aqui. É acerca de Josephine Fallon. Sou funcionário da Polícia e estou a investigar a morte dela. O senhor, suponho eu, é Arnold Dowson.
A porta abriu-se mais.
- É melhor entrar.
Nos olhos cinzentos não havia sinais de medo, mas talvez uma certa cautela.
Era um compartimento extraordinário, um pequeno sótão, de tecto esconso e uma janela de águas-furtadas, mobilado quase integralmente com caixotes de madeira em bruto e sem pintura, alguns deles ainda com o nome do merceeiro ou loja de bebidas gravado. Tinham sido habilidosamente ligados uns aos outros de tal maneira que, do chão até ao tecto, as paredes pareciam uma colmeia de favos de madeira clara, irregulares no formato e dimensões e contendo todos os apetrechos da vida quotidiana. Alguns estavam compactamente cheios de livros encadernados; outros de brochuras cor de laranja. Outro ainda emoldurava um pequeno aquecedor eléctrico de duas resistências, perfeitamente adequado para aquecer uma divisão tão exígua. Noutro caixote estava uma pilha regular de roupa lavada mas por passar a ferro. Outro continha canecas de faixa azul e mais loiça, e outro ainda mostrava uma série de objets trouvés1, conchas, um cão de Staffordshire e um pequeno boião de doce ou penas de pássaros. A cama de solteiro, coberta com uma manta, ficava por baixo da janela. Outro caixote virado ao contrário servia de mesa e secretária. As duas únicas cadeiras eram daquelas dobráveis de lona que se vendem para piqueniques. Dalgliesh recordou-se de um artigo visto em tempos num suplemento colorido de domingo de um
jornal dedicado a como mobilar um quarto-sala por menos de cinquenta libras. Provavelmente Arnold Dowson fizera-o por metade do preço. Todavia, o compartimento não era desagradável. Tudo era funcional e simples. Era porventura demasiado claustrofóbico para certos gostos e havia qualquer coisa de obsessivo, na meticulosa arrumação e na maneira como todos os centímetros de espaço tinham sido utilizados ao máximo, que o impedia de ser repousante. Era o quarto de um homem auto-suficiente e organizado que, tal como dissera a Dalgliesh, possuía visivelmente tudo aquilo que queria.
O inquilino condizia com o quarto. Parecia quase excessivamente arranjado. Era jovem, não passando provavelmente muito dos vinte anos, pensou Dalgliesh. A camisola de lã fulva de decote redondo estava limpa e tinha ambos os punhos meticulosamente dobrados à mesma altura, deixando ver no pescoço o colarinho de uma camisa muito branca. As calças de ganga estavam coçadas mas sem nódoas e tinham sido cuidadamente lavadas e passadas. Mostravam um vinco bem a meio da perna e as bainhas haviam sido dobradas e cuidadosamente cosidas no lugar, conferindo um efeito estranhamente incongruente a tão informal traje. Calçava sandálias de couro do género de fivela normalmente visto nas crianças, sem meias. Tinha um cabelo muito claro, penteado em forma de capacete, emoldurando-lhe o rosto à maneira de um pagem. A cara sob a franja lustrosa era ossuda e sensível, de nariz adunco e grande demais e boca pequena e bem desenhada, com um tudo-nada de petulante. O mais notável da sua fisionomia eram, contudo, as orelhas. Para além de serem as mais pequenas que Dalgliesh alguma vez vira num homem, eram incolores, até mesmo nos lóbulos. Dir-se-iam de cera. Sentado num caixote de laranjas virado ao contrário, com as mãos frouxamente entrelaçadas no meio dos joelhos e os olhos vigilantes fixados em Dalgliesh assemelhava-se ao motivo central de um quadro surrealista: singular e preciso, impondo-se sobre o fundo multicelular. Dalgliesh puxou um dos caixotes e sentou-se diante do rapaz, dizendo:
- Claro que sabia que ela tinha morrido, não é verdade?
- Sabia. Li-o nos jornais da manhã.
- Sabia que ela estava grávida?
Isto, ao menos, provocou uma emoção. O rosto tenso do rapaz empalideceu. Ergueu a cabeça de chofre e fitou Dalgliesh silenciosamente por um momento antes de responder.
- Não. Não sabia. Ela não me disse nada.
- Estava quase de três meses. A criança poderia ser sua? Dowson baixou os olhos para as mãos.
- Creio que podia. Não tomei quaisquer precauções, se é o que quer dizer com isso. Ela disse-me para não me preocupar, que trataria disso. No fim de contas, era enfermeira. Pensei que ela sabia cuidar de si própria.
- Ora aí está uma coisa que eu suspeito que ela nunca soube realmente. Não seria melhor contar-me tudo?
- Tenho mesmo de contar?
- Não. Não é obrigado a dizer nada. Pode exigir um advogado e fazer o estardalhaço e levantar os problemas que lhe apetecer, dando origem a grandes demoras. Mas valerá a pena? Ninguém está a acusá-lo de a ter matado. No entanto, alguém o fez. Você conheceu-a e provavelmente gostava dela. Pelo menos por algum tempo. Se quer ajudar, a melhor maneira de o fazer é contar-me tudo o que sabia dela.
Dowson pôs-se lentamente de pé. Parecia tão lento e desajeitado como um velho. Olhou em redor como que desorientado. A seguir, disse:
- vou fazer chá.
Arrastou-se até junto de um fogão a ’gás de dois bicos, instalado à direita da exígua lareira não utilizada, ergueu a chaleira como que a verificar pelo peso se teria água suficiente e acendeu o gás. Tirou duas chávenas de um dos caixotes e poisou-as noutro caixote que puxou para entre ele e Dalgliesh. Continha uma série de jornais meticulosamente dobrados que aparentavam não ter sido lidos. Estendeu um por cima do caixote e dispôs as chávenas azuis e uma garrafa de leite tão cerimoniosamente como se fossem beber por algum serviço precioso. Não voltou a falar a não ser quando o chá ficou pronto e o serviu. Nessa altura disse:
- Não fui o único amante que ela teve.
- Ela falou-lhe dos outros ?
- Não, mas penso que um deles era médico. Talvez mais do que um. Não seria de admirar, dadas as circunstâncias. Uma vez estávamos a falar acerca de relações sexuais e ela disse que a natureza e o carácter de um homem eram sempre completamente revelados quando ele fazia amor. Que, se ele fosse egoísta ou insensível ou violento, não conseguiria ocultá-lo na cama, fizesse o que fizesse quando vestido. Depois disse que uma vez tinha ido para a cama com um cirurgião e verificou ser evidente que a maioria dos corpos com que ele contactava tinham sido previamente anestesiados; que estava demasiado ocupado em admirar a sua própria técnica para lhe ocorrer que se encontrava na cama com uma mulher no estado consciente. Riu-se disso. Não me parece que se importasse muito com o facto. Ria-se de uma data de coisas.
- Mas não pensa que ela fosse feliz?
Pareceu meditar no assunto. Dalgliesh pensou: ”Por amor de Deus, não respondas: ’Há alguém que o seja?’”
- Não, realmente feliz, não. A maior parte das vezes, não. Mas sabia realmente ser feliz. E o importante era isso.
- Como foi que a conheceu?
- Estou a preparar-me para ser escritor. Trata-se daquilo que quero ser e nunca quis ser outra coisa. Tenho de ganhar algum dinheiro para viver enquanto não terminar e publicar o meu primeiro romance, de maneira que trabalho à noite como telefonista do serviço para o continente. Falo suficientemente o francês para que isso seja possível. Não se ganha mal. Não tenho muitos amigos porque não há tempo e nunca fui para a cama com nenhuma mulher antes de conhecer a Jo. Parece que as mulheres não engraçam comigo. Conheci-a o Verão passado em St. James’s Park. Ela tinha lá ido num dos seus dias de folga e eu estava lá para ver os patos e verificar qual era o aspecto do parque. Queria localizar uma das cenas do meu livro em St. James’s Park no mês de Julho, e fui lá para tomar uns apontamentos. Ela estava deitada de costas na relva a olhar para o céu. Estava completamente sozinha. Uma das folhas do meu bloco de apontamentos voou com o vento e foi acertar-lhe na cara. Eu fui apanhá-la e pedi-lhe desculpa, e fomos ambos atrás dela.
Segurava a chávena de chá, olhando para ela como se estivesse a fitar de novo a superfície estival do lago.
- Estava um dia esquisito: muito quente, sem sol e com uma grande ventania. O vento soprava em rajadas quentes. O lago parecia viscoso como óleo.
Interrompeu-se por um momento e, como Dalgliesh não falasse, prosseguiu:
- De maneira que nos apresentámos e metemos conversa, e eu convidei-a para vir tomar chá comigo. Não sei com o que contava. Depois do chá conversámos mais e ela fez amor comigo. Semanas depois disse-me que quando veio cá não estava a pensar nisso, mas não sei. Nem sequer sei por que razão ela veio. Talvez estivesse aborrecida.
- E você estava a pensar nisso?
- Também não sei. Talvez. Sei que queria fazer amor com uma mulher. Queria saber como era. Trata-se de uma experiência sobre a qual não se pode escrever enquanto não se conhece.
- E às vezes nem assim. E durante quanto tempo continuou ela a proporcionar-lhe tema?
O rapaz pareceu não se dar conta da ironia, dizendo:
- Costumava vir aqui uma vez de quinze em quinze dias, quando estava de folga. Nunca saímos, a não ser uma vez por outra para ir a um bar. Ela trazia comida, preparava uma refeição e a seguir conversávamos e íamos para a cama.
- De que falavam?
- Creio bem que era eu que fazia a maior parte das despesas da conversa. Ela não me contou grande coisa sobre a sua pessoa, apenas que ambos os pais tinham morrido quando ela era criança e que tinha sido criada em Cumberland por uma tia velhota. Essa tia já morreu. Não me parece que a Jo tenha tido uma infância muito feliz. Sempre quis ser enfermeira, mas contraiu tuberculose quando tinha dezassete anos. Não foi muito grave e passou dezoito meses num sanatório suíço, vindo de lá curada. No entanto os médicos aconselharam-na a não seguir enfermagem. Assim, teve uma série de outros empregos. Foi actriz durante cerca de três anos, mas não obteve grande êxito. Depois foi empregada de mesa e caixeira por uns tempos. A seguir ficou noiva, mas aquilo não deu em nada, e rompeu o noivado.
- Ela disse-lhe porquê?
- Não, a não ser que descobriu uma coisa qualquer acerca do homem que tornava impossível casar-se com ele.
- Disse o que era ou quem era esse homem?
- Não, e eu não lho perguntei. Mas penso que pudesse ser uma espécie de tarado sexual.
Ao ver o rosto de Dalgliesh, acrescentou prontamente:
- Ao certo, não sei. Ela nunca me disse. A maior parte das coisas que sei da Jo surgiram por acaso, em conversa. Ela nunca falava de verdade acerca de si própria por muito tempo. É apenas uma noção que tenho. Havia uma espécie de amargo desespero na maneira como ela falava do noivado.
- E depois disso?
- Bem, aparentemente decidiu que, já agora, podia retomar a ideia inicial de ser enfermeira. Pensou que, com sorte, poderia passar no exame médico. Escolheu o John Carpendar porque queria estar perto de Londres, mas não propriamente dentro da cidade, e pensava que um hospital pequeno seria menos cansativo. Suponho que não queria que a saúde lhe falhasse.
- Ela falou do hospital?
- Nem por isso. Parecia senjir-se bastante bem lá. No entanto poupou-me os pormenores íntimos das rondas das arrastadeiras.
- Sabe se ela tinha algum inimigo?
- Havia de ter, não é verdade, visto que alguém a matou? Mas nunca me falou disso. Talvez não soubesse.
- Estes nomes significam alguma coisa para si?
Correu os nomes de todas as pessoas, estagiárias, enfermeiras, cirurgião e farmacêutico, que tinham estado na Nightingale House na noite em que Josephine Fallon morrera.
- Acho que ela me referiu a Madeleine Goodale. Tenho a impressão de que eram amigas. E o nome Courtney-Briggs parece-me familiar. Mas não consigo lembrar-me de pormenores.
- Qual foi a última vez que a viu?
- Há cerca de três semanas. Veio cá na noite de folga e fez o jantar.
- Que tal lhe pareceu na altura?
- Estava desassossegada e apetecia-lhe tremendamente fazer amor. Depois, mesmo antes de sair, disse que não voltaria a visitar-me. Uns dias depois recebi uma carta. Dizia simplesmente:
Estava a falar a sério. Peço-te que não tentes contactar comigo. Não foi nada que tenhas feito, de modo que não te rales. Adeus e obrigada..
Jo- Dalgliesh perguntou-lhe se tinha guardado a carta.
- Não. Só guardo documentos importantes. Quero dizer, não tenho espaço para amontoar cartas.
- E tentou contactar outra vez com ela?
- Não. Ela tinha-me pedido para não o fazer e não me pareceu que valesse a pena. Suponho que, se soubesse da criança, o teria feito. Mas não tenho a certeza. Não havia nada que eu pudesse fazer. Não poderia ter uma criança aqui. Bom, o senhor bem vê: como é que podia? Ela não havia de querer casar comigo, e eu nunca tinha encarado a hipótese de casar com ela. Não quero casar com ninguém. Mas não me parece que ela se tenha matado por causa do bebé. A Jo, não.
- Muito bem. Não lhe parece que ela se tenha matado. Diga lá porquê.
- Não era o género dela.
- Ora, não me venha com essa! Há-de ter melhores razões. O rapaz disse belicosamente:
- Estou-lhe a dizer, é isso. Conheci na vida duas pessoas que se mataram. Uma foi um rapaz durante o meu último ano, quando estávamos a fazer o exame final. O outro era o gerente de uma firma de limpeza a seco onde trabalhei. Guiava a carrinha das entregas. Pois bem, em ambos os casos toda a gente disse as coisas do costume acerca do horrível e do surpreendente que tinha sido. Mas eu não fiquei verdadeiramente surpreendido. Não quero dizer que estivesse à espera disso ou coisa que o valha. Não fiquei foi verdadeiramente surpreendido, e mais nada. Quando pensava em ambas as mortes, acreditava que eles realmente o tinham feito.
- A amostragem é demasiado reduzida.
- A Jo não se mataria. Por que havia de o fazer?
- Eu sou capaz de encontrar algumas razões. Até então, não tivera grande êxito na vida. Não tinha ninguém de família que se preocupasse com ela e contava muito poucos amigos. Não adormecia com facilidade à noite, não era verdadeiramente feliz. Tinha finalmente conseguido fazer o curso de enfermagem e estava a poucos meses do exame final. E nessa altura descobre que está grávida. Sabe que o amante não vai querer a criança, que não vale a pena recorrer a ele para obter consolo ou apoio.
Dowson soltou um veemente protesto:
- Ela nunca recorreu a ninguém para obter consolo ou apoio! É isso que estou a tentar dizer-lhe! Foi para a cama comigo porque lhe apeteceu. Eu não sou responsável por ela. Não sou responsável por ninguém. Ninguém! Só sou responsável por mim próprio. Ela sabia o que estava a fazer. Não era propriamente uma jovem inexperiente, que precisasse de carinho e protecção.
- Se acha que só as pessoas jovens e inocentes é que precisam de consolo e protecção, está a pensar em termos de lugares-comuns. E, se começa a pensar em termos de lugares-comuns, acaba por escrevê-los.
O rapaz disse carrancudamente:
- Talvez. Mas é o que eu penso.
De repente, levantou-se e foi até à parede. Quando regressou ao caixote central, Dalgliesh viu que trazia uma grande pedra lisa na mão. Adaptava-se-lhe confortavelmente à curva da palma da mão, com o seu formato perfeitamente oval. Era cinzenta-clara, sarapintada como um ovo. Dowson deixou-a deslizar da mão para a mesa, onde ela baloiçou suavemente até se imobilizar. Depois voltou a sentar-se e inclinou-se para diante, com a cabeça entre as mãos. Ficaram ambos a olhar para a pedra. Dalgliesh não falou. De súbito, o rapaz disse:
- Foi ela que ma deu. Encontrámo-la ambos na praia em Ventnor, na ilha de Wight. Fomos lá os dois em Outubro passado. Mas claro que o senhor sabe. Deve ter sido assim que me localizou. Pegue nela. É surpreendentemente pesada.
Dalgliesh tomou a pedra nas mãos. Era agradável ao tacto, macia e fresca. Apreciou a perfeição do seu formato afeiçoado pelo mar, e o forte e inflexível boleado, que no entanto se adaptava tão suavemente à palma da mão.
- Quando era miúdo, nunca fiz férias à beira-mar. O meu pai morreu quando eu ainda não tinha seis anos e a velhota não tinha dinheiro para isso. De modo que sentia a falta do litoral. A Jo pensou que teria piada irmos ambos lá. Em Outubro esteve bastante calor. Lembra-se? Apanhámos o ferry em Portsmouth e ia apenas meia dúzia de pessoas além de nós. A ilha também estava vazia. Podíamos percorrer a pé o caminho entre Ventnor e o farol de St. Catherine sem encontrar vivalma. Estava tanto calor e tão pouca gente que podíamos tomar banho nus. A Jo descobriu esta pedra. Eu não estava disposto a rasgar o bolso vindo carregado com a pedra, mas trouxe-a ela. Depois, quando regressámos aqui, deu-ma como recordação. Eu quis que ela a conservasse, mas ela disse, que eu havia de me esquecer dessas férias muito antes dela. Não está a ver? Ela sabia ser feliz. Eu não tenho a certeza de o saber. Mas a Jo sabia. Quando uma pessoa é assim, não se mata. Quando sabe como pode ser maravilhoso viver, não. Colette sabia-o. Escreveu sobre ”um, compulsivo rapport1 intenso e secreto com a terra e tudo o que jorra dos seus seios”.
Olhou para Dalgliesh, acrescentando:
- Colette era uma escritora francesa.
- Eu sei. E acha que a Josephine Fallon era capaz de sentir isso?
- Sei que era. Não durante muito tempo. Não com frequência. Mas, quando estava feliz, era maravilhosa. Quando conhece, uma vez que seja, esse género de felicidade, a pessoa não se mata. Enquanto estiver viva, há a esperança de que possa voltar a acontecer. Sendo assim, para quê negar a si própria para todo o sempre essa esperança?
- A pessoa também pode negar a si própria a infelicidade observou Dalgliesh. - Isso poderia parecer mais importante. Mas acho que tem razão. Não me parece que a Josephine Fallon se tenha matado. Acho que foi assassinada. É por isso que lhe pergunto se tem mais alguma coisa a dizer-me.
- Não. Estava de serviço nos telefones na noite em que ela morreu. O melhor é dar-lhe a direcção. Imagino que quererá confirmar isso.
- Há razões que tornam extremamente improvável que tenha sido alguém que não estivesse familiarizado com a Nightingale House. Mas confirmaremos.
- Nesse caso, aqui tem a direcção.
Rasgou um canto do jornal que cobria a mesa e, extraindo um lápis do bolso das calças, escreveu a direcção numa caligrafia difícil de decifrar, com a cabeça quase a tocar o papel. A seguir, dobrou-o como se fosse uma mensagem secreta e empurrou-o pela mesa na direcção de Dalgliesh.
- Leve também a pedra. Gostava que ficasse com ela. Não, guarde-a. Guarde-a, por favor. O senhor acha que eu não tenho coração, que não tenho pena dela. Mas tenho. Quero que o senhor descubra quem a matou. Não servirá de nada, nem para ela nem para o homem, mas quero que descubra. E desculpe. É que não consigo permitir-me sentir demasiado. Não posso deixar-me envolver. Compreende?
Dalgliesh tomou a pedra na mão e levantou-se para partir.
- Sim - respondeu -, compreendo.
Mr. Henry Urquhart, da firma Urquarth, Wimbush and Portway, era o advogado de Josephine Fallon. Dalgliesh tinha o encontro com ele marcado para o meio-dia e vinte e cinco, uma hora indelicamente escolhida, sentia-o, para dar a conhecer que o tempo do advogado era precioso e que não estava disposto a dispensar à Polícia mais do que meia hora antes do almoço. Fizeram entrar Dalgliesh imediatamente. Duvidou que um sargento tivesse sido recebido com tal prontidão. Era essa uma das vantagens menores da sua ânsia de ser ele próprio a encarregar-se das coisas, controlando a investigação a partir do seu gabinete com um pequeno exército de agentes investigadores, funcionários do local do crime, fotógrafos, peritos em dactiloscopia e cientistas, a alimentarem-lhe o ego e isolando-o efectivamente de tudo, menos os principais protagonistas do crime. Sabia que possuía a fama de solucionar os casos muito depressa, mas nunca regateava tempo a casos que alguns colegas seus achavam mais indicados para um agente investigador. Em consequência disto, obtinha por vezes informações que um inquiridor menos experiente deixaria passar. Tinha poucas esperanças de obter esse afortunado bónus por parte de Mr. Henry Urquhart. O mais provável era que a entrevista não fosse muito mais do que a troca formal e cerimoniosa de factos relevantes. Mas tinha-lhe sido preciso ir a Londres. Havia assuntos de que tinha de tratar na Yard. E era sempre um prazer visitar a pé e com um sol incerto aqueles isolados recantos da City.
Os senhores Urquhart, Wimbush and Portway eram uma das mais respeitadas e bem sucedidas firmas de advocacia da City. Dalgliesh sentiu que poucos dos clientes de Mr. Urquhart poderiam ver-se envolvidos numa investigação de assassínio. Poderiam ter as suas dificuldades de quando em quando com o procurador da rainha1; poderiam, contra todos os conselhos, embrenhar-se em acções judiciais imprudentes ou persistir obstinadamente em fazer testamentos insensatos; poderiam solicitar o seu advogado que imaginasse defesas técnicas para as leis relativas ao consumo de bebidas alcoólicas por condutores; poderia realmente ser necessário desenredá-los de todo o tipo de disparates e imprudências. Porém, a matarem quem quer que fosse, teriam de o fazer legalmente.
A sala aonde foi conduzido poderia bem servir de cenário de teatro para o gabinete de um advogado de sucesso. O carvão ardia na lareira num monte bem alto. Por sobre a prateleira da chaminé, o retrato do fundador fitava aprovadoramente o bisneto cá em baixo. A secretária à qual o bisneto se sentava ostentava as mesmas características de durabilidade, adaptação ao fim em vista e uma sólida opulência que por pouco não atingia a ostentação. Na outra parede havia apenas um pequeno óleo. Dalgliesh pensou que se parecia muito com um Jan Steen. Proclamava ao mundo que a firma sabia reconhecer quando um quadro era bom e podia dar-se ao luxo de o expor na parede.
Mr. Urquhart, alto, ascético, discretamente grisalho nas têmporas e com o ar de um mestre-escola reservado, estava bem talhado
para o papel de advogado de sucesso. Vestia um fato extremamente bem feito, mas de tweed esverdeado como se o mais ortodoxo padrão de lista fina tivesse chegado às raias da caricatura. Recebeu Dalgliesh sem curiosidade ou preocupação aparente, mas o superintendente notou com interesse que o processo de Miss Fallon estava já na mesa diante dele. Dalgliesh disse sucintamente ao que vinha e concluiu:
- Pode dizer-me alguma coisa sobre ela? Numa investigação criminal, tudo o que pudermos saber sobre a vida e a personalidade da vítima tem utilidade.
- E está já persuadido de que se trata de um crime?
- Ela morreu devido à ingestão de nicotina no copo do uísque que costumava beber à noite antes de dormir. Tanto quanto sabemos, não tinha conhecimento de que a lata do pulverizador das roseiras se encontrava no armário da estufa e, caso o soubesse e lhe tivesse ocorrido utilizá-lo, duvido de que a seguir tivesse escondido a lata.
- Compreendo. E há também a sugestão de que o veneno ministrado à primeira vítima... Heather Pearce, não é?... se destinava à minha cliente?
Mr. Urquhart manteve-se por um momento com as mãos juntas pela ponta dos dedos e a cabeça levemente inclinada como se estivesse a consultar o seu próprio subconsciente, um poder superior ou o fantasma da sua ex-cliente antes de divulgar o que sabia. Dalgliesh pensou que podia ter poupado o tempo. Urquhart era um homem que sabia perfeitamente até onde estava disposto a ir, tanto profissionalmente como noutros campos. A pantomina era pouco convincente. E a sua história, quando saiu cá para fora, não contribuiu em nada para cobrir as lacunas da vida de Josephine Fallon. Os factos estavam ali. Consultou os papéis que tinha diante de si e apresentou-os logicamente, sem emoção e com lucidez. O local e a data de nascimento; as circunstâncias da morte dos pais; o facto de subsequentemente ter sido criada por uma tia velha que, juntamente com ele, fora tutora até à maioridade de Miss Fallon; a data e circunstâncias da morte dessa tia, com um cancro no útero; o dinheiro legado a Josephine Fallon e o modo preciso como fora investido; os movimentos da rapariga a seguir ao vigésimo primeiro aniversário, tanto quanto - observou ele secamente - se dera ao trabalho de o informar.
- Ela estava grávida - disse Dalgliesh. - Sabia?
Não se podia dizer que esta notícia tivesse desconcertado o advogado, conquanto o rosto se lhe franzisse na expressão vagamente pesarosa de um homem que nunca é capaz de se reconciliar completamente com a sujeira do mundo.
- Não. Ela não me disse. Mas a verdade é que não seria de esperar que o fizesse, a menos, claro, que estivesse a pensar em intentar uma acção de paternidade. Depreendo que não se pusesse a questão.
- Ela contou à amiga, Madeleine Goodale, que tencionava abortar.
- Ah, sim? Uma questão dispendiosa e, na minha maneira de ver, apesar da recente legislação, dúbia. Claro que me refiro ao ponto de vista moral, e não ao legal. A recente legislação...
- Estou a par da recente legislação - interrompeu Dalgliesh.
- Portanto não há nada que me possa dizer?
Na resposta do advogado havia uma leve nota de censura.
- Já lhe disse muita coisa sobre o seu passado e situação financeira, na medida em que deles tinha conhecimento. Receio bem que não possa fornecer-lhe quaisquer outras informações recentes ou íntimas. Miss Fallon raramente me consultava. Aliás, não tinha razão para o fazer. A última vez foi por causa do testamento dela. Suponho que esteja a par dos seus termos, não? Miss Madeleine Goodale é a única herdeira. Os bens devem orçar aproximadamente em vinte mil libras.
- Houve algum testamento anterior?
Seria imaginação de Dalgliesh, ou teria realmente detectado aquela ligeira contracção dos músculos faciais, o franzir quase imperceptível, que acolhiam uma pergunta importuna?
- Houve dois, mas o segundo destes nunca chegou a ser assinado. O primeiro, feito pouco depois da Sua maioridade, deixava tudo a instituições médicas beneficentes, incluindo à investigação do cancro. Quanto ao segundo, propunha-se executá-lo por ocasião do casamento. Tenho aqui a carta.
Estendeu-a a Dalgliesh. Trazia o remetente de um apartamento em Westminster e estava escrita numa caligrafia direita confiante e pouco feminina.
Estimado Mr. Urquhart:
Serve a presente para o informar de que vou casar no dia 14 de Março, na Conservatória do Registo Civil de St. Marylebone, com Peter Courtney. É actor, é possível que já tenha ouvido falar dele. Peço-lhe o favor de redigir um testamento para eu assinar nessa data. Pretendo deixar tudo ao meu marido.
O nome completo dele, a propósito, é Peter Albert Courtney Briggs. Sem hífen. Suponho que precisa de sabê-lo para redigir o testamento. Ficaremos a residir nesta morada.
vou também precisar de algum dinheiro. Pode fazer o favor de pedir à Warranders que ponha duas mil libras à minha disposição no fim do mês? Obrigada. Espero que o senhor e Mr. Surtees estejam de saúde.
com os melhores cumprimentos.
Josephine Fallon.
Uma carta fria, pensou Dalgliesh. Sem explicações. Sem justificação. Sem expressões de felicidade ou esperanças. E, já agora, sem convite para o casamento.
- A Warranders é a firma de corretores dela - disse Henry Urquhart. - Tratava sempre com eles por nosso intermédio, e nós conservávamos todos os seus documentos oficiais. Preferia que o fizéssemos. Dizia ela que preferia viajar sem empecilhos.
Repetiu a frase, sorrindo de modo complacente como se a achasse de algum modo notável, e fitou Dalgliesh como se esperasse qualquer comentário deste. Depois prosseguiu:
- Surtees é o meu empregado. Perguntava sempre por Surtees. Parecia achar esse facto mais intrigante do que os termos da carta em si.
- E a seguir Peter Courtney enforcou-se - disse Dalgliesh.
- Assim foi, três dias antes do casamento. Deixou uma mensagem para o juiz de instrução. Não foi lida na investigação, posso dizê-lo com gratidão. Era bem explícita. Courtney dizia que tencionara casar para se eximir a determinadas dificuldades financeiras e pessoais, mas no último momento descobrira não ser capaz de enfrentar o facto. Aparentemente era um jogador inveterado. Tanto quanto sei, o vício do jogo é, de facto, uma enfermidade semelhante ao alcoolismo. Conheço mal a síndroma, mas imagino que possa ter consequências trágicas, particularmente para um actor cujos proventos, mesmo que vultuosos, são incertos. Peter Courtney estava fortemente endividado e completamente impossibilitado de se subtrair a um vício que cada dia aprofundava mais essa dívida.
- E as dificuldades pessoais? Suponho que era homossexual. Na altura correu esse boato. Sabe se a sua cliente tinha conhecimento disso?
- Não estou informado. Parece improvável que ela não soubesse, visto que se comprometeu com ele ao ponto de ficar noiva.
Claro que é possível que tenha sido tão optimista ou tão insensata que supusesse poder contribuir para o curar. Se ela me consultasse, tê-la-ia aconselhado a não casar, mas, como disse, não me consultou.
E pouco mais tarde, pensou Dalgliesh, apenas uma questão de meses, tinha começado o curso no John Carpendar e dormia com o irmão de Peter Courtney. Porquê? Solidão? Aborrecimento? Uma desesperada necessidade de esquecer? Pagamento de serviços prestados? Que serviços? Simples atracção física - se é que a necessidade física alguma vez era simples - por um homem que era uma edição grosseira do noivo que perdera? A necessidade de se certificar de que era capaz de despertar o desejo heterossexual? O próprio Courtney-Briggs tinha sugerido que fora ela quem tomara a iniciativa. Fora sem dúvida ela quem terminara a ligação. Era iniludível o amargo ressentimento do cirurgião para com uma mulher que tivera a temeridade de o rejeitar antes de ele ter decidido rejeitá-la.
Ao pôr-se de pé para sair, Dalgliesh disse:
- O irmão de Peter Courtney é chefe de clínica no Hospital John Carpendar. Mas talvez o senhor saiba?
Henry Urquhart fez o seu sorriso tenso, sem divertimento.
- Ah, sei, sim. Stephen Courtney-Briggs é meu cliente. Ao contrário do irmão, conquistou um hífen para o nome e um êxito mais permanente. - E acrescentou, com aparente irrelevância:
- Estava a passar férias no iate de um amigo, no Mediterrâneo, quando o irmão morreu. Regressou imediatamente. Foi, evidentemente, um grande abalo, para além de constituir um considerável embaraço.
Devia ter sido, pensou Dalgliesh. Mas Peter morto era decididamente menos embaraçoso do que Peter vivo. Stephen Courtney-Briggs gostaria certamente de ter tido um actor conhecido na família, um irmão mais novo que, sem lhe fazer concorrência no seu campo, acrescentasse o seu lustro à patina de sucesso e proporcionasse a Courtney-Briggs acesso ao extravagantemente egoísta mundo do palco. Mas o trunfo tinha-se tornado uma responsabilidade, e o herói um objecto de escárnio ou, na melhor das hipóteses, de comiseração. Tratava-se de um malogro que o irmão acharia difícil desculpar.
Cinco minutos depois, Dalgliesh apertou a mão a Urquhart e saiu. Ao atravessar o corredor, a rapariga do PBX, ouvindo-lhe os passos, olhou em redor, corou e deteve-se numa momentânea desorientação, com a cavilha na mão. Tinha sido bem instruída, mas não o suficiente. Sem querer embaraçá-la mais ainda, Dalgliesh sorriu e abandonou rapidamente o edifício. Não tinha dúvidas de que, por instruções de Henry Urquhart, estava a ligar para Stephen Courtney-Briggs.
Saville Mansions era um conjunto de apartamentos do final da época vitoriana perto da Marylebone Road, respeitável, próspero; mas nem ostentoso nem opulento. Masterson teve a dificuldade que esperara em encontrar lugar para estacionar o automóvel e passava já das sete e meia quando penetrou no prédio. O átrio de entrada era dominado por um ascensor embutido numa espécie de gaiola, cheio de enfeites, e uma mesa de recepção presidida por um porteiro fardado. Masterson, que não fazia tenção de dizer ao que vinha, dirigiu-lhe um aceno despreocupado e subiu lentamente pelas escadas. O número 23 ficava no segundo andar. Premiu a campainha e preparou-se para uma pequena espera.
No entanto, a porta abriu-se imediatamente e viu-se quase abraçado por uma extraordinária aparição, pintada como a caricatura de uma prostituta de teatro e envergando um vestido de noite curto de chiffon cor de fogo que pareceria incongruente numa mulher com metade da sua idade. O decote era tão fundo que distinguiu num relance a prega entre os seios pendentes repuxados para cima pelo soutien e apercebeu-se dos sítios onde a base se encontrava ressequida nas gretas da pele seca e amarelada. Tinha as pestanas carregadas de rímmel; o cabelo quebradiço, pintado de um loiro improvável, estava armado com laca em faixas à volta do rosto pintalgado de vermelho; tinha a boca pintada de carmesim aberta de incrédula consternação. A surpresa era mútua. Fitavam-se um ao outro como se não lograssem acreditar no que os seus olhos viam. A mudança do rosto dela, do alívio para o desapontamento, foi quase cómica.
Masterson foi o primeiro a recompor-se e apresentou-se:
- Deve estar lembrada - disse. - Telefonei de manhã e marquei uma entrevista consigo.
- Não posso atendê-lo agora. vou precisamente sair. Pensei que era o meu par de dança. O senhor disse que vinha ao fim da tarde.
Uma esganiçada voz resmungona que o desapontamento tornava mais ríspida. Estava com ar de querer fechar-lhe a porta na cara. Rapidamente, ele enfiou um pé no vão da porta.
- Atrasei-me e não pude evitá-lo. Peço desculpa. Atrasara-se e não pudera evitá-lo. Nada mais verdadeiro.
Aquele interlúdio frenético, mas no final satisfatório, no banco de trás do automóvel, tinha ocupado uma porção maior da tarde do que ele previra. E também demorara mais encontrar um lugar suficientemente oculto, mesmo numa escura tarde de Inverno. A Guildford Road não oferecia muitas curvas promissoras em campo aberto com a sua perspectiva de bermas relvadas e carreiros desertos. Além disso Julia Pardoe fora exigente. De cada vez que ele afrouxava num local provável, era confrontado com o seu calmo ”aqui não”. Avistara-a quando ela se preparava para descer do passeio para a passagem de peões que conduzia à entrada da estação de Heatheringfield. Ele afrouxara ao aproximar-se dela, mas, em lugar de lhe acenar para atravessar, inclinara-se e abrira a porta do lado contrário. Ela detivera-se apenas um segundo antes de dirigir-se a ele, com o casaco a baloiçar por sobre as botas até ao joelho, e introduzira-se no assento ao lado dele sem uma palavra ou um olhar.
- Vem até à cidade? - perguntara ele.
Ela acenara que sim e sorrira dissimuladamente, de olhar fixo no pára-brisas. Fora tão simples como isso. Mal pronunciara uma dúzia de palavras durante o trajecto. Os preliminares, hesitantes ou mais ostensivos, que ele sentira que o jogo lhe exigia, não tinham obtido qualquer correspondência. Dir-se-ia não passar de um motorista com o qual ela viajava em inoportuna proximidade. No final, espicaçado pela raiva e pela humilhação, tinha começado a perguntar a si próprio se não se teria equivocado. Mas houvera a certificação daquela concentrada imobilidade dos olhos que, a certa altura, por um espaço de minutos, tinham fitado com azul intensidade as mãos dele afagando o volante ou atarefadas com as mudanças. Tinha-o desejado, sim. Desejara-o tanto como ele. Mas dificilmente se poderia ter chamado ao sucedido uma cambalhota à pressa. Havia uma coisa, surpreendentemente, que ela lhe dissera. Ia encontrar-se com Hilda Rolfe; jantariam ambas cedo e a seguir iriam a uma sessão de teatro. Pois bem, de duas uma; ou iriam sem jantar ou perderiam o primeiro acto; em qualquer dos casos, ela não parecera preocupada.
Divertido e apenas levemente curioso, ele perguntara:
- Como é que vai explicar o atraso à enfermeira Rolfe? Ou agora nem sequer está para lhe aparecer?
Ela encolhera os ombros.
- Conto-lhe a verdade. Podia ser que lhe fizesse bem - Vendo-o franzir subitamente o sobrolho, acrescentou com desprezo:
- Oh, não se aflija, que ela não vai bichanar tudo a Mr. Dalgliesh. A Hilda não é dessas.
Masterson fez votos de que ela tivesse razão. Tratava-se de uma coisa que Dalgliesh não desculparia.
- Que fará ela? - perguntara.
- Se eu lhe contar? Despedir-se, acho eu: ir-se embora do John Carpendar. Está fartinha daquilo. Só lá continua por minha causa.
Forçando a mente a desviar-se da recordação daquela voz aguda e impiedosa para o presente, Masterson conseguiu dirigir um sorriso à mulher muito diferente que agora o confrontava e disse apaziguadoramente:
- Sabe, o trânsito... Tive de vir do Hampshire de automóvel. Mas não lhe tomo muito tempo.
Estendendo o cartão com aquele ar levemente furtivo inseparável do gesto, introduziu-se no apartamento. Ela não tentou detê-lo. Mas tinha os olhos inexpressivos e o espírito manifestamente longe dali. Quando fechou a porta, o telefone tocou. Sem um murmúrio, deixou-o ali especado no átrio de entrada e quase correu para o quarto que ficava do lado esquerdo. Ele ouviu-lhe a voz subir de tom, protestando. Parecia estar a ralhar, e depois a lamuriar. A seguir houve um silêncio. Ele cruzou silenciosamente o átrio e esforçou-se por escutar. Pensou detectar o ruído do disco a marcar um número. Em seguida, ela voltou a falar. Não conseguia ouvir o que ela dizia. Desta feita, a conversa terminou passados segundos. Depois, novo ruído do disco marcador. E mais lamúria. Ao todo discou quatro números antes de voltar a aparecer no átrio de entrada.
- Há algum problema? - perguntou ele. - Posso ajudar?
Ela assestou a vista e fitou-o concentradamente por um segundo, como uma dona de casa a avaliar a qualidade e o preço de uma peça de carne. A resposta, quando surgiu, foi peremptória e espantosa.
- Sabe dançar?
- Fui campeão da Polícia Metropolitana durante três anos seguidos - mentiu ele. A Corporação não realizava campeonatos de dança, coisa que nada tinha de surpreendente, mas ele pensou ser pouco provável que ela o soubesse e a mentira, como a maior parte das suas mentiras, saiu-lhe fácil e espontaneamente.
Novamente aquele olhar concentrado e especulativo.
- Vai precisar de um smoking. Ainda cá tenho as coisas do Martin. vou vendê-las, mas o homem ainda não apareceu. Prometeu que vinha esta tarde, mas não veio. Hoje em dia não se pode fazer fé em ninguém. O senhor parece ter mais ou menos o corpo dele. Ele era bastante encorpado, antes da doença.
Masterson resistiu à tentação de rir alto e disse gravemente:
- Se tem alguma dificuldade, gostaria de ajudar. Mas sou polícia. Estou aqui para obter informações, e não para passar a noite a dançar.
- Não é toda a noite. O baile acaba às onze e meia. É o baile do campeonato de dança Delaroux, no Athenaeum Ballroom, ali para a Strand. Podemos falar lá.
- Seria mais fácil falar aqui - disse, e o rosto carrancudo dela assumiu uma expressão obstinada.
- Não quero falar aqui.
Falou com a insistência caprichosa de uma criança choramingona. Depois, a voz endureceu para o ultimato.
- Ou o baile, ou nada feito.
Enfrentaram-se em silêncio. Masterson ponderou. A ideia era grotesca, claro, mas, a menos que concordasse, não lhe arrancaria nada nessa noite. Dalgliesh tinha-o enviado a Londres para obter informações, e o orgulho não lhe permitia regressar à Nightingale House sem elas. Mas permitir-lhe-ia o orgulho passar o resto da noite a servir de par àquela bruxa pintalgada em público? Quanto ao dançar, não havia dificuldades. Era uma das artes, conquanto não a mais importante, que Sylvia lhe tinha ensinado. Era uma loira espalhafatosa, dez anos mais velha que ele, com um marido gerente bancário enfadonho, que fora para ela um puro e simples dever enganar. Sylvia tinha uma verdadeira maluqueira por dançar em pistas e tinham ambos progredido ao longo de uma sucessão de competições com medalhas de bronze, prata e oiro antes de o marido se ter tornado incomodamente ameaçador, Sylvia ter começado a falar em divórcio e Masterson ter decidido prudentemente que a relação ultrapassara a sua utilidade, para não dizer a sua capacidade para desportos em recinto fechado, e que o serviço policial proporcionava uma carreira razoável para um homem ambicioso em busca de uma desculpa para um período de comparativa rectidão. Presentemente, os seus gostos em matéria de mulheres e de dança tinham mudado, e dispunha de menos tempo para uma e outra coisa. Mas Sylvia havia tido a sua utilidade. E, conforme lhes ensinavam na Escola de Formação de Investigadores, no trabalho da Polícia nunca há dons desperdiçados.
Não, não haveria dificuldades quanto ao dançar. Se ela era ou não igualmente dotada, era outra questão. O serão redundaria provavelmente num fiasco e, fosse ele com ela ou não, com o tempo, ela acabaria provavelmente por falar. Mas quando seria isso? Dalgliesh gostava de trabalhar com rapidez. Este era um daqueles casos em que o número de suspeitos estava limitado a uma pequena comunidade fechada, e normalmente ele não contava gastar mais do que uma semana com eles. Não ficaria propriamente grato ao subordinado por uma noite desperdiçada. E além disso havia aquele espaço de tempo no automóvel, com o qual de algum modo havia que entrar em linha de conta. Não seria uma noite boa para regressar de mãos a abanar. E que diabo! Daria uma bela história para a rapaziada. Por outro lado, se o serão se tornasse demasiado impossível, podia sempre cavar dela. Era melhor não se esquecer de levar a sua própria roupa no automóvel, para o caso de ter de se escapulir rapidamente.
- Está bem - disse. - Mas é preciso que compense.
- Há-de compensar.
O smoking de Martin Dettinger servia-lhe melhor do que ele temera. Era estranho, aquele ritual de vestir a roupa de outra pessoa. Deu por si a procurar nos bolsos como se também eles pudessem albergar uma pista qualquer. Mas não encontrou nada. Os sapatos eram demasiado pequenos e não fez qualquer esforço para enfiar lá os pés. Felizmente trazia sapatos pretos com solas de couro. Eram pesados demais para dançar e destoavam do smoking, mas teriam de servir. Enfiou o seu fato num caixote de cartão relutantemente dispensado por Mrs. Dettinger e puseram-se a caminho.
Sabia que haveria muito poucas probabilidades de arranjar lugar para o carro perto da Strand, de modo que foi até à margem sul e estacionou-o perto do County Hall. Depois, seguiram a pé até à estação de Waterloo e meteram-se num táxi. Essa parte do serão não foi lá muito má. Ela tinha-se embrulhado num volumoso casaco de peles fora de moda, que deitava um cheiro forte e ácido como se um gato o tivesse apanhado, mas pelo menos ocultava-a. Nenhum deles pronunciou palavra durante o trajecto.
Quando chegaram, pouco passava das oito, o baile tinha já começado e o grande salão estava desagradavelmente cheio. Abriram caminho até uma das poucas mesas vagas restantes sob o balcão. Masterson reparou que todos os professores de dança ostentavam um cravo vermelho, e as professoras um branco. Havia uma boa porção de beijos promíscuos e de palmadas acariciadoras nos ombros e nas costas. Um dos homens avançou aos requebros para Mrs. Dettinger, aos balidos de boas-vindas e felicitações.
- Está maravilhosa, Mrs. D. Já sei que o Tony está doente, que pena! Mas ainda bem que arranjou par.
A olhadela que lançou a Masterson era de formal curiosidade. Mrs. Dettinger acolheu esta saudação com uma sacudidela de cabeça desajeitada e um leve olhar enviesado de satisfação. Não fez menção de apresentar Masterson.
Durante as duas danças seguintes permaneceram sentados e Masterson contentou-se em olhar à volta do salão. Toda a atmosfera era desoladamente respeitável. Um enorme cacho de balões pendia do tecto, sem dúvida pronto a descer para qualquer clímax orgiástico das festividades da noite. Os elementos do conjunto musical vestiam casaco vermelho com dragonas doiradas e tinham o ar lugubremente resignado de homens que já viram tudo aquilo. Masterson previa com deleite um serão de cínica distanciação, o aprazimento de observar a tolice dos outros, o prazer insidioso da repugnância. Recordou a descrição feita por um diplomata francês da maneira de dançar dos ingleses, ”avec lês visages si tristes, lês derrières si gais”1. Ali os traseiros estavam positivamente graves, mas os rostos encontravam-se imobilizados em esgares de deleite estimulado tão artificiais que ele perguntou a si próprio se a escola ensinara a expressão facial aprovada juntamente com os passos correctos. Fora da pista, todas as mulheres pareciam preocupadas, indo as suas expressões da leve apreensão à angústia quase frenética. Eram em muito maior número que os homens e algumas dançavam umas com as outras. Na maioria eram de meia-idade ou mais velhas, e o estilo de vestido era uniformemente antiquado, de corpete justo, profundamente decotado e enorme saia circular guarnecida de lantejoulas.
A terceira dança era um quick step. Ela virou-se subitamente para ele e disse:
- Vamos dançar esta.
Sem protestar, ele conduziu-a até à pista e enlaçou-lhe o corpo rígido com o braço esquerdo. Resignou-se a um longo e exaustivo serão. Se aquela velha harpia tinha alguma coisa de útil
a dizer - e o velho parecia achar que sim -, por Deus, havia de dizê-lo nem que fosse preciso ele chocalhá-la em redor daquele raio da pista até ela cair. A ideia era agradável, e ele entregou-se-lhe. Conseguia imaginá-la, desengonçada como um fantoche liberto dos cordelinhos, com as pernas frágeis desajeitadamente escarranchadas e os braços a baloiçar até à exaustão final. O mal é que provavelmente cairia ele primeiro. Aquela meia hora com Julia Pardoe não tinha sido a melhor preparação possível para a noite na pista de dança. Porém, o estafermo da velha tinha bastante vida dentro. Ele saboreava e sentia as gotas de suor a fazerem-lhe cócegas nos cantos da boca, mas ela quase nem tinha a respiração alterada e as mãos permaneciam frescas e secas. O rosto junto ao seu estava concentrado, os olhos vítreos e o lábio inferior descaído. Era como dançar com um saco de ossos animado.
A música terminou com estrondo. O maestro girou nos calcanhares e exibiu um cintilante sorriso artificial na direcção da pista. Os músicos descontraíram-se, permitindo a si próprios um sorriso fugaz. O caleidoscópio de cor no meio da pista coalesceu e a seguir fluiu em novas combinações, enquanto os pares se libertavam e seguiam afectadamente para as respectivas mesas. Um criado rondava, à espera de pedidos. Masterson fez-lhe sinal, curvando o dedo.
- Que é que toma?
O tom da pergunta era tão indelicado como o de um avarento obrigado a pagar a sua rodada. Ela pediu um gim com água tónica e, quando este veio, aceitou-o sem agradecimentos ou aparente prazer. Ele decidiu-se por um uísque duplo. Seria o primeiro de muitos. Estendendo a saia cor de fogo em redor da cadeira, ela começou a inspeccionar o salão com aquele olhar de desagradável intensidade que ele começava a conhecer tão bem. Era como se ele ali não estivesse. ”Cuidado”, pensou ele, ”não te impacientes. Ela quer reter-te aqui. Deixa-a lá.”
- Fale-me do seu filho - disse calmamente, com o cuidado de manter a voz uniforme e desprovida de empatia.
- Agora não. Outra noite qualquer. Não há pressa.
Por pouco não lhe deu um berro de exasperação. Pensaria ela realmente que tencionava voltar a encontrar-se com ela? Esperaria que ele dançasse com ela toda a vida a troco da meia promessa de uma guloseima de informações? Viu-se a ele e a ela, bailari- - cando grotescamente pelos anos fora, participantes involuntários numa surrealista charada por mímica. Poisou o copo.
- Não vai haver outra vez. A não ser que me possa ajudar.
O superintendente não é nada amigo de gastar dinheiros públicos, quando não há nada para saber. Tenho de justificar cada minuto do meu tempo.
Instalou na voz o grau adequado de ressentimento e farisaísmo. Ela fitou-o pela primeira vez desde que se tinham sentado.
- Pode ser que haja alguma coisa para saber. Eu nunca disse que não havia. E as bebidas?
- As bebidas? - repetiu ele, momentaneamente perplexo.
- Quem é que paga as bebidas?
- Bem, normalmente entram na conta das despesas. Mas, quando é uma questão de obsequiar amigos, como esta noite, por exemplo, claro que sou eu a pagar.
Mentia com facilidade. Era um dos talentos que considerava mais úteis no seu ofício.
Ela assentiu, como que satisfeita. Porém não falou. Ele perguntou a si próprio se havia de tentar novamente, quando a orquestra atacou um cba-cha-cha. Sem uma palavra, ela pôs-se de pé e virou-se para ele. Regressaram à pista.
Ao cha-cha-cha seguiu-se um mambo, ao mambo uma valsa, e à valsa um foxtrot lento. E ele continuava a não saber nada de novo. Foi então que se registou uma alteração ao programa da noite. As luzes baixaram subitamente de intensidade e um homem untuoso, reluzindo de cima a baixo, como se tivesse tomado banho em brilhantina, apareceu diante do microfone e ajustou-o para a sua altura. Vinha acompanhado por uma loira lânguida, com um penteado complicadíssimo que já passara de moda havia cinco anos. O projector incidiu sobre eles. Ela trazia negligentemente suspenso da mão direita um lenço de pescoço de chiffon e inspeccionou a pista de dança, que principiava a esvaziar-se, com ares de proprietária. Houve um silêncio de antecipação. O homem consultou uma lista que tinha na mão.
- E agora, senhoras e senhores, o momento por que todos esperávamos. As exibições de danças. Os nossos laureados do ano vão demonstrar, para nosso deleite, as danças com que conquistaram as suas medalhas. Começaremos pela nossa medalha de prata, Mrs. Dettinger, dançando - consultou a lista -, dançando o tango.
Abarcou a pista com um movimento circundante da mão sapuda. A orquestra irrompeu num trombetear dissonante. Mrs. Dettinger pôs-se de pé, arrastando Masterson consigo. Cingia-lhe o pulso com a mão como se fosse um torno. O foco luminoso varreu a sala e assestou-se neles. Houve um pequeno surto de palmas. O homem untuoso continuou:
- Mrs. Dettinger dança com... Pode indicar-nos o nome do seu par, Mrs. Dettinger?
Masterson exclamou alto:
-Mr. Edward Heath1.
O homem untuoso fez uma pausa, mas depois decidiu tomar aquilo pelo valor facial. Colocando na voz um entusiasmo forçado, anunciou:
- Mrs. Dettinger, medalha de prata, dançando o tango com Mr. Edward Heath.
Os timbales entrechocaram-se e houve mais uma chuva de palmas. Masterson conduziu o seu par até à pista com exagerada cortesia. Deu-se conta de que estava levemente embriagado e ficou satisfeito com o facto. Ia divertir-se.
Cingiu-lhe os rins com a mão e assumiu uma expressão de lúbrica expectativa, que suscitou uma risadinha imediata da mesa mais próxima. Ela franziu o sobrolho e ele observou, fascinado, um deslocado tom carmesim invadir-lhe o rosto e o pescoço. Percebeu, deleitado, que estava intensamente nervosa, que aquela patética charada por mímica contava realmente para ela. Era para aquele momento que se tinha vestido com esmero e pintalgara o rosto daquela maneira. O baile do campeonato Delaroux. O tango de demonstração. E de repente o par deixara-a ficar mal. Provavelmente faltara-lhe a coragem, pobre diabo! No entanto o destino tinha-lhe proporcionado um substituto apresentável e competente. Devia ter-lhe parecido um milagre. Era devido àquele momento que ela fora atraída ao Athenaeum Hall e ali se mantivera a dançar ao longo das enfadonhas horas. A descoberta era hilariante. Por Deus, tinha-a nas mãos! Aquele iria ser o grande momento dela. E ele faria que ela não o esquecesse tão depressa.
O ritmo lento iniciou-se. Ele notou irritadamente que era a mesma velha melodia para aquela dança que tinham tocado durante a maior parte da noite. Começou a sussurrar-lhe a letra ao ouvido. Ele bichanou:
- Aquilo que estamos a dançar pretende ser o tango Delaroux.
- Estamos a dançar o tango Charles Masterson, meu amor. Enlaçando-a com força, fê-la percorrer belicosamente a pista,
numa empertigada paródia da dança, e obrigou-a a girar maldosamente,
de tal maneira que o cabelo cheio de laca quase varreu o chão e ouviu os ossos dela estalarem, mantendo-a nessa postura ao mesmo tempo que endereçava um sorriso de surpreendido prazer ao grupo que ocupava a mesa mais próxima. As risadas eram agora mais altas, mais prolongadas. Quando ele a endireitou com um sacão e ficou à espera do batimento seguinte, ela segredou:
- Que quer saber?
- Ele reconheceu alguém, não foi? O seu filho. Quando esteve no Hospital John Carpendar. Viu alguém conhecido?
- Vai portar-se como deve ser e dançar convenientemente?
- Talvez.
Estavam a executar novamente os movimentos de um tango ortodoxo. Ele sentiu-a descontrair-se um pouco nos seus braços, mas continuou a cingi-la com firmeza.
- Foi uma das enfermeiras. Já a tinha visto antes.
- Qual enfermeira?
- Não sei, ele não me disse.
- Que lhe disse ele?
- Depois da dança.
- Diga-mo agora, se é que não quer acabar estatelada no meio do chão. Onde é que ele já a tinha visto?
- Na Alemanha. Ela estava no banco dos réus. Era um julgamento de guerra. Ela livrou-se, mas toda a gente sabia que era culpada.
- Em que sítio da Alemanha?
Pronunciava as palavras através dos lábios repuxados no sorriso fátuo de um profissional de dança.
- Felsenheim. Era uma terra chamada Felsenheim.
- Diga outra vez. Diga outra vez o nome!
- Felsenheim.
O nome não lhe dizia nada, mas sabia que o memorizaria. com um pouco de sorte, mais tarde viria a saber os pormenores, mas precisava de lhe arrancar os factos mais salientes enquanto a tinha à mercê. Claro que podia não ser verdade. Podia dar-se o caso de nada daquilo ser verdade. E, sendo verdade, podia não ser relevante. Porém, eram aquelas as informações em busca das quais tinha sido enviado. Sentiu um acesso de confiança e bom humor. Estava mesmo em risco de gostar da dança. Decidiu que era o momento de algo espectacular e guiou-a na execução de uma complicada rotina que começava com um arco gradual e terminava com um apertado percurso a direito que os conduziu em diagonal pela pista fora. Os movimentos foram impecavelmente executados e as palmas sonoras e demoradas.
- Como se chamava ela? - perguntou ele.
- Irmgard Grobel. Nessa altura era apenas uma miúda, claro. O Martin disse que foi por isso que se safou. Ele nunca teve qualquer dúvida de que ela fosse culpada.
- Tem a certeza de que ele não lhe disse qual das enfermeiras era?
- Não disse, não. Estava muito doente. Contou-me do julgamento quando voltou da Europa, de modo que eu já sabia disto. Mas durante a maior parte do tempo no hospital esteve inconsciente. E, quando não estava, encontrava-se quase sempre em delírio.
Portanto podia ter-se enganado, pensou Masterson. Tratava-se de uma história bastante pouco plausível. E com certeza havia de ser difícil reconhecer um rosto ao fim de vinte e cinco anos; só que ele devia ter fitado esse rosto específico com fascinada intensidade durante todo o julgamento. Ele devia ter causado uma certa impressão num homem novo e provavelmente sensível. A suficiente, porventura, para ele a reviver durante o delírio e convencer-se de que um dos rostos que se debruçavam sobre ele naqueles escassos momentos de consciência e lucidez fosse o rosto de Irmgard Grobel. Mas suponhamos, suponhamos apenas, que estava certo. Se tinha contado aquilo à mãe, podia muito bem tê-lo contado à sua enfermeira especial ou tê-lo deixado escapar durante o delírio. E que uso fizera Heather Pearce dessa revelação?
Murmurou-lhe suavemente ao ouvido:
- A quem mais contou isso?
- A ninguém. Não contei a ninguém. Por que havia de contar? Novo volteio gingado. E a seguir uma volta dobrada. Muito bonito. Mais palmas. Estreitou mais o amplexo e insistiu numa voz enrouquecida de ameaças por detrás do esgar fixo:
- A quem mais? Deve ter contado a alguém.
- Por que havia de contar?
- Por que é mulher.
Foi uma resposta feliz. A obstinação muar do rosto dela abrandou. Ergueu o olhar para ele durante um segundo, batendo depois as esparsas pestanas carregadas de rímmel num travesti de coquetaria. Oh, meu Deus, pensou ele, vai armar em recatada!
- Oh, bem... talvez tenha mesmo contado, só a uma pessoa.
- Fartinho de saber que contou estou eu. Pergunto é a quem.
De novo o olhar deprecatório, o pequeno mugido de submissão. Tinha resolvido engraçar com aquele homem dominador. Por qualquer razão - talvez o gim, talvez a euforia da dança - a sua resistência abatera-se. De agora em diante ia ser canja.
- Contei a Mr. Courtney-Briggs, o cirurgião do Martin. Bem, pareceu-me que não era mais do que correcto.
- Quando?
- Na quarta-feira passada. Quero dizer, na quarta-feira da semana passada. No consultório dele, na Wimpole Street. Ele tinha acabado de sair do hospital na sexta-feira em que o Martin morreu, de modo que não pude falar com ele mais cedo. Ele só está no John Carpendar às segundas, quintas e sextas.
- Ele pediu para falar consigo?
- Oh, não! A enfermeira assistente que estava a substituir a chefe disse que ele teria muito gosto em ter uma conversa comigo, se eu achasse isso útil, e que eu podia telefonar para a Wimpole Street a combinar uma hora. Nessa altura não o fiz. Para quê? O Martin estava morto. Mas depois recebi a conta dele. Não é lá muito elegante, pensei eu, tão pouco tempo a seguir à morte do Martin. Duzentos guinéus1! Achei uma enormidade. No fim de contas, não foi propriamente como se tivesse feito alguma coisa com bons resultados. De maneira que pensei dar uma saltada à Wimpole Street para falar com ele e contar-lhe o que sabia. Não estava certo o hospital ter lá a trabalhar uma mulher assim. Uma assassina, no fundo. E depois levar aquele dinheirão. Havia uma segunda conta do hospital relativa ao sustento dele, sabe, mas não era nada que se parecesse com os duzentos guinéus de Mr. Courtney-Briggs.
As frases eram desarticuladas. Ia-lhas sussurrando ao ouvido à medida que a ocasião se apresentava. Mas não lhe faltava o fôlego nem a coerência. Tinha energia que chegasse para a dança e para a conversa ao mesmo tempo. E era Masterson quem acusava esforço. Outro arco gradual, conduzindo ao doré e terminando com um percurso a direito apertado. Ela não colocou mal um pé. A velhota tinha sido bem ensinada, mesmo que não pudessem dar-lhe graciosidade nem élan2.
- Portanto meteu pernas ao caminho para lhe contar o que sabia e sugerir que ele cortasse um bocado aos honorários?
- Não acreditou em mim. Disse que o Martin estava a delirar e se enganara, e que podia responder pessoalmente por todas as enfermeiras. Mas abateu 50 libras na conta.
Disse aquilo com lúgubre satisfação. Masterson ficou surpreendido. Mesmo que Courtney-Briggs tivesse acreditado na história, não havia razões para abater na conta uma quantia que não era propriamente insignificante. Não era responsável pelo recrutamento ou indicação do pessoal de enfermagem. Não tinha nada com que se preocupar. Masterson perguntou a si próprio se ele acreditara na história. Era evidente que não contara nada, fosse ao presidente da Comissão de Gestão do hospital, fosse à superintendente. Talvez fosse verdade que podia responder pessoalmente por todas as enfermeiras e a dedução de 50 libras não passasse de um gesto para calar uma mulher cansativa. Mas a impressão que Masterson colhera de Courtney-Briggs não era a de um homem que se deixasse submeter a chantagens ou que prescindisse de um tostão do que achasse ser-lhe devido.
Foi nesse momento que a música terminou comum estrondo. Masterson sorriu benevolentemente para Mrs. Dettinger e conduziu-a novamente à mesa. As palmas continuaram até chegarem lá e cessaram abruptamente quando o homem untuoso anunciou a dança seguinte. Masterson olhou em redor à procura do criado e fez-lhe sinal.
- Ora bem - disse para o seu par -, não custou assim tanto, pois não? Desde que se porte bem durante o resto da noite, até pode ser que a leve a casa.
Levou-a efectivamente a casa. Saíram cedo, mas passava já bastante da meia-noite quando por fim deixou o apartamento da Baker Street. Por essa altura tinha já percebido que dispunha de tudo o que ela podia contar-lhe da história. No regresso do baile tinha ficado choramingona, o que ele interpretava como reacção ao triunfo e ao gim. Mantivera-a abastecida deste último durante o resto da noite, não na quantidade suficiente para a deixar desgovernadamente embriagada, mas o bastante para a manter comunicativa e dócil. O regresso a casa, porém, tinha sido um pesadelo, nada facilitado pelos olhares do motorista do táxi, meio divertidos, meio desdenhosos, enquanto os conduzia da assembleia municipal ao parque automóvel da margem sul, nem pela altivez desaprovadora do porteiro do átrio quando chegaram a Saville Mansions. Chegados ao apartamento, ele aliciara-a, consolara-a e ameaçara-a de modo a obter coerência da sua parte, fazendo café para ambos na cozinha incrivelmente sórdida - a cozinha de uma desmazeladona, pensou ele, satisfeito por ter mais um motivo para a desprezar - e aldrabando-a com promessas de que claro que não a abandonaria, que a procuraria de novo no sábado seguinte, que seriam parceiros de dança permanentes. À meia-noite já lhe tinha arrancado tudo quanto queria saber da carreira de Martin Dettinger e da sua estada no Hospital John Carpendar. Sobre o hospital não havia grande coisa para saber. Durante a semana que ele lá passara, ela não o tinha visitado muito. Bem, qual era o interesse? Não havia nada que pudesse fazer por ele. O filho passava a maior parte do tempo inconsciente e não a reconhecia verdadeiramente quando acordava. Excepto daquela única vez, claro. Nessa altura ela esperara por uma palavrinha de consolo e gratidão, mas tudo o que recebera fora aquele riso estranho e a conversa sobre Irmgard Grobel. Tinha-lhe contado essa história havia anos. Ela estava farta de a ouvir. Um rapaz à beira da morte tinha obrigação de estar a pensar na mãe. Fora um esforço terrível ficar ali sentada a observar. Era uma pessoa sensível. Ficava perturbada em hospitais. O falecido Mr. Dettinger nunca compreendera como ela era sensível.
Aparentemente havia muita coisa que o falecido Mr. Dettinger não compreendia, incluindo-se entre elas as carências sexuais da mulher. Masterson escutou a história do casamento dela, sem interesse. Era a vulgar história de uma mulher insatisfeita, de um marido dominado pela mulher e de um filho infeliz e sensível. Não se interessava particularmente pelas pessoas. Dividia-se em dois grandes grupos, as respeitadoras da lei e as perversas, e a guerra sem quartel que tratava contra estas últimas preenchia, conforme sabia, uma qualquer necessidade obscura da sua natureza. Mas interessava-se pelos factos. Sabia que, quando alguém fazia uma visita ao local do crime, deixava atrás de si algum indício ou levava algum outro consigo. A tarefa do investigador era descobrir esses indícios. Sabia que até ao presente nunca se tinha dado por que as impressões digitais mentissem, ao passo que os seres humanos o faziam com frequência, irracionalmente, fossem inocentes ou culpados. Sabia que os factos se aguentavam em tribunal, ao passo que as pessoas eram capazes de o deixar ficar mal. Sabia que as motivações eram imprevisíveis, embora por vezes tivesse honestidade suficiente para reconhecer as suas. No preciso momento em que penetrara Julia Pardoe assaltara-o a consciência de que esse acto, com a sua fúria e exaltação, era de certo modo dirigido contra Dalgliesh. Mas não lhe passara pela cabeça perguntar porquê. Isso ter-se-lhe-ia afigurado uma especulação improfícua. Tão-pouco perguntava a si próprio se, também para a rapariga, se tratara de um acto de maldade e de retribuição privada.
- Qualquer pessoa pensaria que um rapaz havia de querer a mãe ao encontrar-se à beira da morte. Foi terrível estar ali a ouvir aquela respiração pavorosa, primeiro suave e depois pavorosamente ruidosa. Claro que ele estava num quarto particular. Foi por isso que o hospital pôde cobrar dinheiro. Ele não estava lá pelo Serviço Nacional de Saúde. Mas os outros doentes devem ter ouvido a respiração em toda a enfermaria.
- A respiração de Cheyne-Stokes - disse Masterson. - Aparece antes do estertor da morte.
- Deviam ter feito qualquer coisa quanto a isso. Perturbou-me horrivelmente. Aquela enfermeira especial que ele tinha devia ter feito qualquer coisa relativamente a isso. Aquela rapariga vulgar. Suponho que estava a cumprir o seu dever, mas nunca pensou um pouco em mim. No fim de contas, os vivos merecem alguma atenção. Não havia mais nada que ela pudesse fazer pelo Martin.
- Era a estagiária Pearce. A que morreu.
- Sim, lembro-me de o senhor mo ter dito. com que então, também morreu. Não oiço falar noutra coisa a não ser em mortes. É mortes para onde quer que me volte. Como foi que chamou àquela respiração?
- De Cheyne-Stokes. Significa que a pessoa vai morrer.
- Deviam ter feito qualquer coisa relativamente a ela. Aquela rapariga devia ter feito qualquer coisa relativamente a isso. Ela também começou a respirar assim antes de morrer?
- Não, gritou. Houve alguém que lhe introduziu desinfectante no estômago e lho queimou.
- Não quero ouvir contar nada disso! Não quero ouvir falar mais disso! Fale-me do baile. Volta no próximo sábado, não volta?
E assim continuara. Fora enfadonho e exaustivo e, no final, quase assustador. Antes da meia-noite, o entusiasmo triunfante de obter o que desejava já tinha esmorecido, e apenas se apercebia de ódio e repugnância. Enquanto escutava a tagarelice da mulher, divertia-se imaginando violências. Era fácil ver como essas coisas aconteciam. Um atiçador do lume à mão de semear. A cara idiota esmagada, num bolo. Golpe sobre golpe sobre golpe. Os ossos a estilhaçarem-se. Um esguicho de sangue. Um orgasmo de ódio. Imaginando aquilo, teve dificuldade em manter a respiração regular. Tomou-lhe suavemente a mão.
- Sim - disse. - Volto, sim. Sim. Sim.
Agora a pele estava seca e quente. Dir-se-ia que ela estava com febre. As unhas pintadas eram estriadas. Nas costas da mão, as veias sobressaíam como cordéis roxos. com um dedo acariciador, seguiu as manchas castanhas da idade.
Pouco depois da meia-noite, a voz dela transformou-se num balbuciar incoerente, a cabeça tombou-lhe para diante e ele reparou que dormia. Aguardou um momento, após o que libertou a mão e dirigiu-se em bicos de pés ao quarto. Não levou mais de um par de minutos a mudar de roupa. A seguir, foi em bicos de pés à casa de banho e lavou a cara e a mão que, tinha tocado a dela, lavou-as repetidamente. Finalmente saiu do apartamento, fechando a porta silenciosamente atrás de si, como se receasse acordá-la, e embrenhou-se na noite.
Um quarto de hora mais tarde, o carro de Masterson passou pelo apartamento onde Miss Beale e Miss Burrows, confortavelmente embrulhadas em roupões, beberricavam o seu cacau antes de se deitarem, diante do lume que se extinguia. Ouviram-no como um fugaz crescendo no fluxo intermitente do trânsito e interromperam a conversa para especularem com desligado interesse sobre o que faria as pessoas saírem em plena madrugada. Era sem dúvida invulgar estarem ainda a pé àquela hora, mas o dia seguinte era sábado e podiam ceder à predilecção pela conversa até altas horas da noite na confortável certeza de que na manhã seguinte poderiam deixar-se ficar na cama.
Tinham estado a discutir a visita do inspector-chefe Dalgliesh nessa tarde. Na realidade, consideravam unanimemente, tinha sido um êxito, quase um prazer. Ele parecera apreciar o seu chá. Tinha-se sentado ali, na poltrona mais confortável da casa, e haviam conversado os três como se ele fosse tão inofensivo e íntimo como o vigário local.
Ele dissera a Miss Beale:
- Quero ver a morte dá estagiária Pearce pelos seus olhos. Conte-ma. Diga-me tudo o que viu e sentiu desde o momento em que entrou com o carro pelos portões do hospital adentro.
E Miss Beale dissera-lho, retirando um vergonhoso prazer daquela meia hora de importância, perante o evidente apreço do inspector por ela ter observado tudo tão bem e descrevê-lo com tanta clareza. Era um bom ouvinte, reconheceram, ambas. bom, fazia parte do seu ofício. Além disso, tinha a habilidade de fazer as pessoas falar. Nem Angela, que durante a maior parte do tempo se mantivera quieta, num silêncio vigilante, era capaz de explicar por que razão se sentira levada a referir o seu recente encontro com a enfermeira Rolfe na Biblioteca de Westminster. E os olhos dele tinham cintilado de interesse, interesse que se desvanecera em desapontamento quando ela lhe revelara a data. As duas amigas partilharam a opinião de que não podiam ter-se enganado. Ele ficara desapontado. A enfermeira Rolfe fora vista na biblioteca no dia errado.
Passava das onze horas quando Dalgliesh rodou a chave na fechadura da gaveta, fechou o gabinete atrás de si e saiu pela porta lateral da Nightingale House para regressar à Falconer’s Arms. Na curva do caminho em que a via estreitava antes de se perder entre as sombras escuras das árvores, virou-se para trás, contemplando o lúgubre casarão, enorme e sinistro, com os seus quatro torreões negros recortando-se no céu da noite. A casa encontrava-se quase totalmente às escuras. Havia apenas uma janela iluminada, e ele não demorou mais que um minuto a identificar o compartimento. Mary Taylor estava no quarto mas ainda não dormia. A luz não passava de uma ténue claridade, talvez de um candeeiro de mesa-de-cabeceira, e desapareceu enquanto ele a fitava.
Avançou na direcção do portão de Winchester. Ali, as árvores ficavam muito mais próximas do caminho. Os seus ramos negros formavam um arco sobre ele, tapando a fraca luz do candeeiro mais próximo. Durante cerca de cinquenta metros caminhou na escuridão total, pisando rápida e silenciosamente a papa de folhas mortas. Encontrava-se naquele estado de cansaço físico em que o espírito e o corpo parecem desligados, movendo-se o corpo, condicionado à realidade, meio conscientemente no mundo físico familiar, enquanto o espírito liberto gira numa órbita descontrolada, na qual a fantasia e a realidade mostram um rosto igualmente ambíguo. Dalgliesh admirou-se por estar tão cansado. Esta missão não era mais árdua do que qualquer outra. Trabalhava muitas horas, mas a verdade é que, quando estava encarregado de um caso, era normal trabalhar dezasseis horas diárias.
E aquele cansaço invulgar não era a exaustão ou a frustração do malogro. O caso ficaria resolvido na manhã seguinte. Ainda nessa noite, Masterson regressaria com outra peça do puzzle e o quadro ficaria completo. Daí a dois dias, no máximo, deixaria a Nightingale House. Dentro de dois dias não voltaria a ver aquela sala branca e doirada do torreão sudoeste.
Movendo-se como um autómato, ouviu, demasiado tarde, o repentino som abafado de passos na sua retaguarda. Instintivamente, rodou sobre si próprio para enfrentar o adversário e sentiu a pancada resvalar da têmpora esquerda até ao ombro. Não houve dor, mas apenas um estalo, como se todo o crânio se houvesse cindido, uma dormência do braço esquerdo e, passado um segundo que pareceu uma eternidade, a golfada quente do sangue, quase reconfortante. Soltou um ofego e caiu dobrado para diante. Mas continuava consciente. Cegado pelo sangue e debatendo-se contra a náusea, tentou erguer-se e lutar. Mas os pés esgaravataram em vão no solo molhado e não tinha força nos braços. A visão estava obstruída pelo seu próprio sangue. O cheiro sufocante do húmus molhado comprimia-lhe o nariz e a boca, picante como um anestésico. Ficou ali deitado, tentando debalde vomitar, reavivando a dor a cada espasmo, e aguardou com enfurecida impotência o derradeiro golpe demolidor.
No entanto, nada aconteceu. Sem resistir, mergulhou na inconsciência. Segundos mais tarde foi de novo chamado à realidade por uma mão que lhe abanava suavemente o ombro. Havia alguém debruçado sobre ele. Ouviu uma voz feminina.
- Sou eu. Que é que aconteceu? Alguém lhe deu alguma trancada?
Era Morag Smith. Ele fez um esforço para responder, para a alertar no sentido de se afastar rapidamente dali. Os dois juntos não poderiam competir com um assassino determinado. Mas a boca parecia incapacitada de formar palavras. Apercebeu-se de que, muito perto dele, um homem gemia, mas logo se deu conta com amarga ironia de que a voz era a sua. Não parecia ter domínio sobre ela. Tomou consciência de mãos movendo-se em redor da sua cabeça. Depois estremeceu como uma criança.
- Ena, pá! Está todo coberto de sangue!
Tentou novamente falar. Ela inclinou a cabeça mais para ele. Dalgliesh distinguia as madeixas escuras do cabelo e o rosto branco flutuando diante de si. Debateu-se para se erguer e desta feita conseguiu apoiar-se nos joelhos.
-Viu-o?
- Não vi bem... Ele deu por eu me aproximar. Pôs-se a mexer para o lado da Nightingale House. Valha-me Deus, o senhor está num lindo estado! Ande lá, apoie-se em mim.
- Não; Deixe-me aqui e vá procurar socorro. Ele pode voltar.
- Não volta coisa nenhuma. De qualquer maneira, estamos melhor juntos. Não me está a agradar nada ir sozinha. Fantasmas é uma coisa, mas assassinos com os diabos, é outra! Ande lá, que eu dou-lhe uma ajuda.
Sentiu os ossos salientes das costas da rapariga, mas o corpo delgado era notoriamente rijo e aguentava bem o seu peso. Ergueu-se com esforço e ficou ali a baloiçar.
- Homem ou mulher? - perguntou.
- Não vi. Tanto podia ser uma coisa como a outra. Mas agora não pense nisso. Acha que é capaz de chegar à Nightingale House? Ainda é o que fica aqui mais à mão.
Dalgliesh sentia-se nitidamente melhor, agora que estava de pé. Mal distinguia o caminho, mas deu uns passos hesitantes em frente, com a mão assente no ombro da rapariga.
- Acho que sim. A porta das traseiras deve ser a que fica mais perto. Não hão-de ser mais que cinquenta metros. Toque para o apartamento da superintendente. Eu sei que ela está.
Arrastaram-se ambos pelo caminho fora, apagando, conforme Dalgliesh se apercebeu com azedume, quaisquer pegadas que de outra maneira pudesse no dia seguinte ter esperanças de encontrar. Não que aquelas folhas empapadas permitissem grandes pistas. Perguntou a si próprio o que seria feito da arma. Mas tratava-se de uma especulação que não o levaria a parte alguma. Antes de haver luz não podia fazer nada. Sentiu uma onda de gratidão e afecto para com a criaturinha rija cujo braço débil estava poisado, sem peso, como o de uma criança, em torno da sua anca. Devemos fazer um estranho par, pensou.
- Provavelmente salvou-me a vida, Morag. Ele só fugiu porque a ouviu vir.
Ele, ou seria ela? Se ao menos Morag tivesse chegado a tempo de distinguir se era um homem ou uma mulher... Mal conseguiu captar a resposta dela:
- Ora deixe-se lá de disparates.
Ouviu-a, sem surpresa, a chorar. Não fazia qualquer tentativa para deter ou reprimir os soluços e eles não lhe travavam o avanço. Talvez para Morag chorar fosse quase tão natural como andar. Não se esforçou por consolar a rapariga para lá de uma pressão nos ombros dela. Ela tomou aquilo por uma solicitação de maior amparo e cingiu-lhe os quadris com mais força encostando-se a ele e ajudando-o a progredir. E daquele modo incongruente passaram por debaixo das sombras das árvores.
A luz da sala de aulas práticas era crua, demasiado crua. Chegava a trespassar-lhe as pálpebras coladas, e ele sacudiu incessantemente a cabeça para um lado e para outro a fim de fugir ao aguilhão de dor. Depois sentiu a cabeça imobilizada por umas mãos frescas. As mãos de Mary Taylor. Ouviu-a falar consigo, dizendo-lhe que Courtney-Briggs se encontrava no hospital. Tinha mandado chamar Courtney-Briggs. Depois, as mesmas mãos retiraram-lhe a gravata, desapertaram-lhe os botões da camisa, libertaram-lhe os braços do casaco com experiente destreza.
- Que foi que aconteceu?
Era a voz de Courtney-Briggs, cortante e masculina. Portanto, o cirurgião chegara. Que tinha ele estado a fazer no hospital? Outra operação de urgência? Os doentes de Courtney-Briggs pareciam curiosamente atreitos a recaídas. Que álibi teria ele para a última meia hora?
- Estava alguém emboscado à minha espera. Tenho de verificar quem se encontra na Nightingale House.
Sentiu um firme aperto no braço. Courtney-Briggs empurrava-o, forçando-o a reclinar-se de. novo na cadeira. Dois borrões, oscilantes de cor cinzenta adejavam por cima dele. Novamente a voz dela:
- Agora não. Mal se tem de pé. Um de nós irá ver.
- Vão já.
- Dentro de um minuto. Fechámos todas as portas à chave. Se alguém voltar a entrar, sabê-lo-emos. Confie em nós. Descontraia-se, e mais nada.
Tão racional. Confie em nós. Descontraia-se. Fincou as mãos nos braços metálicos da cadeira, firmando-se na realidade.
- Quero verificar pessoalmente.
Meio cego pelo sangue, pressentiu, mais do que viu, o mútuo olhar de cuidado nos rostos deles. Sabia que estava a fazer uma figura de criança impertinente, martelando a sua insistência de encontro à calma implacável das pessoas crescidas. Enlouquecido de frustração, tentou erguer-se da cadeira. Mas o chão inclinou-se estonteantemente e logo subiu ao seu encontro através de espirais de cor gritante. Não valia a pena. Era-lhe impossível ter-se de pé.
- Os meus olhos - queixou-se.
E a voz de Courtney-Briggs, enfastiantemente sensata:
- Um momento só. Primeiro tenho de lhe observar a cabeça.
- Mas eu quero ver!
A cegueira enfurecia-o. Estariam eles a fazer-lhe aquilo deliberadamente? Ergueu uma das mãos e começou a repuxar as pálpebras cobertas de sangue seco. Ouvia-os a falar um com o outro, em voz baixa, no idioma sussurrado do ofício, do qual ele, o paciente, era excluído. Apercebeu-se de novos sons: o silvo de um autoclave; um tinir de instrumentos; o fechar de uma tampa metálica. A seguir, o cheiro a desinfectante adensou-se. Agora ela estava a limpar-lhe os olhos. Sentiu passarem-lhe por cada uma das pálpebras um pacho deliciosamente fresco, e abriu-as, pestanejando, para ver mais distintamente o brilho do roupão dela e a comprida trança de cabelo, caindo sobre o ombro esquerdo. Endereçou-lhe directamente a palavra:
- Tenho de saber quem é que está na Nightingale House. Pode verificar neste momento, por favor?
Sem uma palavra mais ou um olhar a Courtney-Briggs, esgueirou-se da sala. Assim que a porta se fechou, Dalgliesh disse:
- Não me contou que o seu irmão esteve noivo da Josephine Fallon.
- O senhor não me perguntou.
A voz do cirurgião era determinada, desinteressada, constituindo a resposta de um homem que tinha o espírito concentrado no trabalho que fazia. Houve uma tesourada e a momentânea frialdade do aço de encontro ao crânio. O cirurgião estava a aparar o cabelo de Dalgliesh em volta da ferida.
- Devia saber que isso me interessaria.
- Ah, interessá-lo! Claro que o interessaria. A gente da sua laia tem uma capacidade infinita de se interessar pelos assuntos alheios. Mas eu limitei-me a satisfazer-lhe a curiosidade apenas na medida do que tinha a ver com a morte daquelas duas raparigas. Não pode queixar-se de que eu tenha escamoteado algo de relevante. A morte do Peter não é relevante: trata-se apenas de uma tragédia particular.
Não tanto uma tragédia particular, pensou Dalgliesh como um embaraço público. Peter Courtney tinha violado o primeiro princípio do irmão, a necessidade de ser bem sucedido.
- Enforcou-se - disse Dalgliesh.
- Enforcou-se, como diz. Não foi uma maneira especialmente digna ou agradável de deixar o mundo, mas o pobre rapaz não dispunha dos meus recursos. No dia em que fizerem o meu diagnóstico final terei à mão medidas mais apropriadas do que entregar-me à morte na ponta de uma corda.
O egoísmo dele, pensou Dalgliesh, era aterrador. Até a morte do irmão tinha de ser encarada relativamente a ele próprio. Mantinha-se complacentemente seguro no centro do seu universo, enquanto os outros - irmão, amante, doente - giravam em torno daquele sol central, existente por virtude do seu calor e luminosidade, obedecendo à sua força centrípeta. Mas não seria essa a maneira como muita gente se encarava a si própria? Mary Taylor seria menos egoísta? Sê-lo-ia ele próprio? Não seria simplesmente que ela e ele cultivavam mais subtilmente o seu egotismo essencial?
O cirurgião dirigiu-se à sua maleta de instrumentos negra e retirou de lá um espelho montado numa cinta metálica, que enfiou na cabeça. Regressou para junto de Dalgliesh, de oftalmoscópio na mão, e sentou-se numa cadeira diante do paciente. Ficaram virados um para o outro, com as testas quase unidas. Dalgliesh sentiu o metal do instrumento contra o olho direito. Courtney-Briggs ordenou:
- Olhe bem em frente.
Dalgliesh fixou obedientemente o ponto luminoso e disse:
- O senhor saiu do edifício principal do hospital por volta da meia-noite. Falou com o porteiro do portão principal à meia-noite e trinta e oito. Onde esteve entre uma hora e outra?
- Já lhe disse. Havia um ulmeiro caído a obstruir o caminho das traseiras. Demorei uns minutos a examinar o local e a tratar de me assegurar de que as pessoas não se magoassem lá.
- Houve uma pessoa a quem aconteceu precisamente isso. Foi à meia-noite e dezassete. Nessa altura não havia lenço de pescoço branco atado aos galhos.
O oftalmoscópio passou ao outro olho. A respiração do cirurgião era perfeitamente regular.
- Enganou-se.
- Ele acha que não.
- Portanto o senhor deduz que eu cheguei à árvore tombada mais tarde do que a meia-noite e dezassete. Pode ser que sim. Como não estava a fabricar nenhum álibi, não vi as horas de dois em dois minutos.
- Mas decerto não está a sugerir que levou mais de dezassete minutos de automóvel do edifício principal do hospital até esse lugar específico.
- Oh, acho que seria perfeitamente capaz de arranjar uma justificação para essa demora. Poderia argumentar que precisei, no vosso deplorável calão policial, de satisfazer uma necessidade física e saí do carro para meditar entre as árvores.
- E precisou mesmo?
- Posso ter precisado. Quando acabar de lhe tratar da cabeça, que, diga-se de passagem, vai precisar de uns doze pontos, pensarei no assunto. Agora, desculpe, mas tenho de me concentrar no que estou a fazer.
A superintendente regressara silenciosamente. Voltou a ocupar o seu lugar junto de Courtney-Briggs, como um acólito à espera de ordens. Tinha o rosto muito branco. Sem esperar que ela falasse, o cirurgião passou-lhe o oftalmoscópio.
- Toda a gente que devia estar na Nightingale House se encontra no respectivo quarto - anunciou ela.
Courtney-Briggs estava a percorrer o ombro esquerdo de Dalgliesh, com as mãos, fazendo doer a cada peso dos fortes dedos exploradores.
- A clavícula parece estar boa. Bastante magoada, mas sem fractura. A peste que o atacou devia ser uma mulher alta. O senhor mede para cima de um metro e oitenta.
- Se é que foi uma mulher. Ou então podia ter usado uma arma comprida, talvez um taco de golfe.
- Um taco de golfe. Os seus tacos, superintendente? Onde é que os guarda?
Ela respondeu apagadamente:
- No átrio ao fundo da minha escada. Normalmente, deixo o saco logo à entrada da porta.
- Então o melhor é ir ver agora.
Esteve ausente durante menos de dois minutos, e aguardaram em silêncio o seu regresso. Quando voltou, dirigiu-se a Dalgliesh:
- Falta um dos ferros.
A notícia pareceu animar Courtney-Briggs, que disse quase jovialmente:
- Ora, aí tem a sua arma! Mas não deve valer a pena procurá-lo agora à noite. Deve estar por aí algures no terreno. Os seus homens podem descobri-lo e fazer tudo o que é necessário amanhã: procurar impressões digitais, examinar se tem vestígios de sangue e de cabelos, todos os truques do costume. O senhor não está em condições de tratar disso pessoalmente esta noite. Temos de lhe suturar esta ferida. Tenho de o levar para a sala de operações dos doentes externos. Vai precisar de ser anestesiado.
- Não quero ser anestesiado.
- Nesse caso, posso dar-lhe uma anestesia local. Isso significa apenas umas tantas injecções em redor da ferida. Podemos fazer isso aqui, superintendente.
- Não quero anestesia nenhuma. Só quero ser cosido. Courtney-Briggs explicou-lhe pacientemente, como se estivesse a falar com uma criança:
- É um corte muito profundo e tem de ser suturado. Se não aceitar a anestesia, vai doer-lhe muito.
-Já lhe disse que não quero. E não quero nenhuma injecção profiláctica de penicilina ou antitetânica. Quero só que me cosam.
Sentiu-os olharem um para o outro. Sabia que estava a ser obstinadamente irracional, mas não se importava. Por que não começavam eles com aquilo? Foi então que Courtney-Briggs falou, curiosamente formal:
- Se preferir outro cirurgião...
- Não, só quero que se despache com isso.
Houve um momentâneo silêncio. A seguir, o cirurgião disse:
- Está bem. Demorarei o menos possível. Apercebeu-se de que Mary Taylor se movera por detrás de si.
Puxou-lhe a cabeça para o colo e prendeu-a nas mãos frias e firmes. Ele fechou os olhos como uma criança. A agulha parecia-lhe enorme, uma vareta de aço simultaneamente gélida e ao rubro que lhe trespassava o crânio uma e outra vez. A dor era horrorosa, e só a fúria e a sua obstinada determinação de não dar parte de fraco a tornavam suportável. Imobilizou o rosto numa máscara rígida. Porém era enfurecedor sentir as lágrimas involuntárias filtrarem-se por sob as pálpebras.
Decorrida uma eternidade, percebeu que estava tudo terminado. Ouviu a sua voz dizer:
- Obrigado. Agora gostaria de voltar ao meu gabinete. O sargento Masterson tem ordens para vir cá, se eu não estiver no hotel. Ele pode levar-me a casa.
Mary Taylor estava a atar-lhe uma ligadura de crepe em volta da cabeça. Não falou. Courtney-Briggs observou:
- Eu preferia que fosse directamente para a cama. Podemos alojá-lo num quarto dos alojamentos dos médicos por esta noite.
Vou marcar uma radiografia para logo de manhã. A seguir gostaria de vê-lo novamente.
- Pode marcar o que quiser para amanhã. Neste preciso momento, gostaria de ficar só.
Levantou-se da cadeira. Ela poisou-lhe a mão no braço, à guisa de apoio. Porém, ele devia ter feito um gesto qualquer, pois ela deixou tombar o braço. Sentia-se surpreendentemente leve, ao pôr-se de pé. Era estranho um corpo tão insubstancial poder suportar o peso de uma cabeça tão pesada. Levou lá uma mão exploradora e sentiu o roçar da ligadura; parecia-lhe estar a uma distância enorme do crânio. Depois, focando meticulosamente a vista, atravessou a sala até à porta, sem encontrar obstáculos. Ao chegar lá, ouviu a voz de Courtney-Briggs.
- Há-de querer saber onde estava eu na altura em que foi atacado. Estava no meu quarto, nos alojamentos dos médicos. Estou a pernoitar lá porque tenho uma operação de manhã cedo. Lamento não poder presenteá-lo com um álibi. Só posso esperar que perceba que, caso quisesse livrar-me de alguém, tenho à minha disposição métodos mais subtis do que um taco de golfe.
Dalgliesh não respondeu. Sem olhar em volta e sem mais palavra, deixou-os e fechou silenciosamente a porta da sala de aulas práticas atrás de si. As escadas pareciam uma escalada interminável e, a princípio, julgou não ser capaz de as transpor. Contudo, agarrou-se firmemente ao corrimão e, passo a passo, cautelosamente, regressou ao gabinete e instalou-se à espera de Masterson.
Um círculo de terra queimada
Era perto das duas da manhã quando o porteiro fez sinal a Masterson para que cruzasse o portão principal de acesso ao hospital. O vento ia aumentando continuamente à medida que ele conduzia ao longo do sinuoso caminho até à Nightingale House, pelo meio de uma alameda de negras árvores sussurrantes. A casa estava às escuras, com excepção de uma única janela iluminada, onde Dalgliesh se encontrava a trabalhar. Masterson fitou-a de sobrolho carregado. Irritara-o e desconcertara-o descobrir que Dalgliesh estava ainda na Nightingale House. Já esperava ter de fazer-lhe o relatório do dia, e a perspectiva não era desagradável visto assentar no êxito. Mas fora um longo dia. Fez votos de que não estivesse na forja uma daquelas sessões de noite inteira do inspector-chefe.
Masterson introduziu-se pela porta lateral, dando duas voltas de fechadura uma vez lá dentro. Foi acolhido pelo silêncio do amplo átrio de entrada, fantasmagórico e agoirento. A casa parecia suster a respiração. Voltou a sentir o cheiro da estranha, mas já familiar, amálgama de desinfectante e cera do chão, inóspito e levemente sinistro. Como que receando despertar a casa adormecida - meio vazia como estava -, não acendeu a luz, percorrendo o átrio à luz do foco da lanterna eléctrica. Os avisos afixados no quadro do átrio brilhavam na sua brancura, lembrando-lhe cartões de condolências na antecâmara de qualquer catedral estrangeira. As vossas piedosas orações pela alma de Josephine Fallon. Deu por si a subir as escadas em bicos de pés como se temesse acordar os mortos.
No gabinete do primeiro andar, Dalgliesh estava sentado à secretária com o processo aberto na sua frente. Masterson quedou-se imóvel no umbral, escondendo a surpresa. O rosto do inspector-chefe mostrava-se fatigado e cinzento sob um enorme capacete de ligaduras de crepe branco. Sentava-se muito direito, com os antebraços poisados na secretária e as palmas das mãos levemente abertas de cada um dos lados da página. Masterson reflectiu, não pela primeira vez, que o inspector-chefe tinha umas bonitas mãos e sabia mostrá-las por forma a tirar partido disso. Concluíra havia muito que Dalgliesh era um dos homens mais orgulhosos que conhecia. Essa vaidade intrínseca era defendida com cautelas demasiadas para ser geralmente reconhecida; mas era confortante apanhá-lo numa das suas vaidades menores. Dalgliesh ergueu a vista sem sorrir.
- Há duas horas que o esperava, sargento. Que andou a fazer?
- A colher informações por processos pouco ortodoxos, senhor inspector.
- A avaliar pelo seu aspecto, dir-se-ia que os processos pouco ortodoxos foram aplicados em si.
Masterson coibiu-se de dar a réplica óbvia. Se o velho queria armar mistério sobre o ferimento não ia dar-lhe o prazer de mostrar curiosidade.
- Estive a dançar até perto da meia-noite, senhor inspector.
- Na sua idade, isso não deve ser assim tão esgotante. Fale-me da senhora. Parece tê-lo impressionado. Passou um serão agradável?
Masterson podia ter retorquido com razão que passara um serão infernal, mas contentou-se com um relato do que tinha ficado a saber. O tango de exibição foi cuidadosamente omitido. O instinto alertou-o para a eventualidade de Dalgliesh não o achar divertido nem inteligente. Afora isso, porém, forneceu um relato preciso do serão. Tentou mantê-lo factual e desapaixonado, mas acabou por dar-se conta de que estava a gostar de algumas partes da narrativa. A descrição que fez de Mrs. Dettinger foi concisa e cáustica. Para o final, mal cuidou de ocultar o desdém e repugnância que nutria por ela. Sentiu que o estava a fazer bastante bem.
Dalgliesh escutou em silêncio. Mantinha ainda a cabeça soada de ligaduras inclinada sobre o processo e Masterson não vislumbrou qualquer indício do que pudesse ele estar a sentir. No final da narrativa, Dalgliesh ergueu a vista:
- Gosta do seu trabalho, sargento?
- Gosto, sim, senhor inspector, a maior parte do tempo gosto.
- Já imaginava que a resposta fosse essa.
- A pergunta pretendia ser uma censura, senhor inspector?
Masterson tinha consciência de estar a penetrar em terreno perigoso, mas não conseguiu resistir a dar aquele primeiro passo, à experiência.
Dalgliesh não respondeu à pergunta. Em lugar disso, declarou:
- Não me parece que seja possível ser-se investigador e permanecer sempre bom. Mas se alguma vez descobrir que a crueldade se está a transformar em si num prazer, deve estar na altura de deixar de ser investigador.
Masterson corou e ficou calado. Uma daquelas, da boca de Dalgliesh! Dalgliesh, que se interessava tão pouco pela vida particular dos seus subordinados que parecia não se dar conta de que eles a tivessem; Dalgliesh, cuja ironia cáustica era capaz de ser tão demolidora como uma moca em outro homem! Bondade! E até que ponto possuía ele próprio bondade? Quantos dos seus notáveis êxitos tinham sido conquistados com bondade? Seria incapaz de ser brutal, claro. Era demasiado orgulhoso, demasiado miudinho, demasiado controlado, demasiado desumano, diabos o levassem, para qualquer coisa tão compreensível como um pouco de pura e simples brutalidade. A sua reacção ao mal era franzir o nariz, não bater o pé. Mas bondade! Vá lá dizer isso aos rapazes, pensou Masterson.
Dalgliesh continuou a falar como se não tivesse dito nada digno de nota.
- Teremos de falar novamente com Mrs. Dettinger, claro. E havemos de precisar de um depoimento. Pareceu-lhe que ela estava a contar-lhe a verdade?
- É difícil de dizer. Não imagino por que razão havia de mentir. Mas é uma mulher estranha e na altura não estava lá muito satisfeita comigo. O facto de nos conduzir a uma falsa pista podia proporcionar-lhe qualquer satisfação perversa. Pode ter substituído por Grobel o nome de uma das outras acusadas, por exemplo.
- De modo que a pessoa que o filho reconheceu na enfermaria podia ser uma das acusadas de Felsenheim das que ainda estão vivas e das quais não há notícia. Que lhe disse exactamente o filho?
- Aí é que está o problema, senhor inspector. Ao que parece, deu-lhe a entender que a tal alemã, Irmgard Grobel, estava a trabalhar no John Carpendar, mas ela não é capaz de se recordar das palavras exactas. Pensa que ele disse qualquer coisa do género: ”Este hospital é bem apanhado, mamã, tem cá a Grobel empregada como uma das enfermeiras.”
- Que dá a ideia de que não se tratava da enfermeira que estava realmente a cuidar dele - disse Dalgliesh -, caso contrário é de presumir que ele o tivesse dito. Só que, evidentemente, ele passou a maior parte do tempo inconsciente e podia não ter visto antes a enfermeira Brumfett ou não se ter dado conta de que era ela a chefe da enfermaria. Não se encontrava em estado de aperceber-se das subtilezas da hierarquia hospitalar. A julgar pelo seu registo clínico, passou a maior parte do tempo, ora a delirar, ora inconsciente, o que já de si tornaria o seu testemunho suspeito, mesmo que ele não tivesse despropositadamente morrido. Seja como for, inicialmente a mãe não pareceu levar a história lá muito a sério. Não a contou a ninguém no hospital? À estagiária Pearce, por exemplo?
- Ela diz que não. Acho que na altura o principal cuidado de Mrs. Dettinger foi recolher os pertences do filho, a certidão de óbito e reclamar o prémio do seguro.
- Cáustico, sargento?
- Bem, ela está a gastar quase 2000 libras por ano em lições de dança e devia ter chegado ao fim do seu próprio capital. Aquela gente do Delaroux gosta de pagamentos adiantados. Fiquei a saber tudo sobre as finanças dela quando a levei a casa. Mrs. Dettinger não estava para levantar problemas. Mas depois recebeu a conta de Mr. Courtney-Briggs, e ocorreu-lhe que talvez pudesse servir-se da história do filho para conseguir um desconto. E conseguiu-o mesmo. Cinquenta dele.
- Que dá a entender que ou Mr. Courtney-Briggs é mais caritativo do que pensávamos ou achou que a informação valia o dinheiro. Pagou-lhe logo?.
- Ela diz que não. Primeiro foi falar com ele ao consultório da Wimpole Street na quarta-feira, dia 21 de Janeiro, à tarde. Nessa altura não ficou lá muito animada, de modo que lhe telefonou no passado sábado de manhã. A recepcionista disse-lhe que Mr. Courtney-Briggs estava fora do país. Tencionava voltar a telefonar-lhe na segunda-feira, mas recebeu na distribuição do correio seguinte um cheque de cinquenta libras. Não trazia qualquer carta ou explicação, mas unicamente o cartão de visita dele. Mesmo assim, ela percebeu o recado.
- com que então ele estava fora do país no sábado passado. Pergunto a mim próprio onde. Na Alemanha? Seja como for, aí está uma coisa que teremos de investigar.
- Parece tudo tão pouco provável, senhor inspector! E realmente não encaixa - observou Masterson.
- Pois não. Estamos bastante seguros de quem matou ambas as raparigas. Logicamente, todos os factos apontam para uma pessoa. E, como você diz, este novo indício realmente não encaixa. Quando uma pessoa anda a esgaravatar na terra à procura de uma peça do puzzle em falta e acaba por encontrar que ela faz parte de um puzzle diferente, é desconcertante.
- Nesse caso não acha que seja irrelevante, pois não, senhor inspector? Não me agradaria nada pensar que os meus esforços com Mrs. Dettinger tivessem sido em vão.
- Não, não, relevante é. É extremamente relevante. E obtivemos uma certa corroboração. Localizámos o livro da biblioteca desaparecido. Na Biblioteca da Westminster City foram muito prestáveis. Miss Pearce foi à filial de Marylebone na tarde de quinta-feira, dia 8 de Janeiro, aproveitando a folga, e perguntou se tinham algum livro sobre julgamentos de guerra alemães. Disse que estava interessada num julgamento realizado em Felsenheim, em Novembro de 1945. Eles não conseguiram encontrar nada lá, mas disseram que iriam informar-se junto das outras bibliotecas de Londres e sugeriram-lhe que voltasse lá ou telefonasse daí a um ou dois dias. Ela telefonou no sábado de manhã. Disseram-lhe que tinham conseguido localizar um livro que falava do julgamento de Felsenheim, entre outros, e ela foi lá requisitá-lo nessa tarde. Em qualquer das visitas deu o nome Josephine Fallon e apresentou o cartão e a ficha da Fallon. Num caso vulgar, claro que eles não teriam reparado no mome e morada. Só repararam porque tiveram de requisitar especialmente o livro a outra biblioteca.
- E o livro foi devolvido, senhor inspector?
- Sim, mas anonimamente, e não sabem dizer exactamente quando. Foi provavelmente na quarta-feira a seguir à morte da Fallon. Alguém o deixou no carrinho dos não ficção. Quando a funcionária foi encher o carrinho de livros recentemente devolvidos, reconheceu-o e levou-o novamente para o balcão, a fim de ser registado e posto de lado para devolução à filial respectiva. Ninguém viu quem o devolveu. A biblioteca é particularmente movimentada e as pessoas entram e saem à vontade. Nem toda a gente traz livros para devolver ou se dirige ao balcão. Seria bastante fácil introduzir lá um livro, trazendo-o num cesto ou no bolso, e metê-lo sub-repticiamente no carrinho juntamente com os outros. A funcionária que deu por ele tinha estado quase toda a manhã e a tarde de serviço ao balcão e quem estivera a encher o carrinho fora uma empregada subalterna. A rapariga estava a deixar o trabalho atrasar, de modo que a superior foi dar-lhe uma ajuda. Deu logo pelo livro. Isto passou-se por volta das quatro e meia. Mas o livro podia ter sido lá posto em qualquer altura.
- Algumas impressões digitais, senhor inspector?
- Nada de jeito. Umas quantas manchas. Tinha sido manuseado por uma data de funcionárias da biblioteca e sabe Deus por quanto público. E por que não? Eles não tinham obrigação de saber que fazia parte das provas de uma investigação criminal. Mas há qualquer coisa de interessante nele. Dê-lhe uma vista de olhos.
Abriu uma das gavetas da secretária e tirou de lá um grosso livro com uma encadernação de pano azul-escura e um número de catalogação da biblioteca gravado na lombada. Era uma descrição de diversos julgamentos de guerra feitos na Alemanha a partir de 1945, ao que parecia, cuidadosamente documentada, nada sensacional na abordagem e escrita por um conselheiro representante da Coroa, que outrora fizera parte da equipa do general promotor de Justiça. Havia poucas ilustrações, e destas apenas duas relacionadas com o julgamento de Felsenheim. Uma mostrava uma vista geral do tribunal, vendo-se indistintamente o médico no banco dos réus, e a outra era uma fotografia do comandante do campo. Dalgliesh disse:
- Martin Dettinger é referido, mas apenas de passagem. Durante a guerra serviu na cavalaria ligeira de Wiltshire e em Novembro de 1945 foi designado membro de um tribunal de guerra constituído na Alemanha Ocidental para julgar quatro homens e uma mulher acusados de crimes de guerra. Estes tribunais foram criados ao abrigo de uma determinação especial do Exército de Junho de 1945, e este constava de um presidente, que era brigadeiro dos Grenadier Guards, quatro oficiais, entre os quais se contava Dettinger, e o promotor de Justiça designado pelo general promotor de Justiça para as Forças Armadas. Como disse, a sua missão era julgar cinco pessoas que, segundo constava (pode ver a acusação na página 127), ”agindo concertadamente e na prossecução de um fim comum e actuando em proveito e nome do então Reich alemão, no dia 3 de Setembro ou perto dessa data colaboraram, instigaram e participaram voluntária, deliberada e iniquamente no extermínio de trinta e um seres humanos de nacionalidade polaca e russa”.
Masterson não ficou admirado com o facto de Dalgliesh ser capaz de citar a acusação palavra por palavra. Era um truque de administrador, aquela capacidade de memorizar e apresentar factos com rigor e precisão. Dalgliesh fazia-o melhor do que a maioria e, se lhe apetecia exercitar a técnica, não era ao seu sargento que competia interrompê-lo. Manteve-se calado. Notou que o inspector-chefe tinha pegado numa grande pedra cinzenta, um ovóide perfeito, e a rolava lentamente entre os dedos. Provavelmente era qualquer coisa que lhe tinha saltado à vista no terreno e que ele apanhara para servir de pisa-papéis Tinha a certeza de que nessa manhã não estava no gabinete. À voz cansada e tesa prosseguiu:
- Esses trinta e um homens, mulheres e criadas eram trabalhadores escravos judeus e constava que sofriam de tuberculose. Foram enviados para uma clínica da Alemanha Ocidental originariamente destinada ao tratamento de doenças mentais, mas que a partir do Verão de 1944 se dedicara, não a curar, mas à tarefa de matar. Não se sabe quantos doentes mentais alemães foram ali exterminados. O pessoal que trabalhava lá tinha sido ajuramentado no sentido de guardar segredo do que ali se passava, mas corriam muitos boatos nas circunscrições vizinhas. No dia 3 de Setembro de 1944, um transporte de cidadãos polacos e russos foi enviado para a clínica. Disseram-lhes que iam ser submetidos a tratamento da tuberculose. Nessa noite deram-lhes injecções letais - a homens, mulheres e crianças - e na manhã seguinte estavam mortos e enterrados. Era por esse crime, e não pelo assassínio dos cidadãos alemães, que os cinco acusados estavam a ser julgados. Um era o director clínico, o doutor Max Klein, outro, um jovem farmacêutico, Ernst Gumbmann, outro, o enfermeiro-chefe Adolf Straub e, outra, uma jovem estagiária de enfermagem de 18 anos de idade, Irmgard Grobel. O director clínico e o enfermeiro-chefe foram condenados, o médico à morte e o enfermeiro a vinte e três anos de prisão. O farmacêutico e a mulher foram absolvidos. Pode ler a argumentação da defesa sobre ela na página 140. O melhor é ler alto.
Surpreendido, Masterson pegou no livro em silêncio e desfolhou-o até à página 140. Começou a ler. A sua voz soava invulgarmente alto.
”Este Tribunal não está a julgar a ré Irmgard Grobel por participação na morte de cidadãos alemães. Sabemos já o que acontecia na Clínica Steinhoff. Sabemos, igualmente, que isso estava de acordo com a lei alemã tal como foi proclamada exclusivamente por Adolf Hitler. Em obediência a ordens dimanadas das mais altas instâncias, muitos milhares de alemães doentes mentais foram eliminados, dentro da perfeita legalidade, de 1940 em diante. Do ponto de vista moral, pode-se julgar esta acção conforme se quiser. A questão não é se o pessoal da clínica Steinhoff o achava errado ou se o achava misericordioso. A questão é se o achava legal. Foi provado por testemunhas que havia tal lei em vigor. Se esteve ligada às mortes dessas pessoas, Irmgard Grobel agiu de acordo com a lei.
”Mas ao Tribunal não interessam os doentes mentais. A partir de 1944, esta mesma lei foi alargada aos trabalhadores estrangeiros atingidos por tuberculose incurável. Poder-se-ia argumentar que a ré não teria dúvidas da legalidade dessas mortes quando tinha visto pôr termo ao sofrimento de cidadãos alemães em nome dos interesses do Estado. Mas não é essa a nossa argumentação. Não estamos em posição de julgar o que a ré pensou. Ela não esteve implicada nas únicas mortes de que este Tribunal se ocupa. O transporte de russos e polacos chegou a Steinhoff no dia 3 de Setembro de 1944, às seis e meia da tarde. Nesse dia, Irmgard Grobel regressava da sua licença. O Tribunal ouviu como ela entrou nos alojamentos das enfermeiras, às sete e meia, e vestiu o uniforme. Entrou de serviço às nove horas. Entre a ocasião da entrada na clínica e a chegada à sala da enfermeira de turno no bloco ela apenas falou com duas outras enfermeiras, as testemunhas Willig e Rohde. Ambas testemunharam que não informaram Grobel da chegada do transporte. Portanto, Grobel entra na sala da enfermeira de turno. Tinha tido uma viagem árdua e está cansada e doente. Hesita se há-de pedir ou não autorização para sair de serviço. É então que o telefone toca e o doutor Klein fala com ela. O Tribunal ouviu o depoimento de testemunhas desta conversa. Klein pede a Globel que vá ver a arrecadação dos medicamentos e lhe diga quanto Evipan e fenol existe em armazém. Já sabem que o Evipan vinha em caixas, cada uma delas com vinte e cinco injecções, e consistindo cada injecção numa cápsula de Evipan em forma de pó e um recipiente de água esterilizada. O Evipan e o fenol, juntamente com outras drogas perigosas, eram guardados na sala da enfermeira de serviço. Grobel verifica a quantidade e informa Klein de que há duas caixas de Evipan e cerca de cento e cinquenta centímetros cúbicos de fenol líquido em armazém. Nessa altura, Klein dá-lhe ordens de aprontar todo o Evipan e fenol disponíveis para o entregar ao enfermeiro Straub, que irá lá buscá-lo. Dá-lhe também ordem para lhe entregar doze seringas de dez centímetros cúbicos e uma porção de agulhas fortes. A ré argumenta que em nenhuma ocasião ele declarou para que fim eram precisas estas drogas e ouviram o réu Straub dizer que tão-pouco ele próprio a tinha esclarecido.
”Irmgard Grobel não saiu da sala da enfermeira de serviço até ser transportada para os seus alojamentos, às nove e vinte dessa noite. O Tribunal ouviu como a enfermeira Rhode, ao apresentar-se tarde para entrar de serviço, a encontrou desmaiada no chão. Durante cinco dias esteve retida no leito com vómitos e febre agudos. Não viu os russos e polacos entrarem no bloco. E nem viu os seus cadáveres serem retirados, às primeiras horas do dia 4 de Setembro. Quando regressou ao serviço, já os corpos tinham sido enterrados.
”Senhor Presidente, este Tribunal ouviu testemunhas que depuseram quanto à bondade de Irmgard Grobel, à sua ternura para com as crianças enfermas, à sua competência como enfermeira; eu recordaria ao Tribunal que ela é jovem, ela própria pouco mais que uma criança. No entanto, não requero a absolvição com base na sua pouca idade ou no seu sexo, mas porque, dos acusados, é ela a única manifestamente inocente da acusação. Não teve participação nas mortes desses trinta e um russos e polacos. Nem sequer sabia que eles existiam. A defesa nada mais tem a acrescentar.”
A voz azeda de Dalgliesh quebrou o silêncio:
- Repare, sargento, na habitual argumentação de legalidade teutónica. Não gastaram muito tempo com as mortes, pois não? Entrados às sete e meia e injectados pouco depois das nove. E por que razão com Evipan? Não podiam garantir que a morte fosse instantânea, a não ser que injectassem uma forte dose. Duvido que menos de vinte centímetros cúbicos matassem imediatamente. Não é que isso os preocupasse. O que salvou a Grobel foi estar de folga até ao fim dessa tarde. A defesa argumentou que ela nunca chegou a ser informada de que tinham chegado prisioneiros estrangeiros, que ninguém soube disso a não ser na manhã do dia 4. Foi esse mesmo argumento que deu a liberdade ao farmacêutico. Tecnicamente estavam ambos inocentes, se é que se pode aplicar essa palavra a alguém que trabalhava em Steinhoff.
Masterson manteve-se calado. Tudo aquilo fora há tanto tempo! A Grobel era uma rapariga. dez anos mais nova do que ele, presentemente. A guerra pertencia ao passado. Não tinha mais importância na vida dele do que a guerra das duas rosas; tinha até menos, na medida em que nem sequer evocava os ecos levemente românticos e cavalheirescos da história que aprendera na juventude. Não sentia nada de especial relativamente aos alemães, como aliás em relação a qualquer outra raça, a não ser as poucas que considerava cultural e intelectualmente inferiores. Os alemães não se contavam entre elas. A Alemanha, para ele, significava hotéis asseados e boas estradas, rippchen1 comidas com o vinho da região a acompanhar, na Apfel Wine Struben Inn, com o Reno a descrever uma curva lá em baixo como uma fita de prata e a excelência do parque de campismo de Coblença.
E, se algum dos réus de Felsenheim ainda fosse vivo, estaria já bem entrado na meia-idade. A própria Irmgard Grobel teria quarenta e três anos. Já lá ia imenso tempo. Só tinha importância porque se relacionava com o caso presente.
- Já foi há tanto tempo! - observou. - Tratar-se-á de um segredo por cuja manutenção valha a pena matar? Hoje em dia, quem é que quer realmente saber disso? A política oficial não é esquecer e perdoar?
- Nós, ingleses, temos muito jeito para perdoar aos nossos inimigos; isso liberta-nos da obrigação de gostarmos dos nossos amigos. Dê uma olhadela a este livro, Masterson. Que é que nota?
Masterson deixou as folhas separarem-se, levantou o livro ao nível dos olhos e examinou a capa. Depois voltou a pô-lo na mesa e comprimiu as páginas centrais. Ali, profundamente embutidos nas dobras, havia uns escassos grãos de areia.
- Mandámos uma amostra para ser analisada no laboratório, mas não há grandes dúvidas quanto ao resultado. É quase com certeza de um dos baldes de areia contra incêndios da Nightingale House.
- com que então foi onde esteve escondido até ele, ou ela, poder restituí-lo à biblioteca. Foi a mesma pessoa que escondeu o livro e a lata de pulverizador das roseiras. Tudo se conjuga perfeitamente, senhor inspector.
- Um pouco perfeitamente demais, não lhe parece? - perguntou Dalgliesh.
Mas o sargento Masterson tinha-se lembrado de outra coisa.
- Aquela brochura, a que encontrámos no quarto da Pearce! Não era acerca da obra de um tal abrigo de Suffolk para vítimas da guerra fascista? Suponha que foi a Pearce que o mandou vir. Será mais um exemplo de fazer que o castigo se adecue ao crime?
- Creio que sim. De manhã ligaremos para lá e descobriremos o que lhes prometeu ela, se é que prometeu alguma coisa.
E voltaremos a falar com Courtney-Briggs. Ele estava na Nightingale House mais ou menos na ocasião em que a Fallon morreu. Quando soubermos quem ele veio ver e porquê, estaremos perto de solucionar este caso. Mas tudo isso tem de esperar para amanhã.
Masterson abafou um bocejo e disse:
- Há quase três horas que é amanhã, senhor inspector.
Se o porteiro da noite da Falconer’s Arms ficou surpreendido com o regresso dos dois hóspedes àquela hora da madrugada, um manifestamente doente e com a cabeça espalhafatosamente enfaixada, estava bem treinado para não o mostrar. A pergunta que formulou, se os cavalheiros queriam alguma coisa da sua pessoa, foi mera formalidade; a resposta de Masterson quase descortês. Subiram os três lanços de escadas até ao piso dos quartos, visto que o antiquado ascensor era de venetas e barulhento. Dalgliesh obstinadamente determinado a não dar parte de fraco na presença do seu sargento, fez um esforço para subir cada um dos degraus sem se agarrar ao corrimão. Sabia que aquilo era uma vaidade tola e, quando chegou ao quarto, já tinha começado a pagá-la. Estava tão fraco que teve de se apoiar contra a porta fechada por um minuto antes de avançar sinuosa e irregularmente até ao lavatório. Agarrando-se às torneiras como apoio, tentou vomitar dolorosamente e sem êxito, com a fronte apoiada nos antebraços. Sem levantar a cabeça, rodou a torneira da direita, da qual brotou um jorro de água gelada. Enxaguou a cara e bebeu pelas mãos em concha. Sentiu-se imediatamente melhor.
Teve um sono irregular. Era difícil descansar comodamente na almofada a cabeça encapsulada, e a perda de sangue parecia ter-lhe deixado o espírito sobrenaturalmente activo e lúcido, militando contra o sono. Quando efectivamente adormeceu, foi apenas para sonhar. Estava a caminhar nos terrenos anexos ao hospital com Mavis Gearing. Ela pulava infantilmente entre as árvores, brandindo a tesoura de podar e dizendo de modo travesso:
- É maravilhoso o que se pode encontrar para fazer vista, mesmo nesta época morta do ano.
Não lhe pareceu incongruente o facto de ela estar a cortar rosas vermelhas em pleno desabrochar dos ramos mortos, nem tão-pouco, nenhum deles fazer caso do corpo de Mary Taylor, com o pescoço branco cingido pelo laço do enforcador, oscilando suavemente de um dos galhos.
Perto da manhã começou a dormir mais profundamente. Mesmo assim, o áspero retinir incessante do telefone fê-lo acordar, ficando instantaneamente consciente. O mostrador iluminado do relógio de viagem marcava cinco e quarenta e nove da manhã. Deslocou penosamente a cabeça da depressão da almofada e tacteou à procura do auscultador. A voz era imediatamente identificável. Mas a verdade é que estava convicto de ser capaz de distingui-la de qualquer outra mulher no mundo.
- Mr. Dalgliesh? Daqui Mary Taylor. Desculpe incomodá-lo, mas pensei que havia de preferir que eu telefonasse. Temos um incêndio aqui. Nada de perigo; é apenas no terreno. Pode ter tido origem num barracão do jardineiro que já não é utilizado, a uns cinquenta metros da Nightingale House. A casa propriamente dita não corre perigo, mas o fogo alastra muito depressa por entre as árvores.
Ficou surpreendido perante a clareza com que era capaz de pensar. Já não lhe doía o ferimento. Sentia literalmente a cabeça fresca e precisou de apalpar a áspera gaze da ligadura para se certificar de que ainda lá estava.
- A Morag Smith - disse. - Ela está bem? Servia-se da cabana como uma espécie de refúgio.
- Eu sei. Ela disse-mo esta noite, depois de o ter trazido. Arranjei-lhe aqui uma cama para ela passar a noite. A Morag está em segurança. Foi a primeira coisa que verifiquei.
- E as outras pessoas da Nightingale House?
Houve um silêncio. A seguir, ela falou numa voz mais aguda.
- Vem ver agora. Nunca me passou pela cabeça.
- Claro que não. Por que havia de passar? Eu já apareço aí.
- Será preciso? Mr. Courtney Briggs insistiu para o senhor descansar. Os bombeiros estão a controlar as coisas. A’princípio recearam que a Nightingale House pudesse estar ameaçada, mas cortaram algumas árvores mais próximas. As chamas devem estar extintas dentro de meia hora. Não poderá esperar até de manhã?
- vou para aí agora - disse ele.
Masterson estava deitado de barriga para cima, drogado de fadiga, com o rosto forte inexpressivo no sono e a boca meio aberta. Foi preciso quase um minuto para o levantar da cama. Dalgliesh teria preferido deixá-lo ali no seu letargo, mas sabia que, no actual estado de debilidade em que se encontrava, não era seguro conduzir. Masterson, finalmente sacudido ao ponto de despertar, escutou as instruções do inspector-chefe sem comentários, após o que enfiou a roupa num silêncio rancoroso. Era demasiado prudente para questionar a decisão de Dalgliesh, de voltar à Nightingale House, mas era evidente pelo seu ar carrancudo, que considerava a excursão desnecessária, e o curto trajecto até ao hospital decorreu em silêncio.
O incêndio tornou-se visível como um clarão vermelho na noite muito antes de avistarem o hospital e, enquanto transpunham o portão aberto da Winchester Road, ouviam o estalar entrecortado das árvores a arder e sentiam o vivo odor evocativo de madeira em combustão, forte e doce no ar frio. Respirou-o com ruidoso deleite e disse com uma franqueza satisfeita:
- Gosto deste cheiro, senhor inspector. Lembra-me a infância, acho eu. Acampamentos de Verão nos escuteiros. Embrulhado num cobertor em volta do fogo de campo com as fagulhas a elevarem-se na noite. É uma verdadeira maravilha quando a pessoa tem treze anos e ser chefe de patrulha representa mais poder e glória do que provavelmente voltará a sentir alguma vez na vida. O senhor inspector sabe como é.
Dalgliesh não sabia. A sua infância solitária e isolada tinha sido isenta dessas delícias tribais. Mas era um relance interessante e somente comovedor do carácter de Masterson. Chefe de patrulha nos escuteiros! Pois bem, por que não? Se tivesse recebido uma herança diferente, se tivesse sido outro o capricho do destino; poderia facilmente ter-se tornado chefe de um bando de rua, sendo a sua essencial ambição e desumanidade canalizadas em direcções menos conformistas.
Masterson conduziu o automóvel sob as árvores até uma distância segura e caminharam ambos na direcção do incêndio. Como que por concordância tácita, pararam e permaneceram ambos à sombra das árvores, observando em silêncio. Ninguém pareceu dar por eles e ninguém se aproximou. Os bombeiros entregavam-se à sua tarefa. Havia apenas uma bomba e aparentemente tinham a mangueira ligada à Nightingale House. Naquele momento o fogo encontrava-se já perfeitamente controlado, mas continuava a ser espectacular. O barracão tinha desaparecido por completo, sem deixar vestígios a não ser um anel de terra negra a mostrar o local onde outrora se erguia, e as árvores circundantes eram forcas enegrecidas, atrofiadas e retorcidas como que em consequência do sofrimento da sua combustão. Na periferia, umas árvores de pouca idade ardiam ainda violentamente; estalando e crepitando sob o jacto da mangueira. Uma única chama, serpenteando e contorcendo-se debaixo da brisa fresca, saltava do topo de uma árvore para o de outra e ali ficava a arder com a clara luz incandescente de uma vela até ser ferida por um infalível jacto da mangueira. Enquanto eles observavam, uma alta conífera pegou instantaneamente fogo e explodiu numa chuva de agulhas doiradas. Houve um ofegar abafado de respeito, e Dalgliesh viu que um pequeno grupo de estagiárias de capas pretas, que se tinham mantido a observar à distância, se adiantara imperceptivelmente para a claridade do fogo. Quando este brilhou por momentos nos seus rostos, pensou reconhecer Madeleine Goodale e Julia Pardoe. Depois, viu a inconfundível figura alta da superintendente dirigir-se a elas. Endereçou-lhes algumas palavras e o grupo fez meia volta e dissolveu-se relutantemente entre as árvores. Foi então que ela avistou Dalgliesh. Por um instante ficou perfeitamente imóvel. Embrulhada na comprida capa preta, com o capuz atirado para trás, estava encostada a uma solitária árvore jovem como uma vítima amarrada ao poste do suplício, com o clarão do fogo a bailar diante dela e a luz a emprestar cor à tez pálida. A seguir avançou lentamente para ele. Dalgliesh verificou então que tinha o rosto muito pálido.
- Tinha razão - disse ela. - Ela não estava no quarto. Deixou-me uma carta.
Dalgliesh não respondeu. O seu espírito encontrava-se tão lúcido que parecia estar a funcionar fora da sua própria vontade, não tanto a passar em revista todas as pistas do crime, mas vendo-o como que de uma grande altura; abaixo dele estendia-se uma vista sem sombras, compreensível, familiar e sem ambiguidades. Agora sabia tudo. Não apenas como as duas raparigas tinham sido assassinadas; não apenas quando e como; não apenas por quem. Conhecia a verdade essencial de todo o crime, porque de um só crime se tratava. Podia jamais ser capaz de o provar; mas sabia-o.
Meia hora mais tarde o fogo estava dominado. As mangueiras vazias rastejavam e batiam surdamente no solo enegrecido à medida que as recolhiam, levantando pequenos esguichos de fumo acre. A última das espectadoras tinha desaparecido e a cacofonia de fogo e vento fora substituída por um suave assobio de fundo, quebrado apenas pelas ordens do chefe dos bombeiros e pelas vozes indistintas dos seus homens. Até o vento tinha amainado um pouco, e o seu contacto no rosto de Dalgliesh era tépido e suave ao passar sobre a terra fumegante. Pairava em toda a parte a exalação de madeira carbonizada. Os faróis do carro dos bombeiros estavam assestados no círculo fumegante onde antes se erguia a cabana. Dalgliesh dirigiu-se para lá, com Masterson do seu lado esquerdo e Mary Taylor do direito. O calor penetrava incomodamente pelas solas dos sapatos. Havia pouca coisa para ver: -um pedaço de metal grotescamente retorcido que podia ter sido parte de um fogão; a silhueta carbonizada de um bule metálico, que um pontapé faria desintegrar de maneira a ficar irreconhecível. E havia qualquer outra coisa, uma forma, nada mais, que até na profanação extrema da morte era ainda horrivelmente humana. Ficaram a contemplá-la ali no solo, em silêncio. Bastaram-lhes alguns minutos para identificarem os escassos pormenores: a cintura pélvica ridiculamente pequena depois de desnudada do seu invólucro animado de músculos e pele; o crânio virado ao contrário e inocente como um cálice; a mancha onde o cérebro se consumira.
- Faça uma vedação em torno do local e assegure-se de que fica bem guardado - disse Dalgliesh -, e depois telefone a Sir Miles Honeyman.
- Ele tem aqui um rico problema de identificação, senhor inspector - comentou Masterson.
- Sim - retorquiu Dalgliesh -, se nós não soubéssemos já de quem se trata.
Por acordo tácito e sem trocarem uma palavra, atravessaram a casa silenciosa até ao apartamento da superintendente. Ninguém os seguiu. Ao entrarem na sala de estar, o relógio sobre a lareira, batia as seis e meia. Estava ainda muito escuro e, em contraste com o ar aquecido pelo fogo dos terrenos anexos, a sala achava-se terrivelmente fria. As cortinas tinham sido arredadas e a janela de caixilhos deixada aberta. A superintendente atravessou calmamente a sala para a fechar, correu as cortinas com um rápido movimento defensivo dos braços e virou-se para fitar firme e compassivamente Dalgliesh, como se estivesse a vê-lo pela primeira vez.
- O senhor está com um aspecto desesperado de cansaço e frio. Venha aqui para o pé da lareira e sente-se.
Ele aproximou-se e encostou-se à lareira, receando que, uma vez sentado, nunca mais conseguisse levantar-se. No entanto, a prateleira da chaminé pareceu-lhe instável, o mármore escorregadio como gelo. Deixou-se cair na poltrona e ficou a vê-la ajoelhar no tapete em frente da lareira e juntar acendalhas secas às cinzas ainda quentes do fogo da noite anterior. As acendalhas animaram-se de chamas. Ela acrescentou uns pedaços de carvão, estendendo as mãos abertas sobre a fogueira. A seguir, sem se pôr de pé, meteu a mão no bolso da capa e estendeu-lhe uma carta.
Um envelope azul-pálido, sem selo e endereçado, numa caligrafia cheia, infantil mas firme, ”a quem possa interessar”. Ele retirou a carta. Papel azul barato, perfeitamente vulgar, liso, mas com as linhas da escrita tão direitas que ela devia ter utilizado uma pauta como guia.
Matei Heather Pearce e Josephine Fallon. Tinham descoberto uma coisa do meu passado; coisa essa com a qual nada tinham a ver, e estavam a ameaçar exercer chantagem sobre mim. Quando a enfermeira Gearing me telefonou a dizer que a Fallon tinha adoecido e baixara à enfermaria, soube que seria a estagiária Pearce a desempenhar o papel de doente em lugar dela. Recolhi o frasco de desinfectante muito cedo nessa manhã e enchi uma das garrafas de leite vazias da sala de uso geral das enfermeiras. Repus cuidadosamente a cápsula e levei a garrafa comigo para o pequeno-almoço dentro da saca de tapeçaria. Tudo o que tive de fazer foi introduzir-me na sala de aulas práticas, terminado o pequeno-almoço, e colocar a garrafa de veneno no lugar da garrafa de leite que estava no carrinho. Se estivesse alguém na sala teria arranjado uma desculpa e tentaria noutra ocasião e de outra maneira. Mas a sala estava vazia. Levei a garrafa, de leite para a sala de uso geral das enfermeiras, no andar de cima, e atirei o frasco de desinfectante vazio por uma das janelas da casa de banho.
Estava na estufa quando a enfermeira Gearing exibiu a lata de nicotina para pulverizar as roseiras e pensei nela quando se tratou de matar a Fallon. Sabia onde estava guardada, a chave da estufa e utilizei luvas cirúrgicas para não deixar impressões digitais. Foi fácil deitar o veneno no copo de uísque e limão da Fallon quando ela estava na casa de banho e a bebida se encontrava a arrefecer na sua mesa-de-cabeceira. A sua rotina nocturna nunca variava. Tencionava guardar a lata e colocá-la mais tarde nessa noite na mesa-de-cabeceira dela, a fim de parecer que ela se tinha suicidado. Sabia que era importante deixar as impressões digitais dela na lata, mas isso não seria difícil. Tive de alterar o plano porque Mr. CourtneyBriggs telefonou pouco depois da meia-noite, pedindo-me para voltar à minha enfermaria. Não podia manter a lata em meu poder; visto que não seria possível andar sempre com a saca na enfermaria, não me pareceu seguro deixá-la no quarto. Por isso, escondi-a no balde de areia em frente do quarto da estagiária Fallon com a intenção de a recuperar e colocá-la na mesa-de-cabeceira dela quando voltasse à Nightingale House. Mas também esse plano se revelou impraticável. Quando cheguei ao cimo das escadas, as gémeas Burt saíram dos respectivos quartos. Via-se luz através do buraco da fechadura da estagiária, Fallon e elas disseram que iam levar-lhe cacau. Esperava que o corpo fosse descoberto nessa noite. Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser subir e meter-me na cama. Ali fiquei deitada à espera, contando a cada minuto ouvir darem o alarme. Perguntava a mim própria se as gémeas teriam alterado os planos e se a Fallon teria adormecido antes de beber o uísque com limão. No entanto, não me atrevi a descer para ir verificar. Se tivesse tido possibilidades de colocar a lata de nicotina ao lado da cama da Fallon, nunca ninguém desconfiaria que ela tinha sido assassinada e eu teria cometido dois crimes perfeitos.
Nada mais resta dizer, a não ser que ninguém tinha conhecimento do que eu tencionava fazer e que ninguém me ajudou.
Ethel Brumfett,
Mary Taylor disse:
- É a letra dela, claro. Encontrei-a na prateleira da lareira quando voltei, depois de lhe ter telefonado a si para me certificar de que estava toda a gente em sugurança. Mas é verdade?
- Oh, sim, é verdade. Ela matou ambas. Só a assassina poderia saber onde estava escondida a lata da nicotina. Era evidente que a segunda morte se destinava a passar por suicídio. Nesse caso, por que razão não foi a lata deixada na mesa-de-cabeceira? Só podia ser porque a assassina tinha sido interrompida a meio do seu plano. A enfermeira Brumfett era a única pessoa que tinha sido chamada nessa noite e fora impedida no regresso de ir ao quarto da Fallon. Mas foi sempre a principal suspeita. A garrafa do veneno tinha de ter sido preparada com vagar e por alguém que tivesse acesso às garrafas de leite e ao desinfectante e que pudesse transportar a garrafa letal consigo sem ser detectada. A enfermeira Brumfett nunca largava a saca de tapeçaria, fosse para onde fosse. Teve o azar de escolher uma garrafa com cápsula de cor errada. Pergunto a mim próprio se chegou a reparar. Mesmo que tivesse reparado, não havia tempo para a trocar. Todo o plano dependia de uma substituição que levaria apenas um segundo. Teria de esperar que ninguém tivesse dado por isso. E, efectivamente, foi o que aconteceu. Além disso, havia um aspecto em que ela se distinguia de todos os suspeitos. Era a única que não estava presente para testemunhar nenhuma das mortes. Não podia levantar um dedo contra a Fallon enquanto a rapariga era sua doente. Isso ser-lhe-ia impossível. E preferia não assistir a nenhum dos homicídios. É preciso ser-se um assassino psicopata ou profissional para gostar de ver a vítima morrer.
- Sabemos que a Heather Pearce era uma chantagista em potência - disse ela. - Pergunto a mim própria que patético incidente do monótono passado da pobre Brumfett teria ela desencantado para se divertir.
- Acho que a senhora sabe isso, tal como eu o sei. Heather Pearce tinha descoberto a história de Felsenheim.
Ela pareceu ficar petrificada em silêncio. Estava dobrada sobre si na ponta da poltrona, de cara virada em relação a ele. Passado um momento desviou a cara e fitou-o.
- Não sei se sabe que ela não era culpada. A Brumfett era submissa, autoritária, tinha sido educada para considerar a obediência incondicional o primeiro dever de uma enfermeira. Mas não matava os seus doentes. O veredicto daquele tribunal de Felsenheim foi justo. E, mesmo que não o fosse, foi o veredicto de um tribunal judicial regularmente constituído. Oficialmente, está inocente.
- Não estou aqui a pôr em questão o veredicto de Felsenheim - disse Dalgliesh.
Como se ele não tivesse falado, ela prosseguiu avidamente, dir-se-ia que pretendendo forçá-lo a acreditar.
- Ela contou-me isso quando andávamos ambas a estudar no Hospital Geral de Nethercastle. Viveu a maior parte da infância na Alemanha, mas a avó era inglesa. Depois do julgamento foi naturalmente em liberdade e acabou por casar, em 1944, com um sargento inglês, Ernest Brumfett. Ela tinha dinheiro e foi apenas um casamento de conveniência, uma maneira de sair da Alemanha e voltar para Inglaterra. A avó, nessa altura, já tinha morrido, mas ela ainda tinha certos laços com o país. Foi para Nethercastle como auxiliar de enfermagem e era tão competente que, passados dezoito meses, não houve dificuldade em a superintendente a admitir como estagiária de enfermagem. A escolha do hospital foi inteligente. Era pouco provável que lá fossem remexer no passado de quem’ quer que fosse, em especial no passado de uma mulher que tinha provado o seu valor. O hospital é um grande edifício vitoriano, sempre movimentado, com uma falta crónica de pessoal. A Brumfett e eu acabámos ambas o estágio lá, fomos juntas para a maternidade local, a fim de nos especializarmos em parteiras, e viemos juntas para o Sul, aqui para o John Carpendar. Há perto de vinte anos que conhecia a Ethel Brumfett. Vi-a pagar vezes sem conta pelo que quer que tivesse acontecido na Clínica Steinhoff. Nessa altura, ela era uma miúda. Não podemos saber o que lhe aconteceu durante esses anos da infância na Alemanha. Só podemos saber o que a mulher adulta fez por este hospital e pelos seus doentes. O passado não tem importância.
- Até que aquilo que ela sempre deve ter temido subconscientemente aconteceu - disse Dalgliesh. - Até que alguém do passado a reconheceu.
- Nesse caso, todos os anos de trabalho e esforço teriam sido em vão. Sou capaz de perceber por que razão ela achou necessário matar a Pearce. Mas porquê a Fallon? - contrapôs, ela.
- Por quatro razões. A estagiária Pearce queria uma confirmação da história de Martin Dettinger antes de falar com a enfermeira Brumfett. A maneira evidente de a conseguir parecia ser consultar um relato do julgamento. Por isso pediu à Fallon para lhe emprestar um cartão da biblioteca. Foi até à Biblioteca de Westminster na quinta-feira e novamente no sábado, quando o livro apareceu. Deve tê-lo mostrado à enfermeira Brumfett quando falou com ela e deve ter-lhe dito onde tinha obtido o cartão. Mais tarde ou mais cedo havia de querer o cartão de volta. Era essencial que ninguém descobrisse alguma vez por que razão a estagiária Pearce o quisera, ou o nome do livro que tinha requisitado na biblioteca. Houve vários factos significativos que a enfermeira Brumfett resolveu omitir da sua confissão. Depois de ter substituído a garrafa de leite pela do veneno, subiu as escadas, foi buscar o livro da biblioteca ao quarto da estagiária Pearce e escondeu-o num dos baldes de areia contra incêndio, até ter oportunidade de o devolver anonimamente à biblioteca. Sabia perfeitamente que a Pearce nunca regressaria viva da sala de aulas práticas. Era característico dela escolher o mesmo esconderijo mais tarde para a lata de nicotina. A enfermeira Brumfett não era uma mulher imaginativa.
”Mas o problema do livro da biblioteca não era a razão principal para matar a estagiária Fallon. Havia três outras. Ela queria confundir os motivos, fazer que se pensasse que a vítima em vista era a Fallon. Se a Fallon morresse, havia sempre a probabilidade de a Pearce ter sido morta por engano. Era a Fallon que estava escalada para fazer de doente na manhã da inspecção. A Fallon era uma vítima mais verosímil. Estava grávida; só isso já poderia proporcionar um motivo. A enfermeira Brumfett tinha-a tratado e podia ter tomado conhecimento ou adivinhado que ela estava grávida. Tenho a impressão de que a enfermeira Brumfett não era pessoa para deixar passar facilmente indícios ou sintomas nos seus doentes. Depois havia a possibilidade de a Fallon ser considerada responsável pela morte da Pearce. No fim de contas, ela tinha admitido que regressara à Nightingale House na manhã do crime e recusou-se a fornecer qualquer explicação. Podia ter deitado o veneno no alimento. Mais tarde, talvez atormentada pelos remorsos, matou-se. Essa explicação eliminaria muito convenientemente ambos os mistérios. É uma teoria sedutora do ponto de vista do hospital e um considerável número de pessoas preferiria pensar que tinha sido assim.
- E a última razão? Disse que havia quatro. Queria evitar investigações acerca do cartão da biblioteca; queria dar a ideia de que a vítima em vista era a Fallon; alternativamente, queria implicar a Fallon na morte da Pearce. Qual era o quarto motivo?
- Queria protegê-la a si. Sempre o quis. com o primeiro crime, não foi fácil. A senhora estava na Nightingale House; tinha tido tantas oportunidades como qualquer outra pessoa de interferir com o alimento. Mas pelo menos podia garantir que a senhora tivesse um álibi para a ocasião da morte da Fallon. Estava a bom recato em Amsterdão. Não tinha hipótese de ter matado a segunda vítima. Sendo assim, por que razão havia a senhora de ter matado a primeira? Desde o princípio desta investigação que conclui haver uma ligação entre os dois assassínios. Era demasiada coincidência pressupor a existência de dois assassinos na mesma casa ao mesmo tempo. E isso excluía-a automaticamente a si da lista de suspeitos.
- Mas por que havia alguém de suspeitar que eu tivesse matado qualquer uma das raparigas?
- Porque o motivo que imputámos a Ethel Brumfett não faz sentido. Ora pense. Um moribundo saiu momentaneamente do estado de inconsciência e viu um rosto curvado sobre ele. Abriu os olhos e, por entre as dores e o delírio, reconheceu uma mulher. A enfermeira Brumfett? A senhora seria capaz de reconhecer o rosto de Ethel Brumfett ao fim de vinte e cinco anos? A simples, vulgaríssima e inconspícua Brumfett? Existe apenas uma mulher num milhão que tem um rosto tão belo que possa reconhecer-se mesmo numa rápida vista de olhos, fazendo a memória recuar vinte e cinco anos. O seu. A senhora, e não a enfermeira Brumfett, é que era Irmgard Grobel.
- A Irmgard Grobel morreu - disse ela tranquilamente. Ele prosseguiu como se ela não tivesse falado.
- Não é de espantar que a estagiária Pearce não tenha suspeitado nem por um momento que a Grobel pudesse ser a senhora. É a superintendente, protegida por um temor semi-religioso da mácula das fraquezas humanas, quanto mais dos pecados humanos. Devia ser psicologicamente impossível para ela pensar em si como assassina. E depois, havia as palavras utilizadas por Martin Dettinger. Ele disse que era uma das enfermeiras. Acho que sei por que razão cometeu ele esse erro. A senhora visita uma vez por dia todas as enfermarias do hospital e fala com quase todos os doentes. O rosto que ele viu debruçado sobre ele não era apenas distintamente o de Irmgard Grobel. Viu uma mulher vestindo aquilo que para ele era uma farda de enfermeira, a capa curta e a larga touca triangular dos serviços de enfermagem do Exército. Para o seu espírito confundido pelos medicamentos, aquela farda significava uma enfermeira. E continua a significar uma enfermeira para quem quer que tenha sido assistido num hospital militar, e ele tinha passado meses neles.
- A Irmgard Grobel morreu - disse ela de novo, tranquilamente.
- De maneira que ele disse à estagiária Pearce mais ou menos a mesma coisa que disse à mãe. Mrs. Dettinger não se interessou especialmente. Por que havia de se interessar? Foi então que recebeu a conta do hospital e pensou que talvez houvesse uma maneira de poupar umas libras. Se Mr. Courtney-Briggs não tivesse sido ganancioso, duvido que ela tivesse levado as coisas mais longe. Mas levou, e Mr. Courtney-Briggs foi contemplado com uma intrigante informação que achou merecer a pena gastar algum tempo e trabalho a verificar. Podemos imaginar o que Heather Pearce terá pensado. Deve ter sentido mais ou menos a mesma sensação de triunfo e de poder que quando viu a estagiária Dakers curvar-se a apanhar aquelas notas de libra a esvoaçar no caminho diante dela. Só que, desta vez, teria à sua mercê alguém bem mais importante e interessante do que uma colega de curso. Nunca lhe passou pela cabeça que o doente pudesse estar a referir-se a outra pessoa que não à enfermeira que o tratava. Mas sabia que teria de obter provas, ou, pelo menos, certificar-se de que Dettinger, que no fim de contas estava a morrer, não tinha sido vítima de uma ilusão ou alucinação. Assim, passou o seu meio dia de folga de quinta-feira na Biblioteca de Westminster e pediu-lhes um livro sobre o julgamento de Felsenheim. Elas tiveram de requisitá-lo a outra filial e ela voltou lá para o levantar no sábado. Acho que ela obteve elementos suficientes desse livro para se convencer de que Martin Dettinger sabia o que dizia. Penso que falou com a enfermeira Brumfett no sábado à noite e que a enfermeira não negou a acusação. Pergunto a mim próprio qual seria o preço que a Pearce teria exigido. Nada de tão terra-a-terra ou compreensível ou reprovável como um pagamento directo pelo seu silêncio. A Pearce gostava de exercer poder; mas gostava ainda mais de se comprazer com a rectidão moral. Deve ter sido no domingo de manhã que escreveu ao secretariado da liga da assistência às vítimas do fascismo. A enfermeira Brumfett seria obrigada a pagar, mas o dinheiro iria em prestações regulares para a liga. A Pearce era extraordinária no fazer o castigo adequar-se ao crime.
Desta vez ela ficou calada, ali sentada com as mãos molemente entrelaçadas no regaço e o olhar inexpressivamente perdido em algum passado insondável. Ele disse suavemente:
- Pode ser tudo verificado, sabe? Não resta grande coisa do corpo dela, mas não precisamos dele, ao passo que temos o seu rosto. Há-de haver documentação do julgamento, fotografias, o registo do seu casamento com um tal sargento Taylor.
Ela falou tão baixo que ele teve de inclinar a cabeça para ouvir:
- Ele abriu muito os olhos e fitou-me. Não falou. Havia naquele olhar qualquer coisa de louco, de desesperado. Pensei que estivesse a entrar em delírio, ou talvez sentisse medo. Acho que compreendeu nesse momento que ia morrer. Falei um pouco com ele e então os olhos fecharam-se-lhe. Não o reconheci. Por que razão havia de reconhecê-lo?
”Não sou a mesma pessoa que aquela criança em Steinhoff. Não quero com isto dizer que me lembre de Steinhoff como qualquer coisa que tivesse acontecido a outra pessoa. Aconteceu efectivamente a outra pessoa. Já nem sequer me consigo lembrar do que aconteceu ao certo naquele tribunal de Felsenheim; não sou capaz de recordar um único rosto.
Mas tinha de contar a alguém. Isso devia ter feito parte do processo de se tornar outra pessoa, de expulsar Steinhoff do pensamento. Assim, tinha contado a Ethel Brumfett. Tinham sido ambas jovens estagiárias em Nethercastle e Dalgliesh supunha que a Brumfett significava qualquer coisa para ela: bondade, segurança, dedicação. Se assim não fosse, porquê a Brumfett? Por que carga de água havia de escolhê-la para confidente? Devia ter pronunciado as palavras em voz alta, porquanto ela disse ansiosamente, como se fosse importante fazê-lo compreender:
- Contei-lho por ela ser tão vulgar. Havia qualquer coisa de seguro nessa vulgaridade. Pareceu-me que, se a Brumfett fosse capaz de escutar e acreditar em mim e mesmo assim continuar a gostar de mim, nada do que tinha acontecido era, afinal, tão terrível como tudo isso. O senhor não pode compreender.
Mas ele compreendia, sim. Houvera um rapaz assim na escola primária onde andara, tão vulgar, tão seguro, que era uma espécie de talismã contra a morte e os desastres. Dalgliesh lembrava-se do rapaz. Que coisa engraçada, há mais de trinta anos que não se lembrava dele! Sproat Minor, com o seu rosto redondo, simpático e de óculos, a sua vulgar família convencional, o seu passado sem nada de notável, a sua abençoada normalidade. Sproat Minor, protegido pela mediocridade e pela insensibilidade dos terrores do mundo. A vida não podia ser completamente assustadora enquanto comportasse um Sproat Minor. Dalgliesh perguntou a si próprio, repentinamente, o que seria feito dele.
- E desde então a Brumfett andou sempre agarrada a si - disse. - Para onde a senhora ia, ela seguia-a. Aquele impulso de se abrir, a necessidade de ter pelo menos uma amiga que soubesse tudo a seu respeito, colocaram-na à mercê dela. Brumfett, a protectora, a conselheira e confidente. Sessões de teatro com a Brumfett; partidas de golfe matinal com a Brumfett; férias com a Brumfett; excursões de automóvel pela província com a Brumfett; chás da manhã e últimas bebidas da noite com a Brumfett. A dedicação dela devia ser mesmo autêntica. No fim de contas, estava na disposição de matar por si. Mas nem por isso deixava de ser chantagem. Uma chantagista mais ortodoxa, que se limitasse a pedir rendimentos regulares isentos de impostos, teria sido infinitamente preferível à intolerável dedicação da Brumfett.
- É verdade. É tudo verdade - disse ela tristemente. - Como é possível que saiba?
- Porque ela era essencialmente uma mulher estúpida e lenta, e a senhora não.
Podia ter acrescentado: ”Porque me conheço.” Ela soltou um protesto veemente:
- E quem sou eu para desprezar a estupidez e a lentidão? Que direito tinha eu de ser tão esquisita? Oh, ela não era esperta! Nem sequer era capaz de matar por mim sem fazer uma salgalhada. Não era suficientemente esperta para iludir Adam Dalgliesh, mas desde quando é que isso constitui critério de avaliação da inteligência? Alguma vez a viu a realizar o seu trabalho? Viu-a com um doente moribundo ou uma criança enferma? Alguma vez observou aquela mulher estúpida e lenta, cuja dedicação e companhia aparentemente está certo eu desprezar, a trabalhar toda a noite para salvar uma vida?
- Vi o corpo de uma das suas vítimas e li o relatório da autópsia da outra. Quanto à bondade dela para com as crianças, acredito na sua palavra.
- Não foram vítimas dela. Foram minhas.
- Oh, não - disse ele. - Só houve uma vítima sua na Nightingale House, que foi Ethel Brumfett.
Ela pôs-se de pé num movimento rápido e ficou a olhar para ele, com aqueles surpreendentes olhos verdes, especulativos e firmes, mergulhados nos seus. Parte do espírito dele sabia que havia palavras que tinha de pronunciar. Mas quais eram, essas mais que familiares frases de aviso regulamentar, o discurso profissional que vinha quase espontaneamente aos lábios no momento da confrontação? Tinham-lhe fugido, constituindo uma irrelevância sem significado, para um qualquer limbo da sua mente. Sabia que estava doente, ainda debilitado devido à perda de sangue, e que tinha de parar agora, passar a investigação a Masterson e recolher ao leito. Ele, o mais meticuloso dos investigadores, tinha já falado como se nenhum dos regulamentos houvesse sido formulado, como se estivesse a enfrentar um adversário particular. Mas tinha de prosseguir. Mesmo que nunca fosse capaz de prová-lo, tinha de ouvi-la admitir aquilo que sabia ser a verdade. Como se fosse a pergunta mais natural do mundo, inquiriu suavemente:
- Ela já estava morta quando a meteu na fogueira?
Foi nesse momento que alguém tocou a campainha do apartamento. Sem uma palavra, Mary Taylor pôs a capa pelos ombros e foi abrir. Houve um breve murmúrio de vozes; a seguir, Stephen Courtney-Briggs entrou atrás dela na sala de estar. Deitando uma olhadela ao relógio, Dalgliesh viu que os ponteiros se encontravam nas- sete e vinte e quatro da manhã. O dia de trabalho tinha quase começado.
Courtney-Briggs já estava vestido. Não revelou surpresa ante a presença de Dalgliesh nem especial preocupação em face da sua evidente fraqueza. Dirigiu-se imparcialmente a ambos:
- Disseram-me que houve um incêndio durante a noite. Não ouvi os carros dos bombeiros.
Mary Taylor, de rosto tão pálido que Dalgliesh pensou que era capaz de ir desmaiar, retrucou calmamente:
- Vieram pela entrada da Winchester Road e não usaram a sereia, de maneira a não acordar os doentes.
- E que história é essa de terem encontrado um corpo queimado nas cinzas da cabana do jardim? O corpo de quem?
- Da enfermeira Brumfett - retorquiu Dalgliesh. - Deixou uma mensagem, confessando ter assassinado a estagiária Pearce e a estagiária Fallon.
- A Brumfett matou-as?! A Brumfett?! Courtney-Briggs fitou belicosamente Dalgliesh, parecendo
que os-seus traços largos e elegantes se desintegravam numa irritada incredulidade.
- E ela disse porquê? A mulher estava doida? Mary Taylor replicou:
- A Brumfett não estava doida e está fora de dúvida que julgava ter um motivo.
- Mas o que vai ser hoje da minha enfermaria? Começo a operar às nove horas. A senhora sabe disso, superintendente. E tenho uma lista muito longa. Ambas as enfermeiras efectivas estão doentes, com gripe. Não posso confiar doentes em estado perigoso a estagiárias do primeiro e segundo anos.
A superintendente redarguiu calmamente:
- vou tratar imediatamente disso. A maior parte das enfermeiras de dia já deve estar de pé. Não vai ser fácil, mas, se for necessário, teremos de retirar alguém da escola.
Voltou-se para Dalgliesh:
- Prefiro fazer os telefonemas de uma das salas de estar das enfermeiras. Mas não se preocupe. Tenho consciência da importância da nossa conversa. Voltarei para a terminar.
Ambos os homens ficaram a segui-la com a vista enquanto ela cruzava a porta e a fechava atrás de si. Courtney-Briggs pareceu dar-se conta pela primeira vez da presença de Dalgliesh e disse com brusquidão:
- Não se esqueça de ir ao serviço de radiologia e fazer uma radiografia a essa cabeça. Não tem o direito de estar fora da cama. Examiná-lo-ei assim que terminar a série de operações da manhã.
Disse aquilo como se fosse um enfadonho trabalho miúdo que talvez arranjasse tempo para executar. Dalgliesh perguntou:
- Quem veio o senhor visitar à Nightingale House na noite em que a Josephine Fallon foi assassinada?
- Já lhe disse, ninguém. Não entrei sequer na Nightingale House.
- Há pelo menos dez minutos por explicar, dez minutos esses em que a porta das traseiras que conduz ao apartamento da superintendente esteve aberta. A enfermeira Gearing tinha feito sair o amigo por lá e caminhava com ele pelos terrenos. De modo que o senhor pensou que a superintendente devia estar, apesar da ausência de luzes, e subiu as escadas até ao apartamento dela. Deve ter lá passado algum tempo. Pergunto a mim próprio porquê. Curiosidade? Ou andaria à procura de alguma coisa?
- Por que havia eu de ir visitar a superintendente? Ela não estava lá. Nessa noite a Mary Taylor estava em Amsterdão.
- Mas nessa altura o senhor não tinha conhecimento disso, pois não? Miss Taylor não costumava ir às Conferências Internacionais. Por razões que podemos imaginar, não queria que o seu rosto fosse amplamente conhecido. Essa relutância em desempenhar tarefas públicas era tomada como apropriadamente modesta numa mulher tão capaz e tão inteligente. Foi só muito tarde na terça-feira que lhe pediram para ir a Amsterdão em representação da presidente da Comissão Regional de Formação de Enfermeiras. As suas sessões são às segundas, quintas e sextas. Nessa altura, na quarta-feira à noite, foi chamado para operar um doente particular. Não me parece que o pessoal do bloco operatório, atarefado com uma urgência, tivesse pensado em referir que a superintendente não se encontrava no hospital. Por que haviam de fazê-lo?
Fez uma pausa. Courtney-Briggs interveio:
- E desde quando é que alguém pensa que eu tencionava visitar a superintendente à meia-noite? Não imagina decerto que a minha visita fosse bem acolhida, pois não? Nem estará a sugerir que ela me esperava, ou quê?
- O senhor veio visitar Irmgard Grobel.
Houve um instante de silêncio. Seguidamente, CourtneyBriggs perguntou:
- Como é que o senhor sabe da Irmgard Grobel?
- Por intermédio da mesma pessoa que lhe falou a si, Mrs. Dettinger.
Novo silêncio. A seguir, com a obstinada peremptoriedade de um homem que sabe que não vão acreditar nele, proferiu:
- A Irmgard Grobel já morreu.
- Já? - inquiriu Daugliesh. - Não esperava encontrá-la no apartamento da superintendente? Não era essa a primeira oportunidade que tinha de confrontá-la com o que sabia? E devia ansiar por ela. O exercício do poder é sempre agradável, não é?
- O senhor é que deve saber - ripostou Courtney-Briggs calmamente.
Ficaram a olhar um para o outro em silêncio. Daugliesh perguntou:
- Que tinha o senhor em mente?
- Nada. Não associei a Grobel às mortes da Pearce e da Fallon. Mesmo que tivesse associado, duvido que falasse. Este hospital precisa de Mary Taylor. Pela parte que me cabe, Irmgard Grobel não existe. Foi julgada em tempo e considerada inocente. Para mim, isso bastava. Sou cirurgião, e não teólogo moral. Guardaria o seu segredo.
Claro que guardaria, pensou Daugliesh. O seu valor estaria perdido para ele mal a verdade fosse conhecida. Aquilo era uma informação muito especial, muito importante, obtida com algum custo, e utilizá-la-ia à sua própria maneira. Ela punha Mary Taylor para sempre à sua mercê. A superintendente que tão frequente e irritantemente o contrariava; cujo poder ia crescendo; que estava prestes a ser nomeada directora dos serviços de enfermagem de todos os hospitais do grupo; que influenciava contra si o presidente da Comissão de Gestão do hospital, Sir Marcus Cohen. Que grau de influência manteria ela junto desse dedicado judeu mal este tivesse conhecimento, da Clínica Steinhoff? Tinha-se tornado moda esquecer essas coisas. Mas Sir Marcus Cohen perdoaria?
Pensou nas palavras de Mary Taylor. Há mais do que uma maneira de fazer chantagem. Tanto Heather Pearce como Ethel Brumfett o sabiam. E talvez a mais subtilmente agradável fosse a chantagem que não fazia exigências financeiras mas gozava o seu conhecimento secreto sob a capa da generosidade, da bondade, da cumplicidade ou da superioridade moral. No fim de contas, a enfermeira Brumfett não tinha pedido grande coisa, apenas um quarto pegado ao seu ídolo; o prestígio de ser conhecida como a amiga da superintendente; uma companheira para as suas horas de folga. A pobre estúpida da Pearce tinha pedido apenas uns escassos xelins por semana e um ou dois versículos das escrituras. Mas como deviam ter saboreado o seu poder! E quão infinitamente mais deleitável teria Courtney-Briggs achado o seu! Não admirava que estivesse decidido a guardar o segredo para si próprio, que não lhe tivesse agradado a ideia de a Yard cair sobre a Nightingale House.
- Podemos provar que o senhor se deslocou de avião à Alemanha na passada sexta-feira à noite - disse Dalgliesh. - E acho que posso imaginar porquê. Era um meio mais rápido e seguro de obter a informação que pretendia do que importunar o Departamento do Promotor de Justiça. Provavelmente consultou os arquivos dos jornais e o registo do julgamento. É o que eu faria. E decerto há-de ter contactos úteis. Mas podemos descobrir onde foi e o que fez. É que uma pessoa não pode entrar e sair do país anonimamente sabe?
Courtney-Briggs retorquiu:
- Reconheço que sabia. E reconheço também que vim à Nightingale House para visitar Mary Taylor na noite em que a Fallon morreu. Mas não fiz nada de ilegal, nada que pudesse pôr-me em perigo.
- Não me custa a acreditar.
- Mesmo que tivesse falado mais cedo, teria chegado tarde demais para salvar a Pearce. Ela já tinha morrido antes de Mrs. Dettinger vir falar comigo. Não tenho nada a censurar-me.
Começava a defender-se desajeitadamente, como um colegial. Foi então que ouviram as suaves pisadas e se voltaram. Mary Taylor tinha regressado. Dirigiu-se expressamente ao cirurgião:
- Posso ceder-lhe as gémeas Burt. Receio bem que isso signifique o final deste período escolar, mas não há por onde escolher. Terão de ser mandadas regressar às enfermarias.
Courtney-Briggs redarguiu de má vontade:
- Servem. São raparigas atiladas. Mas quanto a uma enfermeira.
- Pensei que talvez a enfermeira Rolfe pudesse temporáriamente tomar conta da enfermaria. Mas infelizmente não é possível. Vai deixar o John Carpendar.
- Deixá-lo?! Mas ela não pode fazer semelhante coisa!
- Não vejo de que maneira possa impedi-la. Mas não me parece que tenha oportunidade de o tentar.
- Mas por que razão se vai ela embora? Que foi que aconteceu?
- Ela recusa-se a dizer. Acho que houve qualquer coisa da investigação policial que a aborreceu.
Courtney-Briggs girou sobre si, voltando-se para Dalgliesh.
- Está a ver?! Eu compreendo que está unicamente a desempenhar a sua tarefa, Dalgliesh, que foi enviado para aqui a fim de esclarecer as mortes das duas raparigas. Mas, por amor de Deus, nunca lhe passou pela cabeça que a sua interferência piora ainda um bom pedaço as coisas?
- Já - replicou Dalgliesh. - E na sua profissão? Alguma vez lhe passou pela cabeça?
Ela acompanhou Courtney-Briggs até à porta da frente. Não se demoraram. Voltou não passara ainda um minuto e, caminhando vivamente até junto da lareira, tirou a capa dos ombros e colocou-a meticulosamente nas costas do sofá. A seguir, pondo-se de joelhos, pegou numa tenaz de latão e começou a preparar a fogueira, empilhando cuidadosamente carvão sobre carvão, alimentando cada língua de fogo com a sua brasa cintilante. Sem erguer a vista para Dalgliesh, disse:
- A nossa conversa foi interrompida, senhor inspector. Estava a acusar-me de assassínio. Já uma vez enfrentei essa acusação, mas pelo menos o tribunal de Felsenheim apresentou certas provas. Que provas tem o senhor?
- Nenhuma.
- Nem nunca descobrirá nenhuma.
Falava sem raiva nem complacência, mas com uma intensidade, uma tranquila peremptoriedade que nada tinha a ver com inocência. Baixando os olhos para a cabeça luzidia, polida pela luz da lareira, Dalgliesh disse:
- Mas a senhora não o negou. Ainda não me mentiu e não me parece que esteja para começar agora. Por que havia ela de ter-se matado daquela maneira? Ela gostava das suas comodidades.
Para quê buscar a incomodidade na morte ? Os suicidas raramente o fazem, a não ser que sejam demasiado psicóticos para se ralarem. Ela tinha acesso a uma data de drogas para eliminar a dor. Por que não usá-las? Porquê dar-se ao trabalho de arrastar-se sub-repticiamente até uma fria e escura cabana de jardim e imolar-se numa agonia solitária? Nem sequer tinha a fortalecê-la a satisfação de um espectáculo público.
- Há precedentes.
- Não muitos no nosso país.
- Talvez fosse psicótica demais para se ralar.
- Claro que há-de dizer-se isso.
- Pode ter-se apercebido de que era importante não deixar um corpo passível de identificação, se é que queria convencê-lo de que era a Grobel. Confrontado com uma confissão escrita e uma rima de ossos calcinados, por que havia o senhor de se maçar mais? Não serviria de nada matar-se para me proteger se o senhor pudesse confirmar a verdadeira identidade dela sem dificuldade.
- Uma mulher inteligente e de vistas largas poderia argumentar dessa maneira. Ela não era uma coisa nem outra. A senhora, sim. Deve ter-lhe parecido simplesmente que valia a pena tentar. E, mesmo que nunca tivéssemos descoberto nada sobre a Irmgard Grobel e Felsenheim, tinha-se tornado importante livrar-se da Brumfett. Como disse, ela nem sequer era capaz de matar por si sem fazer uma salgalhada. Já tinha entrado em pânico uma vez, quando tentou assassinar-me a mim. Podia facilmente voltar a entrar em pânico. Havia anos que era um empecilho; agora tinha-se tornado uma responsabilidade perigosa. A senhora não lhe tinha pedido que matasse por si. Nem sequer era uma maneira razoável de sair das dificuldades. Teria sido possível che’gar para as ameaças da Pearce, desde que a enfermeira Brumfett pura e simplesmente tivesse mantido a calma e pusesse a senhora a par do que se passara. Mas ela tinha de mostrar a sua dedicação da maneira mais espectacular que conhecia. Matou para a proteger. E essas duas mortes uniram-nas indissoluvelmente uma à outra para toda a vida. Como poderia a senhora alguma vez estar livre ou segura enquanto a Brumfett vivesse?
- Não vai dizer-me como o fiz?
Dir-se-iam, pensou Dalgliesh, dois colegas a conversarem sobre um caso. Mesmo no meio da sua debilidade, tinha consciência de que aquela conversa era perigosamente pouco ortodoxa, que a mulher ajoelhada aos seus pés era uma inimiga, que a inteligência oposta à sua se mantinha indevassada. Ela já não tinha esperanças de salvar a sua reputação, mas estava a lutar pela liberdade, talvez mesmo pela vida.
- Posso dizer-lhe como o teria feito eu - retorquiu. - Não foi difícil. O quarto dela era o que ficava mais próximo da porta do seu apartamento. Imagino que tenha sido ela quem pediu esse quarto, e nada que a enfermeira Brumfett pedisse podia ser recusado. Por que ela estava a par da questão da Clínica Steinhoff? Porque tinha algum poder sobre a senhora? Ou simplesmente porque a tinha sobrecarregado com a sua dedicação e a senhora não era suficientemente desumana para se libertar? Por isso, dormia perto de si.
”Não sei como ela morreu. Pode ter sido um comprimido, uma injecção, qualquer coisa que a senhora lhe ministrou a pretexto de que a ajudaria a dormir. A seu pedido, ela já tinha escrito a confissão. Pergunto a mim próprio como a terá persuadido a fazê-lo. Não me parece que ela tenha pensado por um único momento que viesse a ser utilizada. Não está dirigida a mim, nem especificamente a quem quer que seja. Imagino que lhe tenha dito que era forçoso haver qualquer coisa escrita para o caso de lhe suceder algo a ela ou a si e ser preciso em qualquer ocasião futura existir um registo do que realmente acontecera, provas que a protegessem a si. De maneira que ela escreveu aquela mensagem simples, provavelmente ditada por si. Tem uma objectividade e uma lucidez que pouco têm a ver, suponho, com a enfermeira Brumfett.” E assim ela morre. A senhora tem apenas de transportar o seu corpo ao longo de dois metros para alcançar a segurança da sua porta. Mesmo assim trata-se da parte mais arriscada do seu plano. Imaginemos que a enfermeira Gearing ou a Rolfe apareciam? Portanto, escancara a porta da enfermeira Brumfett e a porta do seu apartamento e põe-se cuidadosamente à escuta para certificar-se de que o corredor está desimpedido. A seguir; ergue o corpo dela, apoiando-o no ombro, e avança rapidamente até ao seu apartamento. Poisa o corpo na cama e volta atrás para fechar a porta do quarto dela e a sua porta da escada. Ela era rechonchuda mas baixa: A senhora é alta e forte e foi habituada a levantar doentes inválidos. Essa parte não foi assim tão difícil.
”Mas agora tem de deslocar-se até ao automóvel. É cómodo dispor de acesso à sua garagem através do átrio do andar de baixo e de umas escadas particulares. com as portas de fora e de dentro do apartamento fechadas, pode agir sem receio de interrupções.
O corpo é içado para a parte de trás do carro e coberto com uma manta de viagem. Depois, atravessa os terrenos anexos ao hospital e entra de marcha atrás, sob as árvores, até o mais perto possível do barracão do jardim. Mantém o motor a trabalhar. É importante proceder a uma retirada rápida, alcançar o seu apartamento antes de o incêndio ser visto. Esta parte do seu plano é um pouco arriscada, mas o caminho da Winchester Road raramente é utilizado depois do anoitecer. O fantasma de Nancy Gorringe encarrega-se disso. Se fosse vista, seria incómodo, mas não catastrófico. No fim de contas, a senhora é a superintendente, e não há nada que a impeça de dar um passeio de automóvel à noite. Se alguém passar, terá de continuar para a frente a escolher outro local e outra ocasião. Mas a verdade é que ninguém passa. O automóvel está internado no arvoredo e tem os faróis apagados. Leva o corpo para o barracão. A seguir, há uma segunda viagem com a lata de gasolina. E, depois disso, não há nada a fazer a não ser encharcar o corpo, o mobiliário circundante e pilhas de lenha e atirar para lá um fósforo aceso da porta aberta.
”Basta apenas um instante para pôr novamente o automóvel em funcionamento e regressar directamente, atravessando as portas da garagem. Uma vez fechadas estas atrás de si, está a salvo. Sabe decerto que o fogo arderá com tal violência que será quase imediatamente detectado. Mas nessa altura já estará de volta ao apartamento, pronta para receber o telefonema que lhe dirá que o carro dos bombeiros vem a caminho, pronta para me telefonar. E o bilhete de suicídio que ela deixou à sua guarda, porventura para nunca ser utilizado, está pronto para ser deixado à posteridade.
Tranquilamente, ela perguntou:
- E como o vai provar?
- Talvez nunca o consiga. Mas sei que foi assim que se passou.
- Mas vai tentar prová-lo, não vai? - tornou ela. - No fim de contas, o malogro seria intolerável para Adam Dalgliesh. Vai tentar prová-lo seja qual for o custo para si ou para quem quer que seja. E, no fim de contas, há uma hipótese. Claro que não existem grandes esperanças de descobrir rodados de pneus sob as árvores. Os efeitos do incêndio, os trilhos do carro dos bombeiros, as pisadas dos homens, hão-de ter apagado quaisquer pistas no solo. Mas também há-de certamente examinar o interior do automóvel, em especial a manta. Não descure a manta do automóvel, senhor inspector. Pode ter fibras das roupas, talvez até alguns cabelos. Mas isso não seria de admirar. Miss Brumfett andava muitas vezes no carro comigo; aliás, a manta do automóvel pertence-lhe; provavelmente está cheia de cabelos dela. Mas quanto à pistas no meu apartamento? Se eu transportei o corpo por aquela estreita escada abaixo, decerto há-de haver marcas na parede, nos sítios onde os sapatos dela rasparam, não? A menos, evidentemente, que a mulher que matou a Brumfett tivesse o senso bastante para descalçar a vítima e levar os sapatos à parte, talvez pendurados ao pescoço pelos atacadores. Não podiam ter sido deixados no apartamento. Poderia verificar o número de pares que a Brumfett possuía. No fim de contas, alguém na Nightingale House teria possibilidade de dizer-lho. Temos tão pouca privacidade relativamente umas às outras! E nenhuma mulher atravessaria o arvoredo descalça para a morte.
”E as outras pistas no apartamento? Se eu a matei, não teria de haver uma seringa, um frasco de comprimidos, qualquer coisa que indicasse como o fiz? Mas tanto o armário de medicamentos dela como o meu contêm um fornecimento de aspirinas e comprimidos para dormir. Imaginemos que foi isso que lhe dei? Ou limitei-me a atordoá-la ou a asfixiá-la? Qualquer método seria igualmente bom, desde que não fizesse salgalhada. Como pode o senhor provar de que maneira ela morreu, quando tudo o que tem para a autópsia é uma mão-cheia de ossos calcinados? E há o bilhete do suicídio, uma mensagem escrita com a letra dela e contendo factos de que só a assassina da Pearce e da Fallon podia ter conhecimento. Seja o que for aquilo em que queira acreditar, senhor inspector, vai dizer-me que o juiz instrutor não se contentará com o facto de a Ethel Brumfett pretender que aquele bilhete fosse uma confissão antes de queimar-se viva?
Dalgliesh sabia que não conseguia mais ter-se de pé. Agora debatia-se quer com a náusea, quer com a fraqueza. A mão que se agarrava à prateleira da lareira como apoio estava mais fria que o mármore e escorregadia de suor, e o próprio mármore estava mole e cedia como massa de vidraceiro. O ferimento começava a latejar dolorosamente, e a dor de cabeça mortiça, que até então pouco passara de um vago mal-estar, tornava-se mais aguda e localizava-se em agulhas de dor por detrás do olho esquerdo. Cair desmaiado aos pés dela seria inesquecivelmente humilhante. Estendeu o braço e tocou o encosto da cadeira mais próxima. A seguir, deixou-se cair suavemente sobre ela.
A voz dela parecia vir de muito longe, mas pelo menos conseguia ouvir as palavras e sabia que a sua própria voz se mantinha ainda firme.
- Suponha que eu lhe dizia que podia encarregar-me de Stephen Courtney-Briggs - disse ela -, que ninguém além de nós os três teria alguma vez necessidade de saber de Felsenheim? Estaria na disposição de omitir o meu passado do seu relatório, de tal modo que não fosse preciso, ao menos, que a morte daquelas raparigas tivesse sido completamente em vão? É importante para este hospital que eu continue como superintendente. Não estou a pedir-lhe misericórdia. Não é comigo que estou preocupada. O senhor nunca provará que eu matei a Ethel Brumfett. Não irá fazer uma figura ridícula se tentar tal coisa? O caminho mais corajoso e mais sensato não será esquecer que esta conversa alguma vez existiu, aceitar a confissão da Brumfett como a verdade que é e encerrar o caso?
- Isso não é possível - objectou ele. - O seu passado faz parte das provas. Não posso eliminar provas ou omitir factos relevantes do meu relatório apenas por achar que não me agradam. Se alguma vez o fizesse, teria de abandonar a minha profissão. Não apenas este caso específico, mas a minha profissão. E para sempre.
- E não poderia fazer semelhante coisa, evidentemente. Que seria um homem como o senhor sem a sua profissão, esta profissão específica? Vulnerável como todos nós. Poderia até começar a viver e sentir como um ser humano.
- Não consegue comover-me dessa maneira. Por que há-de humilhar-se a tentar? Há regulamentos, há ordens e há um juramento. Sem eles, ninguém poderia desempenhar com segurança funções policiais. Sem eles, Ethel Brumfett não estaria em segurança, a senhora não estaria em segurança, uma Irmgard Grobel não estaria em segurança.
- É por isso que não me vai ajudar?
- Não completamente. Opto por não o fazer.
- De qualquer maneira, é honesto - observou ela tristemente.
- E não tem quaisquer dúvidas?
- Claro que tenho. Não sou assim tão arrogante. Há sempre dúvidas.
E havia mesmo. Mas tratava-se de dúvidas intelectuais e filosóficas, nem torturantes nem insistentes. Havia já muitos anos que tinham deixado de tirar-lhe o sono à noite.
- Mas há os regulamentos, não há? E as ordens. E até um juramento.
São escudos muito cómodos para uma pessoa se abrigar, no caso de as dúvidas se tornarem incómodas. Eu sei: Eu própria já em tempos me abriguei atrás deles. Afinal, o senhor e eu não somos assim tão diferentes, Adam Dalgliesh.
Recolheu a capa das costas da cadeira e colocou-a pelos ombros. Aproximou-se e postou-se diante dele a sorrir. Depois, vendo a fraqueza dele, estendeu as mãos e, segurando as suas, ajudou-o a levantar-se. Ficaram ali de pé a olhar um para o outro. De súbito, ouviu-se soar a campainha da porta da frente dela e quase simultaneamente o áspero zumbido insistente do telefone. Para um e outro, o dia principiara.
Epílogo de Verão
Passava pouco das nove quando lhe chegou o telefonema, e Dalgliesh abandonou a Yard e percorreu Victoria Street através da neblina do começo da manhã, prenúncio seguro de outro quente dia de Agosto. Encontrou a morada sem dificuldade. Tratava-se de um grande edifício de tijolos vermelhos entre a Victoria Street e a Horseferry Road, não particularmente sórdido mas depressivamente deslavado um funcional prédio rectangular com a fachada salpicada de janelas de proporções mesquinhas. Não havia elevador, de modo que galgou sem encontrar resistência os três lanços de escadas cobertos de linóleo até ao andar superior.
O patamar cheirava a suor azedo. No exterior do apartamento, uma mulher de meia-idade, envergando um avental às flores, queixava-se ao polícia de turno num lamuriar adenóide. Ao ver aproximar-se Dalgliesh, virou-se para ele, prorrompendo num -jorro de protestos, de recriminações. Que diria Mr. Goldstein? Não estava verdadeiramente autorizada a sublocar quartos. Apenas o fizera para ser agradável à senhora. E agora aquilo. As pessoas não tinham consideração.
Ele passou por ela sem falar e entrou no quarto. Este constituía um caixote quadrangular, abafado e cheirando a cera de móveis, atravancado de mobiliário, com os posados símbolos de prestígio de uma década atrás. A janela estava aberta e as cortinas de renda arredadas, mas havia pouco ar. O médico da Polícia e o agente que o assistia, ambos corpulentos, pareciam ter consumido todo o que havia.
Um cadáver mais a examinar; só que este não era da sua responsabilidade. Bastava-lhe deitar um relance, como se verificasse uma recordação, ao corpo que endurecia na cama, notando com desprendido interesse que o braço esquerdo jazia pendente ao lado, de compridos dedos enclavinhados, e que a agulha hipodérmica estava ainda ligada ao antebraço, qual insecto metálico com o ferrão profundamente cravado na carne mole. A morte não a tinha despojado da individualidade, ou melhor, ainda não o fizera. Isso não tardaria, com todo o cortejo de indignidades da putrefacção.
O médico da Polícia, em mangas de camisa e a transpirar, assumia o tom de quem se desculpa, como se o preocupasse a possibilidade de ter agido incorrectamente. Quando se voltou da cama, Dalgliesh apercebeu-se de que ele estava a falar:
- E como a New Scotland Yard fica tão perto e o segundo bilhete lhe estava endereçado pessoalmente a si... - Fez uma pausa, inseguro. - Injectou-se com Evipan. O primeiro bilhete é bastante explícito. Trata-se de um caso evidente de suicídio. É por isso que o agente não queria telefonar-lhe. Achou que não valia a pena o senhor maçar-se a vir cá. Na realidade não há aqui nada de interesse.
- Ainda bem que afinal telefonou - disse Dalgliesh. - E não é maçada nenhuma.
Havia dois envelopes brancos, um selado e endereçado a ele próprio, e outro sem selo, contendo as palavras ”A quem possa interessar”. Perguntou a si próprio se ela teria sorrido ao escrever esta frase. Observado pelo médico da polícia e pelo agente, Dalgliesh abriu a carta. A caligrafia era perfeitamente firme, negra e angulosa. Apercebeu-se com uma espécie de abalo de que era a primeira vez que observava a caligrafia dela.
Eles não acreditariam, mas o senhor tinha razão. Matei a Ethel Brumfett. Foi a primeira vez na vida que matei; parece-me importante que o saiba. Injectei-a com Evipan, tal como dentro de momentos farei a mim própria. Ela pensou que eu estava a. dar-lhe um sedativo. Pobre e confiante Brumfett! Teria facilmente aceitado nicotina da minha mão, e o resultado seria igualmente adequado.
Pensei que me seria possível levar qualquer género de vida com utilidade. Não foi, e eu não tenho feitio para viver com o malogro. Não lamento o que fiz. Foi melhor para o hospital, melhor para ela e melhor para mim. Eu não era susceptível de ser detida apenas porque Adam Dalgliesh encara o seu trabalho como a encarnação do direito moral.
Estava enganada, pensou. Eles não tinham duvidado dele; tinham-se limitado a requerer, bastante assinadamente, que ele descobrisse alguma prova. Não encontrara nenhuma, nem na ocasião nem posteriormente, embora tivesse continuado a seguir o caso como se de uma vingança pessoal se tratasse, odiando-se a ele e odiando-a a ela. E ela não admitira coisa nenhuma; nem por um instante correra o risco de entrar em pânico.
Muito pouca coisa ficara por explicar na investigação retomada sobre Heather Pearce e na investigação acerca de Josephine Fallon e Ethel Brumfett. Talvez o juiz de instrução achasse que já houvera boatos e especulações que chegassem. Convocara a audiência com um júri e não fizera qualquer tentativa de inibir as perguntas dos jurados às testemunhas ou tão-pouco de controlar os procedimentos. A história de Irmgard Grobel e da Clínica Steinhoff tinha vindo a lume, e Sir Marcus Cohen assistira sentado junto de Dalgliesh, lá para o fundo da sala de audiências, escutando com o rosto petrificado de dor. Após a investigação, Mary Taylor atravessara a sala dirigindo-se a ele, entregara-lhe uma carta de demissão e voltara costas sem uma palavra. Deixara o hospital no mesmo dia. E isso, para o John Carpendar, fora o fim. Nada mais viera a lume. Mary Taylor saíra em liberdade; liberdade para encontrar aquele quarto, aquela morte.
Dalgliesh abeirou-se da lareira. O exíguo espaço destinado ao fogo, coberto de tijolos de um verde bilioso, estava ocupado por uma ventoinha poeirenta e um boião de doce cheio de folhas secas. Cuidadosamente, afastou-os do caminho. Apercebeu-se de que o médico da Polícia e o agente uniformizado o observavam inexpressivamente. Que pensariam eles que estivesse a fazer? A destruir provas? Por que haviam de ralar-se? Já tinham a sua folha de papel pronta para ser registada, apresentada como prova, arquivada para ser esquecida. Isto só lhe dizia respeito a ele.
Endireitou o bilhete, com uma sacudidela, no recesso da chaminé e, riscando um fósforo, deitou fogo a um dos cantos. Mas havia pouca tiragem e o papel era duro. Teve de o segurar, agitando-o suavemente, até chamuscar as pontas dos dedos, antes que a folha enegrecida lhe fosse arrebatada da mão, desaparecendo na escuridão do recesso da chaminé e flutuando para cima, em direcção ao céu estival.
Dez minutos depois, nesse mesmo dia, Miss Beale cruzou de automóvel o portão principal da entrada para o Hospital John Carpendar e parou no casinhoto do porteiro. Foi saudada por um rosto desconhecido, pertencente a um novo porteiro ainda jovem, envergando a farda de Verão, de manga curta.
- A inspectora do Conselho Geral de Enfermagem? bom dia, minha senhora. Receio bem que esta entrada não seja a mais cómoda para a nova escola de enfermagem. Por enquanto não passa de um edifício provisório, minha senhora, construído numa zona aberta do terreno onde tivemos o incêndio. É bastante perto do sítio onde ficava a escola antiga. Se meter por este primeiro desvio...
Havia uma ambulância aguardando à entrada do banco. Ao mesmo tempo que Miss Beale a ultrapassava lentamente, a estagiária Dakers, com a touca guarnecida de renda e o cinto azul das enfermeiras diplomadas, saiu do hospital, conferenciou por breves instantes com os maqueiros e ficou de pé a vigiar o transporte do doente. Parecia, aos olhos de Miss Beale, ter aumentado de estatura e de autoridade. Não havia vestígios da estagiária aterrorizada naquela figura confiante. Portanto, a estagiária Dakers tinha-se diplomado. bom, era de esperar. Presumivelmente as gémeas Burt, igualmente promovidas, estariam a trabalhar algures no hospital. Mas houvera modificações. A estagiária Goodale casara. Miss Beale vira a notícia na imprensa nacional. E Hilda Rolfe, dissera-lho Angela, estava a trabalhar como enfermeira algures na África Central. Haveria uma monitora a conhecer nessa manhã. E uma nova superintendente. Miss Beale interrogou-se momentaneamente acerca de Mary Taylor. Devia estar a governar bem a vida algures, mesmo que não fosse na enfermagem. As Mary Taylor deste mundo eram sobreviventes natas.
Percorreu o caminho familiar entre os ressequidos relvados de Verão e os canteiros salpicados de rosas demasiado abertas, guinando para o túnel verde das árvores. O ar estava imóvel e quente e o estreito caminho matizado pela primeira claridade de sol desse dia. E ali estava o último cotovelo do caminho de que se recordava. A Nightingale House, ou o que dela restava, erguia-se diante de si.
Uma vez mais, parou o carro e ficou a observar. A casa parecia ter sido desajeitadamente cortada em duas pelo cutelo de um gigante, uma coisa viva estouvadamente mutilada, com as suas vergonhas e a sua nudez expostas a qualquer olhar. Uma escadaria despojada do corrimão e brutalmente retalhada vacilava sobre o nada; no segundo patamar, um delicado filamento de lâmpada baloiçava, pendurado por um fiapo de condutor eléctrico, de encontro aos lambrins gretados; no andar de baixo, as janelas abobadadas da frontaria, despidas de vidro, eram uma elegante arcada de cantaria, descortinando uma paisagem de papel de parede desbotado com manchas mais claras nos locais onde outrora tinham estado quadros e espelhos. Dos tectos remanescentes, brotavam arames descarnados, como cerdas de uma escova. Encostada a uma árvore, na fachada da casa, encontrava-se uma variada porção de laterais, prateleiras de lareira e pedaços de lambrins esculpidos, manifestamente seleccionados para conservação. No cimo do que restava da parede das traseiras, uma figura que se recortava em contraluz no céu amontoava sem método os tijolos soltos, que se abatiam um a um sobre o cascalho do interior da casa, levantando pequenos esguichos de pó.
Diante da casa, outro trabalhador, de tronco nu e bronzeado do sol, operava um tractor provido de um guindaste do qual pendia uma bola de ferro presa a uma corrente. Enquanto Miss Beale observava, de mãos crispadas no volante como que preparando-se para reagir a um instintivo recuo de protesto, a bola descreveu um arco para diante e embateu sobre tudo o que restava da parede da frontaria. Por um instante nada mais houve a não ser a reverberação do medonho ruído. A seguir, a parede oscilou suavemente e abateu-se para o interior com um rugido de tijolos e cimento em cascata, levantando uma monstruosa nuvem de pó amarelo através da qual se divisava, indistintamente, a figura solitária na linha do horizonte como qualquer demónio fiscalizador.
Miss Beale deteve-se por momentos, após o que largou a embraiagem e fez o automóvel guinar para a direita, na direcção do local onde se distinguiam por entre as árvores as linhas baixas, funcionais e de aspecto asseado da nova escola provisória. Ali estava a normalidade, a sanidade, um mundo que ela reconhecia e lhe era familiar. Aquela emoção, suspeitosamente parecida com o pesar, ao testemunhar a violenta destruição da Nightingale House, era, no fundo, pura e simplesmente ridícula. Lutou resolutamente contra ela. Tratava-se de uma casa horrível; de uma casa má. Havia cinquenta anos que devia ter sido demolida. E nunca fora nem pouco mais ou menos adequada como escola de enfermagem.
P. D. James
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