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O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.
CONTINUA
O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/4_MORTE_EM_VIENA_Daniel_Silva.webp
Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.
CONTINUA
O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
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Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.
CONTINUA
O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/4_MORTE_EM_VIENA_Daniel_Silva.webp
Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.
CONTINUA
O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
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Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.
CONTINUA
O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
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Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.
CONTINUA
O ESCRITÓRIO é difícil de encontrar. Localizado no fim de uma viela estreita e curva, num quarteirão de Viena mais conhecido pela sua vida noturna do que pelo seu trágico passado, a entrada é apenas assinalada por uma pequena placa em latão com a inscrição ESCRITÓRIO DE INVESTIGAÇÃO E RECLAMAÇÕES DO TEMPO DE GUERRA. Instalado por uma firma obscura com sede em Tel Aviv, o sistema de segurança é formidável e altamente visível. Uma câmara olha de forma ameaçadora por cima da porta e a ninguém é permitida a entrada sem marcação e uma carta de apresentação. Os visitantes têm de passar por um detetor de metais cuidadosamente afinado. Bolsas e pastas são inspecionadas com eficiência por uma das duas moças de beleza desarmante. Uma chama-se Reveka, a outra Sarah. Uma vez no interior, o visitante é escoltado através de um corredor claustrofóbico forrado de estantes metálicas até uma sala ampla, tipicamente vienense, com soalho desbotado, teto alto e prateleiras curvadas sob o peso de incontáveis livros e pastas de arquivo. A pretensiosa confusão é apelativa, embora alguns se sintam consternados pelas janelas esverdeadas à prova de bala com vista para o pátio melancólico.
O homem que lá trabalha é desmazelado e facilmente ignorado. É o seu talento especial. Por vezes, quando se entra, ele está no topo de uma escada de biblioteca esquadrinhando um livro. Habitualmente está sentado à mesa, envolto numa nuvem de fumo de cigarro, vasculhando a pilha de papéis e pastas que parece infindável. Pára um momento, para finalizar uma frase ou anotar qualquer coisa na margem de um documento, em seguida levanta e estende a sua mão minúscula, os seus olhos castanhos vacilam sobre o seu interlocutor. "Eli Lavon", diz modestamente enquanto aperta a mão, embora toda a gente em Viena saiba quem gere o Escritório de Investigação e Reclamações.
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Se não fosse a reputação sólida de Lavon, a sua aparência — a camisa cronicamente manchada de cinza, um muito usado casaco de malha cor de vinho com remendos nos cotovelos e uma bainha esfarrapada podia ser perturbadora. Alguns suspeitam que lhe faltam meios financeiros; outros imaginam-no ascético ou mesmo ligeiramente louco.
Uma mulher que lhe pediu para conseguir um reembolso por parte de um banco suíço, concluiu que ele sofria de coração partido. De que outra forma se explicaria o fato de ele nunca ter casado? O ar de luto que é por vezes visível quando ele pensa que ninguém o observa? Seja qual for o prognóstico do visitante, o resultado é quase sempre o mesmo. A maioria agarra-se a ele com medo que seja levado pelo ar.
Depois de se apresentar, indica ao visitante a direção do confortável sofá. Pede às moças que não lhe passem chamadas, em seguida junta o polegar ao indicador e inclina-os em direção à boca. Café, por favor. Fora do alcance do ouvido, as moças discutem sobre quem é a vez. Reveka é uma israelense de Haifa, pele cor de azeitona e olhos negros, teimosa e explosiva. Sarah é uma judaica americana endinheirada que vem da Universidade de Boston pelo programa de estudos sobre o Holocausto, mais cerebral do que Reveka e consequentemente mais paciente. Ela não se importa de recorrer ao engano ou mesmo a mentir sem rodeios só para evitar trabalho que acredita não ser digno da sua posição. Reveka, honesta e temperamental, é facilmente manobrável e, assim sendo, é normalmente ela quem, sem alegria, prega com a travessa de prata na mesinha de café e retira-se com um amuo.
Lavon não tem uma forma estudada de conduzir as reuniões. Permite ao visitante determinar o curso da conversa. Não tem problemas em responder a questões sobre si mesmo e, se pressionado, explica por que razão um dos mais talentosos jovens arqueólogos de Israel foi escolhido para investigar assuntos inacabados do Holocausto, em vez de esquadrinhar o solo sofrido da sua terra natal. No entanto, a sua disponibilidade para discutir o seu passado não passa dai. Não conta aos visitantes que durante um breve período, no inicio dos anos setenta, trabalhou para os afamados serviços secretos israelenses. Ou que ainda é considerado como o mais talentoso artista de vigilância exterior que os serviços já tiveram. Ou que duas vezes por ano, quando regressa a Israel para visitar a sua velha mãe, visita umas instalações de alta segurança a norte de Tel Aviv para partilhar alguns dos seus segredos com a geração seguinte. Dentro dos serviços ainda é conhecido como "O Fantasma". O seu mentor, um homem chamado Ari Shamron, sempre disse que Eli Lavon era capaz de desaparecer enquanto dá um aperto de mão. Não andava muito longe da verdade.
Ele é silencioso na presença dos seus convidados, como era silencioso com os homens que seguia furtivamente a mando de Shamron. É um fumador inveterado, mas se o fumo incomoda os convidados evita fumar. É um poliglota e escuta na língua do visitante. O seu olhar é simpático e firme, embora por vezes seja possível detectar peças de puzzle a encaixar por trás dos seus olhos. Prefere guardar todas as questões para quando o visitante terminar a sua exposição. O seu tempo é precioso e toma decisões rápidas. Ele sabe quando pode ajudar ou quando é preferível não remexer o passado. Se aceitar o caso, pede uma pequena quantia de dinheiro para financiar o inicio da investigação. Faz isso com notável embaraço, e se alguém não puder pagar, ele abdica totalmente dos honorários. Recebe grande parte dos fundos operacionais de doadores, mas o Escritório de Investigação e Reclamações não é lucrativo e Lavon está normalmente apertado de dinheiro. A sua fonte de rendimentos tem sido um assunto litigioso em certos círculos de Viena, onde é acusado de ser um forasteiro incômodo financiado pela judiaria internacional, sempre a meter o nariz onde não é chamado. Há muita gente na Áustria que gostaria de ver as portas do Escritório de Investigação fechadas para sempre. É por causa deles que Eli Lavon passa os seus dias atrás de janelas de vidro esverdeado à prova de bala.
Num entardecer de neve miudinha em princípios de Janeiro, Lavon estava sozinho no escritório, curvado sobre uma pilha de pastas. Não havia visitantes nesse dia. De fato já fazia alguns dias desde que Lavon aceitara a última marcação. A maior parte do seu trabalho era consumido por um único caso. Às sete da tarde, Reveka olhou pela porta.
— Temos fome — disse, na sua típica rudeza israelense.
— Arranja-nos algo para comer.
A memória de Lavon podia ser impressionante, mas não se estendia a pedidos gastronômicos. Sem levantar a cabeça do seu trabalho, ondulou a caneta no ar como se escrevesse: Faz-me uma lista, Reveka.
Momentos mais tarde, fechou a pasta e deixou os papéis. Olhou pela janela e contemplou a neve a cair suavemente sobre as lajes pretas do pátio. Em seguida vestiu o sobretudo, enrolou um cachecol em volta do pescoço e colocou um barrete sobre o seu cabelo fino. Atravessou o vestíbulo até a sala onde as duas moças trabalhavam. A mesa de Reveka era um arranha-céu de arquivos militares alemães; a de Sarah, a eterna estudante universitária, estava coberta por uma pilha de livros. Como de costume, as duas discutiam. Reveka queria comida indiana de um take-away que ficava do outro lado do canal do Danúbio; Sarah ansiava por uma massa do café italiano na Kärntnerstrasse. Lavon, absorto, estudava o novo computador na mesa de Sarah.
— Quando é que isto chegou? — perguntou, interrompendo a discussão.
— Esta manhã.
— Porque é que temos um computador novo?
— Porque compraste o antigo no tempo em que os Hapsburgos ainda governavam a Áustria.
— Eu autorizei a compra de um computador novo?
A questão não foi colocada com desconfiança. As moças geriam o escritório. A papelada era colocada debaixo do seu nariz e normalmente assinava sem olhar.
— Não Eli, não aprovaste a compra. O meu pai pagou o computador. Lavon sorriu.
— O teu pai é um homem generoso. Por favor agradece-lhe em meu nome.
As moças retomaram a discussão. Como era hábito ficou resolvida a favor de Sarah. Reveka escreveu a lista e ameaçou alfinetá-la à manga de Lavon. Mas em vez disso enfiou-a no bolso do seu casaco e deu-lhe um pequeno empurrão para o pôr a caminho.
— E não pares para tomar café — disse. — Estamos esfomeadas.
Era quase tão difícil sair do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra como era entrar. Lavon pressionou uma série de números num teclado, na parede junto à entrada. Quando o sinal se ouviu, puxou a porta interior e entrou para a câmara de segurança. A porta exterior não abria enquanto a porta interior não se fechasse por dez segundos. Lavon encostou a cara ao vidro à prova de bala e olhou para fora.
No lado oposto da rua, escondido nas sombras, à entrada de uma estreita ruela, estava uma figura encorpada com um chapéu de abas e uma gabardina. Eli Lavon não podia caminhar nas ruas de Viena, ou de qualquer outra cidade, sem ritualmente verificar a retaguarda e memorizar rostos que apareciam muitas vezes em situações bastante diversas. Era uma angústia profissional. Mesmo à distância, e com a luz fraca, ele sabia já ter visto aquela figura do outro lado da rua, várias vezes nos últimos dias.
Percorreu a sua memória, quase como um bibliotecário percorreria umas fichas alfabetizadas, até que encontrou referências a aparições anteriores. Sim, cá está. O Judenplatz, há dois dias. Eras tu que me seguias depois de eu ter tomado café com aquele repórter americano. Voltou às fichas e encontrou uma segunda referência. A janela de um bar na Sterngasse. O mesmo homem, sem o chapéu de abas, mirando ocasionalmente por trás de uma cerveja enquanto Lavon se apressava debaixo de um dilúvio bíblico, depois de um dia perfeitamente miserável no escritório. A terceira referência levou um pouco mais a localizar, mas mesmo assim encontrou-a. O trólei número dois, final da tarde, hora de rush. Lavon é empurrado contra as portas por uma vienense de face rosada que cheirava a bratwurst e aguardente de pêssego. O chapéu-de-abas, de alguma forma, conseguiu encontrar um lugar sentado e está calmamente a limpar as unhas com a ponta do bilhete. É um homem que gosta de limpar coisas, foi o que Lavon pensou na altura. Talvez faça disso profissão.
Lavon voltou-se e tocou no intercomunicador. Vá lá, meninas. Tocou novamente, em seguida olhou sobre o ombro. O homem do chapéu e da gabardina desaparecera. Ouviu-se uma voz no intercomunicador.
— Reveka.
— Já perdeste a lista, Eli?
Lavon carregou com o polegar no botão.
— Saiam imediatamente!
Poucos segundos depois Lavon conseguiu escutar o ruído de passos no corredor. As moças apareceram à sua frente, separadas por uma parede de vidro. Reveka, calmamente, marcou o código. Sarah estava firme, em silêncio, com os seus olhos fixos em Lavon e a sua mão no vidro.
Ele nunca se lembrou de ter ouvido a explosão. Reveka e Sarah foram engolidas numa bola de fogo e, em seguida, projetadas pela onda de choque. A porta explodiu para fora. Lavon foi erguido como um brinquedo, com os braços escanchados e costas arqueadas como um ginasta. O seu voo foi como num sonho. Sentiu-se virar e virar novamente. Não teve memória do impacto. Apenas sabia que estava deitado de costas sobre a neve, numa tempestade de vidros partidos.
— As minhas meninas — sussurrou enquanto deslizava lentamente para a escuridão.
— As minhas belas meninas.
2
VENEZA
ERA UMA pequena igreja de terracota, construída para uma paróquia pobre na sestière de Cannaregio. O restaurador parou junto ao portão por baixo de um belíssimo lampião e pescou um conjunto de chaves do bolso do seu oleado. Destrancou a porta de carvalho ornamentada e deslizou para dentro. Uma lufada de ar frio, carregada de umidade e cera de vela envelhecida, acariciou-lhe a face. Ficou imóvel por instantes na meia-luz e, em seguida, atravessou a nave estilo cruz grega em direção à pequena Capela de São Jerônimo do lado direito da igreja.
A maneira de andar do restaurador era suave e aparentemente sem esforço. O ligeiro arquear das pernas sugeria velocidade e segurança. O rosto era alongado e estreito no queixo, com um nariz esguio que parecia esculpido em madeira. Os ossos da face eram largos, e havia traços das estepes russas nos seus olhos verdes inquietos. O cabelo preto era curto e com entradas cinzas nas têmporas. Era um rosto de muitas nacionalidades possíveis, e o restaurador possuía as capacidades linguísticas para fazer bom uso disso. Em Veneza, era conhecido como Mário Delvecchio. Não era o seu nome verdadeiro.
O retábulo estava dissimulado atrás de uma lona suspensa num andaime. O restaurador observou a tubagem de alumínio e trepou silenciosamente. A sua bancada de trabalho estava como a abandonara na tarde anterior: os seus pincéis e a sua paleta, os seus pigmentos e os seus aglutinadores. Ligou um caixilho de lâmpadas fluorescentes. A pintura, o último grande retábulo de Giovanni Bellini, brilhou sob a luz intensa. Do lado esquerdo da imagem estava São Cristóvão com o Cristo criança às suas cavalitas. Do lado oposto, São Luís de Toulouse com um bordão na mão, uma mitra de bispo na cabeça e os ombros cobertos com uma capa vermelha brocada a ouro. Acima de tudo, num segundo plano paralelo, São Jerônimo sentado em frente do Livro dos Salmos aberto, emoldurado por um céu azul vibrante, cheio de nuvens de um cinza acastanhado. Os santos estavam separados uns dos outros, sós perante Deus, um isolamento tão completo que era quase penoso observar. Era uma obra de arte surpreendente para um homem na casa dos oitenta.
O restaurador contemplou imóvel o painel em torre, como uma quarta figura pintada pela hábil mão de Bellini, e permitiu à sua mente vaguear pela paisagem. Passado um momento, espalhou um pouco de Mowilith médio na sua paleta, juntou pigmento, em seguida diluiu a mistura até a consistência e a intensidade lhe parecerem corretas.
Olhou novamente para a pintura. Pelo tom quente e a riqueza das cores, o historiador de arte Raimond Van Marle concluíra que havia mão de Titian. O restaurador acreditava que Van Marle, com o devido respeito, estava lamentavelmente enganado. Já restaurara obras de ambos os artistas e conhecia as suas pinceladas como as rugas em volta dos seus próprios olhos. O retábulo na Igreja de San Giovanni Crisóstomo era de Bellini e só de Bellini. Além disso, na altura da sua produção, Titian tentava desesperadamente tomar o lugar de Bellini como o mais importante pintor de Veneza. O restaurador duvidava sinceramente que Giovanni tivesse convidado o jovem obstinado Titian para o ajudar em tão importante comissão. Van Marle, se tivesse feito bem o seu trabalho de casa, teria evitado o embaraço de tão caricata opinião.
O restaurador calçou um par de Binomags e concentrou-se na túnica rosada de São Cristóvão. A pintura sofrera décadas de negligência, fortes mudanças de temperatura e o constante massacre do incenso e do fumo de vela. O vestuário de Cristóvão perdera muito do brilho original e fora cicatrizado pelas ilhas de pentimenti que tinham surgido à superfície. O restaurador tinha autorização para levar a cabo uma reparação agressiva. A sua missão era a de devolver à pintura a sua glória original. O seu desafio era consegui-lo sem parecer que fora batida por um falsificador. Em suma, o seu desejo era entrar e sair sem deixar marcas da sua presença, fazer crer que a restauração teria sido feita pelo próprio Bellini.
Durante duas horas, o restaurador trabalhou sozinho e em silêncio, apenas quebrado pelos passos do lado de fora da rua e o chocalhar do erguer de grades de alumínio das montras das lojas. As interrupções começaram às dez da manhã com a chegada da reconhecida restauradora de altares veneziana, Adrianna Zinetti, que colocou a cabeça por entre a lona e deu-lhe os bons-dias. Aborrecido, o restaurador levantou a lente do visor e olhou para baixo pela beira da plataforma. Adrianna tinha-se posicionado de tal forma que era impossível não olhar para a sua blusa e para os seus extraordinários seios. O restaurador acenou solenemente com a cabeça, em seguida observou-a a subir o andaime com uma segurança felina. Adrianna sabia que ele vivia com outra mulher, uma judia do gueto antigo, mesmo assim não perdia uma oportunidade para o provocar, como se um olhar mais sugestivo ou um toque mais acidental fizessem cair as suas defesas. No entanto, ele invejava a sua maneira simples de ver o mundo. Adrianna gostava da arte e da comida veneziana e de ser adorada pelos homens. Pouco mais lhe interessava.
Um jovem restaurador chamado Antônio Politi veio a seguir, usando óculos de sol e com ar de ressaca, parecia-se com uma estrela de rock que chega para mais uma entrevista que desejava ter cancelado. Antônio não se preocupou em desejar os bons-dias ao restaurador. A antipatia entre ambos era mútua. Para o projeto Crisóstomo, Antônio tinha sido designado para o trabalho no retábulo principal de Sebastiano dei Piombo. O restaurador tinha a convicção de que o rapaz ainda não estava pronto para a gravura, e todos os dias à tardinha, antes de deixar a igreja, escalava secretamente a plataforma de Antônio para inspecionar o seu trabalho.
Francesco Tiepolo, o chefe do projeto San Giovanni Crisóstomo, era o último a chegar, um trôpego, barbudo, vestia uma larga camisa branca e um lenço de seda em volta do seu grosso pescoço. Nas ruas de Veneza os turistas confundiam-no com Luciano Pavarotti. Os venezianos raramente cometiam tal erro, pois Francesco Tiepolo geria a empresa de restauro com mais sucesso em toda a região de Veneza. No ramo da arte veneziana ele era uma instituição.
— Buongiorno — cantou Tiepolo, e a sua voz cavernosa ecoou na cúpula central. Agarrou a plataforma do restaurador com a sua grande mão e deu-lhe um violento abanão. O restaurador olhou pela beira como um gárgula.
— Quase estragavas uma manhã inteira de trabalho, Francesco.
— É por isso que usamos verniz isolante. Tiepolo levantou um saco de papel branco.
— Cornetto?
— Sobe.
Tiepolo colocou um pé no primeiro degrau do andaime e elevou-se. O restaurador conseguiu ouvir a tensão da tubagem de alumínio debaixo do enorme peso de Tiepolo.
Tiepolo abriu a sacola, entregou ao restaurador um cornetto de amêndoa, e tirou um para si próprio. Metade desapareceu numa só dentada. O restaurador sentou-se na beira da plataforma com os pés balouçando para fora. Tiepolo parou em frente do retábulo e examinou o seu trabalho.
— Se não soubesse, pensaria que o velho Giovanni entrou aqui ontem à noite e reparou a pintura ele próprio.
— É essa a ideia, Francesco.
— Sim, mas poucos têm o talento para o conseguir.
O resto do cornetto desapareceu-lhe na boca. Limpou o açúcar em pó da barba.
— Quando estará terminado?
— Três meses, talvez quatro.
— Da minha perspectiva, três meses será melhor que quatro. Mas pelos céus, não vou apressar o grande Mário Delvecchio. Tens planos de viagem?
O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos, ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas. Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que, como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.
AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida, prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis, prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle, já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal, sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente, dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza. Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente. Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o dinheiro. O seu nome era Valentina. Sorriu para Gabriel e, com o lápis que segurava na mão, apontou na direção da enorme janela do chão ao teto com vista para o canal. Uma mulher estava de gatas, encharcada pela água que tinha passado pelos vedantes, alegadamente à prova de água, das janelas. Ela era de uma beleza impressionante.
— Eu disse-lhe que estes vedantes não iam funcionar — disse Gabriel.
— Foi um desperdício de dinheiro.
Chiara olhou para cima. O seu cabelo era escuro, encaracolado e reluzente, com madeixas ruivas e acastanhadas. Mal seguro por um elástico na nuca, espalhava-se desordenadamente pelos seus ombros. Os olhos eram cor de amêndoa salpicados de ouro. Tinham tendência para mudar de cor conforme o estado de espirito.
— Não fiques ai especado como um idiota. Chega aqui abaixo e ajuda-me.
— Seguramente não esperas que um homem do meu talento...
A toalha branca encharcada, arremessada com uma surpreendente força e precisão, acertou-lhe mesmo no peito. Gabriel torceu-a para dentro de um balde e ajoelhou-se junto a ela.
— Houve um atentado em Viena — sussurrou Chiara, com os lábios apoiados no pescoço de Gabriel.
— Ele está cá. Quer ver-te.
AS ÁGUAS DA INUNDAÇÃO ACUMULARAM-SE na entrada da casa do canal. Quando Gabriel abriu a porta, a água ondulou pelo bali de mármore. Ele inspecionou os estragos e, aborrecido, seguiu Chiara pelas escadas acima. A sala de estar estava escura. Um homem velho olhava para o canal através da janela molhada pela chuva, tão imóvel como uma figura de Bellini. Vestia um terno escuro com uma gravata prateada. A sua cabeça careca era em forma de bala; o rosto, fortemente bronzeado e cheio de rachas e fissuras, parecia feito de rocha do deserto. Gabriel colocou-se ao seu lado. O homem velho não o cumprimentou. Em vez disso, continuou a contemplar as ascendentes águas do canal, o seu rosto envergava um franzido de fatalidade, como se testemunhasse o começo do Dilúvio que vem para destruir a perversidade do homem. Gabriel sabia que Ari Shamron estava prestes a informá-lo de uma morte. A morte reunira-os no principio, e a morte continuava a ser o pilar da sua ligação.
3
VENEZA
NOS CORREDORES e salas de conferência dos serviços secretos israelenses, Ari Shamron era uma lenda. De fato, ele era a personificação do serviço. Já espionara cortes de reis, roubara segredos a tiranos e assassinara inimigos de Israel, por vezes com as próprias mãos. O ponto alto da sua carreira ocorreu numa noite chuvosa em Maio de 1960, num subúrbio miserável de Buenos Aires, quando saltou da traseira de um carro e apanhou Adolf Eichmann.
Em Setembro de 1972, a primeira-ministra Golda Meir ordenou-lhe que caçasse e assassinasse os terroristas palestinos que raptaram e mataram os onze israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique. Gabriel, na altura um promissor estudante da Academia de Arte de Bezalel em Jerusalém, juntou-se relutante à missão de Shamron, adequadamente apelidada com o nome de código Ira de Deus. No vocabulário hebraico da operação, Gabriel era um Aleph. Armado apenas com uma Beretta calibre .22, matou silenciosamente seis homens.
A carreira de Shamron não foi uma ascensão de louvores. Existiram vales profundos pelo caminho e viagens erradas em operações desoladoras. Ganhou a reputação de um homem que dispara primeiro e se preocupa com as consequências depois. O seu temperamento imprevisível era um dos seus maiores trunfos. Espalhava o medo tanto em amigos como em inimigos. Para alguns políticos, a volatilidade de Shamron era inadmissível. com medo das noticias que poderia ouvir, Rabin evitava muitas vezes as suas chamadas. Peres considerava-o primitivo e remeteu-o para o vazio da reforma judaica. Quando o Departamento estava a afundar, Barak reabilitou Shamron e trouxe-o de volta para endireitar o barco.
Encontrava-se agora oficialmente reformado, e o seu adorado Departamento estava nas mãos de um meticuloso tecnocrata moderno e intriguista chamado Lev. Mas em muitos postos, Shamron seria sempre o Memuneh, aquele que manda. O atual primeiro-ministro era um velho amigo e companheiro de viagem. Deu a Shamron um cargo vago e autoridade suficiente para que se tornasse incômodo. Existiam pessoas na King Saul Boulevard capazes de jurar que Lev rezava secretamente por uma rápida morte de Shamron.
E Shamron, teimoso e com uma vontade de ferro, mantinha-se vivo apenas para o atormentar.
Agora, de pé em frente da janela, Shamron explicou calmamente a Gabriel o que sabia dos acontecimentos em Viena. Uma bomba explodira no dia anterior, à tardinha, dentro do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Eli Lavon estava em coma profundo nos cuidados intensivos do Hospital Geral de Viena, as probabilidades de sobrevivência eram de um para dois na melhor das hipóteses. As suas duas assistentes, Reveka Gazit e Sarah Greenberg, tinham morrido na explosão. Uma ramificação da al-Qaeda de Bin Laden, um grupo sombrio chamado Células de Combate Islâmicas, tinha reivindicado a responsabilidade.
Shamron falou com Gabriel no seu sotaque assassino da língua inglesa. Hebraico não era permitido na casa do canal de Veneza.
Chiara trouxe café e bolinhos para a sala de estar e sentou-se entre Gabriel e Shamron. Dos três, só Chiara estava sujeita às regras do Departamento. Conhecida como bat leveyha, o seu trabalho envolvia fazer-se passar por amante ou esposa de um oficial de campo. como todo o pessoal do Departamento, também ela fora treinada na arte de combate físico e no uso de armamento. O fato de ter tido melhor resultado que o grande Gabriel Allon no seu teste final de tiro era causa de alguma tensão entre os dois. As suas missões secretas exigiam muitas vezes alguma intimidade com o parceiro, como mostrar afecto em restaurantes e clubes noturnos e partilhar a mesma cama em quartos de hotel ou apartamentos. Relações românticas entre oficiais de campo e agentes acompanhantes eram oficialmente proibidas, mas Gabriel sabia que uma vivência próxima e o stress natural das missões muitas vezes os aproximavam. De fato, ele chegou a ter uma relação passageira com uma bat leveyha em Túnis. Uma belíssima judaica de Marselha chamada Jacqueline Delacroix, e o caso quase lhe destruíra o casamento. Gabriel, quando Chiara estava fora, muitas vezes imaginava-a na cama de outro homem. Apesar de não ser muito dado a ciúmes, secretamente ansiava pelo dia em que King Saul Boulevard decidisse que ela estava já muito exposta para missões de campo.
— Quem são as Células de Combate Islâmicas concretamente? — perguntou. Shamron fez uma careta.
— São um pequeno grupo de operações que atua principalmente em França e num ou noutro pais da Europa. Gostam de incendiar sinagogas, de profanar cemitérios judeus e de espancar crianças judias nas ruas de Paris.
— Houve alguma coisa útil na reivindicação? Shamron acenou com a cabeça.
— Apenas a baboseira habitual sobre a condição miserável dos palestinos e a destruição da entidade sionista. Ameaças à continuação de ataques contra alvos judaicos na Europa até a libertação da Palestina.
— O escritório de Lavon era uma fortaleza. Como é que um grupo que normalmente usa cocktail Molotov e latas de spray conseguiu pôr uma bomba no Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Shamron aceitou uma xícara de Chiara.
— A Staatspolizei austríaca ainda não tem certezas, mas acredita que talvez estivesse escondida num computador que fora entregue no escritório de manhã cedo.
— As Células de Combate Islâmicas têm capacidade para esconder uma bomba num computador e infiltrá-lo num edifício seguro em Viena?
Shamron mexeu o açúcar violentamente no café e negou abanando a cabeça lentamente.
— Então quem foi?
— É óbvio que gostaria de ter a resposta a essa pergunta.
Shamron tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa. A mensagem era inequívoca. Gabriel desviou o olhar do semblante carregado e fixo de Shamron e recordou a última vez que o velho o enviara a Viena. Fora em Janeiro de 1991. O Departamento descobrira que um agente secreto iraquiano a operar na cidade planeava dirigir uma série de ataques terroristas contra alvos israelenses para coincidir com a primeira guerra no Golfo Pérsico. Shamron ordenara a Gabriel que vigiasse o iraquiano e, se necessário, tomasse ações preventivas. Pouco disposto a suportar outra longa separação da sua família, Gabriel levara consigo a mulher, Leah, e o jovem filho, Dani. No entanto, não se apercebera que estava a caminhar para uma armadilha preparada por um terrorista palestino chamado Tariq Hourani.
Perdido em pensamentos por um momento, Gabriel finalmente olhou para Shamron.
— Já esqueceste que Viena é a cidade proibida para mim?
Shamron acendeu um dos seus malcheirosos cigarros turcos e colocou um fósforo apagado no pires ao lado da colher. Prendeu os óculos na testa e cruzou os braços.
Ainda eram poderosos, como aço temperado debaixo de uma fina camada de pele velha e bronzeada. como as mãos. Gabriel observara o gesto muitas vezes. Shamron, o inabalável. Shamron, o indomável. Adoptara a mesma pose quando tinha despachado Gabriel para Roma para matar pela primeira vez. Já era um homem velho nessa altura.
De fato, ele nunca tinha sido novo. Em vez de conquistar miúdas na praia de Netanya, fora comandante de unidade em Palmach, durante a primeira batalha da infindável guerra de Israel. A sua juventude fora-lhe roubada. E por sua vez roubou a de Gabriel.
— Eu ofereci-me para ir a Viena, mas Lev nem quer ouvir falar nisso. Ele sabe que por causa da nossa lamentável história, eu sou uma espécie de pária. Ele considera que a Staatspolizei será mais acessível se formos representados por uma figura menos polarizadora.
— Então sua solução é enviar-me a mim?
— Claro que sem competência oficial.
Ultimamente Shamron fazia quase tudo sem competência oficial.
— Mas eu sentir-me-ia muito mais seguro se alguém da minha confiança estivesse a tomar conta das coisas.
— Temos pessoal do Escritório em Viena.
— Sim, mas eles prestam contas a Lev.
— Ele é o chefe.
Shamron fechou os olhos, como se à cabeça lhe tivesse vindo algo doloroso. Lev tem muitos outros problemas de momento para dispensar a atenção que este assunto merece. O novo imperador em Damasco anda a levantar ondas. Os muçulmanos do Irão estão a tentar construir a bomba de Alá, e o Hamas anda a transformar crianças em bombas e a detoná-las nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Um pequeno atentado em Viena não vai receber a atenção que merece, mesmo que o alvo tenha sido Eli Lavon. Shamron fixou Gabriel com compaixão sobre o rebordo da sua xícara de café.
— Eu sei que não desejas voltar a Viena, principalmente depois de mais um atentado, mas o teu amigo está a lutar pela vida num hospital vienense! Pensei que gostarias de saber quem o pôs lá.
Gabriel pensou no retábulo de Bellini da Igreja de San Giovanni Crisóstomo e sentiu-o escapar-lhe das mãos. Chiara voltou-se de costas para Shamron e fixou-o intensamente. Gabriel desviou o seu olhar.
— Se for a Viena — disse calmamente —, vou precisar de uma identidade. Shamron encolheu os ombros, como quem diz que há maneiras e maneiras óbvias, meu querido — de dar a volta a um problema tão pequeno como o disfarce. Gabriel já esperava esta resposta de Shamron e estendeu a sua mão.
Shamron abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope de papel pardo. Gabriel abriu-o e despejou o conteúdo na mesa de café: bilhetes de avião, uma carteira em pele, um passaporte israelense bastante viajado. Abriu o passaporte e viu o seu próprio rosto a olhar para ele. O seu nome era Gideon Argov. Sempre gostara do nome Gideon.
— Qual é a profissão de Gideon?
Shamron inclinou a cabeça em direção à carteira de pele. Junto com os artigos do costume — cartões de crédito, carta de condução, cartão do ginásio e do clube de vídeo — encontrou um cartão de visita:
Gideon Argov
Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra
17 Mendele Street Jerusalém 92147 5427618
Gabriel olhou para Shamron.
— Eu não sabia que o Eli tinha um escritório em Jerusalém.
— Agora tem. Liga para esse número.
Gabriel abanou a cabeça.
— Eu acredito em você. Lev sabe disto?
— Ainda não, mas pretendo lhe dizer assim que você tiver aterrissado em Viena.
— Quer dizer que estamos enganando os austríacos e o Departamento. É impressionante, até mesmo para você, Ari.
Shamron esboçou um sorriso tímido. Gabriel abriu o invólucro do bilhete e examinou o seu itinerário de viagem.
— Não penso que seja uma boa ideia viajares daqui para Viena diretamente. Acompanho-te de volta a Tel Aviv amanhã de manhã em lugares separados, claro. Dás a volta e apanhas o voo da tarde para Viena.
Gabriel levantou o sobrolho e olhou para Shamron desconfiado.
— E se for reconhecido no aeroporto e arrastado para uma sala para ser alvo de atenção especial austríaca?
— Há sempre essa possibilidade, mas já passaram treze anos. Além disso, estiveste em Viena recentemente. Eu lembro-me de uma reunião que tivemos no escritório do Eli o ano passado sobre a ameaça iminente à vida de Sua Santidade o Papa Paulo VII.
— Já estive de volta a Viena — admitiu Gabriel segurando o seu falso passaporte.
— Mas nunca desta forma, e nunca pelo aeroporto.
Gabriel dispensou um longo momento avaliando o passaporte falso com o seu olhar de restaurador. Finalmente fechou-o e guardou-o no bolso. Chiara levantou-se e saiu da sala. Shamron observou-a enquanto saia e em seguida olhou para Gabriel.
— Parece que consegui atrapalhar sua vida mais uma vez.
— Porque é que haveria de ser diferente desta vez?
— Queres que fale com ela? Gabriel abanou a cabeça.
— Isto passa-lhe — disse. — Ela é uma profissional.
HOUVE MOMENTOS na vida de Gabriel, fragmentos de tempo, que ele pintou em tela e pendurou na cave do seu subconsciente. A esta galeria da memória adicionou Chiara como a via agora, sentada com as pernas afastadas em cima do seu corpo, banhada por uma luz de Rembrandt vinda dos postes de rua, com um edredom de cetim à volta das suas ancas e os seus seios nus. Outras imagens apoderaram-se dele. Shamron abrira-lhes a porta, e Gabriel, como de costume, era impotente para as empurrar de volta. Havia Wadal Adel Zwaiter, um intelectual magricela de casaco de xadrez, que Gabriel assassinara na entrada de um apartamento em Roma. Havia Ali Abdel Hamidi, que morrera pelas mãos de Gabriel numa ruela de Zurique, e Mahmoud al-Hourani, irmão mais velho de Tariq al-Hourani, a quem Gabriel dera um tiro num olho em Colônia enquanto estava nos braços de uma amante. Uma madeixa de cabelo caiu sobre os seios de Chiara. Gabriel afastou-a gentilmente. Ela olhou para ele. Era escuro de mais para se perceber a cor dos seus olhos, mas Gabriel conseguia sentir os seus pensamentos. Shamron treinara-o para sentir as emoções dos outros, assim como Umberto Conti o ensinara a imitar os velhos mestres. Gabriel, mesmo nos braços de uma amante, não conseguia evitar a sua busca incessante de sinais que o avisassem de traição.
— Não quero que vás a Viena — disse, colocando as mãos no peito de Gabriel.
Gabriel sentiu o coração bater contra a palma fria da sua mão.
— Não é seguro para ti. Mais que qualquer um, Shamron devia saber isso.
— Shamron tem razão. Foi há muito tempo.
— Sim foi, mas se voltares e começares a fazer perguntas sobre o atentado, vais entrar em atrito com a policia austríaca e com os serviços de segurança. Shamron está a usar-te para continuar em jogo. Não está a pensar no que é melhor para ti.
— Falas como um dos homens do Lev.
— É com você que me preocupo.
Inclinou-se e beijou-o na boca. Os seus lábios cheiravam a flores.
— Não quero que vá a Viena e se perca no passado.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Tenho medo de te perder.
— Para quem?
Ela levantou o edredom até os ombros e cobriu os seios. A sombra de Leah caiu entre eles. Foi intencionalmente que Chiara a deixou entrar no quarto. Chiara só falava de Leah na cama, onde acreditava que Gabriel não lhe mentiria. Toda a vida de Gabriel era uma mentira mas com as suas amantes era sempre dolorosamente honesto. Só conseguia fazer amor com uma mulher se ela soubesse que ele havia assassinado homens em nome do seu pais. Nunca contara mentiras sobre Leah. Considerava-se obrigado a falar honestamente sobre ela, mesmo com as mulheres que tinham tomado o lugar dela na cama.
— Tens alguma ideia de como isto é difícil para mim? — perguntou Chiara. — Toda a gente sabe da Leah. Ela é uma lenda no Departamento, como tu e o Shamron. Quanto tempo tenho de viver com medo de que um dia decida que não consegues mais estar assim?
— O que quer que eu faça?
— Case-se comigo, Gabriel. Fique em Veneza e restaure telas. Diga a Shamron para te deixar em paz. Tem cicatrizes no corpo todo. Já não fez o suficiente por seu pais?
Ele fechou os olhos. Perante si abriu-se a porta de uma galeria. Relutante, atravessou para o outro lado e encontrou-se numa rua do velho bairro judeu de Viena com Leah e Dani a seu lado. Tinham acabado de jantar, a neve caia. Leah está nervosa. Havia uma televisão no bar do restaurante e, durante toda a refeição, tinham observado misseis iraquianos a chover sobre Tel Aviv. Leah está ansiosa por voltar a casa e telefonar à mãe. Apressa Gabriel no seu ritual de pesquisa debaixo do carro. Vá lá Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da sua voz. Ele levanta-se, prende Dani com o cinto de segurança, e beija Leah. Ainda consegue sentir o sabor de azeitona em sua boca. Volta-se e caminha para a catedral, onde, como parte do seu disfarce, está a restaurar um retábulo sobre o martírio de Santo Estêvão. Leah dá à chave. O motor hesita. Gabriel volta-se e grita-lhe que pare, mas Leah não o consegue ver porque o vidro do carro está embaciado pela neve. Volta a insistir com a chave...
Ele esperou até as imagens de fogo e sangue se dissolverem no escuro; em seguida disse a Chiara o que ela queria ouvir. Quando voltar de Viena vou visitar Leah no hospital e contar que se apaixonou por outra mulher.
O rosto de Chiara entristeceu-se.
— Gostaria que houvesse outra forma.
— Tenho de contar a verdade — disse Gabriel. — É o mínimo que ela merece.
— Ela compreenderá?
Gabriel encolheu os ombros. Leah sofria de depressão psicótica. Os médicos acreditavam que a noite da bomba se repetia ininterruptamente na sua cabeça como uma fita em loop. Não deixou espaço para impressões ou sons do mundo real. Gabriel muitas vezes pensava o que teria Leah visto dele nessa noite. Tê-lo-ia visto a caminhar em direção ao pináculo da catedral, ou tê-lo-ia sentido a puxar o seu corpo escurecido do fogo? Apenas tinha certeza de uma coisa. Leah não falava com ele. Há treze anos que não lhe dirigia a palavra.
— É por mim — disse ele. — Tenho de dizer o que sinto. Tenho de lhe dizer a verdade sobre ti. Não tenho nada que me envergonhar, e obviamente que não tenho vergonha de ti.
Chiara baixou o edredom e beijou-o fervorosamente. Gabriel conseguia sentir a tensão do corpo dela e a excitação da sua respiração. Mais tarde estava deitado a seu lado, afagando-lhe o cabelo. Não conseguia dormir, não numa noite antes de uma viagem de volta a Viena. Mas havia algo mais. Sentia-se como se tivesse cometido uma traição sexual. Era como se tivesse estado dentro de uma mulher de outro homem. Foi então que percebeu que, na sua cabeça, ele já era Gideon Argov. Chiara, de momento, era uma estranha.
4
VIENA
— PASSAPORTE, POR FAVOR.
Gabriel passou-o pela bancada, com o emblema para baixo. O agente olhou com estranheza para a capa gasta e dedilhou as páginas até encontrar o visto. Acrescentou mais um carimbo — com mais violência do que seria necessário, pensou Gabriel — e entregou-o de volta sem dizer uma palavra. Gabriel guardou o passaporte no bolso do casaco e dirigiu-se até o reluzente hall das chegadas, puxando a reboque uma mala de rodinhas.
Lá fora, tomou o lugar na fila para os táxis. Estava um frio desagradável, e o vento trazia neve. Fragmentos de alemão com sotaque vienense chegam-lhe aos ouvidos. Ao contrário de muitos dos seus compatriotas, o simples som do alemão falado não o deixava nervoso. O alemão era a sua primeira língua e continuava a ser a língua dos seus sonhos. Falava-o perfeitamente, com o sotaque berlinense da sua mãe.
Chegou ao inicio da fila. Um Mercedes branco aproximou-se para o recolher. Gabriel decorou a matricula antes de entrar para o banco de trás. Colocou o saco no assento e deu ao motorista uma morada a algumas ruas de distância do hotel onde tinha reserva.
O táxi precipitou-se pela via rápida, através de uma feia zona industrial de fábricas, centrais elétricas e gasodutos. Pouco depois, Gabriel avistou o topo iluminado da catedral de Santo Estêvão, como uma miragem sobre o centro da cidade. Ao contrário da maioria das cidades europeias, Viena tinha-se mantido intata e livre da influência urbana nociva. De fato, muito pouco da sua aparência e estilo de vida tinham mudado desde há um século, quando fora o centro administrativo de um império que se estendia da Europa Central aos Balcãs. Ainda era possível comer um bolo com creme no Demel da parte da tarde ou tomar um café demorado e ler um jornal no Landtmann ou no Central. No centro da cidade era melhor abandonar o carro e apanhar o elétrico ou andar a pé pelas reluzentes avenidas pedestres alinhadas de arquitetura barroca e gótica e lojas exclusivas. Os homens ainda usavam ternos verde-escuro e chapéu tirolês com uma pena na aba; as mulheres ainda consideravam moda andar vestidas à camponesa. Brahms disse que escolhera Viena porque preferia trabalhar numa aldeia. Ainda era uma aldeia, pensou Gabriel, com o desprezo aldeão à mudança e o despeito aldeão a estranhos. Para Gabriel, Viena seria sempre uma cidade de fantasmas.
Foram dar à Ringstrasse, a avenida larga que circula o centro da cidade. O belo rosto de Peter Metzler, o candidato a presidente do conselho de ministros do Partido Nacional Austríaco da extrema-direita, sorriu a Gabriel por entre os postes de luz que passavam. Era época de eleições e a avenida estava pejada de cartazes de campanha. A campanha bem financiada de Metzler claramente não tinha olhado a despesas. A sua cara estava por toda a parte, o seu olhar era inevitável. Bem como o seu slogan de campanha:
EINE NEUE ORDNUNG FÜR EINNEUES ÖSTERREICH! UMA NOVA ORDEM PARA UMA NOVA ÁUSTRIA!
Os austríacos, pensou Gabriel, são sabem ser sutis.
Gabriel abandonou o táxi perto da casa da ópera estatal e caminhou uma curta distância até uma rua estreita chamada Weihburggasse. Aparentemente ninguém o seguia, embora ele soubesse por experiência que espiões habilidosos eram quase impossíveis de detectar. Entrou num pequeno hotel. O recepcionista, quando viu o seu passaporte israelense, adoptou uma postura séria e murmurou umas palavras de simpatia sobre o terrível bombardeamento no bairro judaico. Gabriel, no papel de Gideon Argov, dispensou alguns minutos a conversar com o recepcionista em alemão antes de subir as escadas até o seu quarto no segundo andar. Este tinha o chão de madeira cor de mel e portas francesas com vista para um escuro pátio interior. Gabriel afastou as cortinas e deixou o saco na cama, bem à vista. Antes de sair, colocou um sinal na ombreira da porta que o avisaria se alguém tivesse entrado no quarto durante a sua ausência. Regressou à entrada do hotel. O recepcionista sorriu-lhe como se não o visse há cinco anos, em vez de há cinco minutos. Lá fora tinha começado a nevar. Caminhou pelas ruas escuras do centro da cidade, verificando, nas suas costas, se era seguido. Parou em frente a montras de lojas para espreitar por cima do ombro, escondeu-se numa cabine telefônica fingindo fazer uma chamada enquanto vasculhava em seu redor. Numa banca de revistas comprou um exemplar do Die Presse, em seguida, umas centenas de metros adiante, deitou-o num caixote do lixo. Finalmente, convencido de que não estava a ser seguido, entrou na estação de U-Bahn de Stephansplatz.
Não tinha necessidade de consultar os mapas iluminados do sistema de transportes de Viena, pois sabia-os de cor. Comprou um bilhete na máquina automática, em seguida passou pelo torniquete e desceu à plataforma. Embarcou numa carruagem e memorizou os rostos à sua volta. Cinco paragens mais tarde, na Westbahnhof, transferiu-se para um trem da zona norte na linha U6. O Hospital Geral de Viena tinha a sua própria estação. Uma escada rolante elevou-o lentamente até um pátio coberto de neve, a alguns passos da entrada principal, em Wàhringer Gurtel 18-20.
Um hospital ocupava esta pequena porção de terreno em Viena ocidental há mais de trezentos anos. Em 1693, o Imperador Leopoldo I, preocupado com o estado lamentável dos pobres da cidade, ordenara a construção da Casa para os Pobres e Inválidos. Um século mais tarde, o Imperador José II rebatizou as instalações de Hospital Geral para os Doentes. O antigo edifício ficou, algumas ruas acima na Alserstrasse, mas à sua volta nasceu um moderno complexo universitário hospitalar espalhado por vários quarteirões da cidade. Gabriel conhecia-o bem.
Um homem da embaixada estava abrigado no pórtico, por baixo de uma inscrição onde se lia:
SALUTI ET SOLATIO AEGRORUM: CURAR E CONSOLAR OS DOENTES.
Era um diplomata baixo, com ar nervoso, chamado Zvi. Apertou a mão de Gabriel e, após um breve exame de seu passaporte e cartão de visita, lamentou a morte das duas colegas.
Entraram no hall principal. Estava deserto, com exceção de um velho de barba branca rala sentado na ponta de um sofá, com os pés juntos e as mãos sobre os joelhos, como um viajante que espera um trem atrasado. Resmungava para dentro. À passagem de Gabriel, o velho olhou para cima e os seus olhares cruzaram-se brevemente. Gabriel entrou, em seguida, num elevador e o velho desapareceu atrás das portas deslizantes.
Quando as portas do elevador voltaram a abrir-se no oitavo andar, Gabriel foi saudado pela visão agradável de uma israelense alta e loura de tailleur e receptor na orelha. À entrada da unidade de cuidados intensivos estava outro segurança. Um terceiro, pequeno, escuro e vestindo terno amarrotado, estava à porta do quarto de Eli. Desviou-se para que Gabriel e o diplomata pudessem entrar. Gabriel parou e perguntou por que não estava a ser revistado.
— Está com Zvi. Não preciso de o revistar. Gabriel levantou os braços.
— Reviste-me.
O segurança inclinou a cabeça e consentiu. Gabriel reconheceu o padrão de revista. Era segundo as regras. A revista nos fundilhos foi mais intrusiva do que necessário, mas Gabriel estava a pedi-las.
Quando terminou disse:
— Reviste toda a gente que entrar neste quarto.
Zvi, o homem da embaixada, assistiu à cena. Obviamente já não acreditava que o homem de Jerusalém fosse Gideon Argov, do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra. Gabriel pouco se importava. O seu amigo estava deitado indefeso do outro lado da porta. Era preferível fazer umas ondas a deixá-lo morrer por negligência.
Seguiu Zvi até dentro do quarto. A cama estava detrás de um biombo de vidro. O paciente não se parecia muito com Eli, mas Gabriel não ficou surpreendido. Como a maioria dos israelenses, ele já testemunhara o que uma bomba faz a um corpo humano. O rosto de Eli estava oculto pela máscara de um ventilador, os olhos cobertos com gaze, a cabeça cheia de ligaduras. A parte exposta das bochechas e queixo revelavam os efeitos do vidro que lhe explodira na cara. Uma enfermeira de cabelo preto curto e olhos muito azuis verificava o soro. Olhou para o quarto das visitas e por instantes reparou em Gabriel antes de voltar ao trabalho. Os seus olhos não se enganavam.
Zvi, depois de deixar Gabriel um momento sozinho, caminhou até o vidro e atualizou-o sobre o estado clinico do colega. Falou com a precisão de um homem que já tinha visto muitos programas médicos na televisão. Gabriel, com os olhos fixos no rosto de Eli, apenas ouviu metade do que o diplomata estava a dizer — o suficiente para perceber que o seu amigo estava às portas da morte, e que, mesmo que sobrevivesse, provavelmente nunca mais seria o mesmo.
— De momento — concluiu Zvi — as máquinas mantêm-no vivo.
— Porque é que tem os olhos ligados?
— Fragmentos de vidro. Conseguiram tirar a maior parte, mas ainda tem uma meia dúzia alojada nos olhos.
— Vai ficar cego?
— Não se saberá enquanto ele não estiver consciente — disse Zvi. Em seguida acrescentou pessimista:
— Se voltar a estar.
Um médico entrou no quarto. Cumprimentou Gabriel e Zvi com um movimento de cabeça, em seguida abriu a porta de vidro e entrou na cabina protetora. A enfermeira afastou-se da cama e o médico tomou o seu lugar. Ela deu a volta e colocou-se aos pés da cama em frente ao vidro. Pela segunda vez o seu olhar cruzou-se com o de Gabriel, subitamente fechou a cortina soltando-a com um puxão preciso do pulso. Gabriel caminhou até o bali seguido por Zvi.
— Está bem?
— Vou ficar bem. Só preciso de um minuto sozinho.
O diplomata voltou para dentro. Gabriel apertou as mãos atrás das costas como um soldado à vontade, e afastou-se devagar pelo familiar corredor. Passou o posto das enfermeiras. A mesma paisagem banal das ruas de Viena via-se da janela. O cheiro também era o mesmo — a desinfetante e a morte.
Chegou a uma porta entreaberta com o número 2602-C. Empurrou-a gentilmente com a ponta dos dedos e esta abriu-se silenciosamente. O quarto estava escuro e desocupado. Gabriel espiou por cima do ombro. Não havia enfermeiras por perto. Esgueirou-se para dentro e fechou a porta atrás de si. Deixou as luzes apagadas e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. Em breve o quarto estava visível: a cama vazia, a bancada de monitores silenciosos, a cadeira de vinil. A cadeira mais desconfortável de Viena. Ele passara dez noites naquela cadeira, a maioria delas sem dormir. Apenas uma vez Leah tinha ficado consciente. Perguntou por Dani, e Gabriel, precipitadamente, disse-lhe a verdade. Lágrimas tinham escorrido por seu rosto ferido. Nunca mais falou com Gabriel.
— Não devia estar aqui.
Gabriel voltou-se sobressaltado. A voz era da enfermeira que estava ao lado de Eli momentos antes . Falou-lhe em alemão. Ele respondeu na mesma língua.
— Desculpe, eu apenas...
— Eu sei o que está fazendo.
Ela permitiu que um momento de silêncio caísse entre os dois.
— Eu me lembro de você.
Encostou-se à porta e cruzou os braços. A cabeça inclinou-se para um dos lados. Se não fosse pelo largo uniforme de enfermeira e o estetoscópio pendurado no pescoço, Gabriel teria pensado que ela estava flertando com ele.
— Sua mulher é aquela que estava na explosão de um carro, anos atrás. Eu era jovem na época, estava apenas começando na enfermagem. Tomava conta dela durante a noite. Não se lembra?
Gabriel olhou-a por um momento. Finalmente disse:
— Acho que está enganada. Esta é minha primeira vez em Viena. E nunca fui casado. Desculpe — acrescentou apressadamente dirigindo-se à porta. — Não devia ter vindo aqui. Eu só precisava de um lugar para pôr os meus pensamentos em ordem.
Passou por ela. Ela tocou-lhe no braço.
— Diga-me uma coisa — disse ela.
— Ela está viva?
— Quem?
— A sua esposa, claro.
— Desculpe — disse com firmeza — mas está me confundindo com outra pessoa.
Ela acenou com a cabeça.
— Como queira.
Os seus olhos azuis umedeceram e brilharam na meia luz.
— É seu amigo, Eli Lavon?
— Sim, é. Um amigo muito intimo. Trabalhamos juntos. Eu moro em Jerusalém. Jerusalém — repetiu ela, como se gostasse do som da palavra.
— Gostaria de visitar Jerusalém um dia. Os meus amigos acham que sou maluca. Sabe como é, os homens-bomba, e todas as outras coisas...
A sua voz perdeu-se.
— Mesmo assim quero ir.
— Devia — disse Gabriel.
— É um local maravilhoso. Tocou-lhe no braço uma segunda vez.
— Os ferimentos do seu amigo são graves. O seu tom era amável, provido de lamento.
— Vai passar por tempos muito duros.
— Vai sobreviver?
— Não estou autorizada a responder a questões dessa natureza. Só os médicos podem dar prognósticos. Mas se quer a minha opinião, passe algum tempo com ele. Diga-lhe coisas. Nunca se sabe, talvez ele consiga escutá-lo.
ELE FICOU MAIS UMA HORA, olhando, através do vidro, para a figura imóvel de Eli. A enfermeira regressou. Passou alguns minutos a verificar os sinais vitais de Eli, em seguida fez um sinal a Gabriel para que entrasse no quarto.
— É contra as regras — disse em tom conspiratório.
— Eu vigio a porta.
Gabriel não falou com Eli, apenas segurou a sua mão ferida e inchada. Não havia palavras para descrever a dor que sentia ao ver outro ente querido deitado numa cama de hospital vienense. Passados cinco minutos a enfermeira voltou, colocou a mão no ombro de Gabriel e disse-lhe que estava na altura de sair. Lá fora, no corredor, disse-lhe que o seu nome era Marguerite.
— Estou de serviço amanhã à noite — disse. — Vejo-o nessa altura, espero. Zvi tinha saído; uma nova equipe de guardas estava de serviço. Gabriel apanhou o elevador até o hall e saiu para a rua. A noite estava ainda mais fria. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apressou o passo. Estava prestes a apanhar a escada rolante até a estação de U-Bahn quando sentiu uma mão no seu braço. Voltou-se, esperando encontrar Marguerite, mas em vez disso ficou cara a cara com o velho que falava sozinho no hall quando Gabriel chegou.
— Ouvi-o falar em hebraico com aquele homem da embaixada.
O seu alemão vienense era freneticamente apressado, os seus olhos estavam úmidos.
— É israelense, não é? Um amigo de Eli Lavon? Não esperou por resposta.
— O meu nome é Max Klein, e isto é tudo culpa minha. Por favor, tem de acreditar em
mim. Isto é tudo culpa minha.
5
VIENA
MAX KLEIN MORAVA à distância de uma parada de trólei, num elegante bairro velho mesmo por trás da Ringstrasse. Morava num distinto bloco de apartamentos estilo século XIX com uma entrada que dava para um enorme pátio interior. O pátio era escuro, iluminado apenas pelo brilho suave de luzes dos apartamentos em volta. Uma segunda entrada conduzia a um pequeno hall bem cuidado. Gabriel olhou para a lista do porteiro. A meio viu as palavras:
M. KLEIN — 3B.
Não havia elevador. Gabriel agarrou-se ao corrimão de madeira enquanto galgava os degraus com os seus pés pesados. No patamar do terceiro andar havia duas portas de madeira com binóculo. Deslocando-se até a da direita, Klein retirou um conjunto de chaves do bolso do casaco. A sua mão tremia tanto que as chaves tilintavam como um instrumento de percussão.
Abriu a porta e entrou. Gabriel hesitou mesmo à entrada. Tinha-lhe ocorrido, enquanto viajava no trólei ao lado de Klein, que não devia encontrar-se com ninguém em circunstâncias assim. Experiência e lições duras ensinaram-lhe que mesmo o que parecia ser um judeu octogenário tinha de ser visto como uma potencial ameaça. No entanto, qualquer inquietação que Gabriel estivesse a sentir evaporou-se rapidamente, ao ver Klein ligar praticamente todas as luzes do apartamento. Não era atitude de um homem que estivesse a preparar uma armadilha, pensou. Max Klein estava aterrorizado.
Gabriel seguiu-o até o interior do apartamento e fechou a porta. Sob a luz brilhante, finalmente conseguiu observá-lo bem. Os olhos vermelhos e remelosos de Klein eram ampliados por um par de grossos óculos pretos. A barba, espessa e branca, já não escondia as manchas de fígado nas suas faces. Gabriel sabia, mesmo antes de Klein lhe dizer, que era um sobrevivente. Fome, como balas e fogo, deixam cicatrizes. Gabriel tinha visto as diferentes versões do rosto na sua cidade rural do vale de Jezreel. Tinha-as visto nos seus pais. — Vou fazer um chá — anunciou Klein antes de desaparecer por um par de portas duplas para a cozinha.
Chá à meia-noite, pensou Gabriel. Ia ser uma noite longa. Aproximou-se da janela e afastou os estores. A neve tinha parado por agora, e a rua estava vazia. Sentou-se. A sala lembrava-lhe o escritório de Eli: o teto alto estilo século XIX, a maneira desordenada como os livros estavam arrumados nas prateleiras. Elegante desordem intelectual.
Klein voltou e colocou um serviço de chá em prata numa mesa baixa. Sentou-se em frente a Gabriel e observou-o em silêncio por um momento.
— Fala alemão bastante bem — disse finalmente. — De fato, fala como um berlinense.
— A minha mãe era de Berlim — disse Gabriel com franqueza mas eu nasci em Israel. Klein estudou-o cuidadosamente, como se também ele procurasse as cicatrizes de um sobrevivente. Em seguida levantou as palmas das mãos ironicamente, um convite a preencher os espaços em branco. Onde estava ela? Como é que ela sobreviveu? Estava num campo ou saiu antes da loucura?
— Ficaram em Berlim e depois foram deportados para os campos
— disse Gabriel. — O meu avô era um conhecido pintor. Nunca acreditou que os alemães, um povo que ele pensava ser o mais civilizado do mundo, fossem tão longe.
— Como se chamava o seu avô?
— Frankel — disse Gabriel, mais uma vez pendendo para a verdade.
— Viktor Frankel.
Klein acenou lentamente em reconhecimento do nome.
— Eu vi o seu trabalho. Era um discípulo de Max Beckmann, não era? Extremamente talentoso.
— Sim, é verdade. O seu trabalho foi considerado degenerado pelos nazistas logo no inicio e grande parte foi destruído. Também perdeu o emprego no instituto de arte em Berlim onde dava aulas.
— Mas ficou.
Klein abanou a cabeça.
— Ninguém acreditava que pudesse acontecer.
Parou um momento, os seus pensamentos estavam longe.
— Então o que lhes aconteceu?
— Foram deportados para Auschwitz. A minha mãe foi enviada para o campo de mulheres em Birkenau e conseguiu sobreviver mais de dois anos até ser libertada.
— E os seus avós?
— Caseados à chegada.
— Lembra-se da data?
— Penso que foi em Janeiro de 1943 — disse Gabriel.
Klein tapou os olhos.
— Há alguma coisa de significativa na data, Herr Klein?
— Sim — disse Klein de modo ausente. — Eu estava lá na noite em que os transportes chegaram de Berlim. Eu lembro-me muito bem. Sabe, Sr. Argov, eu era um violinista na orquestra do campo de Auschwitz. Toquei música para demônios numa orquestra de condenados. Toquei serenatas aos condenados enquanto se dirigiam lentamente para as câmaras de gás.
O rosto de Gabriel permaneceu tranquilo. Max Klein era claramente um homem com um grande sentimento de culpa. Acreditava que carregava a responsabilidade pela morte daqueles que desfilaram à sua frente para a câmara de gás. Era loucura, com certeza. Ele não era mais culpado que qualquer outro judeu que trabalhava como escravo nas fábricas ou nos campos de Auschwitz só para conseguir sobreviver mais um dia.
— Mas não foi essa a razão pela qual me abordou esta noite no hospital. Queria me dizer algo sobre o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein acenou com a cabeça.
— Como eu disse, isto é tudo culpa minha. Eu sou o responsável pela morte daquelas duas lindas moças. Eu sou a razão pela qual o seu amigo Eli Lavon está deitado naquela cama de hospital às portas da morte.
— Está dizendo que colocou a bomba? — perguntou Gabriel num tom propositadamente incrédulo para a questão soar irracional.
— Claro que não! — cortou Klein. — Mas temo ter iniciado uma cadeia de eventos que fez com que outros a colocassem lá.
— Por que não me diz simplesmente tudo o que sabe, Herr Klein? Deixe-me julgar quem é culpado.
— Só Deus pode julgar — disse Klein.
— Talvez, mas por vezes até Deus precisa de uma pequena ajuda.
Klein sorriu e serviu-se de chá. Em seguida contou a história desde o inicio. Gabriel esperou pelo seu momento e não o apressou. Eli Lavon teria jogado da mesma maneira. "Para os velhos, a memória é como uma pilha de porcelanas", Lavon dizia sempre. "Se tentas tirar um prato do meio, a coisa parte-se toda por ai abaixo."
O APARTAMENTO PERTENCERA AO PAI. Antes da guerra, Klein tinha lá vivido com os pais e duas irmãs mais novas. O pai, Solomon, era um bem-sucedido comerciante de têxteis, e os Klein viviam uma simpática existência de classe média-alta: lanches nas melhores pastelarias de Viena, serões no teatro ou na ópera, verões na modesta casa de campo da família no sul. O jovem Max Klein era um violinista promissor -Ainda não estava pronto para a sinfonia ou para a ópera, Sr. Argov, mas já era bom o suficiente para encontrar trabalho em pequenas orquestras de câmara vienenses.
— O meu pai, mesmo quando vinha cansado de trabalhar o dia todo, raramente perdia um concerto. — Klein sorriu pela primeira vez com a memória do seu pai a vê-lo tocar. — O fato de ter um filho músico em Viena deixava-o extremamente orgulhoso.
O seu mundo idílico teve um fim abrupto a 12 de Março de 1938. Era sábado — lembrou Klein — e para a esmagadora maioria dos austríacos, a visão das tropas da Wehrmacht a marchar pelas ruas de Viena era motivo de celebração.
— Para os judeus, Sr. Argov... para nós, apenas pavor.
Os piores medos da comunidade foram rapidamente concretizados. Na Alemanha, a ameaça aos judeus tinha sido empreendida gradualmente. Na Áustria, foi instantânea e selvagem. Em dias, todos os negócios judeus foram marcados com tinta vermelha. Todo o não judeu que entrasse era agredido por Camisas Castanhas e SS. Muitos eram obrigados a usar placas que declaravam: Eu, ariano porco, comprei numa loja judaica. Os judeus foram proibidos de ter propriedade, de ter emprego em qualquer profissão ou de empregar alguém, de entrar num restaurante ou pastelaria, de pisar os parques públicos de Viena. Os judeus foram proibidos de possuir máquinas de escrever ou rádios, porque isto poderia facilitar a comunicação com o mundo exterior. Os judeus foram arrastados das suas casas e sinagogas e espancados nas ruas.
— A 14 de Março, a Gestapo arrombou a porta deste apartamento e roubou os nossos bens mais valiosos: as nossas mantas, a nossa prata, os nossos quadros, até os nossos castiçais shabat. O meu pai e eu fomos levados sob custódia e forçados a esfregar os passeios com água a ferver e uma escova de dentes. O rabi da nossa sinagoga foi atirado violentamente para a rua e a sua barba arrancada do rosto enquanto uma multidão de austríacos olhava e zombava. Tentei impedi-los e fui espancado quase até a morte. Não podia ser levado a um hospital, claro. Era proibido pelas novas leis antissemitas.
Em menos de uma semana, a comunidade judaica da Áustria, uma das mais vitais e influentes de toda a Europa, foi feita em farrapos: centros comunitários e sociedades judaicas foram fechados, lideres na cadeia, sinagogas fechadas, livros de rezas queimados em grandes fogueiras ao ar livre. A 1 de Abril, cem figuras públicas notáveis foram deportadas para Dachau. Num mês, quinhentos judeus optaram pelo suicídio a ter de enfrentar mais um dia de tormento, incluindo uma família de quatro elementos, vizinha dos Klein.
— Mataram-se, um de cada vez — disse Klein. — Deitei-me na cama e ouvi tudo. Um tiro, seguido de choro. Outro tiro, mais choro. Depois do quarto tiro, não havia mais ninguém para chorar, ninguém exceto eu.
Mais de metade da comunidade decidiu deixar a Áustria e emigrar para outras terras. Max Klein estava entre eles. Conseguiu um visto para a Holanda e viajou para lá em 1939. Em menos de um ano já estava debaixo da bota nazista outra vez.
— O meu pai decidiu ficar em Viena — disse Klein. — Acreditava na lei, está vendo. Pensou que se simplesmente aderisse à lei, tudo iria correr bem, e a tempestade iria passar mais cedo ou mais tarde. Piorou, claro, e quando finalmente decidiu sair, já era demasiado tarde.
Klein tentou servir-se de mais uma xícara de chá, mas a sua mão tremia violentamente. Gabriel serviu-o gentilmente e perguntou o que tinha acontecido aos pais e às duas irmãs.
— No Outono de 1941, foram deportados para a Polônia e confinados no gueto judeu de Lodz. Em Janeiro de 1942, foram deportados pela derradeira vez para o campo de extermínio de Chelmno.
— E você?
A cabeça de Klein descaiu para o lado.
— E eu?
A mesma sorte, final diferente. Preso em Amsterdã em Junho de 1942, detido no campo de trânsito de Westerbork, em seguida enviado para leste, para Auschwitz. No caminho-de-ferro, meio-morto de sede e fome, uma voz. Um homem com vestes de prisioneiro anda a perguntar se há músicos no recém-chegado trem. Klein liga-se à voz, um homem perdido em busca de uma tábua de salvação. Sou violinista, disse ao homem às riscas. Tem algum instrumento? Levanta uma mala gasta, a única coisa que tinha trazido de Westerbork. Venha comigo. Este é o seu dia de sorte.
— O meu dia de sorte — repetiu Klein de modo ausente. — Nos dois anos e meio seguintes, enquanto mais de um milhão se esfuma, os meus colegas e eu tocamos música. Tocamos na rampa de seleção para ajudar os nazistas a criar a ilusão que os recém-chegados vieram para um lugar agradável. Tocamos enquanto os mortos-vivos se arquivam nas câmaras de despir. Tocamos no pátio durante as intermináveis chamadas. De manhã, tocamos enquanto os escravos alinham para o trabalho, e de tarde, enquanto cambaleiam de volta às casernas com a morte nos olhos, estamos a tocar. Tocamos antes das execuções. Aos domingos tocamos para o Kommandant e o seu pessoal. O suicídio mingua continuamente o nosso grupo. Em breve sou eu que trabalho a multidão na rampa, em busca de músicos para preencher as cadeiras vazias.
Um domingo de tarde. E algures durante o Verão de 1942, mas peço desculpa Sr. Argov, não me recordo da data exata. Klein está a regressar à sua caserna depois do concerto de domingo. Um oficial das SS aparece por trás e empurra-o para o chão. Klein levanta-se e fica em sentido, evitando olhar o SS nos olhos. Mesmo assim, vê o suficiente do rosto para perceber que já encontrou aquele homem antes. Foi em Viena, no Departamento Central de Emigração Judaica, mas nesse dia ele vestia um fino terno cinza e estava ao lado de nada menos que Adolf Eichmann.
— O Sturmbannführer disse-me que gostaria de fazer uma experiência — disse Klein. — Ordenou-me que tocasse a Sonata Nº 1 de Brahms para Violino e Piano em Sol Maior. Retiro o violino da caixa e começo a tocar. Um colega passa. O Sturmbannführer pergunta-lhe o nome da peça que estou a tocar. O colega diz que não sabe. O Sturmbannfuhrer saca da pistola e dá-lhe um tiro na cabeça. Encontra outro colega e coloca a mesma questão. Que peça está este belo violinista a tocar? E assim prossegue durante a próxima hora. Os que conseguem responder corretamente são poupados. Os que não conseguem, ele dá-lhes um tiro na cabeça. Quando acabou, quinze corpos estão estendidos a meus pés. Quando a sua sede de sangue judeu está satisfeita, o homem de negro sorri e afasta-se. Eu deitei-me com os mortos e disse-lhes as palavras de luto Kadish.
KLEIN FEZ UM LONGO SILÊNCIO. O som sibilante de um carro ouviu-se vindo da rua. Klein levantou a cabeça e recomeçou a falar. Ainda não estava totalmente pronto para estabelecer a ligação entre a atrocidade de Auschwitz e o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações, embora agora Gabriel tivesse uma clara ideia de onde a história o iria levar. Continuou, cronologicamente, uma porcelana de cada vez, como Lavon teria dito. Sobrevivência em Auschwitz. Libertação. O seu regresso a Viena... A comunidade contava 185 000 antes da guerra, disse. Sessenta e cinco mil morreram no Holocausto. Mil e setecentas almas despedaçadas vieram aos tropeções de volta para Viena em 1945, apenas para serem saudadas com hostilidade aberta e uma nova onda antissemita. Aqueles que emigraram sob a ameaça de uma arma alemã sentiram-se desencorajados a voltar. Exigências de restituição financeira eram respondidas com silêncio ou eram sarcasticamente desviadas para Berlim. Klein, regressando à sua casa no Segundo Bairro, encontrou uma família austríaca a viver no apartamento. Quando lhes pediu que saíssem, recusaram-se. Levou uma década até arrancá-los de lá. Quanto ao negócio têxtil de seu pai, desaparecera para sempre e nenhuma restituição foi jamais efetuada. Amigos encorajaram-no a ir para Israel ou para a América. Klein recusou. Jurou permanecer em Viena, como uma memória viva, que respira, que anda, para todos aqueles que foram expulsos ou assassinados nos campos da morte. Deixou seu violino para trás, em Auschwitz, e nunca mais voltou a tocar. Ganhava a vida trabalhando ao balcão de uma loja de tecidos, e mais tarde como vendedor de seguros. Em 1995, no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, o governo concordou em pagar a cada judeu austríaco sobrevivente seis mil dólares aproximadamente. Klein mostrou a Gabriel o cheque. Nunca tinha sido descontado.
— Não quero o dinheiro deles — disse. — Seis mil dólares? Pelo quê? Pela minha mãe e meu pai? Pelas minhas duas irmãs? Pela minha casa? Pelos meus bens?
Jogou o cheque na mesa. Gabriel olhou o relógio de pulso e viu que já eram duas e meia da manhã. Klein estava acabando, rodeando o assunto principal.
Gabriel resistiu ao impulso de lhe dar uma cotovelada, com medo que o velho homem, no seu estado precário, pudesse tropeçar e não recuperasse o passo.
— Há dois meses, parei no Café Central. Deram-me uma agradável mesa junto a um pilar. Pedi um Pharisäer.
Fez uma pausa e levantou o sobrolho.
— Sabe o que é um Pharisäer., Sr. Argov? Café com chantilly e um pequeno copo de rum.
Pediu desculpas pela bebida alcoólica.
— Foi no fim da tarde, sabe, estava frio.
Um homem entra no café, alto, bem vestido, uns anos mais velho que Klein.
— Um austríaco da velha escola, se me compreende, Sr. Argov. Há uma arrogância no seu andar que faz com que Klein baixe o seu jornal. O garçom apressa-se na sua direção para o cumprimentar enquanto esfrega as mãos avidamente, esperando passo a passo como um menino de escola aflito para mijar. Boa tarde, Herr Vogel. Já estava a pensar que não o iria ver hoje. A sua mesa do costume? Deixe-me adivinhar: um café com creme? E que tal um doce? Disseram-me que a torta de chocolate está maravilhosa hoje, Herr Vogel... Então o velho diz umas palavras e Max Klein sente a espinha gelar. É a mesma voz que lhe ordenou que tocasse Brahms em Auschwitz, a mesma voz que calmamente perguntou aos colegas de Klein que identificassem a peça ou sofressem as consequências. E aqui estava o assassino, próspero e saudável, pedindo um café com creme e uma torta de chocolate no Central.
— Senti vontade de vomitar — disse Klein. — Joguei dinheiro na mesa e corri para fora do Café. Olhei uma vez pela janela e vi o monstro chamado Herr Vogel lendo o jornal. Foi como se o encontro nunca tivesse acontecido na realidade.
Gabriel resistiu ao impulso de perguntar como, depois de tanto tempo, Klein podia ter tanta certeza de que o homem do Café Central era o mesmo de Auschwitz sessenta anos antes. Se Klein estava certo ou errado não era tão importante como o que aconteceu a seguir.
— O que fez depois disso, Herr Klein?
— Tornei-me cliente regular do Café Central. Em breve, também eu era cumprimentado pelo nome. Em breve, também eu tinha a mesa de costume, bem ao lado do distinto Herr Vogel. Começamos a dar boa-tarde um ao outro. Às vezes, enquanto líamos o jornal, conversávamos sobre política e as coisas do mundo. Apesar da idade, sua mente era muito aguçada. Disse-me que era um homem de negócios, investidor ou algo assim.
— E quando soube o máximo que pôde tomando café ao lado dele, foi ver Eli Lavon ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra?
Klein anuiu lentamente com a cabeça.
— Ele ouviu a minha história e prometeu investigar. Entretanto pediu que parasse de frequentar o Café Central. Fiquei relutante. Tinha medo de que ele escapasse novamente. Mas fiz o que seu amigo pediu.
— E depois?
— Passaram-se algumas semanas. Finalmente recebo uma chamada. Era uma das moças do escritório, a americana chamada Sarah. Informou que Eli Lavon tinha novidades para mim. Pediu que fosse até o escritório na manhã seguinte às dez. Disse-lhe que lá estaria, e desliguei o telefone.
— Quando foi isso?
— No mesmo dia do atentado.
— Contou alguma coisa à policia?
Klein disse que não, abanando a cabeça.
— Como deve calcular, Sr. Argov, não sou grande fã de austríacos fardados. Também tenho a noção do registro esfarrapado que o meu pais tem quando se trata de perseguir criminosos de guerra. Fiquei em silêncio. Fui ao Hospital Geral de Viena e observei os oficiais israelenses a entrar e a sair. Quando chegou o embaixador, tentei aproximar-me dele, mas fui afastado pelos seguranças. Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia ser. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
O APARTAMENTO do outro lado da rua era idêntico ao de Max Klein. No segundo andar estava um homem, na janela escura, com uma câmara encostada ao olho. Focou a lente
na figura que caminhava a passos largos pela entrada do prédio de Klein até a rua. Tirou uma série de fotografias, em seguida baixou a câmara e sentou-se em frente a um gravador. No escuro, levou algum tempo até encontrar o botão de PLAY.
— Então esperei até que surgisse a pessoa certa. Você parecia sê-lo. É você a pessoa certa, Sr. Argov?
— Sim, Herr Klein. Sou a pessoa certa. Não se preocupe, eu vou ajudá-lo.
— Na da disto teria acontecido se não tivesse sido eu. Aquelas moças estão mortas por minha causa. Eli Lavon está naquele hospital por minha causa.
— Isso não é verdade. Não fez nada de errado. Mas pelos acontecimentos recentes, estou preocupado com a sua segurança.
— Também eu.
— Tem andado alguém a segui-lo?
— Não que eu tenha reparado, mas não tenho certeza se saberia caso andassem.
— Recebeu algum telefonema ameaçador?
— Não.
— Alguém, seja quem for, tentou contatá-lo desde o atentado?
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
STOP. REWIND. PLAY.
— Só uma pessoa, uma mulher chamada Renate Hoffmann.
— Conhece-a?
— Não, nunca ouvi falar dela.
— Falou com ela?
— Não, deixou uma mensagem no meu gravador.
— O que queria?
— Falar.
— Deixou algum contato?
— Sim, eu tomei nota. Espere só um minuto. Sim, aqui está. Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP. REWIND. PLAY.
— Renate Hoffmann, cinco-três-três-um-nove-zero-sete.
STOP.
6
VIENA
A COLIGAÇÃO para Uma Áustria Melhor tinha todas as caraterísticas de uma causa nobre sem esperança. Estava localizada no segundo andar de um velho armazém em ruínas do Vigésimo Bairro, com janelas cobertas de fuligem e vista para a gare dos caminhos-de-ferro. O espaço de trabalho era aberto, amplo e impossível de aquecer devidamente. Gabriel, ao chegar lá na manhã seguinte, encontrou grande parte do jovem staff usando camisolas grossas e gorros de lã.
Renate Hoffmann era a diretora jurídica do grupo. Gabriel telefonou-lhe de manhã cedo, fazendo-se passar por Gideon Argov de Jerusalém, e falou-lhe do encontro que tivera na noite anterior com Max Klein. Renate Hoffmann concordou imediatamente em encontrar-se com ele, em seguida desligou, como se estivesse reticente em discutir o assunto via telefone.
Tinha um cubículo como escritório. Quando Gabriel apareceu, estava ao telefone. Apontou para uma cadeira vazia com a ponta de uma caneta mastigada. Um momento mais tarde, concluiu a conversa e levantou-se para o cumprimentar. Era alta e mais bem vestida que o resto do staff: camisola e saia pretas, meias pretas, sapatos rasos pretos. O cabelo era aloirado e não chegava a tocar nos ombros largos e atléticos. De risca ao lado, caia naturalmente pelo rosto, segurava uma incômoda madeixa com a mão esquerda enquanto a direita apertava firmemente a mão de Gabriel. Não tinha anéis nos dedos, não tinha maquiagem no seu atraente rosto, e nenhum outro perfume que não o cheiro do tabaco. Gabriel calculou que ela ainda não teria chegado aos trinta e cinco. Voltaram a sentar-se, e ela colocou uma série de questões bruscas ao estilo de advogado. Há quanto tempo conhecia Eli Lavon? Como encontrara Max Klein? O que é que ele lhe dissera? Quando chegara a Viena? Com quem se encontrara? Já discutira o assunto com as autoridades austríacas? Com oficiais da embaixada israelense? Gabriel sentiu-se um pouco como um acusado em tribunal, contudo suas respostas eram educadas e tão exatas quanto possível.
Renate Hoffmann, completando o seu exame cruzado, fitou-o incrédula por um momento. Em seguida levantou-se de repente e vestiu um longo sobretudo cinza com grandes enchumaces.
— Vamos dar um passeio.
Gabriel olhou para a rua pelas janelas manchadas de fuligem e viu que estava a cair neve misturada com chuva. Renate Hoffmann enfiou algumas pastas dentro de uma mala de pele e colocou-a ao ombro.
— Confie em mim — disse, sentindo alguma apreensão por parte dele. — É melhor se andarmos.
RENATE HOFFMAN, PELOS trilhos gelados da Augarten, explicou a Gabriel como se havia tornado no trunfo mais precioso de Eli Lavon em Viena. Depois de se formar como uma das melhores na Universidade de Viena, fora trabalhar para o Ministério Público Austríaco, onde serviu excepcionalmente durante sete anos. Então, há cinco anos, tinha-se despedido, dizendo a amigos e colegas que ansiava pela liberdade da prática privada. Na verdade, Renate Hoffmann tinha decidido que não podia continuar a trabalhar para um governo que mostrava pouco interesse pela justiça e preferia proteger os interesses do Estado e dos seus mais poderosos cidadãos.
Foi o caso Weller que lhe motivou a decisão. Weller era um detective da policia estatal com uma predileção para arrancar confissões a prisioneiros pela tortura e para fazer justiça pelas próprias mãos quando o tribunal se mostrava inconveniente. Renate Hoffmann tentou apresentar queixa dele depois de um nigeriano que procurava asilo ter morrido sob a sua custódia. O nigeriano fora amarrado e amordaçado e havia provas de espancamento e estrangulamento. Os seus superiores defenderam Weller e abandonaram o caso.
Cansada de lutar contra o sistema a partir de dentro, Renate Hoffmann chegou à conclusão que a batalha seria mais equilibrada se travada do lado de fora. Criou uma pequena empresa de advogados para poder pagar as contas, mas dispensava grande parte do seu tempo e energia à Coligação para Uma Áustria Melhor, um grupo reformista disposto a abanar o pais em relação à amnésia coletiva do passado nazista. Simultaneamente, formou também uma silenciosa aliança com o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra de Eli Lavon. Renate Hoffmann ainda tinha amigos dentro do sistema burocrático, amigos dispostos a fazer-lhe favores. Estes amigos deram-lhe acesso a registros governamentais e arquivos vitais que estavam inacessíveis a Lavon.
— Por que tanto segredo? — perguntou Gabriel. — A relutância em falar ao telefone? Longas caminhadas no parque quando o tempo está absolutamente horrível?
— Porque isto é a Áustria, Sr. Argov. Desnecessário dizer que o trabalho que fazemos não é muito bem visto em certas áreas da sociedade austríaca, como Eli também não era.
Apanhou-se a falar no passado e desculpou-se rapidamente.
— A extrema-direita deste pais não gosta de nós, e estão fortemente representados na policia e nos serviços de segurança.
Sacudiu alguns flocos de neve de um banco de jardim onde os dois se sentaram.
— O Eli veio ter comigo há cerca de dois meses. Falou-me de Max Klein e do homem que ele vira no Café Central: Herr Vogel. Estava um pouco céptica, para não dizer pior, mas decidi investigar para fazer o favor ao Eli.
— O que encontrou?
— O seu nome é Ludwig Vogel. É o presidente de qualquer coisa chamada Vale do Danúbio Transações e Investimentos. A firma foi fundada no inicio dos anos sessenta, alguns anos após a Áustria ter emergido da ocupação do pós-guerra. Importava produtos estrangeiros para a Áustria e auxiliava empresas que quisessem fazer negócio aqui, principalmente alemãs e americanas. Quando a economia austríaca disparou nos anos setenta, Vogel estava perfeitamente posicionado para tirar pleno partido da situação. A sua firma providenciou capital de risco a centenas de projetos. É agora dono de uma fatia substancial em muitas das mais rentáveis empresas austríacas.
— Que idade tem ele?
— Nasceu numa pequena aldeia da Alta Áustria em 1925 e foi batizado na igreja católica local. O seu pai era um trabalhador normal. Aparentemente a família era pobre. Um irmão mais novo morreu de pneumonia quando Ludwig tinha doze anos . A mãe morreu dois anos mais tarde de escarlatina.
— Mil, novecentos e vinte e cinco? Isso faz com que tivesse dezessete anos em 1942, demasiado novo para ser um Sturmbannführer nas SS.
— É verdade. E de acordo com a informação que descobri sobre o seu histórico de guerra, ele não esteve nas SS.
— Que tipo de informação?
Ela baixou a voz e inclinou-se para perto dele. Gabriel sentiu o cheiro do café matinal no seu hálito.
— No meu emprego anterior, por vezes achei necessário consultar pastas guardadas no Staatsarchiv austríaco. Ainda tenho lá contatos, do gênero de pessoas que estão dispostas a ajudar-me pelas circunstâncias corretas. Telefonei a um desses contatos, e consegui uma fotocópia do arquivo de serviço Wehrmacht de Ludwig Vogel.
— Wehrmacht?
Ela abanou a cabeça.
— De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel foi recrutado em finais de 1944, quando tinha dezanove, e enviado para a Alemanha para servir na defesa do Reich. Lutou contra os russos na batalha de Berlim e conseguiu sobreviver. Durante as horas finais da guerra, ele fugiu para oeste e rendeu-se aos americanos. Foi colocado num campo de prisioneiros do exército americano a Sul de Berlim, mas conseguiu escapar e regressar à Áustria. O fato de ter escapado aos americanos não parece abonar contra ele, porque desde 1946 até o Tratado Estatal de 1955, Vogel foi um funcionário civil da autoridade de ocupação americana.
Gabriel olhou para ela acutilante.
— Os americanos? Que tipo de trabalho fazia ele?
— Começou como escriturário na sede e mais tarde trabalhou como oficial de ligação entre os americanos e o inexperiente governo austríaco.
— Casado? Filhos? Ela abanou a cabeça.
— Um eterno solteiro.
— Alguma vez esteve em sarilhos? Qualquer tipo de irregularidades financeiras? Processos civis? Alguma coisa?
— O seu cadastro é notavelmente limpo. Tenho outro amigo na Staatspolizei. Pedi-lhe para investigar Vogel. Não encontrou nada, o que de certo modo é notável. Sabe, quase todo o cidadão distinto na Áustria tem um cadastro na Staatspolizei. Mas não Ludwig Vogel.
— O que sabe sobre a sua conduta?
Renate Hoffmann dispensou um longo momento observando a toda a volta antes de responder.
— Coloquei essa mesma questão a alguns contatos que tenho nalguns dos mais corajosos jornais e revistas vienenses, aqueles que recusam submeter-se à linha do governo. Parece que Vogel é um grande suporte financeiro do Partido Nacional Austríaco. De fato, ele próprio praticamente financiou a campanha de Peter Metzler.
Parou por instantes para acender um cigarro. A sua mão tremia com o frio.
— Não sei se tem seguido a nossa campanha aqui, mas a não ser que as coisas mudem drasticamente nas próximas três semanas, Peter Metzler vai ser o próximo chanceler da Áustria.
Gabriel mantinha-se em silêncio, absorvendo a informação que tinha acabado de receber. Renate Hoffmann deu apenas uma baforada no cigarro e atirou-o para cima de um monte de neve suja.
— Perguntou-me porque estávamos a sair com um tempo destes, Sr. Argov. Agora já sabe.
ELA SE LEVANTOU sem avisar e começou a caminhar. Gabriel pôs-se de pé e seguiu-a. Não se precipite, pensou. Uma teoria interessante, um tentador conjunto de circunstâncias, mas não há provas e um enorme processo que o iliba. De acordo com os arquivos da Staatsarchiv, Ludwig Vogel não poderia ser o homem que Max Klein acusava.
— Seria possível que Vogel soubesse que Eli investigava seu passado?
— Também pensei nisso — disse Renate Hoffmann. — Creio ser possível que alguém do Staatsarchiv ou da Staatspolizei o tenha avisado da minha investigação.
— Mesmo que Ludwig Vogel fosse realmente o homem que Max Klein viu em Auschwitz, o que poderia lhe acontecer agora, sessenta anos depois do crime?
— Na Áustria? Um grandessíssimo nada. Quando se trata de condenar criminosos de guerra, o registro austríaco é vergonhoso. Na minha opinião, era praticamente um porto seguro para os criminosos de guerra nazistas. Alguma vez ouviu falar no doutor Heinrich Gross?
Gabriel abanou a cabeça.
— Heinrich Gross — disse ela — era um médico na clinica Spiegelgrund para crianças deficientes. Durante a guerra, a clinica serviu de centro de eutanásia onde a erradicação do "genótipo patológico", da doutrina nazista, era posta em prática. Cerca de oitocentas crianças foram lá assassinadas. Depois da guerra, Gross teve uma distinta carreira como neurologista pediátrico. Muitas das suas pesquisas foram feitas em tecido cerebral que tirou das vitimas de Spiegelgrund e que guardava numa elaborada "livraria de cérebros". Em 2000, o promotor de justiça austríaco decidiu finalmente que estava na altura de levar Gross à justiça. Foi acusado de cumplicidade em nove dos assassinatos efetuados na Spiegelgrund e conduzido a tribunal.
Uma hora de julgamento e o juiz decretou que Gross sofria de um estado precoce de demência e não estava em condições de se defender num tribunal — disse Renate Hoffmann. — Suspendeu o caso indefinidamente. O doutor Gross levantou-se, sorriu para o seu advogado e caminhou para fora do tribunal. Na escadaria, falou com os repórteres sobre o seu caso. Era claríssimo que o doutor Gross estava em plenas capacidades mentais.
— O seu ponto de vista?
— Os alemães gostam de dizer que só a Áustria conseguia convencer o mundo que Beethoven era austríaco e Hitler alemão. Gostamos de fingir que fomos a primeira vitima de Hitler em vez do seu prestável cúmplice. Preferimos não lembrar que os austríacos alistaram-se no partido nazista na mesma percentagem que os nossos primos alemães, ou que a representação austríaca nas SS era desproporcionadamente alta. Preferimos não lembrar que Adolf Eichmann era austríaco, ou que oitenta por cento do seu pessoal era austríaco, ou que setenta e cinco por cento dos comandantes dos seus campos de concentração eram austríacos.
Baixou a voz.
— O doutor Gross era protegido pela elite politica austríaca e pelo sistema judicial há décadas. Foi membro de prestigio do Partido Socialdemocrata, e ainda serviu como psiquiatra forense de tribunal. Toda a gente na comunidade médica vienense sabia a origem da designada livraria de cérebros do bom doutor, e toda a gente sabia o que ele fizera durante a guerra. Um homem como Ludwig Vogel, mesmo que fosse exposto como um mentiroso, podia esperar tratamento semelhante. As hipóteses de ele enfrentar um julgamento na Áustria pelos seus crimes seriam zero.
— Supondo que ele sabia da investigação de Eli? O que é que ele podia temer?
— Nada, para além do embaraço de ser exposto.
— Sabe onde ele vive?
Renate Hoffmann escondeu alguns cabelos perdidos debaixo da banda da sua boina e olhou para ele cuidadosamente.
— Não está a pensar tentar encontrar-se com ele, está, Sr. Argov? Dadas as circunstâncias, isso seria uma ideia incrivelmente insensata.
— Só quero saber onde ele mora?
— Ele tem uma casa no Primeiro Bairro, e outra nos bosques de Viena. Segundo os registros imobiliários, é também proprietário de algumas centenas de hectares e de um chalé na Alta Áustria.
Gabriel, depois de olhar por cima do ombro, perguntou a Renate Hoffmann se podia ter uma cópia de todos os documentos que ela arranjara. Ela baixou o olhar em direção aos pés, como se estivesse à espera dessa pergunta.
— Diga-me uma coisa, Sr. Argov. Em todos os anos que trabalhei com o Eli, ele nunca mencionou o fato de o Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra ter uma sucursal em Jerusalém.
— Abriu recentemente.
— Que conveniente.
A sua voz era carregada de sarcasmo.
— Esses documentos estão em minha posse ilegalmente. Se os entrego a um agente de um governo estrangeiro a minha posição vai ficar ainda mais precária. Se os entregar a si, estou a entregá-los a um agente de um governo estrangeiro? Renate Hoffmann, constatou Gabriel, era uma mulher altamente inteligente e esperta.
— Está a entregá-las a um amigo, menina Hoffmann, um amigo que não fará absolutamente nada que possa comprometer a sua posição.
— Sabe o que pode acontecer se for preso pela Staatspolizei na posse de documentos confidenciais do Staatsarchiv? Vai passar um longo período atrás das grades.
Olhou-o diretamente nos olhos.
— E eu também, se eles descobrirem onde os arranjou.
— Não pretendo ser preso pela Staatspolizei.
— Nunca ninguém faz, mas isto é a Áustria, Sr. Argov. A nossa policia não se rege pelas mesmas regras dos seus parceiros europeus.
Meteu a mão dentro da bolsa e retirou um envelope de papel pardo que entregou a Gabriel. Desapareceu dentro de uma abertura do casaco e continuaram a andar.
— Eu não acredito que você seja Gideon Argov de Jerusalém. É por isso que lhe entreguei a pasta. Não há mais nada que eu possa fazer, não nesta situação. No entanto, prometa-me que vai avançar com cuidado. Não quero que a Coligação e o seu pessoal sofram o mesmo destino que o Escritório de Investigação e Reclamações.
Parou de andar e virou-se brevemente para ficar frente a frente com ele.
— E mais uma coisa, Sr. Argov. Não me volte a ligar, por favor.
A CARRINHA DE VIGILÂNCIA encontrava-se estacionada no limite do Augarten, na
Wasnergasse. O fotógrafo, escondido pelos vidros espelhados da parte de trás, disparou uma última fotografia enquanto os sujeitos se separavam, em seguida descarregou as fotos para um computador portátil e reviu as imagens. Aquela que mostrava o envelope a trocar de mãos tinha sido tirada por trás. Bem enquadrada, bem iluminada, uma beleza.
7
VIENA
UMA HORA MAIS TARDE, num edifício neo-barroco anônimo da Ringstrasse, a fotografia é entregue no escritório de um homem chamado Manfred Kruz. Fechada num envelope de papel pardo sem identificação, foi entregue a Kruz sem comentários por sua atraente secretária. Como de costume vestia um terno preto e camisa branca. A face plácida e maçãs do rosto proeminentes, combinadas com o habitual ar sombrio, davam-lhe um ar cavernoso que desencorajava subalternos. As suas feições mediterrânicas — o cabelo quase preto, a pele esverdeada, e olhos cor de café — deram origem a rumores dentro do serviço sobre se teria um cigano ou talvez um judeu infiltrado na sua linhagem. Era uma calúnia, avançada pela sua legião de inimigos, e Kruz não achava piada. Ele não era muito popular entre as tropas, mas também não se importava muito. Kruz tinha bons contatos: almoço com o ministro uma vez por semana, amigos na elite rica e politica. Faz de Kruz um inimigo e podes subitamente encontrar-te a passar multas de estacionamento na região da Carintia. A sua unidade era conhecida oficialmente como Departamento Cinco, mas pelos oficiais veteranos da Staatspolizei e seus mestres no Ministério do Interior era referido simplesmente como "a gangue de Kruz". Em momentos de auto enaltecimento, um delito de que Kruz se declarava culpado, imaginava-se a ele próprio o protetor de todas as coisas austríacas. O trabalho de Kruz era garantir que os problemas do mundo não penetravam as fronteiras da tranquila Österreich. O Departamento Cinco era responsável por contraterrorismo, contra extremismo e contraespionagem. Manfred Kruz tinha poder para colocar aparelhos de escuta em escritórios e telefones, para abrir correio e providenciar vigilância física. Estrangeiros que viessem à Áustria à procura de sarilhos podiam esperar a visita de um dos homens de Kruz. Até os naturais da Áustria cujas atividades politicas divergissem das linhas estabelecidas.
Havia pouca coisa a acontecer dentro do pais de que ele não estivesse a par, incluindo a recente aparição em Viena de um israelense que dizia ser colega de Eli Lavon do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra.
A natural falta de confiança de Kruz nas pessoas estendia-se à sua secretária. Esperou até ela sair da sala para rasgar o envelope e sacudir a foto na mesa. Caiu virada para baixo. Voltou-a, colocou-a sob a luz brilhante do seu abajur de lâmpada alógena e examinou-a cuidadosamente. Kruz não estava interessado em Renate Hoffmann. Ela era sujeita a vigilância frequente pelo Departamento Cinco, e Kruz havia dispendido mais tempo do que gostaria a estudar fotografias de vigilância e a escutar transcritos de atividades nas instalações da Coligação para Uma Áustria Melhor. Não, Kruz estava mais interessado na escura, compacta figura a caminhar a seu lado, o homem que se dizia chamar Gideon Argov.
Passado um momento levantou-se e manuseou a fechadura do cofre de parede por trás da sua mesa. No interior, no meio de uma pilha de pastas de processos e um maço de cheirosas cartas de amor de uma moça que trabalhara na contabilidade, estava a fita de um interrogatório. Kruz olhou para a data na etiqueta -Janeiro 1991 em seguida inseriu a fita no vídeo e carregou no botão PLAY.
A gravação tremeu durante alguns frames até estabilizar. A câmara tinha sido montada num ponto alto num canto da sala de interrogatórios, onde a parede se encontrava com o teto, para que observasse em direção aos acontecimentos de um ângulo obliquo. A imagem tinha algum grão, a tecnologia de outra geração. Movendo-se pela sala com uma calma ameaçadora estava uma versão mais jovem de Kruz. Sentado na mesa de interrogatório estava o israelense, as suas mãos enegrecidas pelo fogo, os seus olhos pela morte. Kruz tinha quase a certeza tratar-se do mesmo homem que agora dizia chamar-se Gideon Argov. Contrariamente ao habitual, era o israelense, e não Kruz, que tinha a primeira pergunta. Agora, como na altura, Kruz era apanhado de surpresa pelo alemão perfeito, falado com o distinto sotaque de um berlinense.
— Onde está o meu filho?
— Temo que esteja morto.
— E a minha mulher?
— A sua mulher está gravemente ferida. Necessita de cuidados médicos imediatos.
— Então porque não está a recebê-los?
— Antes de ser tratada, precisamos de informações.
— Porque não está a ser tratada já? Onde está ela?
— Não se preocupe, ela está em boas mãos. Só precisamos que responda a algumas questões.
— Tais como?
— Pode começar por nos dizer quem realmente é. E por favor, não nos minta mais. A sua mulher não tem muito tempo.
— Já me perguntaram o nome cem vezes! Você sabe o meu nome! Meu Deus, deem-lhe a ajuda que ela precisa.
— Daremos, mas primeiro diga-nos o seu nome. O seu nome verdadeiro, desta vez. Não mais pseudônimos, ou nomes falsos. Não temos tempo, não se for para a sua mulher viver.
— O meu nome é Gabriel, sua besta!
— É o seu primeiro nome ou o apelido?
— O primeiro.
— E o apelido?
— Allon.
— Allon? Isso é um nome hebraico, não é? Você é judeu. E também é, suspeito eu, israelense.
— Sim, sou israelense.
— Se é israelense, o que está fazendo em Viena com um passaporte italiano?
Obviamente que é um agente secreto israelense. Para quem trabalha, sr. Allon? O que está fazendo aqui?
— Ligue ao embaixador. Ele saberá quem contatar.
— Chamaremos o seu embaixador. E o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
E o seu primeiro-ministro. Mas agora, se quer que a sua mulher receba o tratamento médico de que tão desesperadamente precisa, vai dizer para quem trabalha e porque está em Viena.
— Ligue ao embaixador! Ajude a minha mulher, maldito!
— Para quem trabalha!
— Sabe para quem trabalho! Ajude a minha mulher. Não a deixe morrer!
— A vida dela está nas suas mãos, Sr. Allon.
— Estás morto, meu filho da puta! Se a minha mulher morre esta noite, estás morto. Estás a ouvir? Estás fodido!
A fita dissolveu-se numa tempestade de chuva. Kruz sentou-se durante um longo período, incapaz de tirar os olhos da tela. Finalmente comutou o telefone para linha segura e digitou um número de cabeça. Reconheceu a voz que o atendeu. Não trocara saudações.
— Parece-me que estamos com um problema.
— Diz-me. , Kruz assim fez.
— Porque não o prendes? Ele está ilegal neste pais, com um passaporte falso,
e em violação de um acordo feito entre o teu serviço e o dele.
— E depois? Entrego-o ao Ministério Público para que o levem a julgamento? Algo me diz que ele poderá usar isso em seu beneficio.
— O que estás a sugerir?
— Algo mais sutil.
— Considera o israelense um problema teu, Manfred. Lida com ele.
— E quanto a Max Klein?
A linha emudeceu. Kruz desligou o telefone.
NUM LUGAR ISOLADO do Bairro de Stephansdom, na sombra da torre norte da Catedral, há uma ruela estreita em que só é permitida a circulação de peões. À entrada da ruela, no piso térreo de uma imponente casa barroca, há uma pequena loja que não vende mais nada senão relógios antigos de colecionador. A tabuleta acima da porta é discreta, o horário da loja imprevisível. Há dias em que nem chega a abrir. Para um restrito grupo de clientes, ele é conhecido como Herr Gruber. Para outros, o Relojoeiro.
É baixo e musculado. Prefere camisolões e casacos de malha largos, porque camisas formais e gravatas não lhe ficam particularmente bem. É careca, com uma franja de cabelo cinza cortado, as sobrancelhas são espessas e negras. Usa óculos redondos com hastes de tartaruguinha. As suas mãos são maiores do que as dos colegas de profissão, mas habilidosas e altamente experientes. Na sua oficina reina a organização de uma sala de operações. Na bancada de trabalho, numa piscina de luz clara, está um relógio de parede Neuchatel com 200 anos. A caixa de três partes, decorada com camafeus de padrões floridos, encontra-se em perfeitas condições, assim como o mostrador de esmalte com números romanos. O Relojoeiro encontrava-se na fase final de uma exaustiva vistoria ao movimento do pêndulo Neuchatel. A peça acabada chegaria perto dos dez mil dólares. Um comprador, um colecionador de Lyon, estava à espera.
O sino à entrada da porta da loja interrompeu o trabalho do Relojoeiro. Meteu a cabeça em volta da ombreira da porta e viu uma figura na rua, um estafeta de moto com o seu casaco de couro molhado pela chuva a reluzir como a pele de uma foca. Tinha um pacote debaixo do braço. O Relojoeiro dirigiu-se à porta e destrancou-a. O estafeta entregou o pacote sem dizer uma palavra, em seguida subiu para a moto e arrancou.
Em seguida voltou a trancar a porta e levou o pacote para a sua bancada de trabalho. Desembrulhou-o lentamente — na verdade, ele fazia quase tudo lentamente — e levantou a tampa de uma caixa de cartão. Dentro estava um relógio de parede francês Luis XV Deveras encantador. Removeu o invólucro e expôs o mecanismo. O dossiê e a fotografia estavam no seu interior. Dispensou alguns minutos a rever o documento, em seguida escondeu-o dentro de uma grande caixa intitulada Relógios de Viagem da Época Vitoriana.
O Luís XV tinha sido entregue pelo cliente mais importante do Relojoeiro. Não sabia o seu nome, apenas que era rico e politicamente bem relacionado. Muitos dos seus clientes partilhavam esses dois atributos. No entanto, este era diferente. Um ano atrás dera ao Relojoeiro uma lista de nomes, homens dispersos da Europa ao Oriente Médio, até a América do Sul e estava a trabalhar a lista com firmeza, por ordem descendente. Matou um homem em Damasco, outro no Cairo. Matou um francês em Bordéus e um espanhol em Madrid. Atravessou o Atlântico para matar dois argentinos ricos. Um nome ainda estava na lista, um banqueiro suíço de Zurique. O Relojoeiro ainda não tinha recebido o sinal final para prosseguir contra ele. O dossiê que tinha recebido esta noite continha um novo nome, mais perto de casa do que preferia, mas dificilmente um desafio. Decidiu aceitar a missão.
Pegou no telefone e ligou.
— Recebi o relógio. Quando precisa dele pronto?
— Considere uma reparação de emergência.
— Há uma sobretaxa para reparações de emergência. Assumo que esteja disposto a pagá-la?
— Quanto é a sobretaxa?
— Os meus honorários habituais, mais metade.
— Para este trabalho?
— Quere-o feito ou não?
— Vou enviar a primeira metade de manhã.
— Não, vai enviar esta noite.
— Se insiste.
O Relojoeiro desligou o telefone ao mesmo tempo que cem sinos tocaram em conjunto às quatro da tarde.
8
VIENA
GABRIEL NUNCA FOI fã de pastelarias vienenses. Havia algo no cheiro
— uma mistura de tabaco, café, e licor entranhado — que ele achava desagradável. E embora ele fosse sereno e sossegado por natureza, não gostava de ficar sentado por longos períodos, desperdiçando tempo precioso. Não lia em público porque temia que velhos inimigos estivessem a segui-lo furtivamente. Bebia café apenas de manhã, para o ajudar a acordar, e sobremesas suculentas punham-no doente. Conversas espirituosas irritavam-no, e ouvir as conversas dos outros, em particular de pseudo-intelectuais, deixavam-no à beira da loucura. O inferno, já provado por Gabriel, seria uma sala onde fosse obrigado a ouvir uma discussão sobre arte vinda de pessoas que nada sabem sobre ela.
Haviam passado mais de trinta anos desde que tinha estado no Café Central. A pastelaria provou ser o passo final da aprendizagem com Shamron, o portal entre a vida que levava antes do Departamento e o mundo crepuscular que iria habitar depois. Shamron, no final do período de treino de Gabriel, imaginara mais um teste para ver se ele estava ou não pronto para a sua primeira missão. Largado à meia-noite nos arredores de Bruxelas, sem documentos e sem um cêntimo no bolso, tinha-lhe sido ordenado encontrar-se com um agente na manhã seguinte na Leidseplein em Amsterdã. Usando dinheiro roubado e um passaporte que tirara a um turista americano, conseguira arranjar maneira de chegar no trem da manhã. O agente que encontrara à espera era Shamron. Este tinha aliviado Gabriel do passaporte e do que lhe restava do dinheiro, em seguida dissera-lhe para estar em Viena na tarde seguinte, vestindo roupas diferentes. Tinham-se encontrado num banco de jardim do Stadtpark e caminhado até o Central. Numa mesa junto a uma janela alta, em arco, Shamron entregara a Gabriel um bilhete de avião para Roma e a chave de um cacifo de aeroporto onde iria encontrar uma pistola Beretta. Duas noites mais tarde, na entrada de um apartamento na Piazza Annibaliano, Gabriel tinha matado pela primeira vez.
Na altura, como agora, estava a chover quando Gabriel chegou ao Café Central. Sentou-se num banco de couro e colocou um maço de jornais em alemão na pequena mesa redonda. Pediu um bolo com chantilly e café com creme. Chegaram numa bandeja prateada com um copo de água com gelo. Abriu o primeiro jornal, Die Presse, e começou a ler. O atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra era a história de capa. O ministro do Interior prometia prisões rápidas. A direita política exigia duras medidas de imigração para impedir terroristas árabes, e outros elementos perturbadores, de atravessarem as fronteiras da Áustria.
Gabriel terminou o primeiro jornal. Pediu outro bolo e abriu uma revista chamada Profil. Olhou em volta pelo café. Enchia-se rapidamente de empregados de escritório vienenses que paravam para um café ou uma bebida à saída do trabalho. Infelizmente, nenhum era remotamente semelhante à descrição de Ludwig Vogel dada por Max Klein.
Às cinco da tarde, Gabriel já tinha bebido três xícaras de café e estava a começar a perder a esperança de sequer ver Ludwig Vogel. De repente reparou que o garçom esfregava as mãos e alternava o peso de um pé para o outro. Gabriel seguiu a linha do olhar do garçom e viu um cavalheiro de certa idade atravessando a porta. Um austríaco da velha escola, se percebe o que quero dizer, Sr. Argov. Sim, percebo, pensou Gabriel. Boa tarde, Herr Vogel.
SEU CABELO ERA quase branco, bem ralo e penteado muito colado à cabeça. A boca era pequena e tensa, a roupa cara e elegantemente vestida: calças cinzas de flanela, um blazer de aba dupla, um lenço cor de vinho ao pescoço. O garçom ajudou-o a despir o sobretudo e acompanhou-o a uma mesa, apenas a alguns metros de Gabriel.
— Um café com creme, Karl. Nada mais.
Confiante, barítono, uma voz habituada a dar ordens.
— Posso tentá-lo com uma torta de chocolate? Ou um strudel de maçã? Está muito bom esta tarde.
Um fatigado abanar de cabeça, uma vez para a esquerda, uma vez para a direita.
— Hoje não, Karl. Só café.
— Como desejar, Herr Vogel.
Vogel sentou-se. No mesmo instante, a duas mesas de distância, o seu guarda-costas sentou-se também. Klein não o mencionou. Provavelmente não reparara nele. Se calhar era uma situação recente. Gabriel forçou-se a si próprio a olhar para baixo em direção à revista.
Os assentos estavam longe de ser ótimos. Por azar Vogel estava virado diretamente para Gabriel. Um ângulo mais oblíquo teria permitido a Gabriel observá-lo sem receio de ser notado. E o guarda-costas estava sentado bem atrás de Vogel, com os olhos em movimento. Avaliando pela protuberância no lado esquerdo do paletó, ele tinha uma arma num coldre de ombro. Gabriel pensou em mudar de mesa, mas teve medo de levantar suspeitas e deixou-se estar, espiando ocasionalmente por cima da revista.
E assim continuou durante os quarenta e cinco minutos seguintes. Gabriel terminou o último artigo e recomeçou o Die Presse. Pediu um quarto bolo. A certa altura percebeu que também estava sendo observado, não pelo guarda-costas, mas pelo próprio Vogel. Um momento mais tarde, ouviu Vogel dizer:
— Está um frio danado esta noite, Karl. Que tal um copinho de brandy antes de ir embora?
— com certeza, Herr Vogel.
— E um para o cavalheiro naquela mesa, Karl.
Gabriel levantou o olhar e viu dois pares de olhos a estudá-lo, os pequenos olhos duros do garçom adulador e os de Vogel, que eram azuis e insondáveis. Sua pequena boca tinha-se curvado num sorriso pouco humorístico. Gabriel não sabia exatamente como reagir, e Ludwig Vogel estava claramente a desfrutar desse desconforto.
— Estava mesmo de saída — disse Gabriel em alemão —, mas agradeço na mesma.
— Como queira. — Vogel olhou para o garçom. — Pensando melhor, Karl, acho que também me vou embora.
Vogel levantou-se repentinamente. Entregou ao garçom algumas notas, em seguida caminhou até a mesa de Gabriel.
— Ofereci-lhe um brandy porque reparei que estava a olhar para mim — disse Vogel. — Já nos encontramos antes?
— Não, penso que não — disse Gabriel. — E se estava a olhar para si, não foi com nenhuma intenção. Eu simplesmente gosto de olhar para rostos em pastelarias vienenses. — Hesitou, em seguida acrescentou:
— Nunca se sabe com quem se pode esbarrar.
— Não podia concordar mais. — Outro sorriso pouco humorístico.
— Tem a certeza de que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
— É novo no Central — disse Vogel com certeza. — Eu venho aqui todas as tardes. Pode dizer-se que sou o melhor cliente do Karl. Eu sei que nunca o vi aqui antes.
— Normalmente tomo o meu café no Sperl.
— Ah, o Sperl. O strudel deles é bom, mas o som das mesas de bilhar afeta a minha concentração. Devo dizer, que sou fã do Central. Talvez nos voltemos a encontrar.
— Talvez — disse Gabriel sem se comprometer.
— Havia um velho homem que costumava vir aqui com frequência. Era mais ou menos da minha idade. Costumávamos ter agradáveis conversas. Já há algum tempo que ele não aparece. Espero que esteja bem. Quando se é velho, as coisas às vezes correm mal sem darmos conta.
Gabriel encolheu os ombros.
— Talvez se tenha mudado para outra pastelaria.
— Talvez — disse Vogel. Em seguida desejou a Gabriel uma boa noite e caminhou para a rua. O guarda-costas seguiu-o discretamente. Através do vidro, Gabriel viu um Mercedes avançar. Vogel disparou mais um olhar na direção de Gabriel antes de se baixar para o banco traseiro. Em seguida a porta fechou-se e o carro arrancou rapidamente.
Gabriel sentou-se por um momento, revendo os detalhes do inesperado encontro. Em seguida pagou a conta e caminhou para o frigido entardecer. Ele sabia que acabara de receber um aviso. Ele também sabia que o seu tempo na Áustria era limitado.
O AMERICANO FOI o último a sair do Café Central. Parou na porta para abotoar o colarinho do seu sobretudo Burberry, fazendo o possível para evitar parecer um espião, e observou o israelense desaparecer pela rua escura. Em seguida virou-se e seguiu na direção oposta. Tinha sido uma tarde interessante. Uma jogada ousada por parte de Vogel, mas era esse o seu estilo.
A embaixada era no Nono Bairro, um boa caminhada, mas o americano decidiu que era uma boa noite para andar. Ele gostava de caminhar por Viena. Fazia-lhe bem. Era tudo o que ele queria, ser um espião na cidade dos espiões e tinha passado a sua juventude a preparar-se. Tinha estudado alemão no joelho da sua avó e politica soviética com as mentes mais brilhantes de Harvard. Após a licenciatura, as portas da Agência foram-lhe escancaradas. Foi então que o Império ruiu e uma nova ameaça ergueu-se das areias do Oriente Médio. Alemão fluente e uma licenciatura em Harvard não contavam muito na nova Agência. As vedetas de hoje eram figuras de ação humanitária que conseguiam viver de minhocas e mixórdias e caminhar uma centena de quilômetros com algum montanhês tribal sem se queixarem sequer de uma bolha. O americano chegara até Viena, mas a Viena que o esperava tinha perdido a sua velha importância. De repente era apenas mais um tranquilo lugar europeu, um beco sem saída, um lugar para terminar calmamente uma carreira, não para lançar uma.
Agradecia a Deus pelo caso de Vogel. Tinha animado as coisas um pouco, mesmo que fosse apenas temporário.
O americano virou para a Boltzmanngasse e parou junto ao formidável portão de segurança. O guarda fuzileiro verificou o cartão de identificação e permitiu-lhe a entrada. O americano tinha proteção oficial. Trabalhava na Cultural. Apenas reforçava o seu sentimento de obsolescência. Um espião a trabalhar em Viena com um disfarce cultural. Perfeitamente original.
Subiu no elevador até o quarto andar e parou numa porta com uma fechadura de código. Por trás estava o centro nervoso da filial de Viena da Agência. O americano sentou-se em frente de um computador, registrou-se, e enviou uma mensagem curta para a Sede. Estava endereçada a um homem chamado Carter, o subdiretor de operações. Carter odiava mensagens de conversa fiada. Tinha ordenado ao americano que descobrisse um simples detalhe. O americano tinha-o feito.
A última coisa que Carter precisava era de um timtim por timtim da sua pungente exploração no Café Central. Em tempos talvez tivesse soado interessante. Agora já não.
Escreveu quatro palavras:
— Avraham está no jogo — e disparou pelo cabo seguro. Esperou uma resposta. Para passar o tempo, trabalhou numa análise das iminentes eleições. Duvidava que tivesse interesse para o sétimo andar de Langley.
O seu computador apitou. Tinha uma mensagem à espera. Clicou e palavras apareceram na tela:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano apressadamente comutou outra mensagem:
— E se ele sai da cidade?
Dois minutos mais tarde:
— Mantenha um olho em Elijah.
O americano desligou. Pôs de lado o relatório sobre as eleições. Estava de volta ao jogo, pelo menos por hora.
GABRIEL PASSOU o resto da tarde no hospital. Marguerite, a enfermeira da noite, entrou de serviço uma hora depois de ele ter chegado. Quando o médico terminou o seu exame, ela deixou-o sentar-se ao lado de Eli. Pela segunda vez sugeriu a Gabriel que falasse com ele e deslizou para fora do quarto para lhe dar alguns momentos de privacidade. Gabriel não sabia o que dizer, então inclinou-se perto do ouvido de Eli e sussurrou-lhe em hebraico sobre o caso: Max Klein, Renate Hoffmann, Ludwig Vogel... Eli mantinha-se imóvel, a cabeça ligada, os olhos vendados. Mais tarde, no corredor, Marguerite confidenciou a Gabriel que o estado de Eli permanecia idêntico. Gabriel sentou-se na sala de espera adjacente por mais uma hora, observando Eli através do vidro, em seguida apanhou um táxi de volta para o hotel.
No seu quarto, sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada. Na gaveta de cima encontrou algumas folhas de papel de carta do hotel e um lápis. Fechou os olhos por um momento e imaginou Vogel como o tinha visto nessa tarde no Café Central.
— Tem a certeza que não nos encontramos antes? A sua cara parece-me bastante familiar.
— Duvido sinceramente.
Gabriel abriu novamente os olhos e começou a desenhar. Cinco minutos mais tarde, o rosto de Vogel estava a olhar para ele. Como seria ele mais novo? Começou a desenhar novamente. Engrossou o cabelo, removeu olheiras e rugas dos olhos. Suavizou as rugas da testa, esticou a pele nas bochechas e ao longo do queixo, apagou as fundas depressões desde a base do nariz até os cantos da pequena boca.
Satisfeito, colocou o novo esboço junto do primeiro. Começou uma terceira versão do homem, desta vez com a túnica de colarinho alto e o boné com pala de um homem das SS. A imagem, depois de completa, deu-lhe arrepios no pescoço. Abriu a pasta que Renate Hoffmann lhe dera e leu o nome da aldeia onde Vogel tinha a casa de campo. Localizou a aldeia num mapa turístico que encontrou na gaveta da mesa, em seguida ligou para uma empresa de aluguel de automóveis e reservou um carro para a manhã seguinte.
Levou os esboços para a cama e, com a cabeça apoiada na almofada, olhou fixamente para as três diferentes versões do rosto de Vogel. A última, aquela com Vogel vestido com o uniforme das SS, parecia-lhe vagamente familiar. Tinha a inquietante sensação de já ter visto aquele homem em algum lugar. Passado uma hora, levantou-se e levou os esboços para a casa de banho. De pé, em frente ao lavatório, queimou as imagens na mesma ordem que as tinha desenhado: Vogel como um próspero cavalheiro vienense, Vogel cinquenta anos mais novo, Vogel como assassino das SS...
9
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel foi às compras na Kärntnerstrasse. O céu era uma cúpula de azul pálido riscado de alabastro. Ao atravessar a Stephansplatz, foi quase derrubado pelo vento. Era um vento Árctico, gelado pelos fiordes e glaciares da Noruega e esticado pelas planícies geladas da Polônia que agora martelava os portões de Viena como uma hoste bárbara.
Entrou numa loja grande, estudou o diretório e subiu as escadas rolantes até o andar que vendia roupa quente. Escolheu um casaco de esqui azul-escuro, uma espessa camisola de algodão, luvas grossas e botas de montanha à prova de água. Pagou os artigos e saiu, percorrendo a Kärntnerstrasse com um saco de plástico em cada mão, sempre a verificar a retaguarda.
A empresa de aluguel de automóveis ficava a apenas algumas ruas de distância do seu hotel. Uma van Opel prateada esperava-o. Carregou as malas para o banco de trás, assinou a papelada necessária, e acelerou dali para fora. Conduziu em círculos durante meia hora, procurando sinais de vigilância, e só então seguiu para a entrada da autoestrada Al onde tomou a direção de oeste.
As nuvens foram engrossando gradualmente, o sol matinal desvaneceu-se. Quando chegou a Linz estava a nevar com força. Parou numa bomba de gasolina e vestiu a roupa que comprara em Viena, em seguida voltou para a Al e fez a recta final até Salzburg.
Quando chegou já a tarde ia a meio. Deixou o Opel num estacionamento e passou o resto da tarde vagueando pelas ruas e praças da parte velha da cidade, fazendo-se passar por turista. Subiu os degraus talhados que levavam ao Mönchsberg e admirou a vista sobre Salzburg do alto do campanário da igreja. Seguiu para a Universitätsplatz para ver as obras de arte barrocas de Fischer e von Erlach. Quando a noite caiu, regressou à parte velha da cidade e jantou raviolis tiroleses num restaurante original decorado com trofeus de caça nas paredes escuras.
Às oito da noite, estava novamente ao volante do Opel, dirigindo-se para este de Salzburg, para o coração de Salzkammergut. A queda de neve adensou-se à medida que a autoestrada subia a montanha. Passou uma aldeia chamada Hof na margem sul do Fuschlsee; depois, alguns quilômetros mais adiante, chegou ao Wolfgangsee. A cidade, que dera o seu nome a São Wolfgang, ficava na margem oposta do lago. Ele conseguiu vislumbrar o sombreado do pináculo da Igreja da Peregrinação. Lembrou-se que nela estava um dos mais belos retábulos góticos de toda a Áustria.
Na adormecida aldeia de Zichenbach virou à direita, entrou numa ruela estreita muito inclinada e subiu pela encosta da montanha. A aldeia ficou para trás. Havia cabanas ao longo do caminho com os telhados cobertos de neve e fumo a sair das chaminés. Um cão saiu de uma delas e ladrou quando Gabriel passou. Conduziu através de uma ponte de uma só faixa e abrandou até parar. A estrada parecia ter desistido, exausta. Um caminho ainda mais estreito, que quase não dava para um carro, continuava pela floresta de bétulas. Trinta metros mais à frente estava um portão. Desligou o motor. O silêncio profundo da floresta era opressivo.
Retirou uma lanterna do porta-luvas e saiu. O portão era à altura do ombro e feito de madeira a imitar o antigo. Um sinal avisava que a propriedade do outro lado era privada e que caminhar ou caçar era estritamente verboten e punível com multas e prisão. Gabriel colocou um pé na ripa do meio e atirou-se aterrando no suave tapete de neve do outro lado.
Ligou a lanterna para ver o caminho. A luz revelou um declive acentuado que curvava para a direita, desaparecendo por trás de um muro de bétulas. Não havia pegadas, nem marcas de pneus. Gabriel apagou a lanterna e hesitou um momento enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão, então começou a caminhar novamente. Cinco minutos mais tarde, chegou a uma larga clareira. No topo da clareira, a cerca de cem metros de distância, estava a casa, um tradicional chalé alpino, muito grande, com um telhado de pedra e beirais que caiam pelas paredes exteriores da estrutura. Parou por um momento, à procura de algum sinal que lhe indicasse se a sua aproximação tinha sido detectada. Satisfeito, circulou a clareira, mantendo-se junto da linha das árvores. A casa estava completamente às escuras, não havia luzes acesas no interior, nem no exterior. Não havia veículos.
Ficou um momento a ponderar se devia entrar na casa e assim cometer um crime em solo austríaco. O chalé desocupado representava uma oportunidade de espreitar a vida de Vogel, uma oportunidade que com certeza não se iria repetir tão cedo. Lembrou-se de um sonho recorrente. Titian deseja consultar Gabriel sobre uma restauração, mas Gabriel insiste em recusar porque está extremamente atrasado com prazos e não consegue arranjar tempo para uma reunião. Titian fica terrivelmente ofendido e rescinde a oferta furioso. Gabriel, sozinho, perante uma tela interminável, forja sem a ajuda do mestre.
Começou a percorrer a clareira. Uma espreitadela por cima do ombro revelou aquilo que já sabia — estava a deixar um rasto óbvio de pegadas humanas que iam do limite das árvores até as traseiras da casa. A não ser que nevasse novamente em breve, as pegadas iriam ficar visíveis para qualquer um ver. Continua. Titian está à espera.
Chegou às traseiras do chalé. O comprimento da parede exterior estava tapado por pilhas de lenha. No final da pilha de madeiras estava uma porta. Gabriel tentou o trinco. Trancada, claro. Descalçou as luvas e retirou o fino arame metálico que habitualmente transportava na carteira. Manuseou-o gentilmente dentro da fechadura até sentir o mecanismo ceder. Então rodou o trinco e entrou. LIGOU A LANTERNA e descobriu que se encontrava num vestíbulo. Três pares de galochas estavam em sentido, encostadas à parede. Um impermeável estava pendurado num gancho. Gabriel revistou os bolsos: alguns trocos e um lenço de assoar amarrotado pela mucosidade seca de um velho.
Atravessou uma porta e foi confrontado com um lanço de escadas. Subiu apressadamente, lanterna na mão, até que chegou a outra porta. Esta última estava destrancada. Gabriel abriu-a devagar. O gemido das dobradiças secas ecoou pelo vasto silêncio da casa.
Encontrava-se agora numa despensa que parecia ter sido saqueada por um exército em retirada. As prateleiras estavam praticamente vazias e cobertas por uma fina camada de pó. A cozinha adjacente era uma combinação de moderno com tradicional: apliques alemães com frentes em aço inoxidável, panelas em ferro fundido penduradas num enorme forno aberto. Abriu o frigorifico: uma garrafa de vinho branco austríaco pela metade, um pedaço de queijo verde de bolor, alguns frascos de temperos antigos.
Caminhou por uma sala de jantar até uma sala grande. Vasculhou-a com a lanterna e parou quando encontrou uma escrivaninha antiga. Tinha uma gaveta. Deformada pelo frio, estava fechada e emperrada. Gabriel puxou com força e quase a arrancou dos suportes. Apontou a lanterna para dentro: canetas e lápis, clips enferrujados, um maço de papel de carta da Vale do Danúbio Transações e Investimentos, papel de carta pessoal: Da secretária de Ludwig Vogel... Gabriel fechou a gaveta e iluminou a superfície da mesa com a lanterna. Num separador de madeira estava um molho de correspondência. Percorreu as páginas: algumas cartas privadas, documentos que pareciam relacionados com negócios de Vogel. Agrafados a alguns dos documentos estavam alguns memorandos, todos escritos com a mesma letra emaranhada. Pegou nos papéis, dobrou-os ao meio e empurrou-os para dentro da frente do casaco.
O telefone estava equipado com gravador de mensagens e painel digital. O relógio tinha a hora errada. Gabriel levantou a tampa, expondo um par de minifitas. Sabia por experiência que os gravadores de mensagens nunca apagavam completamente as fitas e que muita informação valiosa era deixada para trás, facilmente acessível por um técnico devidamente equipado. Tirou as fitas e guardou-as no bolso. Em seguida fechou a tampa e carregou no botão de remarcação. Houve uma explosão de bips seguida pela dissonante canção do marcador automático. O número apareceu no painel: 5124124. Um número de Viena. Gabriel guardou-o na memória. O próximo som foi um toque simples de um telefone austríaco, seguido de um segundo. Antes que chegasse a tocar uma terceira vez, um homem atendeu.
— Alô?... Alô?... Quem fala? Ludwig, é você? Quem fala?
Gabriel cortou a ligação.
SUBIU A escadaria principal. Quanto tempo teria até o homem do outro lado da linha perceber o seu erro? com que rapidez conseguiria ele juntar as suas forças e montar um contra-ataque? Gabriel quase conseguia ouvir o tique-taque do relógio.
No alto das escadas havia uma pequena área de estar mobilada. Junto a uma cadeira estava uma pilha de livros, e em cima dos livros um copo de balão vazio. Em cada lado da sala havia uma porta que dava para um quarto. Gabriel entrou no da direita.
O teto era oblíquo, refletindo a inclinação do telhado. As paredes estavam nuas com exceção de um grande crucifixo pendurado sobre a cama desfeita. O relógio despertador na mesa-de-cabeceira piscava 12:00... 12:00... 12:00... Enrolado como uma cobra em frente ao relógio estava um rosário de contas pretas . E em cima de um pedestal uma televisão aos pés da cama. Gabriel arrastou o seu dedo com luva pela tela e deixou uma linha negra marcada no pó.
Não havia armário, apenas um grande roupeiro estilo eduardino. Gabriel abriu a porta e vasculhou com a lanterna pelo interior: pilhas de camisolas bem dobradas, casacos, camisas de colarinho e calças penduradas no varão. Abriu uma gaveta. Dentro estava uma caixa de joias forrada de feltro: botões de punho baços, anéis de sinete, um relógio antigo com uma correia de couro rachada. Virou o relógio e examinou a parte de trás: Para Erich, em adoração, Mônica. Apanhou um dos anéis, um grosso sinete de ouro adornado com uma águia. Também este estava gravado, em letras minúsculas que percorriam o interior do anel: 1005, bom trabalho, Heinrich. Gabriel guardou o relógio e o anel no bolso. Saiu do quarto e parou na entrada. Uma espreitadela pela janela mostrou que não havia movimento na estrada. Entrou no segundo quarto. O ar estava carregado com o inconfundível cheiro a essência de rosas e lavanda. Um pálido tapete macio cobria o chão; uma florida colcha edredão cobria a cama. O armário eduardino era idêntico ao do primeiro quarto, com exceção das portas que tinham espelhos. Dentro, Gabriel encontrou roupas de mulher. Renate Hoffmann tinha-lhe dito que Vogel era um eterno solteiro. Então a quem pertenciam aquelas roupas?
Gabriel dirigiu-se à mesa de apoio. Uma grande bíblia encadernada em pele estava sobre um lenço de renda. Pegou-lhe pela lombada e desfolhou vigorosamente. Uma fotografia flutuou até o chão. Gabriel examinou-a com a luz da lanterna. Mostrava uma mulher, um rapaz adolescente e um homem de meia-idade, sentados num cobertor num prado alpino no Verão. Estavam todos a sorrir para a câmara. A mulher tinha o braço por cima do ombro do homem. Apesar de ter sido tirada há trinta ou quarenta anos, era claro que o homem era Ludwig Vogel. E a mulher? Para Erich, em adoração, Mônica. O rapaz, bonito e bem arranjado, parecia-lhe estranhamente familiar. Ouviu um som vindo de fora, um ruído abafado, e apressou-se até a janela. Afastou as cortinas e viu um par de faróis aproximando-se lentamente por entre as árvores.
GABRIEL GUARDOU A foto no bolso e apressou-se a descer a escada. A sala grande já estava iluminada pelos faróis do veículo. Arrepiou caminho — através da cozinha, despensa e pela escada das traseiras abaixo — até que chegou novamente ao vestíbulo. Conseguia ouvir passos no andar de cima; alguém estava na casa. Abriu suavemente a porta e deslizou para fora, fechando-a silenciosamente atrás de si.
Caminhou até a frente da casa, mantendo-se debaixo dos beirais. O veículo, um todo-o-terreno desportivo, estava estacionado a poucos metros da entrada principal da casa. Os faróis estavam quentes e a porta do condutor aberta. Gabriel conseguia ouvir o tinir eletrônico de um alarme. As chaves ainda estavam na ignição. Rastejou para dentro do veículo, removeu as chaves e lançou-as para o escuro. Atravessou a clareira e começou a descer a encosta da montanha. com as botas pesadas e a neve espessa este percurso parecia algo retirado dos seus pesadelos. O ar frio arranhava-lhe a garganta. Quando chegou à curva final do caminho, viu que o portão estava aberto e que um homem se encontrava junto do seu carro, apontando uma lanterna pela janela.
Gabriel não tinha medo de enfrentar um homem. Dois, no entanto, era outra coisa. Decidiu partir para a ofensiva, antes que o homem da casa tivesse tempo de descer a montanha. Gritou em alemão:
— Você aí! O que pensa que está fazendo no meu carro?
O homem virou-se e apontou a sua lanterna na direção de Gabriel. Não fez nenhum tipo de movimento que sugerisse que ia puxar de uma arma. Gabriel continuou a correr, fazendo o papel de um condutor indignado cujo carro tinha sido violado. Em seguida, retirou a lanterna do bolso e golpeou a cara do homem.
Ele levantou a mão defensivamente e o impacto foi absorvido pelo seu grosso casaco. Gabriel largou a lanterna e deu-lhe um pontapé forte na parte de dentro do joelho. Gemeu de dor e lançou um murro à toa. Gabriel desviou-se, evitando-o facilmente, com cuidado para não perder o equilíbrio na neve. O seu oponente era um homem grande, alguns quinze centímetros mais alto que Gabriel e pelo menos vinte quilos mais pesado. Se a situação se arrastasse para um combate de luta livre, o resultado seria duvidoso.
O homem lançou outro murro à toa, lateral, bem puxado atrás, que passou mesmo rente ao queixo de Gabriel. Acabou por perder o equilíbrio, inclinando-se para a esquerda, com o braço direito para baixo. Gabriel prendeu o braço e avançou. Recolheu o cotovelo e lançou-o duas vezes em direção à maçã do rosto do homem, com cuidado para evitar a zona mortal à frente da orelha. O homem caiu na neve, atordoado. Gabriel apanhou a lanterna e bateu-lhe na cabeça para não ter dúvidas, e o homem caiu inconsciente. Gabriel olhou por cima do ombro e viu que ninguém se aproximava. Abriu o casaco do homem e procurou pela carteira. Encontrou uma no bolso do peito. Dentro estava um crachá de identificação. O nome não o preocupava; a afiliação sim. O homem deitado inconsciente na neve era um oficial da Staatspolizei.
Gabriel continuou a revistar o homem inconsciente e encontrou no bolso de dentro do casaco um pequeno bloco de notas de polícia forrado a couro. Na primeira página, em letras maiúsculas infantilizadas, Gabriel leu a placa de seu carro alugado.
10
VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, GABRIEL deu dois telefonemas assim que regressou a Viena. O primeiro foi para um número localizado dentro da embaixada israelense. Identificou-se como Kluge, um dos seus muitos nomes telefônicos, e disse que estava a ligar para confirmar uma reunião com um Sr. Rubin no consulado. Passado um momento, a voz do outro lado da linha disse:
— Opernpassage, conhece?
Gabriel indicou com alguma irritação, que conhecia. Opernpassage era uma sombria passagem pedestre por baixo da Karlsplatz.
— Entre na via por norte — disse a voz. — A meio, à sua direita, verá uma chapelaria. Passe em frente à chapelaria exatamente às dez horas.
Gabriel cortou a ligação e em seguida ligou para o apartamento de Max Klein no Segundo Bairro. Ninguém atendeu. Pousou o receptor de volta no telefone e parou por um momento, pensando onde Klein poderia estar.
Tinha noventa minutos até o seu encontro com o mensageiro. Por isso, decidiu usar o tempo de forma produtiva desembaraçando-se do carro alugado. A situação teria de ser trabalhada com cuidado. Gabriel tinha roubado o bloco de notas ao Staatspolizei. Se por acaso o policia se conseguisse lembrar da matricula depois de o ter deixado inconsciente, levaria apenas alguns minutos até descobrir que o carro pertencia a uma empresa de aluguel de Viena, e em seguida a um israelense chamado Gideon Argov.
Gabriel atravessou o Danúbio e dirigiu o carro em volta do moderno complexo das Nações Unidas à procura de um lugar para estacionar na rua. Encontrou um, a cerca de cinco minutos a pé da estação de U-Bahn, e estacionou. Abriu o capo e soltou um pouco os cabos da bateria, depois sentou-se novamente ao volante e rodou a chave. Saudado pelo silêncio, fechou o capo e afastou-se a pé.
De uma cabina telefônica na estação de U-Bahn, telefonou à empresa de aluguel e informou-os que o seu Opel tinha avariado e precisava de ser recolhido. Permitiu que um certo tom de indignação lhe toldasse a voz, e quem o atendeu do outro lado da linha desfez-se em desculpas. Não havia nada na voz do empregado que indicasse que a empresa de aluguel tinha sido contatada pela policia relativamente a um assalto em Salzkammergut na noite anterior.
Um trem chegou à estação. Gabriel desligou o telefone e entrou na última carruagem. Quinze minutos mais tarde, estava a entrar na Opernpassage pelo lado norte, como o homem da embaixada o tinha instruído. A passagem estava cheia de peões que saiam da estação de U-Bahn de Karlsplatz e o ar encontrava-se pesado, impregnado com o fedor de comida rápida e tabaco. Um albanês com olhos de drogado pediu a Gabriel um euro para comprar comida. Gabriel passou sem dizer uma palavra e seguiu caminho em direção à chapelaria.
O homem da embaixada estava a sair enquanto Gabriel se aproximava. Louro e de olhos azuis, usava uma gabardina comprida com um lenço apertado em volta do pescoço. Um saco de plástico ostentando o nome da chapelaria estava pendurado na sua mão. Eles já se conheciam. O seu nome era Bem-Avraham. Caminharam lado a lado em direção à saída do outro lado da passagem. Gabriel entregou um envelope contendo todo o material que recolhera desde a sua chegada à Áustria: o dossier que lhe foi dado por Renate Hoffmann, o relógio e o anel tirados do roupeiro de Ludwig Vogel, a fotografia escondida na biblia. Bem-Avraham colocou o envelope no saco de plástico.
— Faz chegar a casa — disse Gabriel. — Rapidamente. Bem-Avraham acenou secamente.
— E o destinatário em King Saul Boulevard?
— Não vai para King Saul Boulevard. Bem-Avraham franziu o sobrolho sugestivamente.
— Sabes as regras. Tudo passa pela sede.
— Isto não — disse Gabriel, acenando na direção do saco de plástico.
— Vai para o velho.
Chegaram ao final da passagem. Gabriel virou e caminhou na direção oposta. Bem-Avraham seguiu atrás dele. Gabriel conseguia sentir o que ele estava a pensar. Deveria ele violar uma insignificante regra imposta pelo Departamento e arriscar e ira de Lev — que não havia coisa que mais gostasse do que fazer cumprir regras impostas pelo Departamento — ou deveria ele fazer um pequeno favor a Gabriel Allon e Ari Shamron? A deliberação de Bem-Avraham não demorou muito tempo. Gabriel não esperava que demorasse. Lev não era do gênero que inspirasse devoção pessoal nas suas tropas. Lev era o homem do momento, mas Shamron era o Memuneh, e o Memuneh era eterno.
Gabriel, com um movimento lateral dos olhos, mandou Bem-Avraham seguir caminho. Passou dez minutos a percorrer o comprimento da Opernpassage, em busca de sinais de vigilância, então voltou a subir a rua. De um telefone público tentou ligar a Max Klein uma segunda vez. Continuava sem haver resposta. Subiu num trólei que passava e seguiu nele em volta da cidade até o Segundo Bairro. Levou apenas alguns momentos até encontrar a morada de Klein. Na entrada do prédio, tocou à campainha para o apartamento mas não recebeu resposta. A porteira, uma mulher de meia-idade de bata florida, meteu a cabeça para fora do seu apartamento e olhou para Gabriel com desconfiança.
— Está à procura de quem? Gabriel respondeu honestamente.
— Ele costuma ir à sinagoga de manhã. Já tentou lá?
O bairro judeu era apenas do outro lado do canal do Danúbio, uma caminhada de dez minutos no máximo. Como de costume, a sinagoga tinha guardas. Gabriel, apesar do seu passaporte, tinha de passar por um detetor de metais antes de o deixarem entrar. Tirou uma kippah do cesto e cobriu a cabeça antes de entrar no santuário. Alguns homens de idade rezavam junto ao bimah. Nenhum deles era Max Klein. De volta à entrada, perguntou ao segurança se tinha visto Klein nessa manhã. O guarda abanou a cabeça e sugeriu que Gabriel tentasse o centro comunitário.
Gabriel caminhou até a porta ao lado e foi recebido por uma judia russa chamada Natália. Sim, disse-lhe ela, Max Klein costuma passar as manhãs no centro, mas ela ainda não o tinha visto hoje.
— Por vezes, os mais velhos tomam café no Café Schottenring disse ela. — É no número dezanove. Talvez o encontre lá.
Havia, de fato, um grupo de judeus vienenses idosos a tomar café no Café
Shottenring, mas Klein não era um deles. Gabriel perguntou se ele tinha ali estado nessa manhã, e seis cabeças cinzas abanaram em uníssono. Frustrado, caminhou de volta até o Segundo Bairro através do canal do Danúbio e regressou ao prédio de apartamentos de Klein. Tocou na campainha e mais uma vez não obteve resposta. Em seguida bateu à porta do apartamento da porteira. Vendo Gabriel uma segunda vez, o seu rosto ficou subitamente sério.
— Espere aqui — disse ela. — Vou buscar a chave.
A PORTEIRA DESTRANCOU a porta e, antes de passar a entrada, chamou pelo nome de Klein. Não escutando resposta, entraram. As cortinas estavam fechadas, a sala de estar estava densamente sombria.
— Herr Klein? — gritou ela novamente. — Está aí? Herr Klein?
Gabriel abriu as portas duplas que davam acesso à cozinha e olhou para dentro. O jantar de Max Klein estava em cima da pequena mesa, intato. Percorreu o corredor, parando uma vez para espreitar para dentro da casa de banho vazia. A porta do quarto estava trancada. Gabriel martelou com o punho e chamou pelo nome de Klein. Não obteve resposta.
A porteira foi ter com ele. Olharam um para o outro. Ela abanou a cabeça . Gabriel segurou a maçaneta com as duas mãos e atirou o ombro contra a porta. A madeira desfez-se e ele tropeçou para dentro do quarto.
Aqui, como na sala de estar, as cortinas estavam fechadas. Gabriel levou a mão à parede e tateou no escuro até encontrar um interruptor. Um pequeno abajur de mesa lançou um cone de luz sobre a figura deitada na cama.
A porteira suspirou.
Gabriel avançou lentamente. A cabeça de Max Klein estava coberta por um saco plástico transparente, e um cordão de ouro entrançado envolvia seu pescoço. Seus olhos fitavam Gabriel através do plástico embaciado.
— Vou chamar a polícia — disse a porteira.
Gabriel sentou-se aos pés da cama e enterrou o rosto nas mãos.
LEVOU VINTE MINUTOS até o primeiro polícia chegar. A sua conduta apática sugeria a presunção de suicídio. De certo modo isto era melhor para Gabriel, porque a suspeição de comportamento criminoso teria alterado significativamente a natureza do encontro. Foi interrogado duas vezes, uma pelos polícias fardados que responderam primeiro à chamada, depois outra vez por um detective da Staatspolizei chamado Greiner. Gabriel disse chamar-se Gideon Argov e que trabalhava para o escritório de Jerusalém do Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo de Guerra. Que viera a Viena depois do atentado para estar com o seu amigo Eli Lavon. Que Max Klein era um velho amigo do seu pai, e que o seu pai tinha sugerido que o visitasse para ver como é que o velhote estava. Não mencionou o seu encontro com Klein duas noites antes, nem informou a polícia das suspeitas de Klein sobre Ludwig Vogel. O seu passaporte foi examinado, como o seu cartão de visita. Números de telefone foram escritos em pequenos blocos de notas pretos. Condolências foram oferecidas. A porteira fez chá. Foi tudo muito educado.
Pouco depois do meio-dia, um par de enfermeiros e uma ambulância vieram recolher o corpo. O detective entregou a Gabriel um cartão e disse-lhe que se podia ir embora. Gabriel abandou o prédio e contornou a esquina. Num beco escuro, encostou a cabeça aos tijolos sujos de fuligem e fechou os olhos. Suicídio? Não, o homem que sobrevivera aos horrores de Auschwitz não se tinha suicidado. Tinha sido assassinado, e Gabriel não conseguia deixar de se sentir culpado. Ter deixado Klein desprotegido tinha sido muito estúpido.
Começou a caminhar de regresso ao hotel. As imagens do caso brincavam-lhe na cabeça como fragmentos de um quadro inacabado: Eli Lavon está numa cama de hospital, Ludwig Vogel no Café Central, o homem Staatspolizei em Salzkammergut, Max Klein morto com um saco de plástico na cabeça. Cada incidente era como mais um peso num prato de uma balança. A balança estava prestes a ceder, e a próxima vítima podia muito bem ser ele. Estava na altura de deixar a Áustria enquanto ainda podia.
Entrou no hotel e pediu na recepção que lhe preparassem a conta, em seguida subiu as escadas até o quarto. A porta, apesar do sinal NÃO INCOMODAR pendurado na maçaneta, estava entreaberta e ele conseguia ouvir vozes vindas de dentro. Empurrou-a suavemente com a ponta dos dedos. Dois homens, à paisana, estavam a levantar o colchão do estrado. Um terceiro, claramente o chefe, estava sentado à mesa observando a operação como um adepto aborrecido durante um evento desportivo. Vendo Gabriel à porta, levantou-se lentamente e colocou as mãos nas ancas. O último peso acabava de ser acrescentado à balança.
— Boa tarde, Allon — disse Manfred Kruz.