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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE EM VIENA
MORTE EM VIENA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

 

 

 

 

 

11

VIENA

— SE ESTÁ PENSANDO em escapar, vai descobrir que todas as saídas estão bloqueadas e ao fundo das escadas um homem muito grande vai apreciar a oportunidade de o subjugar.

O corpo de Kruz virou-se ligeiramente. Fixou o olhar em Gabriel, como um esgrimista, por cima do ombro e levantou a palma da mão num gesto apaziguador.

— Não há necessidade de isto se descontrolar. Entre e feche a porta. A sua voz era a mesma, sem energia e anormalmente calma, um cangalheiro a ajudar um cliente enlutado a escolher um caixão. Envelhecera treze anos — havia mais algumas rugas em volta da boca astuta e alguns quilos extra na sua figura delgada — e, avaliando pela roupa bem feita e comportamento arrogante, fora promovido. Gabriel manteve o seu olhar fixo nos olhos negros de Kruz. Conseguia sentir a presença de outro homem nas suas costas. Atravessou a entrada e fechou a porta atrás de si. Ouviu um baque, seguido de um praguejar resmungado em alemão. Kruz levantou a palma da mão novamente. Desta vez era uma ordem para Gabriel parar.

— Está armado?

Gabriel abanou a cabeça penosamente.

— Importa-se que eu verifique? — Perguntou Kruz. — A sua reputação o persegue.

Gabriel levantou os braços. O oficial que estava por trás dele no bali entrou no quarto e revistou-o. Era profissional e muito minucioso, começando pelo pescoço e terminando nos calcanhares. Kruz parecia desiludido com o resultado.

— Tire o casaco e esvazie os bolsos.

Gabriel hesitou e foi instigado com um doloroso golpe no rim. Desapertou o casaco e entregou-o a Kruz, que revistou os bolsos e sentiu o forro de um compartimento falso.

— Vire os bolsos da calça para fora.

Gabriel obedeceu. Resultado: algumas moedas e o canhoto de um bilhete de trólei. Kruz olhou para os dois oficiais que seguravam o colchão e ordenou-lhes que refizessem a cama.

— O Sr. Allon é um profissional — disse.

— Não vamos encontrar nada.

Os oficiais deixaram cair o colchão no estrado. Kruz, com um gesto, disse-lhes que abandonassem o quarto. Sentou-se novamente à mesa e apontou para a cama.

— Ponha-se à vontade. Gabriel continuou de pé.

— Há quanto tempo está em Viena?

— Diga-me você?

Kruz reconheceu o elogio profissional com um sorriso seco.

— Chegou num voo proveniente do Aeroporto Ben-Gurion na noite anterior à de ontem. Depois de dar entrada no hotel, prosseguiu para o Hospital Geral de Viena, onde passou várias horas com o seu amigo Eli Lavon.

Kruz ficou em silêncio. Gabriel ponderou o quanto mais ele saberia sobre as suas atividades em Viena. Saberia dos encontros com Max Klein e Renate Hoffmann? O seu encontro com Ludwig Vogel no Café Central e a sua excursão a Salzkammergut? Kruz, mesmo que soubesse mais, não iria certamente dizer. Ele não era do tipo de mostrar os trunfos sem razão. Gabriel imaginava-o um jogador frio e calculista.

— Porque não me prendeu antes?

— Não o prendi agora. Kruz acendeu um cigarro.

— Estamos dispostos a esquecer a sua violação do nosso acordo porque assumimos que pudesse ter vindo a Viena para estar ao lado do seu amigo ferido. Mas rapidamente se tornou claro que pretendia conduzir uma investigação privada do atentado. Por razões óbvias, não posso permitir isso.

— Sim — concordou Gabriel —, por razões óbvias.

Kruz dispensou um momento a contemplar o fumo erguendo-se da ponta do cigarro.

— Tínhamos um acordo, Sr. Allon. Sob nenhuma circunstância deveria voltar a este pais. Não é bem-vindo aqui. Não é suposto aqui estar. Não me interessa se está transtornado por causa do seu amigo Eli Lavon. Esta investigação é nossa, e não precisamos da sua ajuda nem do seu serviço.

Kruz olhou para o relógio.

— Há um voo da El Al que parte dentro de três horas. Você vai embarcar nele. Eu faço-lhe companhia enquanto faz as malas.

Gabriel olhou em redor para as suas roupas espalhadas pelo chão. Levantou a tampa da sua mala e viu que o forro tinha sido cortado. Kruz encolheu os ombros:

— O que é que esperava?

Gabriel agachou-se e começou a apanhar os seus pertences. Kruz olhou para a rua pelas portadas francesas e fumou. Passado um momento, Kruz perguntou:

— Ela ainda está viva?

Gabriel voltou-se lentamente e cravou o seu olhar nos olhos pequenos e negros de Kruz.

— Está a referir-se à minha mulher?

— Sim.

Gabriel abanou a cabeça lentamente.

— Não fale da minha mulher, Kruz. Kruz sorriu secamente.

— Não vai começar a fazer ameaças novamente, pois não, Sr. Allon? Posso sentir-me tentado a levá-lo sob custódia para um interrogatório mais pormenorizado das suas atividades aqui.

Gabriel não disse nada. Kruz apagou o cigarro.

— Faça as malas, Allon. Não vai querer perder o avião.


PARTE DOIS

 

 

A Galeria dos Nomes


12

 

 

JERUSALÉM

 

 

AS LUZES DO Aeroporto Ben-Gurion pontuavam a escuridão da planície costeira. Gabriel encostou a cabeça à janela e observou a pista erguendo-se lentamente para se encontrar com ele. A pista alcatroada brilhava como vidro sob a chuva da noite. Enquanto o avião abrandava para parar, Gabriel viu o homem da King Saul Boulevard debaixo de um guarda-chuva na base das escadas. Garantiu que era o último passageiro a abandonar o avião.

Entraram no terminal por uma porta especial, usada por oficiais seniores do governo e dignitários de visita. O homem da sede era um discípulo de Lev, corporativo e de alta tecnologia, orientado na bolsa de valores e a crença de que homens de campo eram simplesmente objetos insensíveis para serem manipulados por seres superiores. Gabriel caminhava um passo à sua frente.

— O chefe quer ver-te.

— Não duvido, mas não durmo há dois dias e estou cansado.

— O chefe não quer saber se estás cansado. Quem é que pensas que és, Allon? Gabriel, mesmo em segurança no Aeroporto de Ben-Gurion, não apreciava o uso do seu nome verdadeiro. Voltou-se bruscamente. O homem da sede levantou os braços rendendo-se. Gabriel virou costas e continuou a andar. O homem da sede teve o bom senso de não o seguir.

Lá fora, a chuva caía forte no pavimento. Obra de Lev, sem dúvida. Gabriel procurou abrigo debaixo da praça de táxis e pensou para onde poderia ir. Não tinha residência em Israel; o Departamento era o seu único lar. Normalmente ficava num apartamento seguro ou na casa de campo de Shamron em Tiberíades.

Um Peugeot preto virou na rotunda. O peso da blindagem fazia-o deslocar-se rente ao chão sob uma dura suspensão. Parou em frente a Gabriel, a janela à prova de bala do banco de trás baixou. Gabriel cheirou a amarga essência familiar de tabaco turco. A seguir viu a mão, manchada pelo fígado e de veias azuis proeminentes, gesticulando com lassidão para que ele saísse da chuva. O CARRO LANÇOU-SE para a frente ainda antes de Gabriel ter tempo para fechar a porta. Shamron nunca foi de esperar. Apagou o cigarro em atenção a Gabriel e abriu as janelas por alguns segundos para purificar o ar. Quando as janelas se fecharam novamente, Gabriel contou-lhe a hostil recepção de Lev. Começou por falar com Shamron em inglês; mas, lembrando-se onde estava, mudou para hebraico.

— Parece que quer falar comigo.

— Sim, eu sei — disse Shamron.

— Também me quer ver a mim.

— Como é que ele ficou a saber de Viena?

— Parece que Manfred Kruz fez um telefonema de cortesia para a embaixada depois de sua deportação e fez um escândalo. Disseram-me que não foi bonito. O ministro dos Negócios Estrangeiros está furioso, e o último andar inteiro da King Saul Boulevard quer a minha cabeça, e sua.

— O que é que me podem fazer?

— Nada, o que faz de ti o meu cúmplice perfeito, isso e os teus óbvios talentos, claro.

O carro lançou-se para fora do aeroporto e virou para a autoestrada. Gabriel questionou-se porque estariam a ir na direção de Jerusalém, mas estava demasiado exausto para se ralar. Pouco depois, começaram a subir as Montanhas da Judeia. Sentiu-se o cheiro a eucalipto e pinho molhado. Gabriel olhou pela janela pingada de chuva e tentou lembrar-se da última vez que tinha pisado o seu país. Fora depois de ter caçado Tariq al-Hourani. Passara um mês num apartamento seguro mesmo por fora dos muros da cidade velha, recuperando de um ferimento de bala no peito. Fora há mais de três anos. Percebeu que as coisas que o ligavam a este lugar estavam a desaparecer. Ponderou se ele, como Francesco Tiepolo, morreria em Veneza e se sofreria a indignidade de um enterro em terra firme.

— Algo me diz que Lev e o ministro dos Negócios Estrangeiros vão ficar ligeiramente menos aborrecidos comigo quando descobrirem o que está por trás disto. Shamron ergueu um envelope.

— Parece que estiveste muito ocupado durante sua curta estada em Viena. Quem é Ludwig Vogel?

Gabriel, com a cabeça apoiada na janela, disse a Shamron tudo, começando pelo seu encontro com Max Klein, e terminando com o seu tenso confronto com Manfred Kruz no quarto de hotel. Shamron em breve estava a fumar outra vez, e embora Gabriel não conseguisse ver claramente o seu rosto no banco de trás da escura limusina, o velho homem estava na realidade a sorrir. Umberto Conti podia ter dado a Gabriel as ferramentas para se tornar um grande restaurador, mas Shamron era responsável pela sua memória infalível.

— Não admira que Kruz estivesse tão ansioso por te pôr fora da Áustria — disse Shamron.

— As Células de Combate Islâmico? Irrompeu num riso irônico.

— Que conveniente. O governo aceita a reivindicação de responsabilidade e varre o caso para debaixo do tapete como sendo um caso de terrorismo islâmico em solo austríaco. Dessa forma as pistas não chegam muito perto dos austríacos, ou de Vogel e Metzler, especialmente estando tão perto das eleições.

— Mas e os documentos do Staatsarchiv? Segundo os mesmos, Ludwig Vogel está impecavelmente limpo.

— Então por que colocou ele uma bomba no escritório de Eli e assassinou Max Klein?

— Não sabemos se ele fez alguma dessas coisas.

— É verdade, mas os fatos sugerem com certeza essa possibilidade. Podemos não conseguir provar em tribunal, mas a história iria vender muitos jornais.

— Estás a sugerir uma fuga de informação?

— Porque não acendemos uma fogueira debaixo de Vogel e vemos como ele reage?

— Não me parece uma boa ideia — disse Gabriel. — Lembras-te de Waldheim e as revelações sobre o seu passado nazista? As provas foram contrariadas e consideradas propaganda externa e interferência estrangeira nos assuntos austríacos. A opinião pública cerrou fileiras à sua volta, assim como as autoridades do pais. O caso também fez disparar o antissemitismo na Áustria. Uma fuga, Ari, seria uma muito má ideia.

— Então o que sugeres que façamos?

Max Klein estava convencido de que Ludwig Vogel era um homem das SS que cometeu uma atrocidade em Auschwitz. Segundo os documentos do Staatsarchiv, Ludwig Vogel era demasiado novo para ser esse homem, e ele esteve na Wehrmacht, não nas SS. Mas assume, para discussão, que Max Klein estava certo.

— Isso significaria que Ludwig Vogel é outra pessoa. Exatamente — disse Gabriel. — Então vamos descobrir quem ele é na realidade.

— Como tencionas fazer isso?

Não sei bem — disse Gabriel —, mas as informações desse envelope, nas mãos certas, podem produzir algumas pistas valiosas. Shamron abanou a cabeça.

Há um homem na Yad Vashem que deves ir visitar. Ele poderá ajudar-te. Vou organizar um encontro logo de manhã.

Há mais uma coisa, Ari. Precisamos tirar o Eli de Viena.

— Exatamente o que eu estava a pensar.

Shamron retirou o telefone da consola e pressionou um botão de ligação automática.

Daqui Shamron, preciso de falar com o primeiro-ministro.

 

 

SITUADO NO ALTO DO Monte Herzel, na parte ocidental de Jerusalém, Yad Vashem é o memorial oficial de Israel em honra dos seis milhões de vitimas que pereceram na Shoah. É também o centro de pesquisa e documentação sobre o Holocausto mais avançado do mundo. A livraria contém mais de cem mil volumes, a maior e mais completa coleção de literatura do Holocausto no planeta. Guardados nos arquivos estão mais de cinquenta e oito milhões de páginas de documentos originais, incluindo milhares de testemunhos pessoais, escritos, ditados, ou filmados por sobreviventes da Shoah em Israel e em todo o mundo. Moshe Rivlin esperava-o. Um rechonchudo acadêmico barbudo que falava hebraico com um sotaque de Brooklyn. A especialidade residia não nas vitimas da Shoah mas nos seus perpetradores: os alemães que serviram a mortal máquina nazista e os milhares de ajudantes não alemães que com vontade e entusiasmo participaram na destruição dos judeus

da Europa. Ele trabalhava como consultor pago pelo Departamento de Justiça Americano de Investigações Especiais, compilando documentação e provas contra nazistas acusados de crimes de guerra e purgando Israel de testemunhas vivas. Quando não estava a pesquisar nos arquivos de Yad Vashem, Rivlin podia ser facilmente encontrado entre sobreviventes, à procura de alguém que se lembrasse.

Rivlin conduziu Gabriel ao edifício de arquivos até a sala de leitura principal. Era um espaço surpreendentemente exíguo, brilhantemente iluminado por grandes janelas até o teto com vista sobre as colinas a oeste de Jerusalém. Curvados sobre livros abertos, um par de estudantes lia; outro olhava fixamente para a tela de um leitor de microfilme. Quando Gabriel sugeriu algo de mais privado, Rivlin levou-o até uma pequena sala anexa e fechou a espessa porta de vidro. A versão dos acontecimentos que Gabriel providenciou era simples, mas exaustiva o suficiente para que nada importante se perdesse na tradução. Mostrou a Rivlin todo o material que recolhera na Áustria: o arquivo da Staatsarchiv, a fotografia, o relógio de pulso e o anel. Quando Gabriel apontou para a inscrição no interior da banda, Rivlin leu-a e olhou para cima pensativo.

— Impressionante — sussurrou.

— O que significa?

— Tenho de recolher alguns documentos do arquivo. — Rivlin parou. — Vai levar algum tempo.

— Quanto?

O arquivista encolheu os ombros.

— Uma hora, talvez um pouco menos. Já alguma vez esteve nos memoriais?

— Não desde que andava na escola.

— Dê um passeio.

Rivlin deu uma pancadinha no ombro de Gabriel.

— Volte daqui a uma hora.

 

GABRIEL CAMINHOU POR uma trilha entre pinheiros e desceu a passagem de pedra até a escuridão do Memorial das Crianças. Cinco velas, reflectidas infinitamente por espelhos, criavam a ilusão de uma galáxia de estrelas, enquanto uma voz gravada lia os nomes dos mortos.

Emergiu de volta para a luz brilhante do sol e caminhou até a Galeria da Recordação, onde ficou imóvel perante a chama eterna, tremeluzente no meio de basalto negro gravado com alguns dos nomes mais infames da história: Treblinka, Sobibor, Majdanek, Bergen-Belsen, Chelmno, Auschwitz...

Na Galeria dos Nomes não havia chamas nem estátuas, apenas incontáveis pastas cheias de páginas de testemunhos, cada uma carregando a história de um mártir: nome, local e data de nascimento, filiação, local de residência, profissão, local da morte. Uma gentil mulher chamada Shoshanna procurou na base de dados do computador e localizou as páginas de testemunho dos avós de Gabriel, Viktor e Sarah Frankel. Imprimiu-as e entregou-as tristemente a Gabriel. No fundo de cada página estava o nome da pessoa que tinha facultado a informação: Irene Allon, a mãe de Gabriel.

Pagou uma pequena quantia pelas impressões, dois sheqel por cada, e caminhou até a porta ao lado que dava para o Museu de Arte de Yad Vashem, sede da maior coleção de arte do Holocausto no mundo. Enquanto deambulava pelas galerias, achou possível abarcar com os braços o eterno espírito humano que conseguira produzir arte sob condições de fome, escravidão, e brutalidade inimaginável. De repente, o seu próprio trabalho parecia trivial e completamente desprovido de significado. O que é que santos mortos no museu de uma igreja têm a ver seja com o que for? Mário Delvecchio arrogante, o egoísta Mário Delvecchio parecia inteiramente irrelevante.

Na sala final estava uma exposição especial de arte infantil. Uma imagem cortou-lhe a respiração, um esboço a carvão de uma criança andrógina, encolhendo-se de medo perante a figura gigante de um oficial das SS.

Olhou para o relógio. Tinha passado uma hora. Deixou o museu de arte e apressou-se de volta aos arquivos para ouvir os resultados da pesquisa de Moshe Rivlin.

 

ENCONTROU RIVLIN CAMINHANDO ansiosamente no pátio de entrada de arenito do edifício dos arquivos. Rivlin pegou em Gabriel pelo braço e conduziu-o para dentro da pequena sala onde tinham estado uma hora atrás. Duas grossas pastas esperavam-nos. Rivlin abriu a primeira e entregou a Gabriel uma fotografia: Ludwig Vogel, com a farda de um Sturmbannführer SS.

— É Radek — sussurrou Rivlin, incapaz de conter a sua excitação. Acho que você pode ter encontrado Erich Radek!

13

 

 

VIENA

 

 

HERR KONRAD BECKER, da Becker & Pull, Talstrasse 26, Zurique, chegou a Viena na mesma manhã. Passou pelo controle de passaportes sem demoras e seguiu até a zona de chegadas, onde localizou o motorista de uniforme segurando um cartão onde se lia HERR BAUER. O cliente insistiu na precaução acrescida. Becker não gostava do cliente — nem tinha ilusões sobre a origem da conta — mas assim era a natureza da banca suíça privada, e Herr Konrad Becker era um verdadeiro devoto. Se o capitalismo fosse uma religião, Becker seria o líder de um sector extremista. Na opinião avalizada de Becker, o homem possuía o direito divino de transformar o dinheiro livre de regulamentos governamentais e de o ocultar onde e como quisesse. Evitar a tributação não era uma escolha mas sim uma obrigação moral. Dentro do mundo secreto da banca de Zurique, ele era conhecido pela sua discrição absoluta. Era essa a razão pela qual Konrad Becker tinha sido confiado com a conta.

Vinte minutos mais tarde, o carro parou em frente a uma mansão de pedra no Primeiro Bairro. Seguindo instruções de Becker, o motorista buzinou duas vezes e, depois de uma curta espera, o portão de metal abriu lentamente. Enquanto o carro avançava, um homem desceu o curto lanço de degraus. Estava nos seus quarentas e muitos, com o porte e a elegância de um esquiador de competição. O seu nome era Klaus Halder.

Halder abriu a porta do carro e conduziu Becker até o bali de entrada. Como de costume, pediu ao banqueiro que abrisse a sua pasta para inspeção. Em seguida mandou-o estar na degradante posição de Leonardo, braços e pernas abertos, para uma minuciosa passagem do detector de metais manual.

Finalmente foi escoltado até a sala de visitas, um gabinete vienense formal, amplo e retangular, com paredes de um amarelo rico e sancas pintadas da cor de creme coagulado. A mobília era barroca e coberta de fino brocado. Um relógio de ouropel tiquetaqueava suavemente na prateleira. Cada peça de mobiliário, cada lâmpada e objeto decorativo parecia complementar o outro e a sala era um todo. Era a sala de um homem que claramente tinha dinheiro e gosto em quantidades iguais. Herr Vogel, o cliente, estava sentado por baixo de um retrato que parecia, na opinião de Becker, ter sido pintado por Lucas Cranach, o Ancião. Levantou-se devagar e estendeu a mão. Faziam um par contrastante: Vogel, alto e germânico, com os seus olhos azuis-claros e cabelo branco; Becker, baixo e careca com uma segurança cosmopolita nascida do contato com a natureza variada da sua clientela. Vogel soltou a mão do banqueiro e apontou para uma cadeira vazia. Becker sentou-se e retirou um livro de registro forrado a pele da sua pasta. O cliente acenou solenemente. Ele nunca fora de conversa fiada.

— Segundo registros desta manhã — disse Becker — o valor total da conta é de dois mil milhões e meio de dólares. Quase um mil milhões está em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento: a tributação habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis. Em preparação para a liquidação e dispersão da conta, está a decorrer a venda dos valores imobiliários. Devido ao estado da economia global, está a levar mais tempo do que esperávamos.

— Quando estará o processo completo?

— A nossa data-limite é o final do mês. Mesmo que não consigamos cumprir, a dispersão do dinheiro será iniciada imediatamente após a recepção da carta do escritório do chanceler. As instruções neste ponto são muito específicas. A carta deve ser entregue em mão no meu escritório em Zurique, não mais de uma semana depois de o chanceler prestar juramento. Tem de ser em papel oficial da chancelaria timbrado e por cima da assinatura do chanceler.

— Posso assegurar-lhe que a carta do chanceler está a ser encaminhada.

— Em antecipação à vitória de Herr Metzler, iniciei a difícil tarefa de localizar todos aqueles a quem é devido pagamento. Como sabe, estão espalhados da Europa ao Oriente Médio, à América do Sul e aos Estados Unidos . Também estive em contato com o diretor do Banco do Vaticano. Como deve calcular, dado o estado financeiro atual da Santa Sé, ele ficou muito contente com o meu telefonema.

— E porque não? Duzentos e cinquenta milhões de dólares é muito dinheiro.

Do banqueiro, um sorriso vigilante.

— Sim, mas nem mesmo o Santo Padre saberá a verdadeira origem do dinheiro.

Tudo o que o Vaticano tem de saber é que é de um abastado dador que deseja permanecer anônimo.

— E depois há a sua parte — disse Vogel.

— A parte do banco é de cem milhões de dólares, pagável após a dispersão de todos os fundos.

— Cem milhões de dólares, mais as taxas de transação que tem cobrado ao longo dos anos e a percentagem que tira dos lucros anuais. A conta fê-lo um homem extremamente rico.

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços. O banqueiro fechou o livro de registro com um baque abafado. Em seguida entrelaçou os dedos e olhou-os de modo pensativo por um momento antes de falar.

— Mas temo que tenha havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas. O último foi o sírio. Foi assassinado num clube de cavalheiros em Istambul, nos braços de uma prostituta russa. A moça foi assassinada, também. Uma cena terrível.

Vogel abanou a cabeça tristemente.

— O sírio deveria ter sido aconselhado a evitar locais como esse.

— Claro que como portador do número de conta e senha, irá manter o controle de todos os fundos que não possam ser dispersos. Isso é o que as instruções estipulam.

— Que sorte a minha.

— Vamos esperar que o Santo Padre não sofra um acidente semelhante.

O banqueiro removeu os óculos e inspecionou as lentes à procura de impurezas.

— Sinto-me obrigado a lembrá-lo, Herr Vogel, que eu sou a única pessoa com autoridade para dispersar fundos. Na eventualidade da minha morte, a autoridade passará para o meu sócio, Herr Puhl. Se eu morrer em circunstâncias violentas ou misteriosas, a conta será congelada até as circunstâncias da minha morte serem determinadas. Se as circunstâncias não puderem ser determinadas, a conta será considerada inativa. E sabe o que acontece às contas inativas na Suíça?

— Eventualmente tornam-se propriedade do próprio banco.

— Está correto. Ah, eu suponho que pode levar o caso a tribunal, mas isso iria levantar um número de questões embaraçosas sobre a proveniência do dinheiro. Questões que a instituição bancária suíça e o governo preferiam que não viessem a público. Como pode imaginar, tal inquérito seria desconfortável para todos os envolvidos.

— Então por atenção a mim, por favor cuide-se, Herr Becker. A sua continuação em boa saúde e segurança são de extrema importância para mim.

— Aprecio muito as suas palavras. Aguardarei a recepção da carta do chanceler. O banqueiro devolveu o livro de registro à sua pasta e fechou-a.

— Peço desculpa, mas há mais uma formalidade que me escapou. Quando discutimos a conta, é necessário que me diga o número da mesma. Para que conste, Herr Vogel, é capaz de o recitar para mim agora?

— Sim, claro.

Então, com a precisão germânica:

— Seis, dois, nove, sete, quatro, três, cinco.

— E a senha?

— Um, zero, zero, cinco.

— Obrigado, Herr Vogel.

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, o carro de Becker parou à porta do Hotel Ambassador.

— Espere aqui — disse o banqueiro ao condutor. — Não levo mais do que alguns minutos.

Atravessou a entrada e subiu no elevador até o quarto andar. Um americano alto de blazer amarrotado e gravata apertada admitiu-o no quarto 417. Ofereceu uma bebida a Becker, a qual o banqueiro recusou, em seguida um cigarro, que ele também declinou. Becker nunca tocara em tabaco. Talvez começasse.

O americano estendeu a mão em direção à pasta. Becker entregou-lha. O americano levantou a tampa e forçou o falso forro de couro, expondo um pequeno gravador de fitas. Retirou a fita e colocou-a num pequeno aparelho de reprodução. Carregou no REWIND e depois no PLAY. A qualidade de som era notável.

— Para que conste, Herr Vogel, é capaz de o recitar para mim agora?

— Sim, claro. Seis, dois, nove, sete, quatro, três, cinco.

— E a senha?

— Um, zero, zero, cinco.

— Obrigado, Herr Vogel. STOP.

O americano levantou o olhar e sorriu. O banqueiro parecia que tinha acabado de ser apanhado a trair a esposa com a sua melhor amiga.

— Fez um bom trabalho, Herr Becker. Estamos gratos.

— Acabei de cometer mais violações das leis de segredo bancário suíço do que consigo contar.

— É verdade, mas são leis execráveis. E aliás, vai receber cem milhões de dólares. Juntamente com o seu banco.

— Mas já não é o meu banco, é? É o seu banco agora.

O americano sentou-se recostado e cruzou os braços. Não insultou Becker negando-o.

 

 


14

 

 

JERUSALÉM

 

 

GABRIEL NÃO FAZIA ideia de quem seria Erich Radek. Rivlin contou.

Erich Wilhelm Radek nasceu em 1917 na aldeia de Alberndorf, cinquenta quilômetros a norte de Viena. Filho de um polícia, Radek frequentava o ginásio local e mostrava uma aptidão natural para matemática e física. Ganhou uma bolsa de estudo para frequentar a Universidade de Viena, onde estudou engenharia e arquitetura. Segundo os registros da universidade, Radek era um estudante talentoso que tirava notas altas. Era também ativista político da direita católica.

Em 1937, inscreveu-se como membro do partido nazista . Foi aceite e recebeu o número de membro partidário 57984567. Radek também se afiliou na Legião Austríaca, uma organização paramilitar nazista ilegal. Em Março de 1938, nos tempos da Anschluss, candidatou-se às SS. Louro e de olhos azuis, com um porte atlético, Radek foi considerado "nórdico puro" pela Comissão Racial das SS e, depois de uma dolorosa verificação da sua ascendência, foi considerado isento de sangue judeu e de outro sangue não ariano e aceite na irmandade de elite.

— Isto é uma cópia do arquivo partidário de Radek e os questionários que preencheu aquando da sua inscrição. Vem do Centro de Documentação de Berlim, o maior repositório de arquivos nazistas e SS do mundo.

Rivlin ergueu duas fotografias, uma era uma fotografia de frente, a outra de perfil.

— Estas são as fotografias oficiais das SS. Parece o nosso homem, não parece? Gabriel acenou com a cabeça. Rivlin recolocou as fotografias na pasta e continuou com a lição de história:

— Em Novembro de 1938, Radek tinha abandonado os estudos e trabalhava no Departamento Central para a Emigração Judaica, a instituição nazista que empreendeu uma campanha de terror e destituição econômica contra os judeus da Áustria, desenhada para forçar os judeus a abandonar o país "voluntariamente". Radek causou uma impressão favorável no diretor do

Departamento Central, que não era ninguém menos que Adolf Eichmann. Quando Radek manifestou desejo de ir a Berlim, Eichmann concordou em ajudar. Além disso, Eichmann era habilmente assistido em Viena por um jovem nazista austríaco chamado Alois Brunner, que eventualmente viria a ser implicado nas deportações e massacre de 128 000 judeus da Grécia, França, Romênia e Hungria. Em Maio de 1939, Radek foi transferido para o Departamento Principal de Segurança do Reich em Berlim, onde foi delegado à Sicherheitsdienst, o serviço de segurança nazista conhecido como SD. Rapidamente passou a trabalhar diretamente para o notável chefe da SD, Reinhard Heydrich.

Em Junho de 1941, Hitler lançou a Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética. A Erich Radek foi atribuído o comando das operações da SD naquela que ficou conhecida como a Reichskommissariat Ucrânia, uma larga porção administrativa da Ucrânia que incluía as regiões de Volhynia, Zhitomir, Kiev, Nikolayev, Tauria e Dnepropetrovsk. As responsabilidades de Radek incluíam segurança no campo e operações anti-resistência. Também criou a colaboracionista Policia Auxiliar Ucraniana e controlava as suas atividades. Durante os preparativos para a Barbarossa, Hitler ordenou secretamente a Heinrich Himmler que exterminasse os judeus da União Soviética. Enquanto a Wehrmacht rolava sobre o território soviético, quatro esquadrões da morte móveis Einsatzgruppen seguiam de perto. Os judeus eram agrupados e transportados para locais isolados, normalmente localizados junto de valas antitanque, pedreiras abandonadas, ou ravinas fundas, onde eram assassinados a tiro de metralhadora e apressadamente enterrados em valas comuns.

— Erich Radek estava bem ciente das atividades das unidades Einsatzgruppen na Reichskommissariat — disse Rivlin. — Era, afinal de contas, o seu território. E ele não era um burocrático assassino de mesa. Radek apreciava realmente ver judeus serem assassinados aos milhares. Mas o seu maior contributo para a Shoah ainda está para vir.

— É o quê?

— Tem a resposta a essa pergunta no seu bolso. Está gravada no interior do anel que tirou da casa na Alta Áustria.

Gabriel tirou o anel do bolso e leu a inscrição: 1005, bom trabalho, Heinrich.

— Eu suspeito que Heinrich seja nem mais nem menos Heinrich Müller, o chefe da Gestapo. Para o caso, a informação mais importante contida na inscrição são esses quatro números no inicio: um, zero, zero, cinco.

— O que significam?

Rivlin abriu a segunda pasta. Estava classificada como: AKTION 1005. COMEÇOU, de modo estranho, com uma queixa por parte dos vizinhos.

No inicio de 1942, o escoamento de águas primaveril expôs uma série de valas comuns no distrito de Warthegau na Polônia ocidental, ao longo do rio Ner. Milhares de corpos flutuaram à superfície, e um cheiro nauseabundo espalhou-se por vários quilômetros em redor. Um alemão que vivia perto enviou uma carta anônima para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim queixando-se da situação. Sinos de alarme tocaram. As sepulturas continham os restos mortais de milhares de judeus assassinados pelas vans móveis de gás que, na altura, eram usadas no campo de concentração de Chelmno. A Solução Final, o segredo mais bem guardado da Alemanha nazista, estava em risco de ser exposto pelo degelo.

Os primeiros relatos do assassinato em massa de judeus já tinha começado a chegar ao mundo exterior, graças a um canal de comunicação diplomático soviético que alertou os Aliados sobre os horrores que estavam a ser levados a cabo pelas forças alemãs na Polônia e em solo soviético. Martin Luther, que lidava com os "assuntos judaicos" em nome do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, sabia que as sepulturas expostas perto de Chelmno representavam uma séria ameaça ao segredo da Solução Final. Encaminhou uma cópia da carta anônima para Heinrich Müller da Gestapo e requisitou ação imediata.

Rivlin tinha uma cópia da resposta de Müller a Martin Luther. Colocou-a na mesa, virou-a para que Gabriel a pudesse ver, e apontou para a passagem relevante:

A carta anônima enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a aparente solução da questão judaica no distrito de Warthegau, que me foi submetida por si a 6 de Fevereiro de 1942, eu imediatamente transmiti para tratamento adequado. Os resultados serão comunicados a seu tempo. Não há como evitar as lascas que caem ao chão num local onde se corta madeira.

Rivlin apontou para as citações no canto superior esquerdo do memorando: W B4 43/42 gRs [1005].

— Adolf Eichmann quase com certeza recebeu uma cópia da resposta de Müller a Martin Luther. Sabe, o departamento de Eichmann no Departamento Principal de Segurança do Reich aparece na linha da morada. Os números "43/42" representam a data: o quadragésimo terceiro dia de 1942, ou vinte e oito de Fevereiro. As iniciais g-R-s significam que o assunto é Geheime Reichssache, um assunto ultrassecreto do Reich. E aqui, entre parêntesis no fim da linha, estão os quatro números que seriam eventualmente usados como nome de código da ultra-secreta Aktion, um, zero, zero, cinco.

Rivlin devolveu o memorando à pasta.

— Pouco depois de Müller ter enviado essa carta a Martin Luther, Erich Radek foi retirado do comando na Ucrânia e transferido de volta ao Departamento Principal de Segurança do Reich em Berlim. Foi destacado para o departamento de Eichmann e embarcou num período intenso de estudo e planificação. Sabe, esconder o maior caso de assassinato em massa da história não era tarefa fácil. Em Junho, regressou a leste, sob a autoridade direta de Müller, e meteu mãos à obra.

A cidade polonesa de Lodz, a cerca de oitenta quilômetros a sudoeste do campo de concentração de Chelmno foi escolhida por Radek para sede do seu Sonderkommando 1005. A morada exata era Geheime Reichssache e desconhecida, exceto para algumas altas patentes das SS. Toda a correspondência passava pelo departamento de Eichmann em Berlim.

Radek confiou na cremação como o método mais eficaz de se livrar dos corpos. Queimar já fora tentado antes, normalmente com lança-chamas, mas com resultados insatisfatórios. Radek fez bom uso dos seus conhecimentos de engenharia, inventando um método de queimar cadáveres, dois mil de cada vez, em piras feitas de torres aerodinâmicas. Vigas de madeira grossas, com cerca de sete a oito metros de comprimento, eram embebidas em gasolina e colocadas em cima de blocos de cimento. Os corpos eram espalhados entre as vigas: corpos, vigas, corpos, vigas, corpos A acendalha embebida em gasolina era colocada na base da estrutura e posta em chamas. Quando o fogo esmorecia, os corpos carbonizados eram esmagados e dispersos por maquinaria pesada.

O trabalho sujo era feito por escravos judeus. Radek organizou os judeus em três equipes, uma equipe para abrir o fosso fúnebre, a segunda para transportar os cadáveres do fosso para a pira, e uma terceira para procurar ossos e objetos de valor nas cinzas. No final de cada operação, o terreno era terraplanado e replantado para esconder o que se tinha passado ali. Em seguida os escravos eram assassinados e os corpos destruídos. Dessa forma o segredo da Aktion 1005 era preservado.

Quando o trabalho em Chelmno terminou, Radek e o seu Sonderkommando 1005 seguiram para Auschwitz, onde tinham como missão limpar os cheios fossos fúnebres. No final do Verão de 1942, problemas sérios de contaminação e de saúde surgiram em Belzec, Sobibor e Treblinka. Poços junto dos campos que abasteciam de água potável os guardas e as unidades Wehrmacht circundantes tinham sido contaminados pela proximidade das valas comuns. Nalguns casos, a fina camada de solo que os cobriam tinham aberto e odores tóxicos libertavam-se para o ar. Em Treblinka, as SS e assassinos ucranianos nem se tinham preocupado em enterrar todos os corpos . No dia em que o comandante de campo Franz Stangl chegou para assumir o posto, era possível sentir o cheiro de Treblinka a trinta quilômetros de distância. Corpos sujavam a estrada de acesso ao campo, e pilhas de cadáveres putrefatos saudavam-no da plataforma do caminho-de-ferro. Stangl queixou-se que não podia começar a trabalhar em Treblinka enquanto não limpassem a confusão. Radek ordenou que as valas comuns fossem abertas e os corpos queimados.

Na Primavera de 1943, o avanço do Exército Vermelho obrigou Radek a desviar a sua atenção dos campos de extermínio da Polônia para os locais de extermínio mais a leste, no território soviético ocupado. Em breve estava de volta ao seu território na Ucrânia. Radek sabia onde os corpos estavam enterrados, mesmo literalmente, porque dois anos antes coordenara as operações dos esquadrões da morte Einsatzgruppen. Perto do final do Verão, o Soderkommando 1005 deslocou-se da Ucrânia para a Bielorrússia e, em Setembro, estava ativo nos estados Bálticos da Lituânia e Letônia, onde populações inteiras de judeus tinham sido exterminadas. Rivlin fechou a pasta e afastou-a repugnado.

— Nunca saberemos quantos corpos Radek e os seus homens limparam. O crime é demasiado enorme para dissimular completamente, mas a Aktion 1005 conseguiu apagar muitas das provas e fazer com que seja virtualmente impossível, depois da guerra, saber ao certo o número de mortos. O trabalho de Radek foi tão minucioso que, nalguns casos, as comissões polonesas e soviéticas que investigam a Shoah não conseguiram encontrar vestígios das valas comuns. Em Babi Yar, a limpeza de Radek foi tão perfeita que, depois da guerra, os soviéticos conseguiram transformar a zona num parque. E agora, infelizmente, a falta de restos mortais deu inspiração à horda de lunáticos que reivindica que o Holocausto nunca aconteceu. As ações de Radek assombram-nos até os dias de hoje.

Gabriel pensou nas páginas de testemunho na Galeria dos Nomes, as únicas lápides para milhões de vítimas.

— Max Klein jurou que viu Ludwig Vogel em Auschwitz no verão ou no início do outono em 1942 — disse Gabriel. — com base no que me disse, isso é inteiramente possível.

— De fato, assumindo, claro, que Vogel e Radek são na realidade o mesmo homem. O Soderkommando 1005 de Radek esteve definitivamente ativo em Auschwitz em 1942.

Se Radek estava lá ou não num determinado dia é provavelmente impossível de provar.

— E o que é que sabemos sobre o que aconteceu a Radek depois da guerra?

— Não muito, lamento. Ele tentou fugir para Berlim disfarçado de cabo da Wehrmacht. Foi preso sob suspeita de ser um homem das SS e foi internado no campo de prisioneiros de Mannheim. Algures no início de 1946, escapou. Depois disso, é um mistério. Parece que conseguiu sair da Europa. Houve alegados avistamentos em todos os locais

habituais: Síria, Egipto, Argentina, Paraguai, mas nada fidedigno. Os caçadores de nazistas andavam atrás de peixe graúdo como Eichmann, Bormann, Mengele e Müller. Radek conseguiu voar abaixo da linha de radar. Além disso, o segredo de Aktion 1005 estava tão bem guardado que o assunto quase não foi tocado nos julgamentos de Nuremberg. Ninguém sabia muito sobre o assunto, na realidade.

— Quem era o responsável por Mannheim?

— Era um campo americano.

— Sabemos como conseguiu ele escapar da Europa?

— Não, mas devemos assumir que teve ajuda.

— A ODESSA?

— Talvez tenha sido a ODESSA, ou alguma das outras redes secretas de ajuda nazista.

Rivlin hesitou, e disse: — Ou talvez tenha sido uma altamente pública e antiga instituição sedeada em Roma que operou a mais bem-sucedida rota de fuga nazista do período pós-guerra.

— O Vaticano?

Rivlin acenou com a cabeça.

— A ODESSA não chegava aos pés do Vaticano quando tocava a financiar e promover rotas de fuga da Europa. Porque Radek era austríaco, ele foi certamente assistido pelo bispo Hudal.

— Quem é Hudal?

— Alois Hudal era natural da Áustria, um antissemita e um nazista fervoroso. Usou a sua posição de prior do Pontifício de Santa Maria dell'Anima, o seminário alemão em Roma, para ajudar centenas de oficiais SS a escapar da justiça, incluindo Franz Stangl, o comandante de Treblinka.

— Que tipo de ajuda fornecia ele?

— Para começar, um passaporte da Cruz Vermelha com um novo nome e um visto de entrada num pais longínquo. Também lhes dava um pouco de dinheiro e pagava as passagens.

— Mantinha registros?

— Aparentemente sim, mas essa papelada está trancada a sete chaves na Anima.

— Preciso de tudo o que tiver sobre o bispo Alois Hudal.

— Vou organizar uma pasta para si.

Gabriel pegou na fotografia de Radek e olhou-a cuidadosamente. Havia algo de familiar no rosto. Durante toda a exposição de Rivlin, tinha estado a dar voltas à cabeça. Então pensou nos esboços a carvão que vira essa manhã no museu de arte do Holocausto, a criança encolhida de medo perante o monstro das SS, e percebeu de imediato onde já tinha visto a cara de Radek.

Levantou-se subitamente tombando a cadeira.

— O que se passa? — perguntou Rivlin.

— Eu conheço este homem — disse Gabriel com os olhos postos na foto.

— Como?

Gabriel ignorou a pergunta.

— Preciso disto emprestado — disse.

Então, sem esperar pela resposta de Rivlin, desapareceu porta fora.


15

 

JERUSALÉM

 

 

Nos VELHOS TEMPOS tomaria a via rápida norte por Ramallah, Nablus e Jenin. Agora, mesmo um homem com as capacidades de sobrevivência de Gabriel, seria imprudente tentar tal caminho sem um carro blindado e uma escolta de combate. Então optou pelo caminho mais longo, descendo a encosta ocidental das Montanhas da Judeia em direção a Tel Aviv, pela Planicie Costeira até Hadera e em seguida para noroeste pela serrania do Monte Carmel até El Megiddo: Armageddon.

O vale verde-acastanhado de orquídeas e florestas plantadas pelos primeiros judeus que se estabeleceram na Palestina abriu-se perante ele, estendendo-se das colinas samarianas ao sul às encostas da Galileia ao norte. Continuou em direção a Nazaré, em seguida para leste, para uma pequena vila agrícola no limite do Bosque Balfour chamada Ramat David.

Levou alguns minutos até encontrar a morada. O bangalô que fora construído para os Allon tinha sido deitado abaixo e substituído por um ao estilo californiano, de arenito com trepadeiras, uma antena de satélite no telhado e uma van de fabrico americano na entrada. Enquanto Gabriel olhava, um soldado saiu pela porta da frente e caminhou com vivacidade através do relvado frontal. A memória de Gabriel iluminou-se. Ele viu o pai percorrendo o mesmo caminho numa tarde quente em

Junho, seria a última vez que Gabriel o veria com vida, embora não o tivesse percebido na altura.

Olhou para a casa ao lado. Era a casa onde Tziona morava. Os brinquedos de plástico que coloriam o relvado frontal indicavam que Tziona, solteira e sem filhos, já não vivia ali. Mesmo assim, Israel não era mais que uma família grande e conflituosa e Gabriel estava confiante de que os novos ocupantes poderiam, pelo menos, dar-lhe a indicação correta. Tocou à campainha. A jovem mulher roliça que falava hebraico com sotaque russo não o desapontou. Tziona estava a viver mais acima, em Safed. A mulher russa tinha uma morada para encaminhamento de correspondência.

 

OS JUDEUS TÊM vivido no centro de Safed desde os dias da antiguidade. Após a expulsão de Espanha em 1492, os turcos otomanos permitiram a muitos mais judeus estabelecerem-se em Safed e a cidade floresceu como centro de misticismo, escolaridade e arte judaica. Durante a guerra da independência, Safed esteve à beira de cair sob forças árabes quando a comunidade sitiada foi reforçada por um pelotão de combatentes Palmach, que tomaram a cidade depois de uma arriscada travessia noturna desde a sua guarnição no Monte Canaan. O líder da unidade Palmach negociou um acordo com os poderosos rabis de Safed para trabalhar durante a Páscoa no reforço das fortificações da cidade. O seu nome era Ari Shamron.

O apartamento de Tziona situava-se no Bairro dos Artistas, no topo de um lanço de escadas de pedra da calçada. Ela era uma mulher enorme de cabelos cinzas, vestida com uma cafetã branca, e tantas pulseiras que tilintaram quando atirou os braços em volta do pescoço de Gabriel. Levou-o para dentro, para um espaço que era uma mistura de sala de estar com oficina de oleiro, e sentou-o no terraço de pedra para observar o entardecer sobre a Galileia. O ar cheirava a óleo de lavanda a arder.

Foi servido um prato de pão e hummus, juntamente com azeitonas e uma garrafa de vinho Golan. Gabriel relaxou instantaneamente. Tziona Levin era como uma irmã que nunca tivera. Tinha tomado conta dele quando a mãe estava a trabalhar ou demasiado deprimida para se levantar da cama. Algumas noites, ele saltava da sua janela e penetrava na porta ao lado para a cama de Tziona. Ela acariciava-o e abraçava-o de uma forma que a mãe nunca poderia. Quando o seu pai fora morto na guerra de Junho, fora Tziona a enxugar-lhe as lágrimas.

O rítmico e hipnótico som de rezas Maariv flutuava desde a sinagoga nas imediações. Tziona acrescentou mais óleo de lavanda ao candeeiro. Falou do matsav: a situação.

As lutas nos territórios e o terrorismo em Tel Aviv e Jerusalém. De amigos perdidos para a shaheed e amigos que tinham desistido de procurar emprego em Israel e tinham-se mudado para a América. Gabriel bebeu o vinho e observou o sol de fogo afundar-se na Galileia. Estava a escutar Tziona, mas os seus pensamentos estavam na sua mãe. Já tinham passado cerca de vinte anos depois da sua morte, e desde então ele descobrira que pensava nela cada vez menos. O seu rosto, enquanto jovem, tinha-se perdido para ele, despido de pigmento e gasto, como uma tela desbotada pelo tempo e exposição a elementos corrosivos. Apenas conseguia conjurar a sua máscara de morte. Após as torturas do cancro, as suas feições amaciadas tinham-se transformado numa expressão de serenidade, como uma mulher que posa para um retrato. Ela parecia dar as boas-vindas à morte. Tinha-a finalmente salvo dos tormentos que a violentavam dentro da sua memória.

Tinha-o amado? Sim, pensava ele agora, mas tinha-se cercado de paredes e ameias que ele nunca conseguiria trepar. Ela era dada à melancolia e a mudanças de espírito violentas. Não dormia bem de noite. Não conseguia mostrar prazer em ocasiões festivas nem tomar parte em comidas e bebidas requintadas. Usava sempre uma ligadura no braço esquerdo, por cima dos desbotados números tatuados na pele. Referia-se a eles como sendo a marca da fraqueza judaica, o seu emblema à vergonha judaica.

Gabriel seguiu pintura para estar mais perto dela. Ela rapidamente sentiu isso como uma intrusão não autorizada ao seu mundo privado; então, quando os seus talentos amadureceram e começaram a desafiar os dela, ela invejou os seus dons. Gabriel empurrou-a para novas alturas. A sua dor, tão visível em vida, encontrava expressão no seu trabalho. Gabriel cresceu obcecado com as imagens de pesadelos que fluíam da memória dela para as telas e começou à procura da origem.

Na escola ouvira falar de um lugar chamado Birkenau. Perguntou-lhe sobre a ligadura que ela normalmente usava no braço esquerdo, sobre as blusas de manga comprida que ela vestia, mesmo com o calor de fornalha que fazia no Vale Jezreel. Perguntou o que lhe tinha acontecido durante a guerra, o que tinha acontecido aos seus avós. À partida ela recusou-se, mas finalmente, debaixo do seu constante ataque de perguntas, ela compadeceu-se. A sua narrativa era apressada e relutante; Gabriel, mesmo jovem, era capaz de detectar o tom evasivo e mais de um traço de culpa. Sim, ela estivera em Birkenau. Os seus pais tinham sido assassinados no dia em que lá chegaram. Ela tinha trabalhado. Ela tinha sobrevivido. E era tudo. Gabriel, sedento de mais detalhes sobre a experiência da mãe, começou a conjurar todo o tipo de cenários para justificar a sobrevivência da mãe. Também ele se começou a sentir envergonhado e culpado. O seu sofrimento, como um malefício hereditário, estava deste modo a passar para a geração seguinte.

O assunto nunca mais voltou a ser discutido. Era como se uma porta de aço se tivesse fechado, como se o Holocausto nunca tivesse acontecido. Ela caiu numa depressão prolongada e esteve acamada por muitos dias. Quando finalmente emergiu, retirou-se para o seu estúdio e começou a pintar. Trabalhou inflexivelmente noite e dia. Uma vez, Gabriel olhou pela porta entreaberta e encontrou-a esparramada no chão, as mãos manchadas de tinta, tremendo perante uma tela. Essa tela era a razão pela qual ele tinha vindo a Safed encontrar-se com Tziona.

O sol tinha-se posto. Estava agora frio no terraço. Tziona colocou um xaile sobre os ombros e perguntou a Gabriel se alguma vez tencionava voltar para casa. Gabriel murmurou qualquer coisa sobre precisar de trabalho, como os amigos de Tziona que se tinham mudado para a América.

— E para quem andas a trabalhar ultimamente? Ele não se deu ao desafio.

— Restauro pinturas de mestres antigos. Preciso estar onde as pinturas estão. Em Veneza.

— Veneza — disse ela ironicamente.

— Veneza é um museu. — Disse erguendo o copo de vinho em direção à Galileia.

— Isto é vida real. Isto é arte. Basta de restauração. Devias dedicar todo o teu tempo e energia ao teu próprio trabalho.

— O meu próprio trabalho não existe. Isso saiu de mim há muito tempo. Sou um dos melhores restauradores de arte do mundo. Isso é suficiente para mim.

Tziona pôs as mãos apara o alto. As suas pulseiras tilintaram como um espanta-espiritos.

— É mentira. Você é uma mentira. É um artista, Gabriel. Vem para Safed e encontre sua arte. Encontre-se a si mesmo.

A sua maneira provocadora o deixava incomodado. Ele poderia ter dito que havia uma mulher envolvida, mas isso teria aberto toda uma nova frente que Gabriel estava ansioso por evitar. Em vez disso, permitiu que o silêncio, apenas preenchido pelo som consolante de Ma'ariv, caísse entre eles.

— O que faz em Safed? — perguntou ela finalmente. — Eu sei que não fez este caminho todo até aqui para ouvir um sermão de sua Doda Tziona.

Perguntou se Tziona ainda tinha as pinturas e esboços da mãe.

— Claro que sim, Gabriel. Tenho-os guardado todos estes anos à espera de que viesse pedir.

— Ainda não estou preparado para tirá-los de suas mãos. Só preciso vê-los.

Ela segurou uma vela junto ao rosto dele.

— Está me escondendo alguma coisa, Gabriel. Eu sou a única pessoa no mundo capaz de saber quando tem segredos. Sempre foi assim, especialmente quando era um garoto.

Gabriel serviu-se de mais um copo de vinho e contou a Tziona sobre Viena.

 

ELA ABRIU A porta e puxou a corda que acendia a luz do teto. O armário estava cheio de telas e esboços de alto a baixo. Gabriel começou a folhear o trabalho. Tinha-se esquecido quão talentosa era a sua mãe. Conseguia ver as influências de Beckmann, Picasso, Egon Schiele e, claro, do seu pai, Viktor Frankel. Até havia variações nos temas que Gabriel tinha explorado no seu próprio trabalho na altura. A sua mãe tinha-os desenvolvido ou, nalguns casos, destruído completamente. Ela tinha sido espantosamente talentosa.

Tziona empurrou-o para o lado e saiu com uma pilha de telas e de grandes envelopes cheios de esboços. Gabriel agachou-se no chão de pedra e examinou os trabalhos enquanto Tziona observava por cima do ombro.

Havia imagens de campos. Camaratas a abarrotarem de crianças. Mulheres trabalhando como escravas em maquinaria de fábricas. Corpos empilhados como lenha, à espera de serem arremessados ao fogo. Uma família abraçando-se enquanto o gás a envolvia.

A tela final tinha uma figura solitária pintada, um homem das SS completamente vestido de negro. Era a pintura que tinha visto naquele dia, no estúdio da mãe. Enquanto os outros trabalhos eram escuros e abstratos, neste ela empenhara-se no realismo e na revelação. Gabriel estava maravilhado com o seu impecável traço e pincelada antes de os seus olhos se fixarem no rosto do sujeito. Pertencia a Erich Radek.

 

TZIONA PREPAROU uma cama no sofá da sala para Gabriel e recitou-lhe a midrash do vaso quebrado.

— Antes de Deus criar o mundo, havia apenas Deus. Quando Deus decidiu criar o mundo, Deus parou para criar o espaço para o mundo. Foi nesse espaço que o universo foi formado. Mas agora, nesse espaço não havia Deus. Deus criou centelhas divinas, luz, para serem colocadas na criação de Deus. Quando Deus criou a luz, e colocou a luz dentro da criação, recipientes especiais foram preparados para a guardar. Mas houve um acidente. Um acidente cósmico. O recipiente quebrou. O universo ficou cheio de centelhas da luz divina de Deus e cacos de recipientes.

— É uma bela história — disse Gabriel, ajudando Tziona a entalar as pontas de um lençol nas almofadas do sofá. — Mas o que tem a ver com minha mãe?

— A midrash ensina que enquanto as centelhas da luz de Deus não estiverem unidas, a criação não está completa. Enquanto judeus este é o nosso dever solene. Chamamos Tikkun Olam: Reparação do Mundo.

— Consigo restaurar muitas coisas, Tziona, mas temo que o mundo seja uma tela grande demais, com muitos estragos.

— Então comece por baixo.

— Como?

— Reúna as centelhas de sua mãe, Gabriel. E castigue o homem que quebrou o vaso.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel escapou do apartamento de Tziona sem acordá-la e saiu pelas escadas de pedra na luz clara e cinza do amanhecer com o retrato de Radek debaixo do braço. Um judeu ortodoxo, a caminho das rezas matinais, pensou que ele era louco e sacudiu-lhe um punho, zangado. Gabriel colocou a pintura no porta-mala do carro e saiu de Safed. Um nascer do Sol vermelho surgia no horizonte. Por baixo, no vale, o Mar da Galileia transformou-se em fogo.

Parou em Afula para o café e deixou uma mensagem no gravador de Moshe Rivlin, avisando-o que estava a voltar a Yad Vashem. Já era fim da manhã quando ele chegou. Rivlin esperava-o. Gabriel mostrou-lhe a tela.

— Quem a pintou?

— A minha mãe.

— Qual era o seu nome?

— Irene Allon, mas o seu nome alemão era Frankel.

— Onde esteve ela?

— No campo de mulheres em Birkenau, de Janeiro de 1943 até o fim.

— A marcha da morte?

Gabriel declarou que sim com a cabeça. Rivlin segurou Gabriel pelo braço e disse:

— Venha comigo.

 

RIVLIN LEVOU GABRIEL até a mesa da sala principal de leitura dos arquivos e sentou-se em frente a um terminal de computador. Introduziu as palavras "Irene Allon" na base de dados e trauteou os seus dedos atarracados no teclado impacientemente enquanto esperava pela resposta. Alguns segundos depois, escrevinhou cinco números num pedaço de papel de rascunho e, sem dirigir uma palavra a Gabriel, desapareceu por uma porta que dava para as arrecadações dos arquivos. Vinte minutos mais tarde, regressou e colocou um documento na mesa. Por trás de uma capa de plástico transparente estavam as palavras ARQUIVOS YAD VASHEM, tanto em inglês como em hebraico, juntamente com um número de arquivo: 03/812. Gabriel levantou cuidadosamente a capa de plástico e virou a primeira página. O cabeçalho fê-lo sentir subitamente arrepiado: O TESTEMUNHO DE IRENE ALLON, ENTREGUE EM 19 DE MARÇO DE 1957. Rivlin colocou-lhe uma mão no ombro e saiu da sala. Gabriel hesitou um momento, então olhou para o documento e começou a ler.

16

O TESTEMUNHO DE IRENE ALLON: 19 DE MARÇO DE 1957

Não vou dizer todas as coisas que vi . Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos . Não vos vou falar da crueldade indescritível que suportamos nas mãos da chamada raça superior, nem vou falar das coisas que alguns fizeram para poder sobreviver mais um dia. Só aqueles que passaram por isso alguma vez poderão entender como realmente foi, e não vou humilhar uma vez mais os que morreram. Apenas vou falar das coisas que fiz, e as coisas que me foram feitas. Passei dois anos em Auschwitz-Birkenau, dois anos contados ao dia, quase precisamente contados à hora. O meu nome é Irene Allon. Costumava chamar-me

Irene Frankel. Isto é o que eu testemunhei em Janeiro de 1945 na marcha da morte desde Birkenau.

Para perceber a angústia da marcha da morte, primeiro terá de saber algo que aconteceu antes. Já ouviu a história pela boca de outros. Pela minha não será muito diferente. Como todos os outros, nós viemos de trem. O nosso partiu de Berlim a meio da noite. Disseram-nos que íamos para o leste, para trabalhar. Acreditamos. Disseram-nos que seria em carruagens adequadas com assentos. Asseguraram-nos que nos seria dada comida e água. Acreditamos. O meu pai, o pintor Viktor Frankel, levava com ele um bloco de desenho e alguns lápis. Tinha sido despedido do seu cargo de professor e o seu trabalho fora declarado "degenerado" pelos nazistas. A maioria dos seus quadros tinha sido confiscada e queimada. Ele tinha esperança que os nazistas o deixassem retomar o seu trabalho no leste.

Claro que não era uma carruagem adequada com assentos, e não havia comida nem água. Eu não recordo com precisão quanto tempo a viagem durou. Perdi a conta de quantas vezes o Sol nasceu e se pôs, quantas vezes viajamos para dentro e fora da escuridão. Não havia casa de banho, apenas um balde — um balde para sessenta de nós. Consegue imaginar as condições que suportamos. Consegue imaginar o cheiro insuportável. Consegue imaginar as coisas a que alguns de nós recorreram quando a sede nos levava à beira da loucura. No segundo dia, uma velhota, que estava ao pé de mim, morreu. Fechei-lhe os olhos e rezei por ela. Observei a minha mãe, Sarah Frankel, e esperei que ela também morresse. Perto de metade da nossa carruagem estava morta quando o trem finalmente guinchou para parar. Alguns rezaram. Outros, efetivamente, agradeceram a Deus por a viagem ter finalmente acabado.

Há dez anos que vivíamos sob o domínio de Hitler. Sofremos as leis de Nuremberg. Vivemos o pesadelo de Kristallnacht. Vimos as nossas sinagogas arder. Mesmo assim, eu não estava preparada para a visão que me iria saudar quando as trancas deslizaram e as portas foram finalmente abertas. Vi uma torre, uma chaminé de tijolo cônica, vomitando fumo espesso. Por baixo da chaminé havia um prédio, inflamado com intensas labaredas crepitantes. Havia um cheiro terrível no ar. Não o conseguimos identificar. Ainda reside nas minhas narinas até hoje. Havia um sinal por cima da plataforma do caminho-de-ferro. Auschwitz. Percebi então que tínhamos chegado ao inferno.

— Judeu, raus, raus ! — Um SS estala um chicote na minha coxa. — Sai da carruagem, juden. — Saltei para a plataforma coberta de neve. As minhas pernas, enfraquecidas de tantos dias em pé, cederam. O SS estala o chicote novamente, desta vez nos meus ombros. A dor é mais terrível que qualquer coisa já tivesse sentido antes. Ponho-me de pé. De alguma maneira consigo evitar chorar. Tento ajudar a minha mãe a descer da carruagem. O SS empurra-me. O meu pai salta para a plataforma e cai. A minha mãe também. como eu, eles são forçados a levantar-se à chicotada.

Homens de pijama às riscas trepam à carruagem e começam a atirar para fora a nossa bagagem. Eu penso, quem são estes loucos que tentam roubar as escassas posses que nos deixaram trazer? Parecem homens de um asilo para loucos, cabeças rapadas, rostos afundados, dentes podres. O meu pai vira-se para o SS e diz:

— Olhe ali, aquela gente está a tirar as nossas coisas. Faça-os parar! O oficial das SS diz calmamente que a nossa bagagem não está a ser roubada, apenas retirada para ser separada. Vai ser enviada assim que os alojamentos forem distribuídos. O meu pai agradece ao SS. com mocas e chicotes separam-nos, homens de mulheres, e instruem-nos para formar ordenadas filas de cinco. Na altura ainda não sabia, mas iria passar muito dos próximos dois anos em ordenadas filas de cinco. Consigo esgueirar-me para junto da minha mãe. Tento segurar-lhe a mão. Um SS separa as nossas mãos com uma paulada no meu braço. Ouço música. Algures, uma orquestra de câmara está a tocar Schubert. No inicio da fila está uma mesa e alguns oficiais SS. Um destaca-se em particular. Tem o cabelo preto e a pele cor de alabastro. Enverga um sorriso agradável no seu rosto atraente. O seu uniforme está bem engomado, as suas botas de montar reluzem com as luzes brilhantes da plataforma de caminho-de-ferro. Luvas de pelica. As mãos limpas e brancas. Está a assobiar "A Valsa do Danúbio Azul". Até hoje, não consigo ouvi-la. Mais tarde, saberei o seu nome. O seu nome é Mengele, o médico responsável por Auschwitz. É Mengele que decide quem está capaz de trabalhar e quem vai imediatamente para o gás. Direita e esquerda, vida e morte.

O meu pai chega na frente. Mengele, assobiando, olha para ele e diz com prazer:

— Para a esquerda, por favor.

— Foi-me assegurado que iria para um campo familiar — disse o meu pai. — A minha esposa virá comigo?

— É isso que deseja?

— Sim, claro.

— Qual delas é a sua mulher?

O meu pai aponta para a minha mãe. Mengele diz: — Você ai, saia da fila e acompanhe o seu marido para a esquerda. Depressa, por favor, não temos a noite toda.

Observei os meus pais afastarem-se para a esquerda, seguindo os outros. Pessoas de idade e crianças vão para a esquerda. Jovens e saudáveis são enviados para a direita. Cheguei à frente e fiquei cara-a-cara com o belo homem no seu uniforme impecável. Olha-me de cima a baixo, parece satisfeito, e sem dizer uma palavra aponta para a direita.

— Mas os meus pais foram para a esquerda.

O Demônio sorri. Há um espaço entre os dois incisivos da frente.

— Estará com eles em breve, mas confie em mim, por agora é melhor ir para a direita.

Ele parece tão atencioso, tão agradável. Eu acredito nele. vou para a direita. Olho por cima do ombro para os meus pais, mas eles já foram engolidos pela imunda e exausta massa humana arrastando-se em silêncio para o gás em ordenadas filas de cinco.

Não é possível falar de tudo o que se passou durante os dois anos seguintes. Algumas coisas não consigo lembrar. Algumas coisas decidi esquecer. Havia um ritmo implacável em Birkenau, uma crueldade monótona que corria sob um apertado e eficiente horário. A morte era uma constante, no entanto até a morte se tornou monótona.

Somos rapados, não só na cabeça, mas em todo o lado, braços, pernas, até nos pêlos púbicos. Eles não parecem importar-se se a tosquia nos corta a pele. Eles não parecem ouvir os nossos gritos. É-nos atribuído um número e tatuado no nosso braço esquerdo, mesmo por baixo do cotovelo. Cheguei a ser Irene Prankel. Agora sou uma ferramenta do Eeich conhecida por 29395. Pulverizam-nos com desinfetante, dão-nos roupa de prisão feita de lã áspera e grossa. A minha cheira a suor e sangue. Tento não respirar muito fundo. Os nossos "sapatos" são bocados de madeira com correias de couro. Não conseguimos caminhar com eles calçados. Quem conseguiria? É-nos entregue uma tigela de metal e é-nos ordenado que andemos sempre com ela. É-nos dito que se perdermos a tigela seremos imediatamente abatidos. Acreditamos.

Somos levados a casernas indignas de animais. As mulheres que lá nos esperam são qualquer coisa abaixo de humano. Estão esfomeadas, os seus olhares são vagos, os seus movimentos são lentos e apáticos. Pondero quanto tempo levará até eu ficar como elas. Um destes meio-humanos aponta-me na direção de um beliche vazio. Cinco moças apertam-se numa prateleira de madeira com apenas um colchão de palha infestado de bichos como cama. Apresentamo-nos. Duas são irmãs, Roza e Regina. As outras chamam-se Lene e Rachel. Somos todas alemãs. Todas perdemos os pais nas filas de seleção. Formamos uma nova família nessa noite. Abraçamo-nos e rezamos. Nenhuma de nós dorme.

Somos acordadas às quatro horas da manhã, seguinte. Acordarei todos os dias às quatro da manhã durante os próximos dois anos, exceto naquelas noites em que eles ordenam uma chamada noturna e fazem-nos estar em sentido nos pátios gelados durante horas a fio. Somos divididas em kommandos e enviadas para trabalhar. Na maioria dos dias, marchamos para fora até os campos das imediações para apanhar areia para construção ou para trabalhar nos projetos de agricultura do campo. Nalguns dias construímos estradas ou deslocamos pedras de um lugar para outro. Não passa um dia em que eu não seja espancada: uma paulada, um pontapé nas costelas. A ofensa pode ser deixar cair uma pedra ou descansar demasiado tempo na pega da minha pá. Os dois invernos são de um frio de rachar. Não nos dão roupa extra que nos proteja do tempo, mesmo quando trabalhamos no exterior. Os verões são miseravelmente quentes. Apanhamos malária. Os mosquitos não discriminam entre mestres alemães e escravos judeus. Até Mengele apanha malária.

Não nos dão comida suficiente para sobreviver, apenas o suficiente para que morramos à fome lentamente, mas de forma a conseguir servir o Reich. Perco o período, em seguida perco o peito. Não tarda muito até em parecer um dos meio-humanos que vi no primeiro dia em Birkenau. Ao pequeno-almoço temos água cinza que eles chamam chá. Ao almoço, sopa rançosa que comemos no local onde estamos a trabalhar. As vezes, talvez se encontre uma pequena porção de carne. Algumas das moças recusam-se a comer porque não é Kosher. Eu não me submeto às leis da dieta enquanto estou em Auschwitz-Birkenau. Não há Deus nos campos de concentração, eu odeio Deus por nos ter abandonado ao nosso destino. Se há carne na minha tigela, eu como. Para a ceia, é-nos dado pão. É em grande parte serradura. Aprendemos a comer metade à noite e guardar o resto para a manhã, para que tenhamos algo no estômago antes de marchar para os campos para trabalhar. Se sucumbes no trabalho, eles espancam-te. Se não te consegues levantar, eles atiram-te para uma maca e levam-te para o gás. Esta é a nossa vida no campo para mulheres de Birkenau. Acordamos. Retiramos as mortas dos beliches, as sortudas que morreram calmamente durante o sono. Bebemos o nosso chá cinza. Vamos para a chamada. Marchamos para o trabalho em ordenadas filas de cinco. Comemos o nosso almoço. Somos espancadas. Voltamos para o campo.

Vamos para a chamada. Comemos o nosso pão, dormimos e esperamos até tudo voltar a acontecer outra vez. Fazem-nos trabalhar durante o Shabbat. Aos domingos, o dia sagrado deles, não há trabalho. De três em três domingos eles tosquiam-nos. Tudo corre segundo um horário. Tudo exceto as seleções.

Aprendemos a antecipá-los. Como animais, os nossos sentidos de sobrevivência estão altamente apurados. A população do campo é o sinal de aviso mais fidedigno. Quando o campo está demasiado cheio, vai haver seleção. Nunca há aviso. Depois de uma chamada, somos mandadas alinhar na Lagerstrasse para esperar a nossa vez perante Mengele e a sua equipe de seleção, esperar a nossa vez para provar que ainda estamos capazes de trabalhar, ainda somos dignas de viver.

As seleções levam um dia inteiro. Não nos dão comida nem nada para beber. Algumas nunca chegam até a mesa onde Mengele faz de deus. São "selecionadas" pelos sádicos SS muito antes. Um bruto chamado Taube gosta de nos pôr a fazer "exercícios" enquanto esperamos, para que estejamos fortes perante os seletores. Obriga-nos a fazer flexões, a seguir ordena-nos que ponhamos a cara na lama e lá fiquemos . Taube tem um castigo especial para qualquer moça que se mova. Pisa-lhe a cabeça com todo o seu peso e esmaga-lhe o crânio. Finalmente chegamos perante o nosso juiz. Ele olha de cima abaixo, toma nota do nosso número.

— Abre a boca, judia. Levanta os braços.

Tentamos manter-nos saudáveis nesta fossa, mas é impossível. Uma garganta inflamada pode significar uma viagem ao gás. Pomadas e unguentos são demasiado preciosos para desperdiçar em judeus, então um corte na mão pode significar o gás na próxima vez que Mengele selecionar a população.

Se passamos na inspeção visual, o nosso juiz tem um teste final. Aponta para uma vala e diz:

— Salta judia. — Coloco-me em frente da vala e reúno as minhas últimas reservas de força. Aterro do outro lado e viverei, pelo menos até a próxima seleção. Caio e serei atirada para uma maca e levada para o gás. A primeira vez que passei por esta loucura pensei: Sou uma moça judaico-alemã de Berlim de uma boa família. O meu pai é um pintor de renome. Porque estarei eu a saltar esta trincheira?

Depois disto, não penso em mais nada senão em chegar ao outro lado e aterrissar de pé.

Roza é a primeira da nossa família a ser selecionada. Ela tem o azar de estar muito doente com malária na hora de uma seleção grande, e não há maneira de escondê-la dos olhos peritos de Mengele. Regina suplica ao Demônio que a leve também, para que a irmã não tenha de morrer sozinha no gás. Mengele sorri revelando seus dentes afastados.

— Irá em breve, mas antes ainda pode trabalhar mais um pouco. Vá para a direita. — Pela primeira vez na minha vida, estou contente por não ter uma irmã.

Regina para de comer. Parece nem reparar quando lhe batem no trabalho. Ela passou a linha. Ela já está morta. Na próxima grande seleção, ela espera pacientemente na fila interminável. Suporta os "exercícios" de Taube e mantém a cara na lama para que ele não lhe esmague o crânio. Quando por fim chega à mesa de seleção, voa até Mengele e tenta esfaqueá-lo no olho com a pega da sua colher. Um SS dá-lhe um tiro no estômago.

Mengele está claramente assustado.

— Não desperdice gás com ela! Jogue-a no fogo viva! Pela chaminé acima com ela!

Jogam Regina num carrinho de mão. Observamo-la e rezamos para que morra antes de chegar ao crematório.

No outono de 1944, começamos a ouvir as armas russas. Em Setembro, as sirenes de ataque aéreo soam pela primeira vez. Três semanas mais tarde soam outra vez e as baterias antiaéreas do campo disparam pela primeira vez. Nesse mesmo dia, o Soderkommajido do Crematorium IV revolta-se. Atacam os guardas SS com picaretas e martelos e conseguem lançar fogo à sua caserna e crematório antes de serem abatidos por tiros de metralhadora. Uma semana depois, bombas caem dentro do próprio campo. Os nossos mestres mostram sinais de tensão. Já não parecem tão invencíveis. Às vezes até parecem um pouco assustados. Isto dá-nos um certo prazer e um bocadinho de esperança. A intoxicação por gás pára. Eles ainda nos matam, mas têm de o fazer eles próprios. Prisioneiros selecionados são abatidos a tiro nas câmaras de gás ou perto do Crematorium V. Em breve começam a desmantelar o crematório. A nossa esperança de sobrevivência aumenta.

A situação se deteriora ao longo do outono e do inverno. A comida escasseia. Muitas mulheres sucumbem e morrem de fome e exaustão cada dia que passa. O tifo leva uma parte terrível. Em dezembro, bombas aliadas caem no I.O. Farben, fábrica de combustível sintético e borracha. Alguns dias mais tarde, os aliados atacam novamente, mas desta vez várias bombas caem numa enfermaria dentro de Birkenau. Cinco SS morrem. Os guardas ficam mais irritáveis, mais imprevisíveis. Eu os evito. Tento me fazer invisível.

O novo ano chega, 1944 transforma-se em 1945. Conseguimos sentir que Auschwitz está morrendo. Rezamos para que seja em breve. Debatemos o que fazer. Deveríamos esperar que os russos nos libertassem? Deveríamos tentar escapar? E se conseguíssemos passar para lá da vedação? Onde iriamos? Os camponeses poloneses odeiam-nos tanto como os alemães. Esperamos. Que mais podemos fazer?

Em meados de Janeiro, eu sinto o cheiro de fumo. Olho para fora da porta da caserna. Fogueiras erguem-se por todo o campo. O cheiro é diferente. Pela primeira vez não estão a queimar pessoas. Estão a queimar papel. Estão a queimar as provas dos seus crimes. A cinza paira sobre Birkenau como neve. Eu sorrio pela primeira vez em dois anos.

Em 17 de janeiro, Mengele parte. O fim está próximo. Pouco depois da meia-noite, há uma chamada. Dizem que o campo inteiro de Auschwitz está sendo evacuado. O Reich ainda precisa dos nossos corpos. Os saudáveis serão retirados a pé. Os doentes ficarão para trás abandonados à sua sorte. Agrupamo-nos e marchamos em ordenadas filas de cinco.

À uma da manhã, passo pelos portões do inferno pela última vez, precisamente dois anos desde o dia da minha chegada, quase na mesma hora. Ainda não estou livre. Ainda tenho mais um teste para suportar.

A queda de neve é forte e severa. À distância conseguimos ouvir o trovão de um duelo de artilharia. Caminhamos, uma aparentemente infindável corrente de meio-humanos, vestidos com os nossos trapos às riscas e os nossos tamancos. O tiroteio é tão severo como a neve. Tentamos contar os tiros. Cem... duzentos... trezentos... quatrocentos... quinhentos... deixamos de contar depois disso. Cada tiro representa mais uma vida extinguida, mais um assassinato. Éramos vários milhares quando saímos. Temo que estejamos todos mortos antes de chegarmos ao destino.

Lene caminha à minha esquerda, Rachel à minha direita. Tentamos não tropeçar. Aqueles que tropeçam são mortos na altura e atirados a uma vala. Tentamos não sair da formação e ficar para trás . Aqueles que o fazem são mortos, também. A estrada está manchada de mortos. Passamos-lhe por cima e rezamos para não esmorecer. Comemos neve para matar a sede. Não há nada que possamos fazer sobre o frio horrível. Uma mulher tem pena de nós e atira batatas cozidas. Os que são insensatos o suficiente para as apanhar são mortos.

Dormimos em celeiros ou em casernas abandonadas. Aqueles que não se conseguem levantar suficientemente rápido quando acordados são mortos. A minha fome parece estar a abrir um buraco no estômago. É muito pior que a fome em Birkenau. De alguma forma, eu reúno a força para continuar a manter um pé à frente do outro. Sim, eu quero sobreviver, mas é ao mesmo tempo uma espécie de provocação. Eles querem que eu caia para que me possam matar. Eu quero testemunhar a destruição do seu Reich milenar. Quero rejubilar-me com a sua morte, como os alemães rejubilam com a nossa. Penso em Regina, voando para Mengele durante a seleção, tentando matá-lo com a colher. A coragem de Regina me dá forças.

Cada passo é rebelião.

No terceiro dia, ao cair da noite, ele vem para mim. Está montado num cavalo. Estamos sentadas na neve à beira da estrada, descansando. Lene está encostada a mim. Os seus olhos estão fechados. Temo que ela esteja acabada. Rachel pressiona-lhe neve contra os lábios para reanimá-la. Rachel é a mais forte. Ela praticamente carregou Lene toda a tarde.

Ele olha para mim. Ele é um Sturmbannführer das SS. Depois de doze anos sob jugo dos nazistas, aprendi a reconhecer as insígnias. Tento fazer-me invisível. Viro a cabeça e cuido de Lene. Ele puxa as rédeas do cavalo e coloca-se numa posição em que possa olhar melhor para mim. Questiono-me o que verá ele em mim. Sim, fui uma moça bonita no passado, mas estou hedionda agora, exausta, suja, doente, um esqueleto ambulante. Não consigo suportar o meu próprio cheiro. Eu sei que se interajo com ele vai acabar mal. Coloco a cabeça nos joelhos e finjo dormir. Ele é esperto demais para isso.

— Você aí — chama ele.

Eu olho para cima. O homem montado no cavalo aponta diretamente para mim.

— Sim, você. Levante-se. Venha comigo.

Eu me levanto. Estou morta. Eu sei. Rachel sabe também. Consigo vê-lo nos seus olhos. Ela já não tem mais lágrimas para chorar.

— Lembre-se de mim — sussurro enquanto sigo o homem a cavalo para as árvores. Felizmente ele não me pede para andar muito, apenas até um local a alguns metros da beira da estrada, onde uma grande árvore estava caída. Ele desmonta e amarra o cavalo. Senta-se na árvore caída e ordena que me sente junto a ele. Eu hesito. Nunca um SS pediu tal coisa. Dá umas palmadinhas na árvore. Eu me sento, mas alguns centímetros mais afastada do lugar que ele indicou. Estou com medo, mas também me sinto humilhada pelo meu cheiro. Ele desliza para mais perto. Cheira a álcool. Estou feita. É só uma questão de tempo.

Olho em frente. Ele tira as luvas, e toca meu rosto. Em dois anos de Birkenau, nenhum SS jamais me tocou. Por que este homem, um Sturmbannführer, me toca agora? Suportei muitas tormentas, mas esta é de longe a pior. Eu olho para a frente. A minha carne está em chamas.

— Que desperdício — diz ele. — Você era muito bonita antes?

Não consigo pensar em nada para dizer. Dois anos de Birkenau ,e ensinaram que em situações como esta nunca há uma resposta certa. Se respondo que sim, ele vai me acusar de arrogância judaica e me mata. Se respondo não, me mata por mentir.

— Vou partilhar um segredo com você. Sempre me senti atraído por judias. Se fosse por mim, devíamos ter matado os homens e usado as mulheres para nosso prazer. Teve filhos?

Penso em todas as crianças que vi irem para o gás em Birkenau. Ele exige uma resposta apertando rosto entre o polegar e os dedos. Fecho os olhos e tento não gritar. Ele repete a pergunta. Eu nego com a cabeça e ele me solta.

— Se conseguir sobreviver às próximas horas, talvez um dia tenha um filho. Dirá a esse filho o que aconteceu com você na guerra? Ou sentirá vergonha demais?

Um filho? Como é que uma moça na minha posição podia sequer contemplar dar à luz uma criança? Passei os últimos dois anos a tentar sobreviver simplesmente. Um filho está além da minha compreensão.

— Responda, judia!

A sua voz é repentinamente áspera. Sinto que a situação está prestes a ficar fora de controle. Ele agarra meu rosto novamente e vira-a para si. Tento olhar em outra direção, mas ele me sacode, obrigando-me a olhá-lo nos olhos.

Não tenho forças para resistir. Seu rosto é instantaneamente talhado na minha memória. Assim como o som de sua voz e seu alemão de sotaque austríaco. Ainda consigo ouvi-lo.

— O que dirá a seu filho sobre a guerra?

O que quer ele ouvir? O que quer ele que eu diga? Apertou-me o rosto.

— Fale, judia! O que dirá a teu filho sobre a guerra?

— A verdade, Herr Sturmbannführer. Eu direi ao meu filho a verdade.

De onde vieram estas palavras, não sei. Apenas sei que se estou prestes a morrer, morrerei com um pouquinho de dignidade. Penso novamente em Regina, voando para Mengele armada com uma colher.

Ele relaxa o aperto. A primeira crise parece ter passado. Ele exala pesadamente, como se exausto pelo seu longo dia de trabalho, então tira um cantil do bolso do casaco e dá um gole prolongado. Felizmente, ele não me oferece. Devolve o cantil ao bolso e acende um cigarro. Não me oferece um cigarro. Tenho cigarro e álcool, ele diz. Você não tem nada.

— A verdade? O que é a verdade, judia, como você a vê?

— Birkenau é a verdade, Herr Sturmbannführer.

— Não, minha querida, Birkenau não é a verdade. Birkenau é um boato. Birkenau é uma invenção dos inimigos do Reich e do cristianismo. É propaganda stalinista e ateísta.

— E as câmaras de gás? O crematório?

— Essas coisas não existiram em Birkenau.

— Eu vi, Herr Sturmbannführer. Todos nós vimos.

— Ninguém vai acreditar em tal coisa. Ninguém vai acreditar que é possível matar tantos. Milhares? Claro que a morte de milhares é possível. Afinal de contas isto foi uma guerra. Centenas de milhares? Talvez. Mas milhões? — Ele aspira seu cigarro. — Para dizer a verdade, eu vi com meus próprios olhos, e nem eu consigo acreditar.

Um tiro crepita pela floresta, seguido de outro. Mais duas moças mortas. O Sturmbaunführer dá outra longa golada no seu cantil de álcool.

Por que está bebendo? Está tentando manter-se quente? Ou ficar fora de si antes de me matar?

— Vou dizer o que você vai contar da guerra. Vai contar que foi transferida para leste. Que teve trabalho. Que tinha comida em abundância e cuidados médicos adequados. Que te tratamos bem e humanamente.

— Se isso é a verdade, Herr Sturmbannführer, então por que sou um esqueleto?

Ele não tem resposta, exceto sacar a pistola e encostá-la em minha têmpora.

— Repita o que aconteceu a você na guerra, judia. Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são invenções bolchevismo-judaicas. Diga essas palavras, judia.

Eu sei que não há como escapar viva desta situação. Mesmo que diga as palavras, estou morta. Não vou dizê-las. Não lhe vou dar essa satisfação. Fecho os olhos e espero que a bala faça um túnel em meu cérebro e me liberte do meu tormento.

Ele baixa a arma e grita. Outro SS aparece correndo. O Sturmbannführer ordena-lhe que me vigie. Ele sai e caminha pelas árvores até a estrada. Quando volta está acompanhado por duas mulheres. Uma delas é Rachel. A outra é Lene. Ordena ao SS que saia, e coloca a arma encostada na testa de Lene. Lene olha diretamente para meus olhos. Sua vida está em minhas mãos.

— Diga as palavras, judia! Foi transferida para o leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevismo-judaicas.

Não posso permitir que Lene morra pelo meu silêncio. Abro minha boca para falar, mas antes que possa repetir as palavras, Rachel grita:

— Não diga, Irene. Ele vai nos matar de qualquer maneira. Não lhe dê esse prazer.

O Sturmbannführer retira a arma da cabeça de Lene e coloca-a contra a de Rachel.

— Então diga você, cabra judia.

Rachel olha diretamente nos meus olhos e permanece em silêncio. O Sturmbannführer pressiona o gatilho e Rachel cai morta na neve. Coloca a arma contra a cabeça de Lene e, mais uma vez, ordena-me que fale. Lene abana a cabeça lentamente. Despedimo-nos com o olhar. Outro tiro e Lene cai junto a Rachel.

É minha vez de morrer.

O Sturmbannführer aponta a arma na minha direção. Da estrada vem o som de gritos. Raus! Raus! Os SS estão espicaçando as moças para que se levantem. Eu sei que minha caminhada acabou. Eu sei que não vou sair deste lugar viva. É onde eu vou cair, à beira de uma estrada polonesa, e aqui serei enterrada, sem mazevoth para marcar meu túmulo.

— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?

— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.

— Ninguém vai acreditar em você. — Guarda a pistola no coldre. — Sua coluna está de partida. Junte-se a eles. Sabe o que acontece aos que ficam para trás.

Ele monta em seu cavalo e sacode as rédeas. Eu caio na neve junto aos corpos das minhas amigas. Rezo por elas e peço que me perdoem. O fim da coluna passa. Cambaleio por entre as árvores e junto-me ao grupo. Caminhamos a noite inteira, em ordenadas filas de cinco. Eu verto lágrimas de gelo. Cinco dias depois de caminhar para longe de Birkenau, chegamos a uma estação de trem na vila silesiana de Wodzislaw. Somos agrupadas em vagões de carvão abertas e viajamos pela noite, expostas ao perverso tempo de Janeiro. Os alemães já não tinham necessidade de desperdiçar mais das suas preciosas munições conosco. O frio matou metade das moças só no meu vagão. Chegamos a um novo campo, Ravensbrück, mas não há comida para os novos prisioneiros. Após alguns dias, alguns de nós prosseguem, desta vez em caminhão de carroceria aberta. Termino a minha odisseia num campo em Neüstadt Glewe. Em 2 de maio de 1945, acordamos para descobrir que os nossos atormentadores SS abandonaram o campo. Mais tarde, nesse dia, somos libertadas por soldados americanos e russos.

Passaram-se doze anos. Não há um dia em que eu não veja os rostos de Rachel e Lene — e o rosto do homem que as assassinou. Suas mortes pesam em mim. Tivesse eu repetido as palavras do Sturmbannführer e talvez elas estivessem vivas e eu estaria num túmulo anônimo junto a uma estrada polonesa. Apenas mais uma vítima sem nome. No aniversário de suas mortes, digo-lhes as palavras de luto de Kaddish. Faço isto mais por hábito do que por fé. Perdi minha fé em Deus em Birkenau.

O meu nome é Irene Allon. Antes me chamava Irene Frankel.

No campo era conhecida como prisioneira número 29.395, e isto é o que eu testemunhei em janeiro de 1945, na marcha da morte de Birkenau.


17

TIBERÍADES, ISRAEL

ERA SABAT. Shamron ordenou a Gabriel que viesse a Tiberíades para a ceia. Gabriel, enquanto dirigia devagar pela encosta, olhou para cima e no terraço de Shamron viu postes de luz dançando ao vento que sopra do lago — e então vislumbrou Shamron, a eterna sentinela, caminhando lentamente pelo meio das chamas.

Gilah, antes de lhes servir a comida, acendeu um par de velas na sala de jantar e recitou a bênção. Gabriel fora educado num lar sem religião, mas nesse momento pensou que a visão da mulher de Shamron, de olhos fechados, as mãos desenhando a luz da vela em direção ao seu rosto, era a mais bela que já tinha visto. Shamron estava ausente e preocupado durante a refeição e sem paciência para conversa banal. Mesmo nestas alturas ele não falaria do seu trabalho em frente de Gilah, não por não confiar nela, mas por temer que ela deixasse de o amar se soubesse de todas as coisas que ele já fizera. Gilah preenchia os longos silêncios falando sobre a sua filha, que se tinha mudado para a Nova Zelândia para fugir do pai e estava a viver com um homem numa quinta de criação de galinhas. Ela sabia que Gabriel estava de alguma forma ligado ao Escritório, mas não suspeitava da verdadeira natureza do seu trabalho. Achava que ele era um escriturário que passava bastante tempo em viagem e apreciava arte. Serviu-lhes café e um tabuleiro de biscoitos e frutos secos, em seguida levantou a mesa e foi lavar a loiça. Gabriel, por entre o som de água corrente e porcelana a bater emanando da cozinha, pôs Shamron ao corrente. Falaram em voz baixa, com as tremeluzentes velas de sabat entre eles. Gabriel mostrou-lhe as pastas de Erich Radek e Action 1005. Shamron elevou a fotografia até a luz da vela e franziu o sobrolho, então elevou os óculos de ler até a testa careca e cravou o seu olhar duro em Gabriel mais uma vez.

— O que é que sabe sobre o que aconteceu a minha mãe durante a guerra?

O olhar calculado de Shamron, entretido com a xícara de café, deixou bem claro que não havia nada que ele não soubesse sobre a vida de Gabriel, inclusive o que tinha acontecido à mãe durante a guerra.

— Ela era de Berlim — disse Shamron. — Foi deportada para Auschwitz em janeiro de 1943 e passou dois anos no campo para mulheres de Birkenau. Deixou Birkenau numa marcha da morte. Ao contrário de milhares de outros, ela conseguiu sobreviver e foi libertada por tropas russas e americanas em Neüstadt Glewe. Estou esquecendo de alguma coisa?

— Algo aconteceu na marcha da morte, algo que ela nunca discutiria comigo. — Gabriel levantou a fotografia de Erich Radek. — Quando Rivlin me mostrou isso em Yad Vashem, eu sabia que já tinha visto essa cara em algum lugar. Levei algum tempo até me lembrar, mas finalmente lembrei. Eu a vi quando era garoto numa tela no estúdio da minha mãe.

— Foi por isso que foi a Safed, para ver Tziona Levin.

— Como sabe?

Shamron suspirou e sorveu o café. Gabriel, desanimado, contou a Shamron sobre a sua segunda visita a Yad Vashem nessa manhã. Quando colocou as páginas do testemunho da sua mãe na mesa, os olhos de Gabriel permaneceram fixos no rosto de Shamron. Foi então que Gabriel percebeu que Shamron já as tinha lido antes. O Memuneh sabia sobre a sua mãe. O Memuneh sabia tudo.

— Você estava sendo considerado para uma das mais importantes missões na história do Escritório — disse Shamron.  — A voz não tinha traço de remorso. — Precisava saber tudo o que pudesse sobre você. Seu perfil psicológico militar descreve-o como um lobo solitário, egoísta, com a frieza emocional de um assassino natural. A minha primeira visita a você confirmou isso, embora eu também tenha achado você insuportavelmente rude e clinicamente tímido. Eu queria saber por que você era como era. Pensei que sua mãe seria um bom ponto de partida.

— Então procurou o testemunho dela em Yad Vashem? — Fechou os olhos e abanou a cabeça uma vez. — Por que nunca me contou?

— Não era a minha função — disse Shamron, desprovido de sentimento. — Apenas sua mãe podia contar tais coisas. Ela obviamente carregou um pesado fardo de culpa até a morte. Ela não queria que você soubesse. Não estava sozinha. Havia muitos sobreviventes como sua mãe que nunca conseguiram enfrentar verdadeiramente suas lembranças. Nos anos após a guerra, antes de você nascer, parecia que um muro de silêncio se tinha erigido neste país. O Holocausto? Era discutido de modo incessante. Mas aqueles que efetivamente o suportaram tentavam com desespero enterrar as memórias e prosseguir. Era outra forma de sobrevivência. Infelizmente, sua dor foi passada à geração seguinte, os filhos e filhas dos sobreviventes. Pessoas como Gabriel Allon.

Shamron foi interrompido por Gilah, que perguntou da porta se precisavam de mais café. Shamron levantou a mão. Gilah percebeu que eles estavam falando de assuntos de trabalho e voltou para a cozinha. Shamron cruzou os braços na mesa e inclinou-se para a frente.

— Com certeza você deve ter suspeitado de que ela prestou testemunho. Por que sua curiosidade natural não o levou a Yad Vashem para ver com os seus próprios olhos? — Shamron, saudado apenas pelo silêncio de Gabriel, respondeu à pergunta ele mesmo. — Porque, como todos os filhos dos sobreviventes, teve sempre o cuidado de não perturbar o frágil estado emocional de sua mãe. Tinha medo de que se fosse longe demais, poderia enviá-la para um estado de depressão do qual ela poderia não regressar? — Fez uma pausa. — Ou foi por medo do que poderia encontrar? Tinha efetivamente medo de saber a verdade?

Gabriel olhou de maneira cortante, mas não respondeu. Shamron contemplou seu café por um momento antes de voltar a falar.

— Para ser honesto com você, Gabriel, quando li o testemunho de sua mãe, eu soube que eras perfeito. Trabalhas para mim por causa dela. Ela foi incapaz de te amar completamente. Como poderia ela? Ela tinha medo de te perder. Toda a gente que ela tinha amado tinha-lhe sido tirada. Perdeu os pais nas filas de seleção e as amigas que tinha ajudado em Birkenau foram levadas porque ela não disse as palavras que um Sturmbannfuhrer SS queria que ela dissesse.

— Eu teria compreendido se ela tivesse tentado me dizer.

Shamron abanou a cabeça com lentidão.

— Não Gabriel, ninguém consegue verdadeiramente entender. A culpa, a vergonha. Sua mãe conseguiu encontrar o lugar dela no mundo depois da guerra, mas de muitas maneiras a vida dela acabou naquela noite à beira de uma estrada polonesa. — Bateu a palma da mão na mesa, com força suficiente para fazer tilintar os pratos que restavam.

— Então o que fazemos? Temos pena de nós mesmos ou continuamos o trabalho e vemos se este homem é na verdade Erich Radek?

— Eu penso que sabe a resposta a isso.

— Será que Moshe Rivlin acha ser possível Radek ter estado envolvido na evacuação de Auschwitz?

Gabriel acenou que sim com a cabeça.

— Em janeiro de 1945, o trabalho de Aktion 1005 estava em grande parte completo, uma vez que todo o território conquistado a leste tinha sido recuperado pelos soviéticos. É possível que ele tenha ido a Auschwitz para demolir as câmaras de gás e o crematório e preparar os restantes prisioneiros para evacuação. Eles eram, afinal de contas, testemunhas do crime.

— Sabemos como este pedaço de imundície conseguiu sair da Europa depois da guerra?

Gabriel contou-lhe a teoria de Rivlin, que Radek, por ser austríaco católico, tinha se beneficiado dos serviços do bispo Alois Hudal em Roma.

— Então por que não seguimos o rastro — disse Shamron — e vemos se leva de volta à Áustria?

— Exatamente o que eu acho. Pensei em começar por Roma. Quero dar uma olhada nos documentos de Hudal.

— como muitos outros também.

— Mas esses não têm o número particular do homem que mora no andar de cima do Palácio Apostólico.

Shamron encolheu os ombros.

— Lá isso é verdade.

— Preciso de um passaporte limpo.

— Não é problema. Tenho um passaporte canadense bem bom que pode usar. Como está o teu francês ultimamente?

— Pas mal, mais je dois pratiquer l'accent d'un Quebecois.

— Às vezes você me assusta.

— Isso já é alguma coisa.

— Passe a noite aqui e voe para Roma amanhã. Eu o levo a Lod. Pelo caminho paramos na embaixada americana e temos uma conversa com o diretor.

— Sobre o quê?

— De acordo com o arquivo da Staatsarchiv, Vogel trabalhou para os americanos na Áustria na ocupação. Pedi aos nossos amigos em Langley que dessem uma olhada nos registros para ver se o nome de Vogel aparece. É um tiro no escuro, mas talvez tenhamos sorte.

Gabriel olhou para o testemunho da sua mãe: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos...

— Sua mãe foi uma mulher de coragem, Gabriel. Por isso escolhi você. Sabia que vinha de uma excelente estirpe.

— Ela era muito mais corajosa do que eu.

— Sim —, concordou Shamron. — Ela foi mais corajosa do que todos nós.

 

A OCUPAÇÃO REAL DE Bruce Crawford era um dos segredos mais mal guardados de Israel. O alto, patrício americano era o chefe da CIA na divisão de Tel Aviv. Declarado tanto ao governo israelense como à Autoridade Palestiniana, ele regularmente servia de ligação entre os dois lados do conflito. Rara era a noite em que o telefone de Crawford não tocava a horas terríveis. Ele andava cansado, e isso via-se.

Cumprimentou Shamron já dentro dos portões da embaixada na Rua Haraykon e acompanhou-o até o edifício. A sala de Crawford era amplo e, para o gosto de Shamron, decorado demais. Parecia mais o escritório de um vice-presidente corporativo do que o covil de um espião, mas esse era o estilo americano. Shamron afundou-se numa cadeira de pele e aceitou um copo de água gelada com limão da secretária. Ainda considerou acender um cigarro turco, mas reparou no sinal de PROIBIDO FUMAR proeminentemente disposto na frente da mesa de Crawford.

Crawford parecia não ter pressa em ir direto ao assunto em questão. Shamron já esperava isso. Havia uma regra não declarada entre espiões: Quando se pede um favor a um amigo, deve-se estar preparado para pagar na mesma moeda. Shamron, por estar tecnicamente fora do jogo, não podia oferecer nada palpável, apenas o conselho e a sabedoria de um homem que já cometera muitos erros. Finalmente, depois de uma hora, Crawford disse:

— Sobre aquela coisa do Vogel.

A voz do americano arrastou-se. Shamron, tomando nota dos vestígios de quebra na voz de Crawford, inclinou-se para a frente na sua cadeira, expectante. Crawford queimou tempo removendo um clip do dispensador magnético especial e esticou-o zelosamente.

— Demos uma olhadela em nossos próprios registros — disse Crawford, o olhar fugindo para baixo em direção ao seu trabalho. — Até enviamos uma equipe a Maryland para pesquisar no anexo dos Arquivos. Temo que estejamos eliminados.

— Eliminados? — Shamron considerava o uso de termos esportivos americanos desapropriado num assunto tão vital como a espionagem. Agentes, no mundo de Shamron, não eram eliminados, não ficavam fora de jogo, nem faziam carrinhos. Só havia sucesso ou fracasso, e o preço do fracasso, numa vizinhança como o Oriente Médio, era normalmente sangue. — O que é que significa isso exatamente?

— Significa — disse Crawford com pedantismo — que a nossa busca não produziu nada. Lamento, Ari, mas às vezes estas coisas são assim.

Levantou o clip endireitado e examinou-o cuidadosamente, como se estivesse orgulhoso da obra.

 

GABRIEL ESPERAVA no banco de trás do Peugeot de Shamron.

— Como foi?

Shamron acendeu um cigarro e respondeu à pergunta.

— Acredita nele?

— Se ele dissesse que tinham encontrado um arquivo pessoal de rotina ou um relatório de verificação de curriculum, talvez eu tivesse acreditado. Mas nada? Com quem ele pensa que está falando? Sinto-me insultado, Gabriel. Muito insultado.

— Pensa que os americanos sabem alguma coisa de Vogel?

— Bruce Crawford acabou de nos confirmar isso. — Shamron olhou para seu relógio de aço inoxidável. — Raios! Levou uma hora me enrolando para me enganar, e agora vai perder seu voo.

Gabriel olhou para o telefone no console. — Ligue — murmurou. — Desafio você.

Shamron pegou o telefone e teclou.

— Aqui é Shamron — bradou. — Há um voo da El Al que parte de Lod para Roma em trinta minutos. Surgiu um problema mecânico que vai exigir o atraso de uma hora na partida. Entendido?

 

DUAS HORAS MAIS TARDE, o telefone de Bruce Crawford ronronou. Levou o receptor ao ouvido. Reconheceu a voz. Era o vigilante que ele tinha designado para seguir Shamron. Um jogo perigoso, seguir o antigo chefe do Escritório no seu próprio terreno, mas Crawford seguia ordens.

— Depois da embaixada ele foi para Lod.

— O que foi ele fazer ao aeroporto?

— Largar um passageiro.

— Reconheceste-o?

O vigilante indicou que sim. Sem mencionar o nome do passageiro, conseguiu comunicar o fato de o homem em questão ser um agente digno de nota do Escritório, recentemente ativo numa cidade da Europa Central.

— Tem certeza que era ele?

— Sem dúvida alguma.

— Para onde ia?

Crawford, depois de ouvir a resposta, cortou a ligação. Um momento depois estava sentado em frente ao seu computador, enviando uma mensagem por um cabo seguro para a sede. O texto era direto e conciso, como o receptor gostava. Elijah está a viajar para Roma. Chega esta noite num voo da El Al de Tel Aviv,

 

18

 

ROMA

 

 

GABRIEL QUERIA encontrar-se com o homem do Vaticano em qualquer lugar menos no seu escritório no andar de topo do Palácio Apostólico. Combinaram em Piperno, um velho restaurante numa praça calma perto do Tibre, a algumas ruas de distância do antigo gueto judeu. Era o tipo de tarde de Dezembro que apenas Roma conseguia ter, e

Gabriel, chegando primeiro, providenciou uma mesa numa parte aquecida e iluminada pela luz solar da esplanada.

Alguns minutos mais tarde, um padre de passo firme entrou na praça e dirigiu-se ao restaurante. Era alto e magro e tão atraente como uma vedeta do cinema italiano. O corte do fato clérigo negro e colar romano sugeriam que, embora casto, ele não era desprovido de vaidade pessoal ou profissional. E com razões para isso. Monsenhor Luigi Donati, o secretário particular de Sua Santidade o Papa Paulo VII, era possivelmente o segundo homem mais poderoso na Igreja Católica Romana.

Havia uma obstinação fria em Luigi Donati que tornava difícil para Gabriel imaginá-lo batizando bebês ou sagrando doentes em alguma cidadezinha poeirenta. Seus olhos escuros irradiavam uma feroz e firme inteligência, enquanto o teimoso perfil do queixo revelava que era um homem perigoso para ter como inimigo. Gabriel sabia que isto era verdade por experiência própria. Um ano antes, um caso levara-o ao Vaticano, às mãos competentes de Donati, e juntos tinham destruído uma grave ameaça que pendia sobre o Papa Paulo VII. Luigi Donati estava em dívida para com Gabriel. Gabriel tinha esperança que Donato fosse um homem para pagar as suas dívidas.

Donati era também um homem que gostava, acima de tudo, de passar algumas horas num ensolarado café de Roma. O seu estilo exigente tinha conquistado apenas uns poucos amigos dentro da Cúria e, como o seu chefe, ele passava as fronteiras do Vaticano sempre que possível. Aceitou o convite de Gabriel para almoçar como um náufrago que tenta alcançar uma boia. Gabriel tinha a distinta impressão que Luigi Donati estava desesperadamente só. Por vezes Gabriel ponderava se Luigi Donati não estaria arrependido da vida que tinha escolhido. O padre acendeu um cigarro com um isqueiro banhado a ouro.

— Como vai o negócio?

— Estou a trabalhar num novo Bellini. O retábulo de Crisóstomo.

— Sim, eu sei.

Antes de se tornar Papa Paulo VII, o cardeal Pietro Lucchesi tinha sido o patriarca de Veneza. Luigi Donati estivera a seu lado. Os seus laços com Veneza mantinham-se fortes. Havia pouca coisa que acontecesse na sua antiga diocese que ele não soubesse.

— Espero que Francesco Tiepolo te esteja a tratar bem.

— Claro.

— E Chiara?

— Está bem, obrigado.

— Vocês os dois já pensaram em... formalizar a sua relação?

— É complicado, Luigi.

— Sim, mas o que não é?

— Sabes, por momentos, parecias mesmo um padre.

Donati inclinou a cabeça para trás e riu à gargalhada. Estava a começar a relaxar. — O Santo Padre manda cumprimentos. Pede desculpa por não se poder juntar a nós. Piperno é um dos seus restaurantes preferidos. Ele recomenda que comecemos com o filetti di baccalá. Ele jura que é o melhor de Roma.

— A infalibilidade estende-se a recomendações gastronômicas?

— O Papa é infalível apenas quando age como mestre supremo em matéria de fé e moral. Temo que a doutrina não se estenda a filetes de bacalhau frito. Mas ele tem uma boa dose de experiências mundanas nestes assuntos. Se eu fosse a ti, ia pelo filetti.

O garçom de paletó branco apareceu. Donati fez o pedido. O frascati começou a fluir, e o estado de espírito de Donati amadureceu como a suave tarde. Passou os minutos seguintes regalando Gabriel com mexericos curianos, histórias de rumores de bastidores e intrigas da corte. O Vaticano não era muito diferente do Escritório. Finalmente, Gabriel para começar conduziu a conversa para o tópico que o juntara a Donati: o papel da Igreja Católica Romana no Holocausto.

— Como está a correr o trabalho da Comissão Histórica?

— como seria de esperar. Nós fornecemos os documentos dos arquivos secretos, eles fazem a análise com o mínimo de interferência possível da nossa parte. Um relatório preliminar das suas conclusões é-nos devido em seis meses. Depois disso, eles começarão a trabalhar em história multivolume.

— Alguma indicação de como está a correr o relatório preliminar?

— É como eu disse, tentamos deixar os historiadores trabalhar com o mínimo de interferência possível do Palácio Apostólico.

Gabriel lançou a Donati um olhar duvidoso sobre o seu copo de vinho. Se não fosse pelo fato clérigo e colar romano do monsenhor, Gabriel teria assumido que ele era um espião profissional. A noção de que Donati não tinha pelo menos duas fontes de informação no staff da comissão era insultuosa. Gabriel, por entre tragos de frascati, expressou a sua visão a Monsenhor Donati. O padre confessou.

— Tudo bem, digamos que eu não estou completamente às escuras sobre a comissão.

— E?

— O relatório terá em consideração as enormes pressões sobre Pio, mas mesmo assim temo que não vá pintar um retrato muito abonatório das suas ações, nem das ações das igrejas nacionais na Europa Central e de Leste.

— Pareces nervoso, Luigi.

O padre inclinou-se sobre a mesa e parecia escolher as suas próximas palavras cuidadosamente.

— Abrimos a caixa de Pandora, meu amigo. Uma vez começado um processo como este, é impossível prever onde irá terminar e que áreas da Igreja irão afetar. Os liberais aproveitaram as ações do Santo Padre e imploram por mais: um terceiro Concílio do Vaticano. Os reacionários gritam heresia.

— Algo de grave?

Mais uma vez, o monsenhor levou um tempo desmesurado a responder.

— Estamos a interceptar alguns rumores sérios por parte de alguns reacionários na região francesa de Languedoc — o tipo de reacionários que acredita que o Vaticano Segundo foi trabalho do Diabo e que cada Papa desde João XXIII é um herege.

— Pensava que a Igreja estava cheia de gente assim. Tive a minha própria briga com um grupo amigável de patriarcas e laicos chamado Crux Vera.

Donati sorriu.

— Temo que este grupo seja farinha do mesmo saco, só que, ao contrário de Crux Vera, não tem uma base de ação dentro da Cúria. São forasteiros, bárbaros batendo aos portões. O Santo Padre tem muito pouco controle sobre eles, e as coisas já começaram a aquecer.

— Diz-me se houver algo que eu possa fazer para ajudar.

— Tem cuidado, meu amigo, eu talvez faça uso dessas tuas palavras. O filetti di baccalá chegou. Donati espremeu o sumo de limão sobre o prato e colocou um dos filetes na boca. Regou o peixe com uma golada de frascati e reclinou-se para trás na sua cadeira, as suas feições atraentes assumiram o ar de puro contentamento. Para um padre que trabalha no Vaticano, o mundo temporal oferecia poucas delícias mais tentadoras que almoçar numa ensolarada praça romana. Começou noutro filetti e perguntou a Gabriel o que o trazia à cidade.

— Penso que posso dizer estar a trabalhar num assunto relacionado com o trabalho da Comissão Histórica.

— Como é isso?

— Tenho razões para suspeitar que, logo após o final da guerra, o Vaticano pode ter ajudado um procurado homem pelas SS, chamado Erich Radek, a fugir da Europa.

Donati parou de mastigar, as suas feições tornaram-se subitamente sérias.

— Tem cuidado com as palavras que usas e as suposições que fazes, meu amigo. É bem possível que esse Radek tenha recebido ajuda de alguém em Roma, mas não foi o Vaticano.

— Acreditamos que foi o bispo Hudal de Anima. A tensão nas feições de Donati suavizou.

— Infelizmente, o bom do bispo ajudou de fato um certo número de fugitivos nazistas. Não se pode negar isso. O que te leva a pensar que ele ajudou esse Radek?

— Uma dedução informada. Radek era um austríaco católico. Hudal era reitor do seminário alemão em Roma e padre confessor da comunidade alemã e austríaca. Se Radek viesse a Roma em busca de ajuda, faria sentido se ele procurasse o bispo Hudal. Donati acenou concordante.

— Não posso contra argumentar isso. O bispo Hudal estava interessado em proteger conterrâneos do que ele acreditava serem intenções vingativas dos aliados vitoriosos. Mas isso não significa que ele soubesse que Erich Radek era um criminoso de guerra. Como poderia ele saber? Itália estava inundada de pessoas deslocadas após a guerra, todos eles em busca de ajuda. Se Radek procurasse Hudal e lhe contasse uma história triste, é provável que lhe fosse concedido asilo e ajuda.

— Não deveria Hudal ter perguntado a um homem como Radek porque andava em fuga?

— Talvez devesse, mas estás a ser ingênuo se assumes que Radek teria respondido honestamente à questão. Ele teria mentido, e o bispo Hudal não teria maneira de saber.

— Um homem não se torna fugitivo sem razão, Luigi, e o Holocausto não era um segredo. O bispo Hudal devia ter percebido que estava a ajudar criminosos de guerra a escapar à justiça.

Donati esperou para responder enquanto o garçom servia um prato de massa.

— O que tens de entender é que havia muitas organizações e indivíduos na altura que deram assistência a refugiados, dentro da Igreja e fora. Hudal não era o único.

— Onde foi ele buscar o dinheiro para financiar a operação?

— Ele diz que todo ele veio de contas do seminário.

— E tu acreditas nisso? Cada SS que Hudal deu assistência precisava de numerário, bilhete de navio, um visto e uma vida nova num pais estrangeiro, para não falar do custo de lhes providenciar asilo em Roma até que pudessem ser despachados. Pensa-se que Hudal ajudou centenas de homens das SS desta forma. Isso representa muito dinheiro, Luigi: centenas de milhar de dólares. A mim custa-me acreditar que Anima tivesse esse tipo de trocos por ai.

— Então assumes que alguém lhe deu dinheiro — disse Donati, enrolando habilmente espaguete no garfo. — Alguém como o Santo Padre, por exemplo.

— O dinheiro teve de vir de algum lado.

Donati pousou o garfo e cruzou os braços, pensativo.

— Há provas que o bispo Hudal recebeu, de fato, fundos do Vaticano para pagar o seu trabalho com refugiados.

— Eles não eram refugiados, Luigi. Pelo menos, não todos. Muitos deles eram culpados de crimes indescritíveis. Estás a dizer que Pio não fazia ideia que Hudal estava a ajudar criminosos procurados a escapar à justiça?

— Digamos apenas que, com base nas provas documentais e testemunho de sobreviventes, será muito difícil provar essa acusação.

— Não sabia que tinhas estudado lei canônica, Luigi. — Gabriel repetiu a pergunta, devagar, com uma ênfase acusatória nas palavras relevantes. — O papa sabia que Hudal estava a ajudar criminosos de guerra a escapar à justiça?

— Sua Santidade opôs-se aos julgamentos de Nuremberg porque acreditava que serviam apenas para enfraquecer os alemães e encorajar os comunistas. Ele acreditava igualmente que os Aliados andavam atrás de vingança e não de justiça. É bem possível que o Santo Padre soubesse que o bispo Hudal estivesse a ajudar nazistas e que aprovasse. Provar essa contenda é, no entanto, um outro assunto. — Donati apontou os dentes do seu garfo para a massa intata de Gabriel. — É melhor comeres isso antes que arrefeça.

— Lamento, mas perdi o apetite.

Donati mergulhou o seu garfo na massa de Gabriel.

— Então o que é que este indivíduo Radek alegadamente fez? Gabriel deu uma breve sinopse da ilustre carreira nas SS do Sturtnbannführer Erich Radek, começando com o seu trabalho para o setor de emigração judaica de Adolf Eichmann em Viena e terminando com o seu comando da Aktion 1005. No final da exposição de Gabriel, também Donati tinha perdido o apetite.

— Eles acreditavam mesmo que conseguiam esconder todas as provas de um crime tão imenso?

— Não tenho certeza se eles acreditavam ser possível, mas numa larga escala tiveram sucesso. Por causa de homens como Erich Radek, nunca saberemos quantas pessoas realmente pereceram na Shoah.

Donati contemplou o seu vinho.

— O que é que queres saber sobre a ajuda do bispo Hudal a Radek?

— Podemos assumir que Radek precisava de um passaporte. Para isso, Hudal teria recorrido à Cruz Vermelha Internacional. Eu quero saber o nome nesse passaporte. Radek também precisaria de um sítio para ir. Teria precisado de um visto. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sei que foi há muito tempo, mas o bispo Hudal mantinha registros, não mantinha?

Donati acenou lentamente.

— Os papéis privados do bispo Hudal estão guardados nos arquivos de Anima. Como deves calcular estão selados.

— Se há alguém em Roma que possa quebrar o selo, és tu, Luigi.

— Não podemos simplesmente irromper pela Anima e pedir para ver os papéis do bispo. O atual reitor é o bispo Theodor Drexler, e não é nenhum parvo. Vamos precisar de uma desculpa, um tema de capa, como se diz em sua linguagem.

— Temos um.

— Qual é?

— A Comissão Histórica.

— Estás a sugerir que digamos ao reitor que a Comissão requisitou os papéis de Hudal?

— Precisamente.

— E se ele recusar?

— Então eu apresento-me.

— E quem é suposto seres?

Gabriel alcançou o seu bolso e retirou um cartão de identificação plastificado, completo com fotografia.

— Shmuel Rubenstein, professor de religião comparativa na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Donati devolveu o cartão a Gabriel e abanou a cabeça.

— Theodor Drexler é um teólogo brilhante. Ele vai querer arrastar-te para uma discussão, talvez algo sobre as raízes comuns das religiões mais antigas no mundo ocidental. Estou bastante confiante que te vais espalhar ao comprido, e o bispo vai desmascarar-te.

— É sua função garantir que isso não aconteça.

— Sobrestimas as minhas capacidades, Gabriel.

— Telefone, Luigi. Preciso ver os papéis do bispo Hudal.

— Vou fazê-lo, mas primeiro tenho uma pergunta. Por quê? Donati, depois de ouvir a resposta de Gabriel, digitou um número no celular e pediu que o passassem a Anima.

 

19

 

ROMA

 

 

A IGREJA DE Santa Maria deli"Anima fica localizada no Centro Storico, a oeste da Piazza Navona.

Durante quatro séculos foi a igreja alemã em Roma. O papa Adriano VI, filho de um construtor naval alemão de Utrech e o último papa não italiano antes de João Paulo II, está enterrado numa magnífica tumba à direita do altar principal. Pela Via delia Pace chega-se ao seminário adjacente. E foi aí, nas sombras frias do pátio de entrada, que se encontraram com o bispo Theodor Drexler na manhã seguinte.

O monsenhor Donati cumprimentou-o num excelente alemão de sotaque italiano, e apresentou Gabriel como "o instruído professor Shmuel Rubenstein da Universidade Hebraica". Drexler estendeu a mão num ângulo que por instantes deixou Gabriel na dúvida se deveria apertá-la ou beijar o anel. Após uma breve hesitação, deu-lhe uma firme sacudidela. A pele era fria como mármore de igreja.

O reitor acompanhou-os escada acima até a um modesto escritório repleto de livros. A sua sotaina murmurou quando se sentou na enorme cadeira na zona de estar. A grande cruz peitoral de ouro brilhava com a luz solar que entrava obliquamente pelas altas janelas. Ele era baixo e bem alimentado, perto dos setenta, com uma delicada auréola de cabelo branco e bochechas extremamente rosadas. Os cantos da boca estavam sempre subidos num sorriso — mesmo agora, que estava claramente descontente — e os seus pálidos olhos azuis brilhavam com uma inteligência condescendente. Era um rosto que conseguia confortar os doentes e lançar o medo de Deus num pecador. Monsenhor Donati estava certo. Gabriel tinha de ter cuidado.

Donati e o bispo passaram alguns minutos a trocar elogios sobre o Santo Padre.

O bispo informou Donati que rezava pela continuação da boa saúde do pontífice, enquanto Donati anunciou que Sua Santidade estava extraordinariamente satisfeita com o trabalho do bispo Drexler na Anima. Ele referia-se ao bispo como "Sua Graça" tantas vezes quanto possível. No final da troca de elogios, Drexler estava tão engraxado que Gabriel temia que escorregasse pela cadeira.

Quando monsenhor Donati mencionou finalmente o propósito da sua visita ao Anima, o estado de espírito de Drexler enegreceu, como se uma nuvem passasse em frente ao Sol, embora o seu sorriso se mantivesse firme.

— Não consigo perceber como é que uma investigação polêmica aos registros do trabalho com refugiados alemães do bispo Hudal depois da guerra irá ajudar no processo de reparação entre católicos romanos e judeus.

A sua voz era suave e seca e o seu alemão de sotaque vienense.

— Uma justa e equilibrada investigação das atividades do bispo Hudal revelariam que ele também ajudou um bom número de judeus.

Gabriel inclinou-se para a frente. Era a altura de o instruído professor da universidade hebraica se meter na conversa.

— Está a dizer, Sua Graça, que o bispo Hudal escondeu judeus durante a rusga de Roma?

— Antes da rusga e depois. Existiam muitos judeus a viver dentro dos muros da Anima. Judeus batizados, claro.

— E aqueles que não eram batizados?

— Não podiam ser escondidos aqui. Não teria sido próprio. Foram enviados para outro lugar.

— Perdoe-me, Sua Graça, mas como é que se distingue exatamente um judeu batizado de um judeu normal?

Monsenhor Donati cruzou a perna e cuidadosamente alisou o vinco na perna da calça, um sinal para parar e desistir desta linha de inquérito. O bispo respirou fundo e respondeu à questão.

— Podem-lhes ter sido feitas algumas perguntas simples sobre assuntos da fé e da doutrina católica. Como recitar um pai-nosso ou uma ave-maria. Normalmente, torna-se facilmente perceptível quem está a dizer a verdade e quem está a mentir para conseguir asilo no seminário.

Um toque na porta satisfez o objetivo de Luigi Donati acabar com a troca de palavras. Um jovem noviço entrou na sala, carregando um tabuleiro de prata. Serviu chá a Donati e Gabriel. O bispo bebeu água quente com uma fina rodela de limão.

Quando o rapaz saiu, Drexler disse:

— Mas tenho certeza de que não está interessado nos esforços do bispo Hudal em proteger judeus dos nazistas, ou está, professor Rubinstein? Está interessado na ajuda que ele deu a oficiais alemães depois da guerra?

— Oficiais alemães não. Criminosos de guerra SS procurados.

— Ele não sabia que eram criminosos.

— Temo que essa defesa seja pouco crível, Sua Graça. O bispo Hudal era um empenhado antissemita e um defensor do regime de Hitler. Não faria sentido que ele de bom grado ajudasse austríacos e alemães depois da guerra, independentemente dos crimes que tivessem cometido?

— A sua oposição aos judeus era de natureza teológica, não social. Quanto ao seu apoio ao regime nazista, não ofereço defesa. O bispo Hudal condena-se pelas suas próprias palavras e escrita.

— E seu carro? — Gabriel acrescentou, fazendo bom uso do arquivo de Rivlin Moshe. — O Bispo Hudal usava a bandeira da união do Reich em sua limusine oficial. Não fazia segredo de suas simpatias.

Drexler sorveu a água com limão e virou o seu olhar gelado para Donati.

— Como muitos outros na Igreja, eu tinha as minhas preocupações sobre a Comissão Histórica do Santo Padre, mas mantive essas preocupações para mim mesmo, por respeito a Sua Santidade. Agora parece que a Anima está sendo analisada em microscópio. Eu tenho de impor limites. Não vou permitir que a reputação desta grande instituição seja arrastada pela lama da história.

Monsenhor Donati examinou a perna das suas calças por um momento, e levantou o olhar. Por baixo de calma exterior, o secretário papal estava a ferver com a insolência do reitor. O bispo tinha esticado a corda; Donati estava prestes a esticar de volta. De alguma forma, ele conseguiu manter a voz ao nível de um murmúrio de reza.

— Independentemente da sua preocupação com este assunto, Sua Graça, é o desejo do Santo Padre que seja concedido ao professor Rubinstein o acesso aos papéis do bispo Hudal.

Um silêncio profundo pairou sobre a sala. Drexler mexeu na cruz em seu peito, procurando uma maneira de escapar. Não havia nenhuma; resignação era a única conduta honrada. E deixou cair seu trunfo.

— Não desejo desafiar Sua Santidade neste assunto. Não me deixa outra saída senão cooperar, monsenhor Donati.

— O Santo Padre não esquecerá, bispo Drexler.

— Nem eu, Monsenhor.

Donati exibiu um sorriso irônico.

— É do meu conhecimento que os papéis pessoais do bispo estão aqui na Anima.

— É correto. Estão guardados em nossos arquivos. Vai levar alguns dias até serem totalmente localizados e organizados de forma a poderem ser lidos e compreendidos por um estudioso como o professor Rubinstein.

— É muito atencioso da sua parte, Sua Graça — disse monsenhor Donati — mas gostaríamos de vê-los agora mesmo.

 

ELE CONDUZIU-OS POR uma escada em caracol de pedra com degraus gastos pelo tempo, tão escorregadios como gelo. Ao fundo das escadas havia uma pesada porta de carvalho com armações de ferro forjado. Foi construída para suportar aríetes, mas provou não estar à altura de um esperto padre do Veneto e do "professor" de Jerusalém.

O bispo Drexler destrancou a porta e empurrou-a com o ombro. Tateou na escuridão por um momento e ligou um interruptor que ecoou um estalido agudo. Uma série de lâmpadas de teto, zumbindo e tinindo com o súbito fluxo de eletricidade, iluminaram uma longa passagem subterrânea com um teto de pedra em arco. Em silêncio, o Bispo acenou para entrarem.

A cave tinha sido construída para homens menores. O pequeno bispo conseguia andar pela passagem sem alterar a sua postura. Gabriel tinha apenas de inclinar a cabeça para evitar as lâmpadas, mas monsenhor Donati, com bem mais de um metro e oitenta de altura, era forçado a dobrar-se pela cintura como um corcunda. Aqui residia a memória institucional da Anima e do seu seminário, quatro séculos de registros baptismais, certificados de casamento e obituários. Os registros dos padres que aqui tinham servido e dos alunos que tinham estudado dentro das paredes do seminário. Parte estava guardada em armários de pinho, outra em grades ou em caixas de cartão. As novas adições eram guardadas em contentores de plástico modernos. O cheiro a umidade e a caruncho era penetrante, e um fio de água escorria, algures, das paredes. Gabriel, que tinha uma noção sobre os efeitos prejudiciais do frio e da umidade no papel, rapidamente perdeu a esperança de encontrar os papéis do bispo Hudal intatos. O bispo Drexler pairou sobre eles por um momento e ofereceu-se para ajudar na busca dos documentos. Monsenhor Donati deu-lhe uma pancadinha no ombro e disse que eles se arranjariam sozinhos. O bispo fez o sinal da cruz e afastou-se lentamente pela passagem arqueada.

 

FOI GABRIEL que, duas horas mais tarde, encontrou.

Erich Radek tinha chegado à Anima em 3 de março de 1948. Em 24 de maio, a Comissão de Ajuda Pontífice, a organização de ajuda a refugiados do Vaticano, emitira a Radek um documento de identificação do Vaticano com o número 9645/99 e o pseudônimo "Otto Krebs". Nesse mesmo dia, com a ajuda do bispo Hudal, Otto Krebs usou a sua identificação do Vaticano para conseguir um passaporte da Cruz Vermelha. Na semana seguinte foi-lhe emitido um visto de entrada pela República Árabe da Síria. Comprou passagens de classe econômica com dinheiro que lhe foi dado pelo bispo Hudal e zarpou do porto italiano de Gênova em fins de junho. Krebs levava quinhentos dólares no bolso. Um recibo do dinheiro, ostentando a assinatura de Radek, tinha sido guardado pelo bispo Hudal. O artigo final do arquivo de Radek era uma carta, com um selo sírio e o carimbo postal de Damasco, que agradecia ao bispo Hudal e ao Santo Padre pela ajuda e a promessa de que um dia a dívida seria paga. Estava assinada Otto Krebs.


20

ROMA

O BISPO DREXLER ESCUTOU a fita de áudio uma última vez, e ligou para um número em Viena.

— Receio que tenhamos um problema.

— Que tipo de problema?

Drexler contou ao homem em Viena sobre os visitantes à Anima nessa manhã: o monsenhor Donati e um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

— Como disse ele que se chamava?

— Rubinstein. Declarou ser um investigador da Comissão Histórica.

— Ele não era nenhum professor.

— Eu calculei isso, mas não estava em posição de contestar a sua boa-fé.

Monsenhor Donati é um homem muito poderoso dentro do Vaticano. Só há um mais poderoso, e é o herege para quem ele trabalha.

— De que andavam eles à procura?

— Documentação sobre a ajuda dada pelo bispo Hudal a um determinado refugiado depois da guerra.

Houve um longo silêncio antes de o homem colocar a questão seguinte.

— Já deixaram a Anima?

— Sim, há cerca de uma hora.

— Porque levaste tanto tempo a telefonar?

— Estava na esperança de conseguir fornecer alguma informação útil.

— E consegues?

— Sim, acredito que sim.

— Diz-me.

— O professor está hospedado no Hotel Cardinal na Via Giulia. E está registrado sob o nome de René Duran, com um passaporte canadense.

 

— PRECISO QUE PEGUE um relógio em Roma.

— Quando?

— Imediatamente.

— Onde está?

— Há um homem hospedado no Hotel Cardinal na Via Giulia. Está registrado como René Duran, mas às vezes usa o nome Rubinstein.

— Quanto tempo vai estar em Roma?

— Incerto, e é por isso que tens de partir agora. Há um voo da Alitalia que parte para Roma daqui a duas horas. Um lugar em classe executiva está reservado em teu nome.

— Se viajo de avião não poderei levar as ferramentas necessárias à reparação. Preciso de alguém que as forneça em Roma.

— Tenho o homem certo. — Recitou um número de telefone, que o Relojoeiro guardou na memória. — Ele é muito profissional e, acima de tudo, extremamente discreto. Não te pediria para ir ter com ele se não fosse.

— Tens uma fotografia deste cavalheiro Duran?

— Vai chegar ao teu fax dentro de instantes.

O Relojoeiro desligou o telefone e apagou as luzes da frente da loja. Em seguida entrou na oficina e abriu um armário. Dentro estava um pequeno saco de viagem, contendo uma muda de roupa e um estojo de barbear. O fax tocou. O Relojoeiro vestiu um sobretudo e um chapéu enquanto o rosto de um homem morto se ia revelando lentamente.

 

21

 

ROMA

 

 

GABRIEL SENTOU-SE NUMA MESA do Doney na manhã seguinte para tomar café. Trinta minutos depois um homem entrou e dirigiu-se ao bar. O cabelo parecia palha de aço e tinha cicatrizes de acne nas largas bochechas. A roupa era cara, mas de mau gosto. Bebeu dois expressos de uma golada e manteve um cigarro a arder durante o tempo todo. Gabriel olhou para o seu La Repubblica e sorriu. Shimon Pazner era o homem do Escritório em Roma há cinco anos, no entanto ainda não tinha perdido o aspecto andrajoso de um colono do Negev.

Pazner pagou a conta e dirigiu-se aos lavabos. Quando saiu, estava de óculos de sol postos, o sinal de que o encontro estava de pé. Dirigiu-se à porta giratória, parou na Via Veneto e em seguida virou para a direita e começou a caminhar. Gabriel deixou dinheiro na mesa e seguiu-o.

Pazner atravessou o Corso d'Itália e entrou na Villa Borghese. Gabriel caminhou ao longo do Corso um pouco afastado e entrou no parque por outro acesso.

Encontrou Pazner num caminho por entre as árvores e apresentou-se como René Duran de Montreal. Juntos caminharam em direção à Galleria. Pazner acendeu um cigarro.

— Há rumores de que teve uns apertos nos Alpes numa noite destas.

— Os rumores viajam depressa.

— O Escritório é como um círculo de costureiras judaicas, sabe disso. Mas você tem um problema mais grave. Lev ditou a sentença. Allon passou dos limites. O Allon, caso vos bata à porta, deve ser posto na rua. — Pazner cuspiu para o chão. — Estou aqui por lealdade ao Velho, não a si, Monsieur Duran. É bom que isto valha a pena.

Sentaram-se num banco de mármore no pátio da entrada da Galleria Borghese e olharam em direções opostas para manter as aparências. Gabriel contou a Pazner sobre o homem das SS, Erich Radek, que viajara para a Síria sob o nome de Otto Krebs.

— Ele não foi para Damasco estudar civilizações antigas —, disse Gabriel. — Os sírios deixaram-no entrar por alguma razão. Se ele estava próximo do regime, talvez apareça nos registros.

— Então quer que eu faça uma pesquisa para ver se o conseguimos situar em Damasco?

— Exatamente.

— E como espera que requisite esta pesquisa sem que Lev e a Segurança descubram? Gabriel olhou para Pazner como se se sentisse insultado pelas perguntas. Pazner retraiu-se.

— Tudo bem, digamos que talvez eu tenha uma moça nas Pesquisas que pode dar uma olhadela discreta nos registros por mim.

— Só uma moça?

Pazner encolheu os ombros e atirou com o seu cigarro para a gravilha.

— Mesmo assim ainda me parece um tiro no escuro. Onde está hospedado? Gabriel disse-lhe.

— Há um restaurante chamado La Carbonara no limite norte do Campo dei Fiori, perto da fonte.

— Eu conheço.

— Esteja lá às oito. Vai haver uma reserva no nome de Brunacci para as oito e meia. Se a reserva for para dois, significa que a pesquisa foi um fiasco. Se for para quatro, venha até a Piazza Farnese.

 

NA MARGEM OPOSTA do Tibre, numa pequena praça a alguns metros da Porta de Sant'Ana, o Relojoeiro estava sentado nas sombras da esplanada na tarde fria, sorvendo um cappuccino. Na mesa ao lado, um par de padres com sotaina envolviam-se numa animada conversa. O Relojoeiro, embora não falasse italiano, assumiu que eram burocratas do Vaticano. Um gato vadio corcunda roçava pelas pernas do Relojoeiro e suplicava por comida. Prendeu o animal entre os tornozelos e apertou, aumentando lentamente a pressão, até que o gato soltou um gemido estrangulado e fugiu a correr. Os padres olharam com desagrado; o Relojoeiro deixou dinheiro na mesa e afastou-se. Onde já se vira, gatos num café . Ele estava ansioso por concluir o seu assunto em Roma e regressar a Viena. Caminhou ao longo da Colunata de Bernini e parou por um momento para admirar a larga Via delia Conciliazione em direção ao Tibre. Um turista estendeu-lhe uma máquina fotográfica descartável e pediu-lhe, numa indecifrável língua eslava, que lhe tirasse uma fotografia em frente ao Vaticano. O austríaco, sem dizer uma palavra, apontou para o seu relógio de pulso, indicando que estava atrasado para um encontro e virou costas.

Atravessou a ampla e trovejante praça mesmo por trás da abertura da colunata. Ostentava o nome de um papa recente. O Relojoeiro, embora tivesse poucos interesses além de relojoaria antiga, sabia que este papa era uma figura controversa. Considerava bastante divertida a celeuma que pairava em seu redor. Então não tinha ajudado os judeus durante a guerra? Desde quando era da responsabilidade de um papa ajudar judeus? Eles eram, afinal de contas, os inimigos da Igreja.

Afastou-se do Vaticano em direção ao parque Janiculum por uma rua estreita cheia de sombras, alinhada por edifícios cor de ocre cobertos por um pó fino. O Relojoeiro caminhou pelo pavimento rachado, procurando pela morada que lhe tinha sido indicada nessa manhã por telefone. Encontrou-a, mas hesitou antes de entrar. Gravado no vidro coberto de pó estavam as palavras ARTICOLI RELIGIOSI. Por baixo, em letras menores, estava o nome GIUSEPPE MONDIANI. O Relojoeiro consultou o pedaço de papel onde tinha escrito a morada. Número 22 Via Borgo Santo Spirito. Tinha vindo ao local certo.

Encostou a cara ao vidro. A sala do outro lado estava repleta de crucifixos, estátuas da Virgem, gravuras de santos mortos há muito, rosários e medalhas, todos certificados com a bênção do próprio papa. Tudo parecia estar coberto pelo mesmo pó fino da rua. O Relojoeiro, embora educado num rigoroso lar católico austríaco, ponderava o que levaria uma pessoa a rezar para uma imagem. Ele já não acreditava em Deus ou na Igreja, nem acreditava no destino, intervenção divina, vida depois da morte ou na sorte. Acreditava que os homens controlavam o rumo das suas vidas, como o mecanismo de um relógio controlava o movimento dos ponteiros.

Abriu a porta e entrou escoltado pelo tilintar de um pequeno sino. Um homem surgiu de uma sala interior, vestindo camiseta bege com gola em V, calça marrom sem vinco. No alto da sua cabeça, o seu cabelo frágil e fino estava penteado com gel. O Relojoeiro, embora a vários passos de distância, sentia o cheiro de sua desagradável loção pós-barba. Refletiu se os homens do Vaticano sabiam que seus abençoados artigos religiosos eram vendidos por tão repugnante criatura.

— Posso ajudá-lo?

— Estou à procura do Signor Mondiani.

Ele mexeu a cabeça dando a entender ao Relojoeiro que tinha encontrado o homem que procurava. Um sorriso deslavado revelou que lhe faltavam vários dentes.

— Você deve ser o cavalheiro de Viena — disse Mondiani. — Reconheço a voz.

Ele estendeu a mão. Estava esponjosa e úmida, como o Relojoeiro temia. Mondiani trancou a porta da frente e pendurou um aviso na janela escrito em inglês e em italiano que informava que a loja estava fechada. Em seguida, conduziu o Relojoeiro por uma porta e umas escadas de madeira raquíticas. No alto dos degraus havia um pequeno escritório. As cortinas estavam corridas e no ar sentia-se o aroma de um perfume de mulher. E mais qualquer coisa azeda, tipo amoníaco. Mondiani gesticulou em direção ao sofá. O Relojoeiro olhou para baixo; uma imagem passou-lhe pelos olhos. Continuou de pé. Mondiani encolheu os ombros estreitos.

— Como queira.

O italiano sentou-se à mesa, ajeitou uns papéis e alisou o cabelo. Estava pintado de um laranja escuro não natural. O Relojoeiro, a ficar careca e com uma franja mal cortada, parecia estar a pô-lo mais autoconsciente do que já estava.

— O seu colega de Viena disse que precisava de uma arma.

Mondiani abriu uma gaveta da mesa e retirou um artigo escuro com acabamento metálico, e colocou-o respeitosamente no seu protetor de mesa manchado de café, como se estivesse a lidar com uma relíquia sagrada. — Penso que vai achar isto satisfatório.

O Relojoeiro estendeu a mão. Mondiani colocou-lhe a arma na palma.

— Como pode ver, é uma Glock nove milímetros. Penso que está familiarizado com a Glock. Afinal de contas é uma arma austríaca.

O Relojoeiro levantou os olhos da arma.

— Isto também foi abençoado pelo Santo Papa como o resto do seu inventário?

Por sua expressão sinistra, Mondiani não achou graça. Alcançou a gaveta aberta e exibiu uma caixa de munição.

— Precisa de um carregador extra?

O Relojoeiro não pretendia entrar num tiroteio, mas ainda assim, uma pessoa sente-se sempre melhor com um carregador extra no bolso da calça. Mondiani perguntou-lhe se precisava de silenciador. O Relojoeiro, com o olhar baixo, acenou afirmativamente.

— Ao contrário da arma, isto não é fabricado na Áustria. Foi feito mesmo aqui — disse Mondiani com orgulho excessivo. — Em Itália. É muito eficaz. A arma vai emitir pouco mais que um sussurro quando disparada.

O Relojoeiro segurou o silenciador em frente ao seu olho direito e olhou pelo cano. Satisfeito com a perfeição, colocou-o na mesa, junto das outras coisas.

— Precisa de mais alguma coisa?

O Relojoeiro lembrou ao Signor Mondiani que tinha requisitado uma motocicleta.

— Ah sim, a moto — disse Mondiani, levantando um conjunto de chaves. — Está estacionado lá fora. Tem dois capacetes, como requisitado, de cores diferentes. Escolhi preto e vermelho. Espero que seja satisfatório.

O Relojoeiro olhou para o relógio. Mondiani percebeu a dica e apressou as coisas. Num bloco de argolas, com um lápis mastigado, preparou a fatura.

— A arma é limpa e não identificável — disse ele, enquanto rabiscava o papel.

— Eu sugiro que a deite para o Tibre quando terminar. A Polizia di Stato nunca a encontrará.

— E a motocicleta?

— Roubada — disse Mondiani. — Deixe-a num local público com as chaves na ignição, numa piazza movimentada, por exemplo. Tenho certeza de que encontrará um novo dono em poucos minutos.

Mondiani desenhou um círculo à volta do montante final e girou o bloco para que o Relojoeiro pudesse ver. Estava em euros, graças a Deus. O Relojoeiro, apesar de ser ele próprio um homem de negócios, sempre detestara fazer transações em liras.

— Um pouco exagerado, não lhe parece Signor Mondiani? Mondiani encolheu os ombros e regalou o Relojoeiro com outro sorriso hediondo. O Relojoeiro pegou no silenciador e enroscou-o cuidadosamente na ponta do cano.

— Este encargo aqui — disse o Relojoeiro batendo levemente no bloco de argolas com o indicador da mão que tinha livre —, é o quê?

— Isso são os meus honorários de corretagem — conseguiu dizer Mondiani com uma expressão séria.

— Está a cobrar-me pela Glock três vezes mais do que eu pagaria na Áustria. Isso, Signor Mondiani, são os seus honorários de corretagem.

Mondiani cruzou os braços provocadoramente.

— É o estilo italiano. Quer a arma ou não?

— Sim — disse o Relojoeiro —, mas a um preço razoável.

— Lamento, mas esta é a tarifa atual em Roma.

— Para um italiano ou só para estrangeiros?

— Seria melhor se fosse tratar das suas coisas a outro lado — Mondiani estendeu a mão. Estava a tremer. — Entregue-me a arma, por favor, e saia.

O Relojoeiro suspirou. Talvez fosse melhor assim. Signor Mondiani, apesar das garantias do homem de Viena, era dificilmente do gênero que inspirasse confiança. O Relojoeiro, num movimento súbito, enfiou o carregador na Glock e engatilhou a primeira bala. As mãos de Signor Mondiani levantaram-se defensivamente. Os tiros perfuraram as palmas antes de atingir a cara. O Relojoeiro, enquanto deslizava para fora do escritório, percebeu que Mondiani tinha sido honesto sobre pelo menos uma coisa.

A arma, quando disparada, emitia pouco menos que um sussurro.

 

SAIU DA LOJA e trancou a porta. Já estava quase escuro; o domo da Basilica esbatia-se de encontro ao céu enegrecido. Inseriu a chave na ignição da motocicleta e ligou o motor. Pouco depois, acelerava pela Via delia Conciliazione abaixo em direção aos muros cor de lama do Gastel San Angelo. Acelerou através do Tibre e seguiu caminho pelas ruas estreitas do Centro Storico, até chegar à Via Giulia. Estacionou à porta do Hotel Cardinal, retirou o capacete, entrou no recepção, virou para a direita e entrou num pequeno bar estilo catacumba com paredes decoradas de antigo granito romano.

Pediu uma Coca-Cola ao garçom de balcão — estava confiante de que conseguiria cumprir esta proeza sem denunciar o seu sotaque austríaco — e transportou a bebida até uma pequena mesa adjacente à passagem entre a recepção e o bar. Para passar o tempo, foi comendo pistácios e folheando um molho de jornais italianos.

Às sete e meia um homem saiu do elevador: cabelo preto curto, cinza nas têmporas, olhos muito verdes. Deixou a chave do quarto na recepção e saiu para a rua.

O Relojoeiro terminou a Coca-Cola, e saiu também. Atirou a perna por cima da moto do Signor Mondiani e ligou o motor. O capacete preto estava pendurado no guidom pelo fecho. O Relojoeiro retirou o capacete vermelho da bagageira na traseira e colocou-o. Em seguida, pôs o preto na bagageira e fechou a tampa. Levantou o olhar e observou a figura do homem de olhos verdes afastando-se pela escuridão da Via Giulia. Rodou ligeiramente o acelerador e avançou lentamente atrás dele.

 

22

 

 

ROMA

 

 

A RESERVA NO La Curbonara era para quatro. Gabriel caminhou até a Piazza Farnese e encontrou Pazner à espera junto da embaixada francesa. Caminharam até a Pompière e sentaram-se numa mesa sossegada no fundo. Pazner pediu vinho tinto e polenta e entregou a Gabriel um envelope branco.

— Levou algum tempo — disse Pazner —, mas eventualmente encontraram uma referência a Krebs num relatório sobre um nazista chamado Alois Brunner. Sabe alguma coisa sobre Brunner?

— Era um assessor de topo de Eichmann — respondeu Gabriel um perito em deportações, altamente qualificado na arte de mandar judeus para os guetos e depois para as câmaras de gás. Trabalhou com Eichmann na deportação de judeus austríacos. Mais tarde, na guerra, tratou de deportações em Salônica e Vichy, França.

Pazner, claramente impressionado, deu uma garfada num pedaço de polenta.

— E depois da guerra fugiu para a Síria, onde viveu sob o nome de George Fischer e trabalhou como consultor do regime. Tanto quanto se sabe, os modernos serviços secretos e de segurança da Síria foram criados por Alois Brunner.

— Krebs trabalhava para ele?

— Parece que sim. Abra o envelope. E, já agora, tenha o cuidado de tratar esse relatório com todo o respeito que merece. O homem que o conseguiu pagou um preço muito alto. Repare no nome de código do agente. "MENASHE" ERA o nome de código de um lendário espião israelense chamado Eli Cohen. Nascido no Egipto em 1924, Cohen emigrou para Israel em 1957 e imediatamente se voluntariou para trabalhar nos serviços secretos israelenses. Os resultados dos testes psicotécnicos foram divergentes. Os avaliadores consideraram-no extremamente inteligente e abençoado com uma extraordinária memória para pormenores. Mas também descobriram um perigoso traço de "exagerada arrogância" e previram que Cohen iria assumir riscos desnecessários no campo.

A ficha de Cohen foi ganhando pó até 1960, quando a crescente tensão ao longo da fronteira com a Síria levou os homens dos serviços secretos israelenses a decidir que precisavam desesperadamente de um espião em Damasco. Uma longa busca de candidatos não produziu efeitos práticos . Então a procura foi alargada para incluir aqueles que tinham sido rejeitados por outras razões. A ficha de Cohen foi outra vez aberta, e em breve, ele estava a ser preparado para uma missão que iria acabar por matá-lo.

Após seis meses de treino intensivo, Cohen, fazendo-se passar por Kamal Amin Thabit, foi enviado para a Argentina para elaborar a sua biografia de disfarce: Um bem-sucedido homem de negócios sírio que vivera no estrangeiro toda a sua vida e que apenas queria regressar à sua terra natal. Conquistou a confiança da ampla comunidade síria de expatriados de Buenos Aires e atraiu muitas amizades importantes, incluindo uma com o Major Amin al-Hafez, que mais tarde se viria a tornar presidente da Síria.

Em Janeiro de 1962, Cohen mudou-se para Damasco e abriu um negócio de importações-exportações. Devidamente apresentado pela comunidade síria de Buenos Aires, rapidamente se tornou uma figura popular da cena social e política de Damasco, desenvolvendo amizades com altos cargos militares e do Ba'ath, o partido do governo. Oficiais do exército sírio levaram Cohen em visitas guiadas a instalações militares e até lhe mostraram as fortificações nos estratégicos Montes Golan. Quando o Major al-Hafez se tornou presidente, especulava-se que "Kamal Amin Thabit" podia estar na lista para uma pasta ministerial, talvez até ministro da Defesa.

Os serviços secretos sírios não faziam ideia que o afável Thabit era na realidade um espião israelense que enviava regularmente relatórios aos seus chefes do outro lado da fronteira. Relatórios urgentes eram enviados por transmissões de rádio em código de Morse. Relatórios mais longos e detalhados eram escritos em tinta invisível, escondidos em contentores de mobília damascena e enviados para um ponto israelense na Europa. As informações fornecidas por Cohen deram aos estrategistas militares israelenses uma extraordinária visão sobre a situação política e militar em Damasco.

No final, os avisos sobre a aptidão de Cohen para o risco provaram estar corretos. Foi ficando descuidado no uso do rádio, transmitindo a horas regulares todas as manhãs ou enviando múltiplas transmissões num só dia. Enviava saudações à sua família e lamentava-se das derrotas de Israel nos campeonatos internacionais de futebol. As forças de segurança sírias, detentoras das últimas novidades russas de detecção de ondas de rádio, empreenderam uma busca ao espião israelense em Damasco.

Encontraram-no a 18 de Janeiro de 1965, irrompendo pelo seu apartamento enquanto enviava uma mensagem aos seus controladores em Israel. O enforcamento de Cohen, em Maio de 1965, foi transmitido em direto na televisão Síria.

Gabriel leu o primeiro relatório à luz de uma tremeluzente vela de mesa. Fora enviado pelo canal europeu em Maio de 1963. No meio de num relatório detalhado sobre a política interna e intrigas do partido Ba'ath estava um parágrafo dedicado a Alois Brunner:

Conheci "Herr Fischer" num cocktail promovido por um superior hierárquico do partido Ba'ath. O aspecto de Herr Fischer não era dos melhores, tinha perdido recentemente vários dedos de uma mão por causa de uma carta armadilhada no Cairo. Atribuiu as culpas do atentado que sofreu a imundos judeus vingativos de Tel Aviv. Reivindicava que o trabalho que estava a fazer no Egipto era mais do que suficiente para ajustar contas com os agentes israelenses que o tinham tentado assassinar. Herr Fischer estava acompanhado, nessa tarde, por um homem chamado Otto Krebs. Nunca tinha visto Krebs antes. Era alto e de olhos azuis, de aparência muito germânica, ao contrário de Brunner. Bebeu whisky copiosamente e parecia vulnerável, um homem que talvez estivesse a ser chantageado ou manipulado de alguma forma.

— É só isto? — perguntou Gabriel. — Uma só vez num cocktail?

— Aparentemente sim, mas não fique desencorajado — Cohen deu-lhe mais uma pista. — Veja o próximo relatório.

Gabriel baixou o olhar e leu.

Eu vi "Herr Fischer" na semana passada numa recepção no Ministério da Defesa. Perguntei-lhe pelo seu amigo, Herr Krebs. Disse-lhe que Krebs e eu tínhamos discutido um projeto comercial e eu estava desapontado por não ter ouvido mais falar dele. Fischer disse que isso não o surpreendia uma vez que Krebs se tinha mudado recentemente para a Argentina.

Pazner serviu a Gabriel um copo de vinho.

— Ouvi dizer que Buenos Aires é encantador nesta altura do ano.

 

 

GABRIEL E PAZNER separaram-se na Piazza Farnese; Gabriel caminhou sozinho pela Via Giulia em direção ao seu hotel. A noite esfriara, e estava muito escuro na rua. O silêncio profundo, combinado com o áspero piso de pedra por baixo dos seus pés, permitia imaginar como teria sido Roma há um século e meio atrás, quando os homens do Vaticano ainda governavam com supremacia. Pensou em Erich Radek, caminhando por esta mesma rua, enquanto esperava pelo seu passaporte e bilhete para a liberdade.

Mas terá sido mesmo Radek que veio para Roma?

Segundo os registros do bispo Hudal, Radek veio para Anima em 1948 e partiu pouco depois como Otto Krebs. Eli Cohen colocou "Krebs" em Damasco em finais de 1963. Em seguida Krebs, segundo o relatório, mudou-se para a Argentina. Os fatos expuseram uma relevante e talvez inconciliável contradição do caso contra Ludwig Vogel. De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel vivia na Áustria em 1946, trabalhando para a autoridade de ocupação americana. Se isso fosse verdade, então Vogel e Radek não podiam ser a mesma pessoa. Como se explica então que Max Klein afirme que Vogel esteve em Birkenau? O anel que Gabriel tirara do chalé de Vogel na Alta Áustria? 1005, bom trabalho, Heinrich... O relógio de pulso? Para Erich, em adoração, Mônica... Teria outro homem vindo para Roma em 1948 fazendo-se passar por Erich Radek? E se sim, porquê!

Muitas questões, pensou Gabriel, e apenas um rasto para seguir: Fischer disse que isso não o surpreendia uma vez que Krebs se tinha mudado recentemente para a Argentina. Pazner estava certo. Gabriel não tinha escolha senão continuar a busca na Argentina.

O pesado silêncio foi quebrado pelo zunido de inseto de uma scooter. Gabriel olhou por sobre o ombro enquanto a moto fazia uma curva e entrava na Via Giulia. Então, acelerou subitamente na direção dele. Gabriel parou de andar e retirou as mãos dos bolsos do casaco. Tinha uma decisão para tomar. Ficar quieto como um romano normal ou virar-se e correr? A decisão foi tomada por ele, alguns segundos depois, quando o motoqueiro de capacete alcançou a frente do casaco e sacou uma pistola com silenciador.

 

 

GABRIEL JOGOU-SE numa rua estreita enquanto a pistola cuspia três projeteis de fogo. Três balas atingiram a esquina de pedra de um prédio. Gabriel baixou a cabeça e começou a correr.

a moto ia demasiado rápido para conseguir fazer a curva. Derrapou em frente à entrada da rua, e resvalou ao dar a volta, concedendo a Gabriel alguns segundos importantes para ganhar distância entre ele e o seu atacante. Virou à direita, para uma rua paralela à Via Giulia, e fez uma súbita viragem à esquerda. O seu objetivo era seguir para o Corso Vittorio Emanuele II, uma das maiores vias públicas de Roma. Haveria trânsito na estrada e peões nos passeios. No Corso conseguiria encontrar um local para se esconder.

O gemido da moto aproximava-se. Gabriel olhou sobre o ombro. A moto ainda estava a segui-lo e a ganhar distância a um ritmo alarmante. Lançou-se num impetuoso sprint, esbracejando, com a respiração ofegante e rouca. A luz do farol dianteiro alcançou-o. Viu a própria sombra nas pedras da calçada à sua frente como um louco a debater-se.

Uma segunda moto entrou na rua diretamente em frente a ele e travou numa derrapagem. O motoqueiro de capacete sacou de uma arma. Então é assim que vai ser — uma armadilha, dois assassinos, sem esperança de escapar. Sentiu-se como um alvo num clube de tiro, à espera de ser derrubado.

Continuou a correr, em direção à luz. Os seus braços levantaram, e ele olhou para as próprias mãos, contorcidas e tensas, as mãos de uma figura atormentada numa pintura expressionista. Percebeu que estava a gritar. O som ecoava do estuque e tijolos dos edifícios envolventes e vibrava nos seus próprios ouvidos, para que deixasse de ouvir o som da motocicleta nas suas costas. Uma imagem surgiu-lhe na mente: A sua mãe na beira de uma estrada polonesa com a arma de Erich Radek encostada à têmpora. Só então percebeu que estava a gritar em alemão. A língua dos seus sonhos. A língua dos seus pesadelos.

O segundo assassino apontou a arma e levantou o visor do capacete.

Gabriel conseguia ouvir o som do seu próprio nome.

— Abaixe-se! Abaixe-se! — Gabriel percebeu que era a voz de Chiara. Atirou-se no chão.

Os tiros de Chiara voaram por cima da cabeça dele e atingiram o motociclista que se aproximava. A moto perdeu o controle e bateu na parede de um prédio. O assassino foi projetado por cima do guidom e rolou pelas pedras do chão. A arma foi parar a alguns centímetros de Gabriel. Ele alcançou-a.

— Não, Gabriel! Deixa! Depressa!

Olhou para cima e viu Chiara estendendo-lhe a mão. Subiu no banco de trás da moto e agarrou-se quadris dela como uma criança enquanto a moto rugia Corso acima em direção ao rio.

 

 

SHAMRON TINHA UMA regra quanto a apartamentos seguros: Não podia haver contato físico entre agentes de sexo oposto. Nessa tarde, num apartamento do Escritório no Norte de Roma, perto de uma curva larga do Tibre, Gabriel e Chiara violaram a regra de Shamron com uma intensidade nascida do medo da morte. Só depois Gabriel se preocupou em perguntar a Chiara como o tinha encontrado.

— Shamron disse-me que vinhas a Roma. Pediu-me para te proteger. Concordei, claro. Tenho um interesse muito pessoal na continuidade de sua sobrevivência. Gabriel pensou como falhara em perceber que estava a ser seguido por um deusa italiana de quase um metro e oitenta, mas na realidade, Chiara Zolli era muito competente no seu trabalho.

— Quis almoçar com você em Piperno — disse ela, trocista. — Mas não pensei que fosse muito boa ideia.

— O que é que sabes sobre o caso?

— Apenas que os meus maiores receios sobre Viena acabaram por se tornar realidade. Porque não me contas o resto?

Foi o que fez, começando pelo voo de Viena e terminando com a informação que tinha recolhido essa noite de Shimon Pazner.

— Então quem enviou aquele homem a Roma para te matar?

— Penso que é seguro assumir que foi a mesma pessoa que arquitetou o assassinato de Max Klein.

— Como te encontraram aqui?

Gabriel já tinha colocado essa questão a si mesmo. As suas suspeitas recaíam sobre o reitor austríaco de bochechas rosadas da Anima, o Bispo Theodor Drexler.

— Então aonde vamos agora? — Perguntou Chiara.

— Vamos?

— Shamron me mandou proteger você. Quer que desobedeça a uma ordem direta do Memuneht?

— Ele disse para me vigiar em Roma.

— Era uma missão em aberto — respondeu ela em tom provocador.

Gabriel deixou-se estar por um momento, acariciando-lhe o cabelo.

Na realidade, seria bom um companheiro de viagem e um segundo par de olhos no campo. Dado os óbvios riscos envolvidos, ele preferia qualquer um que não fosse a mulher que amava. No entanto, ela provara ser um parceiro precioso. Havia um telefone seguro na mesa de cabeceira. Ligou para Jerusalém e acordou Moshe Rivlin de um sono pesado. Rivlin deu-lhe o nome de um homem em Buenos Aires, juntamente com um número de telefone e um endereço no bairro San Telmo. Em seguida, Gabriel telefonou para as Aerolineas Argentinas e reservou dois lugares em classe executiva num voo da tarde seguinte. Pousou o receptor. Chiara descansou a cabeça em seu peito.

— Estava gritando alguma coisa naquele beco quando corria em direção a mim — disse ela. — Lembra do que estava dizendo?

Não se lembrava. Era como se tivesse acordado incapaz de se lembrar dos sonhos que tinham atormentado seu sono.

— Você estava chamando por ela — disse Chiara.

— Quem?

— Sua mãe.

Ele lembrou-se da imagem que lhe tinha passado pela mente durante a alucinante perseguição do homem na moto. Pensou que seria possível ter chamado pela mãe. Na verdade, tinha pensado pouco em outras coisas, depois de ler o testemunho dela.

— Tem certeza de que foi Erich Radek que assassinou aquelas pobres moças na Polônia?

— Tanta certeza quanto se pode ter sessenta anos depois do fato.

— E se Ludwig Vogel for na realidade Erich Radek?

 Gabriel levantou o braço e desligou o abajur.


CONTINUA

11

VIENA

— SE ESTÁ PENSANDO em escapar, vai descobrir que todas as saídas estão bloqueadas e ao fundo das escadas um homem muito grande vai apreciar a oportunidade de o subjugar.

O corpo de Kruz virou-se ligeiramente. Fixou o olhar em Gabriel, como um esgrimista, por cima do ombro e levantou a palma da mão num gesto apaziguador.

— Não há necessidade de isto se descontrolar. Entre e feche a porta. A sua voz era a mesma, sem energia e anormalmente calma, um cangalheiro a ajudar um cliente enlutado a escolher um caixão. Envelhecera treze anos — havia mais algumas rugas em volta da boca astuta e alguns quilos extra na sua figura delgada — e, avaliando pela roupa bem feita e comportamento arrogante, fora promovido. Gabriel manteve o seu olhar fixo nos olhos negros de Kruz. Conseguia sentir a presença de outro homem nas suas costas. Atravessou a entrada e fechou a porta atrás de si. Ouviu um baque, seguido de um praguejar resmungado em alemão. Kruz levantou a palma da mão novamente. Desta vez era uma ordem para Gabriel parar.

— Está armado?

Gabriel abanou a cabeça penosamente.

— Importa-se que eu verifique? — Perguntou Kruz. — A sua reputação o persegue.

Gabriel levantou os braços. O oficial que estava por trás dele no bali entrou no quarto e revistou-o. Era profissional e muito minucioso, começando pelo pescoço e terminando nos calcanhares. Kruz parecia desiludido com o resultado.

— Tire o casaco e esvazie os bolsos.

Gabriel hesitou e foi instigado com um doloroso golpe no rim. Desapertou o casaco e entregou-o a Kruz, que revistou os bolsos e sentiu o forro de um compartimento falso.

— Vire os bolsos da calça para fora.

Gabriel obedeceu. Resultado: algumas moedas e o canhoto de um bilhete de trólei. Kruz olhou para os dois oficiais que seguravam o colchão e ordenou-lhes que refizessem a cama.

— O Sr. Allon é um profissional — disse.

— Não vamos encontrar nada.

Os oficiais deixaram cair o colchão no estrado. Kruz, com um gesto, disse-lhes que abandonassem o quarto. Sentou-se novamente à mesa e apontou para a cama.

— Ponha-se à vontade. Gabriel continuou de pé.

— Há quanto tempo está em Viena?

— Diga-me você?

Kruz reconheceu o elogio profissional com um sorriso seco.

— Chegou num voo proveniente do Aeroporto Ben-Gurion na noite anterior à de ontem. Depois de dar entrada no hotel, prosseguiu para o Hospital Geral de Viena, onde passou várias horas com o seu amigo Eli Lavon.

Kruz ficou em silêncio. Gabriel ponderou o quanto mais ele saberia sobre as suas atividades em Viena. Saberia dos encontros com Max Klein e Renate Hoffmann? O seu encontro com Ludwig Vogel no Café Central e a sua excursão a Salzkammergut? Kruz, mesmo que soubesse mais, não iria certamente dizer. Ele não era do tipo de mostrar os trunfos sem razão. Gabriel imaginava-o um jogador frio e calculista.

— Porque não me prendeu antes?

— Não o prendi agora. Kruz acendeu um cigarro.

— Estamos dispostos a esquecer a sua violação do nosso acordo porque assumimos que pudesse ter vindo a Viena para estar ao lado do seu amigo ferido. Mas rapidamente se tornou claro que pretendia conduzir uma investigação privada do atentado. Por razões óbvias, não posso permitir isso.

— Sim — concordou Gabriel —, por razões óbvias.

Kruz dispensou um momento a contemplar o fumo erguendo-se da ponta do cigarro.

— Tínhamos um acordo, Sr. Allon. Sob nenhuma circunstância deveria voltar a este pais. Não é bem-vindo aqui. Não é suposto aqui estar. Não me interessa se está transtornado por causa do seu amigo Eli Lavon. Esta investigação é nossa, e não precisamos da sua ajuda nem do seu serviço.

Kruz olhou para o relógio.

— Há um voo da El Al que parte dentro de três horas. Você vai embarcar nele. Eu faço-lhe companhia enquanto faz as malas.

Gabriel olhou em redor para as suas roupas espalhadas pelo chão. Levantou a tampa da sua mala e viu que o forro tinha sido cortado. Kruz encolheu os ombros:

— O que é que esperava?

Gabriel agachou-se e começou a apanhar os seus pertences. Kruz olhou para a rua pelas portadas francesas e fumou. Passado um momento, Kruz perguntou:

— Ela ainda está viva?

Gabriel voltou-se lentamente e cravou o seu olhar nos olhos pequenos e negros de Kruz.

— Está a referir-se à minha mulher?

— Sim.

Gabriel abanou a cabeça lentamente.

— Não fale da minha mulher, Kruz. Kruz sorriu secamente.

— Não vai começar a fazer ameaças novamente, pois não, Sr. Allon? Posso sentir-me tentado a levá-lo sob custódia para um interrogatório mais pormenorizado das suas atividades aqui.

Gabriel não disse nada. Kruz apagou o cigarro.

— Faça as malas, Allon. Não vai querer perder o avião.


PARTE DOIS

 

 

A Galeria dos Nomes


12

 

 

JERUSALÉM

 

 

AS LUZES DO Aeroporto Ben-Gurion pontuavam a escuridão da planície costeira. Gabriel encostou a cabeça à janela e observou a pista erguendo-se lentamente para se encontrar com ele. A pista alcatroada brilhava como vidro sob a chuva da noite. Enquanto o avião abrandava para parar, Gabriel viu o homem da King Saul Boulevard debaixo de um guarda-chuva na base das escadas. Garantiu que era o último passageiro a abandonar o avião.

Entraram no terminal por uma porta especial, usada por oficiais seniores do governo e dignitários de visita. O homem da sede era um discípulo de Lev, corporativo e de alta tecnologia, orientado na bolsa de valores e a crença de que homens de campo eram simplesmente objetos insensíveis para serem manipulados por seres superiores. Gabriel caminhava um passo à sua frente.

— O chefe quer ver-te.

— Não duvido, mas não durmo há dois dias e estou cansado.

— O chefe não quer saber se estás cansado. Quem é que pensas que és, Allon? Gabriel, mesmo em segurança no Aeroporto de Ben-Gurion, não apreciava o uso do seu nome verdadeiro. Voltou-se bruscamente. O homem da sede levantou os braços rendendo-se. Gabriel virou costas e continuou a andar. O homem da sede teve o bom senso de não o seguir.

Lá fora, a chuva caía forte no pavimento. Obra de Lev, sem dúvida. Gabriel procurou abrigo debaixo da praça de táxis e pensou para onde poderia ir. Não tinha residência em Israel; o Departamento era o seu único lar. Normalmente ficava num apartamento seguro ou na casa de campo de Shamron em Tiberíades.

Um Peugeot preto virou na rotunda. O peso da blindagem fazia-o deslocar-se rente ao chão sob uma dura suspensão. Parou em frente a Gabriel, a janela à prova de bala do banco de trás baixou. Gabriel cheirou a amarga essência familiar de tabaco turco. A seguir viu a mão, manchada pelo fígado e de veias azuis proeminentes, gesticulando com lassidão para que ele saísse da chuva. O CARRO LANÇOU-SE para a frente ainda antes de Gabriel ter tempo para fechar a porta. Shamron nunca foi de esperar. Apagou o cigarro em atenção a Gabriel e abriu as janelas por alguns segundos para purificar o ar. Quando as janelas se fecharam novamente, Gabriel contou-lhe a hostil recepção de Lev. Começou por falar com Shamron em inglês; mas, lembrando-se onde estava, mudou para hebraico.

— Parece que quer falar comigo.

— Sim, eu sei — disse Shamron.

— Também me quer ver a mim.

— Como é que ele ficou a saber de Viena?

— Parece que Manfred Kruz fez um telefonema de cortesia para a embaixada depois de sua deportação e fez um escândalo. Disseram-me que não foi bonito. O ministro dos Negócios Estrangeiros está furioso, e o último andar inteiro da King Saul Boulevard quer a minha cabeça, e sua.

— O que é que me podem fazer?

— Nada, o que faz de ti o meu cúmplice perfeito, isso e os teus óbvios talentos, claro.

O carro lançou-se para fora do aeroporto e virou para a autoestrada. Gabriel questionou-se porque estariam a ir na direção de Jerusalém, mas estava demasiado exausto para se ralar. Pouco depois, começaram a subir as Montanhas da Judeia. Sentiu-se o cheiro a eucalipto e pinho molhado. Gabriel olhou pela janela pingada de chuva e tentou lembrar-se da última vez que tinha pisado o seu país. Fora depois de ter caçado Tariq al-Hourani. Passara um mês num apartamento seguro mesmo por fora dos muros da cidade velha, recuperando de um ferimento de bala no peito. Fora há mais de três anos. Percebeu que as coisas que o ligavam a este lugar estavam a desaparecer. Ponderou se ele, como Francesco Tiepolo, morreria em Veneza e se sofreria a indignidade de um enterro em terra firme.

— Algo me diz que Lev e o ministro dos Negócios Estrangeiros vão ficar ligeiramente menos aborrecidos comigo quando descobrirem o que está por trás disto. Shamron ergueu um envelope.

— Parece que estiveste muito ocupado durante sua curta estada em Viena. Quem é Ludwig Vogel?

Gabriel, com a cabeça apoiada na janela, disse a Shamron tudo, começando pelo seu encontro com Max Klein, e terminando com o seu tenso confronto com Manfred Kruz no quarto de hotel. Shamron em breve estava a fumar outra vez, e embora Gabriel não conseguisse ver claramente o seu rosto no banco de trás da escura limusina, o velho homem estava na realidade a sorrir. Umberto Conti podia ter dado a Gabriel as ferramentas para se tornar um grande restaurador, mas Shamron era responsável pela sua memória infalível.

— Não admira que Kruz estivesse tão ansioso por te pôr fora da Áustria — disse Shamron.

— As Células de Combate Islâmico? Irrompeu num riso irônico.

— Que conveniente. O governo aceita a reivindicação de responsabilidade e varre o caso para debaixo do tapete como sendo um caso de terrorismo islâmico em solo austríaco. Dessa forma as pistas não chegam muito perto dos austríacos, ou de Vogel e Metzler, especialmente estando tão perto das eleições.

— Mas e os documentos do Staatsarchiv? Segundo os mesmos, Ludwig Vogel está impecavelmente limpo.

— Então por que colocou ele uma bomba no escritório de Eli e assassinou Max Klein?

— Não sabemos se ele fez alguma dessas coisas.

— É verdade, mas os fatos sugerem com certeza essa possibilidade. Podemos não conseguir provar em tribunal, mas a história iria vender muitos jornais.

— Estás a sugerir uma fuga de informação?

— Porque não acendemos uma fogueira debaixo de Vogel e vemos como ele reage?

— Não me parece uma boa ideia — disse Gabriel. — Lembras-te de Waldheim e as revelações sobre o seu passado nazista? As provas foram contrariadas e consideradas propaganda externa e interferência estrangeira nos assuntos austríacos. A opinião pública cerrou fileiras à sua volta, assim como as autoridades do pais. O caso também fez disparar o antissemitismo na Áustria. Uma fuga, Ari, seria uma muito má ideia.

— Então o que sugeres que façamos?

Max Klein estava convencido de que Ludwig Vogel era um homem das SS que cometeu uma atrocidade em Auschwitz. Segundo os documentos do Staatsarchiv, Ludwig Vogel era demasiado novo para ser esse homem, e ele esteve na Wehrmacht, não nas SS. Mas assume, para discussão, que Max Klein estava certo.

— Isso significaria que Ludwig Vogel é outra pessoa. Exatamente — disse Gabriel. — Então vamos descobrir quem ele é na realidade.

— Como tencionas fazer isso?

Não sei bem — disse Gabriel —, mas as informações desse envelope, nas mãos certas, podem produzir algumas pistas valiosas. Shamron abanou a cabeça.

Há um homem na Yad Vashem que deves ir visitar. Ele poderá ajudar-te. Vou organizar um encontro logo de manhã.

Há mais uma coisa, Ari. Precisamos tirar o Eli de Viena.

— Exatamente o que eu estava a pensar.

Shamron retirou o telefone da consola e pressionou um botão de ligação automática.

Daqui Shamron, preciso de falar com o primeiro-ministro.

 

 

SITUADO NO ALTO DO Monte Herzel, na parte ocidental de Jerusalém, Yad Vashem é o memorial oficial de Israel em honra dos seis milhões de vitimas que pereceram na Shoah. É também o centro de pesquisa e documentação sobre o Holocausto mais avançado do mundo. A livraria contém mais de cem mil volumes, a maior e mais completa coleção de literatura do Holocausto no planeta. Guardados nos arquivos estão mais de cinquenta e oito milhões de páginas de documentos originais, incluindo milhares de testemunhos pessoais, escritos, ditados, ou filmados por sobreviventes da Shoah em Israel e em todo o mundo. Moshe Rivlin esperava-o. Um rechonchudo acadêmico barbudo que falava hebraico com um sotaque de Brooklyn. A especialidade residia não nas vitimas da Shoah mas nos seus perpetradores: os alemães que serviram a mortal máquina nazista e os milhares de ajudantes não alemães que com vontade e entusiasmo participaram na destruição dos judeus

da Europa. Ele trabalhava como consultor pago pelo Departamento de Justiça Americano de Investigações Especiais, compilando documentação e provas contra nazistas acusados de crimes de guerra e purgando Israel de testemunhas vivas. Quando não estava a pesquisar nos arquivos de Yad Vashem, Rivlin podia ser facilmente encontrado entre sobreviventes, à procura de alguém que se lembrasse.

Rivlin conduziu Gabriel ao edifício de arquivos até a sala de leitura principal. Era um espaço surpreendentemente exíguo, brilhantemente iluminado por grandes janelas até o teto com vista sobre as colinas a oeste de Jerusalém. Curvados sobre livros abertos, um par de estudantes lia; outro olhava fixamente para a tela de um leitor de microfilme. Quando Gabriel sugeriu algo de mais privado, Rivlin levou-o até uma pequena sala anexa e fechou a espessa porta de vidro. A versão dos acontecimentos que Gabriel providenciou era simples, mas exaustiva o suficiente para que nada importante se perdesse na tradução. Mostrou a Rivlin todo o material que recolhera na Áustria: o arquivo da Staatsarchiv, a fotografia, o relógio de pulso e o anel. Quando Gabriel apontou para a inscrição no interior da banda, Rivlin leu-a e olhou para cima pensativo.

— Impressionante — sussurrou.

— O que significa?

— Tenho de recolher alguns documentos do arquivo. — Rivlin parou. — Vai levar algum tempo.

— Quanto?

O arquivista encolheu os ombros.

— Uma hora, talvez um pouco menos. Já alguma vez esteve nos memoriais?

— Não desde que andava na escola.

— Dê um passeio.

Rivlin deu uma pancadinha no ombro de Gabriel.

— Volte daqui a uma hora.

 

GABRIEL CAMINHOU POR uma trilha entre pinheiros e desceu a passagem de pedra até a escuridão do Memorial das Crianças. Cinco velas, reflectidas infinitamente por espelhos, criavam a ilusão de uma galáxia de estrelas, enquanto uma voz gravada lia os nomes dos mortos.

Emergiu de volta para a luz brilhante do sol e caminhou até a Galeria da Recordação, onde ficou imóvel perante a chama eterna, tremeluzente no meio de basalto negro gravado com alguns dos nomes mais infames da história: Treblinka, Sobibor, Majdanek, Bergen-Belsen, Chelmno, Auschwitz...

Na Galeria dos Nomes não havia chamas nem estátuas, apenas incontáveis pastas cheias de páginas de testemunhos, cada uma carregando a história de um mártir: nome, local e data de nascimento, filiação, local de residência, profissão, local da morte. Uma gentil mulher chamada Shoshanna procurou na base de dados do computador e localizou as páginas de testemunho dos avós de Gabriel, Viktor e Sarah Frankel. Imprimiu-as e entregou-as tristemente a Gabriel. No fundo de cada página estava o nome da pessoa que tinha facultado a informação: Irene Allon, a mãe de Gabriel.

Pagou uma pequena quantia pelas impressões, dois sheqel por cada, e caminhou até a porta ao lado que dava para o Museu de Arte de Yad Vashem, sede da maior coleção de arte do Holocausto no mundo. Enquanto deambulava pelas galerias, achou possível abarcar com os braços o eterno espírito humano que conseguira produzir arte sob condições de fome, escravidão, e brutalidade inimaginável. De repente, o seu próprio trabalho parecia trivial e completamente desprovido de significado. O que é que santos mortos no museu de uma igreja têm a ver seja com o que for? Mário Delvecchio arrogante, o egoísta Mário Delvecchio parecia inteiramente irrelevante.

Na sala final estava uma exposição especial de arte infantil. Uma imagem cortou-lhe a respiração, um esboço a carvão de uma criança andrógina, encolhendo-se de medo perante a figura gigante de um oficial das SS.

Olhou para o relógio. Tinha passado uma hora. Deixou o museu de arte e apressou-se de volta aos arquivos para ouvir os resultados da pesquisa de Moshe Rivlin.

 

ENCONTROU RIVLIN CAMINHANDO ansiosamente no pátio de entrada de arenito do edifício dos arquivos. Rivlin pegou em Gabriel pelo braço e conduziu-o para dentro da pequena sala onde tinham estado uma hora atrás. Duas grossas pastas esperavam-nos. Rivlin abriu a primeira e entregou a Gabriel uma fotografia: Ludwig Vogel, com a farda de um Sturmbannführer SS.

— É Radek — sussurrou Rivlin, incapaz de conter a sua excitação. Acho que você pode ter encontrado Erich Radek!

13

 

 

VIENA

 

 

HERR KONRAD BECKER, da Becker & Pull, Talstrasse 26, Zurique, chegou a Viena na mesma manhã. Passou pelo controle de passaportes sem demoras e seguiu até a zona de chegadas, onde localizou o motorista de uniforme segurando um cartão onde se lia HERR BAUER. O cliente insistiu na precaução acrescida. Becker não gostava do cliente — nem tinha ilusões sobre a origem da conta — mas assim era a natureza da banca suíça privada, e Herr Konrad Becker era um verdadeiro devoto. Se o capitalismo fosse uma religião, Becker seria o líder de um sector extremista. Na opinião avalizada de Becker, o homem possuía o direito divino de transformar o dinheiro livre de regulamentos governamentais e de o ocultar onde e como quisesse. Evitar a tributação não era uma escolha mas sim uma obrigação moral. Dentro do mundo secreto da banca de Zurique, ele era conhecido pela sua discrição absoluta. Era essa a razão pela qual Konrad Becker tinha sido confiado com a conta.

Vinte minutos mais tarde, o carro parou em frente a uma mansão de pedra no Primeiro Bairro. Seguindo instruções de Becker, o motorista buzinou duas vezes e, depois de uma curta espera, o portão de metal abriu lentamente. Enquanto o carro avançava, um homem desceu o curto lanço de degraus. Estava nos seus quarentas e muitos, com o porte e a elegância de um esquiador de competição. O seu nome era Klaus Halder.

Halder abriu a porta do carro e conduziu Becker até o bali de entrada. Como de costume, pediu ao banqueiro que abrisse a sua pasta para inspeção. Em seguida mandou-o estar na degradante posição de Leonardo, braços e pernas abertos, para uma minuciosa passagem do detector de metais manual.

Finalmente foi escoltado até a sala de visitas, um gabinete vienense formal, amplo e retangular, com paredes de um amarelo rico e sancas pintadas da cor de creme coagulado. A mobília era barroca e coberta de fino brocado. Um relógio de ouropel tiquetaqueava suavemente na prateleira. Cada peça de mobiliário, cada lâmpada e objeto decorativo parecia complementar o outro e a sala era um todo. Era a sala de um homem que claramente tinha dinheiro e gosto em quantidades iguais. Herr Vogel, o cliente, estava sentado por baixo de um retrato que parecia, na opinião de Becker, ter sido pintado por Lucas Cranach, o Ancião. Levantou-se devagar e estendeu a mão. Faziam um par contrastante: Vogel, alto e germânico, com os seus olhos azuis-claros e cabelo branco; Becker, baixo e careca com uma segurança cosmopolita nascida do contato com a natureza variada da sua clientela. Vogel soltou a mão do banqueiro e apontou para uma cadeira vazia. Becker sentou-se e retirou um livro de registro forrado a pele da sua pasta. O cliente acenou solenemente. Ele nunca fora de conversa fiada.

— Segundo registros desta manhã — disse Becker — o valor total da conta é de dois mil milhões e meio de dólares. Quase um mil milhões está em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento: a tributação habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis. Em preparação para a liquidação e dispersão da conta, está a decorrer a venda dos valores imobiliários. Devido ao estado da economia global, está a levar mais tempo do que esperávamos.

— Quando estará o processo completo?

— A nossa data-limite é o final do mês. Mesmo que não consigamos cumprir, a dispersão do dinheiro será iniciada imediatamente após a recepção da carta do escritório do chanceler. As instruções neste ponto são muito específicas. A carta deve ser entregue em mão no meu escritório em Zurique, não mais de uma semana depois de o chanceler prestar juramento. Tem de ser em papel oficial da chancelaria timbrado e por cima da assinatura do chanceler.

— Posso assegurar-lhe que a carta do chanceler está a ser encaminhada.

— Em antecipação à vitória de Herr Metzler, iniciei a difícil tarefa de localizar todos aqueles a quem é devido pagamento. Como sabe, estão espalhados da Europa ao Oriente Médio, à América do Sul e aos Estados Unidos . Também estive em contato com o diretor do Banco do Vaticano. Como deve calcular, dado o estado financeiro atual da Santa Sé, ele ficou muito contente com o meu telefonema.

— E porque não? Duzentos e cinquenta milhões de dólares é muito dinheiro.

Do banqueiro, um sorriso vigilante.

— Sim, mas nem mesmo o Santo Padre saberá a verdadeira origem do dinheiro.

Tudo o que o Vaticano tem de saber é que é de um abastado dador que deseja permanecer anônimo.

— E depois há a sua parte — disse Vogel.

— A parte do banco é de cem milhões de dólares, pagável após a dispersão de todos os fundos.

— Cem milhões de dólares, mais as taxas de transação que tem cobrado ao longo dos anos e a percentagem que tira dos lucros anuais. A conta fê-lo um homem extremamente rico.

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços. O banqueiro fechou o livro de registro com um baque abafado. Em seguida entrelaçou os dedos e olhou-os de modo pensativo por um momento antes de falar.

— Mas temo que tenha havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas. O último foi o sírio. Foi assassinado num clube de cavalheiros em Istambul, nos braços de uma prostituta russa. A moça foi assassinada, também. Uma cena terrível.

Vogel abanou a cabeça tristemente.

— O sírio deveria ter sido aconselhado a evitar locais como esse.

— Claro que como portador do número de conta e senha, irá manter o controle de todos os fundos que não possam ser dispersos. Isso é o que as instruções estipulam.

— Que sorte a minha.

— Vamos esperar que o Santo Padre não sofra um acidente semelhante.

O banqueiro removeu os óculos e inspecionou as lentes à procura de impurezas.

— Sinto-me obrigado a lembrá-lo, Herr Vogel, que eu sou a única pessoa com autoridade para dispersar fundos. Na eventualidade da minha morte, a autoridade passará para o meu sócio, Herr Puhl. Se eu morrer em circunstâncias violentas ou misteriosas, a conta será congelada até as circunstâncias da minha morte serem determinadas. Se as circunstâncias não puderem ser determinadas, a conta será considerada inativa. E sabe o que acontece às contas inativas na Suíça?

— Eventualmente tornam-se propriedade do próprio banco.

— Está correto. Ah, eu suponho que pode levar o caso a tribunal, mas isso iria levantar um número de questões embaraçosas sobre a proveniência do dinheiro. Questões que a instituição bancária suíça e o governo preferiam que não viessem a público. Como pode imaginar, tal inquérito seria desconfortável para todos os envolvidos.

— Então por atenção a mim, por favor cuide-se, Herr Becker. A sua continuação em boa saúde e segurança são de extrema importância para mim.

— Aprecio muito as suas palavras. Aguardarei a recepção da carta do chanceler. O banqueiro devolveu o livro de registro à sua pasta e fechou-a.

— Peço desculpa, mas há mais uma formalidade que me escapou. Quando discutimos a conta, é necessário que me diga o número da mesma. Para que conste, Herr Vogel, é capaz de o recitar para mim agora?

— Sim, claro.

Então, com a precisão germânica:

— Seis, dois, nove, sete, quatro, três, cinco.

— E a senha?

— Um, zero, zero, cinco.

— Obrigado, Herr Vogel.

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, o carro de Becker parou à porta do Hotel Ambassador.

— Espere aqui — disse o banqueiro ao condutor. — Não levo mais do que alguns minutos.

Atravessou a entrada e subiu no elevador até o quarto andar. Um americano alto de blazer amarrotado e gravata apertada admitiu-o no quarto 417. Ofereceu uma bebida a Becker, a qual o banqueiro recusou, em seguida um cigarro, que ele também declinou. Becker nunca tocara em tabaco. Talvez começasse.

O americano estendeu a mão em direção à pasta. Becker entregou-lha. O americano levantou a tampa e forçou o falso forro de couro, expondo um pequeno gravador de fitas. Retirou a fita e colocou-a num pequeno aparelho de reprodução. Carregou no REWIND e depois no PLAY. A qualidade de som era notável.

— Para que conste, Herr Vogel, é capaz de o recitar para mim agora?

— Sim, claro. Seis, dois, nove, sete, quatro, três, cinco.

— E a senha?

— Um, zero, zero, cinco.

— Obrigado, Herr Vogel. STOP.

O americano levantou o olhar e sorriu. O banqueiro parecia que tinha acabado de ser apanhado a trair a esposa com a sua melhor amiga.

— Fez um bom trabalho, Herr Becker. Estamos gratos.

— Acabei de cometer mais violações das leis de segredo bancário suíço do que consigo contar.

— É verdade, mas são leis execráveis. E aliás, vai receber cem milhões de dólares. Juntamente com o seu banco.

— Mas já não é o meu banco, é? É o seu banco agora.

O americano sentou-se recostado e cruzou os braços. Não insultou Becker negando-o.

 

 


14

 

 

JERUSALÉM

 

 

GABRIEL NÃO FAZIA ideia de quem seria Erich Radek. Rivlin contou.

Erich Wilhelm Radek nasceu em 1917 na aldeia de Alberndorf, cinquenta quilômetros a norte de Viena. Filho de um polícia, Radek frequentava o ginásio local e mostrava uma aptidão natural para matemática e física. Ganhou uma bolsa de estudo para frequentar a Universidade de Viena, onde estudou engenharia e arquitetura. Segundo os registros da universidade, Radek era um estudante talentoso que tirava notas altas. Era também ativista político da direita católica.

Em 1937, inscreveu-se como membro do partido nazista . Foi aceite e recebeu o número de membro partidário 57984567. Radek também se afiliou na Legião Austríaca, uma organização paramilitar nazista ilegal. Em Março de 1938, nos tempos da Anschluss, candidatou-se às SS. Louro e de olhos azuis, com um porte atlético, Radek foi considerado "nórdico puro" pela Comissão Racial das SS e, depois de uma dolorosa verificação da sua ascendência, foi considerado isento de sangue judeu e de outro sangue não ariano e aceite na irmandade de elite.

— Isto é uma cópia do arquivo partidário de Radek e os questionários que preencheu aquando da sua inscrição. Vem do Centro de Documentação de Berlim, o maior repositório de arquivos nazistas e SS do mundo.

Rivlin ergueu duas fotografias, uma era uma fotografia de frente, a outra de perfil.

— Estas são as fotografias oficiais das SS. Parece o nosso homem, não parece? Gabriel acenou com a cabeça. Rivlin recolocou as fotografias na pasta e continuou com a lição de história:

— Em Novembro de 1938, Radek tinha abandonado os estudos e trabalhava no Departamento Central para a Emigração Judaica, a instituição nazista que empreendeu uma campanha de terror e destituição econômica contra os judeus da Áustria, desenhada para forçar os judeus a abandonar o país "voluntariamente". Radek causou uma impressão favorável no diretor do

Departamento Central, que não era ninguém menos que Adolf Eichmann. Quando Radek manifestou desejo de ir a Berlim, Eichmann concordou em ajudar. Além disso, Eichmann era habilmente assistido em Viena por um jovem nazista austríaco chamado Alois Brunner, que eventualmente viria a ser implicado nas deportações e massacre de 128 000 judeus da Grécia, França, Romênia e Hungria. Em Maio de 1939, Radek foi transferido para o Departamento Principal de Segurança do Reich em Berlim, onde foi delegado à Sicherheitsdienst, o serviço de segurança nazista conhecido como SD. Rapidamente passou a trabalhar diretamente para o notável chefe da SD, Reinhard Heydrich.

Em Junho de 1941, Hitler lançou a Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética. A Erich Radek foi atribuído o comando das operações da SD naquela que ficou conhecida como a Reichskommissariat Ucrânia, uma larga porção administrativa da Ucrânia que incluía as regiões de Volhynia, Zhitomir, Kiev, Nikolayev, Tauria e Dnepropetrovsk. As responsabilidades de Radek incluíam segurança no campo e operações anti-resistência. Também criou a colaboracionista Policia Auxiliar Ucraniana e controlava as suas atividades. Durante os preparativos para a Barbarossa, Hitler ordenou secretamente a Heinrich Himmler que exterminasse os judeus da União Soviética. Enquanto a Wehrmacht rolava sobre o território soviético, quatro esquadrões da morte móveis Einsatzgruppen seguiam de perto. Os judeus eram agrupados e transportados para locais isolados, normalmente localizados junto de valas antitanque, pedreiras abandonadas, ou ravinas fundas, onde eram assassinados a tiro de metralhadora e apressadamente enterrados em valas comuns.

— Erich Radek estava bem ciente das atividades das unidades Einsatzgruppen na Reichskommissariat — disse Rivlin. — Era, afinal de contas, o seu território. E ele não era um burocrático assassino de mesa. Radek apreciava realmente ver judeus serem assassinados aos milhares. Mas o seu maior contributo para a Shoah ainda está para vir.

— É o quê?

— Tem a resposta a essa pergunta no seu bolso. Está gravada no interior do anel que tirou da casa na Alta Áustria.

Gabriel tirou o anel do bolso e leu a inscrição: 1005, bom trabalho, Heinrich.

— Eu suspeito que Heinrich seja nem mais nem menos Heinrich Müller, o chefe da Gestapo. Para o caso, a informação mais importante contida na inscrição são esses quatro números no inicio: um, zero, zero, cinco.

— O que significam?

Rivlin abriu a segunda pasta. Estava classificada como: AKTION 1005. COMEÇOU, de modo estranho, com uma queixa por parte dos vizinhos.

No inicio de 1942, o escoamento de águas primaveril expôs uma série de valas comuns no distrito de Warthegau na Polônia ocidental, ao longo do rio Ner. Milhares de corpos flutuaram à superfície, e um cheiro nauseabundo espalhou-se por vários quilômetros em redor. Um alemão que vivia perto enviou uma carta anônima para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim queixando-se da situação. Sinos de alarme tocaram. As sepulturas continham os restos mortais de milhares de judeus assassinados pelas vans móveis de gás que, na altura, eram usadas no campo de concentração de Chelmno. A Solução Final, o segredo mais bem guardado da Alemanha nazista, estava em risco de ser exposto pelo degelo.

Os primeiros relatos do assassinato em massa de judeus já tinha começado a chegar ao mundo exterior, graças a um canal de comunicação diplomático soviético que alertou os Aliados sobre os horrores que estavam a ser levados a cabo pelas forças alemãs na Polônia e em solo soviético. Martin Luther, que lidava com os "assuntos judaicos" em nome do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, sabia que as sepulturas expostas perto de Chelmno representavam uma séria ameaça ao segredo da Solução Final. Encaminhou uma cópia da carta anônima para Heinrich Müller da Gestapo e requisitou ação imediata.

Rivlin tinha uma cópia da resposta de Müller a Martin Luther. Colocou-a na mesa, virou-a para que Gabriel a pudesse ver, e apontou para a passagem relevante:

A carta anônima enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a aparente solução da questão judaica no distrito de Warthegau, que me foi submetida por si a 6 de Fevereiro de 1942, eu imediatamente transmiti para tratamento adequado. Os resultados serão comunicados a seu tempo. Não há como evitar as lascas que caem ao chão num local onde se corta madeira.

Rivlin apontou para as citações no canto superior esquerdo do memorando: W B4 43/42 gRs [1005].

— Adolf Eichmann quase com certeza recebeu uma cópia da resposta de Müller a Martin Luther. Sabe, o departamento de Eichmann no Departamento Principal de Segurança do Reich aparece na linha da morada. Os números "43/42" representam a data: o quadragésimo terceiro dia de 1942, ou vinte e oito de Fevereiro. As iniciais g-R-s significam que o assunto é Geheime Reichssache, um assunto ultrassecreto do Reich. E aqui, entre parêntesis no fim da linha, estão os quatro números que seriam eventualmente usados como nome de código da ultra-secreta Aktion, um, zero, zero, cinco.

Rivlin devolveu o memorando à pasta.

— Pouco depois de Müller ter enviado essa carta a Martin Luther, Erich Radek foi retirado do comando na Ucrânia e transferido de volta ao Departamento Principal de Segurança do Reich em Berlim. Foi destacado para o departamento de Eichmann e embarcou num período intenso de estudo e planificação. Sabe, esconder o maior caso de assassinato em massa da história não era tarefa fácil. Em Junho, regressou a leste, sob a autoridade direta de Müller, e meteu mãos à obra.

A cidade polonesa de Lodz, a cerca de oitenta quilômetros a sudoeste do campo de concentração de Chelmno foi escolhida por Radek para sede do seu Sonderkommando 1005. A morada exata era Geheime Reichssache e desconhecida, exceto para algumas altas patentes das SS. Toda a correspondência passava pelo departamento de Eichmann em Berlim.

Radek confiou na cremação como o método mais eficaz de se livrar dos corpos. Queimar já fora tentado antes, normalmente com lança-chamas, mas com resultados insatisfatórios. Radek fez bom uso dos seus conhecimentos de engenharia, inventando um método de queimar cadáveres, dois mil de cada vez, em piras feitas de torres aerodinâmicas. Vigas de madeira grossas, com cerca de sete a oito metros de comprimento, eram embebidas em gasolina e colocadas em cima de blocos de cimento. Os corpos eram espalhados entre as vigas: corpos, vigas, corpos, vigas, corpos A acendalha embebida em gasolina era colocada na base da estrutura e posta em chamas. Quando o fogo esmorecia, os corpos carbonizados eram esmagados e dispersos por maquinaria pesada.

O trabalho sujo era feito por escravos judeus. Radek organizou os judeus em três equipes, uma equipe para abrir o fosso fúnebre, a segunda para transportar os cadáveres do fosso para a pira, e uma terceira para procurar ossos e objetos de valor nas cinzas. No final de cada operação, o terreno era terraplanado e replantado para esconder o que se tinha passado ali. Em seguida os escravos eram assassinados e os corpos destruídos. Dessa forma o segredo da Aktion 1005 era preservado.

Quando o trabalho em Chelmno terminou, Radek e o seu Sonderkommando 1005 seguiram para Auschwitz, onde tinham como missão limpar os cheios fossos fúnebres. No final do Verão de 1942, problemas sérios de contaminação e de saúde surgiram em Belzec, Sobibor e Treblinka. Poços junto dos campos que abasteciam de água potável os guardas e as unidades Wehrmacht circundantes tinham sido contaminados pela proximidade das valas comuns. Nalguns casos, a fina camada de solo que os cobriam tinham aberto e odores tóxicos libertavam-se para o ar. Em Treblinka, as SS e assassinos ucranianos nem se tinham preocupado em enterrar todos os corpos . No dia em que o comandante de campo Franz Stangl chegou para assumir o posto, era possível sentir o cheiro de Treblinka a trinta quilômetros de distância. Corpos sujavam a estrada de acesso ao campo, e pilhas de cadáveres putrefatos saudavam-no da plataforma do caminho-de-ferro. Stangl queixou-se que não podia começar a trabalhar em Treblinka enquanto não limpassem a confusão. Radek ordenou que as valas comuns fossem abertas e os corpos queimados.

Na Primavera de 1943, o avanço do Exército Vermelho obrigou Radek a desviar a sua atenção dos campos de extermínio da Polônia para os locais de extermínio mais a leste, no território soviético ocupado. Em breve estava de volta ao seu território na Ucrânia. Radek sabia onde os corpos estavam enterrados, mesmo literalmente, porque dois anos antes coordenara as operações dos esquadrões da morte Einsatzgruppen. Perto do final do Verão, o Soderkommando 1005 deslocou-se da Ucrânia para a Bielorrússia e, em Setembro, estava ativo nos estados Bálticos da Lituânia e Letônia, onde populações inteiras de judeus tinham sido exterminadas. Rivlin fechou a pasta e afastou-a repugnado.

— Nunca saberemos quantos corpos Radek e os seus homens limparam. O crime é demasiado enorme para dissimular completamente, mas a Aktion 1005 conseguiu apagar muitas das provas e fazer com que seja virtualmente impossível, depois da guerra, saber ao certo o número de mortos. O trabalho de Radek foi tão minucioso que, nalguns casos, as comissões polonesas e soviéticas que investigam a Shoah não conseguiram encontrar vestígios das valas comuns. Em Babi Yar, a limpeza de Radek foi tão perfeita que, depois da guerra, os soviéticos conseguiram transformar a zona num parque. E agora, infelizmente, a falta de restos mortais deu inspiração à horda de lunáticos que reivindica que o Holocausto nunca aconteceu. As ações de Radek assombram-nos até os dias de hoje.

Gabriel pensou nas páginas de testemunho na Galeria dos Nomes, as únicas lápides para milhões de vítimas.

— Max Klein jurou que viu Ludwig Vogel em Auschwitz no verão ou no início do outono em 1942 — disse Gabriel. — com base no que me disse, isso é inteiramente possível.

— De fato, assumindo, claro, que Vogel e Radek são na realidade o mesmo homem. O Soderkommando 1005 de Radek esteve definitivamente ativo em Auschwitz em 1942.

Se Radek estava lá ou não num determinado dia é provavelmente impossível de provar.

— E o que é que sabemos sobre o que aconteceu a Radek depois da guerra?

— Não muito, lamento. Ele tentou fugir para Berlim disfarçado de cabo da Wehrmacht. Foi preso sob suspeita de ser um homem das SS e foi internado no campo de prisioneiros de Mannheim. Algures no início de 1946, escapou. Depois disso, é um mistério. Parece que conseguiu sair da Europa. Houve alegados avistamentos em todos os locais

habituais: Síria, Egipto, Argentina, Paraguai, mas nada fidedigno. Os caçadores de nazistas andavam atrás de peixe graúdo como Eichmann, Bormann, Mengele e Müller. Radek conseguiu voar abaixo da linha de radar. Além disso, o segredo de Aktion 1005 estava tão bem guardado que o assunto quase não foi tocado nos julgamentos de Nuremberg. Ninguém sabia muito sobre o assunto, na realidade.

— Quem era o responsável por Mannheim?

— Era um campo americano.

— Sabemos como conseguiu ele escapar da Europa?

— Não, mas devemos assumir que teve ajuda.

— A ODESSA?

— Talvez tenha sido a ODESSA, ou alguma das outras redes secretas de ajuda nazista.

Rivlin hesitou, e disse: — Ou talvez tenha sido uma altamente pública e antiga instituição sedeada em Roma que operou a mais bem-sucedida rota de fuga nazista do período pós-guerra.

— O Vaticano?

Rivlin acenou com a cabeça.

— A ODESSA não chegava aos pés do Vaticano quando tocava a financiar e promover rotas de fuga da Europa. Porque Radek era austríaco, ele foi certamente assistido pelo bispo Hudal.

— Quem é Hudal?

— Alois Hudal era natural da Áustria, um antissemita e um nazista fervoroso. Usou a sua posição de prior do Pontifício de Santa Maria dell'Anima, o seminário alemão em Roma, para ajudar centenas de oficiais SS a escapar da justiça, incluindo Franz Stangl, o comandante de Treblinka.

— Que tipo de ajuda fornecia ele?

— Para começar, um passaporte da Cruz Vermelha com um novo nome e um visto de entrada num pais longínquo. Também lhes dava um pouco de dinheiro e pagava as passagens.

— Mantinha registros?

— Aparentemente sim, mas essa papelada está trancada a sete chaves na Anima.

— Preciso de tudo o que tiver sobre o bispo Alois Hudal.

— Vou organizar uma pasta para si.

Gabriel pegou na fotografia de Radek e olhou-a cuidadosamente. Havia algo de familiar no rosto. Durante toda a exposição de Rivlin, tinha estado a dar voltas à cabeça. Então pensou nos esboços a carvão que vira essa manhã no museu de arte do Holocausto, a criança encolhida de medo perante o monstro das SS, e percebeu de imediato onde já tinha visto a cara de Radek.

Levantou-se subitamente tombando a cadeira.

— O que se passa? — perguntou Rivlin.

— Eu conheço este homem — disse Gabriel com os olhos postos na foto.

— Como?

Gabriel ignorou a pergunta.

— Preciso disto emprestado — disse.

Então, sem esperar pela resposta de Rivlin, desapareceu porta fora.


15

 

JERUSALÉM

 

 

Nos VELHOS TEMPOS tomaria a via rápida norte por Ramallah, Nablus e Jenin. Agora, mesmo um homem com as capacidades de sobrevivência de Gabriel, seria imprudente tentar tal caminho sem um carro blindado e uma escolta de combate. Então optou pelo caminho mais longo, descendo a encosta ocidental das Montanhas da Judeia em direção a Tel Aviv, pela Planicie Costeira até Hadera e em seguida para noroeste pela serrania do Monte Carmel até El Megiddo: Armageddon.

O vale verde-acastanhado de orquídeas e florestas plantadas pelos primeiros judeus que se estabeleceram na Palestina abriu-se perante ele, estendendo-se das colinas samarianas ao sul às encostas da Galileia ao norte. Continuou em direção a Nazaré, em seguida para leste, para uma pequena vila agrícola no limite do Bosque Balfour chamada Ramat David.

Levou alguns minutos até encontrar a morada. O bangalô que fora construído para os Allon tinha sido deitado abaixo e substituído por um ao estilo californiano, de arenito com trepadeiras, uma antena de satélite no telhado e uma van de fabrico americano na entrada. Enquanto Gabriel olhava, um soldado saiu pela porta da frente e caminhou com vivacidade através do relvado frontal. A memória de Gabriel iluminou-se. Ele viu o pai percorrendo o mesmo caminho numa tarde quente em

Junho, seria a última vez que Gabriel o veria com vida, embora não o tivesse percebido na altura.

Olhou para a casa ao lado. Era a casa onde Tziona morava. Os brinquedos de plástico que coloriam o relvado frontal indicavam que Tziona, solteira e sem filhos, já não vivia ali. Mesmo assim, Israel não era mais que uma família grande e conflituosa e Gabriel estava confiante de que os novos ocupantes poderiam, pelo menos, dar-lhe a indicação correta. Tocou à campainha. A jovem mulher roliça que falava hebraico com sotaque russo não o desapontou. Tziona estava a viver mais acima, em Safed. A mulher russa tinha uma morada para encaminhamento de correspondência.

 

OS JUDEUS TÊM vivido no centro de Safed desde os dias da antiguidade. Após a expulsão de Espanha em 1492, os turcos otomanos permitiram a muitos mais judeus estabelecerem-se em Safed e a cidade floresceu como centro de misticismo, escolaridade e arte judaica. Durante a guerra da independência, Safed esteve à beira de cair sob forças árabes quando a comunidade sitiada foi reforçada por um pelotão de combatentes Palmach, que tomaram a cidade depois de uma arriscada travessia noturna desde a sua guarnição no Monte Canaan. O líder da unidade Palmach negociou um acordo com os poderosos rabis de Safed para trabalhar durante a Páscoa no reforço das fortificações da cidade. O seu nome era Ari Shamron.

O apartamento de Tziona situava-se no Bairro dos Artistas, no topo de um lanço de escadas de pedra da calçada. Ela era uma mulher enorme de cabelos cinzas, vestida com uma cafetã branca, e tantas pulseiras que tilintaram quando atirou os braços em volta do pescoço de Gabriel. Levou-o para dentro, para um espaço que era uma mistura de sala de estar com oficina de oleiro, e sentou-o no terraço de pedra para observar o entardecer sobre a Galileia. O ar cheirava a óleo de lavanda a arder.

Foi servido um prato de pão e hummus, juntamente com azeitonas e uma garrafa de vinho Golan. Gabriel relaxou instantaneamente. Tziona Levin era como uma irmã que nunca tivera. Tinha tomado conta dele quando a mãe estava a trabalhar ou demasiado deprimida para se levantar da cama. Algumas noites, ele saltava da sua janela e penetrava na porta ao lado para a cama de Tziona. Ela acariciava-o e abraçava-o de uma forma que a mãe nunca poderia. Quando o seu pai fora morto na guerra de Junho, fora Tziona a enxugar-lhe as lágrimas.

O rítmico e hipnótico som de rezas Maariv flutuava desde a sinagoga nas imediações. Tziona acrescentou mais óleo de lavanda ao candeeiro. Falou do matsav: a situação.

As lutas nos territórios e o terrorismo em Tel Aviv e Jerusalém. De amigos perdidos para a shaheed e amigos que tinham desistido de procurar emprego em Israel e tinham-se mudado para a América. Gabriel bebeu o vinho e observou o sol de fogo afundar-se na Galileia. Estava a escutar Tziona, mas os seus pensamentos estavam na sua mãe. Já tinham passado cerca de vinte anos depois da sua morte, e desde então ele descobrira que pensava nela cada vez menos. O seu rosto, enquanto jovem, tinha-se perdido para ele, despido de pigmento e gasto, como uma tela desbotada pelo tempo e exposição a elementos corrosivos. Apenas conseguia conjurar a sua máscara de morte. Após as torturas do cancro, as suas feições amaciadas tinham-se transformado numa expressão de serenidade, como uma mulher que posa para um retrato. Ela parecia dar as boas-vindas à morte. Tinha-a finalmente salvo dos tormentos que a violentavam dentro da sua memória.

Tinha-o amado? Sim, pensava ele agora, mas tinha-se cercado de paredes e ameias que ele nunca conseguiria trepar. Ela era dada à melancolia e a mudanças de espírito violentas. Não dormia bem de noite. Não conseguia mostrar prazer em ocasiões festivas nem tomar parte em comidas e bebidas requintadas. Usava sempre uma ligadura no braço esquerdo, por cima dos desbotados números tatuados na pele. Referia-se a eles como sendo a marca da fraqueza judaica, o seu emblema à vergonha judaica.

Gabriel seguiu pintura para estar mais perto dela. Ela rapidamente sentiu isso como uma intrusão não autorizada ao seu mundo privado; então, quando os seus talentos amadureceram e começaram a desafiar os dela, ela invejou os seus dons. Gabriel empurrou-a para novas alturas. A sua dor, tão visível em vida, encontrava expressão no seu trabalho. Gabriel cresceu obcecado com as imagens de pesadelos que fluíam da memória dela para as telas e começou à procura da origem.

Na escola ouvira falar de um lugar chamado Birkenau. Perguntou-lhe sobre a ligadura que ela normalmente usava no braço esquerdo, sobre as blusas de manga comprida que ela vestia, mesmo com o calor de fornalha que fazia no Vale Jezreel. Perguntou o que lhe tinha acontecido durante a guerra, o que tinha acontecido aos seus avós. À partida ela recusou-se, mas finalmente, debaixo do seu constante ataque de perguntas, ela compadeceu-se. A sua narrativa era apressada e relutante; Gabriel, mesmo jovem, era capaz de detectar o tom evasivo e mais de um traço de culpa. Sim, ela estivera em Birkenau. Os seus pais tinham sido assassinados no dia em que lá chegaram. Ela tinha trabalhado. Ela tinha sobrevivido. E era tudo. Gabriel, sedento de mais detalhes sobre a experiência da mãe, começou a conjurar todo o tipo de cenários para justificar a sobrevivência da mãe. Também ele se começou a sentir envergonhado e culpado. O seu sofrimento, como um malefício hereditário, estava deste modo a passar para a geração seguinte.

O assunto nunca mais voltou a ser discutido. Era como se uma porta de aço se tivesse fechado, como se o Holocausto nunca tivesse acontecido. Ela caiu numa depressão prolongada e esteve acamada por muitos dias. Quando finalmente emergiu, retirou-se para o seu estúdio e começou a pintar. Trabalhou inflexivelmente noite e dia. Uma vez, Gabriel olhou pela porta entreaberta e encontrou-a esparramada no chão, as mãos manchadas de tinta, tremendo perante uma tela. Essa tela era a razão pela qual ele tinha vindo a Safed encontrar-se com Tziona.

O sol tinha-se posto. Estava agora frio no terraço. Tziona colocou um xaile sobre os ombros e perguntou a Gabriel se alguma vez tencionava voltar para casa. Gabriel murmurou qualquer coisa sobre precisar de trabalho, como os amigos de Tziona que se tinham mudado para a América.

— E para quem andas a trabalhar ultimamente? Ele não se deu ao desafio.

— Restauro pinturas de mestres antigos. Preciso estar onde as pinturas estão. Em Veneza.

— Veneza — disse ela ironicamente.

— Veneza é um museu. — Disse erguendo o copo de vinho em direção à Galileia.

— Isto é vida real. Isto é arte. Basta de restauração. Devias dedicar todo o teu tempo e energia ao teu próprio trabalho.

— O meu próprio trabalho não existe. Isso saiu de mim há muito tempo. Sou um dos melhores restauradores de arte do mundo. Isso é suficiente para mim.

Tziona pôs as mãos apara o alto. As suas pulseiras tilintaram como um espanta-espiritos.

— É mentira. Você é uma mentira. É um artista, Gabriel. Vem para Safed e encontre sua arte. Encontre-se a si mesmo.

A sua maneira provocadora o deixava incomodado. Ele poderia ter dito que havia uma mulher envolvida, mas isso teria aberto toda uma nova frente que Gabriel estava ansioso por evitar. Em vez disso, permitiu que o silêncio, apenas preenchido pelo som consolante de Ma'ariv, caísse entre eles.

— O que faz em Safed? — perguntou ela finalmente. — Eu sei que não fez este caminho todo até aqui para ouvir um sermão de sua Doda Tziona.

Perguntou se Tziona ainda tinha as pinturas e esboços da mãe.

— Claro que sim, Gabriel. Tenho-os guardado todos estes anos à espera de que viesse pedir.

— Ainda não estou preparado para tirá-los de suas mãos. Só preciso vê-los.

Ela segurou uma vela junto ao rosto dele.

— Está me escondendo alguma coisa, Gabriel. Eu sou a única pessoa no mundo capaz de saber quando tem segredos. Sempre foi assim, especialmente quando era um garoto.

Gabriel serviu-se de mais um copo de vinho e contou a Tziona sobre Viena.

 

ELA ABRIU A porta e puxou a corda que acendia a luz do teto. O armário estava cheio de telas e esboços de alto a baixo. Gabriel começou a folhear o trabalho. Tinha-se esquecido quão talentosa era a sua mãe. Conseguia ver as influências de Beckmann, Picasso, Egon Schiele e, claro, do seu pai, Viktor Frankel. Até havia variações nos temas que Gabriel tinha explorado no seu próprio trabalho na altura. A sua mãe tinha-os desenvolvido ou, nalguns casos, destruído completamente. Ela tinha sido espantosamente talentosa.

Tziona empurrou-o para o lado e saiu com uma pilha de telas e de grandes envelopes cheios de esboços. Gabriel agachou-se no chão de pedra e examinou os trabalhos enquanto Tziona observava por cima do ombro.

Havia imagens de campos. Camaratas a abarrotarem de crianças. Mulheres trabalhando como escravas em maquinaria de fábricas. Corpos empilhados como lenha, à espera de serem arremessados ao fogo. Uma família abraçando-se enquanto o gás a envolvia.

A tela final tinha uma figura solitária pintada, um homem das SS completamente vestido de negro. Era a pintura que tinha visto naquele dia, no estúdio da mãe. Enquanto os outros trabalhos eram escuros e abstratos, neste ela empenhara-se no realismo e na revelação. Gabriel estava maravilhado com o seu impecável traço e pincelada antes de os seus olhos se fixarem no rosto do sujeito. Pertencia a Erich Radek.

 

TZIONA PREPAROU uma cama no sofá da sala para Gabriel e recitou-lhe a midrash do vaso quebrado.

— Antes de Deus criar o mundo, havia apenas Deus. Quando Deus decidiu criar o mundo, Deus parou para criar o espaço para o mundo. Foi nesse espaço que o universo foi formado. Mas agora, nesse espaço não havia Deus. Deus criou centelhas divinas, luz, para serem colocadas na criação de Deus. Quando Deus criou a luz, e colocou a luz dentro da criação, recipientes especiais foram preparados para a guardar. Mas houve um acidente. Um acidente cósmico. O recipiente quebrou. O universo ficou cheio de centelhas da luz divina de Deus e cacos de recipientes.

— É uma bela história — disse Gabriel, ajudando Tziona a entalar as pontas de um lençol nas almofadas do sofá. — Mas o que tem a ver com minha mãe?

— A midrash ensina que enquanto as centelhas da luz de Deus não estiverem unidas, a criação não está completa. Enquanto judeus este é o nosso dever solene. Chamamos Tikkun Olam: Reparação do Mundo.

— Consigo restaurar muitas coisas, Tziona, mas temo que o mundo seja uma tela grande demais, com muitos estragos.

— Então comece por baixo.

— Como?

— Reúna as centelhas de sua mãe, Gabriel. E castigue o homem que quebrou o vaso.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel escapou do apartamento de Tziona sem acordá-la e saiu pelas escadas de pedra na luz clara e cinza do amanhecer com o retrato de Radek debaixo do braço. Um judeu ortodoxo, a caminho das rezas matinais, pensou que ele era louco e sacudiu-lhe um punho, zangado. Gabriel colocou a pintura no porta-mala do carro e saiu de Safed. Um nascer do Sol vermelho surgia no horizonte. Por baixo, no vale, o Mar da Galileia transformou-se em fogo.

Parou em Afula para o café e deixou uma mensagem no gravador de Moshe Rivlin, avisando-o que estava a voltar a Yad Vashem. Já era fim da manhã quando ele chegou. Rivlin esperava-o. Gabriel mostrou-lhe a tela.

— Quem a pintou?

— A minha mãe.

— Qual era o seu nome?

— Irene Allon, mas o seu nome alemão era Frankel.

— Onde esteve ela?

— No campo de mulheres em Birkenau, de Janeiro de 1943 até o fim.

— A marcha da morte?

Gabriel declarou que sim com a cabeça. Rivlin segurou Gabriel pelo braço e disse:

— Venha comigo.

 

RIVLIN LEVOU GABRIEL até a mesa da sala principal de leitura dos arquivos e sentou-se em frente a um terminal de computador. Introduziu as palavras "Irene Allon" na base de dados e trauteou os seus dedos atarracados no teclado impacientemente enquanto esperava pela resposta. Alguns segundos depois, escrevinhou cinco números num pedaço de papel de rascunho e, sem dirigir uma palavra a Gabriel, desapareceu por uma porta que dava para as arrecadações dos arquivos. Vinte minutos mais tarde, regressou e colocou um documento na mesa. Por trás de uma capa de plástico transparente estavam as palavras ARQUIVOS YAD VASHEM, tanto em inglês como em hebraico, juntamente com um número de arquivo: 03/812. Gabriel levantou cuidadosamente a capa de plástico e virou a primeira página. O cabeçalho fê-lo sentir subitamente arrepiado: O TESTEMUNHO DE IRENE ALLON, ENTREGUE EM 19 DE MARÇO DE 1957. Rivlin colocou-lhe uma mão no ombro e saiu da sala. Gabriel hesitou um momento, então olhou para o documento e começou a ler.

16

O TESTEMUNHO DE IRENE ALLON: 19 DE MARÇO DE 1957

Não vou dizer todas as coisas que vi . Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos . Não vos vou falar da crueldade indescritível que suportamos nas mãos da chamada raça superior, nem vou falar das coisas que alguns fizeram para poder sobreviver mais um dia. Só aqueles que passaram por isso alguma vez poderão entender como realmente foi, e não vou humilhar uma vez mais os que morreram. Apenas vou falar das coisas que fiz, e as coisas que me foram feitas. Passei dois anos em Auschwitz-Birkenau, dois anos contados ao dia, quase precisamente contados à hora. O meu nome é Irene Allon. Costumava chamar-me

Irene Frankel. Isto é o que eu testemunhei em Janeiro de 1945 na marcha da morte desde Birkenau.

Para perceber a angústia da marcha da morte, primeiro terá de saber algo que aconteceu antes. Já ouviu a história pela boca de outros. Pela minha não será muito diferente. Como todos os outros, nós viemos de trem. O nosso partiu de Berlim a meio da noite. Disseram-nos que íamos para o leste, para trabalhar. Acreditamos. Disseram-nos que seria em carruagens adequadas com assentos. Asseguraram-nos que nos seria dada comida e água. Acreditamos. O meu pai, o pintor Viktor Frankel, levava com ele um bloco de desenho e alguns lápis. Tinha sido despedido do seu cargo de professor e o seu trabalho fora declarado "degenerado" pelos nazistas. A maioria dos seus quadros tinha sido confiscada e queimada. Ele tinha esperança que os nazistas o deixassem retomar o seu trabalho no leste.

Claro que não era uma carruagem adequada com assentos, e não havia comida nem água. Eu não recordo com precisão quanto tempo a viagem durou. Perdi a conta de quantas vezes o Sol nasceu e se pôs, quantas vezes viajamos para dentro e fora da escuridão. Não havia casa de banho, apenas um balde — um balde para sessenta de nós. Consegue imaginar as condições que suportamos. Consegue imaginar o cheiro insuportável. Consegue imaginar as coisas a que alguns de nós recorreram quando a sede nos levava à beira da loucura. No segundo dia, uma velhota, que estava ao pé de mim, morreu. Fechei-lhe os olhos e rezei por ela. Observei a minha mãe, Sarah Frankel, e esperei que ela também morresse. Perto de metade da nossa carruagem estava morta quando o trem finalmente guinchou para parar. Alguns rezaram. Outros, efetivamente, agradeceram a Deus por a viagem ter finalmente acabado.

Há dez anos que vivíamos sob o domínio de Hitler. Sofremos as leis de Nuremberg. Vivemos o pesadelo de Kristallnacht. Vimos as nossas sinagogas arder. Mesmo assim, eu não estava preparada para a visão que me iria saudar quando as trancas deslizaram e as portas foram finalmente abertas. Vi uma torre, uma chaminé de tijolo cônica, vomitando fumo espesso. Por baixo da chaminé havia um prédio, inflamado com intensas labaredas crepitantes. Havia um cheiro terrível no ar. Não o conseguimos identificar. Ainda reside nas minhas narinas até hoje. Havia um sinal por cima da plataforma do caminho-de-ferro. Auschwitz. Percebi então que tínhamos chegado ao inferno.

— Judeu, raus, raus ! — Um SS estala um chicote na minha coxa. — Sai da carruagem, juden. — Saltei para a plataforma coberta de neve. As minhas pernas, enfraquecidas de tantos dias em pé, cederam. O SS estala o chicote novamente, desta vez nos meus ombros. A dor é mais terrível que qualquer coisa já tivesse sentido antes. Ponho-me de pé. De alguma maneira consigo evitar chorar. Tento ajudar a minha mãe a descer da carruagem. O SS empurra-me. O meu pai salta para a plataforma e cai. A minha mãe também. como eu, eles são forçados a levantar-se à chicotada.

Homens de pijama às riscas trepam à carruagem e começam a atirar para fora a nossa bagagem. Eu penso, quem são estes loucos que tentam roubar as escassas posses que nos deixaram trazer? Parecem homens de um asilo para loucos, cabeças rapadas, rostos afundados, dentes podres. O meu pai vira-se para o SS e diz:

— Olhe ali, aquela gente está a tirar as nossas coisas. Faça-os parar! O oficial das SS diz calmamente que a nossa bagagem não está a ser roubada, apenas retirada para ser separada. Vai ser enviada assim que os alojamentos forem distribuídos. O meu pai agradece ao SS. com mocas e chicotes separam-nos, homens de mulheres, e instruem-nos para formar ordenadas filas de cinco. Na altura ainda não sabia, mas iria passar muito dos próximos dois anos em ordenadas filas de cinco. Consigo esgueirar-me para junto da minha mãe. Tento segurar-lhe a mão. Um SS separa as nossas mãos com uma paulada no meu braço. Ouço música. Algures, uma orquestra de câmara está a tocar Schubert. No inicio da fila está uma mesa e alguns oficiais SS. Um destaca-se em particular. Tem o cabelo preto e a pele cor de alabastro. Enverga um sorriso agradável no seu rosto atraente. O seu uniforme está bem engomado, as suas botas de montar reluzem com as luzes brilhantes da plataforma de caminho-de-ferro. Luvas de pelica. As mãos limpas e brancas. Está a assobiar "A Valsa do Danúbio Azul". Até hoje, não consigo ouvi-la. Mais tarde, saberei o seu nome. O seu nome é Mengele, o médico responsável por Auschwitz. É Mengele que decide quem está capaz de trabalhar e quem vai imediatamente para o gás. Direita e esquerda, vida e morte.

O meu pai chega na frente. Mengele, assobiando, olha para ele e diz com prazer:

— Para a esquerda, por favor.

— Foi-me assegurado que iria para um campo familiar — disse o meu pai. — A minha esposa virá comigo?

— É isso que deseja?

— Sim, claro.

— Qual delas é a sua mulher?

O meu pai aponta para a minha mãe. Mengele diz: — Você ai, saia da fila e acompanhe o seu marido para a esquerda. Depressa, por favor, não temos a noite toda.

Observei os meus pais afastarem-se para a esquerda, seguindo os outros. Pessoas de idade e crianças vão para a esquerda. Jovens e saudáveis são enviados para a direita. Cheguei à frente e fiquei cara-a-cara com o belo homem no seu uniforme impecável. Olha-me de cima a baixo, parece satisfeito, e sem dizer uma palavra aponta para a direita.

— Mas os meus pais foram para a esquerda.

O Demônio sorri. Há um espaço entre os dois incisivos da frente.

— Estará com eles em breve, mas confie em mim, por agora é melhor ir para a direita.

Ele parece tão atencioso, tão agradável. Eu acredito nele. vou para a direita. Olho por cima do ombro para os meus pais, mas eles já foram engolidos pela imunda e exausta massa humana arrastando-se em silêncio para o gás em ordenadas filas de cinco.

Não é possível falar de tudo o que se passou durante os dois anos seguintes. Algumas coisas não consigo lembrar. Algumas coisas decidi esquecer. Havia um ritmo implacável em Birkenau, uma crueldade monótona que corria sob um apertado e eficiente horário. A morte era uma constante, no entanto até a morte se tornou monótona.

Somos rapados, não só na cabeça, mas em todo o lado, braços, pernas, até nos pêlos púbicos. Eles não parecem importar-se se a tosquia nos corta a pele. Eles não parecem ouvir os nossos gritos. É-nos atribuído um número e tatuado no nosso braço esquerdo, mesmo por baixo do cotovelo. Cheguei a ser Irene Prankel. Agora sou uma ferramenta do Eeich conhecida por 29395. Pulverizam-nos com desinfetante, dão-nos roupa de prisão feita de lã áspera e grossa. A minha cheira a suor e sangue. Tento não respirar muito fundo. Os nossos "sapatos" são bocados de madeira com correias de couro. Não conseguimos caminhar com eles calçados. Quem conseguiria? É-nos entregue uma tigela de metal e é-nos ordenado que andemos sempre com ela. É-nos dito que se perdermos a tigela seremos imediatamente abatidos. Acreditamos.

Somos levados a casernas indignas de animais. As mulheres que lá nos esperam são qualquer coisa abaixo de humano. Estão esfomeadas, os seus olhares são vagos, os seus movimentos são lentos e apáticos. Pondero quanto tempo levará até eu ficar como elas. Um destes meio-humanos aponta-me na direção de um beliche vazio. Cinco moças apertam-se numa prateleira de madeira com apenas um colchão de palha infestado de bichos como cama. Apresentamo-nos. Duas são irmãs, Roza e Regina. As outras chamam-se Lene e Rachel. Somos todas alemãs. Todas perdemos os pais nas filas de seleção. Formamos uma nova família nessa noite. Abraçamo-nos e rezamos. Nenhuma de nós dorme.

Somos acordadas às quatro horas da manhã, seguinte. Acordarei todos os dias às quatro da manhã durante os próximos dois anos, exceto naquelas noites em que eles ordenam uma chamada noturna e fazem-nos estar em sentido nos pátios gelados durante horas a fio. Somos divididas em kommandos e enviadas para trabalhar. Na maioria dos dias, marchamos para fora até os campos das imediações para apanhar areia para construção ou para trabalhar nos projetos de agricultura do campo. Nalguns dias construímos estradas ou deslocamos pedras de um lugar para outro. Não passa um dia em que eu não seja espancada: uma paulada, um pontapé nas costelas. A ofensa pode ser deixar cair uma pedra ou descansar demasiado tempo na pega da minha pá. Os dois invernos são de um frio de rachar. Não nos dão roupa extra que nos proteja do tempo, mesmo quando trabalhamos no exterior. Os verões são miseravelmente quentes. Apanhamos malária. Os mosquitos não discriminam entre mestres alemães e escravos judeus. Até Mengele apanha malária.

Não nos dão comida suficiente para sobreviver, apenas o suficiente para que morramos à fome lentamente, mas de forma a conseguir servir o Reich. Perco o período, em seguida perco o peito. Não tarda muito até em parecer um dos meio-humanos que vi no primeiro dia em Birkenau. Ao pequeno-almoço temos água cinza que eles chamam chá. Ao almoço, sopa rançosa que comemos no local onde estamos a trabalhar. As vezes, talvez se encontre uma pequena porção de carne. Algumas das moças recusam-se a comer porque não é Kosher. Eu não me submeto às leis da dieta enquanto estou em Auschwitz-Birkenau. Não há Deus nos campos de concentração, eu odeio Deus por nos ter abandonado ao nosso destino. Se há carne na minha tigela, eu como. Para a ceia, é-nos dado pão. É em grande parte serradura. Aprendemos a comer metade à noite e guardar o resto para a manhã, para que tenhamos algo no estômago antes de marchar para os campos para trabalhar. Se sucumbes no trabalho, eles espancam-te. Se não te consegues levantar, eles atiram-te para uma maca e levam-te para o gás. Esta é a nossa vida no campo para mulheres de Birkenau. Acordamos. Retiramos as mortas dos beliches, as sortudas que morreram calmamente durante o sono. Bebemos o nosso chá cinza. Vamos para a chamada. Marchamos para o trabalho em ordenadas filas de cinco. Comemos o nosso almoço. Somos espancadas. Voltamos para o campo.

Vamos para a chamada. Comemos o nosso pão, dormimos e esperamos até tudo voltar a acontecer outra vez. Fazem-nos trabalhar durante o Shabbat. Aos domingos, o dia sagrado deles, não há trabalho. De três em três domingos eles tosquiam-nos. Tudo corre segundo um horário. Tudo exceto as seleções.

Aprendemos a antecipá-los. Como animais, os nossos sentidos de sobrevivência estão altamente apurados. A população do campo é o sinal de aviso mais fidedigno. Quando o campo está demasiado cheio, vai haver seleção. Nunca há aviso. Depois de uma chamada, somos mandadas alinhar na Lagerstrasse para esperar a nossa vez perante Mengele e a sua equipe de seleção, esperar a nossa vez para provar que ainda estamos capazes de trabalhar, ainda somos dignas de viver.

As seleções levam um dia inteiro. Não nos dão comida nem nada para beber. Algumas nunca chegam até a mesa onde Mengele faz de deus. São "selecionadas" pelos sádicos SS muito antes. Um bruto chamado Taube gosta de nos pôr a fazer "exercícios" enquanto esperamos, para que estejamos fortes perante os seletores. Obriga-nos a fazer flexões, a seguir ordena-nos que ponhamos a cara na lama e lá fiquemos . Taube tem um castigo especial para qualquer moça que se mova. Pisa-lhe a cabeça com todo o seu peso e esmaga-lhe o crânio. Finalmente chegamos perante o nosso juiz. Ele olha de cima abaixo, toma nota do nosso número.

— Abre a boca, judia. Levanta os braços.

Tentamos manter-nos saudáveis nesta fossa, mas é impossível. Uma garganta inflamada pode significar uma viagem ao gás. Pomadas e unguentos são demasiado preciosos para desperdiçar em judeus, então um corte na mão pode significar o gás na próxima vez que Mengele selecionar a população.

Se passamos na inspeção visual, o nosso juiz tem um teste final. Aponta para uma vala e diz:

— Salta judia. — Coloco-me em frente da vala e reúno as minhas últimas reservas de força. Aterro do outro lado e viverei, pelo menos até a próxima seleção. Caio e serei atirada para uma maca e levada para o gás. A primeira vez que passei por esta loucura pensei: Sou uma moça judaico-alemã de Berlim de uma boa família. O meu pai é um pintor de renome. Porque estarei eu a saltar esta trincheira?

Depois disto, não penso em mais nada senão em chegar ao outro lado e aterrissar de pé.

Roza é a primeira da nossa família a ser selecionada. Ela tem o azar de estar muito doente com malária na hora de uma seleção grande, e não há maneira de escondê-la dos olhos peritos de Mengele. Regina suplica ao Demônio que a leve também, para que a irmã não tenha de morrer sozinha no gás. Mengele sorri revelando seus dentes afastados.

— Irá em breve, mas antes ainda pode trabalhar mais um pouco. Vá para a direita. — Pela primeira vez na minha vida, estou contente por não ter uma irmã.

Regina para de comer. Parece nem reparar quando lhe batem no trabalho. Ela passou a linha. Ela já está morta. Na próxima grande seleção, ela espera pacientemente na fila interminável. Suporta os "exercícios" de Taube e mantém a cara na lama para que ele não lhe esmague o crânio. Quando por fim chega à mesa de seleção, voa até Mengele e tenta esfaqueá-lo no olho com a pega da sua colher. Um SS dá-lhe um tiro no estômago.

Mengele está claramente assustado.

— Não desperdice gás com ela! Jogue-a no fogo viva! Pela chaminé acima com ela!

Jogam Regina num carrinho de mão. Observamo-la e rezamos para que morra antes de chegar ao crematório.

No outono de 1944, começamos a ouvir as armas russas. Em Setembro, as sirenes de ataque aéreo soam pela primeira vez. Três semanas mais tarde soam outra vez e as baterias antiaéreas do campo disparam pela primeira vez. Nesse mesmo dia, o Soderkommajido do Crematorium IV revolta-se. Atacam os guardas SS com picaretas e martelos e conseguem lançar fogo à sua caserna e crematório antes de serem abatidos por tiros de metralhadora. Uma semana depois, bombas caem dentro do próprio campo. Os nossos mestres mostram sinais de tensão. Já não parecem tão invencíveis. Às vezes até parecem um pouco assustados. Isto dá-nos um certo prazer e um bocadinho de esperança. A intoxicação por gás pára. Eles ainda nos matam, mas têm de o fazer eles próprios. Prisioneiros selecionados são abatidos a tiro nas câmaras de gás ou perto do Crematorium V. Em breve começam a desmantelar o crematório. A nossa esperança de sobrevivência aumenta.

A situação se deteriora ao longo do outono e do inverno. A comida escasseia. Muitas mulheres sucumbem e morrem de fome e exaustão cada dia que passa. O tifo leva uma parte terrível. Em dezembro, bombas aliadas caem no I.O. Farben, fábrica de combustível sintético e borracha. Alguns dias mais tarde, os aliados atacam novamente, mas desta vez várias bombas caem numa enfermaria dentro de Birkenau. Cinco SS morrem. Os guardas ficam mais irritáveis, mais imprevisíveis. Eu os evito. Tento me fazer invisível.

O novo ano chega, 1944 transforma-se em 1945. Conseguimos sentir que Auschwitz está morrendo. Rezamos para que seja em breve. Debatemos o que fazer. Deveríamos esperar que os russos nos libertassem? Deveríamos tentar escapar? E se conseguíssemos passar para lá da vedação? Onde iriamos? Os camponeses poloneses odeiam-nos tanto como os alemães. Esperamos. Que mais podemos fazer?

Em meados de Janeiro, eu sinto o cheiro de fumo. Olho para fora da porta da caserna. Fogueiras erguem-se por todo o campo. O cheiro é diferente. Pela primeira vez não estão a queimar pessoas. Estão a queimar papel. Estão a queimar as provas dos seus crimes. A cinza paira sobre Birkenau como neve. Eu sorrio pela primeira vez em dois anos.

Em 17 de janeiro, Mengele parte. O fim está próximo. Pouco depois da meia-noite, há uma chamada. Dizem que o campo inteiro de Auschwitz está sendo evacuado. O Reich ainda precisa dos nossos corpos. Os saudáveis serão retirados a pé. Os doentes ficarão para trás abandonados à sua sorte. Agrupamo-nos e marchamos em ordenadas filas de cinco.

À uma da manhã, passo pelos portões do inferno pela última vez, precisamente dois anos desde o dia da minha chegada, quase na mesma hora. Ainda não estou livre. Ainda tenho mais um teste para suportar.

A queda de neve é forte e severa. À distância conseguimos ouvir o trovão de um duelo de artilharia. Caminhamos, uma aparentemente infindável corrente de meio-humanos, vestidos com os nossos trapos às riscas e os nossos tamancos. O tiroteio é tão severo como a neve. Tentamos contar os tiros. Cem... duzentos... trezentos... quatrocentos... quinhentos... deixamos de contar depois disso. Cada tiro representa mais uma vida extinguida, mais um assassinato. Éramos vários milhares quando saímos. Temo que estejamos todos mortos antes de chegarmos ao destino.

Lene caminha à minha esquerda, Rachel à minha direita. Tentamos não tropeçar. Aqueles que tropeçam são mortos na altura e atirados a uma vala. Tentamos não sair da formação e ficar para trás . Aqueles que o fazem são mortos, também. A estrada está manchada de mortos. Passamos-lhe por cima e rezamos para não esmorecer. Comemos neve para matar a sede. Não há nada que possamos fazer sobre o frio horrível. Uma mulher tem pena de nós e atira batatas cozidas. Os que são insensatos o suficiente para as apanhar são mortos.

Dormimos em celeiros ou em casernas abandonadas. Aqueles que não se conseguem levantar suficientemente rápido quando acordados são mortos. A minha fome parece estar a abrir um buraco no estômago. É muito pior que a fome em Birkenau. De alguma forma, eu reúno a força para continuar a manter um pé à frente do outro. Sim, eu quero sobreviver, mas é ao mesmo tempo uma espécie de provocação. Eles querem que eu caia para que me possam matar. Eu quero testemunhar a destruição do seu Reich milenar. Quero rejubilar-me com a sua morte, como os alemães rejubilam com a nossa. Penso em Regina, voando para Mengele durante a seleção, tentando matá-lo com a colher. A coragem de Regina me dá forças.

Cada passo é rebelião.

No terceiro dia, ao cair da noite, ele vem para mim. Está montado num cavalo. Estamos sentadas na neve à beira da estrada, descansando. Lene está encostada a mim. Os seus olhos estão fechados. Temo que ela esteja acabada. Rachel pressiona-lhe neve contra os lábios para reanimá-la. Rachel é a mais forte. Ela praticamente carregou Lene toda a tarde.

Ele olha para mim. Ele é um Sturmbannführer das SS. Depois de doze anos sob jugo dos nazistas, aprendi a reconhecer as insígnias. Tento fazer-me invisível. Viro a cabeça e cuido de Lene. Ele puxa as rédeas do cavalo e coloca-se numa posição em que possa olhar melhor para mim. Questiono-me o que verá ele em mim. Sim, fui uma moça bonita no passado, mas estou hedionda agora, exausta, suja, doente, um esqueleto ambulante. Não consigo suportar o meu próprio cheiro. Eu sei que se interajo com ele vai acabar mal. Coloco a cabeça nos joelhos e finjo dormir. Ele é esperto demais para isso.

— Você aí — chama ele.

Eu olho para cima. O homem montado no cavalo aponta diretamente para mim.

— Sim, você. Levante-se. Venha comigo.

Eu me levanto. Estou morta. Eu sei. Rachel sabe também. Consigo vê-lo nos seus olhos. Ela já não tem mais lágrimas para chorar.

— Lembre-se de mim — sussurro enquanto sigo o homem a cavalo para as árvores. Felizmente ele não me pede para andar muito, apenas até um local a alguns metros da beira da estrada, onde uma grande árvore estava caída. Ele desmonta e amarra o cavalo. Senta-se na árvore caída e ordena que me sente junto a ele. Eu hesito. Nunca um SS pediu tal coisa. Dá umas palmadinhas na árvore. Eu me sento, mas alguns centímetros mais afastada do lugar que ele indicou. Estou com medo, mas também me sinto humilhada pelo meu cheiro. Ele desliza para mais perto. Cheira a álcool. Estou feita. É só uma questão de tempo.

Olho em frente. Ele tira as luvas, e toca meu rosto. Em dois anos de Birkenau, nenhum SS jamais me tocou. Por que este homem, um Sturmbannführer, me toca agora? Suportei muitas tormentas, mas esta é de longe a pior. Eu olho para a frente. A minha carne está em chamas.

— Que desperdício — diz ele. — Você era muito bonita antes?

Não consigo pensar em nada para dizer. Dois anos de Birkenau ,e ensinaram que em situações como esta nunca há uma resposta certa. Se respondo que sim, ele vai me acusar de arrogância judaica e me mata. Se respondo não, me mata por mentir.

— Vou partilhar um segredo com você. Sempre me senti atraído por judias. Se fosse por mim, devíamos ter matado os homens e usado as mulheres para nosso prazer. Teve filhos?

Penso em todas as crianças que vi irem para o gás em Birkenau. Ele exige uma resposta apertando rosto entre o polegar e os dedos. Fecho os olhos e tento não gritar. Ele repete a pergunta. Eu nego com a cabeça e ele me solta.

— Se conseguir sobreviver às próximas horas, talvez um dia tenha um filho. Dirá a esse filho o que aconteceu com você na guerra? Ou sentirá vergonha demais?

Um filho? Como é que uma moça na minha posição podia sequer contemplar dar à luz uma criança? Passei os últimos dois anos a tentar sobreviver simplesmente. Um filho está além da minha compreensão.

— Responda, judia!

A sua voz é repentinamente áspera. Sinto que a situação está prestes a ficar fora de controle. Ele agarra meu rosto novamente e vira-a para si. Tento olhar em outra direção, mas ele me sacode, obrigando-me a olhá-lo nos olhos.

Não tenho forças para resistir. Seu rosto é instantaneamente talhado na minha memória. Assim como o som de sua voz e seu alemão de sotaque austríaco. Ainda consigo ouvi-lo.

— O que dirá a seu filho sobre a guerra?

O que quer ele ouvir? O que quer ele que eu diga? Apertou-me o rosto.

— Fale, judia! O que dirá a teu filho sobre a guerra?

— A verdade, Herr Sturmbannführer. Eu direi ao meu filho a verdade.

De onde vieram estas palavras, não sei. Apenas sei que se estou prestes a morrer, morrerei com um pouquinho de dignidade. Penso novamente em Regina, voando para Mengele armada com uma colher.

Ele relaxa o aperto. A primeira crise parece ter passado. Ele exala pesadamente, como se exausto pelo seu longo dia de trabalho, então tira um cantil do bolso do casaco e dá um gole prolongado. Felizmente, ele não me oferece. Devolve o cantil ao bolso e acende um cigarro. Não me oferece um cigarro. Tenho cigarro e álcool, ele diz. Você não tem nada.

— A verdade? O que é a verdade, judia, como você a vê?

— Birkenau é a verdade, Herr Sturmbannführer.

— Não, minha querida, Birkenau não é a verdade. Birkenau é um boato. Birkenau é uma invenção dos inimigos do Reich e do cristianismo. É propaganda stalinista e ateísta.

— E as câmaras de gás? O crematório?

— Essas coisas não existiram em Birkenau.

— Eu vi, Herr Sturmbannführer. Todos nós vimos.

— Ninguém vai acreditar em tal coisa. Ninguém vai acreditar que é possível matar tantos. Milhares? Claro que a morte de milhares é possível. Afinal de contas isto foi uma guerra. Centenas de milhares? Talvez. Mas milhões? — Ele aspira seu cigarro. — Para dizer a verdade, eu vi com meus próprios olhos, e nem eu consigo acreditar.

Um tiro crepita pela floresta, seguido de outro. Mais duas moças mortas. O Sturmbaunführer dá outra longa golada no seu cantil de álcool.

Por que está bebendo? Está tentando manter-se quente? Ou ficar fora de si antes de me matar?

— Vou dizer o que você vai contar da guerra. Vai contar que foi transferida para leste. Que teve trabalho. Que tinha comida em abundância e cuidados médicos adequados. Que te tratamos bem e humanamente.

— Se isso é a verdade, Herr Sturmbannführer, então por que sou um esqueleto?

Ele não tem resposta, exceto sacar a pistola e encostá-la em minha têmpora.

— Repita o que aconteceu a você na guerra, judia. Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são invenções bolchevismo-judaicas. Diga essas palavras, judia.

Eu sei que não há como escapar viva desta situação. Mesmo que diga as palavras, estou morta. Não vou dizê-las. Não lhe vou dar essa satisfação. Fecho os olhos e espero que a bala faça um túnel em meu cérebro e me liberte do meu tormento.

Ele baixa a arma e grita. Outro SS aparece correndo. O Sturmbannführer ordena-lhe que me vigie. Ele sai e caminha pelas árvores até a estrada. Quando volta está acompanhado por duas mulheres. Uma delas é Rachel. A outra é Lene. Ordena ao SS que saia, e coloca a arma encostada na testa de Lene. Lene olha diretamente para meus olhos. Sua vida está em minhas mãos.

— Diga as palavras, judia! Foi transferida para o leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevismo-judaicas.

Não posso permitir que Lene morra pelo meu silêncio. Abro minha boca para falar, mas antes que possa repetir as palavras, Rachel grita:

— Não diga, Irene. Ele vai nos matar de qualquer maneira. Não lhe dê esse prazer.

O Sturmbannführer retira a arma da cabeça de Lene e coloca-a contra a de Rachel.

— Então diga você, cabra judia.

Rachel olha diretamente nos meus olhos e permanece em silêncio. O Sturmbannführer pressiona o gatilho e Rachel cai morta na neve. Coloca a arma contra a cabeça de Lene e, mais uma vez, ordena-me que fale. Lene abana a cabeça lentamente. Despedimo-nos com o olhar. Outro tiro e Lene cai junto a Rachel.

É minha vez de morrer.

O Sturmbannführer aponta a arma na minha direção. Da estrada vem o som de gritos. Raus! Raus! Os SS estão espicaçando as moças para que se levantem. Eu sei que minha caminhada acabou. Eu sei que não vou sair deste lugar viva. É onde eu vou cair, à beira de uma estrada polonesa, e aqui serei enterrada, sem mazevoth para marcar meu túmulo.

— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?

— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.

— Ninguém vai acreditar em você. — Guarda a pistola no coldre. — Sua coluna está de partida. Junte-se a eles. Sabe o que acontece aos que ficam para trás.

Ele monta em seu cavalo e sacode as rédeas. Eu caio na neve junto aos corpos das minhas amigas. Rezo por elas e peço que me perdoem. O fim da coluna passa. Cambaleio por entre as árvores e junto-me ao grupo. Caminhamos a noite inteira, em ordenadas filas de cinco. Eu verto lágrimas de gelo. Cinco dias depois de caminhar para longe de Birkenau, chegamos a uma estação de trem na vila silesiana de Wodzislaw. Somos agrupadas em vagões de carvão abertas e viajamos pela noite, expostas ao perverso tempo de Janeiro. Os alemães já não tinham necessidade de desperdiçar mais das suas preciosas munições conosco. O frio matou metade das moças só no meu vagão. Chegamos a um novo campo, Ravensbrück, mas não há comida para os novos prisioneiros. Após alguns dias, alguns de nós prosseguem, desta vez em caminhão de carroceria aberta. Termino a minha odisseia num campo em Neüstadt Glewe. Em 2 de maio de 1945, acordamos para descobrir que os nossos atormentadores SS abandonaram o campo. Mais tarde, nesse dia, somos libertadas por soldados americanos e russos.

Passaram-se doze anos. Não há um dia em que eu não veja os rostos de Rachel e Lene — e o rosto do homem que as assassinou. Suas mortes pesam em mim. Tivesse eu repetido as palavras do Sturmbannführer e talvez elas estivessem vivas e eu estaria num túmulo anônimo junto a uma estrada polonesa. Apenas mais uma vítima sem nome. No aniversário de suas mortes, digo-lhes as palavras de luto de Kaddish. Faço isto mais por hábito do que por fé. Perdi minha fé em Deus em Birkenau.

O meu nome é Irene Allon. Antes me chamava Irene Frankel.

No campo era conhecida como prisioneira número 29.395, e isto é o que eu testemunhei em janeiro de 1945, na marcha da morte de Birkenau.


17

TIBERÍADES, ISRAEL

ERA SABAT. Shamron ordenou a Gabriel que viesse a Tiberíades para a ceia. Gabriel, enquanto dirigia devagar pela encosta, olhou para cima e no terraço de Shamron viu postes de luz dançando ao vento que sopra do lago — e então vislumbrou Shamron, a eterna sentinela, caminhando lentamente pelo meio das chamas.

Gilah, antes de lhes servir a comida, acendeu um par de velas na sala de jantar e recitou a bênção. Gabriel fora educado num lar sem religião, mas nesse momento pensou que a visão da mulher de Shamron, de olhos fechados, as mãos desenhando a luz da vela em direção ao seu rosto, era a mais bela que já tinha visto. Shamron estava ausente e preocupado durante a refeição e sem paciência para conversa banal. Mesmo nestas alturas ele não falaria do seu trabalho em frente de Gilah, não por não confiar nela, mas por temer que ela deixasse de o amar se soubesse de todas as coisas que ele já fizera. Gilah preenchia os longos silêncios falando sobre a sua filha, que se tinha mudado para a Nova Zelândia para fugir do pai e estava a viver com um homem numa quinta de criação de galinhas. Ela sabia que Gabriel estava de alguma forma ligado ao Escritório, mas não suspeitava da verdadeira natureza do seu trabalho. Achava que ele era um escriturário que passava bastante tempo em viagem e apreciava arte. Serviu-lhes café e um tabuleiro de biscoitos e frutos secos, em seguida levantou a mesa e foi lavar a loiça. Gabriel, por entre o som de água corrente e porcelana a bater emanando da cozinha, pôs Shamron ao corrente. Falaram em voz baixa, com as tremeluzentes velas de sabat entre eles. Gabriel mostrou-lhe as pastas de Erich Radek e Action 1005. Shamron elevou a fotografia até a luz da vela e franziu o sobrolho, então elevou os óculos de ler até a testa careca e cravou o seu olhar duro em Gabriel mais uma vez.

— O que é que sabe sobre o que aconteceu a minha mãe durante a guerra?

O olhar calculado de Shamron, entretido com a xícara de café, deixou bem claro que não havia nada que ele não soubesse sobre a vida de Gabriel, inclusive o que tinha acontecido à mãe durante a guerra.

— Ela era de Berlim — disse Shamron. — Foi deportada para Auschwitz em janeiro de 1943 e passou dois anos no campo para mulheres de Birkenau. Deixou Birkenau numa marcha da morte. Ao contrário de milhares de outros, ela conseguiu sobreviver e foi libertada por tropas russas e americanas em Neüstadt Glewe. Estou esquecendo de alguma coisa?

— Algo aconteceu na marcha da morte, algo que ela nunca discutiria comigo. — Gabriel levantou a fotografia de Erich Radek. — Quando Rivlin me mostrou isso em Yad Vashem, eu sabia que já tinha visto essa cara em algum lugar. Levei algum tempo até me lembrar, mas finalmente lembrei. Eu a vi quando era garoto numa tela no estúdio da minha mãe.

— Foi por isso que foi a Safed, para ver Tziona Levin.

— Como sabe?

Shamron suspirou e sorveu o café. Gabriel, desanimado, contou a Shamron sobre a sua segunda visita a Yad Vashem nessa manhã. Quando colocou as páginas do testemunho da sua mãe na mesa, os olhos de Gabriel permaneceram fixos no rosto de Shamron. Foi então que Gabriel percebeu que Shamron já as tinha lido antes. O Memuneh sabia sobre a sua mãe. O Memuneh sabia tudo.

— Você estava sendo considerado para uma das mais importantes missões na história do Escritório — disse Shamron.  — A voz não tinha traço de remorso. — Precisava saber tudo o que pudesse sobre você. Seu perfil psicológico militar descreve-o como um lobo solitário, egoísta, com a frieza emocional de um assassino natural. A minha primeira visita a você confirmou isso, embora eu também tenha achado você insuportavelmente rude e clinicamente tímido. Eu queria saber por que você era como era. Pensei que sua mãe seria um bom ponto de partida.

— Então procurou o testemunho dela em Yad Vashem? — Fechou os olhos e abanou a cabeça uma vez. — Por que nunca me contou?

— Não era a minha função — disse Shamron, desprovido de sentimento. — Apenas sua mãe podia contar tais coisas. Ela obviamente carregou um pesado fardo de culpa até a morte. Ela não queria que você soubesse. Não estava sozinha. Havia muitos sobreviventes como sua mãe que nunca conseguiram enfrentar verdadeiramente suas lembranças. Nos anos após a guerra, antes de você nascer, parecia que um muro de silêncio se tinha erigido neste país. O Holocausto? Era discutido de modo incessante. Mas aqueles que efetivamente o suportaram tentavam com desespero enterrar as memórias e prosseguir. Era outra forma de sobrevivência. Infelizmente, sua dor foi passada à geração seguinte, os filhos e filhas dos sobreviventes. Pessoas como Gabriel Allon.

Shamron foi interrompido por Gilah, que perguntou da porta se precisavam de mais café. Shamron levantou a mão. Gilah percebeu que eles estavam falando de assuntos de trabalho e voltou para a cozinha. Shamron cruzou os braços na mesa e inclinou-se para a frente.

— Com certeza você deve ter suspeitado de que ela prestou testemunho. Por que sua curiosidade natural não o levou a Yad Vashem para ver com os seus próprios olhos? — Shamron, saudado apenas pelo silêncio de Gabriel, respondeu à pergunta ele mesmo. — Porque, como todos os filhos dos sobreviventes, teve sempre o cuidado de não perturbar o frágil estado emocional de sua mãe. Tinha medo de que se fosse longe demais, poderia enviá-la para um estado de depressão do qual ela poderia não regressar? — Fez uma pausa. — Ou foi por medo do que poderia encontrar? Tinha efetivamente medo de saber a verdade?

Gabriel olhou de maneira cortante, mas não respondeu. Shamron contemplou seu café por um momento antes de voltar a falar.

— Para ser honesto com você, Gabriel, quando li o testemunho de sua mãe, eu soube que eras perfeito. Trabalhas para mim por causa dela. Ela foi incapaz de te amar completamente. Como poderia ela? Ela tinha medo de te perder. Toda a gente que ela tinha amado tinha-lhe sido tirada. Perdeu os pais nas filas de seleção e as amigas que tinha ajudado em Birkenau foram levadas porque ela não disse as palavras que um Sturmbannfuhrer SS queria que ela dissesse.

— Eu teria compreendido se ela tivesse tentado me dizer.

Shamron abanou a cabeça com lentidão.

— Não Gabriel, ninguém consegue verdadeiramente entender. A culpa, a vergonha. Sua mãe conseguiu encontrar o lugar dela no mundo depois da guerra, mas de muitas maneiras a vida dela acabou naquela noite à beira de uma estrada polonesa. — Bateu a palma da mão na mesa, com força suficiente para fazer tilintar os pratos que restavam.

— Então o que fazemos? Temos pena de nós mesmos ou continuamos o trabalho e vemos se este homem é na verdade Erich Radek?

— Eu penso que sabe a resposta a isso.

— Será que Moshe Rivlin acha ser possível Radek ter estado envolvido na evacuação de Auschwitz?

Gabriel acenou que sim com a cabeça.

— Em janeiro de 1945, o trabalho de Aktion 1005 estava em grande parte completo, uma vez que todo o território conquistado a leste tinha sido recuperado pelos soviéticos. É possível que ele tenha ido a Auschwitz para demolir as câmaras de gás e o crematório e preparar os restantes prisioneiros para evacuação. Eles eram, afinal de contas, testemunhas do crime.

— Sabemos como este pedaço de imundície conseguiu sair da Europa depois da guerra?

Gabriel contou-lhe a teoria de Rivlin, que Radek, por ser austríaco católico, tinha se beneficiado dos serviços do bispo Alois Hudal em Roma.

— Então por que não seguimos o rastro — disse Shamron — e vemos se leva de volta à Áustria?

— Exatamente o que eu acho. Pensei em começar por Roma. Quero dar uma olhada nos documentos de Hudal.

— como muitos outros também.

— Mas esses não têm o número particular do homem que mora no andar de cima do Palácio Apostólico.

Shamron encolheu os ombros.

— Lá isso é verdade.

— Preciso de um passaporte limpo.

— Não é problema. Tenho um passaporte canadense bem bom que pode usar. Como está o teu francês ultimamente?

— Pas mal, mais je dois pratiquer l'accent d'un Quebecois.

— Às vezes você me assusta.

— Isso já é alguma coisa.

— Passe a noite aqui e voe para Roma amanhã. Eu o levo a Lod. Pelo caminho paramos na embaixada americana e temos uma conversa com o diretor.

— Sobre o quê?

— De acordo com o arquivo da Staatsarchiv, Vogel trabalhou para os americanos na Áustria na ocupação. Pedi aos nossos amigos em Langley que dessem uma olhada nos registros para ver se o nome de Vogel aparece. É um tiro no escuro, mas talvez tenhamos sorte.

Gabriel olhou para o testemunho da sua mãe: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos...

— Sua mãe foi uma mulher de coragem, Gabriel. Por isso escolhi você. Sabia que vinha de uma excelente estirpe.

— Ela era muito mais corajosa do que eu.

— Sim —, concordou Shamron. — Ela foi mais corajosa do que todos nós.

 

A OCUPAÇÃO REAL DE Bruce Crawford era um dos segredos mais mal guardados de Israel. O alto, patrício americano era o chefe da CIA na divisão de Tel Aviv. Declarado tanto ao governo israelense como à Autoridade Palestiniana, ele regularmente servia de ligação entre os dois lados do conflito. Rara era a noite em que o telefone de Crawford não tocava a horas terríveis. Ele andava cansado, e isso via-se.

Cumprimentou Shamron já dentro dos portões da embaixada na Rua Haraykon e acompanhou-o até o edifício. A sala de Crawford era amplo e, para o gosto de Shamron, decorado demais. Parecia mais o escritório de um vice-presidente corporativo do que o covil de um espião, mas esse era o estilo americano. Shamron afundou-se numa cadeira de pele e aceitou um copo de água gelada com limão da secretária. Ainda considerou acender um cigarro turco, mas reparou no sinal de PROIBIDO FUMAR proeminentemente disposto na frente da mesa de Crawford.

Crawford parecia não ter pressa em ir direto ao assunto em questão. Shamron já esperava isso. Havia uma regra não declarada entre espiões: Quando se pede um favor a um amigo, deve-se estar preparado para pagar na mesma moeda. Shamron, por estar tecnicamente fora do jogo, não podia oferecer nada palpável, apenas o conselho e a sabedoria de um homem que já cometera muitos erros. Finalmente, depois de uma hora, Crawford disse:

— Sobre aquela coisa do Vogel.

A voz do americano arrastou-se. Shamron, tomando nota dos vestígios de quebra na voz de Crawford, inclinou-se para a frente na sua cadeira, expectante. Crawford queimou tempo removendo um clip do dispensador magnético especial e esticou-o zelosamente.

— Demos uma olhadela em nossos próprios registros — disse Crawford, o olhar fugindo para baixo em direção ao seu trabalho. — Até enviamos uma equipe a Maryland para pesquisar no anexo dos Arquivos. Temo que estejamos eliminados.

— Eliminados? — Shamron considerava o uso de termos esportivos americanos desapropriado num assunto tão vital como a espionagem. Agentes, no mundo de Shamron, não eram eliminados, não ficavam fora de jogo, nem faziam carrinhos. Só havia sucesso ou fracasso, e o preço do fracasso, numa vizinhança como o Oriente Médio, era normalmente sangue. — O que é que significa isso exatamente?

— Significa — disse Crawford com pedantismo — que a nossa busca não produziu nada. Lamento, Ari, mas às vezes estas coisas são assim.

Levantou o clip endireitado e examinou-o cuidadosamente, como se estivesse orgulhoso da obra.

 

GABRIEL ESPERAVA no banco de trás do Peugeot de Shamron.

— Como foi?

Shamron acendeu um cigarro e respondeu à pergunta.

— Acredita nele?

— Se ele dissesse que tinham encontrado um arquivo pessoal de rotina ou um relatório de verificação de curriculum, talvez eu tivesse acreditado. Mas nada? Com quem ele pensa que está falando? Sinto-me insultado, Gabriel. Muito insultado.

— Pensa que os americanos sabem alguma coisa de Vogel?

— Bruce Crawford acabou de nos confirmar isso. — Shamron olhou para seu relógio de aço inoxidável. — Raios! Levou uma hora me enrolando para me enganar, e agora vai perder seu voo.

Gabriel olhou para o telefone no console. — Ligue — murmurou. — Desafio você.

Shamron pegou o telefone e teclou.

— Aqui é Shamron — bradou. — Há um voo da El Al que parte de Lod para Roma em trinta minutos. Surgiu um problema mecânico que vai exigir o atraso de uma hora na partida. Entendido?

 

DUAS HORAS MAIS TARDE, o telefone de Bruce Crawford ronronou. Levou o receptor ao ouvido. Reconheceu a voz. Era o vigilante que ele tinha designado para seguir Shamron. Um jogo perigoso, seguir o antigo chefe do Escritório no seu próprio terreno, mas Crawford seguia ordens.

— Depois da embaixada ele foi para Lod.

— O que foi ele fazer ao aeroporto?

— Largar um passageiro.

— Reconheceste-o?

O vigilante indicou que sim. Sem mencionar o nome do passageiro, conseguiu comunicar o fato de o homem em questão ser um agente digno de nota do Escritório, recentemente ativo numa cidade da Europa Central.

— Tem certeza que era ele?

— Sem dúvida alguma.

— Para onde ia?

Crawford, depois de ouvir a resposta, cortou a ligação. Um momento depois estava sentado em frente ao seu computador, enviando uma mensagem por um cabo seguro para a sede. O texto era direto e conciso, como o receptor gostava. Elijah está a viajar para Roma. Chega esta noite num voo da El Al de Tel Aviv,

 

18

 

ROMA

 

 

GABRIEL QUERIA encontrar-se com o homem do Vaticano em qualquer lugar menos no seu escritório no andar de topo do Palácio Apostólico. Combinaram em Piperno, um velho restaurante numa praça calma perto do Tibre, a algumas ruas de distância do antigo gueto judeu. Era o tipo de tarde de Dezembro que apenas Roma conseguia ter, e

Gabriel, chegando primeiro, providenciou uma mesa numa parte aquecida e iluminada pela luz solar da esplanada.

Alguns minutos mais tarde, um padre de passo firme entrou na praça e dirigiu-se ao restaurante. Era alto e magro e tão atraente como uma vedeta do cinema italiano. O corte do fato clérigo negro e colar romano sugeriam que, embora casto, ele não era desprovido de vaidade pessoal ou profissional. E com razões para isso. Monsenhor Luigi Donati, o secretário particular de Sua Santidade o Papa Paulo VII, era possivelmente o segundo homem mais poderoso na Igreja Católica Romana.

Havia uma obstinação fria em Luigi Donati que tornava difícil para Gabriel imaginá-lo batizando bebês ou sagrando doentes em alguma cidadezinha poeirenta. Seus olhos escuros irradiavam uma feroz e firme inteligência, enquanto o teimoso perfil do queixo revelava que era um homem perigoso para ter como inimigo. Gabriel sabia que isto era verdade por experiência própria. Um ano antes, um caso levara-o ao Vaticano, às mãos competentes de Donati, e juntos tinham destruído uma grave ameaça que pendia sobre o Papa Paulo VII. Luigi Donati estava em dívida para com Gabriel. Gabriel tinha esperança que Donato fosse um homem para pagar as suas dívidas.

Donati era também um homem que gostava, acima de tudo, de passar algumas horas num ensolarado café de Roma. O seu estilo exigente tinha conquistado apenas uns poucos amigos dentro da Cúria e, como o seu chefe, ele passava as fronteiras do Vaticano sempre que possível. Aceitou o convite de Gabriel para almoçar como um náufrago que tenta alcançar uma boia. Gabriel tinha a distinta impressão que Luigi Donati estava desesperadamente só. Por vezes Gabriel ponderava se Luigi Donati não estaria arrependido da vida que tinha escolhido. O padre acendeu um cigarro com um isqueiro banhado a ouro.

— Como vai o negócio?

— Estou a trabalhar num novo Bellini. O retábulo de Crisóstomo.

— Sim, eu sei.

Antes de se tornar Papa Paulo VII, o cardeal Pietro Lucchesi tinha sido o patriarca de Veneza. Luigi Donati estivera a seu lado. Os seus laços com Veneza mantinham-se fortes. Havia pouca coisa que acontecesse na sua antiga diocese que ele não soubesse.

— Espero que Francesco Tiepolo te esteja a tratar bem.

— Claro.

— E Chiara?

— Está bem, obrigado.

— Vocês os dois já pensaram em... formalizar a sua relação?

— É complicado, Luigi.

— Sim, mas o que não é?

— Sabes, por momentos, parecias mesmo um padre.

Donati inclinou a cabeça para trás e riu à gargalhada. Estava a começar a relaxar. — O Santo Padre manda cumprimentos. Pede desculpa por não se poder juntar a nós. Piperno é um dos seus restaurantes preferidos. Ele recomenda que comecemos com o filetti di baccalá. Ele jura que é o melhor de Roma.

— A infalibilidade estende-se a recomendações gastronômicas?

— O Papa é infalível apenas quando age como mestre supremo em matéria de fé e moral. Temo que a doutrina não se estenda a filetes de bacalhau frito. Mas ele tem uma boa dose de experiências mundanas nestes assuntos. Se eu fosse a ti, ia pelo filetti.

O garçom de paletó branco apareceu. Donati fez o pedido. O frascati começou a fluir, e o estado de espírito de Donati amadureceu como a suave tarde. Passou os minutos seguintes regalando Gabriel com mexericos curianos, histórias de rumores de bastidores e intrigas da corte. O Vaticano não era muito diferente do Escritório. Finalmente, Gabriel para começar conduziu a conversa para o tópico que o juntara a Donati: o papel da Igreja Católica Romana no Holocausto.

— Como está a correr o trabalho da Comissão Histórica?

— como seria de esperar. Nós fornecemos os documentos dos arquivos secretos, eles fazem a análise com o mínimo de interferência possível da nossa parte. Um relatório preliminar das suas conclusões é-nos devido em seis meses. Depois disso, eles começarão a trabalhar em história multivolume.

— Alguma indicação de como está a correr o relatório preliminar?

— É como eu disse, tentamos deixar os historiadores trabalhar com o mínimo de interferência possível do Palácio Apostólico.

Gabriel lançou a Donati um olhar duvidoso sobre o seu copo de vinho. Se não fosse pelo fato clérigo e colar romano do monsenhor, Gabriel teria assumido que ele era um espião profissional. A noção de que Donati não tinha pelo menos duas fontes de informação no staff da comissão era insultuosa. Gabriel, por entre tragos de frascati, expressou a sua visão a Monsenhor Donati. O padre confessou.

— Tudo bem, digamos que eu não estou completamente às escuras sobre a comissão.

— E?

— O relatório terá em consideração as enormes pressões sobre Pio, mas mesmo assim temo que não vá pintar um retrato muito abonatório das suas ações, nem das ações das igrejas nacionais na Europa Central e de Leste.

— Pareces nervoso, Luigi.

O padre inclinou-se sobre a mesa e parecia escolher as suas próximas palavras cuidadosamente.

— Abrimos a caixa de Pandora, meu amigo. Uma vez começado um processo como este, é impossível prever onde irá terminar e que áreas da Igreja irão afetar. Os liberais aproveitaram as ações do Santo Padre e imploram por mais: um terceiro Concílio do Vaticano. Os reacionários gritam heresia.

— Algo de grave?

Mais uma vez, o monsenhor levou um tempo desmesurado a responder.

— Estamos a interceptar alguns rumores sérios por parte de alguns reacionários na região francesa de Languedoc — o tipo de reacionários que acredita que o Vaticano Segundo foi trabalho do Diabo e que cada Papa desde João XXIII é um herege.

— Pensava que a Igreja estava cheia de gente assim. Tive a minha própria briga com um grupo amigável de patriarcas e laicos chamado Crux Vera.

Donati sorriu.

— Temo que este grupo seja farinha do mesmo saco, só que, ao contrário de Crux Vera, não tem uma base de ação dentro da Cúria. São forasteiros, bárbaros batendo aos portões. O Santo Padre tem muito pouco controle sobre eles, e as coisas já começaram a aquecer.

— Diz-me se houver algo que eu possa fazer para ajudar.

— Tem cuidado, meu amigo, eu talvez faça uso dessas tuas palavras. O filetti di baccalá chegou. Donati espremeu o sumo de limão sobre o prato e colocou um dos filetes na boca. Regou o peixe com uma golada de frascati e reclinou-se para trás na sua cadeira, as suas feições atraentes assumiram o ar de puro contentamento. Para um padre que trabalha no Vaticano, o mundo temporal oferecia poucas delícias mais tentadoras que almoçar numa ensolarada praça romana. Começou noutro filetti e perguntou a Gabriel o que o trazia à cidade.

— Penso que posso dizer estar a trabalhar num assunto relacionado com o trabalho da Comissão Histórica.

— Como é isso?

— Tenho razões para suspeitar que, logo após o final da guerra, o Vaticano pode ter ajudado um procurado homem pelas SS, chamado Erich Radek, a fugir da Europa.

Donati parou de mastigar, as suas feições tornaram-se subitamente sérias.

— Tem cuidado com as palavras que usas e as suposições que fazes, meu amigo. É bem possível que esse Radek tenha recebido ajuda de alguém em Roma, mas não foi o Vaticano.

— Acreditamos que foi o bispo Hudal de Anima. A tensão nas feições de Donati suavizou.

— Infelizmente, o bom do bispo ajudou de fato um certo número de fugitivos nazistas. Não se pode negar isso. O que te leva a pensar que ele ajudou esse Radek?

— Uma dedução informada. Radek era um austríaco católico. Hudal era reitor do seminário alemão em Roma e padre confessor da comunidade alemã e austríaca. Se Radek viesse a Roma em busca de ajuda, faria sentido se ele procurasse o bispo Hudal. Donati acenou concordante.

— Não posso contra argumentar isso. O bispo Hudal estava interessado em proteger conterrâneos do que ele acreditava serem intenções vingativas dos aliados vitoriosos. Mas isso não significa que ele soubesse que Erich Radek era um criminoso de guerra. Como poderia ele saber? Itália estava inundada de pessoas deslocadas após a guerra, todos eles em busca de ajuda. Se Radek procurasse Hudal e lhe contasse uma história triste, é provável que lhe fosse concedido asilo e ajuda.

— Não deveria Hudal ter perguntado a um homem como Radek porque andava em fuga?

— Talvez devesse, mas estás a ser ingênuo se assumes que Radek teria respondido honestamente à questão. Ele teria mentido, e o bispo Hudal não teria maneira de saber.

— Um homem não se torna fugitivo sem razão, Luigi, e o Holocausto não era um segredo. O bispo Hudal devia ter percebido que estava a ajudar criminosos de guerra a escapar à justiça.

Donati esperou para responder enquanto o garçom servia um prato de massa.

— O que tens de entender é que havia muitas organizações e indivíduos na altura que deram assistência a refugiados, dentro da Igreja e fora. Hudal não era o único.

— Onde foi ele buscar o dinheiro para financiar a operação?

— Ele diz que todo ele veio de contas do seminário.

— E tu acreditas nisso? Cada SS que Hudal deu assistência precisava de numerário, bilhete de navio, um visto e uma vida nova num pais estrangeiro, para não falar do custo de lhes providenciar asilo em Roma até que pudessem ser despachados. Pensa-se que Hudal ajudou centenas de homens das SS desta forma. Isso representa muito dinheiro, Luigi: centenas de milhar de dólares. A mim custa-me acreditar que Anima tivesse esse tipo de trocos por ai.

— Então assumes que alguém lhe deu dinheiro — disse Donati, enrolando habilmente espaguete no garfo. — Alguém como o Santo Padre, por exemplo.

— O dinheiro teve de vir de algum lado.

Donati pousou o garfo e cruzou os braços, pensativo.

— Há provas que o bispo Hudal recebeu, de fato, fundos do Vaticano para pagar o seu trabalho com refugiados.

— Eles não eram refugiados, Luigi. Pelo menos, não todos. Muitos deles eram culpados de crimes indescritíveis. Estás a dizer que Pio não fazia ideia que Hudal estava a ajudar criminosos procurados a escapar à justiça?

— Digamos apenas que, com base nas provas documentais e testemunho de sobreviventes, será muito difícil provar essa acusação.

— Não sabia que tinhas estudado lei canônica, Luigi. — Gabriel repetiu a pergunta, devagar, com uma ênfase acusatória nas palavras relevantes. — O papa sabia que Hudal estava a ajudar criminosos de guerra a escapar à justiça?

— Sua Santidade opôs-se aos julgamentos de Nuremberg porque acreditava que serviam apenas para enfraquecer os alemães e encorajar os comunistas. Ele acreditava igualmente que os Aliados andavam atrás de vingança e não de justiça. É bem possível que o Santo Padre soubesse que o bispo Hudal estivesse a ajudar nazistas e que aprovasse. Provar essa contenda é, no entanto, um outro assunto. — Donati apontou os dentes do seu garfo para a massa intata de Gabriel. — É melhor comeres isso antes que arrefeça.

— Lamento, mas perdi o apetite.

Donati mergulhou o seu garfo na massa de Gabriel.

— Então o que é que este indivíduo Radek alegadamente fez? Gabriel deu uma breve sinopse da ilustre carreira nas SS do Sturtnbannführer Erich Radek, começando com o seu trabalho para o setor de emigração judaica de Adolf Eichmann em Viena e terminando com o seu comando da Aktion 1005. No final da exposição de Gabriel, também Donati tinha perdido o apetite.

— Eles acreditavam mesmo que conseguiam esconder todas as provas de um crime tão imenso?

— Não tenho certeza se eles acreditavam ser possível, mas numa larga escala tiveram sucesso. Por causa de homens como Erich Radek, nunca saberemos quantas pessoas realmente pereceram na Shoah.

Donati contemplou o seu vinho.

— O que é que queres saber sobre a ajuda do bispo Hudal a Radek?

— Podemos assumir que Radek precisava de um passaporte. Para isso, Hudal teria recorrido à Cruz Vermelha Internacional. Eu quero saber o nome nesse passaporte. Radek também precisaria de um sítio para ir. Teria precisado de um visto. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sei que foi há muito tempo, mas o bispo Hudal mantinha registros, não mantinha?

Donati acenou lentamente.

— Os papéis privados do bispo Hudal estão guardados nos arquivos de Anima. Como deves calcular estão selados.

— Se há alguém em Roma que possa quebrar o selo, és tu, Luigi.

— Não podemos simplesmente irromper pela Anima e pedir para ver os papéis do bispo. O atual reitor é o bispo Theodor Drexler, e não é nenhum parvo. Vamos precisar de uma desculpa, um tema de capa, como se diz em sua linguagem.

— Temos um.

— Qual é?

— A Comissão Histórica.

— Estás a sugerir que digamos ao reitor que a Comissão requisitou os papéis de Hudal?

— Precisamente.

— E se ele recusar?

— Então eu apresento-me.

— E quem é suposto seres?

Gabriel alcançou o seu bolso e retirou um cartão de identificação plastificado, completo com fotografia.

— Shmuel Rubenstein, professor de religião comparativa na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Donati devolveu o cartão a Gabriel e abanou a cabeça.

— Theodor Drexler é um teólogo brilhante. Ele vai querer arrastar-te para uma discussão, talvez algo sobre as raízes comuns das religiões mais antigas no mundo ocidental. Estou bastante confiante que te vais espalhar ao comprido, e o bispo vai desmascarar-te.

— É sua função garantir que isso não aconteça.

— Sobrestimas as minhas capacidades, Gabriel.

— Telefone, Luigi. Preciso ver os papéis do bispo Hudal.

— Vou fazê-lo, mas primeiro tenho uma pergunta. Por quê? Donati, depois de ouvir a resposta de Gabriel, digitou um número no celular e pediu que o passassem a Anima.

 

19

 

ROMA

 

 

A IGREJA DE Santa Maria deli"Anima fica localizada no Centro Storico, a oeste da Piazza Navona.

Durante quatro séculos foi a igreja alemã em Roma. O papa Adriano VI, filho de um construtor naval alemão de Utrech e o último papa não italiano antes de João Paulo II, está enterrado numa magnífica tumba à direita do altar principal. Pela Via delia Pace chega-se ao seminário adjacente. E foi aí, nas sombras frias do pátio de entrada, que se encontraram com o bispo Theodor Drexler na manhã seguinte.

O monsenhor Donati cumprimentou-o num excelente alemão de sotaque italiano, e apresentou Gabriel como "o instruído professor Shmuel Rubenstein da Universidade Hebraica". Drexler estendeu a mão num ângulo que por instantes deixou Gabriel na dúvida se deveria apertá-la ou beijar o anel. Após uma breve hesitação, deu-lhe uma firme sacudidela. A pele era fria como mármore de igreja.

O reitor acompanhou-os escada acima até a um modesto escritório repleto de livros. A sua sotaina murmurou quando se sentou na enorme cadeira na zona de estar. A grande cruz peitoral de ouro brilhava com a luz solar que entrava obliquamente pelas altas janelas. Ele era baixo e bem alimentado, perto dos setenta, com uma delicada auréola de cabelo branco e bochechas extremamente rosadas. Os cantos da boca estavam sempre subidos num sorriso — mesmo agora, que estava claramente descontente — e os seus pálidos olhos azuis brilhavam com uma inteligência condescendente. Era um rosto que conseguia confortar os doentes e lançar o medo de Deus num pecador. Monsenhor Donati estava certo. Gabriel tinha de ter cuidado.

Donati e o bispo passaram alguns minutos a trocar elogios sobre o Santo Padre.

O bispo informou Donati que rezava pela continuação da boa saúde do pontífice, enquanto Donati anunciou que Sua Santidade estava extraordinariamente satisfeita com o trabalho do bispo Drexler na Anima. Ele referia-se ao bispo como "Sua Graça" tantas vezes quanto possível. No final da troca de elogios, Drexler estava tão engraxado que Gabriel temia que escorregasse pela cadeira.

Quando monsenhor Donati mencionou finalmente o propósito da sua visita ao Anima, o estado de espírito de Drexler enegreceu, como se uma nuvem passasse em frente ao Sol, embora o seu sorriso se mantivesse firme.

— Não consigo perceber como é que uma investigação polêmica aos registros do trabalho com refugiados alemães do bispo Hudal depois da guerra irá ajudar no processo de reparação entre católicos romanos e judeus.

A sua voz era suave e seca e o seu alemão de sotaque vienense.

— Uma justa e equilibrada investigação das atividades do bispo Hudal revelariam que ele também ajudou um bom número de judeus.

Gabriel inclinou-se para a frente. Era a altura de o instruído professor da universidade hebraica se meter na conversa.

— Está a dizer, Sua Graça, que o bispo Hudal escondeu judeus durante a rusga de Roma?

— Antes da rusga e depois. Existiam muitos judeus a viver dentro dos muros da Anima. Judeus batizados, claro.

— E aqueles que não eram batizados?

— Não podiam ser escondidos aqui. Não teria sido próprio. Foram enviados para outro lugar.

— Perdoe-me, Sua Graça, mas como é que se distingue exatamente um judeu batizado de um judeu normal?

Monsenhor Donati cruzou a perna e cuidadosamente alisou o vinco na perna da calça, um sinal para parar e desistir desta linha de inquérito. O bispo respirou fundo e respondeu à questão.

— Podem-lhes ter sido feitas algumas perguntas simples sobre assuntos da fé e da doutrina católica. Como recitar um pai-nosso ou uma ave-maria. Normalmente, torna-se facilmente perceptível quem está a dizer a verdade e quem está a mentir para conseguir asilo no seminário.

Um toque na porta satisfez o objetivo de Luigi Donati acabar com a troca de palavras. Um jovem noviço entrou na sala, carregando um tabuleiro de prata. Serviu chá a Donati e Gabriel. O bispo bebeu água quente com uma fina rodela de limão.

Quando o rapaz saiu, Drexler disse:

— Mas tenho certeza de que não está interessado nos esforços do bispo Hudal em proteger judeus dos nazistas, ou está, professor Rubinstein? Está interessado na ajuda que ele deu a oficiais alemães depois da guerra?

— Oficiais alemães não. Criminosos de guerra SS procurados.

— Ele não sabia que eram criminosos.

— Temo que essa defesa seja pouco crível, Sua Graça. O bispo Hudal era um empenhado antissemita e um defensor do regime de Hitler. Não faria sentido que ele de bom grado ajudasse austríacos e alemães depois da guerra, independentemente dos crimes que tivessem cometido?

— A sua oposição aos judeus era de natureza teológica, não social. Quanto ao seu apoio ao regime nazista, não ofereço defesa. O bispo Hudal condena-se pelas suas próprias palavras e escrita.

— E seu carro? — Gabriel acrescentou, fazendo bom uso do arquivo de Rivlin Moshe. — O Bispo Hudal usava a bandeira da união do Reich em sua limusine oficial. Não fazia segredo de suas simpatias.

Drexler sorveu a água com limão e virou o seu olhar gelado para Donati.

— Como muitos outros na Igreja, eu tinha as minhas preocupações sobre a Comissão Histórica do Santo Padre, mas mantive essas preocupações para mim mesmo, por respeito a Sua Santidade. Agora parece que a Anima está sendo analisada em microscópio. Eu tenho de impor limites. Não vou permitir que a reputação desta grande instituição seja arrastada pela lama da história.

Monsenhor Donati examinou a perna das suas calças por um momento, e levantou o olhar. Por baixo de calma exterior, o secretário papal estava a ferver com a insolência do reitor. O bispo tinha esticado a corda; Donati estava prestes a esticar de volta. De alguma forma, ele conseguiu manter a voz ao nível de um murmúrio de reza.

— Independentemente da sua preocupação com este assunto, Sua Graça, é o desejo do Santo Padre que seja concedido ao professor Rubinstein o acesso aos papéis do bispo Hudal.

Um silêncio profundo pairou sobre a sala. Drexler mexeu na cruz em seu peito, procurando uma maneira de escapar. Não havia nenhuma; resignação era a única conduta honrada. E deixou cair seu trunfo.

— Não desejo desafiar Sua Santidade neste assunto. Não me deixa outra saída senão cooperar, monsenhor Donati.

— O Santo Padre não esquecerá, bispo Drexler.

— Nem eu, Monsenhor.

Donati exibiu um sorriso irônico.

— É do meu conhecimento que os papéis pessoais do bispo estão aqui na Anima.

— É correto. Estão guardados em nossos arquivos. Vai levar alguns dias até serem totalmente localizados e organizados de forma a poderem ser lidos e compreendidos por um estudioso como o professor Rubinstein.

— É muito atencioso da sua parte, Sua Graça — disse monsenhor Donati — mas gostaríamos de vê-los agora mesmo.

 

ELE CONDUZIU-OS POR uma escada em caracol de pedra com degraus gastos pelo tempo, tão escorregadios como gelo. Ao fundo das escadas havia uma pesada porta de carvalho com armações de ferro forjado. Foi construída para suportar aríetes, mas provou não estar à altura de um esperto padre do Veneto e do "professor" de Jerusalém.

O bispo Drexler destrancou a porta e empurrou-a com o ombro. Tateou na escuridão por um momento e ligou um interruptor que ecoou um estalido agudo. Uma série de lâmpadas de teto, zumbindo e tinindo com o súbito fluxo de eletricidade, iluminaram uma longa passagem subterrânea com um teto de pedra em arco. Em silêncio, o Bispo acenou para entrarem.

A cave tinha sido construída para homens menores. O pequeno bispo conseguia andar pela passagem sem alterar a sua postura. Gabriel tinha apenas de inclinar a cabeça para evitar as lâmpadas, mas monsenhor Donati, com bem mais de um metro e oitenta de altura, era forçado a dobrar-se pela cintura como um corcunda. Aqui residia a memória institucional da Anima e do seu seminário, quatro séculos de registros baptismais, certificados de casamento e obituários. Os registros dos padres que aqui tinham servido e dos alunos que tinham estudado dentro das paredes do seminário. Parte estava guardada em armários de pinho, outra em grades ou em caixas de cartão. As novas adições eram guardadas em contentores de plástico modernos. O cheiro a umidade e a caruncho era penetrante, e um fio de água escorria, algures, das paredes. Gabriel, que tinha uma noção sobre os efeitos prejudiciais do frio e da umidade no papel, rapidamente perdeu a esperança de encontrar os papéis do bispo Hudal intatos. O bispo Drexler pairou sobre eles por um momento e ofereceu-se para ajudar na busca dos documentos. Monsenhor Donati deu-lhe uma pancadinha no ombro e disse que eles se arranjariam sozinhos. O bispo fez o sinal da cruz e afastou-se lentamente pela passagem arqueada.

 

FOI GABRIEL que, duas horas mais tarde, encontrou.

Erich Radek tinha chegado à Anima em 3 de março de 1948. Em 24 de maio, a Comissão de Ajuda Pontífice, a organização de ajuda a refugiados do Vaticano, emitira a Radek um documento de identificação do Vaticano com o número 9645/99 e o pseudônimo "Otto Krebs". Nesse mesmo dia, com a ajuda do bispo Hudal, Otto Krebs usou a sua identificação do Vaticano para conseguir um passaporte da Cruz Vermelha. Na semana seguinte foi-lhe emitido um visto de entrada pela República Árabe da Síria. Comprou passagens de classe econômica com dinheiro que lhe foi dado pelo bispo Hudal e zarpou do porto italiano de Gênova em fins de junho. Krebs levava quinhentos dólares no bolso. Um recibo do dinheiro, ostentando a assinatura de Radek, tinha sido guardado pelo bispo Hudal. O artigo final do arquivo de Radek era uma carta, com um selo sírio e o carimbo postal de Damasco, que agradecia ao bispo Hudal e ao Santo Padre pela ajuda e a promessa de que um dia a dívida seria paga. Estava assinada Otto Krebs.


20

ROMA

O BISPO DREXLER ESCUTOU a fita de áudio uma última vez, e ligou para um número em Viena.

— Receio que tenhamos um problema.

— Que tipo de problema?

Drexler contou ao homem em Viena sobre os visitantes à Anima nessa manhã: o monsenhor Donati e um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

— Como disse ele que se chamava?

— Rubinstein. Declarou ser um investigador da Comissão Histórica.

— Ele não era nenhum professor.

— Eu calculei isso, mas não estava em posição de contestar a sua boa-fé.

Monsenhor Donati é um homem muito poderoso dentro do Vaticano. Só há um mais poderoso, e é o herege para quem ele trabalha.

— De que andavam eles à procura?

— Documentação sobre a ajuda dada pelo bispo Hudal a um determinado refugiado depois da guerra.

Houve um longo silêncio antes de o homem colocar a questão seguinte.

— Já deixaram a Anima?

— Sim, há cerca de uma hora.

— Porque levaste tanto tempo a telefonar?

— Estava na esperança de conseguir fornecer alguma informação útil.

— E consegues?

— Sim, acredito que sim.

— Diz-me.

— O professor está hospedado no Hotel Cardinal na Via Giulia. E está registrado sob o nome de René Duran, com um passaporte canadense.

 

— PRECISO QUE PEGUE um relógio em Roma.

— Quando?

— Imediatamente.

— Onde está?

— Há um homem hospedado no Hotel Cardinal na Via Giulia. Está registrado como René Duran, mas às vezes usa o nome Rubinstein.

— Quanto tempo vai estar em Roma?

— Incerto, e é por isso que tens de partir agora. Há um voo da Alitalia que parte para Roma daqui a duas horas. Um lugar em classe executiva está reservado em teu nome.

— Se viajo de avião não poderei levar as ferramentas necessárias à reparação. Preciso de alguém que as forneça em Roma.

— Tenho o homem certo. — Recitou um número de telefone, que o Relojoeiro guardou na memória. — Ele é muito profissional e, acima de tudo, extremamente discreto. Não te pediria para ir ter com ele se não fosse.

— Tens uma fotografia deste cavalheiro Duran?

— Vai chegar ao teu fax dentro de instantes.

O Relojoeiro desligou o telefone e apagou as luzes da frente da loja. Em seguida entrou na oficina e abriu um armário. Dentro estava um pequeno saco de viagem, contendo uma muda de roupa e um estojo de barbear. O fax tocou. O Relojoeiro vestiu um sobretudo e um chapéu enquanto o rosto de um homem morto se ia revelando lentamente.

 

21

 

ROMA

 

 

GABRIEL SENTOU-SE NUMA MESA do Doney na manhã seguinte para tomar café. Trinta minutos depois um homem entrou e dirigiu-se ao bar. O cabelo parecia palha de aço e tinha cicatrizes de acne nas largas bochechas. A roupa era cara, mas de mau gosto. Bebeu dois expressos de uma golada e manteve um cigarro a arder durante o tempo todo. Gabriel olhou para o seu La Repubblica e sorriu. Shimon Pazner era o homem do Escritório em Roma há cinco anos, no entanto ainda não tinha perdido o aspecto andrajoso de um colono do Negev.

Pazner pagou a conta e dirigiu-se aos lavabos. Quando saiu, estava de óculos de sol postos, o sinal de que o encontro estava de pé. Dirigiu-se à porta giratória, parou na Via Veneto e em seguida virou para a direita e começou a caminhar. Gabriel deixou dinheiro na mesa e seguiu-o.

Pazner atravessou o Corso d'Itália e entrou na Villa Borghese. Gabriel caminhou ao longo do Corso um pouco afastado e entrou no parque por outro acesso.

Encontrou Pazner num caminho por entre as árvores e apresentou-se como René Duran de Montreal. Juntos caminharam em direção à Galleria. Pazner acendeu um cigarro.

— Há rumores de que teve uns apertos nos Alpes numa noite destas.

— Os rumores viajam depressa.

— O Escritório é como um círculo de costureiras judaicas, sabe disso. Mas você tem um problema mais grave. Lev ditou a sentença. Allon passou dos limites. O Allon, caso vos bata à porta, deve ser posto na rua. — Pazner cuspiu para o chão. — Estou aqui por lealdade ao Velho, não a si, Monsieur Duran. É bom que isto valha a pena.

Sentaram-se num banco de mármore no pátio da entrada da Galleria Borghese e olharam em direções opostas para manter as aparências. Gabriel contou a Pazner sobre o homem das SS, Erich Radek, que viajara para a Síria sob o nome de Otto Krebs.

— Ele não foi para Damasco estudar civilizações antigas —, disse Gabriel. — Os sírios deixaram-no entrar por alguma razão. Se ele estava próximo do regime, talvez apareça nos registros.

— Então quer que eu faça uma pesquisa para ver se o conseguimos situar em Damasco?

— Exatamente.

— E como espera que requisite esta pesquisa sem que Lev e a Segurança descubram? Gabriel olhou para Pazner como se se sentisse insultado pelas perguntas. Pazner retraiu-se.

— Tudo bem, digamos que talvez eu tenha uma moça nas Pesquisas que pode dar uma olhadela discreta nos registros por mim.

— Só uma moça?

Pazner encolheu os ombros e atirou com o seu cigarro para a gravilha.

— Mesmo assim ainda me parece um tiro no escuro. Onde está hospedado? Gabriel disse-lhe.

— Há um restaurante chamado La Carbonara no limite norte do Campo dei Fiori, perto da fonte.

— Eu conheço.

— Esteja lá às oito. Vai haver uma reserva no nome de Brunacci para as oito e meia. Se a reserva for para dois, significa que a pesquisa foi um fiasco. Se for para quatro, venha até a Piazza Farnese.

 

NA MARGEM OPOSTA do Tibre, numa pequena praça a alguns metros da Porta de Sant'Ana, o Relojoeiro estava sentado nas sombras da esplanada na tarde fria, sorvendo um cappuccino. Na mesa ao lado, um par de padres com sotaina envolviam-se numa animada conversa. O Relojoeiro, embora não falasse italiano, assumiu que eram burocratas do Vaticano. Um gato vadio corcunda roçava pelas pernas do Relojoeiro e suplicava por comida. Prendeu o animal entre os tornozelos e apertou, aumentando lentamente a pressão, até que o gato soltou um gemido estrangulado e fugiu a correr. Os padres olharam com desagrado; o Relojoeiro deixou dinheiro na mesa e afastou-se. Onde já se vira, gatos num café . Ele estava ansioso por concluir o seu assunto em Roma e regressar a Viena. Caminhou ao longo da Colunata de Bernini e parou por um momento para admirar a larga Via delia Conciliazione em direção ao Tibre. Um turista estendeu-lhe uma máquina fotográfica descartável e pediu-lhe, numa indecifrável língua eslava, que lhe tirasse uma fotografia em frente ao Vaticano. O austríaco, sem dizer uma palavra, apontou para o seu relógio de pulso, indicando que estava atrasado para um encontro e virou costas.

Atravessou a ampla e trovejante praça mesmo por trás da abertura da colunata. Ostentava o nome de um papa recente. O Relojoeiro, embora tivesse poucos interesses além de relojoaria antiga, sabia que este papa era uma figura controversa. Considerava bastante divertida a celeuma que pairava em seu redor. Então não tinha ajudado os judeus durante a guerra? Desde quando era da responsabilidade de um papa ajudar judeus? Eles eram, afinal de contas, os inimigos da Igreja.

Afastou-se do Vaticano em direção ao parque Janiculum por uma rua estreita cheia de sombras, alinhada por edifícios cor de ocre cobertos por um pó fino. O Relojoeiro caminhou pelo pavimento rachado, procurando pela morada que lhe tinha sido indicada nessa manhã por telefone. Encontrou-a, mas hesitou antes de entrar. Gravado no vidro coberto de pó estavam as palavras ARTICOLI RELIGIOSI. Por baixo, em letras menores, estava o nome GIUSEPPE MONDIANI. O Relojoeiro consultou o pedaço de papel onde tinha escrito a morada. Número 22 Via Borgo Santo Spirito. Tinha vindo ao local certo.

Encostou a cara ao vidro. A sala do outro lado estava repleta de crucifixos, estátuas da Virgem, gravuras de santos mortos há muito, rosários e medalhas, todos certificados com a bênção do próprio papa. Tudo parecia estar coberto pelo mesmo pó fino da rua. O Relojoeiro, embora educado num rigoroso lar católico austríaco, ponderava o que levaria uma pessoa a rezar para uma imagem. Ele já não acreditava em Deus ou na Igreja, nem acreditava no destino, intervenção divina, vida depois da morte ou na sorte. Acreditava que os homens controlavam o rumo das suas vidas, como o mecanismo de um relógio controlava o movimento dos ponteiros.

Abriu a porta e entrou escoltado pelo tilintar de um pequeno sino. Um homem surgiu de uma sala interior, vestindo camiseta bege com gola em V, calça marrom sem vinco. No alto da sua cabeça, o seu cabelo frágil e fino estava penteado com gel. O Relojoeiro, embora a vários passos de distância, sentia o cheiro de sua desagradável loção pós-barba. Refletiu se os homens do Vaticano sabiam que seus abençoados artigos religiosos eram vendidos por tão repugnante criatura.

— Posso ajudá-lo?

— Estou à procura do Signor Mondiani.

Ele mexeu a cabeça dando a entender ao Relojoeiro que tinha encontrado o homem que procurava. Um sorriso deslavado revelou que lhe faltavam vários dentes.

— Você deve ser o cavalheiro de Viena — disse Mondiani. — Reconheço a voz.

Ele estendeu a mão. Estava esponjosa e úmida, como o Relojoeiro temia. Mondiani trancou a porta da frente e pendurou um aviso na janela escrito em inglês e em italiano que informava que a loja estava fechada. Em seguida, conduziu o Relojoeiro por uma porta e umas escadas de madeira raquíticas. No alto dos degraus havia um pequeno escritório. As cortinas estavam corridas e no ar sentia-se o aroma de um perfume de mulher. E mais qualquer coisa azeda, tipo amoníaco. Mondiani gesticulou em direção ao sofá. O Relojoeiro olhou para baixo; uma imagem passou-lhe pelos olhos. Continuou de pé. Mondiani encolheu os ombros estreitos.

— Como queira.

O italiano sentou-se à mesa, ajeitou uns papéis e alisou o cabelo. Estava pintado de um laranja escuro não natural. O Relojoeiro, a ficar careca e com uma franja mal cortada, parecia estar a pô-lo mais autoconsciente do que já estava.

— O seu colega de Viena disse que precisava de uma arma.

Mondiani abriu uma gaveta da mesa e retirou um artigo escuro com acabamento metálico, e colocou-o respeitosamente no seu protetor de mesa manchado de café, como se estivesse a lidar com uma relíquia sagrada. — Penso que vai achar isto satisfatório.

O Relojoeiro estendeu a mão. Mondiani colocou-lhe a arma na palma.

— Como pode ver, é uma Glock nove milímetros. Penso que está familiarizado com a Glock. Afinal de contas é uma arma austríaca.

O Relojoeiro levantou os olhos da arma.

— Isto também foi abençoado pelo Santo Papa como o resto do seu inventário?

Por sua expressão sinistra, Mondiani não achou graça. Alcançou a gaveta aberta e exibiu uma caixa de munição.

— Precisa de um carregador extra?

O Relojoeiro não pretendia entrar num tiroteio, mas ainda assim, uma pessoa sente-se sempre melhor com um carregador extra no bolso da calça. Mondiani perguntou-lhe se precisava de silenciador. O Relojoeiro, com o olhar baixo, acenou afirmativamente.

— Ao contrário da arma, isto não é fabricado na Áustria. Foi feito mesmo aqui — disse Mondiani com orgulho excessivo. — Em Itália. É muito eficaz. A arma vai emitir pouco mais que um sussurro quando disparada.

O Relojoeiro segurou o silenciador em frente ao seu olho direito e olhou pelo cano. Satisfeito com a perfeição, colocou-o na mesa, junto das outras coisas.

— Precisa de mais alguma coisa?

O Relojoeiro lembrou ao Signor Mondiani que tinha requisitado uma motocicleta.

— Ah sim, a moto — disse Mondiani, levantando um conjunto de chaves. — Está estacionado lá fora. Tem dois capacetes, como requisitado, de cores diferentes. Escolhi preto e vermelho. Espero que seja satisfatório.

O Relojoeiro olhou para o relógio. Mondiani percebeu a dica e apressou as coisas. Num bloco de argolas, com um lápis mastigado, preparou a fatura.

— A arma é limpa e não identificável — disse ele, enquanto rabiscava o papel.

— Eu sugiro que a deite para o Tibre quando terminar. A Polizia di Stato nunca a encontrará.

— E a motocicleta?

— Roubada — disse Mondiani. — Deixe-a num local público com as chaves na ignição, numa piazza movimentada, por exemplo. Tenho certeza de que encontrará um novo dono em poucos minutos.

Mondiani desenhou um círculo à volta do montante final e girou o bloco para que o Relojoeiro pudesse ver. Estava em euros, graças a Deus. O Relojoeiro, apesar de ser ele próprio um homem de negócios, sempre detestara fazer transações em liras.

— Um pouco exagerado, não lhe parece Signor Mondiani? Mondiani encolheu os ombros e regalou o Relojoeiro com outro sorriso hediondo. O Relojoeiro pegou no silenciador e enroscou-o cuidadosamente na ponta do cano.

— Este encargo aqui — disse o Relojoeiro batendo levemente no bloco de argolas com o indicador da mão que tinha livre —, é o quê?

— Isso são os meus honorários de corretagem — conseguiu dizer Mondiani com uma expressão séria.

— Está a cobrar-me pela Glock três vezes mais do que eu pagaria na Áustria. Isso, Signor Mondiani, são os seus honorários de corretagem.

Mondiani cruzou os braços provocadoramente.

— É o estilo italiano. Quer a arma ou não?

— Sim — disse o Relojoeiro —, mas a um preço razoável.

— Lamento, mas esta é a tarifa atual em Roma.

— Para um italiano ou só para estrangeiros?

— Seria melhor se fosse tratar das suas coisas a outro lado — Mondiani estendeu a mão. Estava a tremer. — Entregue-me a arma, por favor, e saia.

O Relojoeiro suspirou. Talvez fosse melhor assim. Signor Mondiani, apesar das garantias do homem de Viena, era dificilmente do gênero que inspirasse confiança. O Relojoeiro, num movimento súbito, enfiou o carregador na Glock e engatilhou a primeira bala. As mãos de Signor Mondiani levantaram-se defensivamente. Os tiros perfuraram as palmas antes de atingir a cara. O Relojoeiro, enquanto deslizava para fora do escritório, percebeu que Mondiani tinha sido honesto sobre pelo menos uma coisa.

A arma, quando disparada, emitia pouco menos que um sussurro.

 

SAIU DA LOJA e trancou a porta. Já estava quase escuro; o domo da Basilica esbatia-se de encontro ao céu enegrecido. Inseriu a chave na ignição da motocicleta e ligou o motor. Pouco depois, acelerava pela Via delia Conciliazione abaixo em direção aos muros cor de lama do Gastel San Angelo. Acelerou através do Tibre e seguiu caminho pelas ruas estreitas do Centro Storico, até chegar à Via Giulia. Estacionou à porta do Hotel Cardinal, retirou o capacete, entrou no recepção, virou para a direita e entrou num pequeno bar estilo catacumba com paredes decoradas de antigo granito romano.

Pediu uma Coca-Cola ao garçom de balcão — estava confiante de que conseguiria cumprir esta proeza sem denunciar o seu sotaque austríaco — e transportou a bebida até uma pequena mesa adjacente à passagem entre a recepção e o bar. Para passar o tempo, foi comendo pistácios e folheando um molho de jornais italianos.

Às sete e meia um homem saiu do elevador: cabelo preto curto, cinza nas têmporas, olhos muito verdes. Deixou a chave do quarto na recepção e saiu para a rua.

O Relojoeiro terminou a Coca-Cola, e saiu também. Atirou a perna por cima da moto do Signor Mondiani e ligou o motor. O capacete preto estava pendurado no guidom pelo fecho. O Relojoeiro retirou o capacete vermelho da bagageira na traseira e colocou-o. Em seguida, pôs o preto na bagageira e fechou a tampa. Levantou o olhar e observou a figura do homem de olhos verdes afastando-se pela escuridão da Via Giulia. Rodou ligeiramente o acelerador e avançou lentamente atrás dele.

 

22

 

 

ROMA

 

 

A RESERVA NO La Curbonara era para quatro. Gabriel caminhou até a Piazza Farnese e encontrou Pazner à espera junto da embaixada francesa. Caminharam até a Pompière e sentaram-se numa mesa sossegada no fundo. Pazner pediu vinho tinto e polenta e entregou a Gabriel um envelope branco.

— Levou algum tempo — disse Pazner —, mas eventualmente encontraram uma referência a Krebs num relatório sobre um nazista chamado Alois Brunner. Sabe alguma coisa sobre Brunner?

— Era um assessor de topo de Eichmann — respondeu Gabriel um perito em deportações, altamente qualificado na arte de mandar judeus para os guetos e depois para as câmaras de gás. Trabalhou com Eichmann na deportação de judeus austríacos. Mais tarde, na guerra, tratou de deportações em Salônica e Vichy, França.

Pazner, claramente impressionado, deu uma garfada num pedaço de polenta.

— E depois da guerra fugiu para a Síria, onde viveu sob o nome de George Fischer e trabalhou como consultor do regime. Tanto quanto se sabe, os modernos serviços secretos e de segurança da Síria foram criados por Alois Brunner.

— Krebs trabalhava para ele?

— Parece que sim. Abra o envelope. E, já agora, tenha o cuidado de tratar esse relatório com todo o respeito que merece. O homem que o conseguiu pagou um preço muito alto. Repare no nome de código do agente. "MENASHE" ERA o nome de código de um lendário espião israelense chamado Eli Cohen. Nascido no Egipto em 1924, Cohen emigrou para Israel em 1957 e imediatamente se voluntariou para trabalhar nos serviços secretos israelenses. Os resultados dos testes psicotécnicos foram divergentes. Os avaliadores consideraram-no extremamente inteligente e abençoado com uma extraordinária memória para pormenores. Mas também descobriram um perigoso traço de "exagerada arrogância" e previram que Cohen iria assumir riscos desnecessários no campo.

A ficha de Cohen foi ganhando pó até 1960, quando a crescente tensão ao longo da fronteira com a Síria levou os homens dos serviços secretos israelenses a decidir que precisavam desesperadamente de um espião em Damasco. Uma longa busca de candidatos não produziu efeitos práticos . Então a procura foi alargada para incluir aqueles que tinham sido rejeitados por outras razões. A ficha de Cohen foi outra vez aberta, e em breve, ele estava a ser preparado para uma missão que iria acabar por matá-lo.

Após seis meses de treino intensivo, Cohen, fazendo-se passar por Kamal Amin Thabit, foi enviado para a Argentina para elaborar a sua biografia de disfarce: Um bem-sucedido homem de negócios sírio que vivera no estrangeiro toda a sua vida e que apenas queria regressar à sua terra natal. Conquistou a confiança da ampla comunidade síria de expatriados de Buenos Aires e atraiu muitas amizades importantes, incluindo uma com o Major Amin al-Hafez, que mais tarde se viria a tornar presidente da Síria.

Em Janeiro de 1962, Cohen mudou-se para Damasco e abriu um negócio de importações-exportações. Devidamente apresentado pela comunidade síria de Buenos Aires, rapidamente se tornou uma figura popular da cena social e política de Damasco, desenvolvendo amizades com altos cargos militares e do Ba'ath, o partido do governo. Oficiais do exército sírio levaram Cohen em visitas guiadas a instalações militares e até lhe mostraram as fortificações nos estratégicos Montes Golan. Quando o Major al-Hafez se tornou presidente, especulava-se que "Kamal Amin Thabit" podia estar na lista para uma pasta ministerial, talvez até ministro da Defesa.

Os serviços secretos sírios não faziam ideia que o afável Thabit era na realidade um espião israelense que enviava regularmente relatórios aos seus chefes do outro lado da fronteira. Relatórios urgentes eram enviados por transmissões de rádio em código de Morse. Relatórios mais longos e detalhados eram escritos em tinta invisível, escondidos em contentores de mobília damascena e enviados para um ponto israelense na Europa. As informações fornecidas por Cohen deram aos estrategistas militares israelenses uma extraordinária visão sobre a situação política e militar em Damasco.

No final, os avisos sobre a aptidão de Cohen para o risco provaram estar corretos. Foi ficando descuidado no uso do rádio, transmitindo a horas regulares todas as manhãs ou enviando múltiplas transmissões num só dia. Enviava saudações à sua família e lamentava-se das derrotas de Israel nos campeonatos internacionais de futebol. As forças de segurança sírias, detentoras das últimas novidades russas de detecção de ondas de rádio, empreenderam uma busca ao espião israelense em Damasco.

Encontraram-no a 18 de Janeiro de 1965, irrompendo pelo seu apartamento enquanto enviava uma mensagem aos seus controladores em Israel. O enforcamento de Cohen, em Maio de 1965, foi transmitido em direto na televisão Síria.

Gabriel leu o primeiro relatório à luz de uma tremeluzente vela de mesa. Fora enviado pelo canal europeu em Maio de 1963. No meio de num relatório detalhado sobre a política interna e intrigas do partido Ba'ath estava um parágrafo dedicado a Alois Brunner:

Conheci "Herr Fischer" num cocktail promovido por um superior hierárquico do partido Ba'ath. O aspecto de Herr Fischer não era dos melhores, tinha perdido recentemente vários dedos de uma mão por causa de uma carta armadilhada no Cairo. Atribuiu as culpas do atentado que sofreu a imundos judeus vingativos de Tel Aviv. Reivindicava que o trabalho que estava a fazer no Egipto era mais do que suficiente para ajustar contas com os agentes israelenses que o tinham tentado assassinar. Herr Fischer estava acompanhado, nessa tarde, por um homem chamado Otto Krebs. Nunca tinha visto Krebs antes. Era alto e de olhos azuis, de aparência muito germânica, ao contrário de Brunner. Bebeu whisky copiosamente e parecia vulnerável, um homem que talvez estivesse a ser chantageado ou manipulado de alguma forma.

— É só isto? — perguntou Gabriel. — Uma só vez num cocktail?

— Aparentemente sim, mas não fique desencorajado — Cohen deu-lhe mais uma pista. — Veja o próximo relatório.

Gabriel baixou o olhar e leu.

Eu vi "Herr Fischer" na semana passada numa recepção no Ministério da Defesa. Perguntei-lhe pelo seu amigo, Herr Krebs. Disse-lhe que Krebs e eu tínhamos discutido um projeto comercial e eu estava desapontado por não ter ouvido mais falar dele. Fischer disse que isso não o surpreendia uma vez que Krebs se tinha mudado recentemente para a Argentina.

Pazner serviu a Gabriel um copo de vinho.

— Ouvi dizer que Buenos Aires é encantador nesta altura do ano.

 

 

GABRIEL E PAZNER separaram-se na Piazza Farnese; Gabriel caminhou sozinho pela Via Giulia em direção ao seu hotel. A noite esfriara, e estava muito escuro na rua. O silêncio profundo, combinado com o áspero piso de pedra por baixo dos seus pés, permitia imaginar como teria sido Roma há um século e meio atrás, quando os homens do Vaticano ainda governavam com supremacia. Pensou em Erich Radek, caminhando por esta mesma rua, enquanto esperava pelo seu passaporte e bilhete para a liberdade.

Mas terá sido mesmo Radek que veio para Roma?

Segundo os registros do bispo Hudal, Radek veio para Anima em 1948 e partiu pouco depois como Otto Krebs. Eli Cohen colocou "Krebs" em Damasco em finais de 1963. Em seguida Krebs, segundo o relatório, mudou-se para a Argentina. Os fatos expuseram uma relevante e talvez inconciliável contradição do caso contra Ludwig Vogel. De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel vivia na Áustria em 1946, trabalhando para a autoridade de ocupação americana. Se isso fosse verdade, então Vogel e Radek não podiam ser a mesma pessoa. Como se explica então que Max Klein afirme que Vogel esteve em Birkenau? O anel que Gabriel tirara do chalé de Vogel na Alta Áustria? 1005, bom trabalho, Heinrich... O relógio de pulso? Para Erich, em adoração, Mônica... Teria outro homem vindo para Roma em 1948 fazendo-se passar por Erich Radek? E se sim, porquê!

Muitas questões, pensou Gabriel, e apenas um rasto para seguir: Fischer disse que isso não o surpreendia uma vez que Krebs se tinha mudado recentemente para a Argentina. Pazner estava certo. Gabriel não tinha escolha senão continuar a busca na Argentina.

O pesado silêncio foi quebrado pelo zunido de inseto de uma scooter. Gabriel olhou por sobre o ombro enquanto a moto fazia uma curva e entrava na Via Giulia. Então, acelerou subitamente na direção dele. Gabriel parou de andar e retirou as mãos dos bolsos do casaco. Tinha uma decisão para tomar. Ficar quieto como um romano normal ou virar-se e correr? A decisão foi tomada por ele, alguns segundos depois, quando o motoqueiro de capacete alcançou a frente do casaco e sacou uma pistola com silenciador.

 

 

GABRIEL JOGOU-SE numa rua estreita enquanto a pistola cuspia três projeteis de fogo. Três balas atingiram a esquina de pedra de um prédio. Gabriel baixou a cabeça e começou a correr.

a moto ia demasiado rápido para conseguir fazer a curva. Derrapou em frente à entrada da rua, e resvalou ao dar a volta, concedendo a Gabriel alguns segundos importantes para ganhar distância entre ele e o seu atacante. Virou à direita, para uma rua paralela à Via Giulia, e fez uma súbita viragem à esquerda. O seu objetivo era seguir para o Corso Vittorio Emanuele II, uma das maiores vias públicas de Roma. Haveria trânsito na estrada e peões nos passeios. No Corso conseguiria encontrar um local para se esconder.

O gemido da moto aproximava-se. Gabriel olhou sobre o ombro. A moto ainda estava a segui-lo e a ganhar distância a um ritmo alarmante. Lançou-se num impetuoso sprint, esbracejando, com a respiração ofegante e rouca. A luz do farol dianteiro alcançou-o. Viu a própria sombra nas pedras da calçada à sua frente como um louco a debater-se.

Uma segunda moto entrou na rua diretamente em frente a ele e travou numa derrapagem. O motoqueiro de capacete sacou de uma arma. Então é assim que vai ser — uma armadilha, dois assassinos, sem esperança de escapar. Sentiu-se como um alvo num clube de tiro, à espera de ser derrubado.

Continuou a correr, em direção à luz. Os seus braços levantaram, e ele olhou para as próprias mãos, contorcidas e tensas, as mãos de uma figura atormentada numa pintura expressionista. Percebeu que estava a gritar. O som ecoava do estuque e tijolos dos edifícios envolventes e vibrava nos seus próprios ouvidos, para que deixasse de ouvir o som da motocicleta nas suas costas. Uma imagem surgiu-lhe na mente: A sua mãe na beira de uma estrada polonesa com a arma de Erich Radek encostada à têmpora. Só então percebeu que estava a gritar em alemão. A língua dos seus sonhos. A língua dos seus pesadelos.

O segundo assassino apontou a arma e levantou o visor do capacete.

Gabriel conseguia ouvir o som do seu próprio nome.

— Abaixe-se! Abaixe-se! — Gabriel percebeu que era a voz de Chiara. Atirou-se no chão.

Os tiros de Chiara voaram por cima da cabeça dele e atingiram o motociclista que se aproximava. A moto perdeu o controle e bateu na parede de um prédio. O assassino foi projetado por cima do guidom e rolou pelas pedras do chão. A arma foi parar a alguns centímetros de Gabriel. Ele alcançou-a.

— Não, Gabriel! Deixa! Depressa!

Olhou para cima e viu Chiara estendendo-lhe a mão. Subiu no banco de trás da moto e agarrou-se quadris dela como uma criança enquanto a moto rugia Corso acima em direção ao rio.

 

 

SHAMRON TINHA UMA regra quanto a apartamentos seguros: Não podia haver contato físico entre agentes de sexo oposto. Nessa tarde, num apartamento do Escritório no Norte de Roma, perto de uma curva larga do Tibre, Gabriel e Chiara violaram a regra de Shamron com uma intensidade nascida do medo da morte. Só depois Gabriel se preocupou em perguntar a Chiara como o tinha encontrado.

— Shamron disse-me que vinhas a Roma. Pediu-me para te proteger. Concordei, claro. Tenho um interesse muito pessoal na continuidade de sua sobrevivência. Gabriel pensou como falhara em perceber que estava a ser seguido por um deusa italiana de quase um metro e oitenta, mas na realidade, Chiara Zolli era muito competente no seu trabalho.

— Quis almoçar com você em Piperno — disse ela, trocista. — Mas não pensei que fosse muito boa ideia.

— O que é que sabes sobre o caso?

— Apenas que os meus maiores receios sobre Viena acabaram por se tornar realidade. Porque não me contas o resto?

Foi o que fez, começando pelo voo de Viena e terminando com a informação que tinha recolhido essa noite de Shimon Pazner.

— Então quem enviou aquele homem a Roma para te matar?

— Penso que é seguro assumir que foi a mesma pessoa que arquitetou o assassinato de Max Klein.

— Como te encontraram aqui?

Gabriel já tinha colocado essa questão a si mesmo. As suas suspeitas recaíam sobre o reitor austríaco de bochechas rosadas da Anima, o Bispo Theodor Drexler.

— Então aonde vamos agora? — Perguntou Chiara.

— Vamos?

— Shamron me mandou proteger você. Quer que desobedeça a uma ordem direta do Memuneht?

— Ele disse para me vigiar em Roma.

— Era uma missão em aberto — respondeu ela em tom provocador.

Gabriel deixou-se estar por um momento, acariciando-lhe o cabelo.

Na realidade, seria bom um companheiro de viagem e um segundo par de olhos no campo. Dado os óbvios riscos envolvidos, ele preferia qualquer um que não fosse a mulher que amava. No entanto, ela provara ser um parceiro precioso. Havia um telefone seguro na mesa de cabeceira. Ligou para Jerusalém e acordou Moshe Rivlin de um sono pesado. Rivlin deu-lhe o nome de um homem em Buenos Aires, juntamente com um número de telefone e um endereço no bairro San Telmo. Em seguida, Gabriel telefonou para as Aerolineas Argentinas e reservou dois lugares em classe executiva num voo da tarde seguinte. Pousou o receptor. Chiara descansou a cabeça em seu peito.

— Estava gritando alguma coisa naquele beco quando corria em direção a mim — disse ela. — Lembra do que estava dizendo?

Não se lembrava. Era como se tivesse acordado incapaz de se lembrar dos sonhos que tinham atormentado seu sono.

— Você estava chamando por ela — disse Chiara.

— Quem?

— Sua mãe.

Ele lembrou-se da imagem que lhe tinha passado pela mente durante a alucinante perseguição do homem na moto. Pensou que seria possível ter chamado pela mãe. Na verdade, tinha pensado pouco em outras coisas, depois de ler o testemunho dela.

— Tem certeza de que foi Erich Radek que assassinou aquelas pobres moças na Polônia?

— Tanta certeza quanto se pode ter sessenta anos depois do fato.

— E se Ludwig Vogel for na realidade Erich Radek?

 Gabriel levantou o braço e desligou o abajur.


CONTINUA

11

VIENA

— SE ESTÁ PENSANDO em escapar, vai descobrir que todas as saídas estão bloqueadas e ao fundo das escadas um homem muito grande vai apreciar a oportunidade de o subjugar.

O corpo de Kruz virou-se ligeiramente. Fixou o olhar em Gabriel, como um esgrimista, por cima do ombro e levantou a palma da mão num gesto apaziguador.

— Não há necessidade de isto se descontrolar. Entre e feche a porta. A sua voz era a mesma, sem energia e anormalmente calma, um cangalheiro a ajudar um cliente enlutado a escolher um caixão. Envelhecera treze anos — havia mais algumas rugas em volta da boca astuta e alguns quilos extra na sua figura delgada — e, avaliando pela roupa bem feita e comportamento arrogante, fora promovido. Gabriel manteve o seu olhar fixo nos olhos negros de Kruz. Conseguia sentir a presença de outro homem nas suas costas. Atravessou a entrada e fechou a porta atrás de si. Ouviu um baque, seguido de um praguejar resmungado em alemão. Kruz levantou a palma da mão novamente. Desta vez era uma ordem para Gabriel parar.

— Está armado?

Gabriel abanou a cabeça penosamente.

— Importa-se que eu verifique? — Perguntou Kruz. — A sua reputação o persegue.

Gabriel levantou os braços. O oficial que estava por trás dele no bali entrou no quarto e revistou-o. Era profissional e muito minucioso, começando pelo pescoço e terminando nos calcanhares. Kruz parecia desiludido com o resultado.

— Tire o casaco e esvazie os bolsos.

Gabriel hesitou e foi instigado com um doloroso golpe no rim. Desapertou o casaco e entregou-o a Kruz, que revistou os bolsos e sentiu o forro de um compartimento falso.

— Vire os bolsos da calça para fora.

Gabriel obedeceu. Resultado: algumas moedas e o canhoto de um bilhete de trólei. Kruz olhou para os dois oficiais que seguravam o colchão e ordenou-lhes que refizessem a cama.

— O Sr. Allon é um profissional — disse.

— Não vamos encontrar nada.

Os oficiais deixaram cair o colchão no estrado. Kruz, com um gesto, disse-lhes que abandonassem o quarto. Sentou-se novamente à mesa e apontou para a cama.

— Ponha-se à vontade. Gabriel continuou de pé.

— Há quanto tempo está em Viena?

— Diga-me você?

Kruz reconheceu o elogio profissional com um sorriso seco.

— Chegou num voo proveniente do Aeroporto Ben-Gurion na noite anterior à de ontem. Depois de dar entrada no hotel, prosseguiu para o Hospital Geral de Viena, onde passou várias horas com o seu amigo Eli Lavon.

Kruz ficou em silêncio. Gabriel ponderou o quanto mais ele saberia sobre as suas atividades em Viena. Saberia dos encontros com Max Klein e Renate Hoffmann? O seu encontro com Ludwig Vogel no Café Central e a sua excursão a Salzkammergut? Kruz, mesmo que soubesse mais, não iria certamente dizer. Ele não era do tipo de mostrar os trunfos sem razão. Gabriel imaginava-o um jogador frio e calculista.

— Porque não me prendeu antes?

— Não o prendi agora. Kruz acendeu um cigarro.

— Estamos dispostos a esquecer a sua violação do nosso acordo porque assumimos que pudesse ter vindo a Viena para estar ao lado do seu amigo ferido. Mas rapidamente se tornou claro que pretendia conduzir uma investigação privada do atentado. Por razões óbvias, não posso permitir isso.

— Sim — concordou Gabriel —, por razões óbvias.

Kruz dispensou um momento a contemplar o fumo erguendo-se da ponta do cigarro.

— Tínhamos um acordo, Sr. Allon. Sob nenhuma circunstância deveria voltar a este pais. Não é bem-vindo aqui. Não é suposto aqui estar. Não me interessa se está transtornado por causa do seu amigo Eli Lavon. Esta investigação é nossa, e não precisamos da sua ajuda nem do seu serviço.

Kruz olhou para o relógio.

— Há um voo da El Al que parte dentro de três horas. Você vai embarcar nele. Eu faço-lhe companhia enquanto faz as malas.

Gabriel olhou em redor para as suas roupas espalhadas pelo chão. Levantou a tampa da sua mala e viu que o forro tinha sido cortado. Kruz encolheu os ombros:

— O que é que esperava?

Gabriel agachou-se e começou a apanhar os seus pertences. Kruz olhou para a rua pelas portadas francesas e fumou. Passado um momento, Kruz perguntou:

— Ela ainda está viva?

Gabriel voltou-se lentamente e cravou o seu olhar nos olhos pequenos e negros de Kruz.

— Está a referir-se à minha mulher?

— Sim.

Gabriel abanou a cabeça lentamente.

— Não fale da minha mulher, Kruz. Kruz sorriu secamente.

— Não vai começar a fazer ameaças novamente, pois não, Sr. Allon? Posso sentir-me tentado a levá-lo sob custódia para um interrogatório mais pormenorizado das suas atividades aqui.

Gabriel não disse nada. Kruz apagou o cigarro.

— Faça as malas, Allon. Não vai querer perder o avião.


PARTE DOIS

 

 

A Galeria dos Nomes


12

 

 

JERUSALÉM

 

 

AS LUZES DO Aeroporto Ben-Gurion pontuavam a escuridão da planície costeira. Gabriel encostou a cabeça à janela e observou a pista erguendo-se lentamente para se encontrar com ele. A pista alcatroada brilhava como vidro sob a chuva da noite. Enquanto o avião abrandava para parar, Gabriel viu o homem da King Saul Boulevard debaixo de um guarda-chuva na base das escadas. Garantiu que era o último passageiro a abandonar o avião.

Entraram no terminal por uma porta especial, usada por oficiais seniores do governo e dignitários de visita. O homem da sede era um discípulo de Lev, corporativo e de alta tecnologia, orientado na bolsa de valores e a crença de que homens de campo eram simplesmente objetos insensíveis para serem manipulados por seres superiores. Gabriel caminhava um passo à sua frente.

— O chefe quer ver-te.

— Não duvido, mas não durmo há dois dias e estou cansado.

— O chefe não quer saber se estás cansado. Quem é que pensas que és, Allon? Gabriel, mesmo em segurança no Aeroporto de Ben-Gurion, não apreciava o uso do seu nome verdadeiro. Voltou-se bruscamente. O homem da sede levantou os braços rendendo-se. Gabriel virou costas e continuou a andar. O homem da sede teve o bom senso de não o seguir.

Lá fora, a chuva caía forte no pavimento. Obra de Lev, sem dúvida. Gabriel procurou abrigo debaixo da praça de táxis e pensou para onde poderia ir. Não tinha residência em Israel; o Departamento era o seu único lar. Normalmente ficava num apartamento seguro ou na casa de campo de Shamron em Tiberíades.

Um Peugeot preto virou na rotunda. O peso da blindagem fazia-o deslocar-se rente ao chão sob uma dura suspensão. Parou em frente a Gabriel, a janela à prova de bala do banco de trás baixou. Gabriel cheirou a amarga essência familiar de tabaco turco. A seguir viu a mão, manchada pelo fígado e de veias azuis proeminentes, gesticulando com lassidão para que ele saísse da chuva. O CARRO LANÇOU-SE para a frente ainda antes de Gabriel ter tempo para fechar a porta. Shamron nunca foi de esperar. Apagou o cigarro em atenção a Gabriel e abriu as janelas por alguns segundos para purificar o ar. Quando as janelas se fecharam novamente, Gabriel contou-lhe a hostil recepção de Lev. Começou por falar com Shamron em inglês; mas, lembrando-se onde estava, mudou para hebraico.

— Parece que quer falar comigo.

— Sim, eu sei — disse Shamron.

— Também me quer ver a mim.

— Como é que ele ficou a saber de Viena?

— Parece que Manfred Kruz fez um telefonema de cortesia para a embaixada depois de sua deportação e fez um escândalo. Disseram-me que não foi bonito. O ministro dos Negócios Estrangeiros está furioso, e o último andar inteiro da King Saul Boulevard quer a minha cabeça, e sua.

— O que é que me podem fazer?

— Nada, o que faz de ti o meu cúmplice perfeito, isso e os teus óbvios talentos, claro.

O carro lançou-se para fora do aeroporto e virou para a autoestrada. Gabriel questionou-se porque estariam a ir na direção de Jerusalém, mas estava demasiado exausto para se ralar. Pouco depois, começaram a subir as Montanhas da Judeia. Sentiu-se o cheiro a eucalipto e pinho molhado. Gabriel olhou pela janela pingada de chuva e tentou lembrar-se da última vez que tinha pisado o seu país. Fora depois de ter caçado Tariq al-Hourani. Passara um mês num apartamento seguro mesmo por fora dos muros da cidade velha, recuperando de um ferimento de bala no peito. Fora há mais de três anos. Percebeu que as coisas que o ligavam a este lugar estavam a desaparecer. Ponderou se ele, como Francesco Tiepolo, morreria em Veneza e se sofreria a indignidade de um enterro em terra firme.

— Algo me diz que Lev e o ministro dos Negócios Estrangeiros vão ficar ligeiramente menos aborrecidos comigo quando descobrirem o que está por trás disto. Shamron ergueu um envelope.

— Parece que estiveste muito ocupado durante sua curta estada em Viena. Quem é Ludwig Vogel?

Gabriel, com a cabeça apoiada na janela, disse a Shamron tudo, começando pelo seu encontro com Max Klein, e terminando com o seu tenso confronto com Manfred Kruz no quarto de hotel. Shamron em breve estava a fumar outra vez, e embora Gabriel não conseguisse ver claramente o seu rosto no banco de trás da escura limusina, o velho homem estava na realidade a sorrir. Umberto Conti podia ter dado a Gabriel as ferramentas para se tornar um grande restaurador, mas Shamron era responsável pela sua memória infalível.

— Não admira que Kruz estivesse tão ansioso por te pôr fora da Áustria — disse Shamron.

— As Células de Combate Islâmico? Irrompeu num riso irônico.

— Que conveniente. O governo aceita a reivindicação de responsabilidade e varre o caso para debaixo do tapete como sendo um caso de terrorismo islâmico em solo austríaco. Dessa forma as pistas não chegam muito perto dos austríacos, ou de Vogel e Metzler, especialmente estando tão perto das eleições.

— Mas e os documentos do Staatsarchiv? Segundo os mesmos, Ludwig Vogel está impecavelmente limpo.

— Então por que colocou ele uma bomba no escritório de Eli e assassinou Max Klein?

— Não sabemos se ele fez alguma dessas coisas.

— É verdade, mas os fatos sugerem com certeza essa possibilidade. Podemos não conseguir provar em tribunal, mas a história iria vender muitos jornais.

— Estás a sugerir uma fuga de informação?

— Porque não acendemos uma fogueira debaixo de Vogel e vemos como ele reage?

— Não me parece uma boa ideia — disse Gabriel. — Lembras-te de Waldheim e as revelações sobre o seu passado nazista? As provas foram contrariadas e consideradas propaganda externa e interferência estrangeira nos assuntos austríacos. A opinião pública cerrou fileiras à sua volta, assim como as autoridades do pais. O caso também fez disparar o antissemitismo na Áustria. Uma fuga, Ari, seria uma muito má ideia.

— Então o que sugeres que façamos?

Max Klein estava convencido de que Ludwig Vogel era um homem das SS que cometeu uma atrocidade em Auschwitz. Segundo os documentos do Staatsarchiv, Ludwig Vogel era demasiado novo para ser esse homem, e ele esteve na Wehrmacht, não nas SS. Mas assume, para discussão, que Max Klein estava certo.

— Isso significaria que Ludwig Vogel é outra pessoa. Exatamente — disse Gabriel. — Então vamos descobrir quem ele é na realidade.

— Como tencionas fazer isso?

Não sei bem — disse Gabriel —, mas as informações desse envelope, nas mãos certas, podem produzir algumas pistas valiosas. Shamron abanou a cabeça.

Há um homem na Yad Vashem que deves ir visitar. Ele poderá ajudar-te. Vou organizar um encontro logo de manhã.

Há mais uma coisa, Ari. Precisamos tirar o Eli de Viena.

— Exatamente o que eu estava a pensar.

Shamron retirou o telefone da consola e pressionou um botão de ligação automática.

Daqui Shamron, preciso de falar com o primeiro-ministro.

 

 

SITUADO NO ALTO DO Monte Herzel, na parte ocidental de Jerusalém, Yad Vashem é o memorial oficial de Israel em honra dos seis milhões de vitimas que pereceram na Shoah. É também o centro de pesquisa e documentação sobre o Holocausto mais avançado do mundo. A livraria contém mais de cem mil volumes, a maior e mais completa coleção de literatura do Holocausto no planeta. Guardados nos arquivos estão mais de cinquenta e oito milhões de páginas de documentos originais, incluindo milhares de testemunhos pessoais, escritos, ditados, ou filmados por sobreviventes da Shoah em Israel e em todo o mundo. Moshe Rivlin esperava-o. Um rechonchudo acadêmico barbudo que falava hebraico com um sotaque de Brooklyn. A especialidade residia não nas vitimas da Shoah mas nos seus perpetradores: os alemães que serviram a mortal máquina nazista e os milhares de ajudantes não alemães que com vontade e entusiasmo participaram na destruição dos judeus

da Europa. Ele trabalhava como consultor pago pelo Departamento de Justiça Americano de Investigações Especiais, compilando documentação e provas contra nazistas acusados de crimes de guerra e purgando Israel de testemunhas vivas. Quando não estava a pesquisar nos arquivos de Yad Vashem, Rivlin podia ser facilmente encontrado entre sobreviventes, à procura de alguém que se lembrasse.

Rivlin conduziu Gabriel ao edifício de arquivos até a sala de leitura principal. Era um espaço surpreendentemente exíguo, brilhantemente iluminado por grandes janelas até o teto com vista sobre as colinas a oeste de Jerusalém. Curvados sobre livros abertos, um par de estudantes lia; outro olhava fixamente para a tela de um leitor de microfilme. Quando Gabriel sugeriu algo de mais privado, Rivlin levou-o até uma pequena sala anexa e fechou a espessa porta de vidro. A versão dos acontecimentos que Gabriel providenciou era simples, mas exaustiva o suficiente para que nada importante se perdesse na tradução. Mostrou a Rivlin todo o material que recolhera na Áustria: o arquivo da Staatsarchiv, a fotografia, o relógio de pulso e o anel. Quando Gabriel apontou para a inscrição no interior da banda, Rivlin leu-a e olhou para cima pensativo.

— Impressionante — sussurrou.

— O que significa?

— Tenho de recolher alguns documentos do arquivo. — Rivlin parou. — Vai levar algum tempo.

— Quanto?

O arquivista encolheu os ombros.

— Uma hora, talvez um pouco menos. Já alguma vez esteve nos memoriais?

— Não desde que andava na escola.

— Dê um passeio.

Rivlin deu uma pancadinha no ombro de Gabriel.

— Volte daqui a uma hora.

 

GABRIEL CAMINHOU POR uma trilha entre pinheiros e desceu a passagem de pedra até a escuridão do Memorial das Crianças. Cinco velas, reflectidas infinitamente por espelhos, criavam a ilusão de uma galáxia de estrelas, enquanto uma voz gravada lia os nomes dos mortos.

Emergiu de volta para a luz brilhante do sol e caminhou até a Galeria da Recordação, onde ficou imóvel perante a chama eterna, tremeluzente no meio de basalto negro gravado com alguns dos nomes mais infames da história: Treblinka, Sobibor, Majdanek, Bergen-Belsen, Chelmno, Auschwitz...

Na Galeria dos Nomes não havia chamas nem estátuas, apenas incontáveis pastas cheias de páginas de testemunhos, cada uma carregando a história de um mártir: nome, local e data de nascimento, filiação, local de residência, profissão, local da morte. Uma gentil mulher chamada Shoshanna procurou na base de dados do computador e localizou as páginas de testemunho dos avós de Gabriel, Viktor e Sarah Frankel. Imprimiu-as e entregou-as tristemente a Gabriel. No fundo de cada página estava o nome da pessoa que tinha facultado a informação: Irene Allon, a mãe de Gabriel.

Pagou uma pequena quantia pelas impressões, dois sheqel por cada, e caminhou até a porta ao lado que dava para o Museu de Arte de Yad Vashem, sede da maior coleção de arte do Holocausto no mundo. Enquanto deambulava pelas galerias, achou possível abarcar com os braços o eterno espírito humano que conseguira produzir arte sob condições de fome, escravidão, e brutalidade inimaginável. De repente, o seu próprio trabalho parecia trivial e completamente desprovido de significado. O que é que santos mortos no museu de uma igreja têm a ver seja com o que for? Mário Delvecchio arrogante, o egoísta Mário Delvecchio parecia inteiramente irrelevante.

Na sala final estava uma exposição especial de arte infantil. Uma imagem cortou-lhe a respiração, um esboço a carvão de uma criança andrógina, encolhendo-se de medo perante a figura gigante de um oficial das SS.

Olhou para o relógio. Tinha passado uma hora. Deixou o museu de arte e apressou-se de volta aos arquivos para ouvir os resultados da pesquisa de Moshe Rivlin.

 

ENCONTROU RIVLIN CAMINHANDO ansiosamente no pátio de entrada de arenito do edifício dos arquivos. Rivlin pegou em Gabriel pelo braço e conduziu-o para dentro da pequena sala onde tinham estado uma hora atrás. Duas grossas pastas esperavam-nos. Rivlin abriu a primeira e entregou a Gabriel uma fotografia: Ludwig Vogel, com a farda de um Sturmbannführer SS.

— É Radek — sussurrou Rivlin, incapaz de conter a sua excitação. Acho que você pode ter encontrado Erich Radek!

13

 

 

VIENA

 

 

HERR KONRAD BECKER, da Becker & Pull, Talstrasse 26, Zurique, chegou a Viena na mesma manhã. Passou pelo controle de passaportes sem demoras e seguiu até a zona de chegadas, onde localizou o motorista de uniforme segurando um cartão onde se lia HERR BAUER. O cliente insistiu na precaução acrescida. Becker não gostava do cliente — nem tinha ilusões sobre a origem da conta — mas assim era a natureza da banca suíça privada, e Herr Konrad Becker era um verdadeiro devoto. Se o capitalismo fosse uma religião, Becker seria o líder de um sector extremista. Na opinião avalizada de Becker, o homem possuía o direito divino de transformar o dinheiro livre de regulamentos governamentais e de o ocultar onde e como quisesse. Evitar a tributação não era uma escolha mas sim uma obrigação moral. Dentro do mundo secreto da banca de Zurique, ele era conhecido pela sua discrição absoluta. Era essa a razão pela qual Konrad Becker tinha sido confiado com a conta.

Vinte minutos mais tarde, o carro parou em frente a uma mansão de pedra no Primeiro Bairro. Seguindo instruções de Becker, o motorista buzinou duas vezes e, depois de uma curta espera, o portão de metal abriu lentamente. Enquanto o carro avançava, um homem desceu o curto lanço de degraus. Estava nos seus quarentas e muitos, com o porte e a elegância de um esquiador de competição. O seu nome era Klaus Halder.

Halder abriu a porta do carro e conduziu Becker até o bali de entrada. Como de costume, pediu ao banqueiro que abrisse a sua pasta para inspeção. Em seguida mandou-o estar na degradante posição de Leonardo, braços e pernas abertos, para uma minuciosa passagem do detector de metais manual.

Finalmente foi escoltado até a sala de visitas, um gabinete vienense formal, amplo e retangular, com paredes de um amarelo rico e sancas pintadas da cor de creme coagulado. A mobília era barroca e coberta de fino brocado. Um relógio de ouropel tiquetaqueava suavemente na prateleira. Cada peça de mobiliário, cada lâmpada e objeto decorativo parecia complementar o outro e a sala era um todo. Era a sala de um homem que claramente tinha dinheiro e gosto em quantidades iguais. Herr Vogel, o cliente, estava sentado por baixo de um retrato que parecia, na opinião de Becker, ter sido pintado por Lucas Cranach, o Ancião. Levantou-se devagar e estendeu a mão. Faziam um par contrastante: Vogel, alto e germânico, com os seus olhos azuis-claros e cabelo branco; Becker, baixo e careca com uma segurança cosmopolita nascida do contato com a natureza variada da sua clientela. Vogel soltou a mão do banqueiro e apontou para uma cadeira vazia. Becker sentou-se e retirou um livro de registro forrado a pele da sua pasta. O cliente acenou solenemente. Ele nunca fora de conversa fiada.

— Segundo registros desta manhã — disse Becker — o valor total da conta é de dois mil milhões e meio de dólares. Quase um mil milhões está em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento: a tributação habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis. Em preparação para a liquidação e dispersão da conta, está a decorrer a venda dos valores imobiliários. Devido ao estado da economia global, está a levar mais tempo do que esperávamos.

— Quando estará o processo completo?

— A nossa data-limite é o final do mês. Mesmo que não consigamos cumprir, a dispersão do dinheiro será iniciada imediatamente após a recepção da carta do escritório do chanceler. As instruções neste ponto são muito específicas. A carta deve ser entregue em mão no meu escritório em Zurique, não mais de uma semana depois de o chanceler prestar juramento. Tem de ser em papel oficial da chancelaria timbrado e por cima da assinatura do chanceler.

— Posso assegurar-lhe que a carta do chanceler está a ser encaminhada.

— Em antecipação à vitória de Herr Metzler, iniciei a difícil tarefa de localizar todos aqueles a quem é devido pagamento. Como sabe, estão espalhados da Europa ao Oriente Médio, à América do Sul e aos Estados Unidos . Também estive em contato com o diretor do Banco do Vaticano. Como deve calcular, dado o estado financeiro atual da Santa Sé, ele ficou muito contente com o meu telefonema.

— E porque não? Duzentos e cinquenta milhões de dólares é muito dinheiro.

Do banqueiro, um sorriso vigilante.

— Sim, mas nem mesmo o Santo Padre saberá a verdadeira origem do dinheiro.

Tudo o que o Vaticano tem de saber é que é de um abastado dador que deseja permanecer anônimo.

— E depois há a sua parte — disse Vogel.

— A parte do banco é de cem milhões de dólares, pagável após a dispersão de todos os fundos.

— Cem milhões de dólares, mais as taxas de transação que tem cobrado ao longo dos anos e a percentagem que tira dos lucros anuais. A conta fê-lo um homem extremamente rico.

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços. O banqueiro fechou o livro de registro com um baque abafado. Em seguida entrelaçou os dedos e olhou-os de modo pensativo por um momento antes de falar.

— Mas temo que tenha havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas. O último foi o sírio. Foi assassinado num clube de cavalheiros em Istambul, nos braços de uma prostituta russa. A moça foi assassinada, também. Uma cena terrível.

Vogel abanou a cabeça tristemente.

— O sírio deveria ter sido aconselhado a evitar locais como esse.

— Claro que como portador do número de conta e senha, irá manter o controle de todos os fundos que não possam ser dispersos. Isso é o que as instruções estipulam.

— Que sorte a minha.

— Vamos esperar que o Santo Padre não sofra um acidente semelhante.

O banqueiro removeu os óculos e inspecionou as lentes à procura de impurezas.

— Sinto-me obrigado a lembrá-lo, Herr Vogel, que eu sou a única pessoa com autoridade para dispersar fundos. Na eventualidade da minha morte, a autoridade passará para o meu sócio, Herr Puhl. Se eu morrer em circunstâncias violentas ou misteriosas, a conta será congelada até as circunstâncias da minha morte serem determinadas. Se as circunstâncias não puderem ser determinadas, a conta será considerada inativa. E sabe o que acontece às contas inativas na Suíça?

— Eventualmente tornam-se propriedade do próprio banco.

— Está correto. Ah, eu suponho que pode levar o caso a tribunal, mas isso iria levantar um número de questões embaraçosas sobre a proveniência do dinheiro. Questões que a instituição bancária suíça e o governo preferiam que não viessem a público. Como pode imaginar, tal inquérito seria desconfortável para todos os envolvidos.

— Então por atenção a mim, por favor cuide-se, Herr Becker. A sua continuação em boa saúde e segurança são de extrema importância para mim.

— Aprecio muito as suas palavras. Aguardarei a recepção da carta do chanceler. O banqueiro devolveu o livro de registro à sua pasta e fechou-a.

— Peço desculpa, mas há mais uma formalidade que me escapou. Quando discutimos a conta, é necessário que me diga o número da mesma. Para que conste, Herr Vogel, é capaz de o recitar para mim agora?

— Sim, claro.

Então, com a precisão germânica:

— Seis, dois, nove, sete, quatro, três, cinco.

— E a senha?

— Um, zero, zero, cinco.

— Obrigado, Herr Vogel.

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, o carro de Becker parou à porta do Hotel Ambassador.

— Espere aqui — disse o banqueiro ao condutor. — Não levo mais do que alguns minutos.

Atravessou a entrada e subiu no elevador até o quarto andar. Um americano alto de blazer amarrotado e gravata apertada admitiu-o no quarto 417. Ofereceu uma bebida a Becker, a qual o banqueiro recusou, em seguida um cigarro, que ele também declinou. Becker nunca tocara em tabaco. Talvez começasse.

O americano estendeu a mão em direção à pasta. Becker entregou-lha. O americano levantou a tampa e forçou o falso forro de couro, expondo um pequeno gravador de fitas. Retirou a fita e colocou-a num pequeno aparelho de reprodução. Carregou no REWIND e depois no PLAY. A qualidade de som era notável.

— Para que conste, Herr Vogel, é capaz de o recitar para mim agora?

— Sim, claro. Seis, dois, nove, sete, quatro, três, cinco.

— E a senha?

— Um, zero, zero, cinco.

— Obrigado, Herr Vogel. STOP.

O americano levantou o olhar e sorriu. O banqueiro parecia que tinha acabado de ser apanhado a trair a esposa com a sua melhor amiga.

— Fez um bom trabalho, Herr Becker. Estamos gratos.

— Acabei de cometer mais violações das leis de segredo bancário suíço do que consigo contar.

— É verdade, mas são leis execráveis. E aliás, vai receber cem milhões de dólares. Juntamente com o seu banco.

— Mas já não é o meu banco, é? É o seu banco agora.

O americano sentou-se recostado e cruzou os braços. Não insultou Becker negando-o.

 

 


14

 

 

JERUSALÉM

 

 

GABRIEL NÃO FAZIA ideia de quem seria Erich Radek. Rivlin contou.

Erich Wilhelm Radek nasceu em 1917 na aldeia de Alberndorf, cinquenta quilômetros a norte de Viena. Filho de um polícia, Radek frequentava o ginásio local e mostrava uma aptidão natural para matemática e física. Ganhou uma bolsa de estudo para frequentar a Universidade de Viena, onde estudou engenharia e arquitetura. Segundo os registros da universidade, Radek era um estudante talentoso que tirava notas altas. Era também ativista político da direita católica.

Em 1937, inscreveu-se como membro do partido nazista . Foi aceite e recebeu o número de membro partidário 57984567. Radek também se afiliou na Legião Austríaca, uma organização paramilitar nazista ilegal. Em Março de 1938, nos tempos da Anschluss, candidatou-se às SS. Louro e de olhos azuis, com um porte atlético, Radek foi considerado "nórdico puro" pela Comissão Racial das SS e, depois de uma dolorosa verificação da sua ascendência, foi considerado isento de sangue judeu e de outro sangue não ariano e aceite na irmandade de elite.

— Isto é uma cópia do arquivo partidário de Radek e os questionários que preencheu aquando da sua inscrição. Vem do Centro de Documentação de Berlim, o maior repositório de arquivos nazistas e SS do mundo.

Rivlin ergueu duas fotografias, uma era uma fotografia de frente, a outra de perfil.

— Estas são as fotografias oficiais das SS. Parece o nosso homem, não parece? Gabriel acenou com a cabeça. Rivlin recolocou as fotografias na pasta e continuou com a lição de história:

— Em Novembro de 1938, Radek tinha abandonado os estudos e trabalhava no Departamento Central para a Emigração Judaica, a instituição nazista que empreendeu uma campanha de terror e destituição econômica contra os judeus da Áustria, desenhada para forçar os judeus a abandonar o país "voluntariamente". Radek causou uma impressão favorável no diretor do

Departamento Central, que não era ninguém menos que Adolf Eichmann. Quando Radek manifestou desejo de ir a Berlim, Eichmann concordou em ajudar. Além disso, Eichmann era habilmente assistido em Viena por um jovem nazista austríaco chamado Alois Brunner, que eventualmente viria a ser implicado nas deportações e massacre de 128 000 judeus da Grécia, França, Romênia e Hungria. Em Maio de 1939, Radek foi transferido para o Departamento Principal de Segurança do Reich em Berlim, onde foi delegado à Sicherheitsdienst, o serviço de segurança nazista conhecido como SD. Rapidamente passou a trabalhar diretamente para o notável chefe da SD, Reinhard Heydrich.

Em Junho de 1941, Hitler lançou a Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética. A Erich Radek foi atribuído o comando das operações da SD naquela que ficou conhecida como a Reichskommissariat Ucrânia, uma larga porção administrativa da Ucrânia que incluía as regiões de Volhynia, Zhitomir, Kiev, Nikolayev, Tauria e Dnepropetrovsk. As responsabilidades de Radek incluíam segurança no campo e operações anti-resistência. Também criou a colaboracionista Policia Auxiliar Ucraniana e controlava as suas atividades. Durante os preparativos para a Barbarossa, Hitler ordenou secretamente a Heinrich Himmler que exterminasse os judeus da União Soviética. Enquanto a Wehrmacht rolava sobre o território soviético, quatro esquadrões da morte móveis Einsatzgruppen seguiam de perto. Os judeus eram agrupados e transportados para locais isolados, normalmente localizados junto de valas antitanque, pedreiras abandonadas, ou ravinas fundas, onde eram assassinados a tiro de metralhadora e apressadamente enterrados em valas comuns.

— Erich Radek estava bem ciente das atividades das unidades Einsatzgruppen na Reichskommissariat — disse Rivlin. — Era, afinal de contas, o seu território. E ele não era um burocrático assassino de mesa. Radek apreciava realmente ver judeus serem assassinados aos milhares. Mas o seu maior contributo para a Shoah ainda está para vir.

— É o quê?

— Tem a resposta a essa pergunta no seu bolso. Está gravada no interior do anel que tirou da casa na Alta Áustria.

Gabriel tirou o anel do bolso e leu a inscrição: 1005, bom trabalho, Heinrich.

— Eu suspeito que Heinrich seja nem mais nem menos Heinrich Müller, o chefe da Gestapo. Para o caso, a informação mais importante contida na inscrição são esses quatro números no inicio: um, zero, zero, cinco.

— O que significam?

Rivlin abriu a segunda pasta. Estava classificada como: AKTION 1005. COMEÇOU, de modo estranho, com uma queixa por parte dos vizinhos.

No inicio de 1942, o escoamento de águas primaveril expôs uma série de valas comuns no distrito de Warthegau na Polônia ocidental, ao longo do rio Ner. Milhares de corpos flutuaram à superfície, e um cheiro nauseabundo espalhou-se por vários quilômetros em redor. Um alemão que vivia perto enviou uma carta anônima para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim queixando-se da situação. Sinos de alarme tocaram. As sepulturas continham os restos mortais de milhares de judeus assassinados pelas vans móveis de gás que, na altura, eram usadas no campo de concentração de Chelmno. A Solução Final, o segredo mais bem guardado da Alemanha nazista, estava em risco de ser exposto pelo degelo.

Os primeiros relatos do assassinato em massa de judeus já tinha começado a chegar ao mundo exterior, graças a um canal de comunicação diplomático soviético que alertou os Aliados sobre os horrores que estavam a ser levados a cabo pelas forças alemãs na Polônia e em solo soviético. Martin Luther, que lidava com os "assuntos judaicos" em nome do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, sabia que as sepulturas expostas perto de Chelmno representavam uma séria ameaça ao segredo da Solução Final. Encaminhou uma cópia da carta anônima para Heinrich Müller da Gestapo e requisitou ação imediata.

Rivlin tinha uma cópia da resposta de Müller a Martin Luther. Colocou-a na mesa, virou-a para que Gabriel a pudesse ver, e apontou para a passagem relevante:

A carta anônima enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a aparente solução da questão judaica no distrito de Warthegau, que me foi submetida por si a 6 de Fevereiro de 1942, eu imediatamente transmiti para tratamento adequado. Os resultados serão comunicados a seu tempo. Não há como evitar as lascas que caem ao chão num local onde se corta madeira.

Rivlin apontou para as citações no canto superior esquerdo do memorando: W B4 43/42 gRs [1005].

— Adolf Eichmann quase com certeza recebeu uma cópia da resposta de Müller a Martin Luther. Sabe, o departamento de Eichmann no Departamento Principal de Segurança do Reich aparece na linha da morada. Os números "43/42" representam a data: o quadragésimo terceiro dia de 1942, ou vinte e oito de Fevereiro. As iniciais g-R-s significam que o assunto é Geheime Reichssache, um assunto ultrassecreto do Reich. E aqui, entre parêntesis no fim da linha, estão os quatro números que seriam eventualmente usados como nome de código da ultra-secreta Aktion, um, zero, zero, cinco.

Rivlin devolveu o memorando à pasta.

— Pouco depois de Müller ter enviado essa carta a Martin Luther, Erich Radek foi retirado do comando na Ucrânia e transferido de volta ao Departamento Principal de Segurança do Reich em Berlim. Foi destacado para o departamento de Eichmann e embarcou num período intenso de estudo e planificação. Sabe, esconder o maior caso de assassinato em massa da história não era tarefa fácil. Em Junho, regressou a leste, sob a autoridade direta de Müller, e meteu mãos à obra.

A cidade polonesa de Lodz, a cerca de oitenta quilômetros a sudoeste do campo de concentração de Chelmno foi escolhida por Radek para sede do seu Sonderkommando 1005. A morada exata era Geheime Reichssache e desconhecida, exceto para algumas altas patentes das SS. Toda a correspondência passava pelo departamento de Eichmann em Berlim.

Radek confiou na cremação como o método mais eficaz de se livrar dos corpos. Queimar já fora tentado antes, normalmente com lança-chamas, mas com resultados insatisfatórios. Radek fez bom uso dos seus conhecimentos de engenharia, inventando um método de queimar cadáveres, dois mil de cada vez, em piras feitas de torres aerodinâmicas. Vigas de madeira grossas, com cerca de sete a oito metros de comprimento, eram embebidas em gasolina e colocadas em cima de blocos de cimento. Os corpos eram espalhados entre as vigas: corpos, vigas, corpos, vigas, corpos A acendalha embebida em gasolina era colocada na base da estrutura e posta em chamas. Quando o fogo esmorecia, os corpos carbonizados eram esmagados e dispersos por maquinaria pesada.

O trabalho sujo era feito por escravos judeus. Radek organizou os judeus em três equipes, uma equipe para abrir o fosso fúnebre, a segunda para transportar os cadáveres do fosso para a pira, e uma terceira para procurar ossos e objetos de valor nas cinzas. No final de cada operação, o terreno era terraplanado e replantado para esconder o que se tinha passado ali. Em seguida os escravos eram assassinados e os corpos destruídos. Dessa forma o segredo da Aktion 1005 era preservado.

Quando o trabalho em Chelmno terminou, Radek e o seu Sonderkommando 1005 seguiram para Auschwitz, onde tinham como missão limpar os cheios fossos fúnebres. No final do Verão de 1942, problemas sérios de contaminação e de saúde surgiram em Belzec, Sobibor e Treblinka. Poços junto dos campos que abasteciam de água potável os guardas e as unidades Wehrmacht circundantes tinham sido contaminados pela proximidade das valas comuns. Nalguns casos, a fina camada de solo que os cobriam tinham aberto e odores tóxicos libertavam-se para o ar. Em Treblinka, as SS e assassinos ucranianos nem se tinham preocupado em enterrar todos os corpos . No dia em que o comandante de campo Franz Stangl chegou para assumir o posto, era possível sentir o cheiro de Treblinka a trinta quilômetros de distância. Corpos sujavam a estrada de acesso ao campo, e pilhas de cadáveres putrefatos saudavam-no da plataforma do caminho-de-ferro. Stangl queixou-se que não podia começar a trabalhar em Treblinka enquanto não limpassem a confusão. Radek ordenou que as valas comuns fossem abertas e os corpos queimados.

Na Primavera de 1943, o avanço do Exército Vermelho obrigou Radek a desviar a sua atenção dos campos de extermínio da Polônia para os locais de extermínio mais a leste, no território soviético ocupado. Em breve estava de volta ao seu território na Ucrânia. Radek sabia onde os corpos estavam enterrados, mesmo literalmente, porque dois anos antes coordenara as operações dos esquadrões da morte Einsatzgruppen. Perto do final do Verão, o Soderkommando 1005 deslocou-se da Ucrânia para a Bielorrússia e, em Setembro, estava ativo nos estados Bálticos da Lituânia e Letônia, onde populações inteiras de judeus tinham sido exterminadas. Rivlin fechou a pasta e afastou-a repugnado.

— Nunca saberemos quantos corpos Radek e os seus homens limparam. O crime é demasiado enorme para dissimular completamente, mas a Aktion 1005 conseguiu apagar muitas das provas e fazer com que seja virtualmente impossível, depois da guerra, saber ao certo o número de mortos. O trabalho de Radek foi tão minucioso que, nalguns casos, as comissões polonesas e soviéticas que investigam a Shoah não conseguiram encontrar vestígios das valas comuns. Em Babi Yar, a limpeza de Radek foi tão perfeita que, depois da guerra, os soviéticos conseguiram transformar a zona num parque. E agora, infelizmente, a falta de restos mortais deu inspiração à horda de lunáticos que reivindica que o Holocausto nunca aconteceu. As ações de Radek assombram-nos até os dias de hoje.

Gabriel pensou nas páginas de testemunho na Galeria dos Nomes, as únicas lápides para milhões de vítimas.

— Max Klein jurou que viu Ludwig Vogel em Auschwitz no verão ou no início do outono em 1942 — disse Gabriel. — com base no que me disse, isso é inteiramente possível.

— De fato, assumindo, claro, que Vogel e Radek são na realidade o mesmo homem. O Soderkommando 1005 de Radek esteve definitivamente ativo em Auschwitz em 1942.

Se Radek estava lá ou não num determinado dia é provavelmente impossível de provar.

— E o que é que sabemos sobre o que aconteceu a Radek depois da guerra?

— Não muito, lamento. Ele tentou fugir para Berlim disfarçado de cabo da Wehrmacht. Foi preso sob suspeita de ser um homem das SS e foi internado no campo de prisioneiros de Mannheim. Algures no início de 1946, escapou. Depois disso, é um mistério. Parece que conseguiu sair da Europa. Houve alegados avistamentos em todos os locais

habituais: Síria, Egipto, Argentina, Paraguai, mas nada fidedigno. Os caçadores de nazistas andavam atrás de peixe graúdo como Eichmann, Bormann, Mengele e Müller. Radek conseguiu voar abaixo da linha de radar. Além disso, o segredo de Aktion 1005 estava tão bem guardado que o assunto quase não foi tocado nos julgamentos de Nuremberg. Ninguém sabia muito sobre o assunto, na realidade.

— Quem era o responsável por Mannheim?

— Era um campo americano.

— Sabemos como conseguiu ele escapar da Europa?

— Não, mas devemos assumir que teve ajuda.

— A ODESSA?

— Talvez tenha sido a ODESSA, ou alguma das outras redes secretas de ajuda nazista.

Rivlin hesitou, e disse: — Ou talvez tenha sido uma altamente pública e antiga instituição sedeada em Roma que operou a mais bem-sucedida rota de fuga nazista do período pós-guerra.

— O Vaticano?

Rivlin acenou com a cabeça.

— A ODESSA não chegava aos pés do Vaticano quando tocava a financiar e promover rotas de fuga da Europa. Porque Radek era austríaco, ele foi certamente assistido pelo bispo Hudal.

— Quem é Hudal?

— Alois Hudal era natural da Áustria, um antissemita e um nazista fervoroso. Usou a sua posição de prior do Pontifício de Santa Maria dell'Anima, o seminário alemão em Roma, para ajudar centenas de oficiais SS a escapar da justiça, incluindo Franz Stangl, o comandante de Treblinka.

— Que tipo de ajuda fornecia ele?

— Para começar, um passaporte da Cruz Vermelha com um novo nome e um visto de entrada num pais longínquo. Também lhes dava um pouco de dinheiro e pagava as passagens.

— Mantinha registros?

— Aparentemente sim, mas essa papelada está trancada a sete chaves na Anima.

— Preciso de tudo o que tiver sobre o bispo Alois Hudal.

— Vou organizar uma pasta para si.

Gabriel pegou na fotografia de Radek e olhou-a cuidadosamente. Havia algo de familiar no rosto. Durante toda a exposição de Rivlin, tinha estado a dar voltas à cabeça. Então pensou nos esboços a carvão que vira essa manhã no museu de arte do Holocausto, a criança encolhida de medo perante o monstro das SS, e percebeu de imediato onde já tinha visto a cara de Radek.

Levantou-se subitamente tombando a cadeira.

— O que se passa? — perguntou Rivlin.

— Eu conheço este homem — disse Gabriel com os olhos postos na foto.

— Como?

Gabriel ignorou a pergunta.

— Preciso disto emprestado — disse.

Então, sem esperar pela resposta de Rivlin, desapareceu porta fora.


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JERUSALÉM

 

 

Nos VELHOS TEMPOS tomaria a via rápida norte por Ramallah, Nablus e Jenin. Agora, mesmo um homem com as capacidades de sobrevivência de Gabriel, seria imprudente tentar tal caminho sem um carro blindado e uma escolta de combate. Então optou pelo caminho mais longo, descendo a encosta ocidental das Montanhas da Judeia em direção a Tel Aviv, pela Planicie Costeira até Hadera e em seguida para noroeste pela serrania do Monte Carmel até El Megiddo: Armageddon.

O vale verde-acastanhado de orquídeas e florestas plantadas pelos primeiros judeus que se estabeleceram na Palestina abriu-se perante ele, estendendo-se das colinas samarianas ao sul às encostas da Galileia ao norte. Continuou em direção a Nazaré, em seguida para leste, para uma pequena vila agrícola no limite do Bosque Balfour chamada Ramat David.

Levou alguns minutos até encontrar a morada. O bangalô que fora construído para os Allon tinha sido deitado abaixo e substituído por um ao estilo californiano, de arenito com trepadeiras, uma antena de satélite no telhado e uma van de fabrico americano na entrada. Enquanto Gabriel olhava, um soldado saiu pela porta da frente e caminhou com vivacidade através do relvado frontal. A memória de Gabriel iluminou-se. Ele viu o pai percorrendo o mesmo caminho numa tarde quente em

Junho, seria a última vez que Gabriel o veria com vida, embora não o tivesse percebido na altura.

Olhou para a casa ao lado. Era a casa onde Tziona morava. Os brinquedos de plástico que coloriam o relvado frontal indicavam que Tziona, solteira e sem filhos, já não vivia ali. Mesmo assim, Israel não era mais que uma família grande e conflituosa e Gabriel estava confiante de que os novos ocupantes poderiam, pelo menos, dar-lhe a indicação correta. Tocou à campainha. A jovem mulher roliça que falava hebraico com sotaque russo não o desapontou. Tziona estava a viver mais acima, em Safed. A mulher russa tinha uma morada para encaminhamento de correspondência.

 

OS JUDEUS TÊM vivido no centro de Safed desde os dias da antiguidade. Após a expulsão de Espanha em 1492, os turcos otomanos permitiram a muitos mais judeus estabelecerem-se em Safed e a cidade floresceu como centro de misticismo, escolaridade e arte judaica. Durante a guerra da independência, Safed esteve à beira de cair sob forças árabes quando a comunidade sitiada foi reforçada por um pelotão de combatentes Palmach, que tomaram a cidade depois de uma arriscada travessia noturna desde a sua guarnição no Monte Canaan. O líder da unidade Palmach negociou um acordo com os poderosos rabis de Safed para trabalhar durante a Páscoa no reforço das fortificações da cidade. O seu nome era Ari Shamron.

O apartamento de Tziona situava-se no Bairro dos Artistas, no topo de um lanço de escadas de pedra da calçada. Ela era uma mulher enorme de cabelos cinzas, vestida com uma cafetã branca, e tantas pulseiras que tilintaram quando atirou os braços em volta do pescoço de Gabriel. Levou-o para dentro, para um espaço que era uma mistura de sala de estar com oficina de oleiro, e sentou-o no terraço de pedra para observar o entardecer sobre a Galileia. O ar cheirava a óleo de lavanda a arder.

Foi servido um prato de pão e hummus, juntamente com azeitonas e uma garrafa de vinho Golan. Gabriel relaxou instantaneamente. Tziona Levin era como uma irmã que nunca tivera. Tinha tomado conta dele quando a mãe estava a trabalhar ou demasiado deprimida para se levantar da cama. Algumas noites, ele saltava da sua janela e penetrava na porta ao lado para a cama de Tziona. Ela acariciava-o e abraçava-o de uma forma que a mãe nunca poderia. Quando o seu pai fora morto na guerra de Junho, fora Tziona a enxugar-lhe as lágrimas.

O rítmico e hipnótico som de rezas Maariv flutuava desde a sinagoga nas imediações. Tziona acrescentou mais óleo de lavanda ao candeeiro. Falou do matsav: a situação.

As lutas nos territórios e o terrorismo em Tel Aviv e Jerusalém. De amigos perdidos para a shaheed e amigos que tinham desistido de procurar emprego em Israel e tinham-se mudado para a América. Gabriel bebeu o vinho e observou o sol de fogo afundar-se na Galileia. Estava a escutar Tziona, mas os seus pensamentos estavam na sua mãe. Já tinham passado cerca de vinte anos depois da sua morte, e desde então ele descobrira que pensava nela cada vez menos. O seu rosto, enquanto jovem, tinha-se perdido para ele, despido de pigmento e gasto, como uma tela desbotada pelo tempo e exposição a elementos corrosivos. Apenas conseguia conjurar a sua máscara de morte. Após as torturas do cancro, as suas feições amaciadas tinham-se transformado numa expressão de serenidade, como uma mulher que posa para um retrato. Ela parecia dar as boas-vindas à morte. Tinha-a finalmente salvo dos tormentos que a violentavam dentro da sua memória.

Tinha-o amado? Sim, pensava ele agora, mas tinha-se cercado de paredes e ameias que ele nunca conseguiria trepar. Ela era dada à melancolia e a mudanças de espírito violentas. Não dormia bem de noite. Não conseguia mostrar prazer em ocasiões festivas nem tomar parte em comidas e bebidas requintadas. Usava sempre uma ligadura no braço esquerdo, por cima dos desbotados números tatuados na pele. Referia-se a eles como sendo a marca da fraqueza judaica, o seu emblema à vergonha judaica.

Gabriel seguiu pintura para estar mais perto dela. Ela rapidamente sentiu isso como uma intrusão não autorizada ao seu mundo privado; então, quando os seus talentos amadureceram e começaram a desafiar os dela, ela invejou os seus dons. Gabriel empurrou-a para novas alturas. A sua dor, tão visível em vida, encontrava expressão no seu trabalho. Gabriel cresceu obcecado com as imagens de pesadelos que fluíam da memória dela para as telas e começou à procura da origem.

Na escola ouvira falar de um lugar chamado Birkenau. Perguntou-lhe sobre a ligadura que ela normalmente usava no braço esquerdo, sobre as blusas de manga comprida que ela vestia, mesmo com o calor de fornalha que fazia no Vale Jezreel. Perguntou o que lhe tinha acontecido durante a guerra, o que tinha acontecido aos seus avós. À partida ela recusou-se, mas finalmente, debaixo do seu constante ataque de perguntas, ela compadeceu-se. A sua narrativa era apressada e relutante; Gabriel, mesmo jovem, era capaz de detectar o tom evasivo e mais de um traço de culpa. Sim, ela estivera em Birkenau. Os seus pais tinham sido assassinados no dia em que lá chegaram. Ela tinha trabalhado. Ela tinha sobrevivido. E era tudo. Gabriel, sedento de mais detalhes sobre a experiência da mãe, começou a conjurar todo o tipo de cenários para justificar a sobrevivência da mãe. Também ele se começou a sentir envergonhado e culpado. O seu sofrimento, como um malefício hereditário, estava deste modo a passar para a geração seguinte.

O assunto nunca mais voltou a ser discutido. Era como se uma porta de aço se tivesse fechado, como se o Holocausto nunca tivesse acontecido. Ela caiu numa depressão prolongada e esteve acamada por muitos dias. Quando finalmente emergiu, retirou-se para o seu estúdio e começou a pintar. Trabalhou inflexivelmente noite e dia. Uma vez, Gabriel olhou pela porta entreaberta e encontrou-a esparramada no chão, as mãos manchadas de tinta, tremendo perante uma tela. Essa tela era a razão pela qual ele tinha vindo a Safed encontrar-se com Tziona.

O sol tinha-se posto. Estava agora frio no terraço. Tziona colocou um xaile sobre os ombros e perguntou a Gabriel se alguma vez tencionava voltar para casa. Gabriel murmurou qualquer coisa sobre precisar de trabalho, como os amigos de Tziona que se tinham mudado para a América.

— E para quem andas a trabalhar ultimamente? Ele não se deu ao desafio.

— Restauro pinturas de mestres antigos. Preciso estar onde as pinturas estão. Em Veneza.

— Veneza — disse ela ironicamente.

— Veneza é um museu. — Disse erguendo o copo de vinho em direção à Galileia.

— Isto é vida real. Isto é arte. Basta de restauração. Devias dedicar todo o teu tempo e energia ao teu próprio trabalho.

— O meu próprio trabalho não existe. Isso saiu de mim há muito tempo. Sou um dos melhores restauradores de arte do mundo. Isso é suficiente para mim.

Tziona pôs as mãos apara o alto. As suas pulseiras tilintaram como um espanta-espiritos.

— É mentira. Você é uma mentira. É um artista, Gabriel. Vem para Safed e encontre sua arte. Encontre-se a si mesmo.

A sua maneira provocadora o deixava incomodado. Ele poderia ter dito que havia uma mulher envolvida, mas isso teria aberto toda uma nova frente que Gabriel estava ansioso por evitar. Em vez disso, permitiu que o silêncio, apenas preenchido pelo som consolante de Ma'ariv, caísse entre eles.

— O que faz em Safed? — perguntou ela finalmente. — Eu sei que não fez este caminho todo até aqui para ouvir um sermão de sua Doda Tziona.

Perguntou se Tziona ainda tinha as pinturas e esboços da mãe.

— Claro que sim, Gabriel. Tenho-os guardado todos estes anos à espera de que viesse pedir.

— Ainda não estou preparado para tirá-los de suas mãos. Só preciso vê-los.

Ela segurou uma vela junto ao rosto dele.

— Está me escondendo alguma coisa, Gabriel. Eu sou a única pessoa no mundo capaz de saber quando tem segredos. Sempre foi assim, especialmente quando era um garoto.

Gabriel serviu-se de mais um copo de vinho e contou a Tziona sobre Viena.

 

ELA ABRIU A porta e puxou a corda que acendia a luz do teto. O armário estava cheio de telas e esboços de alto a baixo. Gabriel começou a folhear o trabalho. Tinha-se esquecido quão talentosa era a sua mãe. Conseguia ver as influências de Beckmann, Picasso, Egon Schiele e, claro, do seu pai, Viktor Frankel. Até havia variações nos temas que Gabriel tinha explorado no seu próprio trabalho na altura. A sua mãe tinha-os desenvolvido ou, nalguns casos, destruído completamente. Ela tinha sido espantosamente talentosa.

Tziona empurrou-o para o lado e saiu com uma pilha de telas e de grandes envelopes cheios de esboços. Gabriel agachou-se no chão de pedra e examinou os trabalhos enquanto Tziona observava por cima do ombro.

Havia imagens de campos. Camaratas a abarrotarem de crianças. Mulheres trabalhando como escravas em maquinaria de fábricas. Corpos empilhados como lenha, à espera de serem arremessados ao fogo. Uma família abraçando-se enquanto o gás a envolvia.

A tela final tinha uma figura solitária pintada, um homem das SS completamente vestido de negro. Era a pintura que tinha visto naquele dia, no estúdio da mãe. Enquanto os outros trabalhos eram escuros e abstratos, neste ela empenhara-se no realismo e na revelação. Gabriel estava maravilhado com o seu impecável traço e pincelada antes de os seus olhos se fixarem no rosto do sujeito. Pertencia a Erich Radek.

 

TZIONA PREPAROU uma cama no sofá da sala para Gabriel e recitou-lhe a midrash do vaso quebrado.

— Antes de Deus criar o mundo, havia apenas Deus. Quando Deus decidiu criar o mundo, Deus parou para criar o espaço para o mundo. Foi nesse espaço que o universo foi formado. Mas agora, nesse espaço não havia Deus. Deus criou centelhas divinas, luz, para serem colocadas na criação de Deus. Quando Deus criou a luz, e colocou a luz dentro da criação, recipientes especiais foram preparados para a guardar. Mas houve um acidente. Um acidente cósmico. O recipiente quebrou. O universo ficou cheio de centelhas da luz divina de Deus e cacos de recipientes.

— É uma bela história — disse Gabriel, ajudando Tziona a entalar as pontas de um lençol nas almofadas do sofá. — Mas o que tem a ver com minha mãe?

— A midrash ensina que enquanto as centelhas da luz de Deus não estiverem unidas, a criação não está completa. Enquanto judeus este é o nosso dever solene. Chamamos Tikkun Olam: Reparação do Mundo.

— Consigo restaurar muitas coisas, Tziona, mas temo que o mundo seja uma tela grande demais, com muitos estragos.

— Então comece por baixo.

— Como?

— Reúna as centelhas de sua mãe, Gabriel. E castigue o homem que quebrou o vaso.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, Gabriel escapou do apartamento de Tziona sem acordá-la e saiu pelas escadas de pedra na luz clara e cinza do amanhecer com o retrato de Radek debaixo do braço. Um judeu ortodoxo, a caminho das rezas matinais, pensou que ele era louco e sacudiu-lhe um punho, zangado. Gabriel colocou a pintura no porta-mala do carro e saiu de Safed. Um nascer do Sol vermelho surgia no horizonte. Por baixo, no vale, o Mar da Galileia transformou-se em fogo.

Parou em Afula para o café e deixou uma mensagem no gravador de Moshe Rivlin, avisando-o que estava a voltar a Yad Vashem. Já era fim da manhã quando ele chegou. Rivlin esperava-o. Gabriel mostrou-lhe a tela.

— Quem a pintou?

— A minha mãe.

— Qual era o seu nome?

— Irene Allon, mas o seu nome alemão era Frankel.

— Onde esteve ela?

— No campo de mulheres em Birkenau, de Janeiro de 1943 até o fim.

— A marcha da morte?

Gabriel declarou que sim com a cabeça. Rivlin segurou Gabriel pelo braço e disse:

— Venha comigo.

 

RIVLIN LEVOU GABRIEL até a mesa da sala principal de leitura dos arquivos e sentou-se em frente a um terminal de computador. Introduziu as palavras "Irene Allon" na base de dados e trauteou os seus dedos atarracados no teclado impacientemente enquanto esperava pela resposta. Alguns segundos depois, escrevinhou cinco números num pedaço de papel de rascunho e, sem dirigir uma palavra a Gabriel, desapareceu por uma porta que dava para as arrecadações dos arquivos. Vinte minutos mais tarde, regressou e colocou um documento na mesa. Por trás de uma capa de plástico transparente estavam as palavras ARQUIVOS YAD VASHEM, tanto em inglês como em hebraico, juntamente com um número de arquivo: 03/812. Gabriel levantou cuidadosamente a capa de plástico e virou a primeira página. O cabeçalho fê-lo sentir subitamente arrepiado: O TESTEMUNHO DE IRENE ALLON, ENTREGUE EM 19 DE MARÇO DE 1957. Rivlin colocou-lhe uma mão no ombro e saiu da sala. Gabriel hesitou um momento, então olhou para o documento e começou a ler.

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O TESTEMUNHO DE IRENE ALLON: 19 DE MARÇO DE 1957

Não vou dizer todas as coisas que vi . Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos . Não vos vou falar da crueldade indescritível que suportamos nas mãos da chamada raça superior, nem vou falar das coisas que alguns fizeram para poder sobreviver mais um dia. Só aqueles que passaram por isso alguma vez poderão entender como realmente foi, e não vou humilhar uma vez mais os que morreram. Apenas vou falar das coisas que fiz, e as coisas que me foram feitas. Passei dois anos em Auschwitz-Birkenau, dois anos contados ao dia, quase precisamente contados à hora. O meu nome é Irene Allon. Costumava chamar-me

Irene Frankel. Isto é o que eu testemunhei em Janeiro de 1945 na marcha da morte desde Birkenau.

Para perceber a angústia da marcha da morte, primeiro terá de saber algo que aconteceu antes. Já ouviu a história pela boca de outros. Pela minha não será muito diferente. Como todos os outros, nós viemos de trem. O nosso partiu de Berlim a meio da noite. Disseram-nos que íamos para o leste, para trabalhar. Acreditamos. Disseram-nos que seria em carruagens adequadas com assentos. Asseguraram-nos que nos seria dada comida e água. Acreditamos. O meu pai, o pintor Viktor Frankel, levava com ele um bloco de desenho e alguns lápis. Tinha sido despedido do seu cargo de professor e o seu trabalho fora declarado "degenerado" pelos nazistas. A maioria dos seus quadros tinha sido confiscada e queimada. Ele tinha esperança que os nazistas o deixassem retomar o seu trabalho no leste.

Claro que não era uma carruagem adequada com assentos, e não havia comida nem água. Eu não recordo com precisão quanto tempo a viagem durou. Perdi a conta de quantas vezes o Sol nasceu e se pôs, quantas vezes viajamos para dentro e fora da escuridão. Não havia casa de banho, apenas um balde — um balde para sessenta de nós. Consegue imaginar as condições que suportamos. Consegue imaginar o cheiro insuportável. Consegue imaginar as coisas a que alguns de nós recorreram quando a sede nos levava à beira da loucura. No segundo dia, uma velhota, que estava ao pé de mim, morreu. Fechei-lhe os olhos e rezei por ela. Observei a minha mãe, Sarah Frankel, e esperei que ela também morresse. Perto de metade da nossa carruagem estava morta quando o trem finalmente guinchou para parar. Alguns rezaram. Outros, efetivamente, agradeceram a Deus por a viagem ter finalmente acabado.

Há dez anos que vivíamos sob o domínio de Hitler. Sofremos as leis de Nuremberg. Vivemos o pesadelo de Kristallnacht. Vimos as nossas sinagogas arder. Mesmo assim, eu não estava preparada para a visão que me iria saudar quando as trancas deslizaram e as portas foram finalmente abertas. Vi uma torre, uma chaminé de tijolo cônica, vomitando fumo espesso. Por baixo da chaminé havia um prédio, inflamado com intensas labaredas crepitantes. Havia um cheiro terrível no ar. Não o conseguimos identificar. Ainda reside nas minhas narinas até hoje. Havia um sinal por cima da plataforma do caminho-de-ferro. Auschwitz. Percebi então que tínhamos chegado ao inferno.

— Judeu, raus, raus ! — Um SS estala um chicote na minha coxa. — Sai da carruagem, juden. — Saltei para a plataforma coberta de neve. As minhas pernas, enfraquecidas de tantos dias em pé, cederam. O SS estala o chicote novamente, desta vez nos meus ombros. A dor é mais terrível que qualquer coisa já tivesse sentido antes. Ponho-me de pé. De alguma maneira consigo evitar chorar. Tento ajudar a minha mãe a descer da carruagem. O SS empurra-me. O meu pai salta para a plataforma e cai. A minha mãe também. como eu, eles são forçados a levantar-se à chicotada.

Homens de pijama às riscas trepam à carruagem e começam a atirar para fora a nossa bagagem. Eu penso, quem são estes loucos que tentam roubar as escassas posses que nos deixaram trazer? Parecem homens de um asilo para loucos, cabeças rapadas, rostos afundados, dentes podres. O meu pai vira-se para o SS e diz:

— Olhe ali, aquela gente está a tirar as nossas coisas. Faça-os parar! O oficial das SS diz calmamente que a nossa bagagem não está a ser roubada, apenas retirada para ser separada. Vai ser enviada assim que os alojamentos forem distribuídos. O meu pai agradece ao SS. com mocas e chicotes separam-nos, homens de mulheres, e instruem-nos para formar ordenadas filas de cinco. Na altura ainda não sabia, mas iria passar muito dos próximos dois anos em ordenadas filas de cinco. Consigo esgueirar-me para junto da minha mãe. Tento segurar-lhe a mão. Um SS separa as nossas mãos com uma paulada no meu braço. Ouço música. Algures, uma orquestra de câmara está a tocar Schubert. No inicio da fila está uma mesa e alguns oficiais SS. Um destaca-se em particular. Tem o cabelo preto e a pele cor de alabastro. Enverga um sorriso agradável no seu rosto atraente. O seu uniforme está bem engomado, as suas botas de montar reluzem com as luzes brilhantes da plataforma de caminho-de-ferro. Luvas de pelica. As mãos limpas e brancas. Está a assobiar "A Valsa do Danúbio Azul". Até hoje, não consigo ouvi-la. Mais tarde, saberei o seu nome. O seu nome é Mengele, o médico responsável por Auschwitz. É Mengele que decide quem está capaz de trabalhar e quem vai imediatamente para o gás. Direita e esquerda, vida e morte.

O meu pai chega na frente. Mengele, assobiando, olha para ele e diz com prazer:

— Para a esquerda, por favor.

— Foi-me assegurado que iria para um campo familiar — disse o meu pai. — A minha esposa virá comigo?

— É isso que deseja?

— Sim, claro.

— Qual delas é a sua mulher?

O meu pai aponta para a minha mãe. Mengele diz: — Você ai, saia da fila e acompanhe o seu marido para a esquerda. Depressa, por favor, não temos a noite toda.

Observei os meus pais afastarem-se para a esquerda, seguindo os outros. Pessoas de idade e crianças vão para a esquerda. Jovens e saudáveis são enviados para a direita. Cheguei à frente e fiquei cara-a-cara com o belo homem no seu uniforme impecável. Olha-me de cima a baixo, parece satisfeito, e sem dizer uma palavra aponta para a direita.

— Mas os meus pais foram para a esquerda.

O Demônio sorri. Há um espaço entre os dois incisivos da frente.

— Estará com eles em breve, mas confie em mim, por agora é melhor ir para a direita.

Ele parece tão atencioso, tão agradável. Eu acredito nele. vou para a direita. Olho por cima do ombro para os meus pais, mas eles já foram engolidos pela imunda e exausta massa humana arrastando-se em silêncio para o gás em ordenadas filas de cinco.

Não é possível falar de tudo o que se passou durante os dois anos seguintes. Algumas coisas não consigo lembrar. Algumas coisas decidi esquecer. Havia um ritmo implacável em Birkenau, uma crueldade monótona que corria sob um apertado e eficiente horário. A morte era uma constante, no entanto até a morte se tornou monótona.

Somos rapados, não só na cabeça, mas em todo o lado, braços, pernas, até nos pêlos púbicos. Eles não parecem importar-se se a tosquia nos corta a pele. Eles não parecem ouvir os nossos gritos. É-nos atribuído um número e tatuado no nosso braço esquerdo, mesmo por baixo do cotovelo. Cheguei a ser Irene Prankel. Agora sou uma ferramenta do Eeich conhecida por 29395. Pulverizam-nos com desinfetante, dão-nos roupa de prisão feita de lã áspera e grossa. A minha cheira a suor e sangue. Tento não respirar muito fundo. Os nossos "sapatos" são bocados de madeira com correias de couro. Não conseguimos caminhar com eles calçados. Quem conseguiria? É-nos entregue uma tigela de metal e é-nos ordenado que andemos sempre com ela. É-nos dito que se perdermos a tigela seremos imediatamente abatidos. Acreditamos.

Somos levados a casernas indignas de animais. As mulheres que lá nos esperam são qualquer coisa abaixo de humano. Estão esfomeadas, os seus olhares são vagos, os seus movimentos são lentos e apáticos. Pondero quanto tempo levará até eu ficar como elas. Um destes meio-humanos aponta-me na direção de um beliche vazio. Cinco moças apertam-se numa prateleira de madeira com apenas um colchão de palha infestado de bichos como cama. Apresentamo-nos. Duas são irmãs, Roza e Regina. As outras chamam-se Lene e Rachel. Somos todas alemãs. Todas perdemos os pais nas filas de seleção. Formamos uma nova família nessa noite. Abraçamo-nos e rezamos. Nenhuma de nós dorme.

Somos acordadas às quatro horas da manhã, seguinte. Acordarei todos os dias às quatro da manhã durante os próximos dois anos, exceto naquelas noites em que eles ordenam uma chamada noturna e fazem-nos estar em sentido nos pátios gelados durante horas a fio. Somos divididas em kommandos e enviadas para trabalhar. Na maioria dos dias, marchamos para fora até os campos das imediações para apanhar areia para construção ou para trabalhar nos projetos de agricultura do campo. Nalguns dias construímos estradas ou deslocamos pedras de um lugar para outro. Não passa um dia em que eu não seja espancada: uma paulada, um pontapé nas costelas. A ofensa pode ser deixar cair uma pedra ou descansar demasiado tempo na pega da minha pá. Os dois invernos são de um frio de rachar. Não nos dão roupa extra que nos proteja do tempo, mesmo quando trabalhamos no exterior. Os verões são miseravelmente quentes. Apanhamos malária. Os mosquitos não discriminam entre mestres alemães e escravos judeus. Até Mengele apanha malária.

Não nos dão comida suficiente para sobreviver, apenas o suficiente para que morramos à fome lentamente, mas de forma a conseguir servir o Reich. Perco o período, em seguida perco o peito. Não tarda muito até em parecer um dos meio-humanos que vi no primeiro dia em Birkenau. Ao pequeno-almoço temos água cinza que eles chamam chá. Ao almoço, sopa rançosa que comemos no local onde estamos a trabalhar. As vezes, talvez se encontre uma pequena porção de carne. Algumas das moças recusam-se a comer porque não é Kosher. Eu não me submeto às leis da dieta enquanto estou em Auschwitz-Birkenau. Não há Deus nos campos de concentração, eu odeio Deus por nos ter abandonado ao nosso destino. Se há carne na minha tigela, eu como. Para a ceia, é-nos dado pão. É em grande parte serradura. Aprendemos a comer metade à noite e guardar o resto para a manhã, para que tenhamos algo no estômago antes de marchar para os campos para trabalhar. Se sucumbes no trabalho, eles espancam-te. Se não te consegues levantar, eles atiram-te para uma maca e levam-te para o gás. Esta é a nossa vida no campo para mulheres de Birkenau. Acordamos. Retiramos as mortas dos beliches, as sortudas que morreram calmamente durante o sono. Bebemos o nosso chá cinza. Vamos para a chamada. Marchamos para o trabalho em ordenadas filas de cinco. Comemos o nosso almoço. Somos espancadas. Voltamos para o campo.

Vamos para a chamada. Comemos o nosso pão, dormimos e esperamos até tudo voltar a acontecer outra vez. Fazem-nos trabalhar durante o Shabbat. Aos domingos, o dia sagrado deles, não há trabalho. De três em três domingos eles tosquiam-nos. Tudo corre segundo um horário. Tudo exceto as seleções.

Aprendemos a antecipá-los. Como animais, os nossos sentidos de sobrevivência estão altamente apurados. A população do campo é o sinal de aviso mais fidedigno. Quando o campo está demasiado cheio, vai haver seleção. Nunca há aviso. Depois de uma chamada, somos mandadas alinhar na Lagerstrasse para esperar a nossa vez perante Mengele e a sua equipe de seleção, esperar a nossa vez para provar que ainda estamos capazes de trabalhar, ainda somos dignas de viver.

As seleções levam um dia inteiro. Não nos dão comida nem nada para beber. Algumas nunca chegam até a mesa onde Mengele faz de deus. São "selecionadas" pelos sádicos SS muito antes. Um bruto chamado Taube gosta de nos pôr a fazer "exercícios" enquanto esperamos, para que estejamos fortes perante os seletores. Obriga-nos a fazer flexões, a seguir ordena-nos que ponhamos a cara na lama e lá fiquemos . Taube tem um castigo especial para qualquer moça que se mova. Pisa-lhe a cabeça com todo o seu peso e esmaga-lhe o crânio. Finalmente chegamos perante o nosso juiz. Ele olha de cima abaixo, toma nota do nosso número.

— Abre a boca, judia. Levanta os braços.

Tentamos manter-nos saudáveis nesta fossa, mas é impossível. Uma garganta inflamada pode significar uma viagem ao gás. Pomadas e unguentos são demasiado preciosos para desperdiçar em judeus, então um corte na mão pode significar o gás na próxima vez que Mengele selecionar a população.

Se passamos na inspeção visual, o nosso juiz tem um teste final. Aponta para uma vala e diz:

— Salta judia. — Coloco-me em frente da vala e reúno as minhas últimas reservas de força. Aterro do outro lado e viverei, pelo menos até a próxima seleção. Caio e serei atirada para uma maca e levada para o gás. A primeira vez que passei por esta loucura pensei: Sou uma moça judaico-alemã de Berlim de uma boa família. O meu pai é um pintor de renome. Porque estarei eu a saltar esta trincheira?

Depois disto, não penso em mais nada senão em chegar ao outro lado e aterrissar de pé.

Roza é a primeira da nossa família a ser selecionada. Ela tem o azar de estar muito doente com malária na hora de uma seleção grande, e não há maneira de escondê-la dos olhos peritos de Mengele. Regina suplica ao Demônio que a leve também, para que a irmã não tenha de morrer sozinha no gás. Mengele sorri revelando seus dentes afastados.

— Irá em breve, mas antes ainda pode trabalhar mais um pouco. Vá para a direita. — Pela primeira vez na minha vida, estou contente por não ter uma irmã.

Regina para de comer. Parece nem reparar quando lhe batem no trabalho. Ela passou a linha. Ela já está morta. Na próxima grande seleção, ela espera pacientemente na fila interminável. Suporta os "exercícios" de Taube e mantém a cara na lama para que ele não lhe esmague o crânio. Quando por fim chega à mesa de seleção, voa até Mengele e tenta esfaqueá-lo no olho com a pega da sua colher. Um SS dá-lhe um tiro no estômago.

Mengele está claramente assustado.

— Não desperdice gás com ela! Jogue-a no fogo viva! Pela chaminé acima com ela!

Jogam Regina num carrinho de mão. Observamo-la e rezamos para que morra antes de chegar ao crematório.

No outono de 1944, começamos a ouvir as armas russas. Em Setembro, as sirenes de ataque aéreo soam pela primeira vez. Três semanas mais tarde soam outra vez e as baterias antiaéreas do campo disparam pela primeira vez. Nesse mesmo dia, o Soderkommajido do Crematorium IV revolta-se. Atacam os guardas SS com picaretas e martelos e conseguem lançar fogo à sua caserna e crematório antes de serem abatidos por tiros de metralhadora. Uma semana depois, bombas caem dentro do próprio campo. Os nossos mestres mostram sinais de tensão. Já não parecem tão invencíveis. Às vezes até parecem um pouco assustados. Isto dá-nos um certo prazer e um bocadinho de esperança. A intoxicação por gás pára. Eles ainda nos matam, mas têm de o fazer eles próprios. Prisioneiros selecionados são abatidos a tiro nas câmaras de gás ou perto do Crematorium V. Em breve começam a desmantelar o crematório. A nossa esperança de sobrevivência aumenta.

A situação se deteriora ao longo do outono e do inverno. A comida escasseia. Muitas mulheres sucumbem e morrem de fome e exaustão cada dia que passa. O tifo leva uma parte terrível. Em dezembro, bombas aliadas caem no I.O. Farben, fábrica de combustível sintético e borracha. Alguns dias mais tarde, os aliados atacam novamente, mas desta vez várias bombas caem numa enfermaria dentro de Birkenau. Cinco SS morrem. Os guardas ficam mais irritáveis, mais imprevisíveis. Eu os evito. Tento me fazer invisível.

O novo ano chega, 1944 transforma-se em 1945. Conseguimos sentir que Auschwitz está morrendo. Rezamos para que seja em breve. Debatemos o que fazer. Deveríamos esperar que os russos nos libertassem? Deveríamos tentar escapar? E se conseguíssemos passar para lá da vedação? Onde iriamos? Os camponeses poloneses odeiam-nos tanto como os alemães. Esperamos. Que mais podemos fazer?

Em meados de Janeiro, eu sinto o cheiro de fumo. Olho para fora da porta da caserna. Fogueiras erguem-se por todo o campo. O cheiro é diferente. Pela primeira vez não estão a queimar pessoas. Estão a queimar papel. Estão a queimar as provas dos seus crimes. A cinza paira sobre Birkenau como neve. Eu sorrio pela primeira vez em dois anos.

Em 17 de janeiro, Mengele parte. O fim está próximo. Pouco depois da meia-noite, há uma chamada. Dizem que o campo inteiro de Auschwitz está sendo evacuado. O Reich ainda precisa dos nossos corpos. Os saudáveis serão retirados a pé. Os doentes ficarão para trás abandonados à sua sorte. Agrupamo-nos e marchamos em ordenadas filas de cinco.

À uma da manhã, passo pelos portões do inferno pela última vez, precisamente dois anos desde o dia da minha chegada, quase na mesma hora. Ainda não estou livre. Ainda tenho mais um teste para suportar.

A queda de neve é forte e severa. À distância conseguimos ouvir o trovão de um duelo de artilharia. Caminhamos, uma aparentemente infindável corrente de meio-humanos, vestidos com os nossos trapos às riscas e os nossos tamancos. O tiroteio é tão severo como a neve. Tentamos contar os tiros. Cem... duzentos... trezentos... quatrocentos... quinhentos... deixamos de contar depois disso. Cada tiro representa mais uma vida extinguida, mais um assassinato. Éramos vários milhares quando saímos. Temo que estejamos todos mortos antes de chegarmos ao destino.

Lene caminha à minha esquerda, Rachel à minha direita. Tentamos não tropeçar. Aqueles que tropeçam são mortos na altura e atirados a uma vala. Tentamos não sair da formação e ficar para trás . Aqueles que o fazem são mortos, também. A estrada está manchada de mortos. Passamos-lhe por cima e rezamos para não esmorecer. Comemos neve para matar a sede. Não há nada que possamos fazer sobre o frio horrível. Uma mulher tem pena de nós e atira batatas cozidas. Os que são insensatos o suficiente para as apanhar são mortos.

Dormimos em celeiros ou em casernas abandonadas. Aqueles que não se conseguem levantar suficientemente rápido quando acordados são mortos. A minha fome parece estar a abrir um buraco no estômago. É muito pior que a fome em Birkenau. De alguma forma, eu reúno a força para continuar a manter um pé à frente do outro. Sim, eu quero sobreviver, mas é ao mesmo tempo uma espécie de provocação. Eles querem que eu caia para que me possam matar. Eu quero testemunhar a destruição do seu Reich milenar. Quero rejubilar-me com a sua morte, como os alemães rejubilam com a nossa. Penso em Regina, voando para Mengele durante a seleção, tentando matá-lo com a colher. A coragem de Regina me dá forças.

Cada passo é rebelião.

No terceiro dia, ao cair da noite, ele vem para mim. Está montado num cavalo. Estamos sentadas na neve à beira da estrada, descansando. Lene está encostada a mim. Os seus olhos estão fechados. Temo que ela esteja acabada. Rachel pressiona-lhe neve contra os lábios para reanimá-la. Rachel é a mais forte. Ela praticamente carregou Lene toda a tarde.

Ele olha para mim. Ele é um Sturmbannführer das SS. Depois de doze anos sob jugo dos nazistas, aprendi a reconhecer as insígnias. Tento fazer-me invisível. Viro a cabeça e cuido de Lene. Ele puxa as rédeas do cavalo e coloca-se numa posição em que possa olhar melhor para mim. Questiono-me o que verá ele em mim. Sim, fui uma moça bonita no passado, mas estou hedionda agora, exausta, suja, doente, um esqueleto ambulante. Não consigo suportar o meu próprio cheiro. Eu sei que se interajo com ele vai acabar mal. Coloco a cabeça nos joelhos e finjo dormir. Ele é esperto demais para isso.

— Você aí — chama ele.

Eu olho para cima. O homem montado no cavalo aponta diretamente para mim.

— Sim, você. Levante-se. Venha comigo.

Eu me levanto. Estou morta. Eu sei. Rachel sabe também. Consigo vê-lo nos seus olhos. Ela já não tem mais lágrimas para chorar.

— Lembre-se de mim — sussurro enquanto sigo o homem a cavalo para as árvores. Felizmente ele não me pede para andar muito, apenas até um local a alguns metros da beira da estrada, onde uma grande árvore estava caída. Ele desmonta e amarra o cavalo. Senta-se na árvore caída e ordena que me sente junto a ele. Eu hesito. Nunca um SS pediu tal coisa. Dá umas palmadinhas na árvore. Eu me sento, mas alguns centímetros mais afastada do lugar que ele indicou. Estou com medo, mas também me sinto humilhada pelo meu cheiro. Ele desliza para mais perto. Cheira a álcool. Estou feita. É só uma questão de tempo.

Olho em frente. Ele tira as luvas, e toca meu rosto. Em dois anos de Birkenau, nenhum SS jamais me tocou. Por que este homem, um Sturmbannführer, me toca agora? Suportei muitas tormentas, mas esta é de longe a pior. Eu olho para a frente. A minha carne está em chamas.

— Que desperdício — diz ele. — Você era muito bonita antes?

Não consigo pensar em nada para dizer. Dois anos de Birkenau ,e ensinaram que em situações como esta nunca há uma resposta certa. Se respondo que sim, ele vai me acusar de arrogância judaica e me mata. Se respondo não, me mata por mentir.

— Vou partilhar um segredo com você. Sempre me senti atraído por judias. Se fosse por mim, devíamos ter matado os homens e usado as mulheres para nosso prazer. Teve filhos?

Penso em todas as crianças que vi irem para o gás em Birkenau. Ele exige uma resposta apertando rosto entre o polegar e os dedos. Fecho os olhos e tento não gritar. Ele repete a pergunta. Eu nego com a cabeça e ele me solta.

— Se conseguir sobreviver às próximas horas, talvez um dia tenha um filho. Dirá a esse filho o que aconteceu com você na guerra? Ou sentirá vergonha demais?

Um filho? Como é que uma moça na minha posição podia sequer contemplar dar à luz uma criança? Passei os últimos dois anos a tentar sobreviver simplesmente. Um filho está além da minha compreensão.

— Responda, judia!

A sua voz é repentinamente áspera. Sinto que a situação está prestes a ficar fora de controle. Ele agarra meu rosto novamente e vira-a para si. Tento olhar em outra direção, mas ele me sacode, obrigando-me a olhá-lo nos olhos.

Não tenho forças para resistir. Seu rosto é instantaneamente talhado na minha memória. Assim como o som de sua voz e seu alemão de sotaque austríaco. Ainda consigo ouvi-lo.

— O que dirá a seu filho sobre a guerra?

O que quer ele ouvir? O que quer ele que eu diga? Apertou-me o rosto.

— Fale, judia! O que dirá a teu filho sobre a guerra?

— A verdade, Herr Sturmbannführer. Eu direi ao meu filho a verdade.

De onde vieram estas palavras, não sei. Apenas sei que se estou prestes a morrer, morrerei com um pouquinho de dignidade. Penso novamente em Regina, voando para Mengele armada com uma colher.

Ele relaxa o aperto. A primeira crise parece ter passado. Ele exala pesadamente, como se exausto pelo seu longo dia de trabalho, então tira um cantil do bolso do casaco e dá um gole prolongado. Felizmente, ele não me oferece. Devolve o cantil ao bolso e acende um cigarro. Não me oferece um cigarro. Tenho cigarro e álcool, ele diz. Você não tem nada.

— A verdade? O que é a verdade, judia, como você a vê?

— Birkenau é a verdade, Herr Sturmbannführer.

— Não, minha querida, Birkenau não é a verdade. Birkenau é um boato. Birkenau é uma invenção dos inimigos do Reich e do cristianismo. É propaganda stalinista e ateísta.

— E as câmaras de gás? O crematório?

— Essas coisas não existiram em Birkenau.

— Eu vi, Herr Sturmbannführer. Todos nós vimos.

— Ninguém vai acreditar em tal coisa. Ninguém vai acreditar que é possível matar tantos. Milhares? Claro que a morte de milhares é possível. Afinal de contas isto foi uma guerra. Centenas de milhares? Talvez. Mas milhões? — Ele aspira seu cigarro. — Para dizer a verdade, eu vi com meus próprios olhos, e nem eu consigo acreditar.

Um tiro crepita pela floresta, seguido de outro. Mais duas moças mortas. O Sturmbaunführer dá outra longa golada no seu cantil de álcool.

Por que está bebendo? Está tentando manter-se quente? Ou ficar fora de si antes de me matar?

— Vou dizer o que você vai contar da guerra. Vai contar que foi transferida para leste. Que teve trabalho. Que tinha comida em abundância e cuidados médicos adequados. Que te tratamos bem e humanamente.

— Se isso é a verdade, Herr Sturmbannführer, então por que sou um esqueleto?

Ele não tem resposta, exceto sacar a pistola e encostá-la em minha têmpora.

— Repita o que aconteceu a você na guerra, judia. Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são invenções bolchevismo-judaicas. Diga essas palavras, judia.

Eu sei que não há como escapar viva desta situação. Mesmo que diga as palavras, estou morta. Não vou dizê-las. Não lhe vou dar essa satisfação. Fecho os olhos e espero que a bala faça um túnel em meu cérebro e me liberte do meu tormento.

Ele baixa a arma e grita. Outro SS aparece correndo. O Sturmbannführer ordena-lhe que me vigie. Ele sai e caminha pelas árvores até a estrada. Quando volta está acompanhado por duas mulheres. Uma delas é Rachel. A outra é Lene. Ordena ao SS que saia, e coloca a arma encostada na testa de Lene. Lene olha diretamente para meus olhos. Sua vida está em minhas mãos.

— Diga as palavras, judia! Foi transferida para o leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevismo-judaicas.

Não posso permitir que Lene morra pelo meu silêncio. Abro minha boca para falar, mas antes que possa repetir as palavras, Rachel grita:

— Não diga, Irene. Ele vai nos matar de qualquer maneira. Não lhe dê esse prazer.

O Sturmbannführer retira a arma da cabeça de Lene e coloca-a contra a de Rachel.

— Então diga você, cabra judia.

Rachel olha diretamente nos meus olhos e permanece em silêncio. O Sturmbannführer pressiona o gatilho e Rachel cai morta na neve. Coloca a arma contra a cabeça de Lene e, mais uma vez, ordena-me que fale. Lene abana a cabeça lentamente. Despedimo-nos com o olhar. Outro tiro e Lene cai junto a Rachel.

É minha vez de morrer.

O Sturmbannführer aponta a arma na minha direção. Da estrada vem o som de gritos. Raus! Raus! Os SS estão espicaçando as moças para que se levantem. Eu sei que minha caminhada acabou. Eu sei que não vou sair deste lugar viva. É onde eu vou cair, à beira de uma estrada polonesa, e aqui serei enterrada, sem mazevoth para marcar meu túmulo.

— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?

— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.

— Ninguém vai acreditar em você. — Guarda a pistola no coldre. — Sua coluna está de partida. Junte-se a eles. Sabe o que acontece aos que ficam para trás.

Ele monta em seu cavalo e sacode as rédeas. Eu caio na neve junto aos corpos das minhas amigas. Rezo por elas e peço que me perdoem. O fim da coluna passa. Cambaleio por entre as árvores e junto-me ao grupo. Caminhamos a noite inteira, em ordenadas filas de cinco. Eu verto lágrimas de gelo. Cinco dias depois de caminhar para longe de Birkenau, chegamos a uma estação de trem na vila silesiana de Wodzislaw. Somos agrupadas em vagões de carvão abertas e viajamos pela noite, expostas ao perverso tempo de Janeiro. Os alemães já não tinham necessidade de desperdiçar mais das suas preciosas munições conosco. O frio matou metade das moças só no meu vagão. Chegamos a um novo campo, Ravensbrück, mas não há comida para os novos prisioneiros. Após alguns dias, alguns de nós prosseguem, desta vez em caminhão de carroceria aberta. Termino a minha odisseia num campo em Neüstadt Glewe. Em 2 de maio de 1945, acordamos para descobrir que os nossos atormentadores SS abandonaram o campo. Mais tarde, nesse dia, somos libertadas por soldados americanos e russos.

Passaram-se doze anos. Não há um dia em que eu não veja os rostos de Rachel e Lene — e o rosto do homem que as assassinou. Suas mortes pesam em mim. Tivesse eu repetido as palavras do Sturmbannführer e talvez elas estivessem vivas e eu estaria num túmulo anônimo junto a uma estrada polonesa. Apenas mais uma vítima sem nome. No aniversário de suas mortes, digo-lhes as palavras de luto de Kaddish. Faço isto mais por hábito do que por fé. Perdi minha fé em Deus em Birkenau.

O meu nome é Irene Allon. Antes me chamava Irene Frankel.

No campo era conhecida como prisioneira número 29.395, e isto é o que eu testemunhei em janeiro de 1945, na marcha da morte de Birkenau.


17

TIBERÍADES, ISRAEL

ERA SABAT. Shamron ordenou a Gabriel que viesse a Tiberíades para a ceia. Gabriel, enquanto dirigia devagar pela encosta, olhou para cima e no terraço de Shamron viu postes de luz dançando ao vento que sopra do lago — e então vislumbrou Shamron, a eterna sentinela, caminhando lentamente pelo meio das chamas.

Gilah, antes de lhes servir a comida, acendeu um par de velas na sala de jantar e recitou a bênção. Gabriel fora educado num lar sem religião, mas nesse momento pensou que a visão da mulher de Shamron, de olhos fechados, as mãos desenhando a luz da vela em direção ao seu rosto, era a mais bela que já tinha visto. Shamron estava ausente e preocupado durante a refeição e sem paciência para conversa banal. Mesmo nestas alturas ele não falaria do seu trabalho em frente de Gilah, não por não confiar nela, mas por temer que ela deixasse de o amar se soubesse de todas as coisas que ele já fizera. Gilah preenchia os longos silêncios falando sobre a sua filha, que se tinha mudado para a Nova Zelândia para fugir do pai e estava a viver com um homem numa quinta de criação de galinhas. Ela sabia que Gabriel estava de alguma forma ligado ao Escritório, mas não suspeitava da verdadeira natureza do seu trabalho. Achava que ele era um escriturário que passava bastante tempo em viagem e apreciava arte. Serviu-lhes café e um tabuleiro de biscoitos e frutos secos, em seguida levantou a mesa e foi lavar a loiça. Gabriel, por entre o som de água corrente e porcelana a bater emanando da cozinha, pôs Shamron ao corrente. Falaram em voz baixa, com as tremeluzentes velas de sabat entre eles. Gabriel mostrou-lhe as pastas de Erich Radek e Action 1005. Shamron elevou a fotografia até a luz da vela e franziu o sobrolho, então elevou os óculos de ler até a testa careca e cravou o seu olhar duro em Gabriel mais uma vez.

— O que é que sabe sobre o que aconteceu a minha mãe durante a guerra?

O olhar calculado de Shamron, entretido com a xícara de café, deixou bem claro que não havia nada que ele não soubesse sobre a vida de Gabriel, inclusive o que tinha acontecido à mãe durante a guerra.

— Ela era de Berlim — disse Shamron. — Foi deportada para Auschwitz em janeiro de 1943 e passou dois anos no campo para mulheres de Birkenau. Deixou Birkenau numa marcha da morte. Ao contrário de milhares de outros, ela conseguiu sobreviver e foi libertada por tropas russas e americanas em Neüstadt Glewe. Estou esquecendo de alguma coisa?

— Algo aconteceu na marcha da morte, algo que ela nunca discutiria comigo. — Gabriel levantou a fotografia de Erich Radek. — Quando Rivlin me mostrou isso em Yad Vashem, eu sabia que já tinha visto essa cara em algum lugar. Levei algum tempo até me lembrar, mas finalmente lembrei. Eu a vi quando era garoto numa tela no estúdio da minha mãe.

— Foi por isso que foi a Safed, para ver Tziona Levin.

— Como sabe?

Shamron suspirou e sorveu o café. Gabriel, desanimado, contou a Shamron sobre a sua segunda visita a Yad Vashem nessa manhã. Quando colocou as páginas do testemunho da sua mãe na mesa, os olhos de Gabriel permaneceram fixos no rosto de Shamron. Foi então que Gabriel percebeu que Shamron já as tinha lido antes. O Memuneh sabia sobre a sua mãe. O Memuneh sabia tudo.

— Você estava sendo considerado para uma das mais importantes missões na história do Escritório — disse Shamron.  — A voz não tinha traço de remorso. — Precisava saber tudo o que pudesse sobre você. Seu perfil psicológico militar descreve-o como um lobo solitário, egoísta, com a frieza emocional de um assassino natural. A minha primeira visita a você confirmou isso, embora eu também tenha achado você insuportavelmente rude e clinicamente tímido. Eu queria saber por que você era como era. Pensei que sua mãe seria um bom ponto de partida.

— Então procurou o testemunho dela em Yad Vashem? — Fechou os olhos e abanou a cabeça uma vez. — Por que nunca me contou?

— Não era a minha função — disse Shamron, desprovido de sentimento. — Apenas sua mãe podia contar tais coisas. Ela obviamente carregou um pesado fardo de culpa até a morte. Ela não queria que você soubesse. Não estava sozinha. Havia muitos sobreviventes como sua mãe que nunca conseguiram enfrentar verdadeiramente suas lembranças. Nos anos após a guerra, antes de você nascer, parecia que um muro de silêncio se tinha erigido neste país. O Holocausto? Era discutido de modo incessante. Mas aqueles que efetivamente o suportaram tentavam com desespero enterrar as memórias e prosseguir. Era outra forma de sobrevivência. Infelizmente, sua dor foi passada à geração seguinte, os filhos e filhas dos sobreviventes. Pessoas como Gabriel Allon.

Shamron foi interrompido por Gilah, que perguntou da porta se precisavam de mais café. Shamron levantou a mão. Gilah percebeu que eles estavam falando de assuntos de trabalho e voltou para a cozinha. Shamron cruzou os braços na mesa e inclinou-se para a frente.

— Com certeza você deve ter suspeitado de que ela prestou testemunho. Por que sua curiosidade natural não o levou a Yad Vashem para ver com os seus próprios olhos? — Shamron, saudado apenas pelo silêncio de Gabriel, respondeu à pergunta ele mesmo. — Porque, como todos os filhos dos sobreviventes, teve sempre o cuidado de não perturbar o frágil estado emocional de sua mãe. Tinha medo de que se fosse longe demais, poderia enviá-la para um estado de depressão do qual ela poderia não regressar? — Fez uma pausa. — Ou foi por medo do que poderia encontrar? Tinha efetivamente medo de saber a verdade?

Gabriel olhou de maneira cortante, mas não respondeu. Shamron contemplou seu café por um momento antes de voltar a falar.

— Para ser honesto com você, Gabriel, quando li o testemunho de sua mãe, eu soube que eras perfeito. Trabalhas para mim por causa dela. Ela foi incapaz de te amar completamente. Como poderia ela? Ela tinha medo de te perder. Toda a gente que ela tinha amado tinha-lhe sido tirada. Perdeu os pais nas filas de seleção e as amigas que tinha ajudado em Birkenau foram levadas porque ela não disse as palavras que um Sturmbannfuhrer SS queria que ela dissesse.

— Eu teria compreendido se ela tivesse tentado me dizer.

Shamron abanou a cabeça com lentidão.

— Não Gabriel, ninguém consegue verdadeiramente entender. A culpa, a vergonha. Sua mãe conseguiu encontrar o lugar dela no mundo depois da guerra, mas de muitas maneiras a vida dela acabou naquela noite à beira de uma estrada polonesa. — Bateu a palma da mão na mesa, com força suficiente para fazer tilintar os pratos que restavam.

— Então o que fazemos? Temos pena de nós mesmos ou continuamos o trabalho e vemos se este homem é na verdade Erich Radek?

— Eu penso que sabe a resposta a isso.

— Será que Moshe Rivlin acha ser possível Radek ter estado envolvido na evacuação de Auschwitz?

Gabriel acenou que sim com a cabeça.

— Em janeiro de 1945, o trabalho de Aktion 1005 estava em grande parte completo, uma vez que todo o território conquistado a leste tinha sido recuperado pelos soviéticos. É possível que ele tenha ido a Auschwitz para demolir as câmaras de gás e o crematório e preparar os restantes prisioneiros para evacuação. Eles eram, afinal de contas, testemunhas do crime.

— Sabemos como este pedaço de imundície conseguiu sair da Europa depois da guerra?

Gabriel contou-lhe a teoria de Rivlin, que Radek, por ser austríaco católico, tinha se beneficiado dos serviços do bispo Alois Hudal em Roma.

— Então por que não seguimos o rastro — disse Shamron — e vemos se leva de volta à Áustria?

— Exatamente o que eu acho. Pensei em começar por Roma. Quero dar uma olhada nos documentos de Hudal.

— como muitos outros também.

— Mas esses não têm o número particular do homem que mora no andar de cima do Palácio Apostólico.

Shamron encolheu os ombros.

— Lá isso é verdade.

— Preciso de um passaporte limpo.

— Não é problema. Tenho um passaporte canadense bem bom que pode usar. Como está o teu francês ultimamente?

— Pas mal, mais je dois pratiquer l'accent d'un Quebecois.

— Às vezes você me assusta.

— Isso já é alguma coisa.

— Passe a noite aqui e voe para Roma amanhã. Eu o levo a Lod. Pelo caminho paramos na embaixada americana e temos uma conversa com o diretor.

— Sobre o quê?

— De acordo com o arquivo da Staatsarchiv, Vogel trabalhou para os americanos na Áustria na ocupação. Pedi aos nossos amigos em Langley que dessem uma olhada nos registros para ver se o nome de Vogel aparece. É um tiro no escuro, mas talvez tenhamos sorte.

Gabriel olhou para o testemunho da sua mãe: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos...

— Sua mãe foi uma mulher de coragem, Gabriel. Por isso escolhi você. Sabia que vinha de uma excelente estirpe.

— Ela era muito mais corajosa do que eu.

— Sim —, concordou Shamron. — Ela foi mais corajosa do que todos nós.

 

A OCUPAÇÃO REAL DE Bruce Crawford era um dos segredos mais mal guardados de Israel. O alto, patrício americano era o chefe da CIA na divisão de Tel Aviv. Declarado tanto ao governo israelense como à Autoridade Palestiniana, ele regularmente servia de ligação entre os dois lados do conflito. Rara era a noite em que o telefone de Crawford não tocava a horas terríveis. Ele andava cansado, e isso via-se.

Cumprimentou Shamron já dentro dos portões da embaixada na Rua Haraykon e acompanhou-o até o edifício. A sala de Crawford era amplo e, para o gosto de Shamron, decorado demais. Parecia mais o escritório de um vice-presidente corporativo do que o covil de um espião, mas esse era o estilo americano. Shamron afundou-se numa cadeira de pele e aceitou um copo de água gelada com limão da secretária. Ainda considerou acender um cigarro turco, mas reparou no sinal de PROIBIDO FUMAR proeminentemente disposto na frente da mesa de Crawford.

Crawford parecia não ter pressa em ir direto ao assunto em questão. Shamron já esperava isso. Havia uma regra não declarada entre espiões: Quando se pede um favor a um amigo, deve-se estar preparado para pagar na mesma moeda. Shamron, por estar tecnicamente fora do jogo, não podia oferecer nada palpável, apenas o conselho e a sabedoria de um homem que já cometera muitos erros. Finalmente, depois de uma hora, Crawford disse:

— Sobre aquela coisa do Vogel.

A voz do americano arrastou-se. Shamron, tomando nota dos vestígios de quebra na voz de Crawford, inclinou-se para a frente na sua cadeira, expectante. Crawford queimou tempo removendo um clip do dispensador magnético especial e esticou-o zelosamente.

— Demos uma olhadela em nossos próprios registros — disse Crawford, o olhar fugindo para baixo em direção ao seu trabalho. — Até enviamos uma equipe a Maryland para pesquisar no anexo dos Arquivos. Temo que estejamos eliminados.

— Eliminados? — Shamron considerava o uso de termos esportivos americanos desapropriado num assunto tão vital como a espionagem. Agentes, no mundo de Shamron, não eram eliminados, não ficavam fora de jogo, nem faziam carrinhos. Só havia sucesso ou fracasso, e o preço do fracasso, numa vizinhança como o Oriente Médio, era normalmente sangue. — O que é que significa isso exatamente?

— Significa — disse Crawford com pedantismo — que a nossa busca não produziu nada. Lamento, Ari, mas às vezes estas coisas são assim.

Levantou o clip endireitado e examinou-o cuidadosamente, como se estivesse orgulhoso da obra.

 

GABRIEL ESPERAVA no banco de trás do Peugeot de Shamron.

— Como foi?

Shamron acendeu um cigarro e respondeu à pergunta.

— Acredita nele?

— Se ele dissesse que tinham encontrado um arquivo pessoal de rotina ou um relatório de verificação de curriculum, talvez eu tivesse acreditado. Mas nada? Com quem ele pensa que está falando? Sinto-me insultado, Gabriel. Muito insultado.

— Pensa que os americanos sabem alguma coisa de Vogel?

— Bruce Crawford acabou de nos confirmar isso. — Shamron olhou para seu relógio de aço inoxidável. — Raios! Levou uma hora me enrolando para me enganar, e agora vai perder seu voo.

Gabriel olhou para o telefone no console. — Ligue — murmurou. — Desafio você.

Shamron pegou o telefone e teclou.

— Aqui é Shamron — bradou. — Há um voo da El Al que parte de Lod para Roma em trinta minutos. Surgiu um problema mecânico que vai exigir o atraso de uma hora na partida. Entendido?

 

DUAS HORAS MAIS TARDE, o telefone de Bruce Crawford ronronou. Levou o receptor ao ouvido. Reconheceu a voz. Era o vigilante que ele tinha designado para seguir Shamron. Um jogo perigoso, seguir o antigo chefe do Escritório no seu próprio terreno, mas Crawford seguia ordens.

— Depois da embaixada ele foi para Lod.

— O que foi ele fazer ao aeroporto?

— Largar um passageiro.

— Reconheceste-o?

O vigilante indicou que sim. Sem mencionar o nome do passageiro, conseguiu comunicar o fato de o homem em questão ser um agente digno de nota do Escritório, recentemente ativo numa cidade da Europa Central.

— Tem certeza que era ele?

— Sem dúvida alguma.

— Para onde ia?

Crawford, depois de ouvir a resposta, cortou a ligação. Um momento depois estava sentado em frente ao seu computador, enviando uma mensagem por um cabo seguro para a sede. O texto era direto e conciso, como o receptor gostava. Elijah está a viajar para Roma. Chega esta noite num voo da El Al de Tel Aviv,

 

18

 

ROMA

 

 

GABRIEL QUERIA encontrar-se com o homem do Vaticano em qualquer lugar menos no seu escritório no andar de topo do Palácio Apostólico. Combinaram em Piperno, um velho restaurante numa praça calma perto do Tibre, a algumas ruas de distância do antigo gueto judeu. Era o tipo de tarde de Dezembro que apenas Roma conseguia ter, e

Gabriel, chegando primeiro, providenciou uma mesa numa parte aquecida e iluminada pela luz solar da esplanada.

Alguns minutos mais tarde, um padre de passo firme entrou na praça e dirigiu-se ao restaurante. Era alto e magro e tão atraente como uma vedeta do cinema italiano. O corte do fato clérigo negro e colar romano sugeriam que, embora casto, ele não era desprovido de vaidade pessoal ou profissional. E com razões para isso. Monsenhor Luigi Donati, o secretário particular de Sua Santidade o Papa Paulo VII, era possivelmente o segundo homem mais poderoso na Igreja Católica Romana.

Havia uma obstinação fria em Luigi Donati que tornava difícil para Gabriel imaginá-lo batizando bebês ou sagrando doentes em alguma cidadezinha poeirenta. Seus olhos escuros irradiavam uma feroz e firme inteligência, enquanto o teimoso perfil do queixo revelava que era um homem perigoso para ter como inimigo. Gabriel sabia que isto era verdade por experiência própria. Um ano antes, um caso levara-o ao Vaticano, às mãos competentes de Donati, e juntos tinham destruído uma grave ameaça que pendia sobre o Papa Paulo VII. Luigi Donati estava em dívida para com Gabriel. Gabriel tinha esperança que Donato fosse um homem para pagar as suas dívidas.

Donati era também um homem que gostava, acima de tudo, de passar algumas horas num ensolarado café de Roma. O seu estilo exigente tinha conquistado apenas uns poucos amigos dentro da Cúria e, como o seu chefe, ele passava as fronteiras do Vaticano sempre que possível. Aceitou o convite de Gabriel para almoçar como um náufrago que tenta alcançar uma boia. Gabriel tinha a distinta impressão que Luigi Donati estava desesperadamente só. Por vezes Gabriel ponderava se Luigi Donati não estaria arrependido da vida que tinha escolhido. O padre acendeu um cigarro com um isqueiro banhado a ouro.

— Como vai o negócio?

— Estou a trabalhar num novo Bellini. O retábulo de Crisóstomo.

— Sim, eu sei.

Antes de se tornar Papa Paulo VII, o cardeal Pietro Lucchesi tinha sido o patriarca de Veneza. Luigi Donati estivera a seu lado. Os seus laços com Veneza mantinham-se fortes. Havia pouca coisa que acontecesse na sua antiga diocese que ele não soubesse.

— Espero que Francesco Tiepolo te esteja a tratar bem.

— Claro.

— E Chiara?

— Está bem, obrigado.

— Vocês os dois já pensaram em... formalizar a sua relação?

— É complicado, Luigi.

— Sim, mas o que não é?

— Sabes, por momentos, parecias mesmo um padre.

Donati inclinou a cabeça para trás e riu à gargalhada. Estava a começar a relaxar. — O Santo Padre manda cumprimentos. Pede desculpa por não se poder juntar a nós. Piperno é um dos seus restaurantes preferidos. Ele recomenda que comecemos com o filetti di baccalá. Ele jura que é o melhor de Roma.

— A infalibilidade estende-se a recomendações gastronômicas?

— O Papa é infalível apenas quando age como mestre supremo em matéria de fé e moral. Temo que a doutrina não se estenda a filetes de bacalhau frito. Mas ele tem uma boa dose de experiências mundanas nestes assuntos. Se eu fosse a ti, ia pelo filetti.

O garçom de paletó branco apareceu. Donati fez o pedido. O frascati começou a fluir, e o estado de espírito de Donati amadureceu como a suave tarde. Passou os minutos seguintes regalando Gabriel com mexericos curianos, histórias de rumores de bastidores e intrigas da corte. O Vaticano não era muito diferente do Escritório. Finalmente, Gabriel para começar conduziu a conversa para o tópico que o juntara a Donati: o papel da Igreja Católica Romana no Holocausto.

— Como está a correr o trabalho da Comissão Histórica?

— como seria de esperar. Nós fornecemos os documentos dos arquivos secretos, eles fazem a análise com o mínimo de interferência possível da nossa parte. Um relatório preliminar das suas conclusões é-nos devido em seis meses. Depois disso, eles começarão a trabalhar em história multivolume.

— Alguma indicação de como está a correr o relatório preliminar?

— É como eu disse, tentamos deixar os historiadores trabalhar com o mínimo de interferência possível do Palácio Apostólico.

Gabriel lançou a Donati um olhar duvidoso sobre o seu copo de vinho. Se não fosse pelo fato clérigo e colar romano do monsenhor, Gabriel teria assumido que ele era um espião profissional. A noção de que Donati não tinha pelo menos duas fontes de informação no staff da comissão era insultuosa. Gabriel, por entre tragos de frascati, expressou a sua visão a Monsenhor Donati. O padre confessou.

— Tudo bem, digamos que eu não estou completamente às escuras sobre a comissão.

— E?

— O relatório terá em consideração as enormes pressões sobre Pio, mas mesmo assim temo que não vá pintar um retrato muito abonatório das suas ações, nem das ações das igrejas nacionais na Europa Central e de Leste.

— Pareces nervoso, Luigi.

O padre inclinou-se sobre a mesa e parecia escolher as suas próximas palavras cuidadosamente.

— Abrimos a caixa de Pandora, meu amigo. Uma vez começado um processo como este, é impossível prever onde irá terminar e que áreas da Igreja irão afetar. Os liberais aproveitaram as ações do Santo Padre e imploram por mais: um terceiro Concílio do Vaticano. Os reacionários gritam heresia.

— Algo de grave?

Mais uma vez, o monsenhor levou um tempo desmesurado a responder.

— Estamos a interceptar alguns rumores sérios por parte de alguns reacionários na região francesa de Languedoc — o tipo de reacionários que acredita que o Vaticano Segundo foi trabalho do Diabo e que cada Papa desde João XXIII é um herege.

— Pensava que a Igreja estava cheia de gente assim. Tive a minha própria briga com um grupo amigável de patriarcas e laicos chamado Crux Vera.

Donati sorriu.

— Temo que este grupo seja farinha do mesmo saco, só que, ao contrário de Crux Vera, não tem uma base de ação dentro da Cúria. São forasteiros, bárbaros batendo aos portões. O Santo Padre tem muito pouco controle sobre eles, e as coisas já começaram a aquecer.

— Diz-me se houver algo que eu possa fazer para ajudar.

— Tem cuidado, meu amigo, eu talvez faça uso dessas tuas palavras. O filetti di baccalá chegou. Donati espremeu o sumo de limão sobre o prato e colocou um dos filetes na boca. Regou o peixe com uma golada de frascati e reclinou-se para trás na sua cadeira, as suas feições atraentes assumiram o ar de puro contentamento. Para um padre que trabalha no Vaticano, o mundo temporal oferecia poucas delícias mais tentadoras que almoçar numa ensolarada praça romana. Começou noutro filetti e perguntou a Gabriel o que o trazia à cidade.

— Penso que posso dizer estar a trabalhar num assunto relacionado com o trabalho da Comissão Histórica.

— Como é isso?

— Tenho razões para suspeitar que, logo após o final da guerra, o Vaticano pode ter ajudado um procurado homem pelas SS, chamado Erich Radek, a fugir da Europa.

Donati parou de mastigar, as suas feições tornaram-se subitamente sérias.

— Tem cuidado com as palavras que usas e as suposições que fazes, meu amigo. É bem possível que esse Radek tenha recebido ajuda de alguém em Roma, mas não foi o Vaticano.

— Acreditamos que foi o bispo Hudal de Anima. A tensão nas feições de Donati suavizou.

— Infelizmente, o bom do bispo ajudou de fato um certo número de fugitivos nazistas. Não se pode negar isso. O que te leva a pensar que ele ajudou esse Radek?

— Uma dedução informada. Radek era um austríaco católico. Hudal era reitor do seminário alemão em Roma e padre confessor da comunidade alemã e austríaca. Se Radek viesse a Roma em busca de ajuda, faria sentido se ele procurasse o bispo Hudal. Donati acenou concordante.

— Não posso contra argumentar isso. O bispo Hudal estava interessado em proteger conterrâneos do que ele acreditava serem intenções vingativas dos aliados vitoriosos. Mas isso não significa que ele soubesse que Erich Radek era um criminoso de guerra. Como poderia ele saber? Itália estava inundada de pessoas deslocadas após a guerra, todos eles em busca de ajuda. Se Radek procurasse Hudal e lhe contasse uma história triste, é provável que lhe fosse concedido asilo e ajuda.

— Não deveria Hudal ter perguntado a um homem como Radek porque andava em fuga?

— Talvez devesse, mas estás a ser ingênuo se assumes que Radek teria respondido honestamente à questão. Ele teria mentido, e o bispo Hudal não teria maneira de saber.

— Um homem não se torna fugitivo sem razão, Luigi, e o Holocausto não era um segredo. O bispo Hudal devia ter percebido que estava a ajudar criminosos de guerra a escapar à justiça.

Donati esperou para responder enquanto o garçom servia um prato de massa.

— O que tens de entender é que havia muitas organizações e indivíduos na altura que deram assistência a refugiados, dentro da Igreja e fora. Hudal não era o único.

— Onde foi ele buscar o dinheiro para financiar a operação?

— Ele diz que todo ele veio de contas do seminário.

— E tu acreditas nisso? Cada SS que Hudal deu assistência precisava de numerário, bilhete de navio, um visto e uma vida nova num pais estrangeiro, para não falar do custo de lhes providenciar asilo em Roma até que pudessem ser despachados. Pensa-se que Hudal ajudou centenas de homens das SS desta forma. Isso representa muito dinheiro, Luigi: centenas de milhar de dólares. A mim custa-me acreditar que Anima tivesse esse tipo de trocos por ai.

— Então assumes que alguém lhe deu dinheiro — disse Donati, enrolando habilmente espaguete no garfo. — Alguém como o Santo Padre, por exemplo.

— O dinheiro teve de vir de algum lado.

Donati pousou o garfo e cruzou os braços, pensativo.

— Há provas que o bispo Hudal recebeu, de fato, fundos do Vaticano para pagar o seu trabalho com refugiados.

— Eles não eram refugiados, Luigi. Pelo menos, não todos. Muitos deles eram culpados de crimes indescritíveis. Estás a dizer que Pio não fazia ideia que Hudal estava a ajudar criminosos procurados a escapar à justiça?

— Digamos apenas que, com base nas provas documentais e testemunho de sobreviventes, será muito difícil provar essa acusação.

— Não sabia que tinhas estudado lei canônica, Luigi. — Gabriel repetiu a pergunta, devagar, com uma ênfase acusatória nas palavras relevantes. — O papa sabia que Hudal estava a ajudar criminosos de guerra a escapar à justiça?

— Sua Santidade opôs-se aos julgamentos de Nuremberg porque acreditava que serviam apenas para enfraquecer os alemães e encorajar os comunistas. Ele acreditava igualmente que os Aliados andavam atrás de vingança e não de justiça. É bem possível que o Santo Padre soubesse que o bispo Hudal estivesse a ajudar nazistas e que aprovasse. Provar essa contenda é, no entanto, um outro assunto. — Donati apontou os dentes do seu garfo para a massa intata de Gabriel. — É melhor comeres isso antes que arrefeça.

— Lamento, mas perdi o apetite.

Donati mergulhou o seu garfo na massa de Gabriel.

— Então o que é que este indivíduo Radek alegadamente fez? Gabriel deu uma breve sinopse da ilustre carreira nas SS do Sturtnbannführer Erich Radek, começando com o seu trabalho para o setor de emigração judaica de Adolf Eichmann em Viena e terminando com o seu comando da Aktion 1005. No final da exposição de Gabriel, também Donati tinha perdido o apetite.

— Eles acreditavam mesmo que conseguiam esconder todas as provas de um crime tão imenso?

— Não tenho certeza se eles acreditavam ser possível, mas numa larga escala tiveram sucesso. Por causa de homens como Erich Radek, nunca saberemos quantas pessoas realmente pereceram na Shoah.

Donati contemplou o seu vinho.

— O que é que queres saber sobre a ajuda do bispo Hudal a Radek?

— Podemos assumir que Radek precisava de um passaporte. Para isso, Hudal teria recorrido à Cruz Vermelha Internacional. Eu quero saber o nome nesse passaporte. Radek também precisaria de um sítio para ir. Teria precisado de um visto. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sei que foi há muito tempo, mas o bispo Hudal mantinha registros, não mantinha?

Donati acenou lentamente.

— Os papéis privados do bispo Hudal estão guardados nos arquivos de Anima. Como deves calcular estão selados.

— Se há alguém em Roma que possa quebrar o selo, és tu, Luigi.

— Não podemos simplesmente irromper pela Anima e pedir para ver os papéis do bispo. O atual reitor é o bispo Theodor Drexler, e não é nenhum parvo. Vamos precisar de uma desculpa, um tema de capa, como se diz em sua linguagem.

— Temos um.

— Qual é?

— A Comissão Histórica.

— Estás a sugerir que digamos ao reitor que a Comissão requisitou os papéis de Hudal?

— Precisamente.

— E se ele recusar?

— Então eu apresento-me.

— E quem é suposto seres?

Gabriel alcançou o seu bolso e retirou um cartão de identificação plastificado, completo com fotografia.

— Shmuel Rubenstein, professor de religião comparativa na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Donati devolveu o cartão a Gabriel e abanou a cabeça.

— Theodor Drexler é um teólogo brilhante. Ele vai querer arrastar-te para uma discussão, talvez algo sobre as raízes comuns das religiões mais antigas no mundo ocidental. Estou bastante confiante que te vais espalhar ao comprido, e o bispo vai desmascarar-te.

— É sua função garantir que isso não aconteça.

— Sobrestimas as minhas capacidades, Gabriel.

— Telefone, Luigi. Preciso ver os papéis do bispo Hudal.

— Vou fazê-lo, mas primeiro tenho uma pergunta. Por quê? Donati, depois de ouvir a resposta de Gabriel, digitou um número no celular e pediu que o passassem a Anima.

 

19

 

ROMA

 

 

A IGREJA DE Santa Maria deli"Anima fica localizada no Centro Storico, a oeste da Piazza Navona.

Durante quatro séculos foi a igreja alemã em Roma. O papa Adriano VI, filho de um construtor naval alemão de Utrech e o último papa não italiano antes de João Paulo II, está enterrado numa magnífica tumba à direita do altar principal. Pela Via delia Pace chega-se ao seminário adjacente. E foi aí, nas sombras frias do pátio de entrada, que se encontraram com o bispo Theodor Drexler na manhã seguinte.

O monsenhor Donati cumprimentou-o num excelente alemão de sotaque italiano, e apresentou Gabriel como "o instruído professor Shmuel Rubenstein da Universidade Hebraica". Drexler estendeu a mão num ângulo que por instantes deixou Gabriel na dúvida se deveria apertá-la ou beijar o anel. Após uma breve hesitação, deu-lhe uma firme sacudidela. A pele era fria como mármore de igreja.

O reitor acompanhou-os escada acima até a um modesto escritório repleto de livros. A sua sotaina murmurou quando se sentou na enorme cadeira na zona de estar. A grande cruz peitoral de ouro brilhava com a luz solar que entrava obliquamente pelas altas janelas. Ele era baixo e bem alimentado, perto dos setenta, com uma delicada auréola de cabelo branco e bochechas extremamente rosadas. Os cantos da boca estavam sempre subidos num sorriso — mesmo agora, que estava claramente descontente — e os seus pálidos olhos azuis brilhavam com uma inteligência condescendente. Era um rosto que conseguia confortar os doentes e lançar o medo de Deus num pecador. Monsenhor Donati estava certo. Gabriel tinha de ter cuidado.

Donati e o bispo passaram alguns minutos a trocar elogios sobre o Santo Padre.

O bispo informou Donati que rezava pela continuação da boa saúde do pontífice, enquanto Donati anunciou que Sua Santidade estava extraordinariamente satisfeita com o trabalho do bispo Drexler na Anima. Ele referia-se ao bispo como "Sua Graça" tantas vezes quanto possível. No final da troca de elogios, Drexler estava tão engraxado que Gabriel temia que escorregasse pela cadeira.

Quando monsenhor Donati mencionou finalmente o propósito da sua visita ao Anima, o estado de espírito de Drexler enegreceu, como se uma nuvem passasse em frente ao Sol, embora o seu sorriso se mantivesse firme.

— Não consigo perceber como é que uma investigação polêmica aos registros do trabalho com refugiados alemães do bispo Hudal depois da guerra irá ajudar no processo de reparação entre católicos romanos e judeus.

A sua voz era suave e seca e o seu alemão de sotaque vienense.

— Uma justa e equilibrada investigação das atividades do bispo Hudal revelariam que ele também ajudou um bom número de judeus.

Gabriel inclinou-se para a frente. Era a altura de o instruído professor da universidade hebraica se meter na conversa.

— Está a dizer, Sua Graça, que o bispo Hudal escondeu judeus durante a rusga de Roma?

— Antes da rusga e depois. Existiam muitos judeus a viver dentro dos muros da Anima. Judeus batizados, claro.

— E aqueles que não eram batizados?

— Não podiam ser escondidos aqui. Não teria sido próprio. Foram enviados para outro lugar.

— Perdoe-me, Sua Graça, mas como é que se distingue exatamente um judeu batizado de um judeu normal?

Monsenhor Donati cruzou a perna e cuidadosamente alisou o vinco na perna da calça, um sinal para parar e desistir desta linha de inquérito. O bispo respirou fundo e respondeu à questão.

— Podem-lhes ter sido feitas algumas perguntas simples sobre assuntos da fé e da doutrina católica. Como recitar um pai-nosso ou uma ave-maria. Normalmente, torna-se facilmente perceptível quem está a dizer a verdade e quem está a mentir para conseguir asilo no seminário.

Um toque na porta satisfez o objetivo de Luigi Donati acabar com a troca de palavras. Um jovem noviço entrou na sala, carregando um tabuleiro de prata. Serviu chá a Donati e Gabriel. O bispo bebeu água quente com uma fina rodela de limão.

Quando o rapaz saiu, Drexler disse:

— Mas tenho certeza de que não está interessado nos esforços do bispo Hudal em proteger judeus dos nazistas, ou está, professor Rubinstein? Está interessado na ajuda que ele deu a oficiais alemães depois da guerra?

— Oficiais alemães não. Criminosos de guerra SS procurados.

— Ele não sabia que eram criminosos.

— Temo que essa defesa seja pouco crível, Sua Graça. O bispo Hudal era um empenhado antissemita e um defensor do regime de Hitler. Não faria sentido que ele de bom grado ajudasse austríacos e alemães depois da guerra, independentemente dos crimes que tivessem cometido?

— A sua oposição aos judeus era de natureza teológica, não social. Quanto ao seu apoio ao regime nazista, não ofereço defesa. O bispo Hudal condena-se pelas suas próprias palavras e escrita.

— E seu carro? — Gabriel acrescentou, fazendo bom uso do arquivo de Rivlin Moshe. — O Bispo Hudal usava a bandeira da união do Reich em sua limusine oficial. Não fazia segredo de suas simpatias.

Drexler sorveu a água com limão e virou o seu olhar gelado para Donati.

— Como muitos outros na Igreja, eu tinha as minhas preocupações sobre a Comissão Histórica do Santo Padre, mas mantive essas preocupações para mim mesmo, por respeito a Sua Santidade. Agora parece que a Anima está sendo analisada em microscópio. Eu tenho de impor limites. Não vou permitir que a reputação desta grande instituição seja arrastada pela lama da história.

Monsenhor Donati examinou a perna das suas calças por um momento, e levantou o olhar. Por baixo de calma exterior, o secretário papal estava a ferver com a insolência do reitor. O bispo tinha esticado a corda; Donati estava prestes a esticar de volta. De alguma forma, ele conseguiu manter a voz ao nível de um murmúrio de reza.

— Independentemente da sua preocupação com este assunto, Sua Graça, é o desejo do Santo Padre que seja concedido ao professor Rubinstein o acesso aos papéis do bispo Hudal.

Um silêncio profundo pairou sobre a sala. Drexler mexeu na cruz em seu peito, procurando uma maneira de escapar. Não havia nenhuma; resignação era a única conduta honrada. E deixou cair seu trunfo.

— Não desejo desafiar Sua Santidade neste assunto. Não me deixa outra saída senão cooperar, monsenhor Donati.

— O Santo Padre não esquecerá, bispo Drexler.

— Nem eu, Monsenhor.

Donati exibiu um sorriso irônico.

— É do meu conhecimento que os papéis pessoais do bispo estão aqui na Anima.

— É correto. Estão guardados em nossos arquivos. Vai levar alguns dias até serem totalmente localizados e organizados de forma a poderem ser lidos e compreendidos por um estudioso como o professor Rubinstein.

— É muito atencioso da sua parte, Sua Graça — disse monsenhor Donati — mas gostaríamos de vê-los agora mesmo.

 

ELE CONDUZIU-OS POR uma escada em caracol de pedra com degraus gastos pelo tempo, tão escorregadios como gelo. Ao fundo das escadas havia uma pesada porta de carvalho com armações de ferro forjado. Foi construída para suportar aríetes, mas provou não estar à altura de um esperto padre do Veneto e do "professor" de Jerusalém.

O bispo Drexler destrancou a porta e empurrou-a com o ombro. Tateou na escuridão por um momento e ligou um interruptor que ecoou um estalido agudo. Uma série de lâmpadas de teto, zumbindo e tinindo com o súbito fluxo de eletricidade, iluminaram uma longa passagem subterrânea com um teto de pedra em arco. Em silêncio, o Bispo acenou para entrarem.

A cave tinha sido construída para homens menores. O pequeno bispo conseguia andar pela passagem sem alterar a sua postura. Gabriel tinha apenas de inclinar a cabeça para evitar as lâmpadas, mas monsenhor Donati, com bem mais de um metro e oitenta de altura, era forçado a dobrar-se pela cintura como um corcunda. Aqui residia a memória institucional da Anima e do seu seminário, quatro séculos de registros baptismais, certificados de casamento e obituários. Os registros dos padres que aqui tinham servido e dos alunos que tinham estudado dentro das paredes do seminário. Parte estava guardada em armários de pinho, outra em grades ou em caixas de cartão. As novas adições eram guardadas em contentores de plástico modernos. O cheiro a umidade e a caruncho era penetrante, e um fio de água escorria, algures, das paredes. Gabriel, que tinha uma noção sobre os efeitos prejudiciais do frio e da umidade no papel, rapidamente perdeu a esperança de encontrar os papéis do bispo Hudal intatos. O bispo Drexler pairou sobre eles por um momento e ofereceu-se para ajudar na busca dos documentos. Monsenhor Donati deu-lhe uma pancadinha no ombro e disse que eles se arranjariam sozinhos. O bispo fez o sinal da cruz e afastou-se lentamente pela passagem arqueada.

 

FOI GABRIEL que, duas horas mais tarde, encontrou.

Erich Radek tinha chegado à Anima em 3 de março de 1948. Em 24 de maio, a Comissão de Ajuda Pontífice, a organização de ajuda a refugiados do Vaticano, emitira a Radek um documento de identificação do Vaticano com o número 9645/99 e o pseudônimo "Otto Krebs". Nesse mesmo dia, com a ajuda do bispo Hudal, Otto Krebs usou a sua identificação do Vaticano para conseguir um passaporte da Cruz Vermelha. Na semana seguinte foi-lhe emitido um visto de entrada pela República Árabe da Síria. Comprou passagens de classe econômica com dinheiro que lhe foi dado pelo bispo Hudal e zarpou do porto italiano de Gênova em fins de junho. Krebs levava quinhentos dólares no bolso. Um recibo do dinheiro, ostentando a assinatura de Radek, tinha sido guardado pelo bispo Hudal. O artigo final do arquivo de Radek era uma carta, com um selo sírio e o carimbo postal de Damasco, que agradecia ao bispo Hudal e ao Santo Padre pela ajuda e a promessa de que um dia a dívida seria paga. Estava assinada Otto Krebs.


20

ROMA

O BISPO DREXLER ESCUTOU a fita de áudio uma última vez, e ligou para um número em Viena.

— Receio que tenhamos um problema.

— Que tipo de problema?

Drexler contou ao homem em Viena sobre os visitantes à Anima nessa manhã: o monsenhor Donati e um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

— Como disse ele que se chamava?

— Rubinstein. Declarou ser um investigador da Comissão Histórica.

— Ele não era nenhum professor.

— Eu calculei isso, mas não estava em posição de contestar a sua boa-fé.

Monsenhor Donati é um homem muito poderoso dentro do Vaticano. Só há um mais poderoso, e é o herege para quem ele trabalha.

— De que andavam eles à procura?

— Documentação sobre a ajuda dada pelo bispo Hudal a um determinado refugiado depois da guerra.

Houve um longo silêncio antes de o homem colocar a questão seguinte.

— Já deixaram a Anima?

— Sim, há cerca de uma hora.

— Porque levaste tanto tempo a telefonar?

— Estava na esperança de conseguir fornecer alguma informação útil.

— E consegues?

— Sim, acredito que sim.

— Diz-me.

— O professor está hospedado no Hotel Cardinal na Via Giulia. E está registrado sob o nome de René Duran, com um passaporte canadense.

 

— PRECISO QUE PEGUE um relógio em Roma.

— Quando?

— Imediatamente.

— Onde está?

— Há um homem hospedado no Hotel Cardinal na Via Giulia. Está registrado como René Duran, mas às vezes usa o nome Rubinstein.

— Quanto tempo vai estar em Roma?

— Incerto, e é por isso que tens de partir agora. Há um voo da Alitalia que parte para Roma daqui a duas horas. Um lugar em classe executiva está reservado em teu nome.

— Se viajo de avião não poderei levar as ferramentas necessárias à reparação. Preciso de alguém que as forneça em Roma.

— Tenho o homem certo. — Recitou um número de telefone, que o Relojoeiro guardou na memória. — Ele é muito profissional e, acima de tudo, extremamente discreto. Não te pediria para ir ter com ele se não fosse.

— Tens uma fotografia deste cavalheiro Duran?

— Vai chegar ao teu fax dentro de instantes.

O Relojoeiro desligou o telefone e apagou as luzes da frente da loja. Em seguida entrou na oficina e abriu um armário. Dentro estava um pequeno saco de viagem, contendo uma muda de roupa e um estojo de barbear. O fax tocou. O Relojoeiro vestiu um sobretudo e um chapéu enquanto o rosto de um homem morto se ia revelando lentamente.

 

21

 

ROMA

 

 

GABRIEL SENTOU-SE NUMA MESA do Doney na manhã seguinte para tomar café. Trinta minutos depois um homem entrou e dirigiu-se ao bar. O cabelo parecia palha de aço e tinha cicatrizes de acne nas largas bochechas. A roupa era cara, mas de mau gosto. Bebeu dois expressos de uma golada e manteve um cigarro a arder durante o tempo todo. Gabriel olhou para o seu La Repubblica e sorriu. Shimon Pazner era o homem do Escritório em Roma há cinco anos, no entanto ainda não tinha perdido o aspecto andrajoso de um colono do Negev.

Pazner pagou a conta e dirigiu-se aos lavabos. Quando saiu, estava de óculos de sol postos, o sinal de que o encontro estava de pé. Dirigiu-se à porta giratória, parou na Via Veneto e em seguida virou para a direita e começou a caminhar. Gabriel deixou dinheiro na mesa e seguiu-o.

Pazner atravessou o Corso d'Itália e entrou na Villa Borghese. Gabriel caminhou ao longo do Corso um pouco afastado e entrou no parque por outro acesso.

Encontrou Pazner num caminho por entre as árvores e apresentou-se como René Duran de Montreal. Juntos caminharam em direção à Galleria. Pazner acendeu um cigarro.

— Há rumores de que teve uns apertos nos Alpes numa noite destas.

— Os rumores viajam depressa.

— O Escritório é como um círculo de costureiras judaicas, sabe disso. Mas você tem um problema mais grave. Lev ditou a sentença. Allon passou dos limites. O Allon, caso vos bata à porta, deve ser posto na rua. — Pazner cuspiu para o chão. — Estou aqui por lealdade ao Velho, não a si, Monsieur Duran. É bom que isto valha a pena.

Sentaram-se num banco de mármore no pátio da entrada da Galleria Borghese e olharam em direções opostas para manter as aparências. Gabriel contou a Pazner sobre o homem das SS, Erich Radek, que viajara para a Síria sob o nome de Otto Krebs.

— Ele não foi para Damasco estudar civilizações antigas —, disse Gabriel. — Os sírios deixaram-no entrar por alguma razão. Se ele estava próximo do regime, talvez apareça nos registros.

— Então quer que eu faça uma pesquisa para ver se o conseguimos situar em Damasco?

— Exatamente.

— E como espera que requisite esta pesquisa sem que Lev e a Segurança descubram? Gabriel olhou para Pazner como se se sentisse insultado pelas perguntas. Pazner retraiu-se.

— Tudo bem, digamos que talvez eu tenha uma moça nas Pesquisas que pode dar uma olhadela discreta nos registros por mim.

— Só uma moça?

Pazner encolheu os ombros e atirou com o seu cigarro para a gravilha.

— Mesmo assim ainda me parece um tiro no escuro. Onde está hospedado? Gabriel disse-lhe.

— Há um restaurante chamado La Carbonara no limite norte do Campo dei Fiori, perto da fonte.

— Eu conheço.

— Esteja lá às oito. Vai haver uma reserva no nome de Brunacci para as oito e meia. Se a reserva for para dois, significa que a pesquisa foi um fiasco. Se for para quatro, venha até a Piazza Farnese.

 

NA MARGEM OPOSTA do Tibre, numa pequena praça a alguns metros da Porta de Sant'Ana, o Relojoeiro estava sentado nas sombras da esplanada na tarde fria, sorvendo um cappuccino. Na mesa ao lado, um par de padres com sotaina envolviam-se numa animada conversa. O Relojoeiro, embora não falasse italiano, assumiu que eram burocratas do Vaticano. Um gato vadio corcunda roçava pelas pernas do Relojoeiro e suplicava por comida. Prendeu o animal entre os tornozelos e apertou, aumentando lentamente a pressão, até que o gato soltou um gemido estrangulado e fugiu a correr. Os padres olharam com desagrado; o Relojoeiro deixou dinheiro na mesa e afastou-se. Onde já se vira, gatos num café . Ele estava ansioso por concluir o seu assunto em Roma e regressar a Viena. Caminhou ao longo da Colunata de Bernini e parou por um momento para admirar a larga Via delia Conciliazione em direção ao Tibre. Um turista estendeu-lhe uma máquina fotográfica descartável e pediu-lhe, numa indecifrável língua eslava, que lhe tirasse uma fotografia em frente ao Vaticano. O austríaco, sem dizer uma palavra, apontou para o seu relógio de pulso, indicando que estava atrasado para um encontro e virou costas.

Atravessou a ampla e trovejante praça mesmo por trás da abertura da colunata. Ostentava o nome de um papa recente. O Relojoeiro, embora tivesse poucos interesses além de relojoaria antiga, sabia que este papa era uma figura controversa. Considerava bastante divertida a celeuma que pairava em seu redor. Então não tinha ajudado os judeus durante a guerra? Desde quando era da responsabilidade de um papa ajudar judeus? Eles eram, afinal de contas, os inimigos da Igreja.

Afastou-se do Vaticano em direção ao parque Janiculum por uma rua estreita cheia de sombras, alinhada por edifícios cor de ocre cobertos por um pó fino. O Relojoeiro caminhou pelo pavimento rachado, procurando pela morada que lhe tinha sido indicada nessa manhã por telefone. Encontrou-a, mas hesitou antes de entrar. Gravado no vidro coberto de pó estavam as palavras ARTICOLI RELIGIOSI. Por baixo, em letras menores, estava o nome GIUSEPPE MONDIANI. O Relojoeiro consultou o pedaço de papel onde tinha escrito a morada. Número 22 Via Borgo Santo Spirito. Tinha vindo ao local certo.

Encostou a cara ao vidro. A sala do outro lado estava repleta de crucifixos, estátuas da Virgem, gravuras de santos mortos há muito, rosários e medalhas, todos certificados com a bênção do próprio papa. Tudo parecia estar coberto pelo mesmo pó fino da rua. O Relojoeiro, embora educado num rigoroso lar católico austríaco, ponderava o que levaria uma pessoa a rezar para uma imagem. Ele já não acreditava em Deus ou na Igreja, nem acreditava no destino, intervenção divina, vida depois da morte ou na sorte. Acreditava que os homens controlavam o rumo das suas vidas, como o mecanismo de um relógio controlava o movimento dos ponteiros.

Abriu a porta e entrou escoltado pelo tilintar de um pequeno sino. Um homem surgiu de uma sala interior, vestindo camiseta bege com gola em V, calça marrom sem vinco. No alto da sua cabeça, o seu cabelo frágil e fino estava penteado com gel. O Relojoeiro, embora a vários passos de distância, sentia o cheiro de sua desagradável loção pós-barba. Refletiu se os homens do Vaticano sabiam que seus abençoados artigos religiosos eram vendidos por tão repugnante criatura.

— Posso ajudá-lo?

— Estou à procura do Signor Mondiani.

Ele mexeu a cabeça dando a entender ao Relojoeiro que tinha encontrado o homem que procurava. Um sorriso deslavado revelou que lhe faltavam vários dentes.

— Você deve ser o cavalheiro de Viena — disse Mondiani. — Reconheço a voz.

Ele estendeu a mão. Estava esponjosa e úmida, como o Relojoeiro temia. Mondiani trancou a porta da frente e pendurou um aviso na janela escrito em inglês e em italiano que informava que a loja estava fechada. Em seguida, conduziu o Relojoeiro por uma porta e umas escadas de madeira raquíticas. No alto dos degraus havia um pequeno escritório. As cortinas estavam corridas e no ar sentia-se o aroma de um perfume de mulher. E mais qualquer coisa azeda, tipo amoníaco. Mondiani gesticulou em direção ao sofá. O Relojoeiro olhou para baixo; uma imagem passou-lhe pelos olhos. Continuou de pé. Mondiani encolheu os ombros estreitos.

— Como queira.

O italiano sentou-se à mesa, ajeitou uns papéis e alisou o cabelo. Estava pintado de um laranja escuro não natural. O Relojoeiro, a ficar careca e com uma franja mal cortada, parecia estar a pô-lo mais autoconsciente do que já estava.

— O seu colega de Viena disse que precisava de uma arma.

Mondiani abriu uma gaveta da mesa e retirou um artigo escuro com acabamento metálico, e colocou-o respeitosamente no seu protetor de mesa manchado de café, como se estivesse a lidar com uma relíquia sagrada. — Penso que vai achar isto satisfatório.

O Relojoeiro estendeu a mão. Mondiani colocou-lhe a arma na palma.

— Como pode ver, é uma Glock nove milímetros. Penso que está familiarizado com a Glock. Afinal de contas é uma arma austríaca.

O Relojoeiro levantou os olhos da arma.

— Isto também foi abençoado pelo Santo Papa como o resto do seu inventário?

Por sua expressão sinistra, Mondiani não achou graça. Alcançou a gaveta aberta e exibiu uma caixa de munição.

— Precisa de um carregador extra?

O Relojoeiro não pretendia entrar num tiroteio, mas ainda assim, uma pessoa sente-se sempre melhor com um carregador extra no bolso da calça. Mondiani perguntou-lhe se precisava de silenciador. O Relojoeiro, com o olhar baixo, acenou afirmativamente.

— Ao contrário da arma, isto não é fabricado na Áustria. Foi feito mesmo aqui — disse Mondiani com orgulho excessivo. — Em Itália. É muito eficaz. A arma vai emitir pouco mais que um sussurro quando disparada.

O Relojoeiro segurou o silenciador em frente ao seu olho direito e olhou pelo cano. Satisfeito com a perfeição, colocou-o na mesa, junto das outras coisas.

— Precisa de mais alguma coisa?

O Relojoeiro lembrou ao Signor Mondiani que tinha requisitado uma motocicleta.

— Ah sim, a moto — disse Mondiani, levantando um conjunto de chaves. — Está estacionado lá fora. Tem dois capacetes, como requisitado, de cores diferentes. Escolhi preto e vermelho. Espero que seja satisfatório.

O Relojoeiro olhou para o relógio. Mondiani percebeu a dica e apressou as coisas. Num bloco de argolas, com um lápis mastigado, preparou a fatura.

— A arma é limpa e não identificável — disse ele, enquanto rabiscava o papel.

— Eu sugiro que a deite para o Tibre quando terminar. A Polizia di Stato nunca a encontrará.

— E a motocicleta?

— Roubada — disse Mondiani. — Deixe-a num local público com as chaves na ignição, numa piazza movimentada, por exemplo. Tenho certeza de que encontrará um novo dono em poucos minutos.

Mondiani desenhou um círculo à volta do montante final e girou o bloco para que o Relojoeiro pudesse ver. Estava em euros, graças a Deus. O Relojoeiro, apesar de ser ele próprio um homem de negócios, sempre detestara fazer transações em liras.

— Um pouco exagerado, não lhe parece Signor Mondiani? Mondiani encolheu os ombros e regalou o Relojoeiro com outro sorriso hediondo. O Relojoeiro pegou no silenciador e enroscou-o cuidadosamente na ponta do cano.

— Este encargo aqui — disse o Relojoeiro batendo levemente no bloco de argolas com o indicador da mão que tinha livre —, é o quê?

— Isso são os meus honorários de corretagem — conseguiu dizer Mondiani com uma expressão séria.

— Está a cobrar-me pela Glock três vezes mais do que eu pagaria na Áustria. Isso, Signor Mondiani, são os seus honorários de corretagem.

Mondiani cruzou os braços provocadoramente.

— É o estilo italiano. Quer a arma ou não?

— Sim — disse o Relojoeiro —, mas a um preço razoável.

— Lamento, mas esta é a tarifa atual em Roma.

— Para um italiano ou só para estrangeiros?

— Seria melhor se fosse tratar das suas coisas a outro lado — Mondiani estendeu a mão. Estava a tremer. — Entregue-me a arma, por favor, e saia.

O Relojoeiro suspirou. Talvez fosse melhor assim. Signor Mondiani, apesar das garantias do homem de Viena, era dificilmente do gênero que inspirasse confiança. O Relojoeiro, num movimento súbito, enfiou o carregador na Glock e engatilhou a primeira bala. As mãos de Signor Mondiani levantaram-se defensivamente. Os tiros perfuraram as palmas antes de atingir a cara. O Relojoeiro, enquanto deslizava para fora do escritório, percebeu que Mondiani tinha sido honesto sobre pelo menos uma coisa.

A arma, quando disparada, emitia pouco menos que um sussurro.

 

SAIU DA LOJA e trancou a porta. Já estava quase escuro; o domo da Basilica esbatia-se de encontro ao céu enegrecido. Inseriu a chave na ignição da motocicleta e ligou o motor. Pouco depois, acelerava pela Via delia Conciliazione abaixo em direção aos muros cor de lama do Gastel San Angelo. Acelerou através do Tibre e seguiu caminho pelas ruas estreitas do Centro Storico, até chegar à Via Giulia. Estacionou à porta do Hotel Cardinal, retirou o capacete, entrou no recepção, virou para a direita e entrou num pequeno bar estilo catacumba com paredes decoradas de antigo granito romano.

Pediu uma Coca-Cola ao garçom de balcão — estava confiante de que conseguiria cumprir esta proeza sem denunciar o seu sotaque austríaco — e transportou a bebida até uma pequena mesa adjacente à passagem entre a recepção e o bar. Para passar o tempo, foi comendo pistácios e folheando um molho de jornais italianos.

Às sete e meia um homem saiu do elevador: cabelo preto curto, cinza nas têmporas, olhos muito verdes. Deixou a chave do quarto na recepção e saiu para a rua.

O Relojoeiro terminou a Coca-Cola, e saiu também. Atirou a perna por cima da moto do Signor Mondiani e ligou o motor. O capacete preto estava pendurado no guidom pelo fecho. O Relojoeiro retirou o capacete vermelho da bagageira na traseira e colocou-o. Em seguida, pôs o preto na bagageira e fechou a tampa. Levantou o olhar e observou a figura do homem de olhos verdes afastando-se pela escuridão da Via Giulia. Rodou ligeiramente o acelerador e avançou lentamente atrás dele.

 

22

 

 

ROMA

 

 

A RESERVA NO La Curbonara era para quatro. Gabriel caminhou até a Piazza Farnese e encontrou Pazner à espera junto da embaixada francesa. Caminharam até a Pompière e sentaram-se numa mesa sossegada no fundo. Pazner pediu vinho tinto e polenta e entregou a Gabriel um envelope branco.

— Levou algum tempo — disse Pazner —, mas eventualmente encontraram uma referência a Krebs num relatório sobre um nazista chamado Alois Brunner. Sabe alguma coisa sobre Brunner?

— Era um assessor de topo de Eichmann — respondeu Gabriel um perito em deportações, altamente qualificado na arte de mandar judeus para os guetos e depois para as câmaras de gás. Trabalhou com Eichmann na deportação de judeus austríacos. Mais tarde, na guerra, tratou de deportações em Salônica e Vichy, França.

Pazner, claramente impressionado, deu uma garfada num pedaço de polenta.

— E depois da guerra fugiu para a Síria, onde viveu sob o nome de George Fischer e trabalhou como consultor do regime. Tanto quanto se sabe, os modernos serviços secretos e de segurança da Síria foram criados por Alois Brunner.

— Krebs trabalhava para ele?

— Parece que sim. Abra o envelope. E, já agora, tenha o cuidado de tratar esse relatório com todo o respeito que merece. O homem que o conseguiu pagou um preço muito alto. Repare no nome de código do agente. "MENASHE" ERA o nome de código de um lendário espião israelense chamado Eli Cohen. Nascido no Egipto em 1924, Cohen emigrou para Israel em 1957 e imediatamente se voluntariou para trabalhar nos serviços secretos israelenses. Os resultados dos testes psicotécnicos foram divergentes. Os avaliadores consideraram-no extremamente inteligente e abençoado com uma extraordinária memória para pormenores. Mas também descobriram um perigoso traço de "exagerada arrogância" e previram que Cohen iria assumir riscos desnecessários no campo.

A ficha de Cohen foi ganhando pó até 1960, quando a crescente tensão ao longo da fronteira com a Síria levou os homens dos serviços secretos israelenses a decidir que precisavam desesperadamente de um espião em Damasco. Uma longa busca de candidatos não produziu efeitos práticos . Então a procura foi alargada para incluir aqueles que tinham sido rejeitados por outras razões. A ficha de Cohen foi outra vez aberta, e em breve, ele estava a ser preparado para uma missão que iria acabar por matá-lo.

Após seis meses de treino intensivo, Cohen, fazendo-se passar por Kamal Amin Thabit, foi enviado para a Argentina para elaborar a sua biografia de disfarce: Um bem-sucedido homem de negócios sírio que vivera no estrangeiro toda a sua vida e que apenas queria regressar à sua terra natal. Conquistou a confiança da ampla comunidade síria de expatriados de Buenos Aires e atraiu muitas amizades importantes, incluindo uma com o Major Amin al-Hafez, que mais tarde se viria a tornar presidente da Síria.

Em Janeiro de 1962, Cohen mudou-se para Damasco e abriu um negócio de importações-exportações. Devidamente apresentado pela comunidade síria de Buenos Aires, rapidamente se tornou uma figura popular da cena social e política de Damasco, desenvolvendo amizades com altos cargos militares e do Ba'ath, o partido do governo. Oficiais do exército sírio levaram Cohen em visitas guiadas a instalações militares e até lhe mostraram as fortificações nos estratégicos Montes Golan. Quando o Major al-Hafez se tornou presidente, especulava-se que "Kamal Amin Thabit" podia estar na lista para uma pasta ministerial, talvez até ministro da Defesa.

Os serviços secretos sírios não faziam ideia que o afável Thabit era na realidade um espião israelense que enviava regularmente relatórios aos seus chefes do outro lado da fronteira. Relatórios urgentes eram enviados por transmissões de rádio em código de Morse. Relatórios mais longos e detalhados eram escritos em tinta invisível, escondidos em contentores de mobília damascena e enviados para um ponto israelense na Europa. As informações fornecidas por Cohen deram aos estrategistas militares israelenses uma extraordinária visão sobre a situação política e militar em Damasco.

No final, os avisos sobre a aptidão de Cohen para o risco provaram estar corretos. Foi ficando descuidado no uso do rádio, transmitindo a horas regulares todas as manhãs ou enviando múltiplas transmissões num só dia. Enviava saudações à sua família e lamentava-se das derrotas de Israel nos campeonatos internacionais de futebol. As forças de segurança sírias, detentoras das últimas novidades russas de detecção de ondas de rádio, empreenderam uma busca ao espião israelense em Damasco.

Encontraram-no a 18 de Janeiro de 1965, irrompendo pelo seu apartamento enquanto enviava uma mensagem aos seus controladores em Israel. O enforcamento de Cohen, em Maio de 1965, foi transmitido em direto na televisão Síria.

Gabriel leu o primeiro relatório à luz de uma tremeluzente vela de mesa. Fora enviado pelo canal europeu em Maio de 1963. No meio de num relatório detalhado sobre a política interna e intrigas do partido Ba'ath estava um parágrafo dedicado a Alois Brunner:

Conheci "Herr Fischer" num cocktail promovido por um superior hierárquico do partido Ba'ath. O aspecto de Herr Fischer não era dos melhores, tinha perdido recentemente vários dedos de uma mão por causa de uma carta armadilhada no Cairo. Atribuiu as culpas do atentado que sofreu a imundos judeus vingativos de Tel Aviv. Reivindicava que o trabalho que estava a fazer no Egipto era mais do que suficiente para ajustar contas com os agentes israelenses que o tinham tentado assassinar. Herr Fischer estava acompanhado, nessa tarde, por um homem chamado Otto Krebs. Nunca tinha visto Krebs antes. Era alto e de olhos azuis, de aparência muito germânica, ao contrário de Brunner. Bebeu whisky copiosamente e parecia vulnerável, um homem que talvez estivesse a ser chantageado ou manipulado de alguma forma.

— É só isto? — perguntou Gabriel. — Uma só vez num cocktail?

— Aparentemente sim, mas não fique desencorajado — Cohen deu-lhe mais uma pista. — Veja o próximo relatório.

Gabriel baixou o olhar e leu.

Eu vi "Herr Fischer" na semana passada numa recepção no Ministério da Defesa. Perguntei-lhe pelo seu amigo, Herr Krebs. Disse-lhe que Krebs e eu tínhamos discutido um projeto comercial e eu estava desapontado por não ter ouvido mais falar dele. Fischer disse que isso não o surpreendia uma vez que Krebs se tinha mudado recentemente para a Argentina.

Pazner serviu a Gabriel um copo de vinho.

— Ouvi dizer que Buenos Aires é encantador nesta altura do ano.

 

 

GABRIEL E PAZNER separaram-se na Piazza Farnese; Gabriel caminhou sozinho pela Via Giulia em direção ao seu hotel. A noite esfriara, e estava muito escuro na rua. O silêncio profundo, combinado com o áspero piso de pedra por baixo dos seus pés, permitia imaginar como teria sido Roma há um século e meio atrás, quando os homens do Vaticano ainda governavam com supremacia. Pensou em Erich Radek, caminhando por esta mesma rua, enquanto esperava pelo seu passaporte e bilhete para a liberdade.

Mas terá sido mesmo Radek que veio para Roma?

Segundo os registros do bispo Hudal, Radek veio para Anima em 1948 e partiu pouco depois como Otto Krebs. Eli Cohen colocou "Krebs" em Damasco em finais de 1963. Em seguida Krebs, segundo o relatório, mudou-se para a Argentina. Os fatos expuseram uma relevante e talvez inconciliável contradição do caso contra Ludwig Vogel. De acordo com os documentos do Staatsarchiv, Vogel vivia na Áustria em 1946, trabalhando para a autoridade de ocupação americana. Se isso fosse verdade, então Vogel e Radek não podiam ser a mesma pessoa. Como se explica então que Max Klein afirme que Vogel esteve em Birkenau? O anel que Gabriel tirara do chalé de Vogel na Alta Áustria? 1005, bom trabalho, Heinrich... O relógio de pulso? Para Erich, em adoração, Mônica... Teria outro homem vindo para Roma em 1948 fazendo-se passar por Erich Radek? E se sim, porquê!

Muitas questões, pensou Gabriel, e apenas um rasto para seguir: Fischer disse que isso não o surpreendia uma vez que Krebs se tinha mudado recentemente para a Argentina. Pazner estava certo. Gabriel não tinha escolha senão continuar a busca na Argentina.

O pesado silêncio foi quebrado pelo zunido de inseto de uma scooter. Gabriel olhou por sobre o ombro enquanto a moto fazia uma curva e entrava na Via Giulia. Então, acelerou subitamente na direção dele. Gabriel parou de andar e retirou as mãos dos bolsos do casaco. Tinha uma decisão para tomar. Ficar quieto como um romano normal ou virar-se e correr? A decisão foi tomada por ele, alguns segundos depois, quando o motoqueiro de capacete alcançou a frente do casaco e sacou uma pistola com silenciador.

 

 

GABRIEL JOGOU-SE numa rua estreita enquanto a pistola cuspia três projeteis de fogo. Três balas atingiram a esquina de pedra de um prédio. Gabriel baixou a cabeça e começou a correr.

a moto ia demasiado rápido para conseguir fazer a curva. Derrapou em frente à entrada da rua, e resvalou ao dar a volta, concedendo a Gabriel alguns segundos importantes para ganhar distância entre ele e o seu atacante. Virou à direita, para uma rua paralela à Via Giulia, e fez uma súbita viragem à esquerda. O seu objetivo era seguir para o Corso Vittorio Emanuele II, uma das maiores vias públicas de Roma. Haveria trânsito na estrada e peões nos passeios. No Corso conseguiria encontrar um local para se esconder.

O gemido da moto aproximava-se. Gabriel olhou sobre o ombro. A moto ainda estava a segui-lo e a ganhar distância a um ritmo alarmante. Lançou-se num impetuoso sprint, esbracejando, com a respiração ofegante e rouca. A luz do farol dianteiro alcançou-o. Viu a própria sombra nas pedras da calçada à sua frente como um louco a debater-se.

Uma segunda moto entrou na rua diretamente em frente a ele e travou numa derrapagem. O motoqueiro de capacete sacou de uma arma. Então é assim que vai ser — uma armadilha, dois assassinos, sem esperança de escapar. Sentiu-se como um alvo num clube de tiro, à espera de ser derrubado.

Continuou a correr, em direção à luz. Os seus braços levantaram, e ele olhou para as próprias mãos, contorcidas e tensas, as mãos de uma figura atormentada numa pintura expressionista. Percebeu que estava a gritar. O som ecoava do estuque e tijolos dos edifícios envolventes e vibrava nos seus próprios ouvidos, para que deixasse de ouvir o som da motocicleta nas suas costas. Uma imagem surgiu-lhe na mente: A sua mãe na beira de uma estrada polonesa com a arma de Erich Radek encostada à têmpora. Só então percebeu que estava a gritar em alemão. A língua dos seus sonhos. A língua dos seus pesadelos.

O segundo assassino apontou a arma e levantou o visor do capacete.

Gabriel conseguia ouvir o som do seu próprio nome.

— Abaixe-se! Abaixe-se! — Gabriel percebeu que era a voz de Chiara. Atirou-se no chão.

Os tiros de Chiara voaram por cima da cabeça dele e atingiram o motociclista que se aproximava. A moto perdeu o controle e bateu na parede de um prédio. O assassino foi projetado por cima do guidom e rolou pelas pedras do chão. A arma foi parar a alguns centímetros de Gabriel. Ele alcançou-a.

— Não, Gabriel! Deixa! Depressa!

Olhou para cima e viu Chiara estendendo-lhe a mão. Subiu no banco de trás da moto e agarrou-se quadris dela como uma criança enquanto a moto rugia Corso acima em direção ao rio.

 

 

SHAMRON TINHA UMA regra quanto a apartamentos seguros: Não podia haver contato físico entre agentes de sexo oposto. Nessa tarde, num apartamento do Escritório no Norte de Roma, perto de uma curva larga do Tibre, Gabriel e Chiara violaram a regra de Shamron com uma intensidade nascida do medo da morte. Só depois Gabriel se preocupou em perguntar a Chiara como o tinha encontrado.

— Shamron disse-me que vinhas a Roma. Pediu-me para te proteger. Concordei, claro. Tenho um interesse muito pessoal na continuidade de sua sobrevivência. Gabriel pensou como falhara em perceber que estava a ser seguido por um deusa italiana de quase um metro e oitenta, mas na realidade, Chiara Zolli era muito competente no seu trabalho.

— Quis almoçar com você em Piperno — disse ela, trocista. — Mas não pensei que fosse muito boa ideia.

— O que é que sabes sobre o caso?

— Apenas que os meus maiores receios sobre Viena acabaram por se tornar realidade. Porque não me contas o resto?

Foi o que fez, começando pelo voo de Viena e terminando com a informação que tinha recolhido essa noite de Shimon Pazner.

— Então quem enviou aquele homem a Roma para te matar?

— Penso que é seguro assumir que foi a mesma pessoa que arquitetou o assassinato de Max Klein.

— Como te encontraram aqui?

Gabriel já tinha colocado essa questão a si mesmo. As suas suspeitas recaíam sobre o reitor austríaco de bochechas rosadas da Anima, o Bispo Theodor Drexler.

— Então aonde vamos agora? — Perguntou Chiara.

— Vamos?

— Shamron me mandou proteger você. Quer que desobedeça a uma ordem direta do Memuneht?

— Ele disse para me vigiar em Roma.

— Era uma missão em aberto — respondeu ela em tom provocador.

Gabriel deixou-se estar por um momento, acariciando-lhe o cabelo.

Na realidade, seria bom um companheiro de viagem e um segundo par de olhos no campo. Dado os óbvios riscos envolvidos, ele preferia qualquer um que não fosse a mulher que amava. No entanto, ela provara ser um parceiro precioso. Havia um telefone seguro na mesa de cabeceira. Ligou para Jerusalém e acordou Moshe Rivlin de um sono pesado. Rivlin deu-lhe o nome de um homem em Buenos Aires, juntamente com um número de telefone e um endereço no bairro San Telmo. Em seguida, Gabriel telefonou para as Aerolineas Argentinas e reservou dois lugares em classe executiva num voo da tarde seguinte. Pousou o receptor. Chiara descansou a cabeça em seu peito.

— Estava gritando alguma coisa naquele beco quando corria em direção a mim — disse ela. — Lembra do que estava dizendo?

Não se lembrava. Era como se tivesse acordado incapaz de se lembrar dos sonhos que tinham atormentado seu sono.

— Você estava chamando por ela — disse Chiara.

— Quem?

— Sua mãe.

Ele lembrou-se da imagem que lhe tinha passado pela mente durante a alucinante perseguição do homem na moto. Pensou que seria possível ter chamado pela mãe. Na verdade, tinha pensado pouco em outras coisas, depois de ler o testemunho dela.

— Tem certeza de que foi Erich Radek que assassinou aquelas pobres moças na Polônia?

— Tanta certeza quanto se pode ter sessenta anos depois do fato.

— E se Ludwig Vogel for na realidade Erich Radek?

 Gabriel levantou o braço e desligou o abajur.

 

 

 


CONTINUA