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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE EM VIENA
MORTE EM VIENA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

  

 

 

  

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.


CONTINUA

23

ROMA

A VIA DELLA PACE estava deserta. O Relojoeiro parou aos portões da Anima e desligou o motor da moto. Estendeu o braço, a sua mão tremia, e pressionou o botão do intercomunicador. Não obteve resposta. Tocou novamente à campainha. Desta vez uma voz de adolescente saudou-o em italiano. O Relojoeiro, em alemão, pediu para ver o reitor.

— Lamento, mas não é possível. Por favor telefone de manhã para marcar uma visita, e o bispo Drexler terá o prazer de o receber. Buonanotte, signore. O Relojoeiro encostou-se com força ao botão do intercomunicador.

— Foi me dito, por um amigo do bispo em Viena, para vir aqui. É uma emergência.

— Como se chama o amigo?

O Relojoeiro respondeu honestamente à pergunta.

Fez-se silêncio e depois ouviu-se: — Desço num instante, signore.

O Relojoeiro abriu o casaco e examinou a ferida mesmo por baixo da clavícula direita. O calor da bala tinha cauterizado os vasos junto à pele. Havia pouco sangue, apenas um pequeno latejar e arrepios de choque e febre. Uma arma de pequeno calibre, pensou, provavelmente uma 22. Não é o tipo de arma usada para infligir danos internos severos. Mesmo assim, precisava de um médico para remover a bala e limpar a ferida que podia infectar.

Olhou para cirna e uma figura de sotaina apareceu no pátio de entrada e aproximou-se do portão cautelosamente — um noviço, um rapaz de quinze anos talvez, com cara de anjo.

— O reitor diz que não é conveniente a sua presença no seminário a esta hora

— disse o noviço. — O reitor sugere que procure outro lugar para ir esta noite. O Relojoeiro sacou a Glock e apontou-a ao rosto angelical.

— Abra o portão — sussurrou. -Já.

 

 

— SIM, MAS POR QUE tinha de mandá-lo para cá? — a voz do bispo aumentou de volume subitamente, como se pregasse para uma assembleia de almas sobre os perigos do pecado. — Seria melhor para todos se ele deixasse Roma de imediato.

— Ele não pode viajar, Theodor. Ele precisa de um médico e de um lugar para descansar.

— Eu entendo isso. — Os seus olhos fixaram-se brevemente na figura sentada do lado oposto da mesa, no homem da franja mal cortada e ombros largos como um atleta de circo. — Tens de compreender que estás a colocar a Anima numa posição terrivelmente comprometedora.

— A posição da Anima vai ficar muito mais comprometida se o nosso amigo Professor Rubinstein tiver sucesso.

O bispo suspirou pesadamente.

— Ele pode aqui ficar vinte e quatro horas, nem mais um minuto.

— E vais arranjar-lhe um médico? Alguém discreto?

— Eu conheço o tipo certo. Ajudou-me há alguns anos quando um dos rapazes teve um arrufo com um meliante romano. Tenho certeza de que posso contar com a sua discrição neste assunto, embora um ferimento de bala seja uma ocorrência pouco frequente num seminário.

— Acredito que vais arranjar uma explicação. Tens um espírito muito vivo, Theodor. Posso falar com ele um instante?

O bispo entregou o receptor. O Relojoeiro agarrou-o com uma mão manchada de sangue. Em seguida olhou para o prelado e, com um movimento lateral da cabeça, mandou-o embora do seu próprio escritório. O assassino encostou o telefone à orelha. O homem de Viena perguntou o que tinha corrido mal.

— Não me disseste que o alvo tinha proteção. Foi isso que correu mal. O Relojoeiro descreveu então a súbita aparição de uma segunda pessoa numa motocicleta. Houve um momento de silêncio na linha; então o homem de Viena revelou:

— Na minha pressa em te despachar para Roma, ocultei uma parte de informação importante sobre o alvo. Vendo o que aconteceu, percebo que foi um erro de cálculo da minha parte.

— Uma parte de informação importante? Que parte?

O homem de Viena admitiu que o alvo esteve em tempos ligado aos serviços secretos israelenses.

— A avaliar pelos acontecimentos desta noite em Roma — disse o homem —, essas ligações continuam fortes como sempre.

Pelo amor de Deus, pensou o Relojoeiro. Um agente israelense? Não era um detalhe sem importância. Tinha boas razões para regressar a Viena e deixar o velhote lidar com a confusão. Decidiu, em vez disso, inverter a situação para seu próprio beneficio a nível financeiro. Mas havia mais qualquer coisa. Nunca antes falhara os termos de um contrato. Não era apenas uma questão de orgulho profissional e reputação. Ele reconhecia também não ser sensato deixar um potencial adversário à solta, especialmente se este tivesse ligações a serviços secretos tão implacáveis como os israelenses. O seu ombro começou a latejar. Ficou ansioso por colocar uma bala naquele maldito judeu. E no seu amigo.

— O meu preço para esta missão acabou de subir — disse o Relojoeiro. — Substancialmente.

— Já estava a contar com isso — respondeu o homem de Viena.

— Eu duplico os honorários.

— Triplica — contrapôs o Relojoeiro, e após um momento de hesitação, o homem de Viena consentiu.

— Mas consegues localizá-lo novamente?

— Temos uma vantagem insignificante.

— Qual é?

— Sabemos o rasto que ele está a perseguir, e sabemos para onde vai a seguir. O bispo Drexler vai arranjar tratamento para o teu ferimento. Entretanto, descansa. Estou confiante que em breve vais ter novidades minhas.

 

24

BUENOS AIRES

ALFONSO RAMIREZ HÁ muito que devia estar morto. Ele era, sem margem para dúvidas, um dos mais corajosos homens da Argentina e de toda a América Latina. Um jornalista e escritor paladino que dedicara toda a sua vida a deitar abaixo os muros que cercam a Argentina do seu passado assassino. Considerado controverso e demasiado perigoso para ser contratado por editores argentinos, publicou a maior parte do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Poucos argentinos, para além da elite politica e financeira, alguma vez leram uma palavra que Ramirez tenha escrito.

Já experimentara em primeira-mão a brutalidade Argentina. Durante a Guerra Suja, a sua oposição à ditadura militar levou-o à cadeia, onde passou nove meses e foi torturado quase até a morte. A sua mulher, uma ativista de esquerda, fora raptada por um esquadrão da morte militar e lançada viva de um avião para as águas geladas do Atlântico Sul. Se não fosse pela intervenção da Amnistia Internacional, Ramirez teria certamente sofrido o mesmo destino. Em vez disso, foi libertado, desfigurado e abandonado quase irreconhecível para continuar a sua cruzada contra os generais. Em 1983, eles afastaram-se, e um governo civil, democraticamente eleito, tomou-lhes o lugar. Ramirez incitou o novo governo a levar dúzias de oficiais do exército a julgamento por crimes cometidos durante a Guerra Suja. Entre eles estava o capitão que lançou ao mar a mulher de Alfonso Ramirez.

Nos anos recentes, Ramirez dedicou as suas notáveis competências a expor outro desagradável capitulo da história argentina que o governo, a imprensa, e a maioria dos seus cidadãos tinha optado por ignorar. No seguimento da queda

do Reich de Hitler, milhares de criminosos de guerra — alemães, franceses, belgas e croatas — tinham rumado à Argentina, com a entusiasta aprovação do governo de Perón e a incansável ajuda do Vaticano. Ramirez era desprezado nos bairros argentinos onde a influência dos nazistas ainda se fazia sentir, e o seu trabalhou provou ser tão arriscado como investigar os generais. Já por duas vezes o seu escritório fora bombardeado, e o seu correio continha tantas cartas armadilhadas que os serviços postais se recusavam a entregá-lo. Se não tivesse sido pela apresentação de Moshe Rivlin, Gabriel duvidava que Ramirez concordasse em encontrar-se com ele.

Dessa forma, Ramirez aceitou prontamente um convite para almoçar e sugeriu um café de bairro em San Teimo. O café tinha o chão em xadrez preto e branco com mesas de madeira redondas dispostas aleatoriamente. As paredes eram caiadas com prateleiras embutidas cheias de garrafas de vinho vazias. Portas amplas abriam para a rua movimentada onde havia mesas no passeio por baixo de um toldo de lona. Três ventoinhas de teto agitavam o ar pesado. Um pastor alemão estava deitado aos pés do bar, ofegante. Gabriel chegou às duas e meia. O argentino estava atrasado.

Janeiro é o pico do Verão na Argentina, e estava insuportavelmente quente. Gabriel, que fora criado no Vale Jezreel e passava os verões em Veneza, estava habituado ao calor, mas como há pouco estivera nos Alpes austríacos, o choque térmico apanhou o seu corpo de surpresa. Ondas de calor erguiam-se do trânsito e fluíam pelas portas abertas do café. com cada caminhão que passava, a temperatura parecia subir um grau ou dois. Gabriel mantinha os óculos de sol postos. A sua camisa estava colada às costas.

Bebeu água fria e mastigou uma casca de limão, olhando para a rua. O seu olhar passou brevemente por Chiara. Ela bebia um Campari com soda e petiscava num prato de empadas. Vestia calças curtas. As longas pernas esticadas ao sol e as coxas começavam a queimar. O cabelo fora apanhado à pressa. Uma gota de transpiração deslizava pela nuca em direção à blusa sem mangas. O relógio de pulso estava na mão esquerda. Era um sinal combinado. Mão esquerda significava que ela ainda não tinha detectado vigilância, embora Gabriel soubesse que mesmo um agente do nível de Chiara teria dificuldade em encontrar um profissional no meio da multidão de San Teimo.

Ramirez não chegou antes das três. Não se desculpou por chegar tarde. Era um homem grande, com antebraços grossos e uma barba negra. Gabriel procurou cicatrizes de tortura, mas não encontrou nenhuma. A sua voz, quando pediu dois bifes e uma garrafa de vinho tinto, era afável e tão alta que parecia fazer tilintar as garrafas nas prateleiras. Gabriel perguntou se bife e vinho tinto seriam uma escolha sensata, dado o calor intenso. Ramirez agiu como se achasse a pergunta escandalosa.

— Bife é a única coisa verdadeira neste país — disse. — Além disso, da forma como a economia está... — O resto do seu comentário foi abafado pelo chiar de um caminhão de cimento.

O garçom colocou o vinho na mesa. Vinha numa garrafa verde sem rótulo. Ramirez serviu dois copos e perguntou a Gabriel o nome do homem que procurava. Ouvindo o nome, as negras sobrancelhas do argentino, franziram de concentração.

— Otto Krebs, hein? Esse é o nome verdadeiro dele ou um pseudônimo?

— Um pseudônimo.

— Como pode ter a certeza?

Gabriel entregou os documentos que tirara de Santa Maria dell'Anima em Roma. Ramirez retirou um par de óculos sebosos do bolso da camisa e colocou-os. Ter os documentos assim à vista deixou Gabriel nervoso. Olhou na direção de Chiara. O relógio de pulso ainda estava na mão esquerda. Ramirez, quando levantou o olhar dos documentos, estava claramente impressionado.

— Como conseguiu acesso aos papéis do bispo Hudal?

— Tenho um amigo no Vaticano.

— Não, você tem um amigo muito poderoso no Vaticano. O único homem capaz de convencer o bispo Drexler a abrir voluntariamente os papéis de Hudal seria o próprio papa! — Ramirez ergueu o seu copo de vinho na direção de Gabriel.

— Então, em 1948, um oficial das SS chamado Erich Radek vai a Roma e corre para os braços do bispo Hudal. Uns meses depois, deixa Roma como Otto Krebs e ruma para a Síria. — Que mais sabe?

O documento que Gabriel colocou na mesa em seguida produziu novamente um olhar de perplexidade no jornalista argentino.

— Como pode ver, os serviços secretos israelenses colocam o homem, agora conhecido como Otto Krebs, em Damasco até 1963. A fonte é muito boa, nada menos que Alois Brunner. Segundo Brunner, Krebs deixou a Síria em 1963 e veio para aqui.

— E tem razões para crer que ele ainda pode estar aqui?

— É isso que preciso descobrir.

Ramirez cruzou os seus pesados braços e fitou Gabriel do outro lado da mesa. Um silêncio caiu entre eles, preenchido pelo zumbido quente do trânsito na rua. O argentino farejou uma história. Gabriel tinha previsto isto.

— Então como é que um homem chamado René Duran de Montreal deita as mãos a documentos secretos do Vaticano e dos serviços secretos israelenses?

— Obviamente que tenho bons contatos.

— Sou um homem muito ocupado, Monsieur Duran.

— Se é dinheiro que quer...

O argentino ergueu a palma da mão num gesto de advertência.

— Não quero o seu dinheiro, Monsieur Duran. Consigo fazer o meu próprio dinheiro. O que eu quero é a história.

— Obviamente que a cobertura jornalística da minha história será um obstáculo. Ramirez parecia insultado.

— Monsieur Duran, estou seguro que tenho muito mais experiência em perseguir homens como Erich Radek do que você. Eu sei quando devo investigar discretamente e quando devo escrever.

Gabriel hesitou um momento. Estava relutante em entrar num quid pro quo com o jornalista argentino, pois sabia que Alfonso Ramirez podia ser um amigo valioso.

— Por onde começamos? — perguntou Gabriel.

— Bem, penso que primeiro devemos descobrir se Alois Brunner estava dizendo a verdade sobre o seu amigo Otto Krebs.

— Quer dizer, se chegou a vir para a Argentina?

— Exatamente.

— E como fazemos isso?

Nessa hora o garçom apareceu. O bife que colocou em frente de Gabriel era grande o suficiente para alimentar uma família de quatro elementos. Ramirez sorriu e começou a dar ao serrote.

— Bon appétit, Monsieur Duran. Coma! Algo me diz que vai precisar de forças.

 

ALFONSO RAMIREZ DIRIGIA o último Volkswagen Sirocco sobrevivente no hemisfério ocidental. Talvez tivesse sido azul-escuro em tempos; agora, o exterior tinha o aspecto de uma pedra pomes. O para-brisas estava partido ao meio em forma de raio. A porta de Gabriel estava amolgada, e era preciso muito da sua reserva de forças só para a abrir. O ar condicionado já não funcionava e o motor rugia como um avião.

Aceleraram pela Avenida 9 de Julho com as janelas abertas. Pedaços de papel flutuavam à volta deles. Ramirez parecia não notar, ou não se importar, quando várias páginas foram sugadas para fora. Tinha ficado mais quente ao fim da tarde. O vinho grosseiro deixou Gabriel com dor de cabeça. Virou a cara para a janela aberta. Era uma avenida feia. As fachadas de edifícios antigos estavam pejadas por uma infindável parada de cartazes apregoando carros de luxo alemães e bebidas não alcoólicas americanas para uma população cujo dinheiro desvalorizara subitamente. Os ramos das árvores de sombra pendiam embriagadas perante o assalto da poluição e do calor.

Viraram em direção ao rio. Ramirez olhou para o retrovisor. Uma existência sendo perseguido por rufias militares e simpatizantes nazistas deixaram-no com os instintos bem afiados.

— Estamos sendo seguidos por uma moça numa scooter.

— Sim, eu sei.

— Se sabia, por que não disse nada?

— Porque ela trabalha para mim.

Ramirez olhou sem pressa pelo espelho.

— Eu reconheço aquelas coxas. Aquela moça estava no café, não estava?

Gabriel acenou lentamente. A sua cabeça latejava.

— Você é um homem muito interessante, Monsieur Duran. E muito sortudo também. Ela é linda.

— Concentre-se apenas na direção, Alfonso. Ela protege a retaguarda.

Cinco minutos depois, Ramirez estacionou numa rua paralela ao limite do porto. Chiara passou, fez uma curva e estacionou na sombra de uma árvore. Ramirez desligou o motor. O sol batia sem piedade no teto. Gabriel queria sair do carro, mas o argentino queria pô-lo ao corrente primeiro.

— Aqui na Argentina, a maioria dos arquivos referentes aos nazistas está guardada a sete chaves no Centro de Informações. Ainda estão, oficialmente, fora do alcance de repórteres e estudiosos, embora o tradicional período de trinta anos de segredo já tenha expirado há muito. Mesmo se conseguíssemos entrar nos armazéns do Centro de Informações provavelmente não encontraríamos muito. Aliás, Perón mandou destruir os arquivos mais incriminatórios quando foi corrido do governo.

Do outro lado da rua um carro abrandou e o homem ao volante olhou prolongadamente para a moça na motocicleta. Ramirez também viu. Observou o carro no seu retrovisor por um momento antes de continuar.

— Em 1997, o governo criou a Comissão para a Clarificação das Atividades nazistas na Argentina que enfrentou logo de inicio problemas sérios. Sabe, em 1996, o governo queimou todos os arquivos incriminatórios que ainda tinha em posse.

— Por que razão criar uma comissão, então?

— Queriam ganhar reputação pela tentativa, claro. Mas na Argentina, a busca da verdade não consegue ir muito longe. Uma investigação real teria demonstrado a verdadeira profundidade da cumplicidade de Perón no êxodo nazista da Europa durante o pós-guerra. Também teria revelado muitos nazistas ainda a viver aqui. Quem sabe? Talvez o seu homem também.

Gabriel apontou para o edifício.

— Então o que é isto?

— O Hotel dos Imigrantes, primeira parada para os milhões de imigrantes que vieram para a Argentina nos séculos XIX e XX. O governo alojava-os aqui até conseguirem encontrar trabalho e um sitio para viver. Agora, os Serviços de Imigração usam o edifício como armazém.

— Para quê?

Ramirez abriu o porta-luvas e retirou luvas de látex e máscaras assépticas.

— Não é o local mais limpo do mundo. Espero que não tenha medo de ratos.

Gabriel levantou o trinco e atirou o ombro contra a porta. Ao fundo da rua, Chiara desligou o motor da motocicleta e sentou-se à espera.

 

 

UM POLICIAL ABORRECIDO vigiava a entrada. Uma moça de uniforme estava sentada em frente a um ventilador na mesa do arquivista, lendo uma revista de moda. Empurrou o livro de registro pela mesa empoeirada. Ramirez assinou e acrescentou a hora. Foram-lhes dados dois cartões plastificados com molas. Gabriel era o nº 165. Depois de prendê-lo no topo do bolso da camisa, seguiu Ramirez em direção ao elevador.

— Duas horas até fechar — gritou a moça; em seguida virou outra página da sua revista.

Entraram num monta-cargas. Ramirez fechou a porta de grades e carregou no botão para o último andar. O elevador subiu lentamente. Um momento mais tarde, quando estremeceu para parar, o ar estava tão quente e carregado de pó que era difícil respirar. Ramirez colocou as luvas e a máscara. Gabriel fez o mesmo.

O espaço onde entraram tinha o comprimento de aproximadamente dois quarteirões e estava preenchido com intermináveis fileiras de estantes de metal entortadas sob do peso de caixas de madeira. Das janelas partidas vinham muitas vezes gaivotas. Gabriel conseguiu ouvir o arranhar de pequeninos pés com garras e o miar de uma luta de gatos. O cheiro a pó e a papel apodrecido atravessavam a máscara de proteção. O arquivo subterrâneo da Anima parecia um paraíso comparado com este local imundo.

— O que é isto?

— As coisas que Perón e os seus sucessores de governo se esqueceram de destruir. Esta sala contém os cartões de imigração de cada passageiro que desembarcou no porto de Buenos Aires entre os anos vinte e os anos setenta. No andar debaixo estão os manifestos dos passageiros de cada navio. Mengele, Eichmann, todos eles deixaram impressões digitais aqui. Talvez Otto Krebs as tenha deixado também.

— Por que está tão negligenciado?

— Acredite ou não, costumava estar pior. Há alguns anos, uma alma brava chamada Cheia ordenou alfabeticamente os cartões, ano por ano. Chamam agora a isto a sala Cheia. Os cartões de imigração de 1963 estão aqui. Siga-me.

Ramirez parou e apontou para o chão.

— Cuidado com a trampa de gato.

Caminharam meio quarteirão. Os cartões de imigração de 1963 enchiam várias dúzias de prateleiras metálicas. Ramirez localizou as caixas de madeira que continham cartões de passageiros cujo apelido começava por K, em seguida retirou-as da prateleira e colocou-as cuidadosamente no chão. Encontrou quatro imigrantes com o apelido Krebs. Nenhum tinha como primeiro nome Otto.

— Poderá estar arquivado fora de ordem?

— Claro.

— É possível que alguém o tenha removido?

— Isto é a Argentina, meu amigo. Tudo é possível.

Gabriel encostou-se às estantes, abatido. Ramirez voltou a colocar os cartões na caixa, e a caixa de volta ao seu lugar na prateleira. Então olhou para o relógio.

— Temos uma hora e quarenta e cinco minutos até fecharem por hoje . Você trabalha a partir de 1963, e eu trabalho nos anteriores. Quem perder paga as bebidas.

 

UMA TROVOADA APROXIMOU-SE na direção do rio. Gabriel, por uma janela partida, viu um relâmpago por entre os guindastes da doca. Uma nuvem negra tapou o sol do fim de tarde. Dentro da sala Cheia ficou quase impossível enxergar o que quer que fosse. A chuva começou a cair torrencialmente. Entrou pelas janelas abertas e encharcou os preciosos arquivos. Gabriel, o restaurador, imaginou tinta a escorrer, imagens perdidas para sempre. Encontrou os cartões de imigração de mais três homens chamados Krebs, um em 1965, mais dois em 1969. Nenhum ostentava como primeiro nome Otto. A escuridão atrasou muito o ritmo da pesquisa. Para conseguir ler os cartões de imigração, tinha de arrastar as caixas para perto de uma janela, onde ainda havia alguma luz. Aí teria de se agachar, com as costas à chuva, dedilhando.

A moça que estava sentada na mesa do arquivista subiu e deu um aviso de dez minutos. Gabriel tinha apenas procurado até 1972. Não queria voltar amanhã. Acelerou o ritmo.

A tempestade parou tão subitamente como começou. O ar estava mais fresco e limpo. Estava tudo calmo, exceto pelo som da água a escorrer pelas goteiras. Gabriel continuou a procurar: 1973... 1974... 1975... 1976... Não havia mais passageiros chamados Krebs. Nada.

A moça voltou, desta vez para os pôr na rua. Gabriel carregou a última caixa de volta para a prateleira, quando viu Ramirez e a moça a conversar em espanhol.

— Alguma coisa? — perguntou Gabriel.

Ramirez abanou a cabeça.

— Até onde foi?

— Até o fim. Você? Gabriel disse-lhe:

— Acha que vale a pena voltar amanhã?

— Provavelmente não. — Colocou a mão no ombro de Gabriel.

— Venha daí, eu pago uma cerveja.

A moça recebeu os crachás plastificados e acompanhou-os pelo monta-cargas abaixo. A janela do Sirocco tinha ficado aberta. Gabriel, abatido pelo fracasso, sentou-se no banco ensopado do carro. O fragor ruidoso do carro abalou o silêncio da rua. Chiara seguiu-os. Sua roupa estava encharcada pela chuva.

A dois quarteirões dos arquivos, Ramirez alcançou o bolso da camisa e exibiu um cartão de imigração.

— Anime-se, Monsieur Duran — disse ele, entregando o cartão a Gabriel. — Por vezes, na Argentina, compensa usar as mesmas táticas dissimuladas dos homens do poder. Só há uma fotocopiadora naquele edifício e é a moça que a controla. Ela teria feito uma cópia para mim e outra para o seu superior.

— E se Otto Krebs ainda está vivo e na Argentina, teria muito provavelmente sido avisado que andamos a sua procura.

— Exatamente.

Gabriel ergueu o cartão.

— Onde estava?

— Mil, novecentos e quarenta e um. Parece que Cheia enfiou-o na caixa errada.

Gabriel olhou para o cartão e começou a ler. Otto Krebs chegou a Buenos Aires em dezembro de 1963 num barco oriundo de Atenas. Ramirez apontou para um número escrito à mão na base do cartão: 245276/62.

— Esse é o número da sua autorização de desembarque. Foi provavelmente emitido pelo consulado argentino em Damasco. O sessenta e dois no fim da linha é o ano em que foi concedida a autorização.

— E agora?

— Sabemos que chegou à Argentina — Ramirez encolheu os seus pesados ombros.

— Vamos ver se o conseguimos encontrar.

 

REGRESSARAM DE CARRO a San Telmo pelas ruas molhadas e estacionaram à porta de um edifício de apartamentos de estilo italiano. Como muitos dos prédios em Buenos Aires, já tinha sido bonito no passado. Agora a sua fachada era da cor do carro de Ramirez, matizada pela poluição.

Subiram um lanço de escadas mal iluminadas. O ar dentro do apartamento era bafiento e quente. Ramirez trancou a porta atrás deles e abriu as janelas para deixar entrar o fresco de fim de tarde. Gabriel olhou para a rua e viu Chiara estacionada do lado oposto.

Ramirez mergulhou na cozinha e saiu com duas garrafas de cerveja Argentina. Entregou uma a Gabriel. O copo já embaciado. Gabriel bebeu metade. O álcool afastou a dor de cabeça.

Ramirez conduziu-o ao seu escritório. Era o que Gabriel esperava — grande e com mau aspecto, como o próprio Ramirez, com livros empilhados em cadeiras e uma enorme mesa enterrada sob uma pilha de papéis que mais parecia estar à espera de um fósforo. Pesadas cortinas abafavam o ruído e a luz da rua. Ramirez pôs-se a trabalhar pelo telefone enquanto Gabriel terminava o resto da cerveja.

Ramirez levou uma hora até conseguir a primeira pista. Em 1964, Otto Krebs registrou-se na Policia Nacional em Bariloche, no Norte da Patagônia. Quarenta e cinco minutos depois, outra peça do puzzle: Em 1972, no requerimento para um passaporte argentino, Krebs indicou a sua morada em Puerto Blest, uma cidade não muito longe de Bariloche. Levou apenas quinze minutos até encontrar o próximo pedaço de informação. Em 1982, o passaporte foi rescindido.

— Por quê? — perguntou Gabriel.

— Porque o titular do passaporte morreu.

 

O ARGENTINO ABRIU um mapa de estradas sobre a mesa e, olhando através dos seus óculos manchados, procurou as extensões ocidentais do pais.

— Aqui está — disse, apontando o mapa. — San Carlos de Bariloche, ou apenas Bariloche para simplificar. Uma estância no distrito do lago norte da Patagônia, fundada por colonos suíços e alemães no século XIX. Ainda é conhecida como a Suíça argentina. Agora é uma cidade de lazer para os esquiadores, mas para os nazistas e os seus companheiros de viagem, era como Valhala. Mengele adorava Bariloche.

— Como faço para ir lá?

— A maneira mais rápida é de avião. Aqui em Buenos Aires há voos de hora em hora — fez uma pausa e então acrescentou. — É um longo caminho para ir visitar um túmulo.

— Quero ver com meus próprios olhos.

Ramirez acenou com a cabeça.

— Fique no Hotel Edelweiss.

— No Edelweiss?

— É um enclave alemão — disse Ramirez. — Nem vai acreditar que está na Argentina.

— Por que não vem comigo, só pelo passeio?

— Temo ser um estorvo. Sou persona non grata em certos segmentos da comunidade de Bariloche. Passei tempo a mais enfiando o nariz por essas bandas, compreende? A minha cara é demasiado conhecida.

O argentino ficou repentinamente sério.

— Deve ter cuidado também, Monsieur Duran. Bariloche não é um local para investigações descuidadas. Não gostam de forasteiros fazendo perguntas sobre certos residentes. Também deve saber que veio para a Argentina numa hora muito tensa.

Ramirez vasculhou a pilha de papéis na sua mesa até que encontrou o que procurava, um exemplar da revista Newsweek com dois meses. Entregou-a a Gabriel e disse:

— A minha história está na página trinta e seis — em seguida foi à cozinha a trouxe mais duas cervejas.

 

O PRIMEIRO A morrer foi um homem chamado Enrique Calderon. Foi encontrado no seu quarto, no condomínio da divisão de Palermo Chico, em Buenos Aires. Quatro tiros na cabeça, muito profissional. Gabriel, que não conseguia ouvir falar de um assassinato sem imaginar o ato, desviou o olhar de Ramirez.

— E o segundo? — perguntou.

— Gustavo Estrada. Morto duas semanas depois numa viagem de negócios à Cidade do México. O corpo foi encontrado no quarto de hotel, depois de não ter aparecido para uma reunião ao pequeno-almoço. Novamente, quatro tiros na cabeça — Ramirez fez uma pausa. Boa história, não? Dois homens de negócios mortos de forma idêntica no espaço de duas semanas. O tipo de merda que os argentinos adoram. Por um tempo, desviaram a atenção do fato de terem perdido todas as suas economias e o seu dinheiro não valer nada.

— Os homicídios estão interligados?

— Nunca saberemos ao certo, mas eu acredito que estão. Enrique Calderon e Gustavo Estrada não se conheciam bem, mas os seus pais sim. Alejandro Calderon era um assessor próximo de Juan Perón, e Martin Estrada foi o chefe da polícia nacional argentina nos anos depois da guerra.

— Então porque mataram os seus filhos?

— Para dizer a verdade, não faço ideia. De fato, não consigo formular uma simples teoria que faça algum sentido. O que sei é isto: estão a circular acusações no seio da antiga comunidade alemã. Os nervos estão em franja — Ramirez deu um grande gole na sua cerveja. — Eu repito, veja por onde anda em Bariloche, Monsieur Duran.

Conversaram mais um pouco enquanto a escuridão os envolvia lentamente e o trânsito de fim de tarde se escoava pelas ruas. Gabriel não gostava de muitas das pessoas com quem travara conhecimento ao longo da sua carreira, mas Alfonso Ramirez era uma excepção. Ele só se arrependia de ter sido forçado a enganá-lo. Falaram de Bariloche, da Argentina e do passado. Quando Ramirez perguntou sobre os crimes de Erich Radek, Gabriel disse-lhe tudo o que sabia. Isto originou um longo e contemplativo silêncio no argentino, magoado por saber que homens como Radek podiam ter encontrado santuário na terra que ele tanto amava. Combinaram voltar a falar quando Gabriel regressasse de Bariloche, e separaram-se no corredor escuro. Lá fora, o barria San Teimo começava a ganhar vida com o fresco do entardecer. Gabriel caminhou um pouco pelos passeios cheios de gente, até que uma moça numa motocicleta vermelha se chegou ao seu lado e deu umas palmadinhas no selim.


25

 

BUENOS AIRES * ROMA * VIENA

 

 

O CONSOLE DO sofisticado equipamento eletrônico era alemão. Os microfones e transmissores escondidos no apartamento do alvo eram topo de gama – desenhados e construídos pelos serviços secretos da Alemanha Ocidental no auge da guerra-fria para monitorizar as atividades dos seus adversários a leste. O operador do equipamento era natural da Argentina, embora conseguisse traçar a sua ascendência até a vila austríaca de Braunau am Inn. O fato de ser a mesma vila onde Adolf Hitler nascera dava-lhe um certo estatuto entre os seus camaradas. Quando o judeu parou à entrada do prédio de apartamentos, o vigilante tirou uma fotografia com uma teleobjetiva. Um momento mais tarde, quando a moça da motocicleta se afastou da borda do passeio, ele capturou a sua imagem também, embora tivesse pouco valor uma vez que o rosto estava escondido debaixo de um capacete preto. Passou alguns momentos revendo a conversa que tinha acontecido dentro do apartamento do alvo; então, satisfeito, alcançou o telefone. O número que marcou era de Viena. O som do alemão, de sotaque vienense, era como música para os seus ouvidos.

 

NO PONTIFICADO DE Santa Maria dell'Anima em Roma, um noviço apressava o passo pelo corredor do dormitório no segundo andar. Parou à porta do quarto onde o visitante de Viena estava alojado. Hesitou antes de bater à porta e esperou por permissão antes de entrar. Um cone de luz caía sobre a poderosa figura esticada na apertada cama de rede. Os seus olhos brilhavam no escuro como poças de óleo preto.

— Tem uma chamada.

O rapaz falou evitando o olhar. Toda a gente no seminário já tinha ouvido sobre o incidente no portão principal na noite anterior.

— Pode atender no gabinete do reitor.

O homem sentou-se e balançou os pés para o chão num único movimento fluido. Os músculos densos dos ombros e costas encresparam por baixo da sua pele clara. Tocou no penso do ombro ao de leve, e vestiu uma camisola de gola alta.

O seminarista conduziu o visitante por uma escadaria de pedra e por um pequeno pátio. O gabinete do reitor estava vazio. Uma única luz ardia na mesa. O receptor do telefone estava no mata-borrão. O visitante pegou-o. O rapaz deslizou rapidamente para fora da sala.

— Localizamos.

— Onde?

O homem de Viena disse: — Ele vai partir para Bariloche de manhã. Você estará à espera dele quando chegar.

O Relojoeiro olhou para seu relógio de pulso e calculou a diferença horária.

— Como é possível? Não há um voo de Roma a não ser na parte da tarde.

— Por acaso, há um avião que parte dentro de alguns minutos.

— De que está falando?

— Em quanto tempo consegue estar em Fiumicino?

 

OS MANIFESTANTES ESTAVAM à espera na porta do Hotel Imperial quando o cortejo de três carros chegou para uma recepção dos fiéis partidos. Peter Metzler, sentado na traseira de uma limusina Mercedes, olhou pela janela. Tinha sido avisado, mas estava à espera do habitual grupo de tristes, não de uma brigada de saqueadores armados com cartazes e megafones. Era inevitável: a proximidade das eleições; a aura de invulnerabilidade construída em volta do candidato. A esquerda austríaca estava em pânico total, assim como os seus apoiantes em Nova York e Jerusalém.

Dieter Graff, sentado do lado oposto de Metzler no banco da frente, parecia apreensivo. E porque não? Trabalhara vinte anos para transformar uma aliança moribunda com antigos oficiais SS e sonhadores neofascistas na Frente Nacional Austríaca, uma força política conservadora, coesa e moderna. Remodelara praticamente sozinho a ideologia partidária e limpara a sua imagem pública. A sua mensagem cuidadosamente arquitetada tinha atraído eleitores austríacos privados de direitos pela cômoda coligação entre o Partido Popular e os sociais-democratas. Agora, com Metzler como seu candidato, ele estava à beira de receber o prêmio mais apetecível da política austríaca: a chancelaria. A última coisa que Graff queria neste momento, três semanas antes das eleições, era um confronto com um punhado de esquerdistas idiotas e judeus.

— Eu sei o que está pensando, Dieter — disse Metzler. — Está pensando que devemos jogar pelo seguro, evitar esta escória usando a porta dos fundos.

— A ideia passou-me pela cabeça. A nossa liderança está a três pontos e mantém-se estável. Prefiro não desperdiçar dois desses pontos com uma cena desagradável que pode ser facilmente evitada.

— Entrando pela porta dos fundos?

Graff acenou que sim. Metzler apontou para as câmaras de televisão e para os fotógrafos.

— E sabes o que os cabeçalhos do Die Presse vão dizer amanhã? Metzler amedrontado por protestantes vienenses! Vão dizer que sou um cobarde, Dieter, e eu não sou um cobarde.

— Nunca ninguém te acusou de cobardia, Peter. É apenas uma questão de timing.

— Já usamos a porta dos fundos demasiadas vezes — Metzler ajustou a gravata e ajeitou o colarinho da camisa. — Além disso, um chanceler não usa a porta dos fundos. Vamos pela porta da frente, com a cabeça erguida e o queixo pronto para a batalha, ou então nem sequer entramos.

— Tornaste-te cá um orador, Peter.

— Tive um bom professor — Metzler sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Graff.

— Mas temo que a longa campanha tenha começado a consumir grande parte dos teus instintos.

— Porque dizes isso?

— Olha para estes arruaceiros. A maioria deles nem sequer é austríaca. Metade dos cartazes está em inglês em vez de alemão. Esta pequena manifestação foi claramente orquestrada por provocadores estrangeiros. Se tiver a sorte de entrar num confronto com esta gente, a nossa liderança vai estar a cinco pontos amanhã.

— Não tinha pensado nisso dessa forma.

— Diz apenas à segurança que tenha calma. É importante que sejam os protestantes a parecer os Camisas Castanhas, e não nós.

Peter Metzler abriu a porta e saiu. Um urro de cólera ergueu-se da multidão e os cartazes começaram a flutuar ao vento.

Porco nazista!

Reichsfuhrer Metzler!

O candidato avançou a passos largos absorto do tumulto à sua volta. Uma jovem, armada com um trapo embebido em tinta vermelha, soltou-se da barreira. Atirou violentamente o trapo em direção a Metzler, que sem quebrar o passo o evitou com destreza. O trapo acertou num agente da Staatspolizei, para deleite dos manifestantes. A jovem que o tinha atirado foi agarrada por um par de agentes e levada à força.

Metzler, imperturbável, entrou para a recepção do hotel e seguiu em direção ao salão de baile, onde um milhar de apoiantes esperava há três horas pela sua chegada. Antes de entrar, fez uma pequena pausa para se recompor, e entrou na sala para aclamações tumultuosas. Graff separou-se e observou o seu candidato penetrar da multidão que o adorava. Os homens empurravam para a frente para lhe agarrar a mão ou bater-lhe nas costas. As mulheres beijavam-no no rosto. Metzler tornara novamente sexy ser conservador.

A jornada até a parte superior da sala levou cinco minutos. Enquanto Metzler subia ao pódio, uma bela jovem vestida à camponesa entregou-lhe um enorme caneca de cerveja. Ergueu-a sobre a cabeça e foi saudado por um delirante bramido de aprovação. Engoliu parte da cerveja — não um golinho para a fotografia, mas um longo gole à austríaca — e chegou-se ao microfone.

— Quero agradecer a todos por terem vindo aqui esta noite. E quero também agradecer aos nossos queridos amigos e apoiantes por organizarem tão calorosa recepção à entrada do hotel — uma onda de riso varreu a sala. — O que essa gente parece não compreender é que a Áustria é para os austríacos e que escolheremos o nosso próprio futuro baseado na moral austríaca e nos padrões de decência austríacos. Estrangeiros e críticos de fora não têm de se intrometer nos assuntos internos desta abençoada terra que é a nossa. Forjaremos o nosso próprio futuro, um futuro austríaco, e o futuro começa daqui a três semanas!

Pandemônio.

 

26

 

BARILOCHE, ARGENTINA

 

 

A RECEPCIONISTA DO Bartlocher Tageblatt olhou Gabriel com mais do que um interesse passageiro enquanto passava pela porta e se dirigia ao balcão. Tinha o cabelo curto e escuro e olhos azul-claro enquadrados por um belo rosto bronzeado.

— Posso ajudá-lo? — disse ela em alemão, sem surpresa, já que o Tageblatt, como o nome implica, é um jornal de língua alemã.

Gabriel respondeu na mesma língua, embora de maneira hábil esconda que, como a mulher, fala fluentemente. Ele disse que tinha vindo a Bariloche fazer uma investigação genealógica. Andava à procura de um homem que ele pensava ser o irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Ele tinha razões para crer que Herr Krebs morrera em Bariloche em Outubro de 1982. Seria possível ele pesquisar os arquivos do jornal em busca de uma comunicação de morte ou de um obituário?

A recepcionista sorriu, revelando duas filas de dentes brancos e alinhados, em seguida pegou no telefone e marcou uma extensão de três números. O pedido de Gabriel foi posto a um superior num alemão ligeiro. A mulher esteve em silêncio por alguns segundos, em seguida desligou o telefone e levantou-se.

— Siga-me.

Ela conduziu-o por uma pequena redação, os seus saltos ouviam-se bem sobre o soalho de linóleo gasto. Meia dúzia de funcionários estava ociosa em mangas de camisa, em diversos estados de relaxamento, fumando cigarros e bebendo café. Ninguém parecia reparar no visitante. A porta para os arquivos estava entreaberta. A recepcionista ligou as luzes.

— Estamos informatizados agora, portanto todos os arquivos são guardados automaticamente numa base de dados. Lamento, mas vai apenas até 1998. Quando disse que este homem morreu?

— Penso que foi em 1982.

— Está com sorte. Os obituários estão todos indexados manualmente, claro, à moda antiga.

Caminhou até uma mesa e abriu a capa de um livro de registro grosso encadernado em pele. As páginas pautadas estavam preenchidas com minúsculas anotações manuscritas.

— Como disse que era o nome?

— Otto Krebs.

— Krebs, Otto — disse ela, dedilhando pelos K. — Krebs, Otto... Ah, cá está. Segundo o registro foi em Novembro de 1983. Continua interessado em ver o obituário?

Gabriel acenou que sim. A mulher anotou um número de referência e caminhou até uma pilha de caixas de cartão. Percorreu as etiquetas com o indicador e parou quando chegou àquele que procurava, então pediu a Gabriel que retirasse as caixas que estavam empilhadas por cima. Abriu a tampa, e o cheiro a pó e papel apodrecido saiu do interior da caixa. Os recortes estavam dentro de quebradiças pastas amareladas. O obituário de Otto Krebs estava rasgado. Ela colou os pedaços com um pouco de fita-cola transparente e mostrou-o a Gabriel.

— É este o homem que procura?

— Não sei — disse ele honestamente.

Tirou o recorte das mãos de Gabriel e leu-o com rapidez.

— Diz aqui que era filho único — e olhou para Gabriel. — Isso não significa muito. Muitos deles tiveram de apagar o passado para proteger as famílias que ainda estavam na Europa. O meu avô teve sorte. Pelo menos conseguiu manter o próprio nome.

Olhou para Gabriel, procurando os seus olhos.

— Era da Croácia — disse ela. Havia um ar de cumplicidade no seu tom. — Depois da guerra, os comunistas quiseram levá-lo a julgamento e enforcá-lo. Felizmente, Perón deixou-o vir para aqui.

Levou o recorte até uma fotocopiadora e tirou três cópias. Em seguida devolveu o original à pasta e à caixa respectiva. Deu as cópias a Gabriel. Ele leu enquanto caminhavam.

— Segundo o obituário, ele foi enterrado num cemitério católico em Puerto Blest.

A recepcionista acenou que sim.

— É já do outro lado do lago, a alguns quilômetros da fronteira chilena. Ele geria uma grande estância lá. Isso também está no obituário.

— Como lá chego?

— Siga a autoestrada a oeste de Bariloche. Logo depois a autoestrada termina. Espero que tenha um bom carro. Siga a estrada ao longo da margem do lago, e vá para norte. Irá dar a Puerto Blest diretamente. Se sair agora consegue lá chegar antes do anoitecer.

Apertaram as mãos na entrada. Ela desejou-lhe boa sorte.

— Espero que seja o homem que procura — disse ela. — Ou talvez não. Suponho que nunca se saiba em situações como esta.

 

 

DEPOIS QUE O VISITANTE saiu, a recepcionista pegou o telefone e ligou.

— Ele acabou de sair.

— Como lidou com a situação?

— Disse o que me pediu. Fui muito amigável. Mostrei o que ele queria ver.

— E o que foi isso?

Ela disse.

— Como reagiu ele?

— Perguntou como chegar a Puerto Blest.

A ligação terminou. A recepcionista pousou o receptor lentamente. Sentiu um súbito buraco no estômago. Não tinha dúvidas do que o esperava em Puerto Blest. Era o mesmo destino que tinham outros que vieram a este canto da Patagônia à procura de homens que não queriam ser encontrados. Não sentiu pena dele; de fato, considerou-o algo tolo. Pensava ele que enganava alguém com aquela história mal amanhada sobre pesquisa genealógica? Quem se julgava ele? A culpa era sua. Mas então, foi sempre assim com os judeus. Sempre a atrair problemas.

Nessa hora a porta da frente abriu-se e uma mulher de vestido de Verão entrou. A recepcionista olhou e sorriu.

— Posso ajudá-la?

 

CAMINHARAM DE VOLTA para o hotel debaixo de um sol abrasador. Gabriel traduziu o obituário para Chiara.

— Diz aqui que ele nasceu na Alta Áustria em 1913, que foi um agente da polícia e que se alistou na Wehrmacht em 1938 e participou nas campanhas contra a Polônia e a União Soviética. Diz também que foi condecorado duas vezes por coragem, uma das vezes pelo próprio Führer. Parece-me que isso é algo digno de se vangloriar em Bariloche.

— E depois da guerra?

— Nada até a sua chegada à Argentina em 1963. Trabalhou durante dois anos num hotel em Bariloche, e depois arranjou trabalho numa estância perto de Puerto Blest. Em 1972, comprou a propriedade aos donos e geriu-a até a data da sua morte.

— Deixou alguma família na zona?

— Segundo isto, nunca foi casado e não tem parentes vivos.

Voltaram ao Hotel Edelweiss, um chalé suíço com telhado inclinado, localizado duas ruas acima da margem do lago na Avenida San Martin. Gabriel tinha alugado um carro no aeroporto nessa manhã, um Toyota todo-o-terreno. Pediu ao empregado do parque que o trouxesse da garagem e entrou na recepção à procura de um mapa de estradas da zona envolvente. Puerto Blest era exatamente onde a mulher do jornal lhe tinha dito, do lado oposto do lago, perto da fronteira com o Chile.

Partiram ao longo da margem do lago. A estrada ia-se deteriorando à medida que se iam afastando de Bariloche. Durante grande parte do caminho, a água escondia-se por trás da densa floresta. Então Gabriel fazia uma curva ou o arvoredo adelgaçava subitamente e o lago aparecia por momentos diante deles, num súbito brilho azul, apenas para desaparecer novamente por trás de um muro de troncos.

Gabriel contornou a zona mais a sul do lago e abrandou por instantes para observar um grupo de condores gigantes circundando o pico indefinido do Cerro López. Seguiu um trilho de uma só faixa através de um planalto exposto, coberto por pequenos espinheiros verde-cinza e conjuntos de árvores Arrayan. Nos prados altos, rebanhos de robustas ovelhas patagônias pastavam nas relvas de Verão. À distância, na direção da fronteira chilena, relâmpagos tremeluziam por cima dos picos dos Andes.

Quando chegaram a Puerto Blest, o sol já se tinha posto e a vila estava escura e sossegada. Gabriel entrou num café para perguntar direções. O bartender, um homem baixo de rosto corado, saiu para a rua e com uma série de gestos apontou-lhe o caminho.

 

NESSE MESMO CAFÉ, numa mesa perto da porta, o Relojoeiro bebia uma cerveja pela garrafa e observava a conversa que ocorria na rua. Reconheceu o homem magro de cabelo preto curto e patilhas acinzadas. Sentado no lugar do morto do Toyota todo-o-terreno estava uma mulher de longo cabelo escuro. Teria sido ela quem lhe pusera uma bala no ombro em Roma? Não tinha grande importância. Mesmo que não fosse, em breve estaria morta.

O israelense subiu para o volante do Toyota e afastou-se. O bartender voltou para dentro.

O Relojoeiro perguntou em alemão:

— Para onde vão aqueles dois?

O bartender respondeu-lhe na mesma língua.

O Relojoeiro terminou a cerveja e deixou dinheiro na mesa. Mesmo o menor movimento, como tirar notas do bolso do casaco, fazia o seu ombro pulsar e arder. Saiu para a rua e deixou-se estar por um momento a apanhar o ar fresco do fim de tarde, então virou-se e caminhou lentamente em direção à igreja.

 

A IGREJA DE Nossa Senhora da Montanha ficava na zona ocidental da vila, uma pequena igreja colonial caiada com um sino na torre do lado esquerdo do pórtico. Em frente da igreja existia um pátio de pedra, ensombrado por duas árvores altas e cercado por uma vedação em ferro. Gabriel caminhou para as traseiras da igreja. O cemitério estendia-se pela encosta suave de uma colina em direção a uma pequena mata de densos pinheiros. Um milhar de lápides e monumentos memoriais erguiam-se por entre as ervas daninhas como um exército despedaçado em retirada. Gabriel deixou-se estar por um momento, mãos na cintura, deprimido pela perspectiva de ter de andar pelo cemitério procurando por uma placa ostentando o nome de Otto Krebs na escuridão.

Caminhou de volta à parte da frente da igreja. Chiara esperava-o nas sombras do pátio. Puxou a pesada porta de carvalho da igreja e descobriu que estava destrancada. Chiara seguiu-o para dentro. Ar frio assentou-lhe na cara, assim como uma fragrância que ele já não sentia desde que deixara Veneza: a mistura de cera de vela, incenso, verniz para madeira e bolor, o cheiro inconfundível de uma igreja católica. Quão diferente era esta da Igreja de San Giovanni Crisóstomo em Cannaregio. Sem altar dourado, sem colunas de mármore nem absides elevadas nem retábulos gloriosos. Um simples crucifixo de madeira pendurado sobre o altar não ornamentado e uma plataforma de velas memoriais tremeluzentes perante uma estátua da Virgem. Os vitrais da nave lateral perderam a cor com a entrada da luz crepuscular.

Gabriel caminhou hesitante pela nave central. Nessa altura, uma figura escura saiu da sacristia e caminhou com largas passadas pelo altar. Parou perante o crucifixo, dobrou o joelho no chão e voltou-se para Gabriel. Era pequeno e magro, vestia calças pretas, uma camisa preta de mangas curtas e um colar romano. O seu cabelo e patilhas estavam impecavelmente cortados, e a sua cara atraente e escura tinha um traço de vermelho nas maçãs do rosto. Não parecia surpreendido pela presença de dois estranhos na sua igreja. Gabriel aproximou-se lentamente. O padre estendeu a mão e identificou-se como padre Ruben Morales.

— O meu nome é René Duran — disse Gabriel. — Sou de Montreal.

Perante isto o padre acenou, como se estivesse habituado a visitantes estrangeiros.

— O que posso fazer por si, Monsieur Duran?

Gabriel ofereceu a mesma explicação que dera à mulher do Bariloche Tageblatt nessa manhã — que viera à Patagônia em busca de um homem que acreditava ser irmão da sua mãe, um homem chamado Otto Krebs. Enquanto Gabriel falava, o padre cruzou os dedos e observou-o com um par de olhos gentis e calorosos. Quão diferente parecia este homem pastoral de Monsignor Donati, o burocrata profissional da Igreja, ou do bispo Drexler, o amargo reitor da Anima. Gabriel sentiu-se mal por estar a enganá-lo.

— Conheci Otto Krebs muito bem — disse o padre Morales. — E lamento dizer que não é possível ser o homem que procura. Sabe, Herr Krebs não tinha irmãos nem irmãs. Não tinha nenhum tipo de família. Quando finalmente conseguiu com muito esforço um estatuto que lhe permitiria sustentar uma mulher e filhos, ele foi... — A voz do padre arrastou-se. — Como posso dizer isto delicadamente? Já não era assim tão bom partido. Os anos cobraram-lhe caro.

— Ele alguma vez falou com você sobre a sua família?

Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Ou da guerra? O padre levantou o sobrolho.

— Eu era seu confessor e amigo, Monsieur Duran. Discutimos muitas coisas nos anos antecedentes à sua morte. Herr Krebs, como muitos homens do seu tempo, tinha visto muita morte e destruição. Cometera também muitos atos de que estava profundamente envergonhado e carecia de absolvição.

— E concedeu-lhe essa absolvição?

— Concedi-lhe paz de espírito, Monsieur Duran. Escutei as suas confissões, ordenei penitência. Dentro dos limites da fé católica, preparei-lhe a alma para se encontrar com Cristo. Mas serei eu, um simples padre de uma paróquia rural, realmente possuidor dos poderes para absolver tais pecados? Mesmo eu não tenho certeza disso.

— Posso perguntar-lhe alguma das coisas que discutiram? — perguntou Gabriel timidamente. Ele sabia que estava em solo teológico volúvel e a resposta seria o que ele já esperava.

— Muitas das minhas discussões com Herr Krebs foram conduzidas sob o selo da confissão. As restantes foram conduzidas sob o selo da amizade. Não seria correto da minha parte relatar-lhe a natureza dessas conversas agora.

— Mas ele está morto há vinte anos?

— Mesmo os mortos têm direito à privacidade.

Gabriel ouviu a voz da sua mãe, a linha de abertura do seu testemunho: Não vou dizer todas as coisas que vi. Não posso. Devo pelo menos isso aos mortos.

— Talvez me ajude a determinar se este homem era meu tio. O padre Morales esboçou um sorriso desarmante.

— Eu sou um simples padre do campo, Monsieur Duran, mas não sou um idiota chapado. Também conheço os meus paroquianos muito bem. Acredita sinceramente que é a primeira pessoa que aqui vem fingindo estar à procura de um parente perdido? Tenho certeza de que Otto Krebs não poderá ser o seu tio. E tenho algumas dúvidas de que seja René Duran de Montreal. Agora se me permite. Voltou costas para sair. Gabriel tocou-lhe no braço.

— Poderia pelo menos mostrar-me a campa?

O padre suspirou, em seguida olhou para os vitrais. Estavam negros.

— Está escuro — disse. — Dê-me um momento.

Atravessou o altar e desapareceu para dentro da sacristia. Um momento mais tarde surgiu vestindo um capote castanho e com uma enorme lanterna na mão. Conduziu-os para fora por um portal lateral, em seguida por um trilho de gravilha entre a igreja e a reitoria. No final do caminho estava um pórtico. O padre Morales levantou o trinco, acendeu a lanterna e conduziu-os para o cemitério. Gabriel caminhou ao lado do padre por um trilho estreito coberto de ervas daninhas. Chiara estava um passo atrás.

— Rezou-lhe uma missa fúnebre, padre Morales?

— Sim, claro. De fato, tive de ser eu próprio a tratar dos preparativos. Não havia mais ninguém para fazê-lo.

Um gato surgiu detrás de uma campa e parou no trilho em frente a eles, os seus olhos refletiam como faróis amarelos o brilho da lanterna. O padre Morales enxotou o gato e este desapareceu pela relva alta.

Chegaram próximo das árvores do cemitério. O padre virou à esquerda e conduziu-os pela relva à altura do joelho. Aqui o trilho era demasiado estreito para se caminhar lado a lado, então avançaram em fila, com Chiara a segurar a mão de Gabriel, apoiando-o.

O padre Morales, chegando ao fim de uma fila de lápides, parou e apontou a lanterna para baixo num ângulo de 45 graus. O foco caiu sobre uma lápide simples que exibia o nome OTTO KREBS. O ano do seu nascimento está gravado como 1913 e o ano da sua morte como 1983. Por cima do nome, dentro de uma pequena elipse de vidro riscado e gasto pelo tempo, estava uma fotografia.

 

GABRIEL AGACHOU-SE E, sacudindo uma camada de pó fino, examinou o rosto. Evidentemente que tinha sido tirada alguns anos antes da sua morte, porque o homem da fotografia era de meia-idade, talvez de quarenta e muitos. Gabriel tinha pelo menos uma certeza. Não era o rosto de Erich Radek.

— Presumo que não seja o seu tio, Monsieur Duran?

— Tem a certeza de que a fotografia é dele?

— Sim, claro. Encontrei-a eu próprio num cofre contendo algumas das suas coisas privadas.

— Suponho que não me deixaria ver essas coisas.

— Já não as tenho. E mesmo que tivesse...

O padre Morales, deixando a frase a meio, entregou a Gabriel a lanterna. — Vou deixá-lo agora. Eu consigo fazer o caminho de volta sem luz. Poderia deixar a lanterna à porta da reitoria quando sair por favor. Foi um prazer conhecê-lo, Monsieur Duran. — Com isso, voltou-se e desapareceu por entre as lápides. Gabriel olhou para Chiara.

— Devia ser a fotografia de Radek. Radek foi para Roma e obteve um passaporte da Cruz Vermelha em nome de Otto Krebs. Krebs foi para Damasco em 1948, depois emigrou para a Argentina em 1963. Krebs recenseou-se na polícia argentina neste distrito. Este devia ser Radek.

— Isso significa que?

— Outra pessoa foi para Roma fazendo-se passar por Radek. Gabriel apontou para a fotografia na lápide.

— Foi este homem. Este é o austríaco que foi à Anima à procura da ajuda do bispo Hudal. Radek estava noutro lado qualquer, provavelmente ainda escondido na Europa. Por que outra razão foi ele tão longe? Ele queria que toda a gente acreditasse que tinha partido há muito. E na eventualidade de alguém ir à sua procura, encontraria o rasto de Roma para Damasco e Argentina para se deparar com o homem errado, Otto Krebs, um modesto empregado de hotel que conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar alguns hectares junto à fronteira com o Chile.

— Ainda tens um grande problema — disse Chiara. — Não consegues provar que Ludwig Vogel é realmente Erich Radek.

— Um passo de cada vez — disse Gabriel. — Fazer um homem desaparecer não é assim tão simples. Radek precisou de ajuda. Alguém tem de saber disto.

— Sim, mas estará ele ainda vivo?

Gabriel levantou-se e olhou na direção da igreja. Conseguiu ver a silhueta do sino da torre. Então reparou num vulto caminhando por entre as lápides na direção deles. Por um momento pensou que fosse o padre Morales; mas o vulto aproximou-se e conseguiu ver que era um homem diferente. O padre era magro e baixo. Este homem era entroncado e corpulento, de passo rápido e firme que o impelia suavemente pela colina abaixo por entre as lápides.

Gabriel ergueu a lanterna e apontou-a na sua direção. Vislumbrou por breves instantes o rosto, antes de o homem o escudar por trás de uma enorme mão: careca, com óculos, grossas sobrancelhas pretas e cinzas.

Gabriel ouviu um barulho atrás de si. Voltou-se e apontou a lanterna em direção às árvores ao longo do perímetro do cemitério. Dois homens vestidos de negro apareciam das árvores a correr com pistolas metralhadora compactas nas mãos. Gabriel apontou o foco mais uma vez para o homem que vinha pelas lápides e viu que este sacava de uma arma de dentro do casaco. Então, subitamente, o atirador parou. Os seus olhos estavam fixos não em Gabriel e Chiara, mas nos dois homens que vinham das árvores. Ficou imóvel não mais que um segundo, então, bruscamente, guardou a arma, voltou-se e correu na direção oposta.

Quando Gabriel se voltou outra vez, os dois homens com as pistolas metralhadoras estavam apenas a alguns metros e correndo apressadamente. O primeiro colidiu com Gabriel, atirando-o ao chão duro do cemitério. Chiara ainda conseguiu proteger a cara enquanto o segundo atirador a deitou ao chão também. Gabriel sentiu uma luva tapar-lhe a boca e em seguida o bafo quente do seu atacante na sua orelha.

— Relaxe, Allon, está entre amigos — disse em inglês de sotaque americano. — Não torne isso difícil para nós.

Gabriel arrancou a mão de sua boca e olhou nos olhos do atacante.

— Quem é você?

— Pense em nós como anjos da guarda. Aquele homem que se aproximava de vocês era um assassino profissional e estava prestes a matá-los.

— E o que vai fazer conosco?

Os atiradores levantaram Gabriel e Chiara do chão e conduziram-nos para fora do cemitério na direção das árvores.


PARTE TRÊS

 

 

O Rio das Cinzas


27

 

PUERTO BLEST, ARGENTINA

 

 

A FLORESTA CAÍA bruscamente do limite do cemitério até o vazio de uma ravina escurecida. Desceram pela encosta íngreme, cautelosamente por entre as árvores. Não havia lua no anoitecer, o escuro era absoluto. Caminharam numa fila única, um americano à frente, seguido por Gabriel e Chiara, outro americano à retaguarda. Os americanos usavam óculos de visão noturna. Moviam-se, segundo Gabriel, como soldados de elite.

Chegaram a um pequeno acampamento bem escondido: tendas pretas, sacos-cama pretos, sem sinal de fogueira ou bico de gás para cozinhar. Gabriel estimou há quanto tempo estariam ali, observando o cemitério. Não há muito, avaliando pelo tamanho da barba. Quarenta e oito horas, talvez menos.

Os americanos começaram a levantar o acampamento. Gabriel tentou, uma segunda vez, determinar quem eram e para quem trabalhavam. Foi respondido com sorrisos cansados e silêncio tumular.

Levou-lhes apenas alguns minutos a levantar o acampamento e a obliterar qualquer traço da sua presença. Gabriel ofereceu-se para carregar um dos sacos. Os americanos recusaram.

Começaram a caminhar novamente. Dez minutos mais tarde, estavam na base da ravina, num rio de rochas. Um veiculo esperava-os, escondido por baixo de uma lona camuflada e alguns ramos de pinheiro. Era um Rover antigo com um pneu sobressalente montado no capo e bidons de combustível na traseira.

Os americanos decidiram os lugares, Chiara na frente, Gabriel atrás, com uma arma apontada ao estômago para o caso de subitamente perder a fé nos seus salvadores. Foram aos solavancos pelo rio rochoso durante alguns quilômetros,

salpicando pela água rasa, antes de virar para um caminho de terra. Vários quilômetros adiante, entraram numa via rápida que saía de Puerto Blest. O americano virou à direita em direção aos Andes.

— Está a ir em direção ao Chile — apontou Gabriel. Os americanos riram. Dez minutos mais tarde, a fronteira: um guarda, tremendo de frio numa casita de tijolo. O Rover atravessou a fronteira sem abrandar e continuou a descer os Andes em direção ao Pacífico.

 

 

No LIMITE NORTE do Golfo de Ancud fica Porto Montt, uma cidade de desembocadura e um porto de escala para barcos cruzeiro. Mesmo à saída da cidade está um aeroporto com uma pista comprida o suficiente para acomodar um jato executivo Gulfstream G500, que já estava à espera, motores gemendo, quando o Rover chegou. Um americano de cabelo cinza esperava à porta. Convidou Gabriel e Chiara a entrar e apresentou-se com pouca convicção como "Sr. Alexander". Gabriel, antes de se sentar num confortável assento em pele, perguntou para onde iam.

— Vamos para casa, Sr. Allon. Eu sugiro que você e sua amiga descansem um pouco. É um longo voo.

 

 

O RELOJOEIRO LIGOU para o número em Viena do seu quarto de hotel em Bariloche.

— Estão mortos?

— Lamento, mas não.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade — disse o Relojoeiro —, não faço a mínima ideia.

 

 


28

 

 

THE PLAINS, VIRGÍNIA

 

 

A CASA SEGURA está localizada numa área rural equestre da Virgínia, onde ricos e privilegiados se cruzam com a dura realidade da vida rural sulista. É alcançável através de uma sinuosa e ondulada estrada, alinhada por celeiros em ruínas e cabanas de madeira com carros abandonados nos pátios. Há um portão; avisa que a propriedade é privada, mas omite o fato que, tecnicamente falando, é uma instalação do governo. A entrada é de gravilha e tem quase um quilômetro e meio de comprimento. À direita fica um bosque denso; à esquerda, um pasto cercado por uma vedação de madeira. A vedação causou indignação nos operários locais porque o "dono" contratou uma firma de fora para tratar da sua construção. Dois cavalos baios residem no pasto. Segundo os entendidos da Agência, eles são sujeitos anualmente, como todos os outros empregados, a polígrafos para garantir que não se passaram para o outro lado, seja lá qual for esse lado.

A casa estilo colonial está localizada no topo da propriedade e cercada por árvores de sombra alta. Tem um telhado acobreado e um alpendre duplo. O mobiliário é rústico e confortável, convidativo à cooperação e camaradagem. Delegações de serviços amigáveis já ficaram ali. Assim como homens que traíram os seus países. O último foi um iraquiano que ajudou Saddam a tentar construir uma bomba nuclear. A sua mulher tinha esperanças num apartamento do famoso Watergate e queixou-se amargamente durante toda a estada. Os seus filhos incendiaram o celeiro. A gerência ficou contente ao vê-los partir.

Nessa tarde, neve recente cobria o pasto. A paisagem, esgotada de toda a cor através das janelas fumadas do automóvel pesado, parecia a Gabriel como um esboço a carvão. Alexander, recostado no banco da frente com os olhos fechados, acordou subitamente. Bocejou de forma exagerada, olhou para o relógio de pulso, e franziu-se quando percebeu que estava ajustado na hora errada.

Foi Chiara, sentada ao lado de Gabriel, que reparou na careca figura armada em sentinela parada junto aos balaústres do alpendre de cima. Gabriel inclinou-se do banco de trás e olhou para ele. Shamron ergueu a mão e manteve-a assim por um momento, antes de se virar e desaparecer para dentro da casa. Saudou-os no hall de entrada. Ao seu lado, vestindo umas calças de bombazina e uma camisola de malha, estava um homem pequeno com uma auréola de caracóis cinzas e um bigode cinza. Os seus olhos castanhos eram tranquilos, o seu aperto de mão calmo e breve. Parecia um professor catedrático, ou talvez um psicólogo clínico. Não era uma coisa nem outra. De fato, ele era o diretor de operações delegado da Central Intelligence Agency, e o seu nome era Adrian Carter. Não parecia contente, mas dado o estado das questões globais, raramente estava.

Cumprimentaram-se de forma cuidada, como homens do mundo secreto têm tendência a fazer. Usaram nomes reais, dado que eram todos conhecidos uns dos outros e a utilização de nomes de trabalho teria dado um ar burlesco ao caso. O sereno olhar de Carter pousou brevemente em Chiara, como se ela fosse um penetra para quem tivesse de ser arranjado um local extra. Não fez nenhuma tentativa de suprimir o sobrolho.

— Estava com esperança de manter isto a um nível muito sênior disse Carter. A sua voz era fraca; para o ouvir era preciso estar em silêncio e escutar com atenção. — Estava também com esperança de conter a distribuição do material que estou prestes a partilhar convosco.

— Ela é a minha parceira — disse Gabriel. — Ela sabe de tudo e não vai deixar a sala.

Os olhos de Carter moveram-se lentamente de Chiara para Gabriel.

— Temo-lo sob observação já há algum tempo; desde a sua chegada a Viena, para ser mais preciso. Apreciamos especialmente a sua visita ao Café Central, confrontando Vogel cara-a-cara como se fosse uma requintada peça de teatro.

— Na verdade, foi Vogel que me confrontou a mim,

— Esse é o estilo de Vogel.

— Quem é ele?

— Você é que tem andado à pesca. Porque não me diz você?

— Eu acredito que ele seja um assassino das SS chamado Erich Radek e, por alguma razão, vocês estão a protegê-lo. Se tivesse de adivinhar porquê, diria que é um dos seus agentes.

Carter colocou uma mão no ombro de Gabriel.

— Venha — disse. — Obviamente que está na hora de termos uma conversa.

 

 

A SALA DE ESTAR era iluminada por uma lâmpada e cheia de sombras. Uma ampla fogueira ardia na lareira, um termo de café assentava no aparador. Carter serviu-se de um pouco antes de se sentar numa poltrona com indiferença pretensiosa. Gabriel e Chiara partilharam o sofá enquanto Shamron andava de um lado para o outro, uma sentinela com uma longa noite pela frente.

— Quero lhe contar uma história, Gabriel — começou Carter. — É a história de um país que foi arrastado para uma guerra na qual não queria participar, um país que derrotou o maior exército que o mundo alguma vez tinha visto, apenas para se encontrar, em poucos meses, num impasse armado com o seu antigo aliado, a União Soviética. Com toda a honestidade, estávamos borrados de medo. Sabe, antes da guerra, não tínhamos serviços secretos, pelo menos nenhum a sério. Diabo, os seus serviços são tão antigos como os nossos. Antes da guerra, os nossos serviços de espionagem dentro da União Soviética consistiam num par de tipos formados em Harvard e um telégrafo. Quando, de repente, nos encontramos de nariz colado com o papão russo, não sabíamos nada sobre ele. As suas forças, as suas fraquezas, as suas intenções. E, pior do que isso, não sabíamos como descobrir. Que outra guerra estava iminente, era uma conclusão precipitada. E o que é que tínhamos? Nada. Sem redes, sem agentes. Nada. Estávamos perdidos, vagueando pelo deserto. Precisávamos de ajuda. Então um Moisés apareceu no horizonte, um homem que nos guiou através de Sinai para a terra prometida. Shamron ficou parado por um momento para poder fornecer o nome deste Moisés: o General Reinhard Gehlen, chefe da seção Oriental de Estado-Maior Alemão de Exércitos Estrangeiros, o espião chefe de Hitler na frente russa.

— Dá um charuto a esse homem. — Carter inclinou a cabeça na direção de Shamron.

— Gehlen foi um dos poucos homens que teve tomates para dizer a Hitler a verdade sobre a campanha russa. Hitler costumava ficar tão furioso com ele que ameaçou interná-lo num asilo para loucos. Quando o fim se aproximava, Gehlen decidiu salvar a própria pele. Ordenou à sua equipe que microfilmasse o arquivo do Estado-Maior na União Soviética e selasse o material em tambores estanques. Os tambores foram enterrados nas montanhas da Bavária e da Áustria; então, Gehlen e a sua comitiva renderam-se a uma equipe de contraespionagem.

— E vocês acolheram-no de braços abertos — disse Shamron.

— Terias feito o mesmo Ari — Carter entrelaçou os dedos e ficou um momento olhando para o fogo. Gabriel quase conseguia ouvi-lo contar até dez para desanuviar a sua fúria. — Gehlen era a resposta às nossas preces. O homem passou uma vida espionando a União Soviética, e agora ia nos mostrar o caminho. Nós o trouxemos para este país e colocamos a alguns quilômetros daqui, em Forte Hunt. Ele tinha todo o sistema de segurança americano na mão. Disse o que queríamos ouvir. O stalinismo era um mal sem paralelo na história da humanidade. Stalin queria subverter os países da Europa Ocidental partindo de dentro e depois atacá-los militarmente. Stalin tinha ambições globais. Não tenham medo, disse Gehlen. Eu tenho redes, eu tenho espiões inativos e células infiltradas. Eu sei tudo o que há para saber sobre Stalin e os seus homens de confiança. Juntos, vamos esmagá-los.

Carter levantou-se e foi até o aparador para aquecer o seu café.

— Gehlen cortejou-nos durante dez meses em Forte Hunt. Conduziu uma negociação dura, e os meus predecessores estavam tão hipnotizados que concordaram com todas as suas exigências. A Organização Gehlen nasceu. Mudou-se para um complexo murado perto de Pullach, Alemanha. Nós o financiamos, demos-lhe diretivas. Ele geria a Organização e contratava os agentes. Por fim, a Organização tornou-se uma extensão virtual da Agência.

Carter voltou para a poltrona com o café.

— Obviamente, uma vez que o alvo primário da Organização Gehlen era a União Soviética, o general contratou homens que tivessem experiência lá. Um dos homens que ele queria era um brilhante e energético jovem chamado Erich Radek, um austríaco que fora chefe das SD no Reichskommissariat da Ucrânia. Na época, Radek era nosso prisioneiro num campo de detenção em Mannheim. Ele foi entregue a Gehlen e, em pouco tempo, infiltrou-se nos muros da sede da Organização em Pullach, reativando seus antigos contatos na Ucrânia.

— Radek era SD — disse Gabriel. — SS, SD e Gestapo foram declaradas organizações criminosas depois da guerra e todos os seus integrantes estavam sujeitos a prisão imediata, e mesmo assim permitiram que Gehlen o contratasse.

Carter acenou lentamente, como se o pupilo tivesse respondido bem à questão, mas passasse ao lado do maior e mais importante ponto.

— Em Forte Hunt, Gehlen garantiu que não contrataria antigos oficiais SS, SD ou Gestapo, mas foi uma promessa de papel que nunca esperamos que cumprisse.

— Sabia que Radek esteve ligado às atividades do Einsatzgruppen na Ucrânia? — perguntou Gabriel. — Sabia que este brilhante e energético jovem tentou esconder o maior crime da história?

Carter abanou a cabeça.

— A escala das atrocidades alemãs não era conhecida na altura. Quanto à Aktion 1005, ninguém tinha ainda ouvido falar no termo e a ficha de Radek nunca exibiu a sua transferência da Ucrânia. Aktion 1005 era um assunto ultrassecreto do Reich, e assuntos ultrassecretos não eram postos em papel.

— Mas certamente, Sr. Carter — disse Chiara —, que o general Gehlen devia saber do trabalho de Radek...

Carter elevou as sobrancelhas, como surpreendido pela habilidade de Chiara para falar.

— Talvez soubesse, mas, nessa época, duvido que fizesse muita diferença para Gehlen; Radek não era o único antigo SS que passou a trabalhar para a Organização. Pelo menos outros cinquenta trabalharam lá, incluindo alguns, como Radek, ligados à solução final.

— Temo que também não fizesse muita diferença para os que controlavam Gehlen — disse Shamron. — Qualquer filho da mãe, desde que fosse anticomunista. Não era esse um dos princípios da Agência no que se referia ao recrutamento de agentes na Guerra-Fria?

— Nas infames palavras de Richard Helms: nós não estamos nos escoteiros. Se quiséssemos estar nos escoteiros, teríamos ido para os escoteiros.

— Não parece terrivelmente preocupado, Adrian — disse Gabriel.

— Drama não é o meu estilo, Gabriel. Sou um profissional, como você e o seu lendário chefe ali ao fundo. Eu lido com o mundo real, não com o mundo como eu gostaria que fosse. Não tento desculpar as ações dos meus predecessores, como você e Shamron não tentam desculpar as dos seus. Por vezes, os serviços secretos têm de recorrer aos serviços de homens maus para atingir resultados que são bons: um mundo mais estável, a segurança da terra mãe, a proteção de amigos valiosos. Os homens que decidiram dar emprego a Reinhard Gehlen e Erich Radek estavam a jogar um jogo tão velho como o próprio tempo, o jogo da Realpolitik, e jogaram-no bem. Eu não fujo das suas ações e, garantidamente, não vou deixar que você, de entre todos, as venha julgar. Gabriel inclinou-se para a frente, os dedos entrelaçados, os cotovelos nos joelhos. Conseguia sentir o calor da lareira no rosto, que apenas forneceu combustível à sua fúria.

— Há uma diferença entre usar indivíduos maus como fontes e contratá-los como agentes secretos. E Erich Radek não era um assassino de vão de escada. Ele era um assassino de massas.

— Radek não esteve diretamente envolvido no extermínio de judeus. O seu envolvimento veio depois desse fato.

Chiara abanava a cabeça, mesmo antes de Carter ter completado a sua resposta. Ele franziu o sobrolho. Claramente, começava a estar arrependido de a ter incluído no processo.

— Deseja comentar alguma coisa que eu tenha dito, Miss Zolli?

— Sim, desejo — disse ela. — É obvio que não sabe muito sobre a Aktion 1005. Quem pensa que Radek usava para abrir as valas comuns e destruir os corpos? O que acha que lhes fez depois do trabalho estar concluído? — Saudada por silêncio, ela anunciou o seu veredicto.

— Erich Radek foi um assassino de massas e você contratou-o como espião. Carter acenou com lentidão, como se concedesse perder alguns pontos no jogo. Shamron aproximou-se da parte de trás do sofá e colocou uma mão apaziguadora no ombro de Chiara. Em seguida, olhou para Carter e pediu uma explicação para a falsa fuga de Radek da Europa. Carter pareceu aliviado pela perspectiva de território virgem.

— Ah sim — disse —, a fuga da Europa. É aqui que isto se torna interessante.

 

ERICH RADEK RAPIDAMENTE se tornou no delegado mais importante do General Gehlen. Ansioso por escudar o seu protegido de prisão e ação judicial, Gehlen e os seus manobradores americanos criaram uma nova identidade para ele: Ludwig Vogel, um austríaco que fora recrutado para a Wehrmacht e dado como desaparecido nos últimos dias da guerra. Durante dois anos, Radek viveu em Pullach como Vogel e a sua nova identidade parecia estanque. Isso mudou no Outono de 1947, com o início do Caso N° 9, dos subsequentes processos de Nuremberg, o julgamento do Einsatzgruppen. O nome de Radek veio à baila várias vezes durante o julgamento, assim como o nome de código da operação secreta para destruir as provas das matanças do Einsatzgruppen: Aktion 1005.

— Gehlen ficou alarmado — disse Carter. — Radek estava oficialmente considerado como desaparecido e não contabilizado, e Gehlen estava ansioso para que permanecesse assim.

— Então enviaram um homem a Roma, fazendo-se passar por Radek — disse Gabriel — e garantiram que deixavam para trás pistas suficientes para que, quem fosse à sua procura, seguisse o rasto errado.

— Precisamente.

Ainda andando, Shamron disse: — Por que usaram a via do Vaticano em vez de sua própria Ratline?

— Está se referindo à Ratline da contraespionagem?

Shamron fechou brevemente os olhos e acenou.

— A Ratline CCE foi usada, principalmente, para desertores russos. Se enviássemos Radek por essa rota, revelaríamos o fato de ele estar a trabalhar para nós. Usamos a via do Vaticano para enfatizar as suas credenciais como um criminoso de guerra nazista em fuga da justiça aliada.

— Que esperto da sua parte, Adrian. Perdoe a minha interrupção. Por favor, continue.

— Radek desapareceu — disse Carter. — Ocasionalmente, a Organização alimentava a história da sua fuga promovendo falsos avistamentos de vários caçadores de nazistas, alegando que Radek estava escondido em várias capitais sul-americanas. Ele estava a viver em Pullach, claro, trabalhando para Gehlen sob o nome de Ludwig Vogel.

— Patético — murmurou Chiara.

— Foi em 1948 — disse Carter. — As coisas eram diferentes nessa altura. O processo de Nuremberg tinha seguido o seu caminho, e todas as partes tinham perdido o interesse em processos adicionais. Médicos nazistas tinham regressado ao trabalho. Teóricos nazistas estavam novamente a ensinar nas universidades. Juízes nazistas estavam de volta à barra dos tribunais.

— E um assassino de massas chamado Erich Radek era agora um importante agente que precisava de proteção — disse Gabriel. — Quando regressou ele a Viena?

— Em 1956 Konrad Adenauer fez da Organização os serviços secretos oficiais da Alemanha Ocidental: o Bundesnachrichtendienst, mais conhecido como BDN. Erich Radek, agora conhecido como Ludwig Vogel, estava uma vez mais a trabalhar para o governo alemão. Em 1965, regressou a Viena para construir uma rede e garantir que a neutralidade oficial do novo governo austríaco se mantinha firmemente inclinada para a NATO e para o Ocidente. Vogel era um projecto conjunto da BND-CIA. Trabalhamos juntos na sua proteção. Limpamos os arquivos no Staatsarchiv. Criamos uma empresa para ele gerir, Vale do Danúbio Transações e Investimentos, e canalizamos trabalho suficiente para garantir que a firma fosse um sucesso. Vogel era um astucioso homem de negócios e, em pouco tempo, os lucros da VDTI estavam a financiar todas as nossas redes austríacas. Em resumo, Vogel era o nosso bem mais precioso na Áustria e um dos mais valiosos na Europa. Ele era um mestre espião. Quando o Muro caiu, o seu trabalho estava concluído. Ele estava também a envelhecer. Cortamos a nossa relação, agradecemos-lhe pelo trabalho bem feito, e seguimos os respectivos caminhos. — Carter levantou as mãos. — E aqui, é onde a história acaba.

— Mas isso não é verdade, Adrian — disse Gabriel. — Senão, não estaríamos aqui.

— Está a referir-se às alegações feitas por Max Klein contra Vogel.

— Você sabia?

— Vogel alertou-nos para o fato de termos um possível problema em Viena. Pediu-nos para interceder e fazer desaparecer as alegações. Informamos que não podíamos fazer isso.

— Então ele resolveu o assunto pelas próprias mãos.

— Está a insinuar que Vogel ordenou o atentado ao Escritório de Investigação e Reclamações?

— Estou igualmente a insinuar que ele mandou assassinar Max Klein para o calar. Carter levou um momento até responder.

— Se Vogel está envolvido, trabalha através de tantos canais e testas-de-ferro que nunca serão capazes de formar uma acusação contra ele. Além disso, o atentado e a morte de Max Klein são assuntos austríacos, não israelenses, e nenhum promotor de justiça austríaco vai abrir uma investigação por assassinato contra Ludwig Vogel. É um beco sem saída.

— O seu nome é Radek, Adrian, não Vogel, e a questão é porquê. Por que razão estava Radek tão preocupado com a investigação de Eli Lavon para o matar? Mesmo que Eli e Max Klein conseguissem provar conclusivamente que Vogel era na verdade Erich Radek, ele nunca seria levado a julgamento pelo Ministério da Justiça austríaco. Ele está demasiado velho. Já passou muito tempo. Não restam mais testemunhas, exceto Klein, e não há hipótese de Radek ser condenado na Áustria baseado na palavra de um velho judeu. Então por que recorrer à violência?

— Soa-me que tem uma teoria.

Gabriel olhou por cima do ombro e murmurou para Shamron algumas palavras em hebraico. Shamron entregou a Gabriel uma pasta contendo todo o material que ele recolhera no decorrer da sua investigação. Gabriel abriu-a e retirou um só item: a fotografia que tirara da casa de Radek em Salzkammergut: Radek com uma mulher e um rapaz adolescente. Colocou-a na mesa e girou-a para que Carter conseguisse ver. Os olhos de Carter moveram-se para a foto e em seguida de volta para Gabriel.

— Quem é ela? — perguntou Gabriel.

— A sua mulher, Mônica.

— Quando se casou com ela?

— Durante a guerra — disse Carter —, em Berlim.

— Nunca foi mencionado um casamento aprovado pelas SS no seu cadastro.

— Há muitas coisas que nunca foram mencionadas no cadastro SS de Radek.

— E depois da guerra?

— Ela estabeleceu-se em Pullach sob o nome verdadeiro. A criança nasceu em 1949. Quando Vogel se mudou para Viena, o General Gehlen não achou seguro que Mônica e o filho vivessem com ele abertamente, nem a Agência. Foi organizado um casamento com um homem da rede de Vogel. Viveu em Viena, numa casa nas traseiras de Vogel. Ele visitava-os ao fim do dia. Eventualmente, acabou por construir uma passagem entre as casas, para que Mônica e o rapaz pudessem circular livremente entre as duas residências sem medo de serem detectados. Nunca sabíamos quem podia estar à espreita. Os russos adorariam comprometê-lo e desmascará-lo.

— Como se chamava o rapaz?

— Peter.

— E o agente que se casou com Mônica Radek? Por favor, diga o nome, Adrian.

— Acho que você já sabe o nome, Gabriel — Carter hesitou, mas disse. — O nome era Metzler.

— Peter Metzler, o homem que está prestes a ser o chanceler austríaco, é filho de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek, e Eli Lavon ia expor esse fato.

— É o que parece.

— Isso parece motivo para homicídio, Adrian.

— Bravo, Gabriel — disse Carter. — Mas o que podemos fazer sobre isso? Convencer os austríacos a apresentar queixa contra Radek? Boa sorte. Expor Peter Metzler como filho de Radek? Se fizer isso, vai tornar público que Radek era nosso homem em Viena. O que vai originar muito embaraço para a Agência, numa hora em que estamos mergulhados numa batalha global contra forças que pretendem destruir meu país e o seu. Na qual precisam desesperadamente do nosso apoio, vai também congelar as relações entre os nossos serviços

— Isso soa-me a ameaça, Adrian.

— Não, é apenas um conselho de confiança — disse Carter. — É Realpolitik. Desistam. Não liguem. Esperem que ele morra e esqueçam o que aconteceu.

— Não — disse Shamron.

O olhar de Carter desviou-se de Gabriel para Shamron.

— Como é que eu já previa que essa seria sua resposta?

— Porque eu sou Shamron, e eu nunca esqueço.

— Então suponho que temos de encontrar uma maneira de lidar com esta situação para que o meu serviço não seja historicamente descredibilizado. — Carter olhou para o relógio. — Está a ficar tarde. Tenho fome. Vamos comer, acompanham-me? Ao LONGO DA HORA seguinte, durante uma refeição de pato assado e arroz selvagem, numa sala de jantar à luz de velas, o nome de Erich Radek não foi mencionado. Havia rituais sobre assuntos como este, Shamron dizia sempre: um ritmo que não podia ser quebrado ou apressado. Havia uma altura para negociações duras, uma altura para sentar relaxadamente e desfrutar da companhia de um colega de viagem que, afinal de contas, tem os mesmos interesses.

E assim, estimulado por Carter, Shamron ofereceu-se para ser o animador do serão. Durante algum tempo, ele desempenhou o papel esperado. Contou histórias de travessias noturnas em terras hostis; de segredos roubados e inimigos vencidos; dos fiascos e calamidades que acompanham qualquer carreira, especialmente uma tão longa e volátil como a de Shamron. Carter, encantado, pousou o garfo e aqueceu as mãos no fogo de Shamron. Gabriel observou o encontro em silêncio, do lado oposto da mesa. Ele sabia que estava a testemunhar um recrutamento, um recrutamento perfeito, Shamron sempre dizia: a sedução perfeita está no coração. Começa com um pouco de interesse, a confissão de sentimentos que era melhor manter em segredo. Apenas quando o terreno estiver minuciosamente lavrado é que se coloca a semente da traição.

Shamron, sobre a quente tarte de maçã frita e café, começou a falar, não sobre os seus abusos, mas sobre si próprio: a sua infância na Polônia; a ferroada da violência antissemita da Polônia; as nuvens de tempestade que se formaram junto à fronteira com a Alemanha nazista.

— Em 1936, a minha mãe e o meu pai decidiram que eu iria abandonar a Polônia e partir para a Palestina — disse Shamron. — Eles ficariam para trás, com as minhas duas irmãs mais velhas, e esperariam para ver se as coisas melhoravam. Como muitos outros, eles esperaram demasiado tempo. Em Setembro de 1939, ouvimos na rádio que os alemães tinham invadido a Polônia. Eu sabia que não voltaria a ver a minha família.

Shamron sentou-se em silêncio por um momento. As suas mãos, quando acendeu o cigarro, tremiam ligeiramente. A sua colheita tinha sido semeada. A sua exigência, embora nunca verbalizada, era clara. Ele não iria sair desta casa sem Erich Radek no bolso, e Adrian Carter ia ajudá-lo.

 

 

QUANDO REGRESSARAM À sala de estar para a sessão da noite, um leitor de fitas estava na mesinha de apoio em frente ao sofá. Carter, de volta à sua poltrona junto à lareira, carregou tabaco inglês no fornilho do cachimbo. Acendeu um fósforo e, com o tubo entre os dentes, acenou na direção do leitor e pediu a Gabriel que fizesse as honras. Gabriel carregou no botão de PLAY. Dois homens começaram uma conversa em alemão, um deles com o sotaque de um suíço de Zurique, o outro um vienense. Gabriel conhecia a voz do homem de Viena. Tinha-a escutado uma semana antes, no Café Central. A voz pertencia a Erich Radek.

— Segundo registros desta manhã, o valor total da conta sustenta dois mil milhões e meio de dólares. Metade, aproximadamente, é em dinheiro, igualmente dividido em dólares e euros. O resto do dinheiro é investimento — a tarifa habitual, títulos e obrigações, juntamente com um montante substancial em imóveis...

 

DEZ MINUTOS MAIS TARDE, Gabriel aproximou-se e pressionou o botão de STOP. Carter despejou o cachimbo para a lareira e lentamente carregou outro fornilho.

— Essa conversa aconteceu em Viena na semana passada — disse Carter. — O banqueiro é um homem chamado Konrad Becker. É de Zurique.

— E a conta? — perguntou Gabriel.

— Depois da guerra, milhares de nazistas em fuga esconderam-se na Áustria. Trouxeram com eles várias centenas de milhões de dólares em bens de pilhagens nazistas: ouro, dinheiro, arte, joias, pratas, mantas e tapeçarias. O material estava escondido pelos Alpes. Muitos desses nazistas queriam ressuscitar o Reich, e queriam usar os bens pilhados para ajudar a atingir esse objetivo. Um pequeno grupo percebeu que os crimes de Hitler eram tão grandes que iria levar, pelo menos, uma geração ou mais até o Nacional Socialismo ser politicamente viável outra vez. Decidiram colocar uma grande soma de dinheiro num banco de Zurique e anexaram um peculiar conjunto de instruções à conta. Só podia ser ativada por uma carta do chanceler austríaco. Sabe, eles acreditavam que a revolução tinha começado na Áustria com Hitler e que a Áustria seria a fonte do seu renascimento. Cinco homens foram inicialmente confiados com o número de conta e a senha. Quatro deles morreram. Quando o quinto ficou doente, procurou alguém para ser o seu mandatário.

— Erich Radek.

Carter anuiu e fez uma pausa para acender o seu cachimbo. — Radek está prestes a ter o seu chanceler, mas ele nunca vai pôr as mãos nesse dinheiro. Descobrimos a conta há alguns anos. Passar por cima do seu passado em 1945 era uma coisa, mas nós não iríamos permitir que ele desbloqueasse uma conta com dois mil milhões e meio de pilhagens do holocausto. Movemo-nos silenciosamente contra Herr Becker e o seu banco. Radek ainda não sabe, mas ele nunca vai ver um tostão desse dinheiro.

Gabriel inclinou-se, pressionou REWIND, depois STOP, e então PLAY:

— Os seus camaradas são generosos com aqueles que os ajudam nos seus esforços, mas temo que tem havido algumas inesperadas... complicações.

— Que tipo de complicações?

— Parece que vários dos que iriam receber dinheiro morreram recentemente em circunstâncias misteriosas...

STOP.

Gabriel olhou para Carter à espera de uma explicação.

— O homem que criou a conta queria recompensar os indivíduos e instituições que tinham ajudado a fuga de nazistas depois da guerra. Radek considerava isso balelas sentimentais. Ele não iria começar uma associação de beneficência. Ele não podia alterar o convênio, então alterou as circunstâncias no terreno.

— Enrique Calderon e Gustavo Estrada deviam receber dinheiro dessa conta?

— Vejo que aprendeu bastante durante o seu tempo com Alfonso Ramirez — Carter esboçou um sorriso de culpa. — Andamos a vigiá-lo em Buenos Aires.

— Radek é um homem rico que já não tem muito tempo de vida disse Gabriel. — A última coisa que precisa é de dinheiro.

— Aparentemente, ele planeia doar uma grande parte da conta ao seu filho.

— E o resto?

— O resto vai entregar ao seu agente mais importante para prosseguir com as intenções originais dos homens que criaram a conta Carter fez uma pausa. — Eu penso que vocês já se conhecem. O seu nome é Manfred Kruz.

O cachimbo de Carter apagou-se. Ele olhou para a fornilha, franziu as sobrancelhas, e reacendeu-a.

— O que nos traz de volta ao nosso problema original — Carter soprou uma baforada de fumo na direção de Gabriel. — O que fazemos sobre Erich Radek? Se pedem aos austríacos para o acusarem judicialmente, eles vão deixar arrastar e esperar que ele morra. Se raptam um austríaco idoso das ruas de Viena e o levam para julgamento em Israel, a imundície vai cair-lhes em cima de bem alto. Se pensam que têm dificuldades na Comunidade Europeia agora, os seus problemas serão multiplicados por dez se o despacham. E se ele é levado a julgamento, a sua defesa vai indubitavelmente expor a nossa ligação a ele. Então o que fazemos cavalheiros?

— Talvez haja uma terceira via — disse Gabriel.

— Qual é?

— Convencer Radek a ir a Israel voluntariamente.

Carter olhou com cepticismo para Gabriel sobre a fornilha do seu cachimbo.

— E como pensa que podemos convencer um merdas de primeira como Erich Radek a fazer isso?

 

 

FALARAM PELA NOITE adentro. O plano era de Gabriel, e consequentemente seu para delinear e defender. Shamron acrescentou algumas sugestões valiosas. Carter, resistente no inicio, em breve se passou para o lado de Gabriel. A simples audácia do plano já lhe era apelativa. O seu próprio serviço teria provavelmente morto um funcionário que se chegasse à frente com uma ideia tão pouco ortodoxa.

Todos os homens têm uma fraqueza, disse Gabriel. Radek, através das suas ações, mostrou ser possuidor de duas: o seu desejo pelo dinheiro escondido na conta de Zurique; e o de ver o filho tornar-se chanceler da Áustria. Gabriel defendia que fora a segunda que o fizera avançar contra Eli Lavon e Max Klein.

Radek não queria o filho pintado com as cores do seu passado e tinha provado que tomaria praticamente qualquer medida para protegê-lo. Envolvia ter de fazer um amargo compromisso — um acordo com um homem que não tinha qualquer direito de exigir concessões —, mas era moralmente justo e produziria o resultado desejado: Erich Radek atrás das grades por crimes contra o povo judaico. O tempo seria uma dificuldade a mais. As eleições seriam em menos de três semanas. Radek tinha que estar em mãos israelenses antes do primeiro voto ser colocado na urna. Caso contrário a pressão sobre se perderia.

Com o dia prestes a despontar, Carter colocou a questão que o corroía desde que o primeiro relatório da investigação de Gabriel caíra em sua mesa. Por quê? Por que Gabriel, um assassino do Escritório, estaria tão determinado a levar Radek à justiça depois de tantos anos?

— Quero-lhe contar uma história, Adrian — disse Gabriel, com uma voz subitamente distante, assim como o olhar. — Aliás, talvez seja melhor se ela própria lhe contar a história.

Entregou a Carter uma cópia do testemunho da sua mãe. Carter, sentado junto ao fogo quase extinto, leu do principio ao fim sem pronunciar uma palavra. Quando finalmente levantou o olhar da última página, os seus olhos estavam úmidos.

— Presumo que Irene Allon seja a sua mãe.

— Ela foi a minha mãe. Já morreu há muito tempo.

— Como pode ter a certeza que o SS no bosque era Radek? Gabriel contou-lhe sobre os quadros de sua mãe.

— Então presumo que será você que vai tratar das negociações com Radek. E se ele se recusa a colaborar? O que fazer, Gabriel?

— As suas opções serão limitadas, Adrian. De uma maneira ou de outra, Erich Radek não vai voltar a pôr os pés em Viena.

Carter devolveu o testemunho a Gabriel e disse:

— É um plano excelente. Mas o seu primeiro-ministro vai nisso?

— Tenho certeza de que vai haver vozes que se vão opor — disse Shamron.

— Lev?

Shamron concordou.

— O meu envolvimento vai dar-lhe a base que precisa para vetar. Mas acredito que Gabriel será capaz de convencer o primeiro-ministro da nossa linha de pensamento.

— Eu? Quem disse que iria ser eu a informar o primeiro-ministro?

— Disse eu — respondeu Shamron. — Além disso, se consegues convencer Carter a pôr Radek numa travessa, com certeza que consegues convencer o primeiro-ministro a participar no banquete. Ele é um homem de apetites enormes. Carter levantou-se e espreguiçou-se. Em seguida, caminhou lentamente em direção à janela, como um médico que tivesse passado toda a noite numa operação, para apenas conseguir um resultado questionável. Abriu as cortinas e uma luz cinza entrou na sala.

— Há um último item que precisamos discutir antes de partir para Israel

— disse Shamron.

Carter, uma silhueta contra o vidro, voltou-se.

— O dinheiro?

— O que planeia fazer com ele exatamente?

— Ainda não chegamos a uma conclusão final.

— Eu já cheguei. Dois mil milhões e meio é o preço que vais pagar por usar um homem como Erich Radek quando sabias que ele era um assassino e um criminoso de guerra. Foi roubado a judeus a caminho das câmaras de gás, e eu quero-o de volta.

Carter voltou-se novamente e olhou para o pasto coberto de neve.

— És um chantagista barato, Ari Shamron. Shamron levantou-se e vestiu o sobretudo.

— Foi um prazer negociar com você, Adrian. Se tudo correr conforme planejado em Jerusalém, voltamos a encontrar-nos em Zurique dentro de quarenta e oito horas.

 


29

 

JERUSALÉM

 

 

A REUNIÃO FOI MARCADA para as dez da noite. Shamron, Gabriel e Chiara, atrasados pelo mau tempo, chegaram com dois minutos de antecedência, depois de uma rápida viagem de carro do Aeroporto Ben-Gurion, para serem informados por um assessor que o primeiro-ministro estava atrasado. Era evidente que havia mais uma crise na frágil coligação governamental, porque a antecâmara do seu escritório tinha assumido o aspecto de um abrigo temporário depois de um desastre. Gabriel contou não menos que cinco administrativos ministeriais, cada um rodeado por uma comitiva de acólitos e funcionários. Gritavam todos uns com os outros como se estivem numa discussão familiar de um casamento, e uma névoa de fumo de tabaco pairava no ar.

O assessor escoltou-os até uma sala reservada para o pessoal dos serviços secretos e de segurança e fechou a porta. Gabriel abanou a cabeça.

— Democracia israelense em ação.

— Acredite ou não, mas hoje está calmo. Costuma ser pior.

Gabriel deixou-se cair numa cadeira. De repente percebeu que não tinha tomado duche nem mudava de roupa há dois dias. De fato, sua calça estava suja pelo pó do cemitério em Puerto Blest. Quando partilhou isso com Shamron, o velho sorriu.

— Estar coberto com terra da Argentina só ajuda na credibilidade de sua mensagem — disse Shamron. — O primeiro-ministro é um homem que vai apreciar uma coisa dessas.

— Nunca falei com um primeiro-ministro antes, Ari. Gostaria de ter pelo menos tomado uma ducha.

— Você está é nervoso — Shamron parecia divertir-se com isso. — Não me lembro de ter visto você nervoso antes na minha vida. Afinal parece que você é humano.

— Claro que estou nervoso. Ele é louco.

— Na verdade, eu e ele temos um temperamento muito semelhante.

— Isso é para me tranquilizar?

— Posso dar um conselho?

— Se tem de ser.

— Ele gosta de histórias. Conte uma boa história.

Chiara empoleirou-se no braço da cadeira de Gabriel.

— Conte ao primeiro-ministro da maneira que me contou em Roma — disse ela sotto voce.

— Você estava nos meus braços na altura — respondeu Gabriel. — Algo me diz que a conversa aqui será um pouco mais formal — sorriu e acrescentou —, pelo menos eu espero que sim.

Era quase meia-noite quando o assessor do primeiro-ministro meteu a cabeça na sala de espera e anunciou que o grande homem estava finalmente pronto para eles.

Gabriel e Shamron levantaram-se e caminharam em direção à porta aberta. Chiara permaneceu sentada. Shamron parou e virou-se para ela.

— Está esperando o quê? O primeiro-ministro está pronto para nos receber.

Chiara arregalou os olhos.

— Eu sou apenas uma bat leveyha — protestou. — Não vou entrar aí para falar com o primeiro-ministro. Meu Deus, nem sequer sou israelense.

— Arriscou a vida na defesa deste pais — disse Shamron calmamente. — Tem todo o direito de entrar.

Entraram no gabinete do primeiro-ministro. Era amplo, inesperadamente simples e escuro exceto uma área iluminada à volta da mesa. Lev de alguma forma conseguiu intrometer-se. A sua careca ossuda brilhava no vão de luz, e as suas longas mãos estavam entrelaçadas por baixo de um queixo provocador. Fez um esforço para se levantar e apertar as mãos sem entusiasmo. Shamron, Gabriel e Chiara sentaram-se. O couro gasto das cadeiras ainda estava quente dos corpos anteriores.

O primeiro-ministro estava em mangas de camisa e parecia fatigado depois de uma longa noite de combate politico. Ele era, como Shamron, um guerreiro intransigente. Conseguir gerenciar um galinheiro tão diverso e desobediente como Israel parecia um milagre.

O seu olhar encapuzado caiu instantaneamente sobre Gabriel. Shamron estava habituado a isso. A aparência atraente de Gabriel foi a única coisa que preocupou Shamron quando o recrutou para a operação Ira de Deus. As pessoas olhavam para Gabriel.

Já se tinham encontrado antes uma vez, Gabriel e o primeiro-ministro, embora sob circunstâncias muito diferentes. O primeiro-ministro era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel em abril de 1998 quando Gabriel, com uma equipe de comandos, tinha penetrado numa casa de campo em Túnis e assassinado Abu Jihad, o número dois do comando da OLP, na frente da mulher e dos filhos. O primeiro-ministro estava a bordo do avião especial de comunicações, voando sobre o Mar Mediterrâneo, com Shamron a seu lado. Escutou o assassinato pelo microfone de Gabriel. Também ouviu Gabriel, depois do assassinato, usar segundos preciosos para consolar a histérica mulher e a filha de Abu Jihad. Gabriel recusara o louvor oferecido. Agora, o primeiro-ministro queria saber por quê.

— Não sentia que fosse apropriado, senhor primeiro-ministro, dadas as circunstâncias.

— Abu Jihad tinha uma grande quota de sangue judaico nas mãos. Ele merecia morrer.

— Sim, mas não em frente à mulher e aos filhos.

— Ele escolheu a vida que levava — disse o primeiro-ministro. — A família não deveria estar lá com ele.

E então, como se de repente percebesse que tinha entrado num campo minado, tentou sair na ponta dos pés. Mas como os seus modos rudes não permitiriam uma saída graciosa, optou por uma rápida mudança de assunto.

— Bem, Shamron contou que quer sequestrar um nazista — disse o primeiro-ministro.

— Sim, senhor primeiro-ministro.

Ergueu as palmas das mãos

— Vamos lá ouvir.

 

 

SE ESTAVA NERVOSO, Gabriel não o demonstrava. A sua apresentação foi direta e concisa e plena de confiança. O primeiro-ministro, conhecido pela sua maneira áspera de tratar quem se demorava com explicações, sentou-se petrificado durante todo o tempo. Ao ouvir a descrição de Gabriel do atentado contra a sua vida em Roma, inclinou-se para a frente, de rosto tenso. A confissão de Adrian Carter sobre o envolvimento americano deixou-o visivelmente indignado. Quando chegou a altura de apresentar as provas documentais, Gabriel pôs-se de pé ao lado do primeiro-ministro e colocou-as peça por peça sobre a mesa. Shamron estava sentado em silêncio, as suas mãos apertavam os braços da cadeira como um homem a debater-se para manter um voto de silêncio. Lev parecia bloqueado numa competição de olhar fixo com o enorme retrato de Theodor Herzl pendurado na parede por trás da mesa do primeiro-ministro. Tirou notas com uma caneta de tinta permanente em ouro e olhou para o relógio de pulso uma vez, pensativo.

— Conseguimos pegá-lo? — perguntou o primeiro-ministro, para em seguida acrescentar: — Sem cair o céu e a terra?

— Sim, senhor, acredito que conseguimos.

— Diga-me como pretende fazê-lo.

A exposição de Gabriel não poupou nenhum detalhe. O primeiro-ministro sentou-se em silêncio com as mãos gordas entrelaçadas sobre a mesa, a escutar atentamente. Quando Gabriel terminou, o primeiro-ministro abanou a cabeça uma vez e virou o seu olhar para Lev:

— Presumo que é aqui que vocês discordam?

Lev, o eterno tecnocrata, levou um momento a organizar os seus pensamentos antes de responder. A sua resposta, quando finalmente a deu, era desapaixonada e metódica. Se tivesse havido maneira de desenhá-la num gráfico em tempo real, Lev teria pegado na caneta e esboçado a linha até o fundo da folha, como um balde de água fria. Foi de tal forma, que permaneceu sentado e em breve reduziu a sua audiência a um penoso tédio. O seu discurso tinha muitas pausas, durante as quais fazia um triângulo com os indicadores e os pressionava contra os lábios.

— Um impressionante trabalho de investigação — disse Lev num elogio indireto a Gabriel —, mas agora não é altura para desperdiçar tempo e capital político ajustando contas com velhos nazistas. Os fundadores, exceto no caso de Eichmann, resistiram ao ímpeto de perseguir os autores da Shoah porque sabiam que atrasaria o principal objetivo do Escritório, a proteção do Estado. Os mesmos princípios aplicam-se hoje. Prender Radek em Viena levaria a uma reação negativa na Europa, onde o apoio a Israel está por um fio. Iria também pôr em perigo a pequena e indefesa comunidade judaica da Áustria, onde as correntes de antissemitismo são fortes e profundas. O que faremos quando os judeus forem atacados nas ruas? Pensas que as autoridades austríacas vão mexer uma palha para pôr cobro a isso? Finalmente, o seu trunfo: Por que razão é responsabilidade israelense acusar judicialmente Radek? Deixa isso para os austríacos. Quanto aos americanos, deixa-os deitarem-se na cama que eles próprios fizeram. Expõe Radek e Metzler e afasta-te. Conquistas uma posição e as consequências serão menos severas do que uma operação de rapto.

O primeiro-ministro ficou pensando em silêncio, para em seguida se dirigir a Gabriel.

— Não há dúvida de que este homem, Ludwig Vogel, é mesmo Radek?

— Nenhuma, senhor primeiro-ministro. Voltou-se para Shamron.

— E temos a certeza de que os americanos não vão recuar?

— Os americanos estão ansiosos por resolver este assunto também.

O primeiro-ministro olhou para os documentos na mesa antes de comunicar a sua decisão.

— Eu fiz uma ronda pela Europa o mês passado — disse. — Enquanto estive em Paris, visitei uma sinagoga que tinha sido incendiada algumas semanas antes. Na manhã seguinte saiu um editorial num jornal francês que me acusava de pôr o dedo na ferida do antissemitismo e do Holocausto sempre que convinha aos meus propósitos políticos. Talvez seja altura de lembrar ao mundo porque habitamos esta faixa de terra, cercada por um mar de inimigos, lutando pela nossa sobrevivência. Tragam Radek aqui. Deixem-no contar ao mundo os crimes que cometeu para esconder a Shoah. Talvez assim silencie, de uma vez por todas, aqueles que contestam que foi uma conspiração, inventada por homens como Ari e eu para justificar a nossa existência.

Gabriel limpou a garganta.

— Isto não é sobre política, senhor primeiro-ministro. — É sobre justiça.

O primeiro-ministro sorriu perante a inesperada disputa.

— É verdade, Gabriel, é sobre justiça, mas justiça e política normalmente andam de mãos dadas, e quando a justiça consegue servir as necessidades da política, não há nada de imoral.

Lev, depois de perdido o primeiro assalto, tentou conseguir vitória no segundo e pedindo o controle da operação. Shamron sabia que o objetivo permanecia o mesmo: aniquilá-la. Infelizmente para Lev, o primeiro-ministro também sabia.

— Foi Gabriel que nos trouxe até aqui. Deixa Gabriel trazê-lo para casa.

— com o devido respeito, senhor primeiro-ministro, Gabriel é um kidon, o melhor de sempre, mas não é um estratega operacional, que é exatamente o que precisamos.

— O seu plano operacional soa-me bem.

— Sim, mas conseguirá ele prepará-lo e executá-lo?

— Ele terá Shamron do seu lado o tempo todo.

— É disso que tenho medo — disse Lev acidamente.

O primeiro-ministro levantou-se; os outros seguiram o gesto.

— Traga Radek para Israel. E faça o que fizer, nem sequer pense em armar confusão em Viena. Traga-o limpo, sem sangue, sem ataques de coração — e voltou-se para Lev. — Garante que eles tenham todos os recursos que precisem para fazer o trabalho. Não penses que estás a salvo da merda porque votaste contra o plano. Se Gabriel e Shamron se queimarem, tu também te queimas. Portanto nada de merdas burocráticas. Estão todos juntos nisto. Shalom.

 

 

O PRIMEIRO-MINISTRO agarrou o cotovelo de Shamron enquanto saía porta fora e encurralou-o num canto. Colocou uma mão na parede, por cima do ombro de Shamron, e bloqueou-lhe qualquer hipótese de escapar.

— Este rapaz está à altura disso, Ari?

— Ele não é um rapaz, primeiro-ministro, já não é mais.

— Eu sei, mas consegue? Será que consegue mesmo convencer Radek a vir?

— Leu o testemunho da mãe dele?

— Li, e sei o que faria se estivesse no lugar dele. Poria uma bala no cérebro do animal, como Radek fez com muitos outros, e acabava ai.

— Seria essa atitude justa, em sua opinião?

— Há a justiça dos homens civilizados, o tipo de justiça que é ditada em tribunais por homens de toga, e há a justiça dos profetas. A justiça de Deus. Como prover justiça a crimes tão hediondos? Que castigo seria apropriado? Prisão perpétua? Uma execução indolor?

— A verdade, primeiro-ministro. Às vezes, a melhor vingança é a verdade.

— E se Radek não aceitar o acordo?

Shamron encolheu os ombros.

— Está me dando instruções?

— Eu não quero outro caso Demjanuk. Eu não preciso de um julgamento espetáculo do Holocausto transformado num circo internacional. Seria melhor que Radek desaparecesse simplesmente.

— Desaparecesse, primeiro-ministro?

O primeiro-ministro expirou vagarosamente para o rosto de Shamron.

— Tem certeza que é ele, Ari?

— Disso não há dúvida.

— Então, se for necessário, acaba com ele.

Shamron olhou em direção aos pés, mas viu apenas a protuberante barriga do primeiro-ministro.

— Ele carrega um pesado fardo, o nosso Gabriel. Temo ter sido eu a pô-lo às costas em 72. Ele não está apto para trabalhos de homicidio.

— Erich Radek pôs esse fardo em Gabriel muito antes de ti, Ari. Agora Gabriel tem a oportunidade de aliviar a sua parte. vou deixar bem claro o meu desejo. Se Radek não concordar em vir aqui, diz ao príncipe de fogo para acabar com ele e deixar os cães lamber o seu sangue.

 

 

 


CONTINUA