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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE SÚBITA / J. K. Rowling
MORTE SÚBITA / J. K. Rowling

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MORTE SÚBITA

Primeira Parte 

 

                           Domingo

Barry Fairbrother não estava com a mínima vontade de sair para jantar. Passou o fim de semana praticamente todo tendo que agüentar uma dor de cabeça latejante e lutando para redigir a matéria de capa do jornal local.

Na hora do almoço, porém, a sua esposa estava meio emburrada e sem dizer palavra, e Barry deduziu que o cartão que lhe mandou pelo aniversá­rio de casamento não havia conseguido atenuar o crime que ele cometeu passando a manhã inteira trancado no escritório. E, ainda por cima, escre­vendo sobre Krystal, de quem Mary não gostava absolutamente, embora fingisse o contrário.

— Estava pensando em levá-la para jantar, Mary — mentiu ele, numa tentativa de quebrar o gelo. — Dezenove anos, meninos! Dezenove anos, e a sua mãe nunca me pareceu tão linda...

Mary se desarmou e sorriu. Barry, então, ligou para o clube de golfe, que ficava perto de casa e onde conseguiriam uma mesa sem problemas. Tentava agradar a esposa com essas pequenas bobagens, porque chegara à conclusão, depois de quase duas décadas de convivência, de que geral­mente a desapontava quanto às coisas mais importantes. Nunca de propó­sito. Simplesmente, os dois tinham noções muito diferentes com relação ao que devia ocupar mais espaço nas suas vidas.

Os quatro filhos do casal já tinham passado da idade de precisar de uma babá. Estavam vendo televisão quando se despediram dos pais pela última vez, e só Declan, o caçula, se virou para olhar para o pai e lhe deu um tchau com a mão.

A cabeça de Barry continuava latejando num ponto atrás da orelha quando ele saiu com o carro pelas ruas do lindo vilarejo de Pagford, onde moravam desde que tinham se casado. Seguiram pela Church Row, a ladeira íngreme onde as casas mais luxuosas se erguiam em toda a sua solidez e a sua extravagância vitoriana. Dobraram a esquina da igreja em estilo que imitava o gótico, onde tinham ido assistir à peça José e seu manto technicolor, em que as filhas gêmeas trabalharam, e cruzaram a praça de onde se via o esqueleto negro das ruínas da abadia que, do topo de uma colina, dominava a cidade, mesclando seus contornos ao céu violeta.

A única coisa em que Barry conseguia pensar ali, às voltas com o vo­lante do carro, navegando por aquelas curvas tão conhecidas, era nos erros que certamente havia cometido tentando terminar às pressas o artigo que acabava de enviar por e-mail para a Gazeta de Yarvil e Adjacências. Encan­tador e extrovertido pessoalmente, tinha a maior dificuldade em expressar a própria personalidade numa folha de papel.

O clube de golfe ficava a apenas quatro minutos da praça, pouco além do ponto em que o vilarejo ia se extinguindo num último suspiro de ve­lhos chalés. Barry estacionou a caminhonete diante do Birdie, o restauran­te do clube, e ficou parado por um instante ao lado do veículo enquanto Mary retocava o batom. Achou gostoso sentir no rosto o arzinho frio da noite. Olhando os contornos do campo de golfe que iam se desintegrando na escuridão, ficou se perguntando por que continuava a ser sócio daquele clube. Era mau jogador: o seu swing era irregular, e o seu handicap, bem alto. Tinha tantas outras preocupações na vida... As pontadas na cabeça estavam cada vez mais fortes.

Mary desligou a luz interna e fechou a porta do carona. Barry apertou o botão da chave para acionar o alarme. Ouviu os saltos do sapato da mulher batendo no chão, o apito do sistema de segurança do carro, e se perguntou se o enjôo que sentia ia melhorar depois que comesse alguma coisa.

De repente, uma dor como jamais havia sentido antes atravessou o seu cérebro como se tivesse sido atingido por uma daquelas bolas de demoli­ção. Mal sentiu os joelhos quando eles bateram no chão frio; o seu crânio estava inundado de fogo e sangue; a agonia era insuportável, mas precisou suportá-la, já que o desfalecimento só veio um minuto depois.

Mary gritou. E continuou gritando. Vários homens vieram correndo do bar. Um deles voltou às pressas lá para dentro para ver se algum dos mé­dicos aposentados que eram sócios do clube estava no local. Percebendo toda aquela comoção, um casal, que Barry e Mary conheciam, abandonou a refeição malcomeçada e correu para ver se podia ser de alguma ajuda. O marido pegou o celular e ligou para o serviço de emergência.

A ambulância tinha que vir de Yarvil, a cidade vizinha, e levou vinte e cinco minutos para chegar. Quando a luz azulada se aproximou piscando, Barry estava deitado numa poça do próprio vômito, imóvel e sem qualquer reação. Mary estava agachada ao seu lado, com a meia-calça rasgada nos joelhos, segurando a sua mão, aos prantos e sussurrando o seu nome.

 

                             Segunda-feira

— Coragem! — disse Miles Mollison, de pé na cozinha de um dos casarões da Church Row.

Esperou dar seis e meia da manhã para telefonar. A noite tinha sido terrível, cheia de longos períodos em claro pontuados por alguns momen­tos de um sono agitado. Às quatro da manhã, percebeu que a sua mulher também estava acordada e conversaram baixinho no escuro. Mesmo ali, enquanto os dois falavam sobre o que haviam sido obrigados a presen­ciar, cada qual tentando rechaçar vagos sentimentos de medo e choque, a simples idéia de dar a notícia ao seu pai provocava em Miles ondas de empolgação. Decidiu esperar até as sete horas, mas o medo de que alguém pudesse ser mais rápido o fez telefonar mais cedo.

O que houve? — indagou Howard, com aquele seu vozeirão que tinha um leve toque áspero. Miles ligou o viva-voz para Samantha poder ouvir a conversa. A mulher, vestida num robe rosa-claro, havia apro­veitado o fato de terem acordado cedo para passar mais um pouco de autobronzeador na pele de um moreno jambo, que já estava começando a recuperar a sua palidez habitual. A cozinha estava impregnada da mis­tura dos cheiros de café instantâneo e coco sintético.

Fairbrother morreu. Foi ontem à noite, lá no clube de golfe. Sam e eu estávamos jantando no Birdie.

Fairbrother morreu? — bradou Howard.

Pelo seu jeito de falar, dava para ver que ele esperava alguma mudança dramática no estado de Barry Fairbrother, mas que nem mesmo ele ima­ginara a sua morte.

Ele caiu no estacionamento — disse Miles.

Meu Deus! — exclamou Howard. — Ele tinha o quê, pouco mais de quarenta, não é? Meu Deus...

Miles e Samantha ouviam Howard respirar como um cavalo ofegante. Ele sempre tinha a respiração mais difícil pela manhã.

O que foi? Coração?

Parece que foi alguma coisa no cérebro. Acompanhamos Mary até o hospital e...

Mas Howard já não estava prestando atenção. Miles e Samantha ouviram-no dizer, afastando o fone:

Barry Fairbrother morreu! É Miles!

Os dois então tomaram uns goles de café esperando que ele voltasse. Quando Samantha se sentou à mesa da cozinha, o seu robe se entreabriu revelando os contornos dos seios grandes apoiados nos seus antebraços. Assim pressionados, eles pareciam mais cheios e suaves que quando pen­diam sem qualquer suporte. Da fenda entre eles, naquela pele crestada, surgiam umas linhas miúdas que já não desapareciam nem mesmo quan­do não havia pressão alguma. Mais jovem, ela fora usuária assídua das câmaras de bronzeamento artificial.

O quê? — indagou Howard, voltando ao telefone. — O que você estava dizendo sobre o hospital?

Sam e eu fomos na ambulância — disse Miles, falando com toda a clareza. — Com Mary e o corpo.

Samantha percebeu que a segunda versão de Miles enfatizava o que se poderia chamar de aspecto mais comercial da história. Mas não o culpava por isso. A única recompensa que teriam com aquela terrível experiência era o direito de contar a todos o que tinha acontecido. Ela mesma achava que jamais se esqueceria daquilo: Mary chorando; os olhos de Barry ainda entreabertos, surgindo acima da máscara que parecia uma focinheira; ela e Miles tentando ler a expressão do paramédico; os solavancos naquele espaço reduzido; as janelas escuras; o terror.

Meu Deus! — exclamou Howard pela terceira vez, ignorando o interrogatório de Shirley, com a atenção inteiramente voltada para Miles. — Ele simplesmente caiu morto no estacionamento?

Exatamente — replicou Miles. — Assim que o vi tive a certeza de que não havia mais nada a fazer.

Foi a sua primeira mentira, e ele evitou olhar para a esposa quando disse aquilo. Ela se lembrava muito bem do seu braço grande e protetor sobre os ombros trêmulos de Mary: Ele vai ficar bom... Ele vai ficar bom...

Mas, afinal de contas, pensou Samantha, fazendo justiça ao marido, como saber se vai acontecer isso ou aquilo com aquela gente ali colocando máscaras e enfiando agulhas? Parecia que estavam tentando salvar Barry, e nenhum deles ficou sabendo que era tudo em vão até que a jovem médica veio andando na direção de Mary lá no hospital. Samantha ainda podia ver com uma nitidez assustadora, o rosto vulnerável, petrificado de Mary e a expressão da moça de óculos, cabelo liso e jaleco branco: tranqüila, embora um tanto cautelosa... Aquele tipo de coisa vive aparecendo nos seriados da televisão, mas quando é de verdade...

De jeito nenhum — dizia Miles. — Gavin só jogava squash com ele às quintas-feiras.

E, aparentemente, estava tudo bem com ele?

Claro! Ele arrasou com Gavin!

Meu Deus! Isso é para você ver, sabe? Para você ver... Espere um pouco, a sua mãe quer lhe dar uma palavrinha.

Depois de uma pancada e de um outro barulhinho, ouviu-se a voz suave de Shirley na linha.

Que coisa horrível, Miles — disse ela. — Você está bem?

Samantha foi tomar um gole de café, mas se atrapalhou um pouco: a bebida lhe escorreu pelos cantos da boca e ela enxugou o rosto e o peito com a manga do robe. Miles já estava com aquela voz que geralmente usava quando falava com a mãe: mais profunda que de costume, uma voz do tipo nada-me-abala, vigorosa e pragmática. Às vezes, especialmente quando bebia, Samantha imitava as conversas entre mãe e filho. "Não se preocupe, mamãe. Miles está aqui. O seu soldadinho." "Você é maravilho­so, querido: tão grande, tão corajoso, tão inteligente." Recentemente, ela tinha feito essa imitação uma ou duas vezes na frente de outras pessoas, deixando o marido chateado e na defensiva, embora fingisse achar graça. Da última vez, tiveram até uma briga no carro, voltando para casa.

Vocês foram junto com Mary para o hospital? — indagou Shirley ao telefone.

Não, pensou Samantha. No meio do caminho ficamos de saco cheio e pedimos para saltar.

Era o mínimo que podíamos fazer. Gostaria de poder ter feito mais.

Samantha se levantou e foi até onde estava a torradeira.

Tenho certeza de que Mary ficou muito agradecida — disse Shirley. Samantha fez um barulhão pegando o pão e enfiando quatro pedaços nas fendas do aparelho. A voz de Miles já estava praticamente normal.

Bom, quando os médicos vieram dizer... ou melhor, confirmar que ele estava morto, Mary quis chamar Colin e Tessa Wall. Sam ligou para eles. Esperamos até que chegassem e, só então, viemos embora.

Que sorte a dela vocês estarem lá — disse Shirley. — Papai quer falar mais uma coisa, Miles. Vou passar o telefone para ele. Nos falamos mais tarde.

Nos falamos mais tarde — murmurou Samantha, dirigindo-se à chaleira e balançando a cabeça. No reflexo distorcido, via o próprio rosto inchado, depois da noite em claro, e os olhos castanho-escuros estavam vermelhos. Na pressa de estar presente quando Miles desse a notícia a Howard, ela tinha se descuidado e passado a loção auto-bronzeadora nas pálpebras também.

Por que você e Sam não vêm até aqui hoje à noite? — indagou Howard aos brados. — Não, espere aí... Mamãe está dizendo que vamos jogar bridge com os Bulgen. Amanhã, então. Venham jantar. Lá pelas sete.

Pode ser — disse Miles, dando uma olhada para a mulher. — Tenho que ver se Sam já marcou alguma coisa.

Ela não deu qualquer sinal indicando se queria ir ou não. Uma es­tranha sensação de anti-clímax se espalhou pela cozinha quando Miles desligou.

Eles não conseguem acreditar — observou ele, como se Samantha não tivesse ouvido a conversa toda.

Comeram as torradas e tomaram uma caneca de café fresco em si­lêncio. Parte da irritabilidade de Samantha foi desaparecendo enquanto ela mastigava. Lembrou que tinha acordado sobressaltada, pulando da cama no quarto ainda escuro àquela hora da manhã, e que tinha se sen­tido absurdamente aliviada e agradecida por ver Miles ali ao seu lado, grandalhão e barrigudo, com cheiro de vetiver e ranço de suor. Depois, se imaginou contando aos fregueses da loja que um homem tinha caído morto bem na sua frente, e falando também da corrida desabalada na ambulância até o hospital. Pensou em várias maneiras de descrever os detalhes daquele trajeto e a cena apoteótica com a médica. A juventude daquela mulher tão segura de si fazia tudo aquilo parecer ainda pior. Eles tinham que encarregar alguém mais velho de dar uma notícia como aquela... Depois, para melhorar ainda mais o seu ânimo, lembrou que tinha um encontro com o representante de vendas da Champêtre no dia seguinte e que o sujeito tinha sido bem agradável, meio que fler­tando com ela por telefone.

É melhor eu ir andando — disse Miles, tomando um último gole de café e com os olhos pregados no céu, que ia ficando mais claro do outro lado da vidraça. Soltou um profundo suspiro e deu uns tapinhas no ombro da mulher quando passou junto dela para levar a caneca e o prato vazios até a lava-louça. — Deus do céu! Isso faz a gente repensar um monte de coisas, não é mesmo? — disse ele. E saiu da cozinha balançando a cabeça com aquele cabelo curtinho que começava a ficar grisalho.

As vezes, Samantha achava o marido absurdamente e cada vez mais idiota. De quando em quando, porém, gostava daquele seu ar pomposo exatamente como gostava, nas ocasiões mais formais, de usar chapéu. Afi­nal de contas, assumir um ar solene e um tanto nobre era a atitude mais adequada para aquela manhã. Terminou de comer a torrada e guardou as coisas do café da manhã aperfeiçoando mentalmente a história que pre­tendia contar à moça que trabalhava com ela.

 

— Barry Fairbrother morreu — exclamou Ruth Price, ofegante.

Tinha subido o gélido caminho do jardim quase correndo para ter mais alguns minutos com o marido antes de ele sair para o trabalho. Nem parou para tirar o casaco na varanda: ainda de luvas e cachecol, entrou na cozi­nha onde Simon e os filhos adolescentes estavam tomando café.

O marido ficou imóvel, com a torrada a caminho da boca, e, depois, tornou a botá-la no prato com uma lentidão teatral. Os dois garotos, ambos de uniforme, olharam para o pai e para a mãe, não muito inte­ressados.

Acham que foi aneurisma — disse Ruth, ainda meio sem fôlego, tirando as luvas dedo a dedo, desenrolando o cachecol do pescoço e desabotoando o casaco. Era uma mulher magra, de cabelo castanho-escuro, com uns olhos cansados e melancólicos. Aquele uniforme de enfermeira todo azul lhe caía muito bem. — Foi lá no estacionamento do clube de golfe. Sam e Miles Mollison o levaram para o hospital. Depois, Colin e Tessa Wall chegaram...

As pressas, foi até a entrada da casa para pendurar as suas coisas e voltou bem a tempo de responder à pergunta que Simon tinha feito aos gritos.

O que é uma aneurisma?

Um aneurisma. É o rompimento de uma artéria no cérebro.

Com movimentos sempre rápidos, aproximou-se da chaleira, ligou o fogo e começou a limpar os farelos de pão espalhados pela bancada da pia e em torno da torradeira, falando sem parar.

Deve ter tido uma hemorragia cerebral fortíssima. Coitadinha da mulher dele... Está absolutamente arrasada...

Abalada, Ruth ficou olhando a brancura irregular do seu gramado co­berto de geada, a abadia do outro lado do vale, aquele esqueleto que se erguia abrupto contra o céu de um rosa e de um cinza desbotados, a visão panorâmica que era a glória de Hilltop House e que se tinha da janela da sua cozinha. Pagford, que à noite não passava de um punhado de luzinhas piscando lá embaixo no escuro, estava agora emergindo à claridade gélida do sol. Ruth não via nada daquilo: a sua cabeça ainda estava no hospital, vendo Mary sair do quarto onde Barry estava deitado e de onde já haviam sido removidos todos aqueles aparelhos, tentativas inúteis de salvar a sua vida. A piedade de Ruth Price fluía mais espontânea e mais sincera com relação àqueles que acreditava serem como ela mesma. "Não, não, não, não", gemia Mary, e aquela negação instintiva ecoou lá dentro de Ruth, porque a cena representava uma visão de si mesma em situação idêntica...

Mal conseguindo agüentar aquela lembrança, voltou os olhos para Simon. O cabelo castanho-claro do marido ainda era espesso, o seu porte era quase tão rijo quanto fora aos vinte anos, e as rugas nos cantos dos olhos ainda tinham lá o seu charme, mas, para Ruth, a retomada do tra­balho como enfermeira depois de uma longa pausa voltou a confrontá-la com as mil e uma maneiras pelas quais o corpo humano pode deixar de funcionar direito. Envolvia-se menos quando era mais moça; agora com­preendia a sorte que tinham de estar todos vivos.

Não deu para fazer nada? — perguntou Simon. — Não podiam, sei lá, dar uns pontos?

Havia frustração na sua voz, como se achasse que a medicina tinha vindo, mais uma vez, atrapalhar tudo, recusando-se a fazer as coisas mais simples e óbvias.

Andrew estremeceu com um prazer selvagem. Ultimamente, vinha re­parando que o pai estava com mania de contestar a mulher: sempre que ela usava termos médicos, lá vinha ele com sugestões broncas, ignorantes. Hemorragia cerebral. Dar uns pontos. A sua mãe não se dava conta do que o marido estava fazendo. Como sempre, aliás. E Andrew continuou a comer o seu cereal, morrendo de ódio.

Quando ele deu entrada no hospital já era tarde demais — replicou Ruth, pondo uns saquinhos de chá dentro do bule. — Ele morreu na am­bulância, pouco antes de chegarem.

Que merda! — exclamou Simon. — Que idade ele tinha? Quarenta?

Mas Ruth não estava prestando atenção.

Paul — disse ela —, o seu cabelo está todo embaraçado na parte de trás. Você se penteou?

Tirou uma escova da bolsa e a pôs na mão do filho caçula.

Ele não teve nenhum sintoma? Nada? — perguntou Simon, en­quanto Paul escovava o cabelo rebelde.

Parece que vinha tendo dor de cabeça há uns dois dias.

Ah! — exclamou Simon, mastigando uma torrada. — E não deu bola?

Claro. Não achou que fosse nada grave.

Simon engoliu a torrada.

Está vendo só? — disse ele, com ares de quem sabe das coisas. — Você precisa se cuidar.

Ah, quanta sabedoria, pensou Andrew com o maior desprezo, quanta profundidade. Quer dizer que a culpa era toda de Barry Fairbrother se o cérebro dele tinha estourado... Seu babaca pretensioso, disse ele, xingando o pai alto e bom som dentro da própria cabeça.

Ah, e por falar nisso — acrescentou Simon, apontando com a faca para o filho mais velho —, ele vai começar a trabalhar. O nosso amigo Cara de Pizza.

Atônita, Ruth se voltou para o filho. As espinhas se destacavam, lívidas e lustrosas, no rosto todo vermelho do garoto, que olhava fixo para a tigela cheia daquela papa bege.

É isso mesmo — prosseguiu Simon — Esse merdinha preguiçoso vai começar a ganhar algum dinheiro. Se quer fumar, tem que arcar com as próprias despesas. Acabou essa história de mesada.

Andrew! — exclamou Ruth em tom de lamento. — Você não andou...?

Andou, sim. Peguei ele lá no galpão de lenha — disse Simon, com uma expressão que destilava desprezo.

Andrew!

Da gente, ele não tem mais um tostão. Quer cigarro? Pois que com­pre... — provocou o pai.

Mas tínhamos decidido... — principiou Ruth, chorosa. — Tínha­mos decidido... Os exames estão chegando...

Pelo jeito como ele se ferrou no simulado, já vai ser uma sorte se conseguir passar. Talvez seja melhor passar antes pelo McDonald's, para ir ganhando experiência — disse Simon, levantando-se, empurrando a cadeira, deliciando-se com a visão do filho sentado ali de cabeça baixa, deixando ver apenas o contorno do rosto inchado pela acne. — Porque nós é que não vamos ficar sustentando um repetente, viu, cara? E agora ou nunca!

Ah, Simon — disse Ruth, em tom de reprovação.

O que foi? — perguntou Simon, aproximando-se da mulher com passadas fortes. Ruth se encolheu de encontro à pia. A escova de plástico rosa caiu da mão de Paul. — Não vou ficar financiando o vício desse baba­ca! Que cara de pau, porra! Fumando lá na merda do meu galpão!

E bateu no próprio peito ao dizer a palavra "meu". Ao ouvir o ruído surdo daquela pancada, Ruth fez uma careta.

Quando tinha a idade desse merdinha, já trazia um salário para casa. Se ele quer fumar, que compre os seus próprios cigarros, certo? Certo?

O rosto de Simon estava agora a uns quinze centímetros do de Ruth.

Certo, Simon — disse ela bem baixinho.

Parecia até que as entranhas de Andrew tinham se derretido. Menos de dez dias atrás, havia feito um juramento; será que tinha chegado a hora? Assim tão cedo? Mas o seu pai se afastou da sua mãe e saiu da cozinha, rumo à porta da rua. Ruth, Andrew e Paul ficaram ali, praticamente imó­veis. Era como se tivessem prometido não se mexer na ausência dele.

Encheu o tanque? — gritou Simon, como sempre fazia quando a mulher dava plantão no turno da noite.

Enchi — respondeu ela, também gritando, louca por um pouco de leveza, de normalidade.

A porta da frente fez um barulho metálico e bateu.

Ruth tratou de se ocupar com o bule, esperando que aquele clima inflado murchasse até voltar às proporções normais. Só falou quando An­drew estava quase saindo da cozinha para ir escovar os dentes.

Ele está preocupado com você, Andrew. Com a sua saúde.

Preocupado o cacete! Esse babaca!

Mentalmente, Andrew rebatia com palavrões os palavrões que o pai dizia. Mentalmente, enfrentava Simon de igual para igual.

Em voz alta, para a mãe, disse:

Claro...

 

O Evertree Crescent era uma meia-lua de chalés dos anos 1930, que fi­cava a dois minutos da praça principal de Pagford. No número trinta e seis, numa casa alugada há muito mais tempo que qualquer outra da rua, Shirley Mollison estava na cama, recostada nos travesseiros, tomando o chá que o marido havia lhe trazido. O reflexo que a encarava das portas espelhadas do armário embutido era um tanto esfumado, o que se devia em parte ao fato de ela não estar de óculos, em parte à claridade branda que penetrava no quarto através das cortinas com estampa floral. A essa luz lisonjeira, enevoada, o rosto enrugado, em tons de rosa e branco, que surgia sob o cabelo curto bem grisalho era como o de um querubim.

No quarto, mal cabiam a cama de solteiro de Shirley e a de casal de Howard, juntas, meio entulhadas, como gêmeas não idênticas. O colchão de Howard, que ainda trazia a vigorosa marca do seu corpo, estava vazio. Dava para ouvir o barulhinho do chuveiro dali de onde Shirley e o seu reflexo rosado estavam sentados, uma defronte do outro, saboreando a notícia que ainda parecia efervescer no ar como champanhe borbulhante.

Barry Fairbrother tinha morrido. Batido as botas. Acabado. Nenhum acontecimento de importância nacional, nem guerra, nem crise do mer­cado financeiro ou ataque terrorista teria sido capaz de deixar Shirley na­quele estado de espanto, de ávido interesse e de especulação febril que agora a consumia.

Detestava Barry Fairbrother. Ela e o marido, que em geral concorda­vam inteiramente quanto a amizades e inimizades, divergiam um pouco nesse caso. Por vezes, Howard se confessou cativado pelo homenzinho barbudo que lhe fazia uma oposição tão ferrenha nas mesas compridas e arranhadas do salão da igreja. Ela, porém, não fazia diferença alguma en­tre o aspecto político e o pessoal. Barry tinha enfrentado Howard naquilo que o seu marido mais desejou na vida, o que bastou para fazer dele, aos olhos de Shirley, o pior dos inimigos.

A lealdade ao marido era o principal motivo daquela aversão apaixona­da, mas não o único. Os instintos de Shirley com relação às pessoas eram apuradíssimos numa única direção, como um cachorro treinado para fa­rejar drogas. Estava sempre pronta para detectar condescendência, e há muito havia sentido o seu cheiro nas atitudes de Barry Fairbrother e dos seus comparsas no Conselho. Os Fairbrother da vida partiam do pressu­posto de que, por terem formação universitária, eram melhores que pes­soas como ela e Howard; que as suas opiniões eram mais importantes. Pois bem, a sua arrogância tinha sofrido um duro golpe hoje. A morte súbita de Fairbrother veio reforçar uma convicção que Shirley nutria há tempos: independentemente do que ele e os seus seguidores pudessem pensar, Fairbrother sempre foi uma criatura inferior ao seu marido, e mais fraca, pois Howard, além de todas as outras virtudes que possuía, tinha consegui­do sobreviver a um ataque cardíaco sete anos atrás.

(Em momento algum Shirley achou que Howard fosse morrer, nem mesmo quando ele estava na sala de cirurgia. Para ela, a presença de Howard neste mundo era um fato inquestionável, como a luz do sol e o oxigênio. Disse isso inúmeras vezes, depois desse episódio, quando amigos e vizinhos falavam de gente que escapava como que por milagre, da sorte que tinham por contar com uma unidade cardiológica assim tão pertinho, em Yarvil, e comentavam como ela devia ter ficado terrivelmente preocupada.

— Sempre soube que ele ia se safar — dizia ela, na maior tranqüilida­de. — Nunca duvidei disso.

E lá estava ele, tão saudável como sempre, ao passo que Fairbrother estava no necrotério. Dito e feito.)

No entusiasmo daquelas primeiras horas da manhã, Shirley se lem­brou do dia seguinte ao nascimento do filho Miles. Tinha se sentado na cama, anos e anos atrás, exatamente como estava agora, com a luz entran­do pela janela da enfermaria, segurando uma xícara de chá que alguém tinha preparado para ela, esperando que lhe trouxessem o seu lindo bebê para mamar. Nascimento e morte: era a mesma consciência de existência iluminada e do destaque da sua própria importância. A notícia da morte súbita de Barry Fairbrother jazia no seu colo como um recém-nascido rechonchudo a ser exibido para todos os seus conhecidos. E ela seria a fonte, por ter sido a primeira, ou quase, a ficar sabendo.

Nada daquele prazer que fervia e borbulhava dentro dela tinha se ma­nifestado enquanto Howard estava no quarto. Antes de ele ir tomar banho, os dois se limitaram a fazer os comentários adequados nesses casos de morte súbita. É claro que, enquanto ficaram passando aquelas palavras e frases-padrão de um lado para o outro, como se fossem as contas de um ábaco, Shirley sabia perfeitamente que o marido devia estar tão perto do êxtase quanto ela própria. No entanto, expressar tais sentimentos em voz alta, quando a notícia da morte ainda estava fresquinha, pairando ali no ar, teria sido praticamente como dançar nu e gritar obscenidades, e tanto Howard quanto Shirley estavam sempre envergando uma camada invisí­vel de decoro da qual nunca se desfaziam.

De repente, outra idéia feliz lhe passou pela cabeça. Shirley deixou a xícara e o pires na mesinha de cabeceira, levantou da cama, vestiu o robe de chenile, pôs os óculos e saiu descalça pelo corredor para bater à porta do banheiro.

Howard?

A resposta foi um som interrogativo que suplantou o ruído regular do chuveiro.

Acha que eu devia postar alguma coisa no site? Sobre Fairbrother?

Boa idéia — gritou ele, lá de dentro, depois de refletir por um ins­tante. — Excelente idéia.

E lá se foi a mulher para o escritório. O cômodo havia sido antes o me­nor quarto da casa e estava vazio há tempos, desde que a sua filha Patrícia foi para Londres e raras vezes voltou a ser mencionada.

Shirley se orgulhava imensamente das suas habilidades na internet. Tinha feito um curso noturno em Yarvil, dez anos atrás, sendo uma das alunas mais velhas da turma e a mais lenta. Mesmo assim, perseverou, decidida a ser a administradora do novo site do Conselho Distrital de Pagford, que estava empolgando a todos. Fez o login e abriu a página da instituição.

A breve declaração saiu com tanta facilidade que parecia até que os seus dedos estavam redigindo aquilo por conta própria.

 

                 Conselheiro Barry Fairbrother

É com grande pesar que comunicamos o falecimento do conselheiro Barry Fairbrother. Voltamos os nossos pensamentos para a sua família nesse momento tão difícil.

 

Releu as poucas frases com todo o cuidado, teclou "Enter" e viu o texto aparecer na área de mensagens.

A Rainha mandou que a bandeira fosse hasteada a meio mastro no Palácio de Buckingham quando a princesa Diana morreu. Sua Majestade ocupava um lugar bem especial na vida interior de Shirley. Contemplan­do a mensagem ali na tela, ficou satisfeita e feliz por ter feito a coisa certa. Seguir o exemplo dos melhores...

Saiu da área de mensagens da página do Conselho e entrou no seu site de medicina favorito. Escrupulosamente, digitou as palavras "cérebro" e "morte" na caixa de pesquisa.

Havia inúmeras sugestões. Shirley foi passando aquelas diversas possi­bilidades, com os olhos plácidos percorrendo as páginas de alto a baixo, perguntando-se a qual daquelas condições fatais, algumas de nomes impronunciáveis, devia a felicidade que sentia agora. Tinha adquirido algum interesse por assuntos médicos desde que começou a trabalhar como vo­luntária no Hospital Geral South West e, às vezes, chegava mesmo a fazer diagnósticos para os amigos.

Mas hoje de manhã era impossível se concentrar naquelas palavras compridas e naqueles sintomas: a sua cabeça só pensava em continuar a espalhar a notícia, e, a essa altura, ela já estava reunindo e remanejando toda uma lista de números de telefone. Será que Aubrey e Julia já estavam sabendo? E o que diriam? Será que Howard deixaria que ela desse a notí­cia a Maureen ou ia querer ter ele mesmo esse prazer?

Tudo aquilo era imensamente empolgante.

 

Andrew Price fechou a porta da casa, que era pequena e branca, e foi atrás do irmão, descendo a rampa do jardim, que hoje estalava por causa do gelo, e que ia dar no portão de metal gelado além do qual ficava a rua. Nenhum dos garotos se dignou a olhar para a vista já tão conhecida que se estendia mais abaixo: o minúsculo vilarejo de Pagford encravado no espaço contido entre três colinas, uma das quais encimada pelo que restava da abadia do século XII. Um riozinho estreito serpenteava ao pé da colina e cortava o vilarejo, onde era atravessado por uma ponte de pedra que parecia até de brinquedo. Aquilo tudo era tão sem graça quanto um cenário pintado para os dois irmãos. Andrew achava o fim do mundo o jeito como o seu pai, nas raras ocasiões em que recebiam visitas, parecia se vangloriar da paisagem, como se ele próprio a tivesse planejado e construí­do. Recentemente, o garoto percebera que preferiria mil vezes um cenário de asfalto, janelas quebradas e grafites. Sonhava com Londres e com uma vida que fizesse algum sentido.

Os dois irmãos foram andando até o fim da rua e pararam na esquina da estrada mais larga. Andrew enfiou a mão pelos arbustos da cerca viva, tateou por alguns instantes e tirou dali um maço de Benson & Hedges pela metade e uma caixa de fósforos ligeiramente úmida. Depois de algu­mas tentativas inúteis, já que a cabeça do fósforo se desmanchava sempre que ele riscava um, o garoto conseguiu acender o cigarro e deu duas ou três tragadas profundas. O ruído do motor do ônibus escolar veio romper aquela quietude. Com todo o cuidado, Andrew apagou o cigarro e enfiou o que tinha sobrado no maço.

Quando chegava àquela esquina de Hilltop House, o ônibus já vinha trazendo dois terços dos seus ocupantes, pois passava antes pelas fazendas e pelas casas dos arredores. Como sempre, os dois irmãos sentaram em lugares separados, cada um deles com um assento vago ao seu lado, e se viraram para olhar pela janela enquanto o veículo ia descendo, ruidoso e cambaleante, a caminho de Pagford.

Ao pé da colina onde moravam, havia uma casa com um jardim trian­gular. Em geral, os quatro Fairbrother ficavam esperando no portão da frente, mas hoje não tinha ninguém ali. Todas as cortinas estavam fecha­das. Por que será que as pessoas têm o hábito de ficar sentadas no escuro quando alguém morre?, perguntou-se Andrew.

Umas semanas atrás, ele tinha saído com Niamh Fairbrother, uma das filhas gêmeas de Barry, para ir a uma festa no auditório da escola. Depois disso, a garota passou um tempo com a mania de andar atrás dele. Os pais de Andrew mal conheciam os Fairbrother. Aliás, Simon e Ruth pra­ticamente não tinham amigos, mas pareciam simpatizar um pouquinho com Barry, que tinha sido gerente da minúscula filial do único banco que ainda resistia no vilarejo. Vira e mexe, o sobrenome Fairbrother aparecia ligado a coisas como o Conselho Distrital, peças encenadas no teatro local e a corrida anual da igreja. Mas Andrew não se interessava a mínima por esses assuntos, e os seus pais também não participavam de nada disso, a não ser comprando uma rifa vez por outra.

Quando o ônibus virou à esquerda e começou a descer a Church Row, passando pelos casarões vitorianos que iam formando uns patamares ladeira abaixo, Andrew se deu ao luxo de criar toda uma fantasia em que seu pai caía morto, atingido pelos disparos de um atirador invisível. O rapaz se via dando uns tapinhas nas costas da mãe, que soluçava, e telefonando para a funerária. Cigarro na boca, encomendava o caixão mais barato que existia.

Os três Jawanda — Jaswant, Sukhvinder e Rajpal — pegaram o ônibus no final da Chureh Row. Andrew tinha feito questão de escolher um lugar atrás de um banco vazio e torceu para que Sukhvinder viesse sentar à sua frente, não pela garota (Bola, o seu melhor amigo, a chamava de P&B, for­ma reduzida de "Peito & Bigode"), mas porque Ela quase sempre escolhia sentar ao lado de Sukhvinder. E fosse porque os seus poderes telepáticos estivessem particularmente afiados naquela manhã ou por qualquer outro motivo, Sukhvinder veio mesmo se sentar no banco da frente. Radiante, Andrew ficou olhando para o vidro sujo da janela e ajeitou bem a mochila no colo para esconder a ereção provocada pelos solavancos regulares do ônibus.

A sua ansiedade ia aumentando a cada novo sacolejar, enquanto o veículo grandalhão abria caminho pelas ruelas estreitas, fazendo curvas fechadas para contornar a praça do vilarejo e rumando para a esquina da rua Dela.

Andrew nunca tinha sentido um interesse assim tão grande por uma garota. Ela tinha acabado de chegar. Que hora estranha para mudar de escola: no último trimestre, já tão perto dos exames finais... Chamava-se Gaia, um nome perfeito, pois o garoto nunca o tinha ouvido antes, assim como nunca tinha visto alguém como ela. Pegou o ônibus, certa manhã, parecendo uma simples declaração dos píncaros sublimes que a natureza pode alcançar, e veio sentar dois bancos à sua frente. E ele ficou fascina­do, olhando para a perfeição daqueles ombros e da parte de trás daquela cabeça.

O seu cabelo comprido, de um castanho-acobreado, descia em ondas largas e lhe batia pouco abaixo dos ombros; o nariz, absolutamente certinho, era pequeno e fino, destacando ainda mais a boca clara, de lábios cheios, provocadores; os olhos, bem separados, com cílios espessos, eram de um castanho-claro com umas manchinhas esverdeadas, lembrando uma daquelas maçãs golden. Andrew nunca a tinha visto maquiada, e a sua pele não tinha nenhuma mancha ou sarda. O rosto de Gaia era uma síntese de perfeita simetria e proporção fora do comum; podia passar horas e horas olhando para ela, tentando descobrir por que era tão fascinante... Ainda na semana passada, ele voltou para casa depois de dois tempos de aula de biologia, quando, por uma divina disposição aleatória de carteiras e de cabeças, conseguiu olhar para a garota quase o tempo todo. Mais tarde, a salvo no seu quarto, escreveu (depois de meia hora olhando para a parede e de um tempo se masturbando) "beleza é geometria". Rasgou a folha de papel imediatamente e, sempre que se lembrava disso, sentia-se um idiota. Mesmo assim, não deixava de ser verdade. A beleza de Gaia era uma questão de pequenos ajustes com relação a um padrão, e dessa operação resultava uma harmonia de tirar o fôlego!

Ela ia entrar no ônibus a qualquer momento e, se viesse sentar ao lado daquela chata e mal-humorada da Sukhvinder, como geralmente fazia, ia ficar tão perto que poderia até sentir que ele cheirava a nicotina. Andrew gostava de ver objetos inanimados reagirem ao corpo dela; gostava de ver o assento do banco ceder um pouco quando Gaia atirava o seu peso sobre ele, e adorava ver aquela massa castanha-acobreada fazer uma curva ao encostar na barra de ferro do alto do banco.

O motorista reduziu a velocidade, e Andrew desviou os olhos da porta, fingindo estar perdido em pensamentos. Só ia olhar depois que ela en­trasse, como se tivesse acabado de perceber que o ônibus havia parado. Aí, sim, olharia para ela; talvez até a cumprimentasse com um aceno de cabeça. Ficou esperando ouvir as portas se abrindo, mas a vibração suave do motor não foi interrompida por aquele barulho tão conhecido.

Andrew olhou então pela janela e não viu nada além da Hope Street, uma rua pequena e feiosa, com duas fileiras de casinhas geminadas. O motorista se inclinou para a frente, buscando ver se a garota estaria vindo. O garoto teve vontade de mandar que ele esperasse, já que, ainda na sema­na passada, ela saiu às pressas de uma daquelas casinhas e veio correndo pela calçada (pôde observar a cena sem problemas porque todos ali dentro também estavam olhando). A visão de Gaia correndo era o bastante para ocupar os seus pensamentos por horas a fio, mas o motorista manejou o grande volante e o ônibus seguiu o seu caminho. Andrew voltou a olhar o vidro sujo da janela, sentindo uma dor no coração e no saco.

 

No passado, a Hope Street havia sido uma vila operária. No banheiro da casa de número dez, Gavin Hughes se barbeava lentamente, com um cuidado desnecessário. Ele era tão claro e tinha uma barba tão rala que esse ritual só precisava mesmo ser feito duas vezes por semana. Mas aquele banheiro gelado e meio sujo era o seu único refúgio. Se ficasse enrolando ali dentro até as oito horas, poderia perfeitamente dizer que precisava sair correndo para o trabalho. Estava morrendo de medo de ter de conversar com Kay.

Ontem à noite, conseguiu evitar qualquer conversa começando a tran­sa mais longa e criativa que os dois haviam tido desde os primeiríssimos dias da relação. Kay reagiu imediatamente e com um entusiasmo que chegava a dar nervoso: passava de uma posição a outra; abria as pernas fortes e roliças; contorcia-se como uma acrobata eslava, o que ela aliás bem poderia ser, com aquela pele dourada e o cabelo escuro cortado bem curtinho. Já era tarde demais quando Gavin percebeu que ela estava inter­pretando aquela sua atitude tão pouco usual como uma confissão tácita de tudo aquilo que ele estava decidido a não dizer. Ela o beijou com avidez. Quando começaram a ficar juntos, ele achou os seus beijos molhados e profundos muito eróticos; agora, achava-os levemente repulsivos. Demo­rou muito para chegar ao clímax, pois o horror que sentia pelo que havia começado estava sempre ameaçando atrapalhar a sua ereção. E até isso acabou conspirando contra ele: Kay pareceu considerar aquele vigor nada comum uma verdadeira demonstração de virtuosismo.

Quando enfim terminaram, ela se aninhou bem junto dele, no escuro, e acariciou os seus cabelos por alguns instantes. Infeliz, Gavin ficou só olhando para o nada, consciente de que, depois de fazer tantos planos va­gos para afrouxar aquelas amarras, tinha acabado por reforçá-las involun­tariamente. Kay adormeceu, e ele ficou ali deitado, com um dos braços preso sob o corpo dela, sentindo a desagradável sensação do lençol úmido grudando na sua coxa, naquele velho colchão de molas todo irregular. Tudo o que queria era ter coragem de ser um filho da puta, sair de fininho e nunca mais voltar.

O banheiro de Kay tinha cheiro de mofo e esponjas molhadas. Havia um bolinho de cabelos num dos cantos da pequena banheira. A tinta das paredes estava descascando.

— Isso está precisando de uma obra — disse ela.

Gavin teve o cuidado de não se oferecer para ajudar. As coisas que não tinha lhe dito eram o seu talismã, a sua salvaguarda. Armazenou todas elas na cabeça e vivia repassando aquilo tudo, como se desfiasse as contas de um rosário. Nunca tinha dito a palavra "amor". Nunca tinha falado em casamento. Nunca tinha lhe pedido que fosse morar em Pagford. Apesar de tudo, porém, ela estava ali e, sabe-se lá como, fazia com que ele se sentisse responsável.

O seu rosto também o encarou do espelho manchado. Tinha umas sombras arroxeadas debaixo dos olhos, e o cabelo louro que começava a rarear estava quebradiço e ressecado. A lâmpada sem luminária que pen­dia do teto iluminava aquele rosto frágil e comprido com uma crueldade fria e meticulosa.

Trinta e quatro anos, pensou ele, e pareço ter no mínimo uns quarenta.

Ergueu a lâmina e, com todo o cuidado, raspou aqueles dois pelos mais grossos que nasciam de ambos os lados do seu proeminente pomo de adão.

Esmurraram a porta. A mão de Gavin escorregou, e o sangue come­çou a escorrer do seu pescoço magro, indo manchar a camisa branca limpinha.

O seu namorado ainda tá no banheiro — berrou uma voz feminina. — Vou chegar atrasada!

Já acabei! — gritou o rapaz.

O corte estava doendo, mas e daí? Agora tinha uma desculpa perfeita: Veja só o que a sua filha fez! Vou ter que dar um pulinho em casa para tro­car de camisa antes de ir para o trabalho. Quase contente, passou a mão na gravata e no paletó que tinha pendurado no cabide atrás da porta e abriu o ferrolho.

Gaia entrou às pressas, bateu a porta e a trancou, visivelmente furio­sa. Parado ali no minúsculo patamar, de onde se sentia um cheiro de borracha queimada, Gavin se lembrou da cabeceira da cama batendo na parede na noite anterior, dos rangidos do móvel de pinho vagabundo, dos gemidos e dos gritos de Kay. Às vezes chegava a esquecer que a filha dela estava em casa...

Desceu correndo. Kay disse que estava planejando mandar lixar e lus­trar aquela escada sem carpete, mas ele duvidava muito que ela pusesse esse plano em prática... O apartamento dela em Londres era bem caído e em péssimo estado de conservação. De qualquer forma, Gavin estava convencido de que a moça pretendia ir morar com ele logo, logo, coisa que não ia permitir. Aquele era o último bastião, e nesse ponto, se preciso fosse, ia resistir com todas as suas forças.

O que aconteceu? — gritou ela, vendo a mancha de sangue na camisa. Estava usando aquele quimono vermelho vagabundo que Gavin tanto detestava, mas que lhe caía muito bem.

Gaia esmurrou a porta e me assustei. Tenho que passar em casa para trocar de camisa.

Ah, mas já preparei o seu café! — replicou ela mais que depressa.

Gavin se deu conta de que o tal cheiro de borracha queimada vinha, na verdade, dos ovos mexidos. Eles pareciam anêmicos e cozidos demais.

Não dá, Kay. Preciso trocar de camisa. Logo cedo, tenho...

Mas a moça já estava pondo aquela maçaroca nos pratos.

Cinco minutos não vão fazer diferença...

No bolso do paletó, o celular tocou bem alto, e ele o pegou imedia­tamente perguntando-se se teria a sorte de poder alegar algum chamado urgente.

Meu Deus! — exclamou, genuinamente horrorizado.

O que foi?

Barry. Barry Fairbrother! Ele... Que merda! Ele... morreu! E uma mensagem de Miles. Meu Deus! Que merda, meu Deus!

Kay soltou a colher de pau.

Quem é Barry Fairbrother?

Um cara com quem jogo squash. Ele só tinha quarenta e quatro anos! Meu Deus!

Leu mais uma vez a mensagem. Kay ficou olhando, sem entender nada. Sabia que Miles era sócio de Gavin no escritório de advocacia, mas ela nunca tinha sido apresentada a ele. Para ela, Barry Fairbrother era apenas um nome.

Ouviu-se um barulhão vindo lá da escada: era Gaia, descendo a toda.

Ovos! — exclamou a garota, parada na porta da cozinha. — Toda manhã é a mesma coisa! Não, obrigada. E, graças a ele — acrescentou, lançando um olhar furioso para a nuca de Gavin —, com certeza já perdi a droga do ônibus.

Bom, se não ficasse tanto tempo se penteando... — gritou Kay para a filha, que já estava indo embora. Gaia nem respondeu. Disparou pelo corredor, esbarrando nas paredes com a mochila, e saiu batendo a porta da frente.

Tenho que ir, Kay — disse Gavin.

Mas já está tudo pronto. Você pode tomar o seu café antes...

Preciso trocar de camisa. E... Merda! Fui eu que preparei o testa­mento de Barry. Vou ter que cuidar disso. Não, sinto muito, mas preciso ir mesmo. Não dá para acreditar — acrescentou, relendo a mensagem de Miles. — Não dá para acreditar. Nós dois jogamos squash nessa quinta-feira agora! Não dá... Meu Deus!

Um homem tinha morrido. Não havia nada que ela pudesse dizer; não sem acabar se sentindo culpada. Gavin deu um beijo rápido naquela boca que não reagiu e foi embora, atravessando o corredor estreito e escuro.

Vamos nos ver...?

Ligo mais tarde — gritou ele, fingindo que não tinha ouvido nada.

Atravessou a rua correndo para pegar o carro, engolindo aquele ar géli­do e levando na cabeça a idéia da morte de Barry como se fosse um frasco de algum líquido volátil que ele não ousava sacudir. Quando virou a chave na ignição, pensou nas gêmeas de Barry chorando, deitadas de bruços na cama-beliche. Já as tinha visto deitadas ali, uma em cima, a outra embai­xo, jogando Nintendo DS, quando passou pela porta do quarto na última vez que tinha ido jantar lá.

Os Fairbrother eram o casal mais unido que jamais vira. Nunca volta­ria a comer naquela casa. Vivia dizendo a Barry que ele era um homem de sorte. Mas, pelo visto, nem tanto...

Alguém vinha pela calçada na sua direção; apavorado, achando que fosse Gaia vindo brigar com ele ou lhe pedir carona, deu marcha a ré com tanta pressa que bateu no carro estacionado atrás: era o velho Vauxhall Corsa de Kay. Quando a tal pessoa chegou diante da janela do carro, Ga­vin viu que era uma velha esquálida e meio manca com uns chinelinhos de pano. Suando, girou o volante e saiu em disparada. Enquanto pisava no acelerador, deu uma olhada pelo retrovisor e viu Gaia entrando de volta na casa de Kay.

Não estava conseguindo pôr ar suficiente nos pulmões. Sentia um aperto no peito. Só então percebeu que Barry Fairbrother era o seu me­lhor amigo.

 

O ônibus chegou a Fields, o bairro que crescia nos arredores da cidade de Yarvil. Eram umas casas de um cinza sujo, algumas com iniciais e obsce­nidades pichadas na fachada. Aqui e ali, uma janela vedada com tábuas; várias antenas parabólicas e mato crescido: nada que merecesse, por parte de Andrew, mais atenção do que ele dedicava às ruínas da abadia de Pagford reluzindo com os cristais de gelo. De início, o garoto havia ficado intrigado e intimidado por aquele bairro popular, mas há muito que a familiaridade tinha transformado tudo aquilo em algo banal.

As calçadas estavam repletas de crianças e adolescentes a caminho da escola, muitos usando só camisetas, apesar do frio. Andrew avistou Krystal Weedon. Lá ia ela, saltitante, dando gargalhadas escandalosas, no meio de um grupo de adolescentes de ambos os sexos. Tinha vários brincos em cada orelha, e, por cima do cós da calça de moletom usada bem abaixo da cintura, dava para ver perfeitamente o elástico da calcinha. Andrew conhecia Krystal desde a escola primária, a garota protagonizou várias das mais vivas lembranças da sua infância. Um dia, por exemplo, ela voltou do recreio com o uniforme molhado e os meninos começaram a gritar: "Krystal fez xixi! Krystal fez xixi!" Em vez de chorar, como fariam quase todas as meninas, a garotinha de cinco anos entrou na dança, rindo e gritando também: "Krystal fez xixi!" Então, baixou a calça, na frente da turma toda, e fingiu que estava fazendo mesmo. Andrew tinha a nítida lembrança daquela vulva rosada e sem pelos. Parecia até que o Papai Noel tinha se materializado no meio da turma. E ele também lembrava que a srta. Oates, vermelha como um pimentão, foi levando a menina para fora da sala.

Quando tinha uns doze anos e foi para a escola secundária, Krystal já era a garota mais desenvolvida da sua série. Um dia, ficou lá no fundo da sala, onde os alunos deviam deixar o exercício de matemática já feito e pegar a nova folha. Como tudo aquilo começou, Andrew (um dos últi­mos a acabar o exercício, como sempre) não fazia a mínima idéia, mas, quando chegou perto das pastas que continham as folhas de exercícios, cuidadosamente empilhadas em cima dos armários que ficavam lá atrás, viu que Rob Calder e Mark Richards estavam se revezando para segurar e apertar os seios da garota. A maioria dos outros garotos estava só olhando, eletrizada, com o rosto escondido atrás do livro posto de pé em cima da carteira; já as garotas, muitas delas vermelhas de vergonha, fingiam que não estavam vendo nada. Andrew percebeu que metade dos alunos da turma já tinha tido a sua vez e que todos esperavam que ele entrasse na brincadeira, coisa que queria e não queria fazer. Não eram os peitos de Krystal que o assustavam, mas o ar ousado, desafiador que havia no rosto da garota... Ficou morrendo de medo de fazer tudo errado. Quando o sr. Simmonds, o professor desligado e ineficaz, finalmente ergueu os olhos e disse "Vai ficar aí para sempre, Krystal? Pegue logo um exercício e volte para o seu lugar", Andrew sentiu um alívio quase absoluto.

Embora andassem com pessoas diferentes há muito tempo, continua­vam a ser da mesma turma na escola, portanto Andrew sabia que Krystal só aparecia nas aulas de vez em quando, faltava muito e estava quase sempre metida em alguma confusão. Não sabia o que era medo, como os garotos que chegavam à escola com tatuagens que eles próprios ha­viam feito, lábios cortados, cigarros e mil casos de drogas, de sexo fácil e de confrontos com a polícia.

A Escola Winterdown ficava bem no centro de Yarvil. Era um prédio grande e feio, de três andares, com uma fachada cheia de janelas interca­ladas com painéis pintados de azul-turquesa. Quando as portas do ônibus se abriram, Andrew se juntou aos grupos cada vez maiores de gente usan­do blazers pretos e suéteres que cruzavam o estacionamento, dirigindo-se às duas entradas principais. Já chegando ao afundamento que se formava para passar pela porta de duas folhas, reparou num Nissan Micra que vi­nha parando e se afastou daquela massa para esperar pelo melhor amigo.

Fofo, Elefa, Wally, Wallah, Gordo, Bolota, Bola: ninguém naquela es­cola tinha mais apelidos que Stuart Wall. O seu jeito de andar, com umas passadas bem largas, a sua magreza, o rosto fino e chupado, as orelhas avantajadas e um ar de eterno sofrimento já bastariam para fazer dele um sujeito bem diferente dos demais. Mas eram o seu humor sarcástico, o seu ar distante e a sua pose que faziam dele um caso à parte. Sabe-se lá como, Stuart sempre conseguia se desvincular de qualquer coisa que se poderia definir como um caráter menos flexível, desvencilhando-se do embaraço de ser filho de um vice-diretor muito impopular e ridicularizado, e de ter uma mãe que, além de gorda e cafona, era a orientadora educacional da escola. Stuart era acima de tudo e exclusivamente ele mesmo: Bola, cele­bridade e ponto de referência na Winterdown. Até os alunos lá de Fields riam das suas piadas e, diante da frieza e da crueldade com que o garoto retribuía qualquer deboche, raramente se davam o trabalho de fazer gozações com os seus infelizes laços familiares.

Nesta manhã, a confiança de Bola permaneceu intacta quando, na frente daquelas hordas libertas dos pais que passavam pelo pátio, teve de saltar do Nissan em companhia não apenas da mãe, mas também do pai, que, em geral, vinha para a escola em horário diferente. Enquanto Bola trotava na sua direção, Andrew voltou a se lembrar de Krystal Weedon com a calcinha aparecendo.

Tudo certo, Arf? — perguntou o recém-chegado.

Oi, Bola.

Foram se juntar à multidão, com as mochilas penduradas no ombro, dando uns encontrões nas crianças menores, abrindo algum espaço no seu rastro.

Pombinho andou chorando — disse Bola, enquanto iam subindo as escadas abarrotadas de alunos.

O quê?

Barry Fairbrother morreu ontem à noite.

É, fiquei sabendo — replicou Andrew.

Bola lhe deu aquela olhada de esguelha que adotava quando outras pessoas tentavam se mostrar, fingindo que sabiam mais do que efetiva­mente sabiam, que eram mais do que efetivamente eram.

A minha mãe tava no hospital quando trouxeram ele — acrescen­tou Andrew, irritado. — Ela trabalha lá, lembra?

Ah, claro — disse Bola, já sem aquele ar desconfiado. — Bom, sabe que Pombinho e ele tinham um caso... E é Pombinho que vai dar a notí­cia. A coisa vai ficar feia, Arf.

No alto da escada, os amigos se separaram, e cada um foi para uma sala. Quase todos os colegas de Andrew já estavam lá dentro, sentados nas carteiras, balançando as pernas, ou apoiados nos armários que ficavam nas paredes laterais. As mochilas estavam debaixo das cadeiras. Como sempre, nas segundas de manhã, o falatório era mais alto e descontraído que de costume, porque, quando desse o sinal, iam sair da sala e atravessar o pátio para chegar ao ginásio de esportes. A professora estava sentada à sua mesa, assinalando a presença de quem ia entrando. Ela nunca se dava o trabalho de fazer a chamada: esse era um dos tantos expedientes que usava para tentar cativar a turma, e os alunos a desprezavam por isso.

Krystal chegou quando o sinal tocou.

Tô aqui, fessora! — gritou lá da porta e voltou a sumir. Todos a seguiram, falando sem parar. Andrew e Bola se encontraram no alto da escada e, no meio daquela multidão, saíram pela porta dos fundos e foram andando até o outro lado do imenso pátio de cimento cinza.

O ginásio de esportes cheirava a suor e a tênis usado. O tumulto pro­vocado por mil e duzentos adolescentes que não paravam de falar ecoou pelas paredes caiadas. Um tapete grosso, cinza-chumbo, todo manchado, cobria o chão e trazia, em diferentes cores, os traçados das quadras de badminton e de tênis, os gols do hóquei e do futebol. Aquele troço esfolava a pele toda se alguém caísse ali sem estar de calça comprida para se proteger. Mas, para os traseiros, ainda era melhor que a madeira dura onde tinham que ficar sentados até o final da reunião de todas as turmas da escola. Andrew e Bola já tinham conquistado o privilégio das cadeiras de pés tubulares e encosto de plástico que ficavam no fundo do ginásio para os alunos das últimas séries.

Lá na frente, virado para os alunos, havia um daqueles velhos púlpitos de madeira e, junto dele, estava a diretora, a sra. Shawcross. O pai de Bola, Colin "Pombinho" Wall, veio ocupar o seu lugar ao lado dela. Era um su­jeito muito alto, com uma testa larga, entradas pronunciadas e um andar que pedia para ser imitado: saltitando mais que o necessário para se deslo­car para a frente, com os braços bem colados ao corpo. Todos o chamavam de Pombinho por causa da sua célebre mania de vigiar, esvoaçando feito um pombo, os escaninhos que ficavam junto à porta do seu escritório, zelando para que estivessem sempre na mais perfeita ordem. As folhas de chamada eram depositadas em alguns deles depois de prontas, enquanto outras eram remetidas a departamentos específicos. "Veja lá se não vai pôr isso no escaninho errado, Ailsa!" "Não deixe a folha pendurada desse jeito ou ela vai acabar caindo, Kevin!" "Cuidado, garota! Pegue isso do chão e me dê aqui. Essa folha tem que ficar nesse escaninho!"

E até os outros professores acabaram chamando os tais escaninhos de "pombal". Todos achavam que eles faziam isso para deixar claro que não eram como Pombinho.

— Cheguem para lá, cheguem para lá — disse o sr. Meacher, professor de marcenaria. Isto porque Andrew e Bola tinham deixado uma cadeira vazia entre eles e Kevin Cooper.

Pombinho tomou o seu lugar atrás do púlpito. Os alunos não se aquie­taram tão depressa quanto teriam feito se fosse a diretora. No exato mo­mento em que a última voz se calou, uma das portas duplas do lado direito se abriu, e Gaia entrou no ginásio.

Deu uma olhada ao seu redor (Andrew se permitiu virar para vê-la, já que metade dos presentes estava fazendo o mesmo. Ela estava atrasada, não conhecia quase ninguém, era linda e, afinal, era apenas Pombinho que estava falando) e, com passos rápidos, mas sem correr (porque, como Bola, ela tinha o dom da confiança), foi para trás dos alunos já instalados. A essa altura, Andrew já não podia se virar para continuar olhando, mas uma idéia lhe passou pela cabeça com tamanha força que os seus ouvidos chegaram a zumbir: ao obedecer à ordem do sr. Meacher, ele tinha deixa­do um lugar vago bem ao seu lado.

Ouviu uns passos leves e rápidos que se aproximavam e, de repente, ali estava ela. Veio sentar exatamente ao seu lado. Empurrou um pouco a cadeira, o corpo esbarrando no dele. As narinas de Andrew captaram um ligeiro perfume. Todo o lado esquerdo do seu corpo ardia com a consciência da presença dela, e o garoto ficou feliz da vida porque jus­tamente daquele lado o seu rosto tinha menos espinhas que do outro. Nunca tinha estado assim tão perto de Gaia e ficou se perguntando se teria coragem de olhar para ela, de dar algum sinal de que a reconhecia. Logo, porém, concluiu que tinha ficado paralisado por tanto tempo que já não dava para fazer isso de uma forma natural.

Coçou a têmpora esquerda para esconder o rosto. Revirou então os olhos e olhou para aquelas mãos juntas, pousadas no colo da garota. As unhas eram curtas, limpas e sem esmalte. Num dos dedos mindinhos, ela tinha um anelzinho de prata.

Discretamente, Bola lhe deu uma cotovelada.

E por último... — disse Pombinho, e Andrew percebeu que já tinha ouvido o professor dizer aquelas palavras duas vezes. E que a quietude que reinava no ginásio tinha se tornado um sólido silêncio: todo o movimento havia cessado, e o ar ficou impregnado de curiosidade, animação e em­baraço.

E por último... — repetiu Pombinho, e a sua voz tremeu sem que ele pudesse controlá-la. — Tenho uma notícia... Uma notícia muito triste para lhes dar. O sr. Fairbrother... que foi treinador da nossa tão... vitoriosa equipe feminina de remo durante os últimos dois anos... — Nesse ponto, ele como que engasgou, e passou uma das mãos pelos olhos, —...morreu...

Pombinho Wall estava chorando diante de todos. A sua careca cheia de protuberâncias pendeu para a frente. Ouviram-se, simultaneamente, murmúrios de espanto e risinhos pela platéia, e muitos rostos se viraram para Bola, que continuou ali sentado, com um ar sublime de quem não tinha nada a ver com aquilo. Parecia um tanto intrigado, mas, a não ser por isso, estava impassível.

...morreu... — disse Pombinho, soluçando, e a diretora se levantou, parecendo aborrecida. — ...morreu... ontem à noite.

De repente, um som estridente brotou de algum lugar lá no meio das cadeiras do fundo do ginásio.

Quem riu? — rosnou Pombinho, e o ar ali dentro chegou a estalar de tanta tensão. — COMO SE ATREVE?! Quem foi a menina que riu? Quem foi?

O sr. Meacher já estava de pé, gesticulando furioso para alguém no meio da fileira bem atrás de Andrew e Bola. A cadeira de Andrew balan­çou novamente porque Gaia tinha se virado, como todos os demais, para ver o que estava acontecendo. Andrew tinha a impressão de que o seu cor­po inteiro era agora hipersensitivo: dava para sentir que o corpo de Gaia estava meio debruçado na sua direção. Caso se virasse para o outro lado, o seu peito esbarraria no dela.

Quem foi que riu? — repetiu Pombinho, erguendo-se absurdamente na ponta dos pés, como se pudesse descobrir o culpado lá do lugar onde estava. Meacher esbravejava e gesticulava febrilmente dirigindo-se à pes­soa que decidira acusar.

Quem é, sr. Meacher? — gritou Pombinho.

O professor pareceu relutar em responder. Não estava conseguindo convencer o culpado a se levantar da cadeira. Mas, como Pombinho já dava sinais de que ia sair lá da frente para investigar pessoalmente, Krystal Weedon se pôs de pé de um salto, inteiramente vermelha, e foi saindo da fileira de cadeiras onde estava.

Passe no meu escritório assim que terminarmos aqui — gritou Pom­binho. — É absolutamente lamentável! Uma completa falta de respeito! Saia já daqui!

Mas Krystal parou na ponta da fila de cadeiras, ergueu o dedo médio para Pombinho e berrou:

FIZ NADA NÃO, SEU BABACA!

Por todo lado ouviram-se risos e murmúrios excitados. Os professores tentavam em vão impor silêncio aos alunos, e um ou dois deles chegaram mesmo a se levantar, procurando intimidar as turmas pelas quais eram responsáveis.

As portas duplas se fecharam atrás de Krystal e do sr. Meacher.

Quietos! — gritou a diretora, e um silêncio precário, cheio de sus­surros e movimentos, voltou a se instalar no ginásio. Bola olhava fixo para a frente, e, pela primeira vez, havia um quê de forçado naquela indiferen­ça e um ligeiro rubor na sua pele.

Andrew sentiu Gaia se endireitando na cadeira. Armou-se de coragem, olhou para o lado esquerdo e sorriu. Ela retribuiu o seu sorriso.

 

Embora a delicatéssen de Pagford só abrisse às nove e meia, Howard Mollison já tinha chegado ao local. Era um homem de sessenta e quatro anos, de uma obesidade extravagante. A barriga avantajada formava uma prega que lhe caía diante das coxas e, assim que batia os olhos nele, a maioria das pessoas logo pensava no seu pênis: quando o teria visto pela última vez, como conseguia lavá-lo, como conseguia realizar qualquer dos atos para os quais serve o pênis? Em parte porque o seu porte físico provo­cava esse tipo de pensamento, em parte por causa da sua baixa tolerância a brincadeiras, Howard conseguia deixar as pessoas sem jeito e desarmá-las quase na mesma medida. Talvez por isso fosse tão comum os fregueses comprarem mais do que pretendiam na primeira visita que faziam à loja. Trabalhando, Howard conversava o tempo todo, enquanto a mão de dedos curtos ia acionando o cortador de frios para lá e para cá, e as fatias fininhas e sedosas de presunto iam caindo no celofane colocado ali para recebê- las, com os olhos redondos e azuis sempre prontos para uma piscadela, a papada balançando com o riso fácil.

Ele tinha idealizado um uniforme de trabalho: camisa branca, avental de lona verde-escuro, calças de veludo e um daqueles chapéus estilo Sherlock Holmes no qual havia enfiado várias moscas de pescaria. Se algum dia o tal chapéu tinha sido uma brincadeira, há tempos que deixara de ser: toda manhã, antes de abrir a loja, ele o posicionava com a maior precisão sobre os bastos cachos grisalhos com o auxílio de um espelhinho instalado no banheiro dos funcionários.

Para Howard, era sempre um prazer abrir a delicatéssen de manhã. Ado­rava circular pela loja vazia, numa hora em que só se ouvia o barulhinho constante das geladeiras. Deliciava-se em ir trazendo tudo de volta à vida — acender as luzes, subir as persianas, tirar as tampas para deixar à mostra os tesouros do balcão-frigorífico: as pálidas alcachofras de um verde-acinzentado, as azeitonas pretas como ônix, os tomates secos enroscados como cavalos-marinhos vermelhos boiando naquele azeite temperado com ervas.

Hoje, porém, esse prazer vinha mesclado de impaciência. A sua só­cia já estava atrasada e, como acontecera mais cedo com Miles, Howard temia que alguém pudesse passar à sua frente e contar primeiro aquela notícia sensacional, uma vez que Maureen não tinha celular.

Parou junto do arco recém-aberto na parede que separava a sua loja da velha sapataria que em breve ia se tornar o mais novo café do vilarejo, e verificou se estava tudo certo com o plástico grosso que fazia as vezes de cortina para proteger a delicatéssen da poeira da obra. Estavam plane­jando abrir o café antes da Semana Santa, a tempo de atrair turistas que seguiam todo ano para a região do West Country e cuja bagagem Howard enchia de sidra local, queijo e peças de artesanato em palha de milho.

A sineta tocou às suas costas. Howard se virou com o coração remenda­do e reforçado batendo mais forte de tanta empolgação.

Maureen, a viúva do sócio original de Howard, era uma mulher de ses­senta e dois anos, magra e meio encurvada. A sua postura a fazia aparentar muito mais idade, embora ela fizesse os mais diversos esforços para manter um pé na juventude: pintava o cabelo de preto retinto, usava roupas co­loridas e se equilibrava em cima de imprudentes saltos altos, que tirava ao chegar na loja para calçar uns tamancos Dr. Scholl.

Bom dia, Mo — disse Howard.

Tinha decidido não estragar a revelação fazendo as coisas atabalhoada­mente, mas logo, logo os clientes começariam a chegar, e ele tinha muito para contar.

Já soube?

Maureen o encarou, franzindo as sobrancelhas, com um ar inquiridor.

Barry Fairbrother morreu.

A mulher ficou de boca aberta.

Não! — exclamou ela. — Como?

Alguma coisa arrebentou — disse o seu sócio, dando um tapinha na lateral da cabeça. — Por aqui. Miles estava lá. Viu tudo. Foi no estaciona­mento do clube de golfe.

Não! — repetiu Maureen.

Mortinho — disse Howard, como se houvesse graus diferentes de morte e Barry Fairbrother tivesse sido vítima de um particularmente sórdido.

A boca de Maureen, pintada com um batom forte, pendia frouxa. Ela fez o sinal da cruz. O seu catolicismo sempre dava um toque pitoresco a momentos como aquele.

Miles estava lá? — indagou ela, e Howard percebeu, naquela voz meio rouca e profunda de ex-fumante, o desejo de saber de tudo, nos mí­nimos detalhes.

Não quer pôr a chaleira no fogo, Mo?

Pelo menos podia prolongar a agonia da sua sócia por mais alguns instantes. Na pressa de voltar, Maureen respingou chá fervente na mão. Os dois então sentaram juntos, atrás do balcão, nos bancos altos de madeira que Howard havia posto ali para as horas de menos movi­mento, e Maureen apanhou um punhado de raspas de gelo da bandeja das azeitonas para aliviar a queimadura. Juntos, desfiaram todos os as­pectos convencionais da tragédia: a viúva ("vai ficar perdida; ela vivia para Barry"); os filhos ("quatro adolescentes; não vai ser fácil criá-los sem um pai"); a relativa juventude do morto ("ele não era muito mais velho que Miles, não é mesmo?"); e, por fim, chegaram ao verdadeiro ponto de partida, com relação ao qual tudo o mais não passava de vagos rodeios.

E agora? — indagou Maureen num tom ávido.

Ah — replicou Howard. — Bom, e agora? Aí é que está! Temos uma vacância, Mo, e isso pode fazer toda a diferença.

Temos uma o quê? — perguntou a mulher, temendo ter deixado passar algo absolutamente crucial.

Vacância — repetiu Howard. — É o que acontece quando uma cadeira do Conselho fica vaga por morte do seu titular. É o termo legal — acrescentou ele, didaticamente.

Howard era o presidente do Conselho e o representante máximo de Pagford. Esta posição se fazia acompanhar de um colar com uma insígnia em ouro e esmalte que agora descansava no minúsculo cofre que Shirley e ele haviam mandado instalar no fundo do armário embutido feito sob medida. Se ao menos o distrito de Pagford houvesse sido elevado à ca­tegoria de município, ele poderia se intitular prefeito... Apesar de tudo, porém, para todos os efeitos, era isso que ele era. Shirley tinha deixado as coisas bem claras no site do Conselho, onde, sob uma reluzente foto colorida de Howard envergando o colar com a sua insígnia, lia-se com todas as letras que ele receberia de bom grado convites para participar de quaisquer eventos cívicos e comerciais do vilarejo. Poucas semanas atrás, ele tinha entregado os certificados de conclusão do curso de ciclismo da escola primária local.

Veja bem, Mo, Fairbrother era um safado — disse Howard, toman­do um gole do seu chá e esboçando um sorrisinho para atenuar a afirma­ção que fazia. — Ele sabia ser um grandessíssimo safado.

Sei disso — replicou a mulher. — Sei disso.

Eu ia ter que chamá-lo às falas se não tivesse morrido. Pergunte só a Shirley. Ele sabia ser um vigarista safado!

Ah, eu sei.

Bom, agora, veremos. Veremos. Isso deve pôr um ponto final nessa história. Veja bem, é claro que eu não queria vencer assim — prosse­guiu Howard, com um profundo suspiro —, mas, pensando no bem de Pagford... na comunidade... até que não é nada mau... — E, olhando o relógio, acrescentou: — Já são quase nove e meia, Mo.

Aqueles dois nunca se atrasavam para abrir a loja e nunca fechavam mais cedo: administravam o seu comércio com a regularidade e os rituais de um templo.

Meio cambaleando, Maureen foi até a porta, subiu as persianas, e recortes do exterior foram se revelando progressivamente: uma praça pi­toresca e bem-cuidada, graças, em boa parte, aos esforços coordenados daqueles cujas propriedades davam para o local. Por todo canto, viam-se jardineiras, cestos pendurados e vasos com flores coloridas que, por com­binação dos moradores, variavam de ano para ano. O Black Canon (um dos pubs mais antigos da Inglaterra) ficava defronte da Mollison & Lowe, do outro lado da praça.

Howard se apressou a ir algumas vezes aos fundos da loja para buscar umas bandejas retangulares com patê fresco e depositá-las, com os seus adornos de rodelas de limão e frutas vermelhas reluzentes, no balcão envidraçado. Um tanto ofegante pelo esforço extra exigido por toda aque­la conversa matinal, ele ajeitou o último patê e parou um pouquinho, observando o monumento aos mortos da guerra, que ficava bem no meio da praça.

Pagford estava linda como sempre assim pela manhã, e Howard expe­rimentou um sublime instante de exultação tanto na própria existência quanto na daquela cidade à qual se sentia ligado como um coração pulsante. Estava ali para se impregnar de tudo aquilo — os bancos pretos luzidios, as flores vermelhas e roxas, o sol brilhando no alto da cruz de pedra —, e Barry Fairbrother tinha desaparecido. Era difícil não ter a sensação de estar diante de um desígnio maior, revelado por essa súbita alteração ocorrida no que Howard via como um campo de batalha em que ele e Barry haviam se enfrentado por tanto tempo.

Howard — exclamou Maureen bruscamente. — Howard!

Alguém vinha atravessando a praça a passos largos. Era uma mulher

magra, morena, de cabelos pretos, que usava uma gabardine e, com ar aborrecido, olhava as próprias botas enquanto andava.

Acha que...? Será que ela já sabe? — sussurrou Maureen.

Não faço idéia — respondeu Howard.

Maureen, que ainda não tinha tido tempo de calçar os tamancos Dr. Scholl, quase torceu o tornozelo ao recuar às pressas, afastando-se da jane­la e correndo para ficar atrás do balcão. Lentamente, com toda a majesta­de, como um canhoneiro dirigindo-se ao seu posto, Howard foi ocupar o seu lugar diante da caixa registradora.

A sineta soou, e a dra. Parminder Jawanda empurrou a porta da delicatéssen, sempre com aquele ar aborrecido. Agiu como se os donos não estivessem ali e foi direto para a prateleira dos azeites. Os olhos de Mau­reen a seguiram com o êxtase e a concentração de um falcão espreitando um rato-do-mato.

Bom dia! — disse Howard, quando Parminder se aproximou do bal­cão segurando uma garrafa.

Bom dia.

A dra. Jawanda raramente o encarava, fosse nas reuniões do Conselho, fosse quando se encontravam fora do salão da igreja. Howard achava en­graçada a incapacidade que ela tinha de disfarçar o seu desagrado: aquilo o tornava jovial, extravagantemente galante e cortês.

Não foi trabalhar hoje?

Não — respondeu Parminder, remexendo na bolsa.

Maureen não conseguiu se conter.

Que coisa horrível — disse, com aquela sua voz rouca. — Barry Fairbrother, não é?

Hmmm —- resmungou a outra, mas acabou perguntando: — O quê?

Barry Fairbrother — repetiu Maureen.

O que houve com ele?

Mesmo depois de dezesseis anos morando em Pagford, ela ainda tinha um forte sotaque de Birmingham. Uma linha vertical profunda entre as sobrancelhas lhe dava um ar eternamente tenso, parecendo às vezes raiva, às vezes concentração.

Morreu — respondeu Maureen, olhando ávida para aquele rosto contraído. — Ontem à noite. Howard acabou de me contar.

Parminder ficou praticamente imóvel, com a mão enfiada na bolsa. Voltou então os olhos na direção do comerciante.

Caiu morto no estacionamento do clube de golfe — disse ele. — Miles estava lá e presenciou tudo.

Mais alguns segundos se passaram.

Por acaso isso é uma piada? — perguntou Parminder, e a sua voz soou dura e meio esganiçada.

Claro que não — retrucou Maureen, saboreando a própria cora­gem. — Quem faria uma piada dessas?

Parminder botou a garrafa de azeite em cima do balcão de vidro com toda a força e saiu da loja.

Ora, ora... — exclamou Maureen, num êxtase de desaprovação. — isso é uma piada? Que simpatia!

Choque! — replicou Howard com muita sensatez, observando Parminder, que atravessava a praça quase correndo, com a gabardine esvoaçando às suas costas. — Essa aí ficou tão transtornada quanto a viúva. Olhe, vai ser interessante... — acrescentou, coçando a prega da barriga que geralmente comichava — ver o que ela...

Deixou a frase inacabada, mas isso não tinha a mínima importância: Maureen sabia exatamente o que ele estava pensando. Vendo a conselhei­ra Jawanda desaparecer numa esquina, ambos estavam contemplando a tal vacância, e, a seus olhos, ela não era um espaço vazio, mas a cartola de um mágico, cheinha de possibilidades.

 

A antiga casa paroquial era a última e a mais imponente das casas vitoria­nas da Church Row. Ficava bem na esquina, num grande jardim triangu­lar, em frente à Igreja de São Miguel e Todos os Santos.

Parminder, que tinha feito os últimos metros correndo, teve alguma difi­culdade em abrir o ferrolho da porta da frente e finalmente entrou. Não ia acreditar naquela história até ouvir a notícia dada pela boca de outra pessoa, qualquer uma. Mas o telefone já estava tocando furiosamente na cozinha.

- Alô?

Sou eu, Vikram.

O marido de Parminder era cirurgião cardiovascular. Trabalhava no Hospital Geral South West, em Yarvil, e não costumava lhe telefonar do trabalho. A mulher segurou o fone com tanta força que os seus dedos che­garam a ficar doloridos.

Fiquei sabendo por acaso. Parece que foi um aneurisma. Pedi a Huw Jeffries que passasse a autópsia dele na frente das outras. F melhor que Mary fique sabendo do que o marido morreu. Talvez estejam traba­lhando nisso agora mesmo.

Está certo — disse Parminder num sussurro.

Tessa Wall estava lá — acrescentou o marido. — Ligue para ela.

Está bem — replicou Parminder. — Vou fazer isso.

Mas, quando pôs o fone no gancho, deixou-se cair numa cadeira e ficou olhando pela janela da cozinha, sem ver o jardim dos fundos, aper­tando com os dedos a própria boca.

Tudo tinha desmoronado. As coisas continuavam ali — as paredes, as cadeiras, os retratos das crianças nas paredes —, mas isso não queria dizer absolutamente nada. Cada átomo de todas aquelas coisas tinha explodi­do e se reconstituído num instante, e a sua aparência de permanência e solidez era ridícula; aquilo se desmancharia ao mínimo toque, pois, de repente, tudo tinha se tornado quebradiço, fino como papel.

Parminder não tinha controle sobre os próprios pensamentos; eles tam­bém haviam se estilhaçado, e alguns fragmentos aleatórios de lembranças vinham à tona para, depois, voltar a afundar: ela dançando com Barry na festa de Ano-Novo dos Wall, e a conversa boba que os dois tiveram saindo da última reunião do Conselho.

A sua casa parece uma cabeça de vaca — disse ela.

Cabeça de vacai O que quer dizer com isso?

É mais estreita na frente que nos fundos. Isso é sinal de sorte. Mas ela dá para uma interseção em T. O que é sinal de azar.

Então, somos neutros em termos de sorte — replicou Barry.

A tal artéria na cabeça dele talvez estivesse inflando perigosamente já naquela ocasião, e nenhum dos dois poderia desconfiar disso.

Às cegas, Parminder saiu da cozinha e entrou na sala de estar eterna­mente na penumbra, fizesse chuva ou fizesse sol, por causa do gigantesco pinheiro-da-escócia que havia no jardim. Detestava aquela árvore, mas ela continuava ali porque Parminder e o marido sabiam perfeitamente que iam arrumar briga com os vizinhos se mandassem derrubá-la.

Não conseguia parar quieta. Passou pelo corredor, voltou à cozinha, pegou o telefone e ligou para Tessa Wall, mas ninguém atendeu. Devia estar no trabalho. Trêmula, Parminder voltou a se sentar na cadeira da cozinha.

A dor que sentia era tão grande, tão selvagem que chegava a assustá-la, como se um monstro maligno tivesse surgido das tábuas do assoalho. Barry, baixinho, barbudo; Barry, seu amigo, seu aliado.

Foi exatamente assim que o seu pai morreu. Ela tinha quinze anos, e, ao voltarem da cidade, deram com ele caído de bruços no gramado, o cor­tador de grama ao seu lado, o sol quente lhe batendo na nuca. Parminder tinha horror de mortes súbitas. O definhar prolongado que muita gente tanto teme era, para ela, uma perspectiva reconfortante; ter tempo para arrumar e organizar as coisas, tempo para se despedir...

Continuava pressionando a boca com ambas as mãos. Observou o rosto doce e grave do Guru Nanak preso no quadro de cortiça.

(Vikram não gostava daquela foto.

O que isso está fazendo aí?

Gosto dela — respondeu, enfrentando-o.)

Barry, morto.

Reprimiu a terrível vontade de chorar com aquela ferocidade que a sua mãe sempre condenava, especialmente no dia seguinte à morte do seu pai, quando as outras filhas, bem como as tias e as primas, gemiam e batiam no peito. "Logo você, que era a favorita dele!" Mas Parminder guardou aquelas lágrimas não derramadas muito bem-trancadas dentro de si, e, aparentemente, elas sofreram uma transformação alquímica, voltando ao mundo exterior sob a forma de jorros de lava de raiva des­pejados periodicamente sobre os próprios filhos e as recepcionistas do trabalho.

Ainda podia ver Howard e Maureen atrás do balcão, ele, imenso, ela, magricela, e, na imagem mental que fazia, os dois a encaravam do alto ao lhe dizer que o seu amigo tinha morrido. Num ímpeto quase reconfortan­te de fúria e de ódio, Parminder pensou: Aqueles dois estão felizes da vida. Estão achando que, agora, vão vencer.

Mais uma vez, pulou da cadeira, foi até a sala de estar e tirou, lá da prateleira de cima, um volume dos Sainchis, o livro sagrado que acabara de comprar. Abrindo-o ao acaso, leu, não surpreendida, mas antes com a sensação de estar olhando num espelho o próprio rosto arrasado:

O mente, o mundo é um poço escuro e profundo. Por todo lado, a Morte lança a sua rede.

 

A sala destinada ao serviço de orientação educacional da Winterdown dava para a biblioteca da escola. Não tinha janelas e era iluminada por uma única daquelas lâmpadas fluorescentes bem compridas.

Tessa Wall, chefe do setor e esposa do vice-diretor, entrou na sala às dez e meia, atordoada de tanto cansaço e trazendo na mão uma xícara de café bem forte que tinha apanhado no refeitório dos funcionários. Era baixi­nha e gorda, com um rosto largo sem atrativos e uma franja quase sempre meio torta, já que ela cortava o próprio cabelo, que estava começando a embranquecer. Usava umas roupas que davam a impressão de serem feitas em casa e adorava bijuterias de contas e madeira. Hoje estava com uma saia comprida que mais parecia de juta, combinando com um casaquinho verde-claro, largo e grosso. Raramente se olhava num espelho de corpo inteiro e boicotava as lojas em que isso fosse inevitável.

Tessa havia tentado amenizar a semelhança daquela sala com uma cela pendurando na parede um panô do Nepal que tinha desde os seus tempos de estudante: sobre um fundo com as cores do arco-íris, um reluzente sol amarelo e uma lua estilizados emitiam os seus raios ondulantes. De resto, o que se via ali eram cartazes contendo dicas para estimular a autoestima ou telefones de grupos anônimos de apoio para diversas questões de saúde física ou emocional. Na última vez que entrou naquela sala, a diretora ha­via feito uma observação ligeiramente sarcástica a respeito desses cartazes.

— Pelo que estou vendo, se nada disso funcionar é só ligar para a Fun­dação de Amparo à Criança e ao Adolescente — disse ela, apontando para o mais destacado deles, que continha o nome e o telefone de uma organização.

Tessa afundou na cadeira com um gemido abafado, tirou o relógio de pulso que estava beliscando o seu braço e o deixou em cima da mesa, jun­to de vários formulários e notas. Duvidava que conseguisse dar conta do que havia sido previsto para aquele dia; duvidava até que Krystal Weedon fosse aparecer por lá. Em geral, a garota ia embora da escola quando ficava chateada, zangada ou aborrecida. As vezes, era apanhada antes de cruzar o portão e trazida de volta à força, xingando e gritando, mas também acon­tecia de ela conseguir driblar a vigilância, escapar dali e passar dias matan­do aula. Já eram dez e quarenta. A sineta tocou, e Tessa ficou esperando.

Às dez e cinqüenta e um, Krystal entrou feito uma bala, batendo a porta atrás de si. Jogou-se na cadeira diante de Tessa, com os braços cru­zados sobre os seios avantajados e os brincos vagabundos balançando nas orelhas.

Diz pro seu marido — principiou ela, com voz trêmula — que eu não ri porra nenhuma, viu?

Por favor, Krystal, nada de palavrões na minha frente — replicou a orientadora.

Eu não ri coisa nenhuma... ok? — gritou a garota.

Um grupo de alunos do último ano entrou na biblioteca carregando umas pastas. Todos espiaram pela vidraça da porta. Um deles sorriu ao ver a cabeça de Krystal ali dentro. Tessa se levantou, baixou a persiana e voltou para o seu lugar, defronte do sol e da lua.

Tudo bem, Krystal. Por que não me conta o que aconteceu?

O seu marido disse alguma coisa sobre o sr. Fairbrother, ok? E eu não ouvi o que ele disse, entendeu? Aí, Nikki me contou, e eu não conse­gui acreditar na merda que...

Krystal!

Não dava para acreditar naquilo, tá? Aí eu gritei. Mas não ri porra nenhuma!

Krystal!

Eu não ri, entendeu? — repetiu a garota, aos berros, com os braços cruzados diante do peito e as pernas também cruzadas.

Está certo, Krystal.

Tessa estava acostumada à raiva dos alunos que vinham com mais freqüência à sua sala. Muitos não tinham a mínima educação: quase sempre mentiam, faziam bagunça e colavam nas provas. Mesmo assim, quando injustamente acusados, a sua fúria era infinita e genuína. A orientadora se julgava capaz de distinguir essa atitude autêntica daquela outra, fingida, que Krystal era perita em adotar. De todo modo, o que ouviu lá no ginásio tinha lhe parecido mais um grito de espanto e tris­teza que uma gozação, e tomou um susto quando o marido identificou aquilo como uma risada.

Tava vendo Pombinho...

Krystal!

Disse pra porra do seu marido...

Krystal, pela última vez: nada de palavrões...

Eu disse pra ele que eu não ri coisa nenhuma. Eu disse! E, mesmo assim, ele me ferrou com uma detenção!

Os olhos pintadíssimos da garota brilhavam com lágrimas de raiva. O sangue lhe subiu ao rosto e, vermelha como um pimentão, ela ficou enca­rando a orientadora, pronta para fugir, xingar, exibir também para Tessa o dedo médio. Uma confiança muito tênue, laboriosamente construída en­tre as duas durante quase dois anos, estava agora tão esgarçada que podia arrebentar a qualquer momento.

Acredito em você, Krystal. Acredito que não riu, mas, por favor, não diga palavrões quando fala comigo.

De repente, uns dedos curtinhos estavam esfregando aqueles olhos já borrados. Tessa tirou da gaveta da escrivaninha um punhado de lenços de papel e os ofereceu à garota, que, sem dizer obrigada, se apoderou deles, enxugou os olhos e assoou o nariz. As mãos de Krystal eram o que havia nela de mais tocante: as unhas, malpintadas, eram curtas e largas, e todos os gestos que aquelas mãos faziam eram ingênuos e diretos como os de uma criança pequena.

Tessa esperou até Krystal parar de fungar.

Dá para perceber que você ficou chateada com a notícia da morte do sr. Fairbrother...

Fiquei, sim! — replicou a garota, com boa dose de agressividade. - E daí?

Sem mais nem menos, passou pela cabeça de Tessa a idéia de Barry ouvindo aquela conversa. Podia até ver o seu sorriso tristonho; podia ouvi­do dizer, bem nitidamente, "ela é uma garota bacana". Incapaz de falar, a orientadora fechou os olhos, que lhe ardiam. Percebeu que Krystal se remexia na cadeira; contou até dez e voltou a abrir os olhos. A garota a estava encarando, sempre de braços cruzados, com o rosto vermelho e aquele ar desafiador.

Também fiquei muito triste — disse Tessa. — Na verdade, ele era um velho amigo da família. É por isso que o sr. Wall está meio...

Eu disse pra ele que não...

Deixe eu acabar, Krystal. O sr. Wall está muito chateado hoje. Pro­vavelmente, foi por isso que... interpretou mal o que você fez. Vou con­versar com ele.

Ele não vai desistir da porra da...

Krystal!

Tá, mas ele não vai, não — disse ela. E começou a chutar o pé da escrivaninha num ritmo acelerado.

Tessa tirou os cotovelos da mesa, para não sentir a vibração do móvel, e repetiu:

Vou conversar com o sr. Wall.

Assumiu o que julgava ser uma expressão neutra e, com toda a paciência, ficou esperando que a garota fizesse alguma coisa. Krystal, porém, conti­nuava sentada ali, mergulhada num silêncio truculento, chutando o pé da escrivaninha, engolindo em seco com alguma regularidade.

Que que aconteceu com o sr. Fairbrother? — perguntou ela enfim.

Acham que uma artéria do cérebro dele se rompeu — respondeu Tessa.

Por quê?

Ele nasceu com um problema, mas não sabia disso — foi a resposta da orientadora.

Tessa sabia que Krystal estava muito mais familiarizada com mortes súbitas do que ela própria. Os seus parentes por parte de mãe morriam assim com tanta freqüência que parecia até que estavam envolvidos numa guerra que o resto do mundo ignorava por completo. Uma vez Krystal lhe contou que, quando tinha seis anos, encontrou o cadáver de um rapaz des­conhecido no banheiro da mãe. Foi o que precipitou uma das suas tantas remoções para viver sob os cuidados da avó Cath. A velha senhora era uma presença constante em várias das histórias que Krystal contava sobre a sua infância; um estranho misto de carrasco e tábua de salvação.

Agora, a nossa equipe vai se foder — disse a garota.

Não vai, não — replicou Tessa. — E, por favor, Krystal, sem pala­vrões.

Vai, sim.

Tessa teve vontade de contradizê-la, mas esse impulso foi vencido pelo cansaço. De certa forma, a garota tinha razão, dizia uma parte racional, uma parte independente do seu cérebro. A equipe não ia sobreviver. Nin­guém, a não ser Barry, conseguiria integrar Krystal Weedon a qualquer grupo que fosse e mantê-la ali. Ela ia largar tudo, como Tessa bem sabia; e provavelmente Krystal também sabia disso. Ficaram sentadas por alguns instantes, em silêncio. A orientadora estava cansada demais para encon­trar palavras que talvez pudessem alterar o clima que se instalara entre as duas. Sentia-se trêmula, exposta, inteiramente desprotegida. Fazia vinte e quatro horas que não dormia.

(Samantha Mollison tinha ligado às dez da noite, exatamente quando Tessa estava saindo de um banho demorado e ia ver o noticiário da BBC. Voltou a se vestir, às pressas, enquanto o marido fazia uns ruídos incom­preensíveis e tropeçava nos móveis. Do térreo, gritaram avisando ao filho que estavam indo para o hospital e correram para o carro. Colin dirigiu a toda até Yarvil, como se pudesse trazer Barry de volta se conseguisse fazer o trajeto em tempo recorde, passar à frente da realidade e convencê-la a se modificar.)

Se não vai falar comigo, vou embora — disse Krystal.

Não seja grosseira, por favor — replicou Tessa. — Estou muito can­sada hoje. O sr. Wall e eu passamos a noite inteira no hospital com a esposa do sr. Fairbrother. Somos muito amigos.

(Mary desmontou completamente quando a viu chegar. Abraçou-a e enterrou o rosto no seu pescoço, com um choro agudo e assustador. Mes­mo quando as suas próprias lágrimas começaram a escorrer pelas costas estreitas de Mary, Tessa continuou pensando muito claramente que o ba­rulho que a outra estava fazendo era o que se chamaria de carpir. O corpo mignon e esguio que Tessa tantas vezes invejara tremia nos seus braços, sem conseguir conter a dor que lhe havia sido imposta.

Não se lembrava de ter visto Miles e Samantha irem embora. Não os co­nhecia muito bem. Com certeza ficaram bem contentes por poder sair dali.)

Já vi a mulher dele — disse Krystal. — Uma loura. Ela veio ver a gente competir.

Isso mesmo.

Krystal estava mordendo as pontas dos dedos.

Ele disse que era pra eu falar com o jornal — disse ela, abrupta­mente.

Fazer o quê? — perguntou Tessa, sem entender nada.

O sr. Fairbrother disse que era pra eu dar uma entrevista. Falando sobre mim.

Uma vez, saiu uma matéria no jornal local sobre o oito com timoneiro da Escola Winterdown, que tinha se classificado em primeiro lugar para a final regional. Krystal, que lia mal e porcamente, trouxe o exemplar do periódico para mostrar à orientadora, e Tessa leu o texto em voz alta, introduzindo exclamações de contentamento e admiração. Tinha sido a melhor sessão de orientação que já havia feito na vida.

Iam fazer uma entrevista com você por causa do remo? — pergun­tou Tessa. — A equipe toda?

Não — respondeu a garota. — Era outra coisa. O enterro vai ser quando?

Ainda não sabemos.

Krystal ficou roendo as unhas, e Tessa não conseguiu encontrar forças para romper o silêncio que tinha se instalado à sua volta.

 

A notícia da morte de Barry no site do Conselho Distrital não chegou exatamente a provocar alguma comoção, mais parecendo uma pedrinha atirada no oceano imenso. Mesmo assim, nessa segunda-feira, as linhas te­lefônicas de Pagford ficaram mais ocupadas que de costume, e grupinhos de transeuntes se formavam nas calçadas estreitas para conferir, com ar chocado, a exatidão das próprias informações.

À medida que a notícia foi se espalhando, ocorreu uma estranha trans­mutação. A assinatura de Barry, que estava nos documentos do escritório e nos e-mails que enchiam a caixa de entrada da imensa quantidade de gente que ele conhecia, assumiu o caráter patético da trilha de migalhas de pão deixada por um menino perdido na floresta. Aqueles rabiscos apressados, os pixels combinados por dedos que, de agora em diante, nunca mais vol­tariam a se mexer, adquiriram o macabro aspecto de cascas ocas. Gavin já estava sentindo certa repugnância pelas mensagens de texto que o amigo morto havia enviado para o seu celular, e uma das garotas da equipe de remo, que vinha voltando do ginásio ainda chorando, quase teve um ataque histérico quando encontrou na mochila um formulário assinado por Barry.

A jornalista de vinte e três anos que trabalhava na Gazeta de Yarvil e Adjacências nem desconfiava que o cérebro outrora tão ativo de Barry era agora um punhado de tecido esponjoso dentro de uma gaveta metálica no Hospital Geral South West. Leu o texto que ele tinha lhe mandado por e-mail uma hora antes de morrer e ligou para o seu celular, mas ninguém atendeu. O aparelho, que Barry tinha desligado, a pedido da mulher, an­tes de sair para o clube, estava agora na cozinha, em silêncio, ao lado do micro-ondas, junto com o restante das coisas que o hospital tinha entrega­do para Mary levar para casa. Ninguém tocou em nada. Aqueles objetos tão conhecidos — o chaveiro, o celular, a velha carteira bem usada — pareciam pedaços do próprio morto; poderiam perfeitamente ser os seus dedos, os seus pulmões...

Pelos quatro cantos, a notícia da morte de Barry foi se espalhando, irradiando-se como um halo a partir daqueles que estiveram no hospi­tal. Pelos quatro cantos, inclusive em Yarvil, onde chegou aos ouvidos de quem só o conhecia de vista, de nome ou de ouvir falar. Pouco a pouco, os fatos foram perdendo forma e foco; em certos casos, acabaram distorcidos. Em alguns lugares, o próprio Barry desapareceu por trás da natureza do seu fim, tornando-se apenas uma irrupção de vômito e urina, uma pilha contorcida de catástrofe, e parecia absurdo, até mesmo grotescamente cô­mico, que um homem pudesse morrer de uma morte assim tão nojenta naquele pequeno clube de golfe tão elegante.

Foi assim que Simon Price, um dos primeiros a saber da morte de Barry, ainda na sua casa construída no topo da colina de onde se via toda Pagford, deparou com uma outra versão da história na Gráfica Harcourt- -Walsh, em Yarvil, onde trabalhava desde que saiu da escola. Ela lhe che­gou pela boca de um rapazinho que mascava chicletes e dirigia uma empilhadeira. Simon topou com ele matando trabalho perto da porta da sua sala quando voltava do banheiro, já mais para o fim da tarde. E, diga-se de passagem, o tal garoto nem estava ali para falar de Barry.

Aquele negócio que você disse que talvez interessasse... — balbuciou o jovem, entrando no escritório atrás de Simon e vendo que o outro tinha fechado a porta. — Posso ver isso na quarta, se você ainda tiver a fim.

É mesmo? — indagou Simon, sentando diante da escrivaninha. — Achei que você tinha dito que já estava tudo em cima.

E tá mesmo, mas não dá pra conseguir marcar a entrega pra antes da quarta.

Quanto mesmo que você disse que era?

Oitentinha. Em dinheiro.

O garoto mastigava com tanta força que Simon podia ouvir a sua saliva em ação. Mascar chicletes era uma das tantas coisas com que ele impli­cava loucamente.

Mas é coisa boa, não é? — perguntou ele. — Não é uma dessas porcarias pirateadas.

Vem direto do depósito — respondeu o outro, mexendo um pouco o pé e o ombro. — Coisa fina. Na embalagem.

Então está combinado — disse Simon. — Pode trazer na quarta.

O quê?! Pra cá? — exclamou o garoto, revirando os olhos. — De jeito nenhum, cara! Pro trabalho, não... Onde é que você mora?

Em Pagford.

Mas onde em Pagford?

Simon detestava a idéia de falar da própria casa: era uma aversão que beirava a superstição. Além de não gostar de visitantes — invasores da sua privacidade e possíveis saqueadores da sua propriedade —, via Hilltop House como algo inviolado, imaculado, um mundo à parte com relação a Yarvil e àquelas máquinas de impressão incansáveis e barulhentas.

Passo então para pegar depois do trabalho — disse Simon, ignoran­do a pergunta do rapaz. — Onde é?

O outro não pareceu gostar nada da idéia. Simon o encarou.

Vou precisar da grana adiantada — retrucou ele então.

Dou o dinheiro quando receber a mercadoria.

Não é assim que a gente trabalha, cara!

Simon achou que estava começando a ficar com dor de cabeça. Não conseguia se livrar da terrível idéia sugerida hoje de manhã por aquela descuidada da sua mulher: que uma minúscula bomba pode passar muito tempo armada no cérebro de um homem sem que ninguém saiba da sua existência. O bate que bate das máquinas do outro lado da porta decerto não ajudava em nada; aquela barulheira incessante devia vir afinando as paredes das suas artérias há anos.

Está bem — resmungou e se virou na cadeira para apanhar a car­teira, que estava no bolso de trás da calça. O menino chegou mais perto, com a mão estendida.

Você mora perto do clube de golfe de Pagford? — perguntou, enquan­to Simon ia botando as notas de dez libras na palma daquela mão. — Um amigo meu tava por lá ontem à noite e viu um sujeito cair duro. Do nada, o cara começou a vomitar, desabou no chão e morreu no estacionamento.

É, ouvi dizer... — disse Simon, passando os dedos pela última das notas antes de entregá-la, para ter certeza de que não havia ali duas delas grudadas.

Sujeito corrupto, o tal conselheiro que morreu. Andava levando propina. Os Gray tavam pagando uma grana pra ele pra continuarem como fornecedores.

Ah, é? — disse Simon, como quem não quer nada. Mas, no fundo, estava interessadíssimo.

Barry Fairbrother, hein? Quem diria?

Então eu passo aqui, falou? — disse o rapaz, enfiando as oitenta libras bem no fundo do bolso da calça. — E nós dois vamos lá na quarta.

A porta do escritório se fechou. De tão fascinado pela revelação da vigarice de Barry Fairbrother, Simon chegou a esquecer a dor de cabeça, que, na verdade, não passava de um ligeiro incômodo. Barry Fairbrother, sempre tão ocupado e sociável, tão popular e entusiasmado: e, o tempo todo, só embolsando as propinas que levava dos Gray...

Aquela notícia não deixou Simon tão abalado quanto deixaria prati­camente qualquer outro que conhecesse Barry, nem desmereceu o con­selheiro a seus olhos; muito pelo contrário, ele passou a respeitar ainda mais o falecido. Sabia perfeitamente que qualquer pessoa com um míni­mo de inteligência vivia batalhando, por baixo dos panos, para abocanhar o máximo que pudesse conseguir. Ficou parado ali, com os olhos fixos na planilha aberta na tela do computador, mas sem a enxergar, e, mais uma vez, deixou de ouvir o barulho das máquinas do outro lado da vidraça empoeirada.

Quando se tem família, não há outra opção senão trabalhar das nove às cinco, mas Simon sempre soube que existiam alternativas melhores que esta. Sempre soube que uma vida de conforto e fartura pairava sobre a sua cabeça como uma daquelas imensas pinhatas das festas infantis, repleta de boas surpresas, e que ele poderia arrebentar desde que conseguisse um bastão grande o bastante e soubesse exatamente em que ponto devia bater. Como uma criança, Simon acreditava que o resto do mundo existia como palco para o desenrolar da sua própria história pessoal; que o destino estava sempre planando ao seu redor, lançando pistas e indícios no seu ca­minho, e tinha a nítida sensação de haver sido aquinhoado com um sinal, com uma piscadela celestial.

Essas dicas sobrenaturais estavam por trás de várias decisões aparente­mente quixotescas que Simon tomou no passado. Há alguns anos, quan­do ainda era um simples aprendiz na gráfica, estava às voltas com uma hipoteca que mal podia pagar e uma esposa que acabava de engravidar, apostou cem libras em "Bebê de Ruthie", um cavalo muito bem-cotado para vencer o Grande Prêmio Nacional, mas que acabou perdendo na reta final. Pouco depois de comprar Hilltop House, Simon aplicou mil e duzentas libras — dinheiro que Ruth tinha esperanças de usar para com­prar tapetes e cortinas — numa espécie de fundo de investimento admi­nistrado por um sujeito que conhecia lá de Yarvil. O tal dinheiro sumiu juntamente com o diretor da empresa, mas, apesar de ter esbravejado, xingado e chutado o filho caçula escada abaixo só porque ele estava no caminho, Simon não procurou a polícia. Afinal, antes mesmo de investir o seu dinheiro, tinha ficado sabendo de certas irregularidades nas operações da firma e previu a possibilidade de algumas perguntas embaraçosas.

Em contraste com essas calamidades, porém, havia golpes de sorte, expedientes lucrativos, palpites que davam certo, e era a eles que Simon acabava atribuindo um peso maior sempre que fazia um balanço dos prós e dos contras. Era graças a eles que mantinha a fé na boa estrela, que refor­çava a sua convicção de que o universo lhe havia reservado muito mais do que aquela história de ficar trabalhando para ganhar um salário modesto até se aposentar ou morrer. Golpes ou jeitinhos, uma mãozinha aqui, um favorzinho ali: era o que todos faziam, até mesmo, como tinha acabado de descobrir, o baixinho Barry Fairbrother.

Ali, naquele minúsculo escritório, Simon Price vislumbrava com olhos cobiçosos a possibilidade de vir a integrar um espaço onde o dinheiro estava sendo agora despejado em cima de uma cadeira vazia, sem que houvesse um colo para recebê-lo.

 

                                                                           (Velhos Tempos)

                                                                                 Invasores

 

12.43 Com relação aos invasores (que, em princípio, devem se apoderar da propriedade alheia e de seus ocupantes, se houver algum no local)...

             Charles Arnold-Baker

             Administração dos Conselhos Locais

             7a edição

 

Pelo seu tamanho, o Conselho Distrital de Pagford era uma força conside­rável. Reunia-se uma vez por mês no gracioso salão paroquial vitoriano, e qualquer tentativa de reduzir o seu orçamento, incorporar algum dos seus poderes ou integrá-lo a um desses órgãos modernos vinha sendo exausti­vamente combatida, e com sucesso, há décadas. De todos os conselhos locais submetidos à autoridade do Conselho Municipal de Yarvil, Pagford se orgulhava de ser o mais rebelde, o que tinha mais voz ativa, o mais independente.

Até domingo à noite, ele se compunha de dezesseis homens e mulhe­res residentes no vilarejo. Uma vez que os eleitores de Pagford tendiam a presumir que a vontade de integrar o Conselho Distrital implicava com­petência para fazer isso, todos os conselheiros haviam conquistado o cargo sem ter de enfrentar qualquer tipo de oposição.

Mesmo assim, esse grupo eleito de forma tão amistosa vivia atualmente num estado de guerra civil. Um problema que vinha provocando fúria e rancor em Pagford há uns bons sessenta anos tinha atingido o seu auge, e as facções se formaram em torno de dois líderes carismáticos.

Para entender direito a causa de tal disputa, seria preciso ter uma noção exata da profunda antipatia e da desconfiança que o vilarejo experimentava com relação à cidade de Yarvil, situada a alguns quilômetros mais ao norte.

As lojas, os escritórios, as fábricas e o Hospital Geral South West, to­dos em Yarvil, geravam o grosso dos empregos para os moradores de Pag­ford. Era também nos seus cinemas e boates que rapazes e moças iam se divertir nas noites de sábado. A cidade possuía uma catedral, diversos parques e dois enormes shopping centers, todos constituindo atrativos para quem já estivesse farto dos magníficos encantos do vilarejo. Apesar de tudo, porém, para os verdadeiros pagfordianos, Yarvil era pouco mais que um mal necessário. A atitude que assumiam era bem-simbolizada pela colina encimada pela abadia de Pargetter, que bloqueava a visão da cidade e lhes proporcionava a doce ilusão de que Yarvil estava muito mais longe deles do que efetivamente estava.

 

Acontece, porém, que a mesma colina Pargetter também tapava uma outra vista, só que, desta vez, tratava-se de um local que Pagford sem­pre havia considerado propriedade sua. Era a Sweetlove House, uma encantadora mansão estilo Rainha Ana, pintada de amarelo, que ficava no meio de um imenso parque e possuía ainda terras produtivas. Esse tesouro estava situado dentro dos limites de Pagford, a meio caminho entre o vilarejo e Yarvil.

Por quase duzentos anos, a casa foi passando sem maiores atritos de geração em geração da aristocrática família Sweetlove até que, em prin­cípios do século XX, morreu o último dos seus descendentes. Tudo que restava desses tempos da longa relação entre os Sweetlove e Pagford era a imponente sepultura nos jardins da igreja de São Miguel e Todos os San­tos, além de um punhado de brasões e iniciais em prédios e documentos, como pegadas e coprólitos de criaturas já extintas.

Após a morte do último dos Sweetlove, a propriedade mudou de mãos com uma rapidez assustadora. Pagford vivia constantemente amedrontada pela perspectiva de alguma imobiliária comprar tudo aquilo e acabar mutilando a localidade tão amada. Até que, na déca­da de 1950, um homem chamado Aubrey Fawley adquiriu a mansão. Logo todos ficaram sabendo que o tal Fawley era dono de um con­siderável patrimônio que ele ainda suplementava na City, o centro financeiro de Londres, por alguns meios misteriosos. Tinha quatro filhos e desejava se instalar no local definitivamente. A aprovação do vilarejo se elevou a níveis ainda mais sublimes quando começaram a circular boatos que davam Fawley como descendente dos Sweetlove por afinidade. O sujeito já era nitidamente quase um deles, alguém que dedicaria a sua lealdade a Pagford e não a Yarvil. O velho vila­rejo estava convicto de que a chegada de Aubrey Fawley significava o retorno daqueles tempos encantadores. Para a localidade, ele seria uma versão masculina da fada madrinha, como haviam sido antes os seus antepassados, derramando graça e glamour pelas suas ruas de paralelepípedos.

Howard Mollison ainda se lembrava de ver a mãe entrar toda em­polgada na minúscula cozinha da casa da Hope Street com a notícia de que Aubrey havia sido convidado para fazer parte do júri da exposição

de jardinagem do vilarejo. Por três anos consecutivos, o seu feijão-trepador tinha conquistado o primeiro lugar entre as legumináceas, e ela estava louca para receber o troféu prateado das mãos de um homem que, a seu ver, já era um daqueles personagens dos romances de anti­gamente.

 

Mas, segundo reza a lenda local, veio então a escuridão que sempre anun­cia a entrada em cena da bruxa malvada.

Justo quando Pagford andava encantada por ver que a Sweetlove House tinha caído em mãos tão confiáveis, Yarvil estava ocupadíssima construindo, ao sul do seu perímetro urbano, uma faixa de casas que a municipalidade alugaria. As novas ruas, como Pagford descobriu com­pungido, estavam ocupando parte das terras que ficavam entre a cidade e o vilarejo.

Ninguém ignorava que, desde a guerra, a demanda por moradias bara­tas tinha aumentado muito, mas Pagford, cuja atenção tinha se desviado momentaneamente da chegada de Aubrey Fawley, começou a desconfiar das intenções de Yarvil. O rio e a colina, barreiras naturais que, no passa­do, haviam garantido a soberania do vilarejo, pareciam ir se reduzindo no mesmo ritmo em que se multiplicavam as casas de tijolos vermelhos. Yar­vil foi ocupando cada centímetro de terra como bem entendia e só parou quando atingiu o limite norte de Pagford.

O vilarejo, então, suspirou com um alívio que logo se revelou prematu­ro. O loteamento de Cantermill não tardou a ser considerado insuficiente para suprir as necessidades da população, e o município partiu em busca de mais terras para ocupar.

Foi então que Aubrey Fawley (que, para os habitantes de Pagford, ainda era mais um mito que alguém de carne e osso) tomou a decisão que desencadeou uma rixa virulenta que vinha se arrastando há sessenta anos.

Não vendo serventia para os poucos terrenos cobertos de mato que ficavam perto do novo loteamento, ele vendeu a terra para o Conselho Municipal de Yarvil por um bom preço e usou o dinheiro para restaurar os lambris de madeira que revestiam o salão da Sweetlove House.

Pagford não podia conter a sua fúria. Os campos da mansão Sweetlo­ve eram uma peça importante do seu bastião contra a cidade que vinha tentando invadi-la. Agora, a antiga fronteira do vilarejo estava prestes a ser comprometida por uma avalanche de yarvilianos carentes. Assembléias agitadíssimas, longas cartas para o jornal e para o Conselho Municipal, protestos perante as autoridades competentes — nada disso foi capaz de reverter o rumo da situação.

As tais casas recomeçaram a avançar, mas com uma diferença: no breve intervalo de tempo que se seguiu ao fim das obras das primeiras residências, a municipalidade percebeu que podia fazer construções ain­da mais baratas. Essa nova leva já não era de tijolos vermelhos, mas de concreto e estruturas metálicas. Esse novo loteamento era agora conhe­cido como Fields, em lembrança das terras onde ele havia surgido, e se distinguia de Cantermill pela arquitetura e pelo material inferior usado na sua construção.

Foi numa das casas de aço e concreto de Fields, já bem desvirtuadas e deterioradas em fins dos anos 1960, que Barry Fairbrother nasceu.

 

Apesar das delicadas afirmações do Conselho de Yarvil, insistindo que as despesas com o novo bairro ficariam exclusivamente por sua conta, Pag­ford — como os seus enfurecidos moradores haviam previsto desde o co­meço — logo viu chegarem novas taxas. Se o fornecimento da maioria dos serviços e a manutenção das casas cabiam ao município, havia ainda alguns encargos que, daquele seu jeito autoritário, Yarvil resolveu delegar ao distrito: a manutenção das calçadas, da iluminação e do mobiliário urbano, dos pontos de ônibus e espaços públicos.

Os grafites floresceram nas pontes existentes ao longo da estrada que ligava Pagford a Yarvil, os pontos de ônibus de Fields foram alvo de vandalismo, os adolescentes do bairro enchiam o parque infantil de garrafas de cerveja e atiravam pedras nas lâmpadas dos postes. Uma calçada do vilarejo onde moradores e turistas tanto gostavam de pas­sear tornou-se ponto de encontro — ou até mesmo coisa pior, como dizia em tom sombrio a mãe de Howard Mollison — de rapazes e mo­ças do novo bairro. Cabia ao Conselho Distrital de Pagford a limpeza, os consertos e a substituição do que se quebrasse, e as verbas atribuídas por Yarvil eram consideradas insuficientes para o tempo exigido e as despesas necessárias.

Mas, entre todos esses transtornos indesejados, nada deixava os mora­dores do vilarejo mais irritados e amargurados que o fato de a educação das crianças de Fields ser da competência da escola primária local, a St. Thomas's Church of England. Eles tinham o direito de usar o tão cobi­çado uniforme azul e branco, brincar no pátio onde ficava a pedra funda­mental inaugurada por Lady Charlotte Sweetlove e fazer a maior algazar­ra nas minúsculas salas de aula com aquele sotaque estridente de Yarvil.

Em pouco tempo, todos diziam que morar em Fields tinha se tornado o objetivo de vida de todas as famílias carentes de Yarvil que tivessem fi­lhos em idade escolar. Dizia-se até que havia um intenso vaivém na linha divisória entre Cantermill e Fields, mais ou menos como acontecia com os mexicanos que entravam no Texas. A sua linda escola, verdadeiro cha­mariz para profissionais vindos de fora, atraídos pelas salas pequenas, pelas carteiras com tampo corrediço, pelo velho prédio de pedra e pelo pátio com seu belíssimo gramado, ficaria superlotada e infestada pela prole de pedintes, drogados e mães que tinham cada filho de um pai diferente.

Esse roteiro de pesadelo nunca se concretizou plenamente porque, em­bora houvesse vantagens incontestáveis na St. Thomas, havia também alguns problemas: a necessidade de comprar o uniforme ou então preencher todos os requisitos exigidos para se qualificar como carente e ter direito a recebê-lo de graça; a necessidade de conseguir passes de ônibus e de acordar mais cedo para que os filhos chegassem na hora. Algumas famílias do novo bairro acha­ram esses obstáculos intransponíveis e mandaram os filhos para as grandes escolas que não exigiam uniforme e tinham sido construídas para atender à população de Cantermill. A maioria dos alunos de Fields matriculados na St. Thomas se integrou perfeitamente com os colegas de Pagford. Chegou-se mesmo a admitir que alguns deles eram ótimas crianças. Barry Fairbrother circulava, pois, pela escola toda, como aluno popular e verdadeiro palhaço da turma, só percebendo, de quando em quando, que o sorriso de um pai ou uma mãe do vilarejo murchava quando ele dizia onde morava.

Mesmo assim, a St. Thomas via-se às vezes obrigada a admitir um alu­no do novo bairro com índole visivelmente questionável. Krystal Weedon estava morando com a bisavó, na Hope Street, quando chegou a época de se matricular na escola. Portanto, não havia como impedir o seu ingresso, muito embora, quando ela voltou a viver com a mãe em Fields, aos oito anos de idade, os moradores de Pagford tenham nutrido esperanças de vê-la deixar a St. Thomas de uma vez por todas.

A sua lenta passagem pela escola pareceu até a passagem de um bode pelo corpo de uma jibóia: absolutamente visível e desconfortável para ambas as partes envolvidas. Não que Krystal estivesse sempre presente: durante boa parte da sua permanência ali, ela recebeu aulas individuais de um professor especial.

Por um malévolo golpe do destino, Krystal era da mesma turma que Lexie, a neta mais velha de Howard e Shirley. Houve uma ocasião em que Krystal deu um soco na cara de Lexie Mollison com tanta força que lhe arrancou dois dentes, e o fato de eles já estarem moles não foi considerado uma circunstância atenuante pelos pais e pelos avós da menina.

Foi a convicção de que turmas inteiras de Krystals estariam à sua espera na Escola Secundária Winterdown que acabou levando Miles e Saman­tha Mollison a matricular ambas as filhas na St. Anne, uma escola particu­lar de Yarvil, só para meninas, onde as duas passavam a semana inteira em regime de internato. A constatação de que as netas haviam sido expulsas, por Krystal Weedon, do lugar que lhes cabia por direito logo se tornou o exemplo favorito de Howard para demonstrar como a influência do novo bairro era nefasta para a vida de Pagford.

 

Aquelas primeiras manifestações diante da afronta experimentada por Pag­ford acabaram se transformando numa sensação mais discreta, embora não menos poderosa, de ressentimento. O bairro de Fields tinha vindo poluir e corromper um lugar de paz e de beleza, e os habitantes mais in­flamados do vilarejo continuavam determinados a extirpar o loteamento. Revisões de limites foram solicitadas e realizadas, e reformas do governo local se alastraram pela área sem efetuar qualquer modificação efetiva: Fields continuava a fazer parte do distrito de Pagford. Quem chegava ao vilarejo logo descobria que detestar o novo bairro era um passaporte ne­cessário para se obter as boas graças do núcleo central de pagfordianos que mandava e desmandava nas coisas por ali.

Mas agora, finalmente — uns sessenta anos depois que o velho Au­brey Fawley entregou aquele pedaço de terra fatal a Yarvil; depois de dé­cadas de trabalho paciente, bolando estratégias, fazendo petições, cole­tando informações e discutindo com subcomitês —, a facção anti-Fields de Pagford se encontrava quase às portas da vitória.

A recessão estava obrigando as autoridades a simplificar, cortar, reorga­nizar. No Conselho Municipal de Yarvil, havia quem vislumbrasse vanta­gens para as próximas eleições caso o pequeno bairro caindo aos pedaços — e provavelmente destinado a ficar à míngua em função das medidas de austeridade impostas pelo governo nacional — fosse simplesmente arre­banhado para que os pobres-diabos dos seus moradores viessem se incluir na lista dos seus eleitores.

Pagford tinha o seu próprio representante em Yarvil: o conselheiro municipal Aubrey Fawley. Não se tratava do homem que possibilitou a construção de Fields, mas do seu filho, o "jovem Aubrey", que havia her­dado a Sweetlove House e passava a semana inteira trabalhando como agente financeiro em Londres. Havia uma leve dose de penitência no en­volvimento de Aubrey com as questões locais, como se ele se sentisse na obrigação de consertar o mal que o pai, num gesto tão impensado, tinha feito ao vilarejo. Ele e a esposa, Julia, patrocinavam a exposição agrícola e entregavam os prêmios aos vencedores, participavam de qualquer comitê que existisse por ali e todo ano davam uma festa de Natal cujos convites eram cobiçadíssimos.

Um dos maiores orgulhos de Howard, algo que o deixava encantado, era saber que ele e Aubrey eram aliados tão próximos na incessante ba­talha para remover o bairro popular de Fields. Afinal, Aubrey circulava nas altas rodas dos negócios, o que provocava o respeito fascinado do dono da delicatéssen. Toda noite, depois de fechar a loja, Howard pe­gava a gaveta da sua velha caixa registradora e contava as moedas e as notas sujas antes de guardá-las no cofre. Já Aubrey nunca botava a mão em dinheiro durante o expediente e, mesmo assim, era capaz de fazer com que quantias inimagináveis circulassem por todos os continentes. Ele administrava e multiplicava aquelas fortunas e, quando os presságios eram menos auspiciosos, mantinha-se impávido, vendo-as desaparecer. Aos olhos de Howard, Aubrey tinha uma mística que nem mesmo uma crise financeira mundial seria capaz de abalar. O dono da delicatéssen ficava irritado com quem quer que culpasse pessoas como Aubrey pela confusão em que o país se encontrava. Ninguém reclamava quando tudo estava correndo bem, era a opinião tantas vezes por ele repetida. Ho­ward concedia ao seu aliado o respeito devido a um general ferido numa guerra impopular.

Nesse meio-tempo, na qualidade de membro do Conselho Municipal, Aubrey tinha acesso a todo tipo de estatísticas interessantes e estava em condições de transmitir a Howard uma boa dose de informações sobre o tão problemático satélite de Pagford. Os dois homens sabiam exatamente que porcentagem dos recursos públicos era destinada às ruas destruídas de Fields, sem qualquer retorno ou resultado visível. Sabiam também que ninguém ali era dono da casa onde morava (ao passo que quase todas as casas de tijolos de Cantermill eram hoje propriedade dos seus moradores e tinham passado por uma verdadeira transformação, com jardineiras nas janelas, varandas e gramados bem-tratados). E sabiam que quase dois ter­ços dos habitantes de Fields viviam exclusivamente do dinheiro público e que um número considerável já tinha cruzado as portas da Clínica de Reabilitação e Tratamento para Dependência Química Bellchapel.

 

Para Howard, a visão de Fields era algo que não lhe saía da cabeça, como a lembrança de um pesadelo: janelas vedadas por tábuas repletas de obs­cenidades, adolescentes fumando dentro dos abrigos constantemente de­predados dos pontos de ônibus, parabólicas por todo canto, viradas para o céu como corolas despetaladas de sinistras flores de metal. Muitas vezes perguntava — simples pergunta retórica, é claro — por que aquela gente não se organizava e transformava aquele lugar. O que os impedia de fazer uma vaquinha com os seus parcos recursos e comprar um cortador de grama comunitário? Isso, porém, nunca aconteceu: Fields estava sempre esperando que os conselhos, distrital e municipal, limpassem, consertas­sem, cuidassem da manutenção. Dar isso, dar aquilo, dar aquilo outro...

Lembrava-se então da Hope Street da sua infância, com os seus minús­culos quintais nos fundos das casas, uns quadrados de terra pouco maiores que uma toalha de mesa. A maioria deles, porém, inclusive o da sua mãe, era inteiramente plantada com feijão-trepador e batata. Na sua opinião, não havia nada que impedisse os moradores de Fields de ter uma horta, nada que os impedisse de dar alguma educação àquela filharada sinistra, encapuzada, sempre às voltas com latas de spray; nada que os impedisse de se unir e, em mutirão, dar cabo da sujeira e consertar tudo que estava caindo aos pedaços; nada que os impedisse de se lavar e procurar empre­go... Absolutamente nada. Só podia ser uma coisa, era a conclusão a que chegava necessariamente: eles tinham escolhido viver daquele jeito por livre e espontânea vontade, e a aparência de degradação um tanto amea­çadora do local nada mais era que uma manifestação física de ignorância e indolência daquela gente.

Já Pagford reluzia com uma espécie de brilho moral, na visão de Howard. Como se a alma coletiva da comunidade se manifestasse nas suas ruas calçadas de paralelepípedos, nas suas colinas, no seu casario pitores­co. Na sua opinião, a sua terra natal era muito mais que um conjunto de velhos prédios, um rio de águas rápidas e bordejado de árvores, a majesto­sa silhueta da abadia lá no alto ou as jardineiras floridas na pracinha. Para ele, o vilarejo era um ideal, um modo de ser, uma microcivilização que resistia bravamente a um declínio nacional.

"Sou um pagfordiano legítimo", dizia Howard aos turistas que apare­ciam por ali no verão, "nascido e criado nesta cidade". E, quando dizia isso, estava fazendo a si mesmo um imenso elogio disfarçado de banali­dade. Nasceu em Pagford e ia morrer ali, e jamais sonhou em ir embora, nem desejou mudar de ares: bastava-lhe ver a passagem das estações transformar os bosques e o rio das redondezas, a praça florescer na primavera e cintilar na época do Natal.

Barry Fairbrother sabia disso muito bem. Aliás, foi algo que ele disse. E riu, sentado do outro lado da mesa no salão da igreja. Riu bem na cara do presidente do Conselho. "Sabe, Howard, para mim, você é Pagford." E Howard, sem se abalar a mínima (pois sempre rebateu com gozações as gozações de Barry), respondeu: "Não sei se foi essa a sua intenção, Barry, mas fique sabendo que acaba de me fazer um tremendo elogio."

E riu também. Podia se dar ao luxo de rir. A única ambição que ainda tinha na vida estava logo ali, ao alcance da sua mão: o retorno de Fields a Yarvil parecia coisa certa e iminente.

E então, dois dias antes de Barry Fairbrother cair morto num estacio­namento, Howard ficou sabendo, de fonte mais que segura, que o seu antagonista tinha infringido todas as regras do jogo ao enviar para o jornal local um texto falando da bênção que fora para Krystal Weedon ser edu­cada na St. Thomas.

A idéia de ver Krystal Weedon sendo exibida aos leitores como exem­plo da integração bem-sucedida entre Fields e Pagford (nas palavras de Howard) seria cômica se não fosse trágica... Sem dúvida alguma Fairbro­ther ensaiou bem a garota, e a verdade sobre a sua boca suja, as aulas tantas vezes interrompidas, as lágrimas das outras crianças, as constantes remoções da casa da mãe e as outras tantas reintegrações se perderia em meio a um monte de mentiras.

Howard confiava no bom senso dos seus concidadãos; temia, porém, as invencionices jornalísticas e a interferência de gente bem-intencionada, mas ignorante. A sua objeção era tanto uma questão de princípios quanto um assunto pessoal: ainda não havia esquecido a cena da neta soluçando nos seus braços, com a gengiva sangrando no lugar dos dentes que tinham caído, e ele tentando consolá-la, prometendo que a fada do dente ia lhe trazer mais de um presente.

 

                               Terça-feira

Na segunda manhã depois da morte de Barry, Mary Fairbrother acordou às cinco horas. Tinha dormido na cama do casal junto com Declan, o filho de doze anos, que veio se enfiar ali, aos prantos, pouco depois da meia-noite. Agora que o menino dormia a sono solto, Mary saiu do quarto de mansinho e desceu para a cozinha, onde poderia chorar sem problemas. Cada hora que se passava só fazia aumentar a sua dor, pois a deixava cada vez mais lon­ge do marido e era apenas uma pequena amostra da eternidade que teria de viver sem ele ao seu lado. Estava sempre esquecendo que Barry não ia voltar nunca mais e que não podia correr para ele em busca de consolo.

Quando a sua irmã e o seu cunhado apareceram para fazer o café, Mary pegou o celular do marido e foi para o escritório procurar uns te­lefones naquela imensa lista de contatos. Mal tinha começado, porém, o aparelho tocou na sua mão.

Alô? — murmurou ela.

Ah, bom dia! Estou procurando Barry Fairbrother. É Alison Jenkins que está falando. Da Gazeta de Yarvil e Adjacências.

Aos ouvidos de Mary, o tom desembaraçado da voz da jovem soou alto e terrível como uma fanfarra triunfal, um barulho estrondoso que chegou a obliterar o sentido das palavras.

Como?

É Alison Jenkins, da Gazeta de Yarvil e Adjacências. Queria falar com Barry Fairbrother. Com relação ao artigo dele sobre Fields.

Ah! — balbuciou Mary.

Ele não mandou nenhuma informação sobre a garota. O combina­do foi que ela nos daria uma entrevista. A tal da Krystal Weedon.

Para Mary, cada uma daquelas palavras era um verdadeiro tapa. Numa atitude um tanto perversa, ficou sentada na velha cadeira giratória do ma­rido, quietinha, deixando que todos aqueles golpes a atingissem.

A senhora está ouvindo?

Estou — respondeu Mary, com a voz embargada. — Estou ouvin­do, sim.

Sei que o sr. Fairbrother faz questão de estar presente quando entre­vistarmos a Krystal, mas o tempo está passando...

Ele não vai poder comparecer — disse Mary, e a voz lhe saiu quase como um guincho. — Ele não vai poder falar nunca mais sobre o maldito Fields, nem sobre qualquer outra coisa! Nunca mais!

Como é? — indagou a moça do outro lado da linha.

O meu marido morreu, ok? Morreu! O que significa que agora Fields vai ter que se virar sem ele.

As suas mãos tremiam tanto que ela mal conseguia segurar o celular e, durante os minutos que levou até poder desligá-lo, teve certeza de que a jornalista a ouviu soluçar. Lembrou, então, que a maior parte do último dia que Barry passou nesta terra, e que era o seu aniversário de casamento, tinha sido dedicada à sua obsessão pelo bairro e por Krystal Weedon. Num acesso de raiva, atirou o telefone longe: ele foi bater no porta-retratos com a foto dos seus quatro filhos e caiu no chão, lá do outro lado da sala. Mary começou a chorar e gritar. Tanto a irmã quanto o cunhado vieram corren­do ver o que estava acontecendo.

De início, ela só fazia repetir:

Fields, maldito Fields...

Foi lá que Barry e eu crescemos — murmurou o cunhado, mas resolveu não dizer mais nada, temendo que Mary ficasse ainda mais his­térica.

 

A assistente social Kay Bawden e a sua filha Gaia tinham vindo de Lon­dres há quatro semanas e eram as mais novas moradoras de Pagford. Kay ignorava inteiramente a velha rixa envolvendo o bairro popular: para ela, Fields era apenas o lugar onde vivia a maior parte das pessoas que ela aten­dia. Tudo que sabia sobre Barry Fairbrother era que a morte desse homem tinha provocado aquela cena lamentável na sua cozinha, quando o seu namorado, Gavin, saiu correndo, fugindo dela e dos seus ovos mexidos e, com isso, pondo por terra todas as esperanças surgidas quando fizeram amor na noite anterior.

Naquela terça-feira, Kay passou a sua hora de almoço dentro do carro, num trecho do acostamento da estrada que ia de Pagford a Yarvil, comen­do um sanduíche e lendo uma pilha considerável de anotações. Uma das suas colegas havia tirado uma licença médica, por motivo de estresse, o que fez com que um terço dos casos sob a sua responsabilidade viesse cair nas costas da recém-chegada. Pouco depois da uma hora, ela tomou o caminho de Fields.

Já tinha visitado o bairro inúmeras vezes, mas ainda não estava acostu­mada com aquele labirinto de ruas. Acabou finalmente encontrando a Foley Road e, de longe, identificou a casa que acreditava ser a dos Weedon. A ficha não deixava dúvidas sobre o que ela devia encontrar pela frente, e, à primeira vista, tudo correspondia plenamente às suas expectativas.

Junto à parede da frente, havia uma pilha de entulho: sacolas cheias de lixo misturadas com roupas velhas e fraldas sujas. Parte daquele lixo tinha caído ou sido jogada no minúsculo canteiro coberto de mato, mas o grosso estava amontoado debaixo de uma das duas janelas do andar térreo. No meio do tal canteiro, havia um velho pneu careca que alguém havia mu­dado de lugar recentemente, pois, a poucos centímetros de distância, dava para ver um círculo meio amarelado onde a grama morta tinha ficado amassada. Já tinha tocado a campainha, quando avistou uma camisinha usada brilhando no chão aos seus pés, parecendo até o tênue casulo de alguma larva gigantesca.

Estava sentindo aquela leve apreensão que nunca conseguiu superar inteiramente, mas aquilo não era nada comparado ao estado de nervos em que ficava na hora de bater em casas desconhecidas quando começou a trabalhar. Nessa época, apesar de todo o treinamento, apesar de estar geralmente em companhia de algum colega, chegou a ficar mesmo com medo em certas ocasiões. Cachorros bravos, homens brandindo facas, crianças com machucados esquisitíssimos: encontrou tudo isso, e até coisa pior, nesses anos que passou entrando na casa de estranhos.

Ninguém veio atender, mas, pela janela entreaberta que ficava à sua esquerda, dava para ouvir uma criança pequena choramingando. Tentou então bater à porta. Um pedacinho de tinta creme se soltou e foi cair na ponta do seu sapato. Kay se lembrou até do estado deplorável da sua nova casa. Seria tão bom se Gavin se oferecesse para ajudar a melhorar um pouco aquilo... Mas ele não falou nada... Às vezes, repassava as coisas que ele não tinha dito ou não tinha feito, como um agiota examinando pro­missórias, e ficava chateada e furiosa, decidida a executar aquelas dívidas.

Bateu de novo, mais cedo do que teria feito normalmente, se não esti­vesse querendo se livrar dos próprios pensamentos, e, desta vez, uma voz distante respondeu:

Tô indo, pô!

A porta se abriu, revelando uma mulher que aparentava, a um só tem­po, ser velha e criança, com uma camiseta azul-clara bem suja e calças de pijama de homem. Era da altura de Kay, mas extremamente mirrada. Os ossos do seu rosto e o esterno despontavam, salientes, sob a pele fina e branca; o cabelo, nitidamente pintado em casa, ressecado e de um verme­lho vivo, parecia uma peruca no alto de um crânio; as suas pupilas eram minúsculas, e ela praticamente não tinha seios.

Olá! Você é Terri? Sou Kay Bawden, do Serviço Social. Estou subs­tituindo Mattie Knox.

Os braços finos e acinzentados da mulher estavam cheios de marquinhas de picadas e havia uma ferida aberta, em carne viva, na parte interna de um dos seus antebraços. Uma grande cicatriz, que cobria parte do seu braço direito e subia até o pescoço, dava à pele daquele local a aparência de um plástico lustroso. Em Londres, Kay tinha conhecido uma depen­dente química que pôs fogo na casa acidentalmente e só foi perceber o que estava acontecendo quando já era tarde demais.

Ah, tá — disse Terri após uma pausa mais longa que o normal. Quando falava, parecia muito mais velha, pois lhe faltavam vários dentes. Virou as costas para Kay e deu alguns passos trôpegos pelo corredor escu­ro. A assistente social foi atrás dela. A casa cheirava a comida estragada, suor, lixo acumulado. Terri levou Kay até a primeira porta à esquerda, que se abria para uma minúscula sala de estar.

Ali dentro, não havia livros, quadros, fotos ou televisão. Havia apenas duas velhas poltronas imundas, uma estante quebrada e muito lixo pelo chão. Num canto, junto à parede, uma pilha de caixas de papelão novinhas em folha destoava inteiramente do ambiente.

No meio da sala, estava um garotinho de pernas de fora, usando uma camiseta e uma fralda que já devia ter sido trocada há tempos. Pelas infor­mações do dossiê, Kay sabia que ele tinha três anos e meio. O seu choro parecia inconsciente e sem motivo, como o ruído de um motor que só servisse para indicar que ele estava ali, no momento atracado com uma daquelas minúsculas caixinhas de cereais.

Esse aí deve ser o Robbie — disse Kay.

Ao ouvir o próprio nome, o menino olhou para ela, mas sem parar de choramingar.

Terri empurrou uma velha lata de biscoitos toda arranhada que tinha ficado esquecida em cima de uma das poltronas esmolambadas e se sen­tou, toda encolhida, olhando Kay por detrás das pálpebras caídas. A assis­tente social se instalou na outra poltrona, em cujo braço se equilibrava um cinzeiro abarrotado. Algumas guimbas tinham caído no assento, e Kay podia senti-las sob as coxas.

Oi, Robbie — disse ela, abrindo o dossiê de Terri.

A criança continuou choramingando e sacudindo a tal caixinha: algu­ma coisa estava chocalhando ali dentro.

O que é que tem aí? — indagou Kay.

Ele não respondeu, mas sacudiu a caixa com mais força. Um bonequinho plástico saiu voando, fez um arco no ar e foi cair atrás das tais caixas de papelão. Robbie começou a chorar. Kay olhou para Terri, que observa­va o filho com o rosto absolutamente impassível. Depois de algum tempo, ela finalmente murmurou:

Que foi, Robbie?

Será que dá pra tirar ele de lá? — perguntou Kay, satisfeita da vida por ter enfim uma desculpa para levantar e tirar aquela sujeira das pernas. — Vamos ver!

Chegou a cabeça bem perto da parede, tentando espiar pela fresta atrás das caixas. A tal figurinha não tinha caído muito no fundo. Enfiou a mão pela fresta, pois não dava para puxar aquelas caixas de tão pesadas que eram. Kay conseguiu apanhar o boneco e, quando o teve nas mãos, viu que era um homenzinho atarracado, parecendo um Buda, inteiramente roxo.

Pronto! — disse ela.

Robbie parou de choramingar. Pegou o bonequinho, tornou a botá-lo dentro da caixa de cereais e recomeçou a sacudi-la.

A assistente social passou os olhos pela sala. Debaixo da estante quebra­da viu dois carrinhos de brinquedo virados de cabeça para baixo.

Você gosta de carro? — perguntou ao menino, apontando para os brinquedos.

Robbie não acompanhou o movimento da mão de Kay, mas apertou os olhos para enxergá-la, com uma expressão meio intrigada, meio curiosa. Depois, foi apanhar um dos carrinhos e o trouxe para mostrar a ela.

Vrumm — fez ele. — Calo.

Isso mesmo — exclamou Kay. — Que legal! Um carro. Vrumm, vrumm.

Voltou a se sentar e tirou o bloco da bolsa.

E aí, Terri, como andam as coisas?

Tudo bem — respondeu a mulher depois de um instante de silêncio.

Bom, só para explicar o que aconteceu: Mattie entrou de licença porque está doente, e então eu vim substituí-la. Vou precisar repassar algu­mas informações que ela me transmitiu, para ver se não houve nenhuma mudança desde que ela veio aqui na semana passada, ok? Então, vamos ver... Robbie está na escola, não é? Dois dias em meio período e dois em horário integral.

Parecia que a voz de Kay tinha de percorrer uma distância considerável para chegar até Terri. Era como falar com alguém que estivesse sentado no fundo de um poço.

É — disse a mulher, depois de mais alguns instantes de silêncio.

E como ele está indo? Está gostando?

Robbie enfiou o carrinho dentro da caixa de cereais. Pegou uma das guimbas de cigarro que tinha caído da calça comprida de Kay e a esmagou tanto no carrinho quanto no tal Buda roxo.

Tá — respondeu Terri, sonolenta.

Mas Kay estava observando atentamente as últimas anotações que Mattie havia feito antes de entrar de licença.

Não era para ele estar lá hoje, Terri? Terça não é dia de escola?

A mulher parecia estar lutando contra o sono. Uma ou duas vezes che­gou até a cabecear.

A Krystal ia levar ele, mas não levou — disse ela enfim.

Krystal é a sua filha, não é? Quantos anos ela tem?

Quatorze — disse Terri, com ar meio vago. — E meio.

Segundo as informações do dossiê, Krystal tinha dezesseis anos. Desta

vez, houve um bom momento de silêncio.

Tinha duas canecas lascadas no pé da poltrona de Terri. O líquido escuro dentro de uma delas parecia até sangue. Os braços da mulher esta­vam cruzados diante do peito quase liso.

Eu vesti ele — acrescentou ela, como se tivesse de arrancar as pala­vras lá do fundo da cabeça.

Desculpe, mas tenho que fazer essa pergunta — disse Kay. — Você usou hoje de manhã?

Terri levou à boca a mão ossuda, que mais parecia uma garra.

Não.

Qué cocô — disse Robbie saindo porta afora.

Não vai com ele? — indagou Kay, vendo o menino desaparecer e ouvindo-o subir a escada.

Precisa, não. Ele se vira sozinho — respondeu Terri, com voz ar­rastada, e deixou a cabeça pender sobre o punho erguido, com o cotovelo apoiado na poltrona.

Póta! Póta! — gritou Robbie lá do andar de cima.

E as duas ouviram as batidas na madeira. Terri não se mexeu.

Quer que eu vá ajudá-lo? — perguntou Kay.

Tá.

A assistente social subiu a escada e abriu a porta para Robbie. O lugar fedia muito. A privada era cinzenta, com várias linhas marrons, marcando a altura da água em ocasiões diferentes. E não tinham dado a descarga. Kay tratou de fazer isso antes de deixar que Robbie subisse para se sentar ali. O menininho fechou a cara e fez muita força, indiferente à presença daquela estranha. Ouviu-se o barulho de algo caindo na água e o ar já pútrido daquele banheiro ganhou mais um reforço. Robbie então desceu da privada e puxou a fralda para cima, sem se limpar. Kay mandou que ele voltasse e tentou convencê-lo a se limpar sozinho, mas, como aquela atividade lhe era aparentemente desconhecida, ela própria decidiu fazê-lo. O bumbum da criança estava ferido: todo assado, vermelho e irritado. A fralda tinha cheiro de amônia. A moça tentou tirá-la, mas Robbie gritou, esperneou, conseguiu se desvencilhar e voltou correndo para a sala com a fralda quase caindo. Kay queria lavar as mãos, mas não tinha sabão em lugar nenhum. Prendendo a respiração, saiu e fechou a porta do banheiro às suas costas.

Antes de descer, deu uma olhada nos quartos. Os três transbordavam, despejando parte do seu conteúdo no corredor já abarrotado. Todos ali dormiam em colchões no chão. Aparentemente, Robbie dormia no quarto com a mãe, pois havia uns poucos brinquedos no meio da roupa suja espa­lhada pelo chão: umas coisas de plástico, bem vagabundas e para crianças menores que ele. Para surpresa de Kay, o edredom tinha capa e os traves­seiros, fronhas.

Lá na sala, Robbie tinha recomeçado a choramingar, esmurrando a pilha de caixas de papelão. Terri só fazia olhar, com os olhos semicerrados. Antes de sentar, Kay deu umas batidinhas no assento da poltrona.

Você está no programa de metadona lá na Clínica Bellchapel, não é mesmo, Terri?

Hum, hum — respondeu ela, sonolenta.

E como está indo?

Com a caneta na mão, Kay ficou esperando, fingindo que a resposta não estava bem ali, à sua frente.

Continua indo à clínica, Terri? — perguntou ela.

Fui na semana passada. Vou na sexta.

Robbie ainda estava socando as caixas.

Sabe dizer qual a dose de metadona que está tomando?

Cento e quinze miligramas — disse Terri.

Não era de espantar que Terri se lembrasse disso, mas não soubesse a idade da filha...

Mattie diz aqui que a sua mãe estava ajudando a cuidar de Robbie e Krystal. Ainda está?

Robbie atirou todo o peso do corpinho socado de encontro à pilha de caixas, que vacilou.

Cuidado, Robbie — disse Kay.

Deixa isso aí — exclamou Terri, e, pela primeira vez, Kay percebeu um tom que era quase desperto naquela sua voz morta.

Robbie recomeçou a dar socos nas caixas, aparentemente só pelo pra­zer de ouvir aquele barulho surdo.

A sua mãe continua ajudando a cuidar de Robbie, Terri?

Mãe, não, vó.

Avó de Robbie?

Minha. Ela tá... Ela não tá legal.

Kay voltou a olhar para Robbie, com a caneta a postos. O menino não parecia abaixo do peso: deu para notar isso quando o viu, quase nu, enquanto limpava o seu bumbum. A camiseta que usava estava suja, mas, quando se debruçou sobre ele, sentiu, não sem surpresa, que o seu cabelo tinha cheiro de xampu. Não havia nenhum machucado nos seus braços e pernas branquíssimos, mas havia aquela fralda frouxa e encharcada. E ele já tinha três anos e meio...

Qué papá — gritou o menino, dando uma última sacudidela inútil nas caixas de papelão. — Qué papá!

Pega um biscoito — balbuciou Terri, mas não se mexeu de onde estava. Os gritos de Robbie viraram soluços ruidosos. A mãe não fez men­ção de se levantar. Era impossível continuar falando com aquela gritaria.

Quer que eu pegue um para ele? — perguntou Kay.

Tá bom.

Robbie veio correndo atrás dela até a cozinha, que era quase tão suja quanto o banheiro. Não havia nada ali, além de uma geladeira, um fogão e uma máquina de lavar. Na bancada da pia, só se viam pratos sujos, outro cinzeiro abarrotado, sacos plásticos e pão mofado. O linóleo do chão es­tava tão pegajoso que grudava na sola dos sapatos de Kay. A lixeira estava transbordando, e, bem no alto, uma embalagem de pizza se equilibrava precariamente.

Aqui — disse o menino, batendo com o dedinho no armário da parede, sem olhar para Kay. — Aqui.

No tal armário, havia mais comida do que Kay poderia supor: latas, um pacote de biscoito, um pote de café instantâneo. Pegou dois biscoitos do pacote e os entregou a Robbie. Ele os agarrou e voltou correndo para perto da mãe.

Quer dizer que você está gostando da escola, Robbie? — perguntou a assistente social, dirigindo-se ao menino, que devorava os biscoitos, sen­tado no chão. Mas ele não respondeu.

Gosta, sim — disse Terri, ligeiramente mais desperta. — Né, Rob­bie? Gosta, sim.

Quando ele foi para a escola pela última vez, Terri?

Ontem.

Impossível — retrucou Kay, fazendo umas anotações. — Ontem foi segunda-feira, segunda não é dia de escola.

Quê?

Perguntei sobre a escola. Hoje era dia de Robbie estar lá. Preciso saber qual foi a última vez que ele foi para a escola.

Já disse. A última vez...

Kay ainda não tinha visto os olhos da mulher tão abertos quanto naque­le momento. O tom da sua voz continuava apático, mas havia um certo antagonismo lutando para vir à tona.

Você é sapatão? — perguntou ela.

Não — respondeu Kay, sem parar de escrever.

Pois parece — observou Terri.

Kay continuou escrevendo.

Suco! — gritou Robbie, com o queixo todo sujo de chocolate.

Desta vez, Kay não se moveu. Depois de um bom tempo, Terri deu um pulo da cadeira e se embrenhou pelo corredor. Debruçando-se um pouco, Kay ergueu a tampa da caixa de biscoitos que a outra tinha empurrado para se sentar. Lá dentro havia uma seringa, um chumaço de algodão encardido, uma colher meio enferrujada e um saco de polietileno. A assis­tente social fechou bem a tampa, vendo que Robbie a olhava. Ouviram-se uns barulhos ao longe, e, em seguida, Terri voltou trazendo uma caneca de suco, que empurrou na direção do filho.

Toma — disse ela, dirigindo-se mais a Kay que ao menino. E voltou a se sentar. Desta vez, porém, se atrapalhou e bateu no braço da poltrona. Deu para ouvir o choque dos ossos com a madeira, mas, aparentemente, Terri não sentiu dor alguma. Recostou-se nas almofadas deformadas e fi­cou olhando para a visitante com uma vaga indiferença.

Kay havia lido o dossiê de ponta a ponta. Sabia que quase tudo que pudesse ter algum valor na vida de Terri Weedon tinha sido sugado pelo buraco negro do vício em heroína. Sabia que aquilo tinha lhe custado dois filhos e que ela mal se dava conta da existência dos outros dois. Sabia que ela tinha se prostituído para comprar heroína, que tinha se envolvido em todo tipo de delitos e que, atualmente, estava em tratamento de reabilita­ção pela enésima vez.

Mas não sentir, não se preocupar... Neste exato momento, pensou Kay, ela está mais feliz que eu.

 

No começo do segundo tempo do turno da tarde, Stuart "Bola" Wall saiu da escola. Não havia nada de impulsivo na sua decisão de matar aula: sim­plesmente tinha resolvido, na noite anterior, não assistir aos dois tempos de informática que eram os últimos do dia. Podia ter escolhido qualquer outra matéria, mas acontece que o seu melhor amigo, Andrew Price (que Bola chamava de Arf), estava em outra turma de informática e, apesar de todos os esforços que fez neste sentido, Bola não conseguiu ser transferido para ficar junto com ele.

Provavelmente um e outro sabiam muito bem que, na sua amizade, admiração era um traço quase unilateral: mais de Andrew para Bola que vice-versa. Mas este último era o único que desconfiava que precisava muito mais de Andrew do que o amigo precisava dele. De uns tempos para cá, vinha considerando essa dependência uma fraqueza. Na noite an­terior, porém, pensou que, enquanto as coisas continuassem assim, podia perfeitamente matar dois tempos de uma aula em que não tinha mesmo a companhia de Arf.

Um informante de toda a confiança tinha lhe garantido que a única maneira de conseguir sair da Winterdown sem que ninguém o visse de uma janela qualquer era pulando o muro lateral, perto do bicicletário. Foi exatamente o que ele fez, indo cair na ruela estreita que ficava do outro lado. Aterrissou sem maiores problemas e saiu andando. Logo dobrou à esquerda, dirigindo-se à rua principal, suja e movimentada.

E lá se foi ele, na maior tranqüilidade. Acendeu um cigarro e seguiu em frente, passando por lojinhas decrépitas. Cinco quadras adiante, vol­tou a dobrar à esquerda, entrando pela primeira das ruas que vão dar em Fields. Sempre andando, afrouxou a gravata do uniforme com uma das mãos, mas não a tirou. Qual o problema de todo mundo saber de cara que ele era aluno da escola? Aliás, nunca lhe passou pela cabeça dar um toque pessoal ao uniforme, fosse prendendo um daqueles emblemas na lapela ou dando, na gravata, um nó que estivesse na moda. Simplesmente usava aquela roupa com o desprezo de um prisioneiro.

Na sua opinião, o maior erro de noventa e nove por cento das pessoas é ter vergonha de serem quem são, é mentir a esse respeito, fingindo ser alguém diferente. A honestidade era a sua marca, a sua arma, a sua defesa. Quando somos honestos, as pessoas se assustam, ficam chocadas. Bola descobriu que tem gente que fica aferrada a constrangimentos e falsas aparências, morrendo de medo que as suas verdades possam se espalhar. Ele, porém, gostava mesmo era das coisas nuas e cruas, de tudo que fosse feio, mas honesto, das coisas sujas que faziam pessoas como o seu pai se sentirem humilhadas e enojadas. Pensava muito sobre messias e párias, so­bre homens que eram taxados de loucos ou criminosos, nobres marginais rejeitados pelas massas inertes.

O mais difícil, a verdadeira glória era ser quem a gente realmente é, mesmo quando se trata de uma pessoa cruel ou perigosa, aliás, especial­mente nesses casos. É preciso ter coragem para não tentar disfarçar o ani­mal que lhe calhou ser. Por outro lado, é preciso evitar fingir ser mais que o animal que você é: se entrar por esse caminho, se começar a exagerar ou aparentar outra coisa vai acabar se tornando um outro Pombinho, tão mentiroso, tão hipócrita quanto ele. Autêntico e inautêntico eram pala­vras que Bola usava com freqüência, mentalmente. Na sua opinião, esses dois termos tinham uma incrível precisão de significado, e ele os aplicava referindo-se tanto a si mesmo quanto aos outros.

Tinha chegado à conclusão de que possuía características autênticas que deviam, portanto, ser estimuladas e cultivadas. Alguns dos seus há­bitos mentais, porém, eram produtos desnaturados da infeliz criação que teve e, assim, já que eram inautênticos, deviam ser eliminados. Ultima­mente, vinha experimentando agir de acordo com o que considerava os seus impulsos autênticos e ignorar, ou reprimir, a culpa e o medo (inau­tênticos) que tais atos pareciam acarretar. É claro que tudo ia ficando mais fácil com a prática... Bola queria se endurecer por dentro, tornar-se invulnerável, livrar-se do medo das conseqüências: libertar-se das noções espúrias de bondade e maldade.

Se andava irritado com essa história de ser tão dependente de Andrew era justamente porque a presença do amigo às vezes restringia e limitava a plena expressão do seu eu autêntico. Andrew possuía, dentro de si, um mapa do que era certo ou errado, e, ultimamente, Bola vinha percebendo no seu rosto um ar de desagrado, de espanto e de decepção que o outro não conseguia disfarçar. Andrew brecava qualquer gozação ou sacanagem que considerasse excessiva, mas Bola não o censurava por isso: afinal, o amigo não estaria sendo autêntico se entrasse na dele quando não estava efetivamente a fim... O problema era que Andrew estava se mostrando apegado ao tipo de moralidade contra a qual ele próprio vinha travando uma guerra cada vez mais ferrenha. Bola estava começando a achar que o que devia fazer, que a atitude certa a ser tomada, friamente, visando à plena autenticidade, seria se afastar de Andrew. Acontece que continuava preferindo a companhia do amigo a qualquer outra que pudesse ter...

Estava convencido de que se conhecia muitíssimo bem: explorava cada cantinho, cada brecha do próprio psiquismo com uma atenção que hoje em dia não dedicava a nenhuma outra atividade. Passava horas se inda­gando sobre os seus impulsos, os seus desejos, os seus medos, tentando distinguir os que eram verdadeiros dos que lhe tinham sido inculcados pela educação. Examinava os próprios apegos (tinha certeza de que não conhecia ninguém que fosse tão honesto consigo mesmo, pois todas as outras pessoas se deixavam levar pela vida afora, meio entorpecidas) e ti­nha chegado a algumas conclusões. Andrew, que conhecia desde os cinco anos de idade, era a pessoa por quem tinha o mais sincero afeto. Embo­ra agora tivesse idade suficiente para compreender as atitudes da mãe, era apegado a ela, mas não tinha culpa de que as coisas fossem assim. E desprezava profundamente Pombinho, que representava o suprassumo da inautenticidade.

Na página do Facebook, de que ele cuidava com um capricho que não dedicava a praticamente nenhuma outra coisa, Bola havia postado em destaque uma citação que encontrou na biblioteca dos pais:

 

Não quero crentes, acho que sou maligno demais para acreditar em mim mesmo... Tenho um medo terrível de que algum dia possam me declarar um santo... Não quero ser santo; prefiro ser um bufão... Talvez eu seja um bufão...

 

Andrew adorou a citação, e Bola ficou feliz da vida por ver o amigo assim tão impressionado.

Enquanto passava na frente da agência de apostas, coisa que levou pou­cos segundos para fazer, Bola se lembrou de Barry Fairbrother, o amigo do seu pai que tinha morrido. Durante aquelas três passadas diante dos pôste­res com cavalos de corrida por trás da vitrine imunda, o garoto viu o rosto barbudo e brincalhão de Barry e ouviu Pombinho aos berros, usando o riso como desculpa, o riso que tantas vezes brotava mesmo antes de Barry contar uma daquelas suas piadas bestas, que vinha da simples empolgação pela sua presença. Mas o garoto não quis se aprofundar naquelas lembran­ças: não se perguntou por que teria se encolhido assim instintivamente, não quis saber se o morto era autêntico ou não, simplesmente tirou da cabeça tanto Barry Fairbrother quanto o ridículo sofrimento do seu pai, e seguiu em frente.

Bola andava estranhamente tristonho nos últimos dias, embora con­tinuasse a fazer todos rirem à sua volta, como sempre. A decisão de se livrar de noções morais restritivas era uma tentativa de recuperar algo que, tinha certeza, havia sido sufocado dentro dele; algo que tinha perdido ao deixar para trás a infância. O que queria recuperar era uma espécie de inocência, e o caminho que escolheu para conseguir isso foi justamente se aproximar de tudo aquilo que seria considerado ruim. Paradoxalmente, Bola achava que esse era o verdadeiro caminho para a autenticidade, para uma espécie de pureza. É curioso ver como as coisas estão quase sempre invertidas, como são o contrário daquilo que nos dizem que elas são. Bola estava começando a acreditar que, se tirarmos da cabeça tudo que nos ensinam, chegaremos à verdade. Queria circular pelos labirintos escuros e enfrentar a estranheza que se escondia ali dentro; queria escancarar os bons sentimentos e expor a hipocrisia; queria romper os tabus e extrair sabedoria lá de dentro deles; queria atingir um estado de graça amoral e ser reintroduzido na ignorância e na simplicidade.

Foi por isso que resolveu infringir uma das poucas regras da escola que ainda não tinha infringido e estava indo para Fields. E não tomou essa decisão só porque a crua pulsação da realidade parecia mais sensível ali do que em qualquer outro lugar que conhecia. Bola tinha também uma vaga esperança de topar com alguns personagens célebres que o deixavam curioso e, embora não tivesse lá muita consciência disso — aquele era um dos poucos desejos que ele era incapaz de expressar —, procurava uma porta aberta, um pequeno indício de reconhecimento, a possibilidade de ser acolhido numa casa que não sabia que tinha.

Passando por aquelas construções acinzentadas a pé, e não no carro da mãe, percebeu que várias delas não tinham grafites pelas paredes e pilhas de entulho no quintal. Algumas até imitavam (pelo menos, foi a impres­são que ele teve) a elegância de Pagford, com cortinas limpas nas janelas e enfeites no parapeito. Detalhes como esses eram menos visíveis quando se estava num carro em movimento: ao passar por ali, os olhos de Bola iam irresistivelmente das janelas tapadas com tábuas para os quintais cheios de lixo. As casas arrumadinhas não despertavam o seu interesse. O que o atraía eram os lugares em que o caos e a anarquia eram evidentes, nem que fosse apenas por conta daquela exibição pueril de grafites.

Em algum lugar por ali (Bola não sabia exatamente onde), morava Dane Tully. A família de Tully era famosa. O pai e os dois irmãos mais velhos tinham passado um bom tempo na cadeia. Diziam que, da última vez que Dane se meteu numa briga (com um garoto de dezenove anos lá de Cantermill, segundo constava), o pai o escoltou até o lugar marcado e entrou na confusão para enfrentar os irmãos mais velhos do adversário do filho. Tully apareceu na escola com o rosto cortado, o lábio inchado e o olho roxo. Todo mundo achava que ele só tinha ido à aula, coisa que raramente fazia, para exibir aqueles machucados...

Bola tinha certeza de que a sua própria atitude teria sido inteiramente diferente: aquela preocupação com o que os outros iam achar da sua cara quebrada não era nada autêntica. Ele teria brigado, feliz da vida, e, depois, agido como se nada tivesse acontecido. Se alguém ficasse sabendo, seria só porque o tinha visto por acaso.

Ele nunca havia apanhado, apesar de viver provocando todo mundo. Já tinha pensado, especialmente nos últimos tempos, em como seria entrar numa briga. Supunha que o estado de autenticidade que tanto procurava implicaria violência, ou, pelo menos, não excluiria violência. Estar prepa­rado para bater e para apanhar lhe parecia uma forma de coragem à qual devia aspirar. Nunca tinha precisado dos punhos, pois a língua sempre tinha lhe bastado. Mas o Bola que vinha surgindo estava começando a desprezar a própria capacidade expressiva e a admirar a brutalidade autên­tica. A história das facas, por exemplo, era algo que ele andava debatendo consigo mesmo com a maior cautela. Comprar uma faca agora mesmo e espalhar para todo mundo que andava com ela seria um ato da mais completa inautenticidade, um lamentável arremedo das atitudes de gente como Dane Tully, e Bola sentia o estômago embrulhado só de pensar nisso. Se por acaso algum dia precisasse andar com uma faca, aí, sim, a situação mudaria de figura. Não excluía a possibilidade de esse dia chegar, mas admitia que a idéia era assustadora: ele morria de medo de coisas que perfuram a carne, como agulhas e lâminas em geral... Foi o único que desmaiou quando tiveram de tomar vacina contra meningite, ainda no tempo da St. Thomas. Andrew já tinha descoberto que uma das poucas maneiras de tirar o amigo do sério era destampar perto dele a seringa de adrenalina injetável que sempre trazia consigo por conta de uma alergia seríssima a castanhas e amendoins. Bola chegava a ficar enjoado quando Andrew exibia aquela agulha ou fingia que ia espetá-lo.

Vagando pelo bairro, sem destino específico, Bola avistou uma placa da Foley Road. Era a rua de Krystal Weedon. O garoto não sabia se Krystal estava na escola, e a última coisa que queria era que ela pensasse que ele tinha vindo até ali para procurá-la.

Tinham combinado de se encontrar na sexta à noite. Bola disse aos pais que ia à casa de Andrew porque estavam fazendo um trabalho de inglês juntos. Aparentemente, Krystal sabia o que eles iam fazer e, pelo visto, também estava a fim. Até agora tinha deixado ele enfiar dois dedos naquele lugarzinho quente, firme e escorregadio. E abrir o seu sutiã para pôr as mãos nos seus seios quentes e pesados. No meio da festa de Natal da escola, Bola foi falar com Krystal, saiu com ela do salão, sob os olhares incrédulos de Andrew e dos outros garotos, e foi para os fundos da sala de teatro. A garota pareceu tão surpresa quanto os demais, mas, ao contrá­rio do que ele supunha e até esperava, não opôs praticamente qualquer resistência. Aquela abordagem tinha sido um ato deliberado e, quando ele apareceu para enfrentar as gozações dos colegas, já tinha, na ponta da língua, uma resposta ousada e blasée:

Quem está querendo batatas fritas não tem nada que entrar num restaurante japonês!

Tinha refletido sobre essa analogia de antemão, mas ainda precisou explicá-la aos outros.

Vocês ficam aí tocando punheta, mas eu quero mesmo é trepar...

A sua tirada apagou o sorriso daqueles rostos. Era óbvio que todos ali,

inclusive Andrew, tinham sido obrigados a engolir as gozações e substituí-las pela admiração ao vê-lo partir assim, descaradamente, em busca do único objetivo que realmente contava. Sem dúvida alguma, Bola havia escolhido o caminho mais direto para chegar lá. Nenhum deles tinha con­dições de contestar o seu espírito prático, e o garoto podia jurar que cada um dos colegas estava se perguntando por que não tinha tido coragem de pensar nessa forma de resolver as coisas.

Não conta nada disso pra minha mãe, ok? — pediu ele a Krystal num momento em que ambos pararam para recuperar o fôlego entre aquelas demoradas explorações da boca um do outro, mas sem que os seus polegares parassem de esfregar os mamilos da garota.

Ela deu um risinho meio debochado e, depois, começou a beijá-lo de um jeito mais agressivo. Em momento algum perguntou por que ele a tinha escolhido; aliás, não perguntou absolutamente nada. Como Bola, ela parecia estar achando divertido ver as reações das respectivas tribos, tão diferentes uma da outra. Parecia estar adorando a perplexidade de quem os viu saindo e até mesmo a cara de nojo que os amigos dele fizeram. Os dois praticamente não se falaram durante as outras três ses­sões de explorações e experimentos carnais. Bola tinha arquitetado todos aqueles encontros casuais, mas ela tinha facilitado as coisas, passando a circular em lugares onde o garoto poderia vê-la sem problemas. Nessa sexta, eles tinham marcado encontro pela primeira vez. E Bola tinha comprado camisinhas.

A perspectiva de chegar finalmente às vias de fato tinha alguma coisa à ver com a sua decisão de matar aula e vir até Fields, embora Krystal não lhe tivesse passado pela cabeça (ao contrário dos seus peitos maravilhosos e da sua vagina milagrosamente indefesa) até ele ver o nome da sua rua.

Bola deu meia-volta e acendeu outro cigarro. Ver o nome da Foley Road naquela placa lhe deu a estranha sensação de ter escolhido o mo­mento errado. Fields hoje era algo banal e impenetrável, e o que ele esta­va buscando, aquilo que tinha a esperança de reconhecer quando encon­trasse, estava escondido em algum lugar, impossível de se ver. E, então, ele voltou para a escola.

 

Ninguém estava atendendo o telefone. De volta à sala do Departamen­to de Proteção à Criança, Kay estava tentando telefonar há quase duas horas, deixando mensagens, pedindo que retornassem as suas ligações: o agente de saúde encarregado dos Weedon, o seu médico de família, a escola de Cantermill e a Clínica de Reabilitação Bellchapel. O dossiê de Terri Weedon estava aberto na mesa à sua frente, volumoso e muito manuseado.

Mais uma recaída, é? — perguntou Alex, uma das assistentes sociais com quem Kay dividia o escritório. — Desta vez, a Bellchapel não vai querer mais saber de ver ela por lá. Ela diz que morre de medo de que lhe tirem Robbie, mas não consegue ficar longe dos picos.

É a terceira vez que ela abandona o tratamento na Bellchapel — disse Una.

Pelo que tinha visto naquela tarde, Kay estava achando que era hora de fazerem uma reavaliação do caso, reunindo todos os profissionais respon­sáveis pelos vários setores da vida de Terri Weedon. Enquanto tratava de outro trabalho, continuava tentando telefonar. Nesse meio-tempo, lá no canto do escritório, o próprio telefone do serviço tocou várias vezes e en­trou direto na secretária eletrônica. A sala do Departamento de Proteção à Criança era apertada, estava lotada e tinha cheiro de leite azedo, pois Alex e Una tinham mania de jogar o resto das suas xícaras no vaso de uma pobre iúca meio murcha que ficava num canto do cômodo.

As últimas anotações de Mattie eram confusas e caóticas, cheias de coisas riscadas ou incompletas e com datas erradas. Faltavam diversos do­cumentos importantes no dossiê, inclusive uma carta enviada quinze dias antes pela clínica de reabilitação. Ficava mais fácil pedir informações a Alex e a Una.

A última reavaliação foi... — disse Alex, olhando a planta com o cenho franzido — ...mais de um ano atrás, acho eu.

E, na época, acharam que Robbie podia ficar com ela, é claro — ob­servou Kay, com o fone enganchado entre o ouvido e o ombro, tentando em vão encontrar naquela pasta abarrotada as anotações referentes à tal avaliação.

A questão não era saber se ele ficava com ela ou não, mas se ele ia voltar para ela ou não. O menino tinha sido entregue a uma mãe subs­tituta porque Terri foi espancada por um cliente e acabou parando no hospital. Conseguiu ficar limpa, saiu do hospital e estava louca para ter Robbie de volta. Entrou mais uma vez para o programa de reabilitação da Bellchapel, parou com a prostituição e estava fazendo tudo direitinho. A mãe disse que ia ajudar. O menino voltou para casa e, meses depois, ela recomeçou a se picar.

Mas não é a mãe de Terri que ajuda, é? — perguntou Kay, que já estava ficando com dor de cabeça tentando decifrar a letra grande e irre­gular de Mattie. — É a avó dela, a bisavó dos meninos. Ela já deve estar bem velha, e, hoje cedo, Terri disse alguma coisa sobre ela estar doente. Se, agora, só tem mesmo a Terri para cuidar...

A filha dela já está com dezesseis anos — retrucou Una. — É ela que praticamente cuida de Robbie.

E está deixando a desejar — disse Kay. — Ele estava num estado bem ruinzinho quando cheguei lá.

Mas já tinha visto coisas muito piores: machucados e feridas, cortes e queimaduras, manchas roxas, sarna e piolhos. Bebês deitados em tape­tes cheios de cocô de cachorro, engatinhando sobre ossos partidos e uma vez (até hoje sonhava com a cena) deparou com uma criança que tinha passado cinco dias dentro de um armário, trancada pelo padrasto psicó­tico. Esse caso virou até manchete na imprensa nacional. O perigo mais imediato que ameaçava a segurança de Robbie Weedon era a tal pilha de caixas pesadas que ele tentou escalar quando percebeu que, com isso, con­seguia chamar a atenção de Kay. Antes de sair, porém, a assistente social teve o cuidado de redistribuir as caixas, formando duas pilhas menores em vez de uma só. Terri não gostou nada de vê-la mexer nas caixas, como também não gostou quando ela lhe disse para trocar a fralda encharcada do filho. Na verdade, apesar de ainda estar ligeiramente entorpecida, a mulher teve um ataque de fúria e, aos palavrões, mandou que Kay fosse embora e não se metesse com ela.

O seu celular tocou. Kay atendeu. Era a responsável pelo acompanha­mento terapêutico de Terri.

Há dias que venho tentando falar com você — disse ela, visivelmen­te aborrecida.

Kay levou alguns minutos para lhe explicar que não era Mattie, mas isso não alterou muito a má vontade da outra.

Terri continua vindo, sim — disse ela —, mas, na semana passada, o teste deu positivo. Se ela voltar a usar, vai sair do programa. Agora mesmo temos vinte pessoas na fila de espera, gente que talvez vá se beneficiar com o tratamento. Já é a terceira vez que ela para...

Kay não disse que sabia que Terri tinha usado drogas pela manhã.

Alguma de vocês tem paracetamol? — perguntou, dirigindo-se às colegas depois que a terapeuta lhe passou todos os detalhes relativos ao tra­tamento de Terri lá na clínica, tratou de deixar bem claro que não estava vendo qualquer progresso e desligou o telefone.

Sem ânimo para se levantar e ir até o purificador de água que ficava no corredor, tomou os remédios com chá morno mesmo. A sala estava aba­fada, pois o aquecimento tinha emperrado numa temperatura elevada. A medida que a claridade do dia ia se extinguindo lá fora, a luz da lâmpada fluorescente da sua escrivaninha ia ficando mais forte, deixando os papéis espalhados ali em cima com um tom amarelado bem intenso, e as palavras pretas avançavam, zumbindo, em linhas intermináveis.

Vão fechar a Clínica Bellchapel, você vai ver só — disse Una, que trabalhava no computador, de costas para Kay. — Têm que fazer cortes. É o Conselho que paga o salário de um dos terapeutas. O prédio pertence ao distrito de Pagford. Ouvi dizer que estão pensando em fazer umas refor­mas e alugar para alguém que pague um preço melhor. Já vêm implican­do com a clínica há anos.

Kay sentia as têmporas latejarem. A menção ao nome do vilarejo onde agora morava a deixou triste. Sem parar para pensar, fez o que tinha jurado não fazer depois que ele não telefonou na véspera: pegou o celular e ligou para o escritório de Gavin.

Edward Collins & Cia. — disse uma voz feminina, depois do tercei­ro toque. No setor privado, as pessoas atendiam o telefone imediatamente, já que o dinheiro podia depender daquela ligação.

Posso falar com Gavin Hughes, por favor? — disse Kay, olhando o dossiê de Terri à sua frente.

Quem deseja falar com ele?

Kay Bawden.

Não ergueu os olhos: não queria enfrentar o olhar de Alex ou de Una. O tempo de espera pareceu interminável.

(Os dois tinham se visto pela primeira vez em Londres, na festa de aniversário do irmão de Gavin. Kay não conhecia ninguém ali, a não ser o amigo que a tinha levado consigo para não ir sozinho. Gavin tinha acabado de se separar de Lisa. Estava meio alto, mas parecia um sujei­to decente, confiável e convencional, inteiramente diferente do tipo de homem por quem ela em geral se interessava. Ele desabafou, contando a história do namoro terminado e, depois, voltou com ela para o aparta­mento em Hackney. Enquanto namoraram à distância, ele se mostrou entusiasmado: vinha vê-la todo fim de semana e telefonava regularmente. Quando, porém, por um milagre, ela arranjou emprego em Yarvil, por um salário menor, e pôs à venda o apartamento de Hackney, ele aparentemente se apavorou...)

O telefone dele continua ocupado. Quer esperar na linha?

Quero, sim — respondeu Kay, infeliz.

(Se aquela história não desse certo... Mas tinha que dar. Ela se mudou por causa dele, trocou de emprego por causa dele, trouxe a filha para outra cidade por causa dele. Com toda a certeza, não deixaria tudo isso acontecer se as suas intenções não fossem sérias... Deve ter pensado nas conseqüências caso viessem a se separar: como seria horrível e estranho os dois viverem se encontrando pelas ruas de uma cidade tão pequena quanto Pagford!)

Ele já vai atender — disse a secretária, e as esperanças de Kay se reacenderam.

Oi — disse Gavin. — Como é que você está?

Tudo bom — respondeu ela, mentindo, porque Alex e Una estavam ouvindo a conversa. — Como está sendo o seu dia?

Ocupado — disse Gavin. — E você?

Também.

Ficou esperando, com o telefone grudado na orelha, fingindo que ele estava falando e ouvindo aquele silêncio.

Será que podemos nos ver hoje à noite? — perguntou ela, enfim, com o estômago embrulhado.

Hã... Acho que não vai dar — replicou ele.

Como pode não saber se vai dar ou não? O que você anda aprontando?

Talvez tenha que fazer uma coisa... É Mary, sabe? A viúva de Barry. Ela quer que eu seja uma das pessoas a carregar o caixão. Então, pode ser que eu... Vou ter que descobrir o que isso envolve e tudo o mais...

Às vezes, quando ela simplesmente ficava calada, deixando a incon­sistência das suas desculpas reverberar pelo ar, ele ficava com vergonha e voltava atrás.

Mas não deve levar a noite toda — disse Gavin. — Podemos nos encontrar mais tarde, se você quiser.

Ok. Não quer ir lá para casa, já que amanhã tem aula?

Hã... Ah, claro.

A que horas? — perguntou Kay, querendo que ele tomasse pelo menos uma decisão.

Sei lá... Por volta das nove?

Depois que ele desligou, Kay ainda ficou uns instantes com o celular colado ao ouvido. Finalmente, por causa de Alex e Una, disse:

Eu também. Até mais tarde, querido.

 

Como orientadora educacional, Tessa tinha horários mais flexíveis que o marido. Em geral, esperava as aulas acabarem para levar o filho para casa no Nissan, ao passo que Colin (a quem ela nunca se referia como Pombi­nho, embora soubesse perfeitamente que era assim que o resto do mundo o chamava, inclusive os pais de alunos, que acabavam adotando o apelido de tanto ouvir os filhos o repetirem) só saía uma ou duas horas mais tarde, indo embora no seu Toyota. Hoje, porém, o vice-diretor veio encontrar a esposa no estacionamento às quatro e vinte, quando os estudantes iam deixando o prédio para entrar no carro dos pais ou nos ônibus que a escola fretava para transportá-los.

O céu estava de um frio cinza-chumbo, como o reverso de um escudo. Um ventinho cortante levantava a bainha das saias e sacudia as folhas das árvores ainda jovens; um vento gélido e maroto que ia buscar os pontos fracos das pessoas, como a nuca e os joelhos, e lhes negava o consolo de sonhar, de fugir um pouco da realidade. Mesmo depois de bloqueá-lo, fechando a porta do carro, Tessa continuou sentindo-se aborrecida e irri­tada, como se alguém tivesse esbarrado nela sem sequer pedir desculpas.

Ao seu lado, no banco do carona, com os joelhos erguidos a uma altura absurda por causa das reduzidas dimensões do carro, Colin lhe contou o que o professor de informática tinha vindo lhe dizer, procurando-o no escritório uns vinte minutos atrás.

...não estava na sala. Não apareceu durante os dois tempos de aula. Ele disse então que achou melhor vir me contar. Amanhã, todos os fun­cionários vão estar sabendo. É exatamente o que ele quer — disse Colin, furioso, e Tessa sabia que já não estavam mais falando do professor de informática. — Ele só está mostrando o dedo médio das duas mãos para mim, como sempre.

O seu marido chegava a estar pálido de tão cansado. Tinha umas sombras escuras sob os olhos vermelhos, e as mãos que seguravam a alça da pasta estavam ligeiramente trêmulas. Eram umas mãos bonitas, com juntas marcadas e dedos longos e finos, não muito diferentes das do seu filho. Recentemente, Tessa tinha feito essa observação, e nenhum dos dois demonstrou o mínimo prazer diante da perspectiva de haver a mais leve semelhança física entre eles.

Não acredito que ele... — principiou a mulher, mas Colin já havia recomeçado a falar.

O que significa que ele vai pegar detenção, como outro aluno qual­quer, e é claro que vou me encarregar de castigá-lo em casa também. Ago­ra ele vai ver o que é bom! Será que está achando que isso é brincadeira? Para começo de conversa, podemos deixá-lo de castigo por uma semana. Ele vai ver só como é divertido!

Mordendo a língua para não responder, Tessa passou os olhos pelo mar de alunos de uniforme preto, andando de cabeça baixa, tremendo de frio, tentando fechar mais os casacos finos, com o cabelo entrando pela boca. Um estudante do primeiro ano, bochechudo e com um ar ligeiramente espantado, olhava ao seu redor procurando alguém que ainda não tinha chegado. Quando se abriu uma brecha naquele bando, surgiu Bola, com o rosto magro todo à mostra, pois o vento soprava o seu cabelo para trás, e, como sempre, em companhia de Arf Price. Às vezes, por certos ângulos, sob certa luz, era fácil perceber como ele seria quando ficasse velho. Por um instante, lá do fundo do seu cansaço, Tessa teve a impressão de que aquele garoto era um completo desconhecido e lhe ocorreu que era muito estranho ele estar se dirigindo para o seu carro, ela ter que enfrentar de novo aquele ventinho horrível, hiper-real, para deixá-lo entrar. Quando ele chegou perto, porém, e lhe deu aquele sorriso que mais parecia uma careta, voltou de imediato a se transformar no garoto que ela amava apesar de tudo. Tessa, então, saiu do carro e ficou estoicamente parada naquele vento cortante enquanto o filho se curvava para entrar no carro onde já estava o pai, que não tinha feito menção de se mexer.

Deixaram o estacionamento na frente dos ônibus. Cruzaram Yarvil e passaram pelas construções feias e caindo aos pedaços de Fields para pegar um desvio que encurtava o caminho para Pagford. Tessa observa­va Stuart pelo retrovisor. Ele estava todo esparramado no banco de trás, olhando pela janela, como se os pais fossem duas pessoas que estivessem lhe dando uma carona, duas pessoas a ele ligadas apenas pelo acaso e pela proximidade.

Colin esperou até chegarem ao tal desvio para perguntar:

Por onde andou hoje à tarde, quando devia estar na aula de infor­mática?

Tessa não resistiu ao desejo de olhar de novo pelo retrovisor. Viu o filho bocejar. Às vezes, embora negasse insistentemente quando o marido aven­tava tal hipótese, ela se perguntava se Bola não estaria mesmo travando uma guerra suja e pessoal contra o pai, tendo a escola inteira por platéia. Sabia de coisas a seu respeito que não poderia saber se não trabalhasse como orientadora educacional: tinha alunos que lhe contavam umas his­tórias, às vezes inocentemente, às vezes por malícia.

A senhora acha ruim o Bola fumar? Deixa ele fumar em casa?

Guardava bem-trancada toda essa pequena coleção de atos ilícitos que reu­nia involuntariamente e jamais mencionava o que quer que fosse nem para o marido, nem para o filho, por mais que aquele fardo lhe pesasse às costas.

Fui dar uma volta — respondeu Bola com a maior tranqüilidade. — Estava precisando esticar as minhas velhas pernas...

Lutando contra o cinto de segurança, Colin se virou no banco para encarar o filho, esbravejando, mas com os movimentos ainda mais difi­cultados pelo sobretudo e pela maleta. Quando ele perdia o controle, a sua voz atingia tons cada vez mais altos e, agora, estava gritando quase em falsete. No meio disso tudo, Bola só ficou sentado ali, calado, com um leve sorriso insolente a lhe recurvar a boca fina, enquanto o pai lhe dava a maior bronca, bastante amenizada aliás pela aversão natural que Colin tinha aos xingamentos e pelo constrangimento que sentia quando usava algum termo mais grosseiro.

Você é um egoísta presunçoso, seu... merdinha! — gritou ele, e Tes­sa, que já tinha os olhos tão cheios de lágrimas que mal conseguia ver a estrada à sua frente, podia jurar que, já na manhã seguinte, Bola ia contar aquela história para Andrew Price, imitando o xingamento tímido e em falsete do pai.

Bola imita direitinho o jeito de Pombinho andar, professora! A senhora já viu?

Como se atreve a falar comigo desse jeito? Como se atreve a matar aula?

Colin continuou gritando, furioso. Tessa piscava os olhos, tentando se livrar das lágrimas ao pegar a entrada de Pagford, passar pela praça, pela Mollison & Lowe, pelo memorial da guerra e pelo Black Canon. Diante da Igreja de São Miguel e Todos os Santos, dobrou à esquerda, entrando pela Church Row até chegar finalmente à porta de casa. A essa altura, Colin já tinha ficado rouco de tanto gritar naquele tom estridente, e o rosto de Tessa estava lustroso e salgado. Quando saltaram do carro, Bola, cuja expressão não tinha se alterado em nada durante a longa espinafração do pai, abriu a porta da frente com a própria chave e subiu com a maior calma, sem sequer olhar para trás.

Colin atirou a maleta no chão do vestíbulo escuro e se voltou para a mulher. A única iluminação vinha do painel envidraçado da porta e dava uma coloração estranha, ora em tons de vermelho-sangue, ora num azul fantasmagórico, àquela cabeça arredondada e meio calva que o marido não parava de sacudir.

Está vendo só? — perguntou ele aos berros, agitando os braços com­pridos. — Está vendo o que tenho que enfrentar?

Estou — replicou Tessa, pegando um punhado de lenços de papel da caixa que ficava no aparador para enxugar os olhos e assoar o nariz. — Estou, sim.

Nem sequer leva em conta o que estamos passando! — disse Colin, e começou a soluçar, uns soluços agudos, secos, parecendo até uma crian­ça com coqueluche. Tessa se aproximou e passou os braços pelo peito do marido, não muito acima da cintura, pois, baixinha e atarracada como era, aquele era o ponto mais alto que conseguia alcançar. Ele se inclinou para abraçá-la. Dava para sentir o tremor que o sacudia e o sobe e desce da sua caixa torácica por baixo do casaco.

Minutos depois, Tessa se desvencilhou daquele abraço, levou o marido para a cozinha e lhe preparou um bule de chá.

Vou levar uma comida para Mary — disse ela, depois de ficar uns instantes sentada ao lado de Colin, acariciando a sua mão. — Ela está com metade da família hospedada em casa. Depois, vamos para a cama cedo.

Colin assentiu, fungando, e ela lhe deu um beijo na cabeça antes de se levantar para ir até o freezer. Quando voltou, trazendo uma pesada traves­sa congelada, ele estava sentado à mesa, segurando a caneca com as duas mãos, de olhos fechados.

Tessa botou a travessa embrulhada em plástico-filme nas lajotas diante da porta de entrada. Enfiou o tal cardigã verde meio largo, que geralmente usava em vez de um casaco mais grosso, mas não calçou os sapatos. Pé ante pé, subiu a escada até o primeiro andar e, dali, já não tão preocupada em não fazer barulho, subiu mais um lance, dirigindo-se ao sótão.

Ao se aproximar da porta, ouviu uma certa agitação, que mais parecia coisa de ratos. Bateu, dando a Bola o tempo suficiente para esconder o que quer que estivesse vendo na internet ou quem sabe os cigarros, pois ele ignorava que a mãe sabia da existência deles.

Que é?

Ela empurrou a porta. O filho estava agachado sobre a mochila, numa pose estudada.

Com tantos dias no ano, você tinha que matar aula logo hoje?

Bola se levantou. Alto e magro, era bem maior que a mãe.

Eu fui à aula. Só cheguei atrasado. Bennett nem percebeu. Ele ou nada é a mesma coisa...

Por favor, Stuart. Por favor.

Às vezes, também tinha vontade de gritar com os meninos na escola. Adoraria gritar: Você tem que aceitar a realidade dos outros. Acha que a realidade se presta a negociações, que achamos que ela é o que você decidir dizer que ela é. Tem que aceitar que somos tão reais quanto você. Tem que aceitar que você não é Deus.

O seu pai está muito chateado, Stu. Por causa de Barry. Não dá para entender?

Claro.

É como você se sentiria se Arf morresse.

Embora ele não tenha dito nada e a expressão do seu rosto tenha se mantido praticamente inalterada, Tessa sentiu o seu desprezo, a graça que o filho achava naquilo tudo.

Sei que acha que você e Arf pertencem a uma categoria inteiramen­te diferente de pessoas como o seu pai e Barry...

Não — exclamou Bola.

Tessa sabia, porém, que tudo que ele queria era pôr fim àquela con­versa.

Vou levar uma comida para Mary. Pelo amor de Deus, Stuart, não faça mais nada que possa aborrecer o seu pai enquanto eu estiver fora. Por favor, Stu.

Tá legal — disse ele, meio rindo, meio dando de ombros.

Mesmo antes de fechar a porta, Tessa percebeu que a atenção do filho já tinha batido asas, voltando para o que lhe interessava.

 

O ventinho irritante levou embora a nuvem baixa que tinha se forma­do lá pelo final da tarde e, ao pôr do sol, ele próprio desapareceu. Três casas depois da dos Wall, Samantha Mollison observava o reflexo da lâmpada acesa na penteadeira e achava deprimentes aquele silêncio e aquela quietude.

Os dois últimos dias haviam sido decepcionantes: não tinha vendido praticamente nada. O tal representante da Champêtre era, na verdade, um sujeito com uma papada considerável, uns modos grosseiros e uma sacola cheia de sutiãs horrorosos. Aparentemente, reservava o seu char­me para as preliminares, pois, pessoalmente, só falava de vendas, além de tratá-la de um jeito arrogante, criticando o seu estoque e fazendo a maior pressão para ela encomendar alguma coisa. Samantha havia imaginado alguém mais jovem, mais alto e mais sexy. Ficou louca para despachar aquele homem e as suas lingeries cafonas o mais depressa possível.

Na hora do almoço, comprou um daqueles cartões que dizem "Nos­sos sinceros pêsames" para mandar para Mary Fairbrother, mas ficou sem saber o que escrever, porque, depois daquele pesadelo que enfrentaram :untas no hospital, só assinar não lhe parecia suficiente. A relação entre eles nunca tinha sido próxima. Num lugar tão pequeno quanto Pagford, as pessoas vivem se encontrando, mas, na verdade, ela e Miles não conhe­ciam realmente Barry e Mary. Na melhor das hipóteses, o que se poderia dizer é que estavam em campos opostos por causa das intermináveis dispu­tas entre Howard e Barry com relação a Fields... Já ela mesma não dava a mínima para essa história: mantinha-se acima da mesquinhez da política local.

Cansada, chateada e inchada depois de um dia inteiro comendo bo­bagens, adoraria que não tivessem marcado de ir jantar na casa dos seus sogros. Olhando-se no espelho, pôs as mãos espalmadas de ambos os lados do rosto e puxou a pele com cuidado na direção das orelhas. Por alguns milímetros, surgiu ali uma Samantha mais jovem. Virando o rosto bem devagar para um lado e para o outro, examinou a pele assim esticada. Me­lhor, muito melhor. Quanto será que custaria? Será que doía muito? Será que teria coragem? Tentou imaginar o que a sogra diria se a visse aparecer com o rosto renovado. Afinal, eles dois, como Shirley tantas vezes fazia questão de lembrar, estavam ajudando a pagar a educação das netas.

Miles entrou no quarto. Samantha tirou as mãos do rosto e pegou o corretivo, jogando a cabeça para trás como sempre fazia para se maquiar: a pele flácida do maxilar ficava um pouco mais rija e as bolsas debaixo dos olhos também se reduziam. No contorno dos seus lábios havia umas ruguinhas pequenas e finas. Tinha lido que era possível preenchê-las com um produto sintético injetável. Será que faria alguma diferença? Com certeza era muito mais barato que uma plástica e talvez Shirley nem re­parasse. Pelo espelho viu Miles, às suas costas, tirar a gravata e a camisa, o que fez com que a barriga avantajada despencasse sobre o cós da calça.

Você não ia se encontrar com alguém hoje? Um representante co­mercial? — indagou ele. E ficou parado ali, olhando para as roupas no armário, coçando o umbigo peludo.

É, mas não valeu a pena... — respondeu Samantha. — Era tudo um horror.

Miles gostava do trabalho da mulher. Cresceu numa casa em que tudo girava em torno das vendas em varejo e nunca perdeu o respeito pelo comércio que o pai havia lhe inculcado. Ainda por cima, no ramo de negócios de Samantha, havia mil e uma oportunidades de piadas ou até mesmo outras formas menos disfarçadas de autocomplacência. Aparente­mente, ele nunca se cansava de fazer as mesmas piadinhas ou as mesmas insinuações maliciosas.

Coisa malfeita? — perguntou, com ar de entendido.

Os modelos eram feios. E as cores, pavorosas.

Samantha escovou o cabelo castanho grosso e ressecado e o prendeu. Pelo espelho, viu Miles botar uma calça de brim e uma camisa polo. Es­tava no limite, sentindo que podia estourar ou começar a chorar à mínima provocação.

O Evertree Crescent ficava apenas a alguns minutos dali, mas, como a Church Row era uma ladeira bem íngreme, eles foram de carro. Aos pou­cos, a escuridão vinha chegando. No alto da estrada, passaram pelo vulto sombrio de um homem que tinha o corpo e o andar de Barry Fairbrother. Samantha tomou um susto e se virou para olhá-lo, imaginando quem se­ria o tal sujeito. O carro de Miles dobrou à esquerda e, nem um minuto depois, dobrou novamente à direita, entrando na meia-lua de chalés dos anos 1930.

A casa de Howard e Shirley, uma construção baixa, de tijolos verme­lhos e amplas janelas, ostentava, tanto na frente quanto nos fundos, exten­sos gramados, que Miles aparava por faixas no verão. Durante os longos anos passados ali, Howard e Shirley instalaram lampiões, um portão de ferro fundido pintado de branco e vasos de terracota cheios de gerânios de ambos os lados da porta de entrada. Puseram também uma plaquinha ao lado da campainha: uma tabuinha redonda e envernizada onde se ha a palavra "Ambleside", em letras góticas pretas e entre aspas.

Às vezes, Samantha era cruel nas brincadeiras que fazia com relação à casa dos sogros. Miles tolerava aquelas gozações admitindo que a mulher e ele, com os seus pisos e portas de madeira encerada, os seus tapetes dispos­tos sobre o assoalho, as suas gravuras emolduradas e aquele sofá cheio de estilo, mas nada confortável, tinham efetivamente mais bom gosto. Mas, no fundo, no fundo, preferia o chalé onde havia crescido. Ali, praticamen­te todas as superfícies eram cobertas com algo macio e aveludado. Não havia correntes de ar, e as cadeiras reclináveis eram deliciosamente con­fortáveis. Quando acabava de aparar a grama, no verão, a mãe lhe trazia uma cerveja gelada que ele tomava sentado numa dessas cadeiras, vendo um jogo de críquete na televisão de tela plana. Às vezes, uma das filhas ia jnto e ficava sentada ali, ao seu lado, tomando sorvete com uma calda de chocolate que Shirley fazia especialmente para as netas.

Oi, querido — disse ela ao abrir a porta. Baixinha e roliça como era, com o avental de florezinhas, lembrava um daqueles moedores de pimen­ta todo caprichado. Ficou na ponta dos pés para o filho poder beijá-la. — Oi, Sam — disse então, e logo se afastou, acrescentando: — O jantar está quase pronto. Howard! Miles e Sam chegaram!

A casa cheirava a lustra-móveis e comida gostosa. Howard surgiu, vindo da cozinha, com uma garrafa de vinho numa das mãos e um saca-rolhas na outra. Com a prática que tinha, Shirley recuou de mansinho para a sala de jantar, para que o marido, que ocupava quase toda a largura do corre­dor, pudesse passar. Só então foi para a cozinha a passos lépidos.

Cá estão eles, os bons samaritanos! — bradou Howard. — E como anda o comércio de sutiãs, Sammy? Peito para enfrentar a recessão é o que não deve faltar, não é mesmo?

Olhe, Howard, o movimento tem estado incrivelmente avantajado... — respondeu Samantha.

O sogro soltou uma sonora gargalhada, e Sam podia jurar que ele teria lhe dado um tapinha na bunda se não estivesse com as duas mãos ocupa­das. Tolerava aqueles tapas e apertões que o sogro lhe dava e que, a seu ver, eram apenas o exibicionismo inofensivo de um homem que tinha engordado além da conta e que já estava velho demais para fazer qualquer outra coisa. Ainda por cima, Shirley ficava chateada, o que era sempre bom. É claro que nunca demonstrava abertamente o seu aborrecimento: o sorriso no seu rosto não se alterava e aquele tom de voz docemente sensato também não. Mas logo depois de uma dessas manifestações levemente despudoradas do marido, lá vinha ela com uma alfinetada disfarçada para a nora: como quem não quer nada, mencionava o preço cada vez mais alto das mensalidades do colégio das netas; toda solícita, perguntava a Saman­tha como ia a dieta ou a Miles se ele não achava que Mary Fairbrother tinha um corpinho lindo... Samantha engolia aquilo tudo com um sorriso, e, mais tarde, descontava em Miles.

Oi, Mo! — exclamou Miles ao entrar, antes da esposa, no que Howard e Shirley chamavam de saguão. — Não sabia que você também vinha!

Olá, bonitão — disse Maureen, com aquela sua voz profunda e rascante. — Venha me dar um beijo.

A sócia de Howard estava sentada numa ponta do sofá com um cálice de sherry nas mãos. Usava um vestido fúcsia, meias escuras e uns sapatos de verniz de salto alto. O cabelo muito preto cheio de laquê estava todo armado e, por baixo daquele volume, o seu rosto surgia, pálido e simiesco, com uma boca pintada de rosa-choque que se contraiu quando Miles se abaixou para lhe dar dois beijinhos.

Estávamos tratando de negócios. Fazendo planos para o novo café. Oi, Sam, querida — acrescentou Maureen, dando uns tapinhas no sofá ao seu lado. — Como está linda, bronzeada... Ainda é de Ibiza? Venha sentar aqui. Que susto, hein, lá no clube? Deve ter sido apavorante...

Ah, foi mesmo — disse Samantha.

E, pela primeira vez, se viu contando para alguém a história da morte de Barry, enquanto Miles ficou pairando por ali, louco por uma chance de intervir. Howard distribuiu as taças de Pinot Grigio, cuidando especial­mente de caprichar na da nora. Aos poucos, embalada pelo interesse de Howard e Maureen, e com a ajuda do calorzinho gostoso que o álcool a fazia sentir por dentro, a tensão que Samantha vinha experimentando há dois dias foi se desmanchando e começou a surgir uma frágil sensação de bem-estar.

A sala era quente e impecável. Numas prateleiras, que ladeavam a la­reira a gás, havia uma coleção de porcelana ornamental composta, em sua maioria, de peças comemorativas de algum momento importante da famí­lia real ou algum aniversário do reinado de Elizabeth II. Num dos cantos, uma pequena estante continha uma mistura de fotografias da realeza e livros de receitas encadernados que já não cabiam mais na cozinha. Re­tratos enfeitavam prateleiras e paredes: Miles e a irmã mais moça, Patrícia, de uniforme escolar, sorriam num porta-retratos duplo; as duas filhas de Miles e Samantha, Lexie e Libby, estavam por toda parte, de bebês a ado­lescentes. Samantha só aparecia uma vez naquela galeria familiar, embora a foto fosse a maior de todas e a que merecia maior destaque: Miles e ela, no dia do seu casamento, dezesseis anos atrás. Miles, jovem e bonito, tinha franzido um pouco os penetrantes olhos azuis; já Samantha estava com os olhos entreabertos, o rosto meio virado de lado, e, por aquele ângulo, o sorriso a tinha deixado com queixo duplo. O cetim branco do vestido, repuxado nos seios já mais volumosos por causa da gravidez incipiente, a fazia parecer enorme de gorda.

Com uma daquelas mãos ossudas, que mais pareciam garras, Maureen estava brincando com o cordão que sempre usava no pescoço e onde havia um crucifixo e a aliança do falecido marido. Quando Samantha che­cou ao ponto em que a médica veio dizer a Mary que não havia mais nada que se pudesse fazer, Maureen pôs a outra mão no joelho de Samantha e o apertou ligeiramente.

O jantar está na mesa! — gritou Shirley.

Apesar de ter vindo àquele jantar contra a vontade, há dois dias que Samantha não se sentia tão bem. Maureen e Howard a estavam tratando como um misto de heroína e inválida, e os dois lhe deram uns tapinhas nas costas quando ela passou por eles a caminho da outra sala.

Shirley havia reduzido a intensidade da luz e acendido umas velas compridas, cor-de-rosa para combinar com o papel de parede e os seus melhores guardanapos. Assim na penumbra, o vapor que subia dos pra­tas de sopa fazia até o rosto largo e corado de Howard parecer surgido de além-túmulo. Já tendo tomado quase toda a sua taça de vinho, que não era pequena, Samantha achou que seria engraçadíssimo se o sogro anunciasse que iam começar uma sessão espírita para pedir a Barry que lhes contasse a sua própria versão dos acontecimentos do clube de golfe.

Bom — disse Howard, com voz grave —, acho que devíamos fazer t:m brinde a Barry Fairbrother.

Mais que depressa, Samantha voltou a encher a taça para que Shirley não percebesse que ela já tinha tomado quase todo o seu conteúdo.

Parece que foi mesmo um aneurisma — declarou Miles, tão logo as taças voltaram a pousar na toalha. Tinha ocultado essa informação até mesmo de Samantha e estava feliz da vida, porque, ainda agora, falando com Maureen e Howard, ela podia ter estragado tudo. — Gavin telefonou para dar os pêsames a Mary em nome da firma e começar a ver a história do testamento, e ela confirmou essa informação. Basicamente, uma arté­ria do cérebro dilatou e estourou — (ainda no escritório, depois de falar com Gavin, Miles foi procurar o termo na internet assim que conseguiu descobrir como se escrevia). — Podia ter acontecido a qualquer momento. É uma espécie de defeito congênito.

Assustador — exclamou Howard, e, percebendo que a taça da nora estava vazia, levantou-se para voltar a enchê-la. Por um instante, Shirley ficou tomando a sua sopa com as sobrancelhas tão erguidas que chegavam quase a tocar a raiz dos cabelos. Só para provocá-la, Samantha tomou mais um gole de vinho.

Sabem de uma coisa? — principiou ela, com a língua já ligeiramen­te pastosa. — Achei que tinha visto ele quando estávamos vindo para cá. Barry. No escuro.

Provavelmente era um dos seus irmãos — replicou Shirley, em tom de descaso. — Eles são todos parecidos.

Mas Maureen a interrompeu, abafando a sua voz.

Eu tive a impressão de ver Ken à noite, no dia da morte dele. Muito claramente. Ele estava no jardim, olhando para mim pela janela da cozi­nha. Parado no meio das suas rosas.

Ninguém disse nada. Todos ali já conheciam aquela história. Passou-se um minuto em que o único som que se ouvia era o barulhinho das pessoas engolindo e, então, Maureen voltou a falar com aquele seu grasnido de corvo.

Gavin se dá com os Fairbrother, não é, Miles? Ele não joga squash com Barry? Ou melhor, não jogava?

É. Barry o arrasava uma vez por semana. Gavin deve ser um péssi­mo jogador, afinal, Barry era dez anos mais velho que ele!

Expressões praticamente idênticas se estamparam no rosto à luz de velas das três mulheres ali presentes, um ar divertido, mas complacente. Quanto mais não fosse, uma coisa elas tinham em comum: um interesse levemente perverso pelo jovem e esguio sócio de Miles. No caso de Mau­reen, era apenas uma manifestação do seu insaciável apetite pelas fofocas de Pagford, e as peripécias de um rapaz solteiro eram um prato feito para ela. Shirley adorava ouvir tudo sobre as inseguranças e inferioridades de Gavin, pois elas proporcionavam um delicioso contraste que só fazia res­saltar as proezas e a auto-confiança dos dois deuses da sua vida, Howard e Miles. Quanto a Samantha, porém, a passividade e a cautela do rapaz des­pertavam nela uma crueldade felina e, já que ela própria não podia fazer nada a esse respeito, morria de vontade de vê-lo ser acordado a tapas, ser posto na linha ou maltratado de outra forma qualquer por alguma outra representante do sexo feminino. Implicava com ele sempre que se viam, divertindo-se com a idéia de que ele devia achá-la dominadora, alguém difícil de se lidar.

E como andam as coisas com a namorada lá de Londres? — inda­gou Maureen.

Ela não mora mais em Londres, Mo. Mudou-se para a Hope Street

disse Miles. — E se quiser saber, ele anda arrependidíssimo de ter come­çado essa história. Você conhece Gavin: na hora H, ele entra em pânico.

Na escola, Miles era alguns anos mais adiantado que Gavin e, até hoje, navia aquele tom de veterano no jeito como ele se referia ao sócio.

Uma moça de cabelo castanho-escuro? Curtinho?

Exatamente — disse Miles. — É assistente social. Só anda com uns sapatinhos baixos.

Então ela já foi lá na loja, não é mesmo, How? — exclamou Mau­reen toda empolgada. — Mas, pelo jeito dela, diria no máximo que era uma cozinheira...

Depois da sopa, veio um lombo de porco assado. Com a conivência do sogro, Samantha estava aos poucos mergulhando numa agradável embria­guez. Algo nela, porém, fazia protestos desesperados, como os de um ho­mem arrastado pelo mar. E ela, então, tentava afogá-los com mais vinho.

Um momento de silêncio pairou sobre a mesa como uma toalha limpa, imaculada e cheia de expectativas, e, desta vez, todos ali pareciam saber que era Howard quem devia introduzir o novo assunto. Por alguns instantes, ele ficou só comendo, empurrando as fartas garfadas com goles de vinho, aparentemente alheio aos olhares pregados nele. Afinal, quando o seu prato já estava pela metade, limpou a boca com o guardanapo e começou a falar.

É, vai ser interessante ver o que acontece com o Conselho agora...

Neste ponto, foi obrigado a parar para conter um sonoro arroto e, por alguns segundos, pareceu até que ele estava enjoado. — Desculpem — disse ele, então, batendo no peito. — É. Vai ser muito interessante. Sem Fairbrother — à maneira dos homens de negócios, Howard voltou a cha­mar o adversário pelo nome que geralmente usava —, não acredito que o tal artigo seja publicado. A não ser, é claro, que Aluga-Ouvido resolva assumir essa tarefa — acrescentou ele.

Howard tinha apelidado Parminder Jawanda de Aluga-Ouvido depois da sua primeira participação no Conselho Distrital. Acrescentou ainda o sobrenome Bhutto, fazendo referência à célebre figura política do Paquis­tão. Mas foi a primeira parte do apelido que se generalizou como brinca­deira entre os membros da facção anti-Fields.

Se você visse a cara dela — disse Maureen, dirigindo-se a Shirley.

A cara que ela fez quando lhe contamos. Bom... eu sempre achei que... Sabe o quê, não é?

Samantha aguçou os ouvidos, mas a insinuação de Maureen era sim­plesmente ridícula. Parminder era casada com o homem mais lindo de Pagford. Vikram era alto, tinha um corpo bonito, um nariz aquilino, uns olhos contornados por longos cílios pretos e um sorriso perspicaz e des­contraído. Há anos que Samantha vinha jogando o cabelo para trás e rin­do mais que o necessário sempre que parava na rua para conversar com ele. Vikram tinha o mesmo tipo de corpo de Miles quando este ainda jogava rúgbi e não era flácido e barrigudo.

Pouco depois que os Jawanda se mudaram para o seu bairro, Samantha tinha ouvido dizer, não lembrava onde, que o casamento deles havia sido arranjado. Achou essa idéia incrivelmente erótica. Imagine só mandarem você se casar com Vikram, ser obrigada a fazer isso... Elaborou toda uma fantasia em que se via usando um véu e entrando numa sala, uma virgem condenada a cumprir o seu destino... Imagine só você erguer os olhos e ver que o seu destino é aquilo... E, ainda por cima, havia o frisson provo­cado pela sua profissão: tanta responsabilidade assim já daria um toque de sedução a qualquer outro, bem mais feio...

(Foi Vikram quem realizou a cirurgia para implantar as quatro pontes de safena em Howard, sete anos atrás. Resultado: até hoje, ele não pode entrar na Mollison & Lowe sem ser recebido por uma avalanche de brin­cadeiras por parte do proprietário da loja.

Por favor, passe na frente de todos, dr. Jawanda! Deixem ele passar, minhas senhoras... Não, dr. Jawanda, eu insisto... Esse homem salvou a minha vida, gente! Remendou a velha bomba aqui dentro... O que vai ser, dr. Jawanda?

Ainda fazia questão de que o médico levasse amostras grátis e lhe dava alguma coisa de quebra em tudo que ele comprasse. E Samantha podia jurar que era por causa dessas gracinhas que Vikram raramente entrava na delicatéssen.)

A essa altura, tinha perdido o fio da conversa, mas isso pouco impor­tava. Todos continuavam falando de alguma coisa que Barry Fairbrother havia escrito para o jornal local.

...ia ter que falar com ele sobre essa história — estava dizendo Ho­ward, com aquele seu vozeirão. — É um jeito muito desonesto de fazer as coisas. Bom, bom, mas isso são águas passadas... O importante agora é saber quem vai substituir Fairbrother. E não devemos subestimar Aluga-Ouvido, por mais transtornada que ela esteja. Isso seria um tremendo erro. Muito provavelmente, ela já está tentando aliciar alguém, portanto nós também devíamos começar a pensar num substituto à altura. Quan­to mais cedo, melhor. É simplesmente uma questão de boa gestão.

O que isso representa exatamente? — indagou Miles. — Uma eleição?

Possivelmente — respondeu Howard, com ar judicioso. — Mas duvido muito. Trata-se apenas de um caso de vacância. Se não houver nenhuma pressão para a convocação de eleições... Embora, como já disse, a gente não deva subestimar Aluga-Ouvido. Mas ela sempre pode não conseguir convencer nove pessoas a lançarem a proposta de uma eleição... Sendo assim, tudo vai se resumir à indicação de um novo conselheiro. Nesse caso, precisamos do voto de nove membros do Conselho para rati­ficar o nome indicado. Nove é o quorum exigido. Ainda faltam três anos para o fim do mandato de Fairbrother. Vale a pena. Nós podíamos dar uma guinada na situação pondo lá alguém do nosso lado para substituir Fairbrother.

Howard ficou tamborilando com os dedos grossos na taça de vinho e olhando para o filho do outro lado da mesa. Tanto Shirley quanto Maureen também olhavam para ele, e Miles, pelo menos foi a impressão que Samantha teve, encarava o pai como um grande labrador gorducho, ansiosíssimo na expectativa de uma recompensa qualquer.

Um segundo depois do que aconteceria se ela estivesse sóbria, Saman­tha compreendeu o que tudo aquilo significava e por que a atmosfera que cercava aquela mesa era tão festiva. A embriaguez vinha sendo libertado­ra, mas, de repente, tornou-se uma limitação, pois ela não sabia se a pró­pria língua teria condições de lhe obedecer depois de mais de uma garrafa de vinho e de tanto tempo em silêncio. Resolveu, então, pensar as palavras em vez de dizê-las em voz alta.

Porra, Miles! Você bem que podia dizer a eles que tem que conversar comigo antes...

 

Tessa Wall não pretendia se demorar muito na casa de Mary — nunca se sentia à vontade quando deixava o marido e Bola sozinhos em casa —, mas a visita acabou se estendendo por umas duas horas. A casa dos Fairbrother estava abarrotada de colchonetes e sacos de dormir. A família, grande, tinha se reunido em torno do vazio deixado pela morte, mas não havia barulho ou movimento que pudessem disfarçar o abismo em que Barry havia desaparecido.

Sozinha com os seus pensamentos pela primeira vez desde que o amigo morrera, Tessa foi descendo bem devagar a Church Row no escuro, com os pés doendo e o casaco insuficiente para protegê-la do frio. Os únicos ruídos que se ouviam era o tac-tac das contas de madeira penduradas no seu pesco­ço e, ao longe, o som das televisões nas casas por onde ia passando.

De repente, lhe veio uma idéia: Será que Barry sabia?

Nunca tinha lhe ocorrido antes que o marido pudesse ter contado a Barry o grande segredo da vida dela, aquela coisa podre que jazia enterra­da bem no fundo do seu casamento. Colin e ela nem sequer tocavam no assunto (embora uma leve sombra viesse turvar mais de uma das conversas do casal, principalmente nos últimos tempos).

Esta noite, porém, Tessa teve a impressão de perceber um olhar de Mary quando ela mencionou Bola...

Você está exausta e fica imaginando coisas, disse consigo mesma em tom decidido. Os hábitos de discrição de Colin eram tão fortes, tão pro­fundamente arraigados, que ele jamais contaria algo assim, nem mesmo a Barry, que ele tanto idolatrava. Tessa detestava a idéia de Barry ter ficado sabendo... Detestava pensar que o carinho que Fairbrother tinha por Co­lin pudesse ser resultado da pena que ele sentia do amigo pelo que ela, Tessa, tinha feito...

Quando entrou na sala de estar, viu o marido de óculos, diante da te­levisão, que transmitia o noticiário. Tinha uma pilha de páginas impressas no colo e uma caneta na mão. Para alívio de Tessa, não havia sinal do filho por ali.

Como ela está? — perguntou Colin.

Bom, sabe como é... Não está nada bem — respondeu a mulher. Jogou-se numa das velhas poltronas, com um leve suspiro de alívio, e tirou os sapatos surrados. — Mas o irmão de Barry tem sido maravilhoso.

Em que sentido?

Ora... ajudando.

Fechou os olhos e massageou o dorso do nariz e as pálpebras com o polegar e o indicador.

Sempre achei que ele não era lá muito confiável — disse Colin.

E mesmo? — perguntou Tessa do fundo da escuridão voluntária em que se encontrava.

É. Lembra quando ele disse que viria apitar aquele jogo contra a Paxton High e desmarcou com meia hora de antecedência? Bateman aca­bou tendo que ser o árbitro da partida.

Tessa teve vontade de retrucar com rispidez. Que mania ele tinha de fazer juízos definitivos a partir de primeiras impressões, de uma única ati­tude! Colin parecia nunca se dar conta da imensa mutabilidade da natu­reza humana, nem conseguir perceber que, por trás de um rosto qualquer, sempre existia toda uma extensão de terra selvagem e única como a dele mesmo.

Bom, mas ele está sendo ótimo com as crianças — replicou ela, cautelosa. — Tenho que ir me deitar.

Mas não se mexeu. Ficou ali sentada, reparando nas dores diferentes que sentia em diversas partes do corpo: nos pés, na lombar, nos ombros.

Sabe no que andei pensando, Tess?

Hmmm?

As lentes reduziam tanto as proporções dos olhos dele que a testa alta e a careca ficavam ainda mais pronunciadas.

Nas coisas que Barry estava tentando fazer no Conselho Distrital. Em tudo pelo que ele andava lutando: Fields, a clínica de reabilitação... Passei o dia todo refletindo sobre isso. — Respirou profundamente e acres­centou: — Estou pensando seriamente em assumir essas tarefas no lugar dele...

A apreensão desmoronou sobre Tessa, deixando-a pregada na poltro­na e momentaneamente incapaz de articular qualquer som. Lutou para manter a expressão profissionalmente neutra.

Tenho certeza de que era o que Barry teria desejado — prosseguiu Colin, e o seu estranho entusiasmo vinha acompanhado de uma atitude defensiva.

Nunca!, exclamou o eu mais honesto de Tessa, nem por um segundo Barry teria desejado que você fizesse isso. Ele saberia muito bem que você é a última pessoa no mundo indicada para algo assim.

Puxa! — disse ela. — Eu sei que Barry era muito... Mas seria um compromisso gigantesco, Colin. E Parminder não se foi. Ela continua aqui e continua tentando fazer tudo que Barry queria.

Eu devia ter ligado para Parminder, pensou Tessa, assim que formulou aquela frase. E sentiu um aperto de culpa no estômago. Ah, meu Deus, por que não me lembrei de telefonar para Parminder?

Mas ela vai precisar de apoio. Nunca vai conseguir enfrentar todos eles sozinha — insistiu Colin. — E garanto que Howard Mollison já está preparando um fantoche para substituir Barry. Talvez já tenha até...

Ah, Colin...

Posso apostar! Você sabe como ele é!

Abandonadas, as folhas que estavam no seu colo caíram no chão, for­mando uma suave cascata branca.

Quero fazer isso por Barry. Vou levar adiante o que ele deixou ina­cabado. Vou fazer tudo para que o trabalho dele não tenha sido em vão. Conheço bem os argumentos que ele usava. Barry sempre disse que, aqui, teve oportunidades que jamais teria em outras circunstâncias. E veja tudo que ele fez pela comunidade em troca disso. Estou decidido a tentar. Ama­nhã mesmo vou ver o que preciso fazer.

Está certo — replicou Tessa. Anos de experiência tinham lhe ensina­do que, quando Colin se entusiasmava por alguma coisa, não era boa idéia contestar os seus ímpetos iniciais, pois tudo o que se conseguia, assim, era reforçar a sua determinação de seguir adiante. Os mesmos anos haviam ensinado a Colin que, muitas vezes, a sua mulher fingia concordar antes de fazer qualquer objeção. Esse tipo de diálogo era sempre permeado pela lembrança mútua, mas não verbalizada, do tal segredo há tanto enterrado. Tessa sentia que lhe devia algo. E ele se sentia credor.

É uma coisa que quero fazer mesmo, Tessa.

Eu entendo, Colin.

Ela se levantou da cadeira pensando se teria força suficiente para subir a escada.

Você não vem?

Já, já. Quero acabar de examinar isso aqui primeiro — respondeu ele, juntando as folhas que tinham caído no chão. Aparentemente, aquele novo projeto temerário estava lhe dando uma energia febril.

No quarto, Tessa começou a se despir bem devagar. A gravidade pa­recia ter se tornado muito mais forte: que dificuldade para erguer braços e pernas, para obrigar o zíper obstinado a fazer o que ela queria. Enfiou o robe e foi para o banheiro. Dali, dava para ouvir Bola para lá e para cá no andar de cima. Vinha se sentindo tão só e exaurida ultimamente, num constante vaivém entre o marido e o filho, aqueles dois que pareciam ter cada qual a sua existência inteiramente independente; que pareciam tão estranhos um ao outro quanto um inquilino e o seu senhorio.

Só quando foi tirar o relógio lembrou que não sabia onde o tinha posto desde a véspera. Andava tão cansada... Vivia perdendo as coisas... E como foi se esquecer de ligar para Parminder? Com lágrimas nos olhos, preocu­pada e tensa, arrastou-se até a cama.

 

                          Quarta-feira

Nas noites de segunda e terça7 Krystal Weedon dormiu no chão do quarto da amiga Nikki, depois de uma briga feia com a mãe. Tudo começou quando Krystal, que tinha estado circulando pelo bairro com outras ga­rotas, chegou em casa e viu Terri conversando com Obbo na soleira da porta. Ali em Fields, todo mundo conhecia Obbo, com aquela cara inex­pressiva e meio inchada, o sorriso banguela, os óculos de fundo de garrafa e a velha jaqueta de couro nojenta.

Guarda isso aí pra gente, Ter. É só por uns dias. E ainda vai render uma graninha pra você...

Guardar o quê? — perguntou Krystal. Nesse instante, Robbie saiu de trás das pernas da mãe e se agarrou com toda a força aos joelhos da irmã. Ele não gostava nada de ver homens chegando àquela casa. E não era à toa.

Nada. Só uns computadores.

Fica com isso, não — disse Krystal, dirigindo-se à mãe.

Não queria ver Terri com algum dinheiro na mão. Não duvidava nada que Obbo fosse direto ao ponto e pagasse aquele favorzinho com uma dose de heroína.

Fica com isso, não.

Mas Terri ficou. Krystal passou a vida toda vendo a mãe dizer sim para tudo e para todos: concordando, aceitando, consentindo. Era sempre cla­ro, na boa, vamos lá, tá legal, sem problemas.

Já estava escurecendo. A garota foi encontrar uns amigos lá nos balan­ços. Sentia-se tensa e irritadiça. Ainda não tinha conseguido assimilar a idéia da morte do sr. Fairbrother, mas não parava de sentir uns socos na boca do estômago e estava louca para descontar aquilo em alguém. Tam­bém estava chateada e culpada por ter roubado o relógio de Tessa Wall. Mas por que diabos aquela vaca burra foi botar o tal relógio bem na cara dela e fechar os olhos? O que ela estava querendo?

Ficar com a sua turma não ajudou em nada. Jemma passou o tempo todo implicando com ela por causa de Bola Wall, e, lá pelas tantas, Krystal explodiu e partiu para cima da garota. Nikki e Leanne tiveram de segurá-la. Krystal voltou então para casa e viu que os computadores de Obbo tinham chegado. Robbie tentava subir na pilha de caixas enquanto a mãe continuava sentada, numa espécie de torpor, com todos aqueles apetrechos espalhados no chão à sua frente. Como a garota temia, Obbo tinha lhe dado um saquinho de heroína em pagamento pelo serviço prestado.

Deixa de ser burra, sua vaca drogada! A porra da clínica vai chutar você de novo!

Mas a heroína deixava a sua mãe num lugar onde ninguém conseguia alcançá-la. Embora Terri tenha revidado, xingando a filha de vaca e de putinha, fez isso de um jeito vago, distante. Krystal lhe deu então um tapa na cara. E Terri mandou que ela caísse fora dali e morresse.

Então vê se cuida dele pra variar, viu, sua inútil! Sua vaca viciada de merda! — berrou a garota.

Robbie veio gritando atrás dela pelo corredor, mas a irmã saiu batendo a porta.

A casa de Nikki era a preferida de Krystal. Não era tão arrumadinha quanto a da avó Cath, mas era mais acolhedora, mais barulhenta e movi­mentada, de um jeito que ela achava bem gostoso. Nikki tinha dois irmãos e uma irmã, e Krystal dormia no chão, num edredom dobrado entre as camas das garotas. As paredes eram recobertas de fotos de rapazes incríveis e moças lindas, todas recortadas de revistas e formando uma colagem. Krystal nunca tinha pensado em enfeitar as paredes do próprio quarto...

Mas, por dentro, ela estava roída pela culpa. Não conseguia parar de pensar na carinha apavorada de Robbie quando ela saiu batendo a porta. E foi por isso que acabou voltando para casa na quarta-feira de manhã. De qualquer jeito, a família de Nikki não estava disposta a deixá-la ficar ali por mais de duas noites seguidas. Uma vez, com a sua franqueza habitual, a amiga lhe disse que a mãe não se importava que Krystal dormisse lá, contanto que não fosse com muita freqüência, que ela não fizesse a casa deles de hospedaria e, principalmente, que parasse de chegar depois da meia-noite.

Como sempre, Terri pareceu feliz ao vê-la voltar. Falou sobre a visita da nova assistente social, e Krystal ficou bem aflita, imaginando o que a desconhecida teria achado da casa, que, nos últimos tempos, andava abai­xo dos seus padrões habituais de sujeira. O que mais a preocupava, porém, era que Kay tivesse visto Robbie em casa, pois Terri tinha se comprome­tido a mantê-lo na pré-escola, para onde ele havia sido mandado quando ainda estava com a mãe substituta. Esta havia sido a condição determinan­te na negociação para trazê-lo de volta para casa no ano anterior. Também ficou furiosa quando soube que a assistente social viu o menino de fraldas depois de todo o trabalho que teve para persuadi-lo a usar o vaso sanitário.

Que que ela disse, afinal? — perguntou.

Que ia voltar — respondeu Terri.

Krystal teve um mau pressentimento ao ouvir aquilo. Aparentemen­te, a assistente social que já conheciam se dava por satisfeita em deixar a família Weedon ir levando a vida sem maiores interferências. Com o seu jeitão meio distraído e nada metódico, quase sempre errando os no­mes deles e confundindo as suas informações com as de outras famílias que acompanhava, ela aparecia por lá de quinze em quinze dias, dando a impressão de não ter outro objetivo senão verificar se Robbie ainda estava vivo.

A nova ameaça só fez piorar o mau humor de Krystal. Quando estava limpa, Terri se deixava intimidar pelos acessos de raiva da filha e permitia que ela mandasse e desmandasse na sua vida. Fazendo o melhor uso pos­sível daquela autoridade temporária, Krystal mandou que a mãe fosse se vestir direito, obrigou Robbie a voltar a usar cuecas limpas, repetiu mais uma vez que ele não podia fazer xixi na calça e tratou de levá-lo para a escola. Quando viu que a irmã ia embora, Robbie abriu o maior berreiro. De início, Krystal ficou irritada, mas acabou se agachando junto dele, prometendo que ia voltar mais tarde para buscá-lo. E o menino deixou que ela se fosse.

Ela, então, matou aula, embora a quarta-feira fosse o seu dia favorito na escola, porque tinha tanto educação física quanto orientação educacional. Estava decidida a limpar um pouco a casa, passar um desinfetante com cheiro de pinho na cozinha, jogar todos os restos de comida e pontas de cigarros no latão de lixo. Escondeu a lata de biscoitos onde ficavam os apetrechos de Terri e carregou os computadores restantes (três já tinham sido entregues), para guardá-los no armário do corredor.

Enquanto raspava a comida grudada nos pratos, Krystal não parava de pensar na equipe de remo. Teriam treino na noite seguinte, se o sr. Fairbro­ther ainda estivesse vivo. Em geral, ele lhe dava carona na ida e na volta, já que ela não tinha outra maneira de chegar até o canal lá em Yarvil. As gêmeas Niamh e Siobhan iam no carro, e Sukhvinder Jawanda também. Na escola, Krystal não tinha nenhum contato com as três, mas, desde que passaram a fazer parte do mesmo time, elas sempre diziam "Tudo bom?" quando se cruzavam nos corredores. Krystal ficou achando que as garotas iam torcer o nariz para ela, mas acabou descobrindo que eram até legais. Riam das suas piadas. Passaram a usar algumas das suas frases favoritas. De certa forma, ela era a líder da equipe.

Na sua família, ninguém jamais teve carro. Com alguma concentra­ção, conseguia até sentir o cheiro daquela caminhonete, apesar do fedor da cozinha da mãe. Adorava aquele cheiro de plástico. Nunca mais ia andar naquele carro. Houve ocasiões em que foram num micro-ônibus, e era o sr. Fairbrother que ia dirigindo. Aconteceu até de passarem a noi­te fora, quando iam competir com escolas que ficavam mais longe. Lá dos últimos bancos do micro-ônibus, a equipe começou a cantar "Umbrella", de Rihanna, e aquilo acabou virando um ritual para dar sorte, a música-tema do grupo, com Krystal fazendo, no início, o solo do rapper Jay-Z. O sr. Fairbrother quase fez xixi na calça da primeira vez que a ouviu cantar.

 

                       Uh huh uh huh, Rihanna...

                       Good girl gone bad —

                       Take three —

                       Action.

                       No clouds in my storms...

                       Let it rain, I hydroplane into fame

                       Comin' down with the Dow Jones...

 

Krystal nunca tinha entendido aquela letra... "Garota boazinha que virou má... Tomada três. Ação. Não existem nuvens nas minhas tempesta­des... Pode chover, que eu hidroplano para a fama... Caindo junto com o Dow Jones..."

Pombinho Wall mandou uma circular para todas elas, dizendo que a equipe não voltaria a se reunir até conseguirem um novo técnico. Mas nunca iam arranjar um novo técnico. Estavam na maior merda. Todo mundo sabia disso.

Era a equipe do sr. Fairbrother, o seu projeto do coração. Nikki e o resto da turma tinham caído na sua pele quando ela topou entrar para o time. Todo aquele deboche encobria incredulidade, e, com o passar do tempo, admiração porque elas ganharam várias medalhas (Krystal guarda­va as suas numa caixa que tinha roubado da casa de Nikki. Ela tinha ma­nia de se apoderar de coisas que pertencessem a pessoas de quem gostava. A tal caixa era de plástico enfeitada com umas rosas. Na verdade, uma caixinha de jóias de criança. Agora, o relógio de Tessa estava enroladinho ali dentro).

A melhor coisa foi quando ganharam daquelas vaquinhas metidas lá da St. Anne. Para Krystal, aquele foi o melhor dia da sua vida. A diretora chamou a equipe lá na frente, quando a escola inteira estava reunida na segunda-feira de manhã. A garota ficou meio chateada porque Nikki e Leanne começaram a rir dela, mas, depois, todos aplaudiram... A Winterdown derrotar a St. Anne não era pouca coisa, não.

Agora, porém, tudo aquilo tinha acabado: as viagens de carro, o remo, a entrevista para o jornal local. Krystal tinha gostado da idéia de aparecer de novo na imprensa. O sr. Fairbrother garantiu que ia estar lá com ela. Só eles dois.

Eles vão querer que eu fale o quê?

Sobre a sua vida. Estão interessados na sua vida.

Gomo uma celebridade. Krystal não tinha dinheiro para comprar re­vistas, mas podia vê-las na casa de Nikki e no consultório, quando levava Robbie ao médico. Seria ainda melhor que sair no jornal junto com a equipe inteira. Ficou empolgadíssima com a perspectiva da tal entrevista, mas, sabe-se lá como, conseguiu ficar de boca fechada e não se vangloriar nem com Nikki ou Leanne. Queria que fosse surpresa. E foi bom não ter falado nada, porque nunca mais ia aparecer no jornal.

Krystal estava sentindo um vazio no estômago. Tentou não pensar mais no sr. Fairbrother e continuou circulando pela casa, limpando tudo, sem muito jeito, mas com muita disposição. Enquanto isso, a sua mãe ficou sentada na cozinha, fumando e com os olhos pregados na janela dos fundos.

Pouco depois do meio-dia, uma mulher estacionou um velho Vauxhall azul diante da casa. Krystal a viu lá da janela do quarto de Robbie. Ela tinha o cabelo escuro bem curtinho. Estava de calça preta, usava uma espécie de colar de contas, tipo étnico, e trazia no ombro uma sacola que parecia cheia de papéis.

A garota correu escada abaixo.

Acho que é ela — gritou para a mãe, que ainda estava na cozinha.

A assistente.

A mulher bateu à porta, e Krystal foi abrir.

Olá. Sou Kay, a substituta de Mattie. Você deve ser Krystal.

É — respondeu a garota, sem se preocupar em retribuir o sorriso da outra. Levou-a à sala de estar e percebeu que ela tinha reparado que o lugar estava arrumado, ao menos até certo ponto: o cinzeiro tinha sido esvaziado e boa parte das tralhas estava agora entulhada na tal estante quebrada. O tapete continuava imundo, porque o aspirador não estava funcionando, e a toalha e a pomada para assaduras jaziam no chão com um dos carrinhos de Robbie encarapitado na ponta do tubo. Krystal tinha tentado distrair o irmão com aquele carrinho enquanto limpava o seu bumbum.

Robbie tá na escola — disse ela. — Levei ele lá. E ele tá de cueca de novo. Ela vive fazendo ele usar fralda outra vez. Já disse pra ela não fazer isso. Passei pomada no bumbum dele. Vai sarar logo, é só uma assadura.

Kay sorriu novamente. Krystal olhou na direção da porta e gritou:

Mãe!

Terri veio da cozinha. Estava usando jeans e um moletom velho e sujo, mas, só por estar mais vestida, já tinha uma aparência melhor.

Oi, Terri — disse Kay.

Tudo bom? — replicou Terri, dando uma longa tragada no cigarro.

Senta — disse Krystal, dirigindo-se à mãe, que obedeceu, enroscando-se na mesma cadeira da véspera. — Quer uma xícara de chá ou qualquer outra coisa? — perguntou a garota, desta vez para Kay.

Seria ótimo — respondeu a assistente social, sentando-se e abrindo a pasta. — Obrigada.

Krystal saiu da sala às pressas, mas ficou prestando a maior atenção, tentando ouvir o que Kay dizia à sua mãe.

Com certeza não esperava me ver de novo tão cedo, não é, Terri? - foi a frase que ouviu (a mulher tinha um sotaque estranho. Parecia gente de Londres, como aquela babaquinha toda metida a besta que tinha entrado para a escola agora e que estava deixando metade dos garotos assanhadíssimos). — E que fiquei bem preocupada com Robbie ontem. Krystal me disse que ele voltou para a escola hoje.

Foi — disse Terri. — Ela que levou. Voltou pra casa hoje de manhã.

Voltou? De onde?

Tava só na... Fui dormir na casa de uma amiga — respondeu Krys­tal, que voltou correndo à sala para se defender.

É, mas voltou hoje de manhã — acrescentou Terri.

A garota foi verificar a chaleira. Quando a água começou a ferver, o ba­rulho ficou tão forte que ela não conseguiu mais ouvir uma palavra do que a mãe e a assistente social estavam dizendo. Tentando fazer tudo o mais depressa possível, despejou um pouco de leite nas canecas, junto com os saquinhos de chá, e voltou para a sala carregando as três canecas pelando. Chegou bem a tempo de ouvir Kay dizendo:

...falei com a sra. Harper lá na escola ontem...

Aquela vaca! — exclamou Terri.

Pronto! — disse Krystal, pondo as canecas no chão e virando a alça de uma delas na direção de Kay.

Muito obrigada — replicou a assistente social. — A sra. Harper me disse, Terri, que Robbie tem faltado muito nos últimos três meses. Há um bom tempo que não vai lá uma semana inteira, não é mesmo?

Quê? — perguntou Terri. — Não vai, não. Vai, sim. Só faltou on­tem. E quando tava com dor de garganta.

Quando foi isso?

Quê? Tem um mês... um mês e meio... por aí.

Krystal sentou no braço da poltrona da mãe. Ficou encarando Kay ali do alto, mascando o seu chiclete com toda a força, com os braços cruza­dos, como Terri. Kay tinha uma pasta volumosa aberta no colo. A garota detestava aquelas pastas. Ali tinha um monte de coisas que eles escreviam, guardavam e, depois, usavam contra as pessoas...

Eu é que levo Robbie pra escola — disse ela. — Fica no caminho da minha.

Bom, segundo a sra. Harper, a freqüência de Robbie piorou bastan­te — insistiu Kay, olhando as anotações que tinha feito depois da conversa com a administradora da instituição. — O problema é o seguinte, Terri: você se comprometeu a manter Robbie na pré-escola quando ele voltou para casa no ano passado.

Porra nenhuma... — principiou a mulher.

Não! Cala a boca! — esbravejou Krystal. E, virando-se para Kay, acrescentou: — Ele tava doente, tá? As amígdalas tavam inflamadas. A médica mandou dar antibiótico.

E isso foi quando?

Tem umas três semanas... Por aí, tá?

Quando estive aqui ontem — disse Kay, voltando a se dirigir à mãe dos meninos (Krystal mascava o chiclete com toda a força e os seus braços formavam uma barreira dupla na altura das costelas) —, você parecia estar tendo muita dificuldade em atender às necessidades do seu filho.

Krystal olhou para Terri. As suas coxas eram duas vezes as da mãe na largura.

Eu não... Eu nunca... — principiou Terri, mas mudou de idéia. — Ele tá ótimo.

Uma desconfiança passou pela cabeça de Krystal como a sombra de um abutre em vôos circulares.

Terri, você tinha usado droga quando cheguei aqui ontem, não tinha?

Porra nenhuma! Que merda... Você tá... Não usei nada, tá bom?

Krystal sentia um peso comprimindo os seus pulmões e os ouvidos zumbindo. Pelo visto, Obbo não tinha dado só um saquinho à sua mãe, mas um monte deles. A assistente social a viu inteiramente chapada. Da próxima vez que fosse à Bellchapel, o teste ia dar positivo e, mais uma vez, iam pôr Terri para fora de lá.

(...e, sem a metadona, ia ser de novo aquele pesadelo: Terri virando um verdadeiro bicho, voltando a abrir a boca cheia de dentes quebrados para o pau de qualquer estranho e, assim, alimentar as próprias veias. E Robbie ia ser levado embora de novo, talvez para nunca mais voltar. Num coraçãozinho de plástico vermelho pendurado ao chaveiro que estava sempre no seu bolso, Krystal tinha uma foto de Robbie. Uma foto já antiga. O coração de verdade da garota começou a bater forte, do jeito que ele batia quando ela remava a toda, puxando e puxando os remos na água, com os músculos tinindo, e vendo a outra equipe ir ficando para trás...)

Sua babaca... — gritou ela, mas ninguém a ouviu, porque Terri continuava esbravejando, e Kay, sentada ali com a caneca nas mãos, tinha um ar absolutamente indiferente.

Não usei porra nenhuma, você não tem prova nenhuma...

Sua babaca idiota — disse Krystal, ainda mais alto.

Não usei nada, cacete! Que porra de mentira é essa? — berrava Terri. Um bicho preso numa rede, se debatendo e ficando cada vez mais enredado. — Não fiz merda nenhuma, tá bom? Nunca...

A porra da clínica vai chutar você outra vez, sua filha da puta im­becil!

Não fala assim comigo!

Já chega — disse Kay, alto o bastante para se fazer ouvir. Pôs a ca­neca no chão e se levantou, assustada com o que havia desencadeado. De repente, efetivamente apavorada, gritou: — Terri! — pois a mulher tinha se erguido e, meio debruçada sobre o outro braço da poltrona, encarava a filha. Como gárgulas, as duas berravam, o nariz de uma quase encostando no da outra.

Krystall — gritou ela, quando a garota ergueu o punho.

Num movimento brusco, Krystal saiu da poltrona, afastando-se da mãe. Ficou espantada ao sentir um líquido quente lhe escorrendo pelo rosto e, um tanto confusa, achou que pudesse ser sangue. Mas eram lágri­mas, apenas lágrimas, que reluziram nos seus dedos quando ela passou a mão para enxugá-las.

Tudo bem — disse Kay, nervosa. — Vocês duas, tratem de se acal­mar, por favor!

Calma você, porra! — retrucou Krystal. Ainda trêmula, ela enxugou o rosto com o braço e se encaminhou para a poltrona da mãe. Terri se en­colheu, mas a garota simplesmente apanhou o maço e o isqueiro, pegou o último cigarro que havia ali e o acendeu. Soltando baforadas, atravessou a sala na direção da janela e virou de costas, tentando conter mais lágrimas antes que elas começassem a escorrer.

Ok — disse Kay, ainda de pé. — Será que podemos conversar com calma?

Ah, cai fora daqui! — exclamou Terri, num tom apático.

A questão toda é Robbie — insistiu Kay, que, assustada demais para relaxar, continuava de pé. — É por ele que estou aqui. Para garantir que ele fique bem.

Tá legal, ele andou faltando à porra da escola — retrucou Krystal, lá da janela. — E desde quando isso é crime?

...é crime? — repetiu Terri, num eco distante.

Não é só a escola — disse Kay. — Quando o vi ontem, ele estava mijado e assado. Robbie já está grande demais para usar fralda.

Eu tirei a fralda dele! Agora, ele tá de cueca. Já disse, pô! — excla­mou Krystal, furiosa.

Lamento, Terri — prosseguiu Kay —, mas você não estava absoluta­mente em condições de cuidar sozinha de uma criança pequena.

Eu nunca...

Pode ficar repetindo para o resto da vida que não usou droga ontem — disse Kay, e, pela primeira vez, Krystal percebeu algo real e humano na voz daquela mulher: exasperação, irritação. — Mas vai ser submetida ao teste lá na clínica. Nós duas sabemos muito bem que o resultado vai ser positivo. Eles estão dizendo que é a sua última chance, que vão cortá-la novamente do programa.

Terri limpou a boca com o dorso da mão.

Olhem só: dá para ver que nenhuma das duas quer perder Robbie...

Então não leva ele embora, porra! — gritou Krystal.

As coisas não são tão simples assim — replicou Kay, voltando a se sentar. Apanhou a pesada pasta do chão onde ela tinha caído e a pôs no colo novamente. — Quando conseguiu ter Robbie de volta, no ano passado, Ter­ri, você estava há um tempo sem usar heroína. Na época, você se compro­meteu a continuar limpa, a seguir o programa, e também aceitou algumas outras condições, como, por exemplo, manter o menino na escola...

É, e fiz...

Só por uns tempos — interrompeu Kay. — Por uns tempos, você fez o que prometeu, Terri, mas demonstrar que está se esforçando não é o bastante. Depois do que vi quando estive aqui ontem, e depois de con­versar com a sra. Harper e com a responsável pelo seu caso lá na clínica, acho que não temos outra alternativa senão analisar mais uma vez como as coisas estão funcionando.

Que que é isso? — indagou Krystal. — Mais uma porra de revisão de caso, é? Pra quê? Pra quê, hein? Ele tá direitinho. Tô cuidando dele... Cala a boca, porra! — gritou ela, dirigindo-se à mãe, que estava tentando dizer alguma coisa lá da poltrona. — Ela não... Eu é que tô cuidando dele, falou? — prosseguiu ela, parada diante de Kay, com o rosto corado, os olhos pintadíssimos cheios de lágrimas de raiva, batendo com um dos dedos no próprio peito.

Krystal visitou Robbie regularmente na casa dos pais substitutos duran­te todo o mês que o menino passou longe delas. Ele se agarrava à irmã, queria que ela ficasse para lanchar, chorava quando ela ia embora. Parecia que lhe arrancavam um pedaço do próprio corpo e o mantinham como refém. Krystal quis que Robbie fosse para a casa da avó Cath, como ela foi tantas vezes em criança, sempre que Terri entrava numa das suas crises. Agora, porém, a bisavó estava velha e fragilizada, e não tinha tempo para cuidar de Robbie.

Compreendo perfeitamente que você ama o seu irmão e está fazen­do tudo que pode por ele, Krystal — disse Kay. — Mas, legalmente, você não é a...

Não sou o quê? Sou a porra da irmã dele, não sou?

Está certo — interrompeu Kay, em tom firme. — Acho que já está na hora de encararmos os fatos, Terri. Bellchapel vai eliminá-la definiti­vamente do programa se você aparecer dizendo que não usou drogas e o teste der positivo. A responsável pelo seu acompanhamento deixou isso bem claro quando nos falamos por telefone.

Afundada naquela poltrona, estranho híbrido de velhinha e criança, com aqueles dentes faltando, Terri tinha o olhar vago e desamparado.

Acho que a única maneira de você conseguir evitar isso — prosse­guiu Kay — é admitir, logo de cara, que usou a droga, assumir a culpa pela recaída e mostrar que está disposta a começar tudo de novo, desta vez, do jeito certo.

Terri continuou olhando fixo. A mentira era a única forma que ela co­nhecia para enfrentar os seus inúmeros acusadores. — Tá, tudo bem, vamo lá — balbuciou ela, mas, logo depois, voltou a repetir: — Não. Não usei, não. Não usei porra nenhuma...

Aconteceu alguma coisa especial esta semana para você usar heroí­na? Mesmo já estando com uma dose considerável de metadona? — per­guntou Kay.

Aconteceu, sim — respondeu Krystal. — Foi o Obbo que apareceu aqui, e ela não sabe dizer uma porra de um não pra ele!

Cala a boca — disse Terri, mas sem se alterar. Aparentemente, estava tentando assimilar o que a assistente social tinha lhe dito: aquele conselho estranho e perigoso que ela lhe dera, mandando que dissesse a verdade.

Obbo? — repetiu Kay. — Mas quem é Obbo?

Um filho da puta! — respondeu Krystal.

É o seu traficante? — indagou a assistente social.

Cala essa boca — exclamou Terri mais uma vez, dirigindo-se à filha.

Por que que você não disse não pra ele, cacete?! — perguntou Krys­tal, aos berros.

Tudo bem — interrompeu Kay, mais uma vez. — Vou telefonar de novo para a clínica, Terri. Vou tentar convencer a responsável pelo seu acompanhamento, dizendo que acho que a sua permanência no progra­ma só traria benefícios para a família.

Vai? — exclamou a garota, atônita. Estava achando que Kay era uma grandessíssima filha da puta, mais filha da puta até que aquela mãe substituta com a sua cozinha impecável e aquele jeito todo gentil de falar com ela, o que a fazia sentir-se um lixo.

Vou, sim — replicou a assistente social. — Mas, no que me diz respeito, como representante do Departamento de Proteção à Criança, isso é muito sério, Terri. Vamos ter que monitorar as condições domésticas de Robbie bem de perto. E precisamos ver que as coisas estão mudando.

Tá legal — disse a mulher, concordando, como sempre concordava com tudo e com todos.

Vão mudar, sim — interveio Krystal. — Pode deixar. Ela vai mudar. Vou ajudar. Ela vai mudar.

 

Shirley Mollison passava as quartas-feiras no Hospital South West, em Yarvil. Ali, juntamente com umas dez outras voluntárias, desempenhava várias tarefas que não se relacionavam diretamente aos serviços hospitala­res: empurravam o carrinho-biblioteca até o leito dos pacientes, trocavam a água das flores e iam comprar uma coisinha ou outra na loja do saguão para aqueles que estavam de cama e não tinham nenhuma visita. De tudo isso, o que Shirley mais gostava era de ir de leito em leito, perguntando o que os pacientes iam querer na próxima refeição. Numa ocasião, de prancheta em punho e ostentando o seu crachá, foi vista como alguém da administração por um médico que cruzou com ela no corredor.

A idéia de trabalhar como voluntária lhe ocorreu durante a mais longa conversa que jamais teve com Julia Fawley, numa daquelas magníficas festas de Natal na Sweetlove House. Ficou sabendo que Julia estava em­penhada em arrecadar fundos para o setor de pediatria do hospital local.

— Nós precisávamos mesmo era da visita de algum membro da família real — disse Julia, com os olhos voltados para a porta às costas de Shirley. — Vou pedir a Aubrey que tenha uma conversinha com Norman Bailey. Ah, desculpe, preciso cumprimentar Lawrence...

E Shirley ficou parada ali, ao lado do piano de cauda, dizendo "Ah, claro, claro", mas falando para as paredes. Não fazia a mínima idéia de quem era Norman Bailey, mas sentiu a cabeça rodar. Já no dia seguinte, sem sequer dizer a Howard o que estava prestes a fazer, ligou para o Hos­pital South West e pediu informações sobre trabalho voluntário. Quando lhe disseram que não havia qualquer tipo de exigência, a não ser um cará­ter irrepreensível, uma mente sã e pernas fortes, solicitou um formulário de inscrição.

O trabalho voluntário lhe abriu as portas de um mundo inteiramente novo, glorioso. Era o sonho que, inadvertidamente, Julia Fawley tinha lhe proporcionado ao lado daquele piano de cauda: ver-se, com as mãos cru­zadas à frente do corpo, toda compenetrada, com o crachá pendurado ao pescoço, enquanto a Rainha passava bem devagar diante de uma longa fila de auxiliares todos sorridentes. Imaginou-se até fazendo uma perfeita reverência que atrairia o olhar da soberana. Esta pararia, então, para lhe falar, cumprimentando-a por devotar o seu tempo livre de forma assim tão generosa... O flash de um fotógrafo e, nos jornais do dia seguinte... "A Rainha conversa com a sra. Shirley Mollison, que trabalha como voluntária no hospital..." Às vezes, quando se concentrava efetivamente nessa cena imaginária, era tomada por uma sensação quase sagrada.

Ser voluntária no hospital tinha lhe dado uma nova arma reluzente para ceifar as pretensões de Maureen. Quando passou de vendedora a sócia, como uma espécie de Cinderela, a viúva de Ken resolveu se dar uns ares de importância, coisa que deixava Shirley furiosa (embora ela engolisse tudo aquilo com o mais meigo dos sorrisos). Agora, porém, vol­tava a ficar por cima: estava trabalhando, e não por dinheiro, mas movida simplesmente pela bondade do seu coração. Era fino ser voluntária. Era o que faziam as mulheres que não precisavam de dinheiro, mulheres como ela própria e Julia Fawley. E, além do mais, o hospital lhe dava acesso a uma vasta mina de fofocas que lhe permitiam abafar a eterna lenga-lenga de Maureen sobre o novo café.

Hoje, pela manhã, Shirley declarou, em tom firme, para o supervisor dos voluntários, que a sua enfermaria preferida era a vinte e oito, e foi devi­damente mandada para o setor de oncologia. Era lá que trabalhava a única amiga que fez em meio à equipe de enfermagem. Algumas das jovens en­fermeiras às vezes eram grosseiras e tentavam mandar nos voluntários, mas Ruth Price, que reassumiu a profissão depois de dezesseis anos afastada, se mostrou encantadora desde o começo. Nas palavras de Ruth, ambas eram mulheres de Pagford, o que criava um laço entre elas.

(Embora, a bem da verdade, Shirley não fosse nascida em Pagford. Ela e a irmã mais moça tinham crescido com a mãe, em Yarvil, num apartamento minúsculo e malcuidado. A sua mãe bebia muito. Nunca se divorciou do pai das meninas, pai que elas jamais viram na vida. Aparentemente, todos os homens das redondezas sabiam como ela se chamava e diziam o seu nome com um risinho de deboche... Mas isso foi há muito tempo, e Shirley era de opinião que o passado se desin­tegra quando a gente nunca o menciona. E se recusava a se lembrar dele.)

Shirley e Ruth se cumprimentaram felizes da vida, mas havia muito trabalho a fazer por ali e não sobrava tempo para nada, a não ser uns pou­cos comentários sobre a morte súbita de Barry Fairbrother. Combinaram de almoçar juntas ao meio-dia e meia, e Shirley logo tratou de ir buscar o carrinho dos livros.

Estava de ótimo humor. Podia ver o futuro com tamanha clareza que parecia até que ele já estava acontecendo. Howard, Miles e Aubrey Fawley iam se unir para eliminar Fields de uma vez por todas, e isso seria come­morado com um jantar na Sweetlove House...

Shirley tinha achado o lugar deslumbrante: o imenso jardim com o relógio de sol, as cercas vivas de topiaria e os lagos. Aquele saguão amplo, todo de lambris de madeira, o porta-retratos de prata em cima do piano de cauda com a foto do proprietário contando alguma coisa engraçada para a princesa real. Não detectava qualquer vestígio de condescendência na atitude dos Fawley com relação a ela própria e ao marido, mas havia tantos atrativos competindo para chamar a sua atenção sempre que penetrava na órbita dos Fawley... Tudo que conseguia imaginar eram os cinco sentados à mesa para um jantar mais íntimo numa daquelas deliciosas salinhas la­terais: Howard ao lado de Julia, ela à direita de Aubrey e Miles entre eles. (Na fantasia de Shirley, Samantha ficava irremediavelmente detida em algum outro lugar.)

Ao meio-dia e meia, as duas se encontraram perto dos iogurtes. A rui­dosa cantina do hospital ainda não estava tão cheia quanto ficaria à uma hora, portanto, a enfermeira e a voluntária não tiveram muita dificuldade em encontrar uma mesa para dois, suja e cheia de migalhas, junto da parede.

— Como vai Simon? E os meninos? — perguntou Shirley depois que Ruth limpou a mesa, as duas puseram ali em cima o conteúdo das bandejas que traziam e se sentaram, uma defronte da outra, prontas para con­versar.

— Si está ótimo, obrigada. Vai trazer o nosso novo computador hoje. Os meninos mal podem esperar. Dá para imaginar, não é?

Isso não era absolutamente verdade. Tanto Andrew quanto Paul ti­nham uns notebooks baratos, e havia também um PC que ficava num canto da minúscula sala de estar. Os garotos, porém, não tocavam nele, pois sempre preferiam evitar fazer qualquer coisa que os obrigasse a ficar perto do pai. Falando com Shirley, era comum Ruth se referir aos filhos como se eles fossem muito menores do que efetivamente eram: fáceis de levar, tratáveis, divertindo-se com qualquer coisa. Talvez ela própria qui­sesse parecer mais jovem, para enfatizar a diferença de idade que havia entre as duas — quase duas décadas — e fazer com que parecessem mãe e filha. A mãe de Ruth tinha morrido há dez anos, e ela sentia falta de ter uma mulher mais velha na sua vida. Já a relação de Shirley com a filha não era das melhores, como ela própria havia dado a entender.

"Miles e eu sempre fomos muito próximos", dissera Shirley. "Mas Patrícia sempre teve um temperamento difícil. Hoje em dia mora em Londres."

Ruth adoraria saber mais sobre essa história, mas uma qualidade que ela e Shirley tinham em comum e admiravam uma na outra era uma delicada reticência, um orgulho em apresentar ao mundo uma superfície imperturbável. A enfermeira deixou então de lado a curiosidade, embora mantendo a secreta esperança de vir a descobrir, no seu devido tempo, o que fazia de Patrícia uma pessoa tão difícil.

A afeição imediata que surgiu entre Shirley e Ruth baseava-se no mú­tuo reconhecimento de elas serem iguais: mulheres cujo maior orgulho estava em ter conquistado o afeto do marido e conseguido mantê-lo. Como membros de uma maçonaria, as duas compartilhavam um código funda­mental, e, por isso, na companhia uma da outra sentiam-se seguras como não se sentiam com nenhuma outra mulher. A cumplicidade que havia entre elas tornava-se ainda mais prazerosa na medida em que era aquecida por uma certa noção de superioridade, já que, secretamente, uma tinha pena da outra pelo marido que havia escolhido. Para Ruth, Howard era fisicamente grotesco, e não conseguia entender como a amiga, que, apesar de rechonchuda, tinha uma beleza delicada, podia ter aceitado a idéia de se casar com ele. Já Shirley não se lembrava de ter visto Simon uma única

vez que fosse, jamais ouvira o nome dele relacionado aos mais distintos trabalhadores de Pagford e havia percebido que a amiga não tinha sequer uma vida social das mais rudimentares. Para ela, portanto, o marido de Ruth parecia ser um recluso inadequado.

Então vi Miles e Samantha chegarem trazendo Barry — disse Ruth, atacando o assunto principal sem maiores preâmbulos. Ela tinha muito menos traquejo que Shirley, achando difícil disfarçar o interesse que sen­tia pelas fofocas de Pagford, às quais não tinha acesso, enfurnada como vivia no alto daquela colina, isolada do vilarejo pelo temperamento anti-social de Simon. — Eles viram mesmo quando tudo aconteceu?

Viram, sim — respondeu Shirley. — Os dois estavam jantando no clube de golfe. Sabe como é, no domingo à noite as meninas já voltaram para o colégio e Sam prefere jantar fora. Ela não é lá essas coisas na cozinha...

Aos poucos, naquelas horas de almoço, Ruth foi descobrindo detalhes da história do casamento de Miles e Samantha. Shirley lhe contou que o filho havia sido obrigado a se casar porque a namorada tinha engravidado de Lexie.

Bom, dos males o menor — disse Shirley com um suspiro, mostran- do-se visivelmente corajosa. — Miles fez a coisa certa. Eu não admitiria que fosse de outro jeito. As meninas são uns amores. Pena que não tenham tido um menino: ele seria um ótimo pai para um garoto. Mas Sam não quis um terceiro filho.

Ruth ia colecionando as críticas veladas que Shirley sempre fazia à nora. Tinha antipatizado imediatamente com Samantha, anos atrás, quando levou o filho Andrew, então com quatro anos, para o jardim de infância da St. Thomas e, lá, encontrou Samantha e a filha Lexie. Com a risada alta, o decote pronunciado e as brincadeiras inconvenientes com as outras mães no pátio da escola, aquela mulher lhe deu a impressão de ser uma perigosa predadora. Por anos a fio, Ruth viu, com desprezo, Saman­tha empinar os seios fartos quando conversava com Vikram Jawanda nos encontros de pais e se esgueirava como podia, arrastando Simon consigo, para evitar encontrá-la e ter de falar com ela.

Shirley continuava relatando a história que tinham lhe contado sobre as últimas horas de Barry — destacando ao máximo a presença de espírito de Miles, que se lembrou de chamar a ambulância, o apoio que ele deu a Mary Fairbrother, a sua insistência em permanecer no hospital até a chegada dos Wall. Ruth ouvia tudo atentamente, embora com certa impa­ciência. Shirley era muito mais divertida quando listava as impropriedades de Samantha do que quando exaltava as virtudes de Miles. Além disso, estava louca para contar à amiga uma novidade palpitante.

E agora temos uma cadeira vazia no Conselho — disse ela, na hora em que Shirley chegou ao ponto da história em que Miles e Samantha cederam o primeiro plano a Colin e Tessa Wall.

É o que denominamos "vacância' — replicou Shirley, toda solícita.

Ruth respirou fundo.

Simon — disse ela, empolgada só de mencionar o fato — está pen­sando em se candidatar.

Shirley sorriu automaticamente, ergueu as sobrancelhas numa deli­cada demonstração de surpresa e tomou um gole do chá para esconder o rosto. Ruth nem podia imaginar que acabava de deixar a amiga transtorna­da. Estava achando que ela ia ficar encantada em saber que o seu marido e o marido da amiga seriam colegas no Conselho Distrital e, ainda por cima, tinha uma vaga desconfiança de que Shirley podia até ajudar nesse sentido.

Ele me contou ontem à noite — prosseguiu Ruth, com certa pose. — Vem pensando nisso há alguns dias.

As outras coisas que Simon tinha dito, sobre a possibilidade de receber propina dos Gray para mantê-los como fornecedores do Conselho, Ruth tinha tirado da cabeça, como fazia com todas as tramóias, as pequenas falcatruas do marido.

Não imaginava que Simon tivesse interesse em participar da admi­nistração local — disse Shirley, em tom descontraído e agradável.

Tem, sim — replicou Ruth, que também não imaginava isso. — E está bem animado.

Ele andou conversando com a dra. Jawanda? — indagou Shirley, tomando mais um gole do seu chá. — Foi ela que sugeriu que ele se can­didatasse?

Ao ouvir isso, Ruth ficou perplexa, e dava para perceber que a sua sur­presa era genuína.

Não, eu... Faz tempo que Simon não vê a doutora. Quer dizer, ele tem muito boa saúde.

Shirley sorriu. Se Simon estava agindo por conta própria, sem o apoio da facção dos Jawanda, então aquela candidatura não era uma ameaça que precisasse ser levada a sério. Chegou a ter pena de Ruth, que certa­mente ia ter uma péssima surpresa. Ela, Shirley, que conhecia todos os que tinham alguma importância em Pagford, teria a maior dificuldade em identificar o marido de Ruth caso ele entrasse na delicatéssen. Será que a pobre Ruth achava que alguém votaria nele? Por outro lado, ela bem sabia que havia uma pergunta que Howard e Aubrey gostariam que ela fizesse naquelas circunstâncias.

Simon sempre morou em Pagford, não é?

Não — respondeu Ruth. — Ele nasceu em Fields.

Ah — replicou Shirley.

Tirou a tampa metalizada do pote de iogurte e pegou uma quantidade considerável com a colher. Saber que Simon provavelmente assumiria uma posição pró-Fields era, independentemente das suas chances de se eleger, uma informação importante.

Vai aparecer no site o que é preciso fazer para se candidatar? — per­guntou Ruth, ainda na esperança de receber algum incentivo.

Ah, vai, sim — respondeu Shirley, num tom um tanto vago. — Acredito que sim.

 

Andrew, Bola e outros vinte e sete alunos passaram o último tempo da tarde de quarta tendo aula do que Bola chamava de "asnática". Aquele era o penúltimo dos níveis de classificação por rendimento em matemáti­ca; a aula era dada pela professora mais incompetente do departamento: uma mocinha cheia de espinhas, recém-formada, incapaz de manter a disciplina nas turmas e que vira e mexe se mostrava a ponto de chorar. Bola, que ao longo do ano anterior havia colecionado uma série de notas baixas, tinha ido para um grupo mais atrasado nessa matéria. Andrew, que passava a vida lutando com os números, estava sempre com medo de aca­bar ficando no pior grupo de todos, junto com Krystal Weedon e o primo dela, Dane Tully.

Os dois garotos sentaram juntos, bem no fundo da sala. Às vezes, quan­do se cansava de divertir a turma ou de incitar os colegas a fazerem mais bagunça, Bola ensinava ao amigo como resolver uma conta qualquer. O barulho ali dentro era ensurdecedor. A srta. Harvey berrava a plenos pul­mões, implorando por silêncio. Folhas de exercícios apareciam cobertas de obscenidades, os alunos se levantavam o tempo todo para ir até a car­teira de um colega e faziam isso arrastando as cadeiras pelo chão, e pe­quenos mísseis voavam pela sala sempre que a professora estava olhando para outro lado. Vez por outra, Bola inventava uma desculpa qualquer e saía circulando pela sala imitando o andar de Pombinho, com aqueles passos saltitantes e os braços colados ao corpo. Era nessa aula que o humor do garoto se expandia ao máximo. Em inglês, matéria em que tanto ele quanto Andrew estavam no grupo mais adiantado, Bola não parecia muito interessado em usar Pombinho como material de diversão.

Sukhvinder Jawanda estava sentada bem na frente de Andrew. Tempos atrás, quando ainda estavam na escola primária, Andrew, Bola e outros colegas tinham puxado a trança comprida da menina. O cabelo bem preto preso daquele jeito era a coisa mais fácil de agarrar quando brincavam de pique. Naquela época, a trança caindo pelas costas de Sukhvinder, exa­tamente como agora, e escondida dos olhos da professora, representava uma tentação irresistível. Só que Andrew já não tinha a mínima vontade de puxar aquela trança, nem de tocar qualquer outra parte de Sukhvinder: ela era uma das poucas garotas por quem os seus olhos passavam sem nenhum interesse. Quando Bola chamou a sua atenção para esse detalhe, Andrew reparou na penugem escura que bordejava o seu lábio superior. Jaswant, a irmã mais velha de Sukhvinder, tinha um corpo esbelto e curvilíneo, uma cintura fininha e um rosto que, até o surgimento de Gaia, Andrew achava lindo, com as maçãs salientes, a pele ligeiramente doura­da e os olhos castanhos amendoados. É claro que Jaswant sempre esteve fora do seu alcance: era dois anos mais velha e a aluna mais inteligente do último ano, com aquela aura de quem tem plena consciência dos próprios atrativos.

Sukhvinder era a única ali na sala que não estava fazendo barulho algum. Com as costas encurvadas e a cabeça baixada sobre o exercício, pa­recia mergulhada na mais profunda concentração. Tinha puxado a manga esquerda do casaco até cobrir a própria mão e segurou firme a bainha, formando um punho de lã. Aquela completa imobilidade chegava quase a ser exibicionista.

— A grande hermafrodita fica sentada ali, quieta, imóvel — murmu­rou Bola, com os olhos pregados na nuca da garota. — Bigoduda, mas com peitos grandes. Os cientistas continuam desnorteados diante das con­tradições da mulher-homem peluda.

Andrew deu uma risadinha, mas não estava inteiramente à vontade. Teria achado mais divertido se soubesse que Sukhvinder não podia ouvir o que Bola estava dizendo. Da última vez que foi à casa do amigo, este tinha lhe mostrado as mensagens que vinha enviando regularmente para a página dela no Facebook. Andava procurando na internet informações e fotos sobre hirsutismo e vinha postando uma referência ou uma imagem por dia.

Até que era engraçado, mas Andrew ficou meio sem jeito. Na verdade, Sukhvinder não estava provocando aquilo: ela parecia um alvo fácil de­mais. Andrew gostava mais quando Bola soltava a língua afiada para cima de figuras de autoridade, de colegas pretensiosos ou metidos.

Separada do seu rebanho de seres barbudos que usam sutiã — pros­seguiu Bola —, ela fica sentada, perdida nos seus pensamentos, imaginan­do que ficaria bem de cavanhaque.

Andrew riu, mas, depois, se sentiu culpado. Bola, porém, já tinha se desinteressado da brincadeira e estava transformando cada zero da folha de exercícios num ânus franzido. Andrew voltou a tentar adivinhar onde ficaria a vírgula da casa decimal e a sonhar com a perspectiva da volta para casa no ônibus escolar com Gaia. Era muito mais difícil arranjar um jeito de ficar de olho nela nessa viagem de volta porque, em geral, ela já estava sentada no ônibus quando ele chegava e não tinha nenhum lugar por perto. Aquele sorriso compartilhado na reunião da segunda de manhã não havia dado em nada. Depois daquele dia, a garota não tinha olhado para ele no ônibus, nem demonstrado, de um jeito ou de outro, que sabia que ele existia. Desde que se apaixonou por Gaia, quatro semanas atrás, jamais tinha falado efetivamente com ela. E ali mesmo, no meio daquela barulheira da aula de "asnática", ficou tentando imaginar algumas formas de puxar conversa com a garota. Foi engraçada, não foi, aquela reunião da segunda...

Está tudo bem, Sukhvinder?

A srta. Harvey, que tinha vindo corrigir o exercício de Sukhvinder, esta­va olhando para a garota de boca aberta. Andrew a viu fazer que sim com a cabeça e levar as mãos ao rosto ainda baixado sobre a folha de exercícios.

Wallah! Amendoim! — disse Kevin Cooper, fingindo sussurrar lá da sua carteira duas fileiras mais à frente. — Wallah! Amendoim!

Ele estava tentando lhes mostrar algo que os dois já haviam percebi­do: que Sukhvinder, a julgar pelo leve estremecimento dos seus ombros, estava chorando, e que a srta. Harvey estava pressionando a garota, numa tentativa desesperada de descobrir o que havia acontecido. A turma, no­tando uma nova falha na vigilância da professora, começou a fazer mais barulho ainda.

Wallah! Amendoim!

Andrew nunca sabia se Kevin Cooper fazia aquilo de propósito ou sem querer, mas ele tinha um incrível talento para irritar as pessoas. O apelido Amendoim era antigo: vinha desde o tempo da escola primária, e Andrew sempre detestou ser chamado assim. Bola conseguiu fazer o apelido sair de moda, pois nunca o usava, e era ele quem ditava as regras em questões como essa. Até o nome de Bola ele dizia errado: Wallah havia gozado de certa popularidade, mas só por um breve tempo, e no ano anterior.

Amendoim! Wallah!

Se manca, seu babaca! — esbravejou Bola bem baixinho. Coo­per estava virado para trás, olhando para Sukhvinder, que tinha se encurvado ainda mais e estava com a cabeça quase encostada na cartei­ra. Ao lado dela, a srta. Harvey, agachada, balançava as mãos de um jeito cômico, pois não podia tocar na aluna e não estava conseguindo obter nenhuma explicação para aquela tristeza. Alguns outros alunos tinham percebido aquela perturbação nada comum e também estavam olhando, mas, lá na frente, vários garotos continuavam a fazer a maior bagunça, sem notar nada que não fosse o próprio divertimento. Um deles apanhou o apagador que estava na mesa vazia da professora. E o jogou longe.

O apagador atravessou a sala toda e foi bater na parede dos fundos, acertando o relógio, que caiu no chão e se espatifou: pedaços daquelas en­tranhas de plástico e metal voaram para todo lado, e várias garotas, entre as quais a própria srta. Harvey, gritaram de susto.

A porta da sala se abriu e bateu na parede ruidosamente. A turma intei­ra se calou. Pombinho estava parado ali, vermelho de raiva.

O que está acontecendo nessa sala? Que barulheira é essa?

Parecendo um daqueles bonecos de mola, a srta. Harvey se pôs de pé, ao lado da carteira de Sukhvinder, com um ar culpado e assustado.

A sua turma está fazendo um barulho infernal. O que está aconte­cendo aqui?

A professora parecia ter perdido a fala. Kevin Cooper se inclinou no encosto da cadeira, rindo, olhando da srta. Harvey para Pombinho, deste para Bola e assim por diante.

Mas foi Bola quem falou.

Bom, para ser absolutamente sincero, pai, o problema é que a gente dá de mil nessa pobre mulher aqui.

A turma inteira caiu na gargalhada. O pescoço da srta. Harvey ficou quase roxo de tão vermelho. Balançando-se na cadeira apoiada só nos pés de trás, com um jeitão descontraído, o rosto impassível, Bola ficou olhan­do para Pombinho com uma indiferença desafiadora.

Já chega! — exclamou o vice-diretor. — Se ouvir mais um barulho que seja vindo desta sala, ponho a turma inteira em detenção. Estão en­tendendo? A turma inteirinha.

E, quando bateu a porta, os alunos ainda estavam rindo.

Vocês ouviram o que disse o vice-diretor! — berrou a srta. Harvey, voltando às pressas para a frente da sala. — Silêncio! Estou mandando fazer silêncio! Você, Andrew, e você, Stuart, tratem de limpar essa sujeira toda. Catem os pedaços do relógio!

A essa ordem, seguiram-se os protestos habituais de injustiça, reforça­dos pelos gritinhos de algumas garotas. Os verdadeiros causadores daque­la destruição, de quem todos sabiam que a professora estava com medo, continuavam sentados nas suas carteiras, com um sorriso maroto no rosto. Como só faltavam cinco minutos para tocar o sinal da saída, Andrew e Bola ficaram embromando ao máximo, porque, assim, poderiam ir embo­ra deixando aquele trabalho de limpeza inacabado. Enquanto Bola provo­cava mais risos imitando o andar do pai, com aqueles passinhos saltitantes e os braços colados ao corpo, Sukhvinder enxugava os olhos com a mão embrulhada na manga do casaco, disfarçadamente, e voltava a mergulhar na obscuridade.

Quando a sineta tocou, a srta. Harvey nem tentou controlar a barulheira e a correria dos alunos porta afora. Andrew e Bola chutaram vários pe­daços do relógio para baixo dos armários dos fundos da sala e penduraram a mochila nas costas.

Wallah! Wallah! — gritou Kevin Cooper, correndo para alcançá­mos já no corredor. — Em casa, você chama Pombinho de pai? Chama mesmo? Fala sério...

Estava achando que tinha conseguido pegar Bola.

— Você é um babacão, Cooper — replicou o garoto, com ar de tédio. E Andrew caiu na gargalhada.

 

— A dra. Jawanda está uns quinze minutos atrasada — disse a recepcionista.

Ah, tudo bem — replicou Tessa. — Não estou com pressa.

Já estava entardecendo, e as janelas da sala de espera projetavam nas paredes umas formas de um azul forte. Só havia mais duas pessoas ali: uma velha meio aleijada, que usava uns chinelos de pano e respirava com dificuldade, e uma jovem mãe, que lia uma revista enquanto a filha pe­quena remexia na caixa de brinquedos que ficava num canto da sala. Tessa pegou uma velha revista Heat da mesinha de centro, sentou-se e começou a folheá-la, vendo apenas as figuras. O atraso lhe dava mais tempo para pensar no que diria a Parminder.

Tinham se falado rapidamente por telefone de manhã. Cheia de dedos, Tessa se desculpou por não ter ligado imediatamente para lhe comunicar o que acontecera com Barry. Parminder lhe disse que não tinha impor­tância, que Tessa deixasse de ser boba, que ela não tinha ficado chateada com isso. Mas, com a sua longa experiência em lidar com pessoas frágeis e suscetíveis, Tessa tinha certeza de que, por debaixo daquela carapaça meio exasperada, a médica estava magoada. Tentou explicar que andou absolutamente exausta nos últimos dois dias e ainda teve de lidar com Mary, Colin, Bola e Krystal Weedon. Disse que estava se sentindo sobre­carregada, perdida e incapaz de pensar em outra coisa além dos problemas imediatos que tinham lhe caído nos ombros. Mas Parminder interrompeu aquelas desculpas intermináveis, dizendo-lhe, com toda a calma, que ela passasse para vê-la mais tarde no consultório.

O dr. Crawford, com aquele seu ar de urso de cabelos brancos, apare­ceu na porta da sua sala, cumprimentou Tessa efusivamente e chamou:

Maisie Lawford?

A jovem mãe teve certa dificuldade em convencer a filha a largar o velho telefone com rodinhas que ela tinha encontrado na caixa de brinquedos. Levada pela mão da mãe para o consultório do médico, a menina ficou de olho comprido naquele telefone cujos segredos jamais viria a descobrir.

Quando a porta se fechou, Tessa percebeu que estava sorrindo feito uma boba e apressou-se a retomar a sua expressão habitual. Ia se tornar uma daquelas senhoras horríveis que ficam encantadas com qualquer criança pequena que lhes passa pela frente, resolvem brincar com elas e acabam por assustá-las. Adoraria ter tido uma filhinha loura e gorducha para fazer companhia ao seu filho moreno e magricela. Que horror, pen­sou Tessa, lembrando-se de Bola bebê, é tão esquisito esse jeito como uns fantasminhas dos filhos vivos ficam assombrando o coração da gente... Eles nunca vão saber, e ficariam furiosos se soubessem, que o seu crescimento é um luto constante.

A porta do consultório de Parminder se abriu. Tessa ergueu os olhos.

A sra. Weedon — disse a médica. Viu Tessa e lhe deu um sorriso que não era absolutamente um sorriso, mas apenas um estreitamento da boca. A velha miúda de chinelos de pano se levantou com dificuldade e, mancando, contornou a divisória, acompanhando a médica. Tessa ouviu a porta se fechar.

Leu a legenda de uma série de fotos mostrando a mulher de um joga­dor de futebol com todos os trajes diferentes que ela havia usado nos cinco dias anteriores. Analisando as pernas compridas e esguias da mulher, Tessa se perguntou se a sua vida teria sido diferente se ela tivesse umas pernas assim. E não pôde se impedir de supor que teria sim, e muito. As suas eram grossas, curtas e não torneadas. Adoraria escondê-las o tempo todo dentro de botas; o problema é que era difícil achar botas que fechassem nas suas batatas das pernas. Lembrava-se de ter dito a uma menina bem gorducha, lá no serviço de orientação educacional, que a aparência não tinha a menor importância, pois o que contava mesmo era a personali­dade. Quanta besteira a gente diz para as crianças, pensou ela, virando a página da revista.

Uma porta que não dava para ver dali foi aberta com um golpe seco. Ouviu-se uma voz meio rouca, que gritava.

Você só tá me fazendo piorar! Isso não tá certo! Vim aqui pra ficar melhor! Esse é o seu trabalho... É a sua...

Tessa e a recepcionista se entreolharam. Em seguida, viraram-se na direção daqueles gritos. Tessa ouviu a voz de Parminder, com aquele so­taque de Birmingham ainda perceptível depois de tantos anos morando em Pagford.

A senhora continua fumando, sra. Weedon, e isso interfere na me­dicação que lhe dei. Se parasse de fumar... Os fumantes metabolizam a teofilina muito mais depressa, portanto o cigarro não está apenas agravan­do o seu enfisema, mas também afetando a capacidade que o remédio teria de...

Não grita comigo! Já tô de saco cheio! Vou denunciar você! Você me deu a porra do remédio errado! Quero outro médico! Quero me con­sultar com o dr. Crawford!

A velha saiu da sala, mancando, ofegante, com o rosto inteiramente vermelho.

A vaca dessa paquistanesa vai acabar me matando! Não chegue per­to dela! — gritou a mulher, dirigindo-se a Tessa. — Ela vai matar você com esses remédios de merda! Sua páqui filha da puta!

E lá se foi ela rumo à saída, com aquelas pernas finas, andando sem muita firmeza com os pés calçados de chinelos, a respiração ruidosa, xin­gando tão alto quanto lhe permitiam os seus pulmões comprometidos. A porta se fechou às suas costas. Mais uma vez, Tessa e a recepcionista se entreolharam. E a porta do consultório também voltou a se fechar.

Uns cinco minutos depois, Parminder reapareceu. A recepcionista fez questão de ficar olhando fixo para a tela do computador.

Sra. Wall — disse a médica, mais uma vez apertando os lábios num daqueles sorrisos que não chegavam a ser um sorriso.

O que aconteceu? — perguntou Tessa, já sentada diante da mesa de Parminder.

A nova medicação da sra. Weedon está lhe causando uns problemas estomacais — respondeu a outra, com toda a calma. — Então, vamos tirar sangue hoje?

É — disse Tessa, a um só tempo intimidada e magoada com a fria atitude profissional de Parminder. — Como é que você está, Minda?

Eu? — exclamou a outra. — Tudo bem. Por quê?

Bom... Barry... Sei o que ele representava para você e você para ele.

Os olhos da médica se encheram de lágrimas, e ela piscou, tentando eliminá-las, mas já era tarde, pois Tessa tinha percebido.

Olhe, Minda... — principiou ela, pondo a mão gorducha sobre a mão magra de Parminder. Esta, porém, recolheu a mão, como se Tessa a tivesse espetado. Em seguida, traída pelo próprio reflexo, começou a chorar abertamente, incapaz de esconder isso naquela salinha minúscula, embora tenha tentado fazê-lo virando o mais que pôde a cadeira giratória.

Fiquei arrasada quando me dei conta de que não tinha ligado para você — disse Tessa, sem se calar diante dos imensos esforços que a outra fazia para conter os soluços. — Fiquei com ódio de mim mesma. Tinha a intenção de telefonar — mentiu —, mas não dormimos, passamos a noite inteira no hospital e, depois, fomos direto para o trabalho. Colin desabou no meio da reunião geral quando deu a notícia e acabou tendo um ataque de fúria com Krystal Weedon na frente de todo mundo. E, ainda por cima, Stuart resolveu matar aula. E Mary naquele estado... De qualquer jeito, me desculpe, Minda. Eu devia ter telefonado.

...ículo — exclamou Parminder de forma meio inaudível, pois tinha o rosto escondido atrás de um lenço de papel que havia tirado da manga do jaleco. — ... Mary... o que mais importa...

Você seria uma das primeiras pessoas para quem Barry teria ligado — observou Tessa com tristeza e, para seu grande constrangimento, caiu no choro também. — Lamento tanto, Minda... — disse ela, soluçando —, mas tive que tentar dar apoio a Colin e a um monte de outras pessoas.

Não seja boba — retrucou Parminder, tentando engolir o choro e dando uns tapinhas no rosto magro. — Nós duas estamos sendo bobas.

Não estamos, não. Ah, Parminder, deixe de ser tão contida, por uma vez na vida...

Mas a médica aprumou os ombros magros, assoou o nariz e voltou a se sentar bem ereta.

Foi Vikram quem lhe deu a notícia? — indagou Tessa timidamente, apanhando alguns lenços de papel da caixa que estava em cima da mesa.

Não — respondeu a outra. — Foi Howard Mollison. Lá na loja.

Ai, meu Deus, Minda! Sinto muito.

Não seja boba. Está tudo bem.

Parminder estava se sentindo um pouquinho melhor depois de ter chorado, e mais receptiva com relação a Tessa, que estava enxugando o próprio rosto sem graça e bondoso. E isso a deixava aliviada, pois, agora que Barry tinha partido, Tessa era a única amiga de verdade que ela tinha em Pagford. (Falando consigo mesma, fazia questão de acrescentar "em Pagford", fingindo que, em algum lugar fora daquele vilarejo, ela tinha centenas de amigos leais. Nunca admitiu realmente que tudo o que pos­suía eram lembranças da sua turma de escola lá em Birmingham, gente de quem a vida a tinha separado há tempos, e os colegas médicos, com quem havia estudado e feito estágio, e que ainda lhe mandavam cartões de Natal, mas nunca vinham vê-la, e que ela tampouco visitava.)

Como está Colin?

Ah, Minda... — gemeu Tessa. — Ah, meu Deus! Ele agora está dizendo que vai se candidatar para ocupar a vaga de Barry no Conselho Distrital.

O vinco vertical entre as sobrancelhas escuras e espessas de Parminder ficou ainda mais pronunciado.

Dá para imaginar Colin concorrendo numa eleição? — perguntou Tessa, apertando na mão os lenços de papel encharcados. — Tendo que lidar com gente como Aubrey Fawley e Howard Mollison? Tentando agir como Barry, determinado a vencer essa batalha por Barry...? Toda a res­ponsabilidade...

Colin lida com uma série de responsabilidades no trabalho — in­terrompeu Parminder.

Nem tanto — disse Tessa, sem pensar. De imediato, achou que esta­va sendo desleal e recomeçou a chorar. Aquilo tudo era muito estranho... Veio até ali achando que ia consolar Parminder, mas, na verdade, era ela que estava desabafando. — Sabe como ele é, leva tudo muito a sério, en­cara tudo como se fosse uma questão pessoal...

Mas, pesando os prós e os contras, ele dá conta de tudo, e muito bem — disse Parminder.

Ah, sei disso — retrucou Tessa, parecendo cansada. Aquela luta estava escapando das suas mãos. — Sei disso.

Colin era praticamente a única pessoa por quem a sempre séria e con­tida Parminder demonstrava simpatia. Em contrapartida, ninguém podia dizer o que fosse contra ela na frente do vice-diretor: ele era o seu mais ar­doroso defensor em Pagford. "Excelente clínica geral", retrucava Colin se alguém ousasse criticá-la. "A melhor que já tivemos por aqui." Parminder não tinha muitos defensores. Era impopular entre a velha guarda do vila­rejo, com fama de não gostar de antibióticos e repetir sempre as mesmas receitas.

Se deixarmos as coisas por conta de Howard Mollison, não vai haver eleição nenhuma — disse Parminder.

Como assim?

Ele mandou um e-mail para todos os membros do Conselho. Rece­bi meia hora atrás.

Virou-se então para o computador, digitou uma senha e abriu a caixa de entrada. Ajeitou o monitor para Tessa poder ler a tal mensagem. No pri­meiro parágrafo, Howard dizia o quanto lamentava a morte de Barry. No segundo, sugeria que, considerando-se que o primeiro ano do mandato de Fairbrother havia terminado, talvez fosse melhor indicar um substituto a ter de enfrentar o dispendioso processo de realizar eleições.

Ele já tem alguém em vista — prosseguiu Parminder. — Está ten­tando nos empurrar um dos seus aliados antes que um de nós possa impe­dir. Não me espantaria nada que fosse Miles.

Ah, não — replicou Tessa imediatamente. — Miles estava lá no hospital com Barry... Não, ele estava chateadíssimo...

Ah, quanta ingenuidade, Tessa! — exclamou a médica, e Tessa fi­cou chocada com o tom ferino que havia na voz da amiga. — Você não percebe como é Howard Mollison. Ele é um sujeito execrável, execrável. Não ouviu o que disse quando descobriu que Barry tinha escrito sobre Fields para o jornal. Não sabe o que está tentando fazer com a clínica de reabilitação. Pois espere só para ver!

A sua mão tremia tanto que ela precisou fazer algumas tentativas até conseguir fechar a mensagem de Mollison.

Espere só para ver... — repetiu ainda uma vez. — Bom, mas é me­lhor irmos logo com isso. Já está quase na hora de Laura ir embora. Pri­meiro, vou verificar a sua pressão.

Parminder estava lhe fazendo um favor, atendendo-a assim tão tarde, depois da escola. A auxiliar de enfermagem, que morava em Yarvil, ia dei­xar a amostra de sangue de Tessa no laboratório do hospital antes de ir para casa. Sentindo-se nervosa e estranhamente vulnerável, Tessa arregaçou a manga do velho cardigã verde. A médica prendeu a braçadeira no seu braço. Olhando para Parminder assim mais de perto, via-se nitidamente a semelhança entre ela e a filha mais moça, já que, por causa do seu porte físico tão distinto (Parminder era magrinha e Sukhvinder, gorducha), mãe e filha pareciam bem diferentes. Desse jeito, porém, a semelhança dos traços faciais saltava aos olhos: o nariz adunco, a boca larga com o lábio inferior mais carnudo e os grandes olhos redondos e escuros. O braço flácido de Tessa doía com a pressão da braçadeira, e Parminder observava o medidor.

Dezesseis e meio por nove — disse a médica, franzindo o cenho. — A sua pressão está alta, Tessa. Alta demais.

Com gestos rápidos e habilidosos, Parminder rasgou o invólucro da seringa descartável, esticou o braço branco e cheio de pintas de Tessa e enfiou a agulha na dobra interna do cotovelo.

— Vou levar Stuart a Yarvil amanhã à noite — disse Tessa, olhando para o teto. — Para comprar um terno para o enterro. Não quero nem pen­sar na cena que vai ser se ele tentar ir de jeans. Colin vai ficar uma fera.

Estava tentando não prestar atenção ao líquido escuro e misterioso que ia enchendo o tubinho de plástico. Tinha medo de que ele pudesse traí-la, revelar que não tinha se comportado tão bem quanto deveria, permitir que todas as barras de chocolate e os doces que havia comido aparecessem ali sob a forma traiçoeira da glicose.

Pensou então com amargura que seria muito mais fácil resistir ao cho­colate se a sua vida fosse menos estressante. Já que passava praticamen­te todo o seu tempo tentando ajudar os outros, era difícil ver os doces como algo assim tão danoso. Observando Parminder colar as etiquetas nos frascos com o seu sangue, viu-se, embora o marido e a amiga pudessem considerar isso uma heresia, torcendo para que Howard Mollison saísse vencedor, evitando, assim, a realização de uma eleição.

 

Todo dia, Simon Price saía da gráfica invariavelmente às cinco horas. Ti­nha cumprido o seu horário e pronto. A casa estava à sua espera, limpinha e gostosa, lá no alto da colina; um mundo bem distante do barulho inces­sante do seu local de trabalho em Yarvil. Permanecer ali além da hora de bater o ponto (embora fosse agora gerente, Simon nunca parou de pensar como nos seus tempos de aprendiz) eqüivaleria a admitir que a sua vida doméstica deixava a desejar ou, o que era ainda pior, que estava tentando puxar o saco do gerente-geral.

Hoje, porém, tinha algo a fazer antes de ir para casa. Foi para o esta­cionamento encontrar o operador de empilhadeira que vivia mascando chicletes. Juntos, percorreram as ruas que já iam ficando às escuras, com o garoto indicando o caminho, até chegaram a Fields, passando aliás diante da casa onde ele tinha morado. Há anos que Simon não ia àquele lugar: a sua mãe tinha morrido, e ele não via o pai desde os seus quatorze anos e não fazia idéia de onde ele estaria. Ficou aflito e deprimido ao ver a sua antiga casa com uma das janelas coberta de tábuas e o mato crescido. A sua falecida mãe era tão caprichosa...

O rapazinho lhe disse para estacionar no final da Foley Road. Saiu do carro, deixando Simon para trás, e se dirigiu a uma casa de aparência particularmente malcuidada. Pelo que dava para ver à luz da lâmpada do poste mais próximo, parecia haver uma pilha de lixo amontoado debaixo de uma das janelas do térreo. Foi só então que Simon se perguntou se tinha sido uma atitude sensata vir buscar o computador roubado no seu próprio carro. Atualmente, com toda a certeza havia câmeras de seguran­ça por ali, para vigiar todos aqueles vândalos e delinqüentes. Olhou ao seu redor, mas não viu nada nem ninguém, a não ser uma mulher gorda que espiava, sem disfarçar, por uma daquelas janelinhas quadradas que eram todas iguais. Simon a encarou de cara amarrada, mas ela continuou ali, fumando um cigarro. Ele, então, escondeu o rosto com a mão e ficou vigiando através do para-brisa.

O garoto já vinha saindo da tal casa e voltava para o carro carregando com alguma dificuldade o computador dentro de uma caixa. Atrás dele, na soleira da porta, Simon viu uma adolescente com um garotinho aos seus pés. Mas, assim que percebeu que ele estava olhando, ela voltou lá para dentro, levando a criança consigo.

Quando o mascador de chicletes chegou mais perto, Simon já foi vi­rando a chave na ignição e ligando o carro.

Cuidado — disse ele, debruçando-se para abrir a porta do carona. — Ponha aqui.

O garoto pôs a caixa no banco, que ainda estava quente. Simon quis abrir e verificar se o que havia ali dentro era exatamente o que ele tinha encomendado, mas a noção cada vez mais evidente da própria imprudên­cia superou aquela intenção. Contentou-se em sacudir a caixa: era pesada demais para sair do lugar com facilidade, e ele queria ir embora dali.

Tem problema se eu deixar você aqui mesmo? — gritou, como se o carro já estivesse se afastando.

Pode me dar uma carona até o Hotel Crannock?

Desculpe, cara, mas estou indo exatamente pro lado contrário — respondeu Simon. — Até!

E acelerou. Pelo retrovisor, viu o garoto parado na calçada, com ar furioso. Percebeu que os lábios dele tinham formado as palavras "Vai se foder!", mas nem ligou. Se caísse fora dali bem depressa, poderia evitar que a placa do seu carro fosse gravada num daqueles filmes meio desfocados em preto e branco que às vezes passam no noticiário.

Dez minutos mais tarde, chegou ao entroncamento, mas, mesmo de­pois de deixar Yarvil para trás, sair da estrada principal e começar a subir a colina rumo às ruínas da abadia, sentia-se tenso e chateado, e não via nem vestígio da satisfação que normalmente experimentava quando ia chegando ao topo da elevação e avistava a própria casa, além do vale onde ficava Pagford, parecendo um minúsculo lenço branco no alto da colina do outro lado.

Apesar de estar em casa há pouco mais de dez minutos, Ruth já tinha começado a preparar o jantar e estava botando a mesa quando o marido chegou trazendo o computador. Ali, em Hilltop House, almoçava-se e jantava-se cedo, pois Simon preferia que fosse assim. As exclamações en­tusiasmadas de Ruth ao ver o computador só fizeram deixá-lo mais irrita­do: ela não sabia o que ele tinha enfrentado; aliás, ela nunca entendia que pagar mais barato pelas coisas era algo que envolvia riscos. Por seu turno, Ruth percebia imediatamente quando o marido estava num daqueles hu­mores que quase sempre pressagiavam uma explosão, e tentava evitar isso da única maneira que conhecia: começava a tagarelar sobre o seu dia de trabalho, na esperança que o mau humor se dissipasse quando Simon esti­vesse de barriga cheia. Contanto, é claro, que não acontecesse mais nada que pudesse irritá-lo.

As seis em ponto, quando Simon já havia tirado o computador da em­balagem e descoberto que ele não vinha com manual de instruções, a família se sentou para jantar.

Para Andrew, era evidente que a mãe estava com os nervos à flor da pele, pois não parava de falar disso ou daquilo num tom que ele conhecia muito bem e com uma animação exagerada na voz. Apesar de tantos anos vivenciando o contrário, ela parecia pensar que, se conseguisse estabele­cer um clima bem amistoso, o marido não ousaria estragar tudo. O garoto se serviu do bolo de batata (que Ruth deixava pronto para ser desconge­lado nos dias em que ia trabalhar) e evitou olhar para o pai. Tinha coisas mais interessantes em que pensar. Gaia Bawden havia dito "Oi" quando os dois se encontraram na porta do laboratório de biologia. Falou de um jeito automático e casual, mas não olhou para ele uma única vez durante a aula.

Andrew adoraria saber mais sobre garotas... Nunca tinha conhecido nenhuma bem o bastante para compreender como a cabeça delas funcio­nava. Essa falha nos seus conhecimentos não chegava a atrapalhar, até o dia em que Gaia entrou no ônibus escolar pela primeira vez e ele sentiu um interesse agudo por aquela garota em particular. Era um sentimento bem diferente daquele fascínio amplo e impessoal que vinha se intensifi­cando com o passar dos anos, todo voltado para o surgimento de seios e a visão de sutiãs aparecendo por baixo da blusa branca do uniforme, e para a curiosidade meio aflitiva por saber o que a menstruação efetivamente acarretava.

Bola tinha umas primas que vinham às vezes visitá-los. Uma vez, quan­do foi ao banheiro da casa do amigo logo depois que a mais bonita delas tinha acabado de sair de lá, Andrew encontrou uma embalagem de ab­sorvente caída no chão, ao lado do cesto de lixo. Aquela era uma evidên­cia efetiva, física, de que havia uma garota menstruada bem ali, pertinho dele, o que, para o garoto de treze anos, foi quase como ter visto um come­ta raro. Ele teve o bom senso de não contar para Bola o que tinha encon­trado ou sequer comentar como aquela descoberta tinha sido excitante. Tudo que fez foi pegar a tal embalagem com as pontas dos dedos, jogá-la o mais depressa possível dentro do cesto de lixo e lavar as mãos, esfregando-as com toda a força, como nunca tinha feito na vida.

Andrew passou um bom tempo diante do notebook vendo a página de Gaia no Facebook. Aquilo chegava quase a deixá-lo mais intimidado que a própria presença da garota. Ficou horas observando fotos de pessoas que ela havia deixado lá na capital. Ela vinha de um mundo diferente: tinha amigos negros, asiáticos, amigos com nomes que ele nunca ia conseguir pronun­ciar. Havia uma foto dela de maiô que ficou definitivamente gravada na sua memória e uma outra em que Gaia aparecia toda encostada num garoto de pele cor de café, tão bonito que chegava a ser nojento... Não tinha uma espi­nha, nem uma marquinha que fosse. Examinando todas as mensagens com o maior cuidado, Andrew concluiu que o tal sujeito tinha dezoito anos e se chamava Marco de Luca. Ficou então estudando aquelas mensagens com a concentração de um decifrador de códigos secretos, mas não conseguia saber se eles continuavam namorando ou não.

O tempo que Andrew passava no Facebook era geralmente acompa­nhado de ansiedade, porque Simon, que não entendia muito bem como funcionava a internet e, instintivamente, desconfiava dela por ser a única área da vida dos filhos em que eles eram mais livres e ficavam mais à vontade que ele, às vezes aparecia no quarto de forma inesperada para espiar o que os meninos estavam vendo. Dizia que era só para ter certeza de que os dois não iam fazer a conta subir loucamente, mas Andrew sabia que era apenas mais uma manifestação da necessidade que o pai tinha de controlar tudo. Por isso mesmo, sempre que ele ficava bisbilhotando informações sobre Gaia, deixava o cursor bem perto do quadrinho que lhe permitiria fechar a página.

Ruth continuava pulando de um assunto a outro, tentando inutilmente fazer o marido pronunciar mais que uns monossílabos mal-humorados.

Aaah! — exclamou ela, subitamente. — Ia esquecendo: falei com Shirley hoje, Simon, sobre a sua possível candidatura ao Conselho Distrital.

Aquelas palavras atingiram Andrew como se fossem um soco.

Você vai se candidatar? — balbuciou ele.

Simon ergueu as sobrancelhas bem devagar. Um dos músculos das suas mandíbulas tremia ligeiramente.

Por quê? Algum problema? — perguntou, num tom de voz nitida­mente agressivo.

Não — mentiu o garoto.

Só pode ser piada, porra! Você? Candidato numa eleição? Puta que pariu!

Parece até que você vê alguma coisa errada nisso — disse Simon, sempre olhando para o filho.

Não — repetiu Andrew, fitando agora o seu bolo de batata.

Não vejo problema nenhum em me candidatar para o Conselho... — insistiu Simon, que não estava a fim de desistir. Queria dar vazão à sua tensão num catártico acesso de raiva.

Claro. Não tem problema nenhum. Fiquei surpreso, só isso!

Será que eu devia ter consultado o senhor antes? — insistiu Simon.

Não.

Ah, muito obrigado — retrucou ele. O seu queixo estava saliente, como geralmente acontecia quando Simon estava a ponto de perder o controle. — Já arranjou emprego, seu parasita preguiçoso de merda?

Não.

Simon tinha parado de comer e examinava o filho com uma garfada de bolo de batata parada no ar. O garoto voltou a atenção para o próprio prato, decidido a não dar mais nenhum pretexto para brigas. A pressão do ar ali na cozinha parecia ter subido. A faca de Paul arranhou o prato.

A Shirley disse — recomeçou Ruth, com a voz meio esganiçada, determinada a fingir que estava tudo bem até que fosse absolutamente impossível — que vai estar tudo no site do Conselho, Simon. Vai aparecer o que a pessoa tem que fazer para se candidatar.

Ele ficou calado.

Já que a sua última e melhor tentativa não deu certo, Ruth também se calou. Tinha medo de saber qual era o motivo do mau humor do marido. Ficou ansiosíssima. Ela sempre se preocupava demais e não podia evitar. Sabia que ele ficava enlouquecido quando ela lhe pedia para tranquilizá-la. Não precisava dizer nada.

Si?

Que é?

Está tudo certo, não está? Com o computador?

Ruth era péssima atriz. Tentou falar com uma voz calma, descontraída, mas ela saiu trêmula e esganiçada.

Não era a primeira vez que entravam objetos roubados naquela casa. Simon também havia descoberto um jeito de adulterar a medição da ele­tricidade e fazia uns trabalhinhos por fora, lá na gráfica, para ganhar al­gum dinheiro extra. Aquilo tudo deixava Ruth com dor de estômago, ou sem conseguir dormir à noite, mas Simon tinha um profundo desprezo por gente que não tem coragem de dar um jeitinho nas coisas (e, em parte, o que a encantou nele, desde o começo, foi que um rapaz assim rude e violento, que desprezava as pessoas e tratava quase todo mundo de modo áspero e agressivo, tivesse se sentido atraído por ela; que alguém tão difícil de agradar a tivesse escolhido como sendo a única que valia a pena).

Que história é essa? — perguntou Simon, baixinho. Toda a sua atenção se voltou do filho para a mulher e se expressava pelo mesmo olhar fixo, malévolo.

Bom, não vai ter... nenhum problema, vai?

Ele então sentiu uma necessidade brutal de castigar Ruth por ela ter in­tuído os seus próprios temores e instigá-los ainda mais com a sua ansiedade.

Olha, eu não ia dizer nada — principiou ele, falando devagar para ter tempo de inventar uma história qualquer —, mas acontece que teve uns problemas, sim, quando eles foram roubados. — Andrew e Paul para­ram de comer e ficaram olhando. — Parece que um segurança foi espan­cado. Mas, quando fiquei sabendo, já era tarde demais. A única esperança é que tudo isso acabe não dando em nada...

Ruth mal conseguia respirar. Não podia acreditar que o marido falasse de um assalto violento com toda aquela calma. Isso explicava o seu mau humor quando ele chegou em casa. Isso explicava tudo.

Por isso é fundamental que ninguém mencione esse computador — acrescentou Simon.

Lançou aos três um olhar feroz para convencê-los dos perigos só pela força da sua personalidade.

Não vamos dizer nada — replicou Ruth, num sopro de voz.

A sua imaginação fértil já estava lhe mostrando a polícia batendo à sua porta, o computador sendo examinado, e Simon, detido, injustamente acusado de assalto com agravante... Indo para a cadeia.

Vocês ouviram o seu pai? — indagou aos filhos, num tom pouco mais alto que um sussurro. — Não digam a ninguém que compramos um computador novo.

Tudo vai dar certo — observou Simon. — Não vai ter problema. Contanto que todo mundo fique de boca calada.

E se concentrou novamente no bolo de batata. Num relance, os olhos de Ruth foram de Simon aos filhos e voltaram ao marido. Paul empurrava a comida de um lado para o outro no prato, em silêncio, assustado.

Mas Andrew não tinha acreditado numa única palavra do pai.

Seu filho da puta mentiroso! Você só está querendo deixar ela com medo.

Quando acabaram de jantar, Simon se levantou e disse:

Bom, vamos ver se pelo menos essa porra funciona. Levante daí — acrescentou, dirigindo-se a Paul —, tire aquele troço da caixa e ponha ele com cuidado, eu disse com cuidado, em cima da mesinha. E você — dis­se ainda, apontando agora para Andrew — tem aula de informática, não tem? Então pode me dizer o que fazer.

E foi para a sala de estar. Andrew sabia que o pai estava armando para que os dois fizessem alguma besteira: Paul, que era pequeno e estava ner­voso, bem podia deixar cair o computador, e, com toda a certeza, ele pró­prio ia se confundir com uma coisa ou outra. Lá na cozinha, Ruth fazia o maior barulho, lavando a louça do jantar. Pelo menos, estava fora da linha de fogo...

Andrew foi ajudar Paul a levantar o computador, que era bem pesado.

Ele agüenta sozinho! — esbravejou Simon. — Afinal, não é tão mariquinhas assim!

Milagrosamente, Paul, com os braços trêmulos, conseguiu pôr aquela carga em cima da mesa sem fazer nenhum estrago. Ficou então parado ali, com os braços pendendo ao lado do corpo, impedindo que o pai se aproximasse.

Saia da frente, seu babaquinha idiota! — berrou Simon. O menino se afastou correndo e ficou olhando lá de trás do sofá. — Onde é que eu enfio isso? — perguntou ele a Andrew, pegando um fio qualquer, aleato­riamente.

Enfia no cu, seu desgraçado!

Se me der ele aqui...

Estou perguntando onde tenho que enfiar a porra do fio! — insistiu Simon, aos berros. — Você tem aula de informática, então me diga onde ele entra!

O garoto foi olhar a parte de trás da CPU. Primeiro, mandou o pai enfiar o tal fio no lugar errado, mas depois, por sorte, indicou a entrada certa.

Estavam quase acabando quando Ruth veio se juntar a eles na sala. Bastou uma olhadela rápida para Andrew perceber que a mãe não queria que aquela coisa funcionasse. Preferia mil vezes que o marido largasse o tal computador num canto qualquer, sem se importar com as oitenta libras gastas na sua compra.

Simon sentou diante do monitor. Depois de várias tentativas inúteis, ele se deu conta que o mouse sem fio estava sem pilhas. Mandou Paul ir correndo buscar umas na cozinha. Quando o menino voltou, o pai tirou as pilhas da sua mão como se ele fosse fugir com elas.

Com a ponta da língua aparecendo entre o lábio e os dentes de baixo, o que deixava o seu queixo projetado para a frente de um jeito estúpido, Simon agia como se a tarefa de enfiar duas pilhas naquele pequeno compartimento fosse a coisa mais complicada do mundo. Ele sempre fazia aquela cara animalesca, meio enlouquecida, como um alerta de que es­tava chegando ao seu limite, descendo ao ponto em que já não respondia mais pelas próprias reações. Andrew se imaginou saindo da sala e deixan­do o pai se virar sozinho, privando-o da platéia que ele tanto gostava de ter quando ia ficando cada vez mais enfurecido. Chegou quase a sentir o mouse lhe batendo na cabeça no momento em que, na sua imaginação, ele virava as costas para ir embora.

Entra, porra!

Simon começou a fazer um ruído baixo, quase um grunhido, algo que só ele fazia e que combinava perfeitamente com a tal cara animalesca.

Uuuh... uuh... ENTRA, PORRA! Enfia isso aí! É, você! Você que tem esses dedinhos de menina! — esbravejou ele, batendo com o mouse e as pilhas no peito do filho caçula.

Com as mãos tremendo, o menino ajeitou os tubinhos metálicos no lugar certo, fechou a tampa plástica do compartimento e devolveu o mouse ao pai.

Obrigado, Paulinha.

O queixo de Simon estava tão projetado que ele parecia até o homem de Neanderthal. Normalmente, agia como se objetos inanimados estives­sem conspirando para deixá-lo irritado. Mais uma vez, ele pôs o mouse em cima do pad.

Tomara que funcione.

Uma setinha branca apareceu na tela e começou a deslizar para um lado e para o outro, obedecendo ao comando de Simon.

Com isso, desatou-se um verdadeiro torniquete de medo. Uma rajada de alívio atingiu os três espectadores daquela cena, e Simon parou de fazer aquela cara de homem de Neanderthal. Andrew visualizou uma fila de japoneses e japonesas de jaleco branco: as pessoas que haviam monta­do aquela máquina impecável, todos com dedos delicados e habilidosos como os de Paul, inclinando-se para cumprimentá-lo, educadíssimos e gentis. O garoto abençoou todos eles e também as suas famílias. Essa gen­te jamais saberia quanta coisa dependia do bom funcionamento daquele computador em particular.

Ruth, Andrew e Paul ficaram ali esperando enquanto Simon testava a máquina. Ele abriu uns menus, teve dificuldade em fechá-los, clicou em ícones cuja função ignorava e ficou todo atrapalhado com os resultados que obtinha, mas já havia descido do platô daquela raiva ameaçadora. Depois que conseguiu a custo voltar para o desktop, disse, erguendo os olhos para a mulher:

Aparentemente, está tudo certo, não é?

Perfeito! — exclamou ela de imediato, com um sorriso forçado, como se a última meia hora não tivesse existido, ele tivesse comprado o computador nas lojas Dixons e instalado tudo ali sem nenhum risco de violência. — É mais rápido, Simon. Muito mais rápido que o outro.

Ele ainda não se conectou à internet, sua boba.

E, também achei — replicou ele. Olhou então para os dois filhos. — Isso aqui é novinho e custou caro, portanto, tratem de tomar cuidado com ele, entenderam? E não digam a ninguém que temos um computa­dor novo — acrescentou. Nesse instante, uma nova onda maligna gelou a sala. — Está bem? Ouviram o que eu disse?

Os meninos fizeram que sim com a cabeça. O rosto de Paul estava tenso e contraído. Sem que o pai percebesse, desenhou um oito na parte externa da perna com o dedo fino.

— E um de vocês vá fechar a porra da cortina! Por que ela ainda está aberta?

Porque estávamos todos parados aqui, vendo você agir como um babaca.

Andrew fechou a cortina e saiu da sala.

Mesmo já no quarto, deitado na sua cama, não conseguiu voltar àque­las agradáveis meditações sobre a figura de Gaia Bawden. A simples pers­pectiva de ver o pai candidato ao Conselho, surgida assim, do nada, pai­rava como um gigantesco iceberg que lançava a sua sombra sobre tudo, inclusive Gaia.

Desde que se entendia por gente, Andrew vira o pai viver satisfeito da vida como prisioneiro do desprezo que sentia pelos outros, fazendo daquela casa uma verdadeira fortaleza contra o mundo, um lugar onde o seu desejo era lei e o seu humor ditava o clima que a família enfrentaria a cada dia. Quando foi crescendo, o menino começou a perceber que o isolamento quase total em que viviam não era algo normal e começou a se sentir ligeiramente constrangido com aquilo. Pais de amigos seus per­guntavam onde ele morava, incapazes de situar a sua família. Acontecia de lhe perguntarem se a sua mãe ou o seu pai pretendiam comparecer a eventos sociais ou beneficentes. Havia, às vezes, quem se lembrasse de Ruth na época da escola primária, quando as mães se encontravam no pá­tio. Ela era muito mais sociável que Simon. Talvez, se não tivesse casado com um homem assim tão antissocial, fosse como a mãe de Bola, que se encontrava com amigos para almoçar ou jantar, que participava ativamen­te da vida do vilarejo.

Nas raras ocasiões em que deparava com alguém que julgasse digno de sua atenção, Simon adotava aquele falso personagem a seu ver simpá­tico, mas que deixava o garoto arrasado. Falava ao mesmo tempo que os outros, contava piadas que não tinham nada a ver e, quase sempre, feria, sem perceber, todo tipo de sensibilidade, pois não conhecia direito, e nem ligava muito para isso, as pessoas com quem era obrigado a conversar. Ul­timamente, Andrew vinha desconfiando que o pai nem sequer percebia os outros seres humanos como criaturas reais.

Por que o seu pai teria sido tomado pela aspiração de atuar num palco mais amplo era algo que Andrew não conseguia imaginar, mas, sem dúvi­da alguma, a calamidade era inevitável. O garoto conhecia outros pais que eram aquele tipo de gente que patrocina corridas de bicicleta para conse­guir dinheiro para a nova iluminação de Natal da praça do vilarejo, vende bolos nas festas beneficentes ou organiza clubes do livro. Simon não fazia nada que exigisse alguma colaboração e nunca demonstrou o menor inte­resse por qualquer coisa que não fosse beneficiá-lo diretamente.

Imagens terríveis passaram pela cabeça fervilhante do garoto: o seu pai fazendo um discurso recheado daquelas mentiras transparentes que a sua mãe engolia direitinho; o seu pai tentando intimidar um adversário com aquela cara de homem de Neanderthal; perdendo o controle e começan­do a despejar todos os seus palavrões favoritos num microfone: porra, filho da puta, cacete, merda...

Andrew pegou o notebook, mas desistiu da idéia quase imediatamente. Nem lhe ocorreu pegar o celular em cima da mesa. Uma aflição e uma vergonha tão grandes assim não cabiam num e-mail ou num SMS. Estava sozinho com elas. Nem Bola poderia compreender aquilo. E ele não sabia o que fazer.

 

                     Sexta-feira

O corpo de Barry Fairbrother havia sido levado para a funerária. Os ta­lhos profundos e escuros sobre o fundo branco do couro cabeludo, como os riscos deixados no gelo pelos patins, ficaram escondidos sob a espessa floresta de cabelos. Frio, descorado e vazio, o corpo, novamente vestido com a camisa e a calça do jantar de aniversário de casamento, estava deitado numa sala, à meia-luz e ao som de uma música suave. Uma maquiagem discreta havia devolvido à sua pele um brilho semelhante ao que ela tinha em vida. Era quase como se ele estivesse dormindo, mas não exatamente.

Os dois irmãos de Barry, a sua viúva e os quatro filhos foram se despedir do morto na véspera do enterro. Até o último minuto, Mary ficou indecisa, sem saber se devia permitir que todos os filhos fossem ver os restos mortais do pai. Declan era um garoto sensível, propenso a pesadelos. Foi quando ela ainda estava às voltas com tal indecisão, na tarde de sexta-feira, que aconteceu um contratempo.

Colin "Pombinho" Wall resolveu ir se despedir de Barry também. Mary, em geral dócil e cordata, achou que aquilo era um pouco excessivo. Falando com Tessa pelo telefone, a sua voz foi ficando mais estridente, e, de repente, ela recomeçou a chorar, dizendo que ela não tinha planejado um velório convencional para Barry, que aquilo era coisa de família... Desfazendo-se em desculpas, Tessa replicou que compreendia perfeitamente e, então, foi explicar a história ao marido, que mergulhou num silêncio magoado, mortificado.

Tudo que ele queria era ficar a sós junto ao corpo de Barry e prestar uma homenagem silenciosa a um homem que havia ocupado um lugar muito especial na sua vida. Tinha despejado nos ouvidos de Barry verda­des e segredos que jamais confiara a nenhum outro amigo, e aqueles olhinhos castanhos, brilhantes como os de um rouxinol, nunca deixaram de olhá-lo de um jeito amável e caloroso. Barry foi o melhor amigo que Colin teve na vida. Com ele, vivenciou um tipo de camaradagem masculina que jamais havia encontrado antes de vir morar em Pagford e que, tinha cer­teza, nunca mais voltaria a encontrar. O fato de alguém como ele, que se sentia um esquisitão meio excluído, para quem a vida era uma luta diária, ter conseguido ficar amigo daquele eterno otimista, tão animado e popu­lar, sempre lhe parecera um pequeno milagre. Armou-se então do que lhe restava de dignidade, decidiu não guardar mágoa de Mary e passou o resto do dia pensando que Barry teria decerto ficado espantado e entristecido com aquela atitude da esposa.

A uns quatro quilômetros de Pagford, num charmoso chalé chamado Smithy, Gavin Hughes tentava lutar contra uma depressão que ia ficando cada vez mais intensa. Mary tinha ligado um pouco mais cedo. Com uma voz que tremia sob o peso das lágrimas, ela lhe contou que todos os filhos haviam contribuído com idéias para o funeral do dia seguinte. Siobhan, que vinha cultivando um girassol que ela mesma tinha plantado, ia cortá-lo para pôr em cima do caixão. Todos os quatro escreveram cartas, que seriam enterradas com o pai. Mary também escreveu uma e ia botá-la no bolso da camisa do marido, junto do seu coração.

Gavin desligou o telefone horrorizado. Não queria saber das cartas dos filhos de Barry, nem do tal girassol que vinha sendo cultivado há tanto tempo, mas essas coisas não lhe saíam da cabeça enquanto ele comia uma lasanha, sentado sozinho ali na mesa da cozinha. Embora fosse capaz de qualquer coisa para evitar lê-la, continuava tentando imaginar o que Mary teria dito na carta que escreveu.

No quarto, um terno preto coberto pelo plástico da lavanderia estava pendurado como um hóspede indesejado. Se ficou agradecido pela hon­ra que a viúva lhe concedeu, reconhecendo-o publicamente como uma das pessoas mais chegadas àquele indivíduo tão popular que era Barry, há muito que essa gratidão havia sido suplantada pelo medo. Ali, lavando os talheres e o prato na pia da cozinha, Gavin pensou que simplesmente adoraria não comparecer ao enterro. Já a idéia de ir velar o corpo do amigo morto era coisa que não lhe passou e nunca lhe passaria pela cabeça.

Ele e Kay tinham brigado feio na véspera e, desde então, não voltaram a se falar. Tudo começou quando a moça lhe perguntou se queria que ela fosse ao enterro com ele.

— Claro que não! — respondeu Gavin, sem conseguir se conter.

Ao ver a expressão do seu rosto, soube de imediato que ela tinha en­tendido: Claro que não! As pessoas vão achar que somos um casal. Claro que não! Por que eu iria querer você ali comigo? E, embora esses fossem exatamente os seus sentimentos, o rapaz tentou consertar as coisas.

— Quer dizer... Você nem conhecia Barry, não é mesmo? Acho que ficaria meio esquisito, não acha?

Mas Kay não se deu por satisfeita: tentou pressioná-lo, fazê-lo dizer exatamente o que sentia por ela, o que pretendia, que futuro imaginava para os dois. Gavin rebateu as investidas da moça com todas as armas de que dispunha no seu arsenal: foi ora obtuso, ora evasivo e até pedante, pois é incrível como se pode obscurecer uma questão emocional aparentando buscar a exatidão. Até que ela o mandou embora. Ele obedeceu, mas sabia que aquilo não era o fim. Seria querer demais... O seu reflexo na janela da cozinha se mostrava triste e abatido. O futuro que a morte havia roubado a Barry parecia pesar sobre a sua própria vida como um gigantesco penhas­co. Gavin estava se sentindo inconveniente e culpado, mas continuava desejando que Kay voltasse para Londres.

Anoiteceu em Pagford, e, lá na antiga casa paroquial, Parminder Jawanda examinava o próprio guarda-roupa, perguntando-se o que deveria usar na despedida de Barry. Tinha vários vestidos e terninhos escuros, mas ne­nhum deles seria apropriado. E ela continuava olhando as roupas pendu­radas, inteiramente indecisa.

Use um sári. Shirley Mollison vai ficar irritadíssima. Ande, use um sári.

Que besteira pensar isso! Era uma idéia louca, que não tinha nada a ver... Mas o pior era pensar aquilo como se estivesse ouvindo a voz de Bar­ry! Barry estava morto. Parminder já tinha suportado cinco dias de profun­da tristeza, e, no dia seguinte, iam sepultá-lo debaixo da terra. Essa pers­pectiva lhe parecia bem desagradável. Sempre detestou a idéia de enterrar alguém, de um corpo ficar deitado lá no fundo, intacto, apodrecendo aos poucos, devorado por vermes e moscas. O costume sique era cremar os mortos e atirar as suas cinzas em água corrente.

Deixou os olhos vagarem pelas roupas no armário, mas eram os sáris, usados nas festas de casamento da família e nas reuniões lá em Birmingham, que acabavam sempre chamando a sua atenção. Por que aquela vontade maluca de usar um deles? Parecia algo tão estranhamente exibicionista... Estendeu a mão para tocar as dobras do seu favorito, um sári azul-escuro com dourado. Parminder tinha usado aquele traje pela última vez na festa de Ano-Novo dos Fairbrother, no dia em que Barry tentou lhe ensinar dança de salão. Sem muito sucesso, diga-se de passagem, princi­palmente porque ele próprio não era lá muito bom no suingue. Ela, po­rém, lembrava-se de ter rido como poucas vezes rira na vida: loucamente, sem conseguir se controlar, daquele jeito que já vira mulheres bêbadas rirem.

Os sáris são elegantes, femininos e indulgentes com relação às formas da meia-idade: a mãe de Parminder, que já estava com oitenta e dois anos, vestia-se assim diariamente. Mas ela própria não tinha muito o que disfar­çar, pois continuava esbelta como aos vinte anos. Mesmo assim, pegou aquele corte de tecido comprido e macio, botou-o diante do robe, dei­xando que caísse até o chão e acariciasse os seus pés descalços, e ficou observando os delicados bordados que cobriam a sua barra. Usar aquele traje seria uma espécie de brincadeira entre ela e Barry, como a história da casa com cara de vaca e todas as coisas engraçadas que ele dizia a respeito de Howard quando os dois saíam daquelas reuniões intermináveis e cheias de hostilidades.

Parminder sentia um peso terrível no peito, mas o Guru Granth Sahib não exortava amigos e parentes dos mortos a não manifestar tristeza, e sim comemorar a reunião do ente querido com Deus? Num esforço para impedir aquelas lágrimas traiçoeiras de aflorarem, começou a entoar em silêncio a oração da noite, o kirtan sohila.

 

Amigo meu, saiba que este é o momento oportuno para servir aos santos.

Para obter benefícios divinos neste mundo e viver em paz e conforto no outro.

Dia e noite, a vida vai ficando mais curta.

O mente, encontre o Guru e tudo se resolverá...

 

Deitada na cama, no escuro do quarto, Sukhvinder sabia exatamente o que cada membro da família estava fazendo. Logo abaixo dela, ouvia-se o murmúrio distante da televisão, pontuado pelo riso abafado do irmão e do pai, que assistiam a um programa cômico que passava nas noites de sexta-feira. Podia também distinguir a voz da irmã mais velha, conversando com seus inúmeros amigos pelo celular. Mais perto, estava a mãe, reme­xendo no armário embutido do outro lado da parede.

A garota havia fechado as cortinas e posto, na parte inferior da porta, aquele protetor que mais parecia uma cobra. Aquela cobra dificultava a abertura da porta, avisando-a se alguém quisesse entrar, já que o seu quar­to não tinha chave. Mas tinha certeza de que ninguém viria até ali. Ela estava onde deveria estar, fazendo o que deveria fazer. Ou pelo menos era o que todos achavam.

Sukhvinder tinha acabado de realizar um dos seus rituais diários mais assustadores: abrir a página do Facebook e excluir mais uma postagem de um remetente desconhecido. Assim que ela bloqueava a pessoa que a andava bombardeando com aquelas mensagens, surgia um novo perfil e começava tudo de novo. Nunca sabia quando elas iam aparecer. Hoje foi uma foto em preto e branco, a reprodução de um cartaz de circo do século XIX, que apresentava como uma das suas atrações "A verdadeira mulher barbada".

La Véritable Femme à Barbe, Miss Anne Jones Elliot.

Era a foto de uma mulher de vestido de renda, com um cabelo preto bem comprido e uma barba e um bigode exuberantes.

A garota estava convencida de que era Bola Wall quem lhe mandava aquelas coisas, embora pudesse perfeitamente ser qualquer outra pessoa. Dane Tully e os seus amigos, por exemplo, que ficavam fazendo uns gru- nhidos meio simiescos sempre que ela falava inglês. Aqueles ali agiriam da mesma forma com quem quer que tivesse a sua cor de pele: alunos morenos eram coisa rara na Winterdown. Ela ficava humilhada, sentindo-se uma idiota, principalmente porque o sr. Garry nunca brigava com eles. Na verdade, fingia que não estava ouvindo ou que só ouvia o barulho que vinha do fundo da sala. Talvez ele também achasse que Sukhvinder Kaur Jawanda era uma macaca, uma macaca peluda.

Ficou deitada ali na cama, por cima das cobertas, desejando com todas as suas forças estar morta. Se conseguisse cometer suicídio usando apenas a própria vontade, faria isso sem qualquer hesitação. Uma morte como a do sr. Fairbrother. Por que não podia acontecer com ela? Melhor ainda, por que os dois não podiam trocar de lugar? Niamh e Siobhan teriam o pai de volta, e ela, Sukhvinder, poderia simplesmente ingressar no plano do não existir: sumir, desaparecer.

A aversão que sentia por si mesma era como uma roupa de urtigas que pinicava e queimava por todo lado. Precisava sempre da maior força de vontade para agüentar, para ficar imóvel, para não sair correndo e fazer a única coisa que poderia ajudar. Para agir, tinha de esperar que a família inteira já estivesse na cama. Mas que agonia ficar deitada ali daquele jeito, ouvindo a própria respiração, consciente do peso inútil do próprio cor­po feio e repulsivo no colchão. Gostava de pensar em afogamento, num mergulho em água fria e esverdeada, e na sensação de ser lentamente empurrada para o nada...

A grande hermafrodita fica sentada ali, quieta, imóvel...

Deitada no escuro, sentiu a vergonha percorrer todo o seu corpo, como uma erupção ardida. Nunca tinha ouvido aquela palavra até Bola Wall utilizá-la quarta-feira, na aula de matemática. Por conta própria, não con­seguiria descobrir o que ela queria dizer, pois era disléxica, mas não ia precisar fazer isso porque ele teve a gentileza de explicar tudinho.

A mulher-homem peluda...

Ele era pior que Dane Tully, cujas piadinhas eram sempre as mesmas. A língua malévola de Bola Wall preparava uma tortura novinha em folha, e feita sob medida, cada vez que ela aparecia na sua frente. E ela não tinha como tapar os ouvidos. Cada uma das suas piadas, cada um dos seus xingamentos ficavam gravados na memória da garota, incrustados ali, como nada que prestasse jamais ficava. Se tivesse uma prova sobre as expressões que ele já havia usado, tiraria o primeiro A da sua vida. Peito & Bigode. Hermafrodita. Burra barbada.

Peluda, burra e gorda. Sem graça e desajeitada. Preguiçosa, segundo a mãe, cujas críticas e irritação desabavam sobre ela diariamente. Um pou­co lerda, segundo o pai, que dizia essas palavras de um jeito afetuoso; isso, porém, não chegava a abrandar o seu completo desinteresse. Ele podia se dar ao luxo de tolerar as suas notas baixas; afinal, tinha Jaswant e Rajpal, que eram sempre os primeiros da turma em todas as matérias.

Tadinha da Ris — dizia ele, sem maior interesse, depois de passar os olhos pelo boletim da filha.

Mas a indiferença do pai ainda era preferível à raiva da mãe. Parminder parecia incapaz de compreender ou aceitar a idéia de ter gerado um filho que não fosse brilhante. Se algum professor sugerisse, por menos que fos­se, que Sukhvinder devia se esforçar mais, a médica se agarrava a isso com unhas e dentes, com ar triunfante.

"Sukhvinder desanima com facilidade e precisa acreditar mais na própria capacidade!" Está vendo só? A professora está dizendo que você não se esforça, Sukhvinder!

Com relação à única matéria em que ela conseguiu ficar no segundo nível, informática — como Bola Wall não era da mesma turma, ela às ve­zes tomava coragem e levantava a mão para fazer uma pergunta qualquer —, Parminder se limitou a dizer, em tom de descaso:

Com todo esse tempo que vocês passam na internet, acho incrível você não ter ficado no nível um.

Nunca lhe passou pela cabeça contar aos pais essas histórias de grunhidos de macacos ou da interminável torrente de maldades de Stuart Wall. Isso eqüivaleria a confessar que não era só a sua família que a via como alguém inferior aos outros, alguém que não prestava para nada. E, de qualquer jeito, Parminder era amiga da mãe de Stuart Wall. Às vezes, a garota se perguntava se Bola não se preocupava com essa relação de amizade, mas chegou à conclusão de que ele sabia que ela não contaria nada. Stuart Wall percebeu a sua covardia, assim como percebeu o pés­simo conceito que ela fazia de si mesma, e era capaz de juntar tudo isso para fazer Andrew Price rir. Houve um tempo em que Sukhvinder ficou meio interessada em Andrew Price, mas isso foi antes de compreender que era feia demais para se interessar por quem quer que fosse; antes de compreender que era esquisita e ridícula.

Ouviu as vozes do pai e de Rajpal, que iam ficando mais altas à medida que os dois subiam a escada. O riso do irmão soou bem forte exatamente diante da sua porta.

Olhem a hora! — ouviu a mãe dizer lá do quarto dela. — Ele já devia estar na cama, Vikram!

A voz do pai lhe chegou ali do corredor, bem de perto, alta e calorosa.

}á está dormindo, Ris?

Aquele era o seu apelido de criança, que o pai lhe dera por ironia. Jaswant era Jazz, e ela, um bebê tristonho, que raras vezes sorria, virou Ris, diminutivo de Risadinha.

Não — respondeu Sukhvinder. — Acabei de deitar.

Bom, talvez lhe interesse saber que o seu irmão aqui...

Mas o que Rajpal tinha feito foi abafado pelos gritos de protesto e pelos risos do garoto. Ela ouviu Vikram se afastar, sempre implicando com o filho.

Esperou então que a casa inteira ficasse em silêncio. Aferrava-se à pers­pectiva do seu único consolo como teria se agarrado a uma bóia, e ficou esperando, esperando até todos irem se deitar...

(E, durante esse tempo de espera, lembrou-se de uma noite, pouco tempo atrás, depois de um dos treinos de remo, quando iam andando no escuro até o estacionamento, que ficava perto do canal. A gente fica tão cansada depois de remar. Os músculos dos braços e da barriga doem, mas é uma dor boa. Sempre dormia muito bem depois de remar. Lá pelas tan­tas, Krystal, que vinha ao lado dela, um pouco mais atrás que o resto do grupo, a chamou de páqui idiota.

Foi assim mesmo, do nada. Todo mundo estava fazendo a maior ba­gunça com o sr. Fairbrother. Krystal achou que estava sendo engraçada. Usava "porra" como se fosse uma vírgula e parecia não ver diferença entre uma coisa e outra. Naquele momento, disse "páqui" como poderia ter dito "boba" ou "burra". Sukhvinder percebeu que tinha desmontado e come­çou a sentir aquele calor tão conhecido no estômago.

O que foi que você disse?

O sr. Fairbrother se virou para encarar Krystal. Nenhuma das garotas jamais o tinha visto zangado assim antes.

Nada de mais — respondeu ela, meio assustada, meio desafiadora. — Tava só brincando. Ela sabe que eu tava brincando, né? — perguntou, virando-se para Sukhvinder, que, intimidada, balbuciou uma resposta afir­mativa.

Nunca mais repita essa palavra!

Todas sabiam como ele gostava de Krystal. Todas sabiam que ele tinha pagado do próprio bolso para ela poder viajar com a equipe algumas vezes. Ninguém ria mais alto que o sr. Fairbrother das piadas que ela contava. Krystal podia ser muito engraçada...

Continuaram andando, e todo mundo ficou muito sem jeito. Sukhvin­der tinha medo de olhar para Krystal: estava se sentindo culpada, como sempre, aliás.

Quando estavam chegando perto da caminhonete, Krystal disse:

Tava brincando, viu? — e falou tão baixinho que nem o sr. Fairbro­ther ouviu.

E Sukhvinder logo tratou de responder:

Eu sei.

Bom... E... Desculpa, tá?

As palavras saíram tão abafadas que Sukhvinder achou melhor fingir que não tinha ouvido nada. Mas aquilo lavou a sua alma. Restaurou a sua dignidade. No caminho de volta para Pagford, foi ela que começou a can­tar, pela primeira vez, a tal música que era o amuleto da equipe e pediu a Krystal para fazer a parte de Jay-Z.)

Aos poucos, bem devagarinho, a sua família acabou finalmente indo se deitar. Jaswant passou um tempão no banheiro, fazendo uma barulheira danada. A garota esperou até a irmã terminar de se arrumar, os pais para­rem de conversar no quarto, a casa ficar silenciosa.

Pronto! Agora, não tinha mais perigo. Sentou na cama e tirou a gilete de um furo na orelha do velho coelhinho de pelúcia. Tinha roubado essa lâmina do estoque que o pai guardava no armário do banheiro. Levantou e, tateando, pegou a lanterna que ficava na estante. Apanhou também um punhado de lenços de papel e foi para o outro lado do quarto, para aquele cantinho arredondado formado por um dos torreões da casa. Sabia que, ali, a luz ficaria protegida e não poderia ser vista pelas frestas da porta. Sentou no chão, com as costas apoiadas na parede, arregaçou a manga da camisola e, à luz da lanterna, examinou as marcas deixadas pela sua últi­ma sessão. Ainda eram bem visíveis, como riscas escuras no seu braço, mas já estavam cicatrizando. Com um estremecimento de medo, que era um alívio abençoado naquele mundinho restrito do seu sofrimento, posicionou a gilete mais ou menos na metade do braço e cortou a própria carne.

Foi uma dor quente, aguda, e logo o sangue começou a brotar. Depois de fazer um corte pouco acima da parte interna do cotovelo, ela o cobriu com os lenços de papel, para evitar que o sangue escorresse e manchasse a camisola ou o tapete. Um ou dois minutos mais tarde, Sukhvinder fez ou­tro corte, agora na horizontal, junto ao anterior, como os degraus de uma escada, e, mais uma vez, parou para estancar o sangue. A gilete eliminava a dor daqueles pensamentos assustadores e a transformava numa ardência animal de nervos e pele: cada corte era um alívio, uma libertação.

Finalmente, ela limpou a gilete e verificou se estava tudo certo ao seu redor. Os talhos em interseção sangravam e doíam tanto que as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Precisava dormir, se a dor deixasse, mas tinha de esperar uns dez a vinte minutos, até os cortes mais recentes pararem de sangrar. Ficou sentada ali, com os joelhos encolhidos. Fechou os olhos molhados e se recostou na parede sob a janela.

Parte do ódio que sentia por si mesma tinha ido embora junto com o sangue. A sua mente começou a vagar, e Sukhvinder pensou em Gaia Bawden, a aluna nova que, de forma tão inexplicável, parecia ter gostado dela. Gaia poderia ter ficado amiga de quem quisesse, com a aparência que tinha e aquele sotaque de Londres, mas sempre vinha para perto de Sukhvinder, tanto na hora do almoço quanto no ônibus escolar, coisa que a garota não conseguia entender. Dava até vontade de perguntar a Gaia que brincadeira era aquela... Todo dia, achava que a aluna nova ia per­ceber que ela, Sukhvinder, peluda feito uma macaca, lerda e burra, era alguém que devia ser desprezado e xingado. Com toda a certeza, ela logo ia descobrir que tinha se enganado e, como sempre, Sukhvinder ficaria sozinha, restando-lhe apenas a piedade entediada das suas amigas mais antigas, as gêmeas Fairbrother.

 

                               Sábado

Por volta das nove horas da manhã, já não havia mais onde estacionar na Church Row. Várias pessoas, vestidas de cores escuras, passavam, so­zinhas, aos pares e em grupos, de um lado a outro da rua, convergindo, como punhados de limalha de ferro atraídos por um ímã, para a São Mi­guel e Todos os Santos. O passeio calçado que levava às portas da igreja foi ficando cheio de gente e, de repente, transbordou. Os que não couberam mais naquele espaço se espalharam em meio às sepulturas, procurando lugares seguros para ficar ali, entre as lápides, temendo pisar nos mortos, mas, mesmo assim, evitando se distanciar muito da entrada do templo. Ninguém tinha dúvidas de que não haveria bancos suficientes para toda aquela gente que viera dizer adeus a Barry Fairbrother.

Os seus colegas do banco, reunidos perto do mais extravagante dos túmulos da família Sweetlove, adorariam que o augusto representante da matriz fosse embora e levasse consigo a sua conversa mole e as suas piadinhas infames. Lauren, Holly e Jennifer, integrantes da equipe de remo, separaram-se dos pais e se juntaram à sombra dos raminhos esponjosos de um teixo. Alguns membros do Conselho, formando um grupo hete­rogêneo, conversavam com ar solene bem no meio do caminho: um pu­nhado de cabeças calvas e óculos de lentes grossas, outro de chapéus de palha pretos e colares de pérolas cultivadas. Uns homens dos clubes de squash e de golfe cumprimentavam-se discretamente. Velhos amigos da universidade reconheciam-se de longe e tratavam de se reunir. E, no meio disso tudo, circulava o que parecia ser praticamente toda a população de Pagford, envergando as suas roupas mais bonitas e mais escuras. O ar zum­bia com aquelas conversas murmuradas, e os rostos se moviam, espiando, esperando.

O casaco de lã cinza de Tessa Wall, o melhor que ela possuía, estava tão apertado nas cavas que ela não conseguia erguer os braços além da altura do peito. Parada ao lado do filho, num dos lados do passeio, cumpri­mentava os conhecidos com um sorrisinho triste e um aceno, mas, bem baixinho, quase sem abrir a boca para que ninguém pudesse perceber, continuava a discutir com Bola.

Pelo amor de Deus, Stu! Ele era o melhor amigo do seu pai. Pelo menos desta vez, mostre alguma consideração.

Ninguém me avisou que essa merda ia demorar tanto. Você disse que lá pelas onze e meia já teria acabado.

Veja como fala! Eu disse que devíamos sair da igreja por volta das onze e meia...

...o que me fez acreditar que estaria acabado, não é verdade? Aí marquei de encontrar com Arf.

Mas você não pode deixar de ir ao enterro, o seu pai é um dos que vão carregar o caixão! Ligue para Arf e diga que o encontro de vocês vai ter que ficar para amanhã.

Amanhã ele não pode. E, além disso, eu não trouxe o celular. Pom­binho disse que era para não trazer o celular para a igreja.

Não chame o seu pai de Pombinho! Ligue para Arf do meu — disse Tessa, enfiando a mão no bolso.

Não sei o telefone de cor — replicou Bola, o que era uma mentira deslavada.

Na véspera, Tessa e Colin jantaram sem o filho, pois ele tinha ido de bicicleta para a casa de Andrew, onde iam fazer o tal trabalho de inglês. Pelo menos, foi essa a história que Bola contou para a mãe, e ela fingiu acreditar. Na sua opinião era perfeito não ter o garoto por perto, porque, assim, ele não poderia aborrecer o pai.

Mas ao menos ele estava usando o terno novo que a mãe tinha compra­do em Yarvil. Na terceira loja em que entraram, Tessa perdeu a paciência. Todas as roupas que Bola experimentava o deixavam parecendo um es­pantalho, desengonçado e mal-ajambrado, e ela acabou achando que ele estava fazendo aquilo de propósito; que, se quisesse, poderia preencher aquele terno de uma forma mais conveniente.

Shhh! — exclamou Tessa, por pura precaução. Bola não estava di­zendo nada, mas Colin vinha chegando, trazendo consigo os Jawanda. Naquele estado de agitação em que se encontrava, ele parecia estar con­fundindo a função de carregador do caixão com a de mestre de cerimônias e foi se postar junto aos portões para receber os que chegavam. Parminder tinha um ar sombrio e abatido naquele sári, com os filhos enfileirados às suas costas. Já Vikram, de terno escuro, parecia um artista de cinema.

A poucos metros das portas da igreja, Samantha Mollison, parada ao lado do marido, olhava o céu claro e esbranquiçado e pensava em todo aquele sol desperdiçado por cima do teto de nuvens. Estava se recusando a ser expulsa do caminho calçado, por mais que isso obrigasse várias senho­ras idosas a resfriar os pés pisando na grama: os seus sapatos de verniz de salto alto poderiam afundar na terra macia e acabar imundos.

Quando algum conhecido os cumprimentava, Miles e Samantha respondiam com simpatia, mas os dois não estavam se falando. Tinham brigado na véspera. Uma ou outra pessoa perguntou por Lexie e Libby, que, em geral, vinham passar o fim de semana em Pagford. Desta vez, porém, as duas tinham ido para casa de amigas. Samantha sabia que o marido sentia falta delas, pois adorava posar de pater famílias em público. Ocorreu-lhe até, num gratificante ímpeto de fúria, que o marido talvez pedisse a ela e às meninas que posassem com ele para a foto dos panfletos de propaganda eleitoral. Adoraria lhe dizer o que achava dessa idéia.

Dava para perceber que Miles estava espantado com a quantidade de gente que tinha vindo até ali. Com toda a certeza, lamentava não desem­penhar um papel de destaque no serviço fúnebre que ia começar: com um público tão grande de eleitores potenciais, aquela seria uma excelente oportunidade de lançar uma campanha sub-reptícia para ocupar a vaga de Barry no Conselho. Samantha decidiu não se esquecer de fazer uma alusão sarcástica à tal oportunidade perdida na primeira ocasião favorável.

Gavin! — exclamou Miles, ao ver surgir aquela cabeça miúda e alourada, tão familiar.

Ah, oi, Miles. Oi, Sam.

A sua gravata preta, novinha, reluzia em contraste com a camisa bran­ca. Sob os olhos, ele tinha umas bolsas arroxeadas. Samantha ficou na ponta dos pés para que o rapaz não tivesse como evitar lhe dar dois beijos no rosto e sentir o seu perfume de almíscar.

Quanta gente, não é mesmo? — observou Gavin, olhando ao seu redor.

Gavin vai segurar uma das alças do caixão — disse Miles à espo­sa, exatamente do mesmo jeito que teria anunciado que uma criança pe­quena e não muito promissora tinha ganhado um vale-presente de uma livraria como prêmio pelos seus esforços. Na verdade, ele ficou um tanto surpreso quando o sócio mencionou que tinha merecido aquela honra. Havia de certa forma imaginado que ele e Samantha seriam convidados de destaque no serviço fúnebre, cercados por uma aura de mistério e im­portância, já que haviam presenciado aquela morte. Teria sido um belo gesto se Mary, ou alguém que lhe fosse mais próximo, houvesse lhe pedido para fazer uma das leituras ou dizer algumas palavras, pois, com isso, esta­riam reconhecendo que ele tinha desempenhado um papel considerável nos últimos momentos de Barry.

Samantha, porém, fez questão de demonstrar que a escolha de Gavin não a surpreendia absolutamente.

Você e Barry eram bem próximos, não eram, Gav?

O rapaz fez que sim com a cabeça. Estava se sentindo aflito e meio enjoado. Dormiu muito mal à noite: teve pesadelos e acordou de ma­drugada. No primeiro deles, deixava cair o caixão, e o corpo de Barry se estatelava no chão da igreja. No outro, perdia a hora, faltava ao enterro e, quando chegava à São Miguel e Todos os Santos, encontrava Mary sozi­nha, no cemitério, lívida e furiosa, dizendo-lhe, aos berros, que ele tinha estragado tudo.

Não sei exatamente onde deveria ficar — disse Gavin, olhando ao seu redor. — Nunca fiz isso antes.

Não tem mistério, rapaz — replicou Miles. — Na verdade, só há uma única regra: não deixar cair nada! Ha ha ha!

Aquela risadinha de adolescente fez um estranho contraste com a voz profunda que havia dito a frase. Nem Gavin, nem Samantha sequer sor­riram.

Colin Wall se destacava em meio àquela massa de corpos. Para Saman­tha, a figura comprida e desajeitada do marido de Tessa, com aquela testa alta e cheia de bossas, sempre lembrava o monstro de Frankenstein.

Ah, aqui está você, Gavin — disse ele. — Acho que deveríamos ficar mais perto. Logo, logo eles estão chegando.

Claro, claro! — replicou o rapaz, aliviado por receber algum co­mando.

Colin — disse Miles, fazendo um aceno de cabeça.

Ah, olá — respondeu o outro todo afobado, e logo se afastou, abrin­do caminho por entre a multidão ali presente.

Samantha percebeu mais um movimento nas proximidades e ouviu a voz de trovão de Howard:

Com licença... Ah, desculpe... Estou tentando chegar perto da fa­mília...

As pessoas foram se afastando, para evitar aquela barriga, e a figura de Howard se revelou, imensa, num sobretudo de veludo. No seu rastro, surgiram Shirley e Maureen, a primeira, discreta e elegante, estava de azul-marinho, a segunda, descarnada como uma ave de rapina, usava um chapéu com um veuzinho preto.

Olá, olá — disse Howard, dando dois beijos estalados nas bochechas da nora. — Como vai, Sammy?

A resposta de Samantha se perdeu numa estranha movimentação que se espalhou por a toda parte. As pessoas começavam a recuar para deixar a passagem livre, não sem uma certa disputa, pois ninguém parecia disposto a abrir mão do seu direito a um lugar perto da entrada da igreja. Quando a multidão se dividiu em dois, membros de algumas famílias apareceram nas bordas dos grupos como umas tantas sementes isoladas. Samantha avistou os Jawanda, uns rostos cor de café no meio daquela brancura toda. Vikram, absurdamente lindo no seu terno escuro; Parminder de sári (por que tinha se vestido assim? Será que não sabia que, com isso, estava en­tregando o jogo de bandeja para Howard e Shirley?) e, ao lado dela, Tessa Wall, baixinha e gorducha, com um casaco cinzento que ela mal conse­guia abotoar.

Mary Fairbrother e os filhos vinham andando lentamente pelo pas­seio, a caminho da igreja. Mary estava terrivelmente pálida e parecia vários quilos mais magra. Será que alguém podia emagrecer tanto assim em seis dias? Estava de mãos dadas com uma das gêmeas e tinha o outro braço passado nos ombros do caçula. O mais velho, Fergus, vinha logo atrás. A viúva andava olhando fixo para a frente, com a boca delicada bem contraída. Mais atrás vinham outros membros da família. O cortejo passou pela soleira da porta e desapareceu no interior sombrio da igreja.

De imediato, todos os presentes se dirigiram para as portas, o que pro­vocou um deplorável congestionamento. Os Mollison se viram entalados na passagem junto com os Jawanda.

Por favor, dr. Jawanda... — bradou Howard e, com um gesto, con­vidou o cirurgião a entrar primeiro. Tratou, porém, de usar o seu volume avantajado para impedir que qualquer outra pessoa passasse à sua frente e foi entrando atrás de Vikram, deixando que ambas as famílias os se­guissem.

Um tapete azul-royal cobria toda a extensão do corredor central da São Miguel e Todos os Santos. Estrelas douradas reluziam no teto abobadado da igreja, e placas de cobre refletiam a luz que vinha dos lustres penden­tes. Os vitrais das janelas eram elaborados, com cores deslumbrantes. Bem no meio da nave, do lado direito, o próprio Arcanjo, envergando uma ar­madura de prata, olhava o templo lá da maior de todas as janelas. Dos seus ombros, saíam asas recurvadas de um azul-celeste; com uma das mãos, empunhava uma espada e, com a outra, segurava os dois pratos dourados de uma balança. Um dos seus pés, calçados de sandálias, estava apoiado nas costas de um Satanás com asas de morcego, uma figura toda em tons de cinza-escuro que se contorcia, tentando se levantar. A expressão do santo era serena.

Howard parou na altura onde estava o Arcanjo e, com um gesto, in­dicou o banco à esquerda para o seu grupo. Vikram virou-se para o lado oposto. Enquanto os outros Mollison e Maureen iam entrando para se sentar no tal banco, Howard permaneceu plantado no tapete azul-royal e, quando Parminder passou por ele, disse:

Que horror tudo isso... Barry... Que choque terrível.

É — replicou ela, com ódio.

Sempre acho que essas roupas aí devem ser confortáveis. São mes­mo? — prosseguiu ele, indicando o sári com um gesto de cabeça.

A médica não respondeu, limitando-se a se instalar ao lado de Jaswant. Howard também se sentou, formando uma prodigiosa barreira que vedava a entrada daquele banco a quem quer que ainda pudesse chegar.

Os olhos de Shirley estavam pregados nos próprios joelhos, em sinal de respeito, e, com as mãos postas, ela parecia rezar. Na verdade, porém, estava ruminando aquele breve diálogo entre o marido e Parminder. Shir­ley pertencia a um setor de Pagford que lamentava em silêncio que a an­tiga casa paroquial — construída há muito tempo para ser a residência de um vigário da chamada Alta Igreja, um sujeito com bastas suíças e que dispunha de toda uma criadagem de avental engomado — fosse agora a casa de uma família de hindus (ela nunca conseguiu entender muito bem qual era a religião dos Jawanda). Achava que se ela e Howard fos­sem ao templo, à mesquita ou sabe-se lá que tipo de lugar de culto eles freqüentavam, seriam decerto obrigados a cobrir a cabeça, tirar os sapatos ou coisa do gênero, caso contrário, seriam objeto de sérios protestos. E, no entanto, Parminder não via problema em exibir o seu sári na igreja! E não era que ela não tivesse roupas normais, pois se vestia como qualquer um deles diariamente. O que a deixava irritada era essa história de dois pesos, duas medidas... Nem passava pela cabeça da médica o desrespeito assim demonstrado para com a religião deles e, por extensão, para com o próprio Barry Fairbrother, de quem, supostamente, ela tanto gostava...

Shirley desfez o gesto das mãos postas, ergueu a cabeça e dedicou toda a sua atenção aos trajes das pessoas que passavam e à quantidade e ao ta­manho das coroas que haviam sido enviadas. Algumas tinham sido dispos­tas junto à mesa do altar. Shirley localizou a do Conselho: ela e o marido foram os responsáveis pela arrecadação do dinheiro para comprá-la. Era uma grande coroa redonda, no estilo tradicional, de flores azuis e brancas, as cores das armas de Pagford. Mas tanto as suas flores quanto todas as demais ficavam ofuscadas diante do remo em tamanho natural feito de crisântemos de um alaranjado escuro que tinha sido enviado pelas garotas da equipe de remo.

Sukhvinder se virou no banco procurando por Lauren, cuja mãe, que era florista, havia confeccionado aquele remo. Queria lhe dizer, por gestos que fosse, que tinha visto o arranjo e gostado dele, mas, com toda aquela gente ali dentro, era impossível localizar a garota. Sukhvinder ficou toda or­gulhosa por terem feito aquilo, principalmente quando percebeu que as pes­soas que iam se sentando nos bancos logo mostravam o remo aos seus acom­panhantes. Cinco das oito remadoras da equipe tinham dado dinheiro para o arranjo. Lauren disse a Sukhvinder que tinha ido atrás de Krystal Weedon na hora do almoço e enfrentado as sacanagens dos amigos dela, que estavam sentados, fumando, numa mureta perto da loja de conveniência. Perguntou a Krystal se ela queria contribuir. "Quero, sim. Claro", respondeu a garota, mas não deu dinheiro nenhum, e, por isso, o seu nome não estava no cartão. E, aparentemente, ela também não tinha aparecido no enterro.

Sukhvinder sentia um peso enorme por dentro, mas a dor no braço esquerdo, aliada às fisgadas mais agudas a cada movimento que ela fazia, funcionava como uma espécie de antídoto. E, pelo menos, Bola Wall, todo emburrado naquele terno preto, não tinha ficado perto dela. Nem a olhou quando as suas famílias se encontraram por um instante, ainda fora da igreja: estava cerceado pela presença dos pais, como às vezes ficava cerceado pela presença de Andrew Price.

Na véspera, já mais tarde, o seu cibertorturador anônimo tinha lhe en­viado uma foto em preto e branco de uma criança da época vitoriana, nua e coberta de pelos escuros. Ela viu a foto pela manhã e a deletou enquanto se arrumava para o funeral.

Quando foi a última vez que se sentiu feliz? Sabia que, numa vida diferente, muito antes de as pessoas começarem a reclamar e debochar dela, passou anos vindo sentar nessa igreja e ficava toda contente. Entu­siasmada, cantava hinos no Natal, na Páscoa e em Pentecostes. Sempre gostou do Arcanjo, com aquele rostinho pré-rafaelita, bonito e feminino, e o cabelo louro cacheado... Hoje, porém, pela primeira vez, ela o viu de um jeito diferente, com o pé descansando de forma quase descontraída naquele demônio escuro que se contorcia. E achou a sua expressão imper­turbável sinistra e arrogante.

Os bancos estavam lotados. Ruídos abafados, passos que ecoavam e sussurros davam vida ao ar poeirento enquanto os menos afortunados con­tinuavam a se enfileirar no fundo da igreja, ocupando o espaço disponível junto à parede da esquerda. Algumas almas mais esperançosas percor­riam o corredor, pé ante pé, tentando encontrar naqueles bancos repletos um lugar que tivesse passado despercebido. Howard se mantinha firme, impassível, até que Shirley lhe deu um tapinha no ombro e sussurrou: "Aubrey e Julia!"

Nesse momento, Howard virou o corpo volumoso e acenou com o folheto do serviço fúnebre para chamar a atenção dos Fawley. O casal veio andando pelo corredor atapetado a passos rápidos: Aubrey, no seu ter­no escuro, alto, magro, com uma calvície incipiente; Julia, com o cabelo avermelhado preso para trás num coque baixo. Sorriram, agradecendo, enquanto Howard chegava para o lado, empurrando os demais para deixar bastante espaço para os Fawley.

Samantha ficou tão imprensada entre Miles e Maureen que sentia, de um lado, os ossos pontudos da bacia da viúva pressionando o próprio cor­po, e, do outro, as chaves no bolso do marido. Furiosa, tentou conseguir alguns centímetros a mais naquele banco, mas nem Miles nem Maureen tinham como se mexer. Samantha ficou então olhando fixo para a frente e, para se vingar, voltou o pensamento para Vikram. Fazia mais ou menos um mês que não o via, e ele não tinha perdido nada do seu charme des­de então. Era tão obviamente, tão irrefutavelmente bonito que chegava a ser ridículo, dava vontade de rir. Com as pernas compridas e os ombros largos, sem qualquer vestígio de barriga no ponto em que a camisa ia para dentro da calça e aqueles olhos escuros com cílios negros e espessos, o médico parecia um deus em comparação com outros homens de Pagford, todos tão relaxados, tão desbotados, tão gordos. Quando Miles se incli­nou para sussurrar algumas brincadeiras para Julia Fawley, as chaves no seu bolso espetaram a sua coxa, e Samantha imaginou Vikram abrindo o vestido-envelope azul-marinho que ela estava usando. Na sua fantasia, porém, omitiu a regatinha do mesmo tom que tinha posto por baixo para esconder a profunda fenda entre os seus seios...

O órgão parou. O silêncio que se instalou era rompido apenas por um burburinho suave que persistiu. As cabeças se viraram: o caixão vinha percorrendo o corredor.

Os homens que o traziam formavam um grupo tão disparatado que chegava a ser quase cômico: os irmãos de Barry não tinham mais que um metro e setenta, e Colin Wall, que vinha na parte de trás, tinha quase um metro e noventa, o que fazia com que o caixão ficasse bem mais bai­xo na frente que atrás. O próprio caixão não era de mogno envernizado, mas todo feito de uma fibra trançada.

Que diabos!, pensou Howard, indignado. Parece até uma cesta de piquenique!

Um ar de surpresa se estampou em vários rostos enquanto o ataúde de salgueiro ia passando à sua frente, mas havia quem já soubesse dessa novidade de antemão. Mary contou a Tessa (que contou a Parminder) que a escolha tinha sido de Fergus, o filho mais velho de Barry: o salgueiro era um material sustentável, de crescimento rápido e, portanto, não causa danos ao meio ambiente. O garoto era um entusiasta das coisas verdes e ecologicamente corretas.

Parminder preferia mil vezes o caixão de salgueiro àqueles horrores de madeira maciça em que a maioria dos ingleses despachava os seus mortos. A sua avó sempre tivera um medo supersticioso de que a alma pudesse fi­car aprisionada em algo sólido e pesado, e não se conformava com a idéia de ver os coveiros aparafusarem a tampa dos caixões. O ataúde de Barry foi posto em cima de um estrado recoberto de tecido brocado, e os homens que o carregavam se dispersaram: o filho, os irmãos e o cunhado do morto dirigiram-se aos bancos da frente, e Colin foi se reunir à sua família com aquele seu andar saltitante.

Por dois segundos vacilantes, Gavin hesitou. Parminder percebeu per­feitamente que ele não sabia para onde ir, e a sua única opção era percor­rer de novo todo aquele corredor sob os olhares de centenas de pessoas.

Mary, porém, deve ter lhe feito um sinal qualquer, pois, vermelho até a raiz dos cabelos, ele foi se sentar no primeiro banco, ao lado da mãe de Barry. Parminder só tinha falado com o rapaz uma vez, quando lhe fez uns exames e tratou da sua clamídia. Depois disso, não voltara a vê-lo.

"Eu sou a ressurreição e a vida, disse Jesus; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá..."

O vigário não parecia preocupado com o sentido daquelas palavras, mas sim com a maneira pela qual elas saíam da sua boca, de um jeito meio cantarolado e ritmado. Parminder conhecia muito bem aquele estilo, pois passou anos assistindo ao culto de Natal com todos os ou­tros pais de alunos da St. Thomas. Mas esse conhecimento de longa data não foi o bastante para fazê-la aceitar aquele santo guerreiro de rosto pálido que a observava lá do alto, nem aqueles bancos pesadões, de madeira escura, aquele altar estranho com a sua cruz dourada cheia de pedrarias ou os cânticos fúnebres que ela achava desagradáveis e inquietantes.

Desviou então a atenção da pretensiosa lenga-lenga do vigário e voltou a pensar no próprio pai. Ela o viu pela janela da cozinha, estirado no chão, de bruços, e o rádio tocando aos brados do alto da casinhola dos coelhos. Ele tinha ficado deitado ali duas horas, enquanto ela, a mãe e as irmãs estavam olhando as novidades na Topshop. Ainda podia sentir o ombro do pai sob a camisa quente quando ela o sacudiu. Dadiii. Dadiiii.

Depois, jogaram as cinzas de Darshan no Rea, um riozinho tristonho lá de Birmingham. Parminder se lembrava daquela superfície barrenta, num dia de céu carregado do mês de junho, e do filete de minúsculos floquinhos brancos e cinzentos que se afastaram boiando.

O órgão fez um barulho surdo e voltou à vida. A médica ficou de pé, como todos os demais. Avistou a cabeça de um louro-avermelhado das gêmeas Niamh e Siobhan: as duas tinham exatamente a mesma idade que ela quando perdeu Darshan. Parminder sentiu uma onda de ternura, uma dor terrível e um desejo meio confuso de abraçá-las e lhes dizer que sabia, sabia muito bem, entendia...

O dia raiou, como se fosse a primeira manhã...

Gavin ouviu um som mais estridente, que vinha da outra ponta do banco: a voz do filho caçula de Barry ainda não havia mudado. Sabia que foi Declan que escolheu essa música: mais um dos detalhes repulsivos da cerimônia que Mary tinha resolvido lhe contar.

O funeral estava sendo um sacrifício pior do que havia imaginado. Achava que talvez as coisas tivessem sido mais fáceis com um caixão de madeira: aquela caixa de fibra trançada lhe deu uma consciência terrível, visceral, da presença do corpo de Barry ali dentro. O seu peso era chocan­te. Será que toda aquela gente que o olhava de um jeito complacente en­quanto o cortejo ia passando pelo corredor não entendia o que ele estava efetivamente carregando?

Depois, veio aquele momento pavoroso, quando se deu conta de que ninguém tinha guardado lugar para ele e que teria de fazer todo o trajeto de volta, com todos olhando, e ir se esconder entre os que tinham ficado de pé lá atrás... Mas não: foi obrigado a sentar no primeiro banco, terri­velmente exposto. Era como ficar na primeira cadeira de uma montanha-russa, tendo de encarar cada uma daquelas guinadas e daquelas descidas medonhas.

Sentado ali, a poucos centímetros do girassol de Siobhan, sentindo a cabeça como uma verdadeira panela de pressão, cercado daquela pro­fusão de frésias e lírios amarelos, desejou que Kay tivesse vindo com ele. Parecia inacreditável, mas era isso mesmo. Seria um consolo ter alguém que estivesse ao seu lado, alguém que simplesmente tivesse guardado um lugar para ele. Não havia lhe ocorrido que pareceria um pobre coitado comparecendo ao enterro sozinho.

O hino acabou. O irmão mais velho de Barry foi lá para a frente da igreja para dizer algumas palavras. Gavin não entendia como ele podia agüentar fazer aquilo, com o cadáver do irmão bem diante dos olhos, sob o tal girassol (cultivado desde o plantio por meses e meses). Também não entendia como Mary podia ficar sentada ali, tão quietinha, de cabeça bai­xa, aparentemente olhando as próprias mãos juntas sobre o colo. O rapaz tentou então, com toda a dedicação, recorrer às suas referências internas e diluir, assim, o impacto do panegírico.

Ele vai contar como Barry e Mary se conheceram, quando tiver termi­nado com essas histórias de crianças... infância feliz, bons tempos aqueles, claro, claro... Ande, vamos logo com isso...

Teriam que pôr o corpo de Barry no carro outra vez e percorrer toda a distância até Yarvil para enterrá-lo lá, pois o pequeno cemitério da São Miguel e Todos os Santos já havia sido declarado lotado vinte anos atrás.

Gavin se imaginou baixando o caixão de fibra à sepultura diante dos olha­res de toda aquela multidão. Trazê-lo para dentro da igreja e levá-lo de volta para fora não era nada comparado àquilo...

Uma das gêmeas estava chorando. Com o rabo do olho, Gavin viu Mary estender o braço e pegar a mão da filha.

Vamos acabar logo com isso, cacete! Por favor!

Creio que podemos dizer que Barry sempre soube o que queria - disse o irmão do morto, com voz rouca. Tinha provocado uns poucos risos contando as enrascadas em que Barry se meteu quando era criança. A tensão que havia na sua voz era palpável. — Ela tinha vinte e quatro anos quando fomos passar o fim de semana em Liverpool com outros rapazes. Na primeira noite, saímos do acampamento para ir a um pub, e lá, atrás do balcão, estava a filha do proprietário, uma linda loura que era estudante e vinha ajudar o pai aos sábados. Barry passou a noite inteira recostado naquele bar, conversando com ela, deixando-a em maus len­çóis com o pai e fingindo que não sabia quem eram aqueles bagunceiros lá do canto.

Ouviu-se um risinho. A cabeça de Mary pendeu ainda mais, e ela segu­rava com toda a força as mãos dos filhos que estavam ao seu lado.

Naquela noite, quando chegamos à nossa barraca, ele me disse que ia casar com ela. Espere aí! Em princípio, quem está bêbado aqui sou eu!

Mais uma risadinha ligeira. — E ele nos obrigou a ir àquele mesmo pub na noite seguinte. Quando voltamos para casa, a primeira coisa que fez foi comprar um cartão-postal e mandar para a tal moça, dizendo que voltaria a Liverpool no fim de semana seguinte. Eles se casaram um ano e um dia depois da data em que se conheceram, e acho que todos que conviveram com eles vão concordar que, só de olhar, Barry sabia distin­guir o que era bom. Os dois tiveram quatro filhos lindos, Fergus, Niamh, Siobhan e Declan...

Gavin começou a respirar pausadamente, inspirando, expirando, ins­pirando, expirando, numa tentativa de não ouvir nada daquilo e se per­guntando o que diabos o seu próprio irmão arranjaria para dizer nas mes­mas circunstâncias. Ele não tinha a sorte de Barry, a sua vida romântica não dava uma história bonitinha... Nunca entrou num pub e encontrou ali a esposa perfeita, loura, sorridente, pronta para lhe servir uma caneca de cerveja. Teve Lisa, que, aparentemente, nunca achou que ele fosse lá grande coisa. Sete anos de batalhas que só faziam se intensificar e que cul­minaram com um episódio de doença venérea. E, depois, praticamente sem intervalo, apareceu Kay, que grudou nele como um molusco agressi­vo e ameaçador...

Mas, fosse como fosse, ia ligar para ela mais tarde porque estava achan­do que não agüentaria voltar para o seu chalé vazio depois de tudo aquilo. Seria honesto: diria que o enterro foi terrível e estressante, e que adoraria que ela tivesse ido com ele. Com toda a certeza, isso poria fim a qualquer sombra que tivesse restado por conta da briga. Não queria ficar sozinho à noite.

Dois bancos atrás, Colin Wall soluçava de forma discreta, mas audível, com o rosto enfiado num lenço grande e encharcado. A mão de Tessa repousava na coxa do marido, pressionando-a delicadamente. Ela estava pensando em Barry: como confiava nele para ajudá-la com Colin; como se sentia reconfortada quando riam juntos; como era grande a generosida­de do amigo morto. Podia vê-lo perfeitamente, baixinho e corado, dançan­do aquele suingue com Parminder na última festa que deu na sua casa; podia vê-lo imitando Howard Mollison nas críticas que ele fazia a Fields, ou aconselhando Colin, com aquele tato que só ele era capaz de ter, a encarar o comportamento de Bola como coisa de adolescente, e não de sociopata.

Tessa estava com medo do peso que a perda de Barry Fairbrother po­deria ter para o homem que estava ao seu lado. Não sabia como conse­guiriam lidar com aquela ausência tão gigantesca. Tinha medo de que o marido houvesse feito ao morto uma promessa que não teria condições de cumprir e não percebesse que Mary, com quem Colin continuava que­rendo falar, não gostava nada dele. E, em meio a toda aquela ansiedade e todo aquele sofrimento, surgia a sua preocupação habitual, como uma coceira persistente: Bola. E como ela poderia evitar uma explosão; como conseguiria fazê-lo ir com eles ao enterro ou como poderia esconder de Colin que ele não tinha ido — o que, afinal de contas, talvez fosse até mais fácil...

— Vamos encerrar o serviço de hoje com uma canção que as filhas de Barry, Niamh e Siobhan, escolheram e que tem um significado especial para as duas, como tinha para o seu pai — disse o vigário. De certa forma, pelo tom daquela declaração, o religioso conseguiu se isentar do que ia acontecer a seguir.

O som de bateria que veio dos alto-falantes ocultos era tão alto que os presentes se assustaram. Também aos brados, uma voz com sotaque ame­ricano começou a cantar uh huh, uh huh. Era o rapper Jay-Z.

 

             Good girl gone bad —

             Take three —

             Action.

             No clouds in my storms...

             Let it rain, I hydroplane into fame

             Comin' down with the Dow Jones...

 

Alguns dos presentes acharam que devia ter havido algum engano. Howard e Shirley se entreolharam, indignados. "Garota boazinha que virou má... Tomada três. Ação. Não existem nuvens nas minhas tem­pestades... Pode chover, que eu hidroplano para a fama... Caindo junto com o Dow Jones..." O que era aquilo? Mas ninguém desligou o som ou veio correndo para pedir desculpas. De repente, uma possante voz feminina começou a cantar:

 

             You had my heart

             And we'll never be worlds apart

             Maybe in magazines

             But you'll still be my star...

 

Ao som daquela declaração — "Você teve o meu coração e nunca esta­remos em mundos separados. Talvez em revistas, mas você vai continuar sendo a minha estrela..." —, o caixão veio voltando pelo corredor central seguido por Mary e os filhos.

 

         ...Now that it's raining more than ever

             Know that we'll still have each other

             You can stand under my umbuh-rella

             You can stand under my umbuh-rella

 

"Agora que está chovendo mais que nunca, saiba que ainda temos um ao outro. Pode ficar debaixo do meu guarda-chuva. Pode ficar debaixo do meu guarda-chuva", prosseguia dizendo a canção, e, lentamente, todos foram deixando a igreja, tentando não andar ao ritmo da música.

Andrew Priee foi saindo da garagem segurando a bicicleta de corrida do pai pelo guidão e tomando cuidado para não esbarrar no carro. Achou melhor carregá-la para descer os degraus de pedra do jardim e passar pelo portão de grade. Já na rua, pôs o pé num dos pedais, tomou impulso por uns poucos metros e passou então a outra perna por cima do selim. Sem tocar nos freios, saiu voando pelo declive vertiginosamente acentuado da ladeira, rumo a Pagford.

As cercas vivas e o céu tornaram-se borrões. O garoto se imaginava num velódromo, com o vento soprando o seu cabelo ainda molhado e fustigando o rosto que ele tinha acabado de esfregar. Na altura do jardim triangular dos Fairbrother, Andrew acionou o freio, porque, meses atrás, fez aquela curva em alta velocidade e acabou caindo. Teve então que vol­tar para casa na mesma hora, com o jeans rasgado e um dos lados do rosto todo esfolado...

Tirou uma das mãos do guidão e, sem pedalar, desceu a Church Row, deliciando-se com mais uma corrida ladeira abaixo, embora desta vez em menor escala. Reduziu ligeiramente a velocidade quando viu que estavam botando um caixão num carro fúnebre parado diante da igreja e que uma multidão em trajes escuros vinha saindo por aquelas pesadas portas de ma­deira. Pedalou então furiosamente até a esquina, onde poderia ficar meio escondido. Não queria ver Bola sair da igreja ao lado de um Pombinho arrasado; não queria vê-lo usando o tal terno vagabundo e a gravata que o garoto tinha descrito com um desprezo cômico na véspera, durante a aula de inglês. Seria como surpreender o amigo fazendo cocô...

Contornando a praça bem devagar, Andrew afastou o cabelo do rosto com uma das mãos, perguntando-se o que o ar frio teria feito com as suas espinhas de um vermelho vivo e se o tal sabonete antibacteriano teria me­lhorado um pouco que fosse a aparência irritada do seu rosto. E ensaiou a desculpa que usaria: estava voltando da casa de Bola (coisa que poderia perfeitamente ser verdade. Não haveria por que duvidar). Nesse caso, era tão óbvio passar pela Hope Street quanto dobrar na primeira transversal para chegar até o rio. Gaia Bawden (se, por acaso, estivesse na janela; se, por acaso, o visse; se, por acaso, o reconhecesse) não teria portanto moti­vos para achar que ele tinha passado por ali por causa dela. Não que An­drew estivesse contando com a possibilidade de precisar se explicar, mas mesmo assim achou melhor ter a desculpa preparada porque acreditava que aquilo o deixaria com um ar despreocupado.

Só queria saber qual era a casa dela. Já tinha passado duas vezes de bicicleta, em fins de semana, pela rua de casas geminadas, sempre com os nervos tensos. Até agora, porém, não havia conseguido descobrir qual daquelas construções idênticas abrigava o Graal. Tudo que sabia, graças a uns olhares furtivos pelas janelas sujas do ônibus escolar, era que a garota morava do lado direito, numa das casas de número par.

Quando chegou à esquina, tratou de assumir um ar bem descontraído, fazendo de conta que estava pedalando tranqüilamente em direção ao rio pelo caminho mais curto, mergulhado nos próprios pensamentos, mas não tão distraído a ponto de não reconhecer uma colega de escola caso se encontrassem...

E ali estava Gaia. Parada na calçada. As pernas de Andrew continuaram pedalando, mas ele já não sentia os pedais e, de repente, teve plena cons­ciência de estar se equilibrando numas rodas bem finas. Ela remexia na bolsa de couro, com o cabelo castanho-acobreado lhe caindo no rosto. A casa cuja porta estava entreaberta por trás dela tinha o número dez. Uma camiseta preta curtinha, um pedaço de pele aparecendo, um cinto largo e um jeans bem justo... Quando ele já tinha quase ultrapassado a casa, Gaia fechou a porta e se virou. O cabelo voltou a descobrir o seu rosto lindo e ela disse, bem nitidamente, com aquele seu sotaque londrino: "Ah, oi!"

Oi — respondeu Andrew. E as suas pernas continuaram a pedalar. Seis metros, doze metros. Por que não parou? A surpresa o manteve em movimento, e ele nem sequer ousou olhar para trás. Já estava no final da rua. Só não vai cair, porra! Dobrou a esquina, atordoado demais para avaliar se o que sentia por tê-la deixado para trás era mais alívio ou desa­pontamento.

Puta merda!

Seguiu pedalando pelo trecho arborizado que ficava aos pés da colina Pargetter, ponto em que o rio reluzia de forma intermitente por entre as árvores, mas tudo que conseguia ver era a imagem de Gaia gravada nas suas retinas como um neon. A estradinha se transformou numa trilha de terra batida, e o ventinho que vinha do rio acariciou o seu rosto, que, acha­va ele, não havia ficado vermelho, já que tudo aconteceu depressa demais.

Puta que pariu! — exclamou ele em voz alta, dirigindo-se ao ar fresco e à trilha deserta.

Empolgado, ficou revolvendo aquele tesouro magnífico e inesperado: o corpo perfeito, revelado pela camiseta e pelo jeans justos; atrás dela, o número dez numa porta azul com a tinta descascando, e aquele "Ah, oi" dito de um jeito tão natural, tão espontâneo... O que significava que a sua fisionomia estava definitivamente gravada em algum canto da mente que vivia por trás daquele rosto deslumbrante!

A bicicleta começou a sacolejar no caminho que agora era mais irre­gular e pedregoso. Extasiado, Andrew só desmontou quando sentiu que estava começando a perder o equilíbrio. Saiu empurrando a bicicleta por entre as árvores até chegar à margem estreita do rio, onde a largou no chão, em meio às anêmonas-do-bosque que tinham se aberto como estre­linhas brancas desde a última vez que estivera ali.

Quando o pai resolveu lhe emprestar a bicicleta, disse:

— Não se esqueça de botar a corrente se for entrar em alguma loja. Estou lhe avisando: se ela for roubada...

Mas a corrente não era grande o bastante para contornar o tronco da­quelas árvores, e, de qualquer forma, quanto mais longe Andrew ficava do pai, menos medo tinha dele. Ainda pensando naqueles centímetros de barriga à mostra e no lindíssimo rosto de Gaia, foi andando até o ponto em que a margem do rio se encontrava com a encosta erodida da colina que se projetava como um penhasco rochoso, caindo a pique sobre a água esverdeada que corria ali embaixo.

Um restinho estreito e escorregadio da margem do rio contornava o sopé da elevação. A única maneira de atravessá-lo, se os seus pés eram agora duas vezes maiores que da primeira vez que fez aquele percurso, era ficar de lado, com o corpo colado à pedra escarpada, e ir se agarrando a raízes e a qualquer ressalto da rocha, por menor que fosse.

Conhecia muito bem aquele cheiro de musgo que vinha do rio e da terra úmida do solo, como também conhecia a sensação daquela nesga de terra e mato sob os seus pés, e as fendas e pedras que procurava com as mãos na es­carpa da colina. Bola e ele haviam encontrado o esconderijo secreto quando tinham onze anos. Sabiam perfeitamente que o que estavam fazendo era proibido e perigoso, pois já haviam sido alertados com relação ao rio. Apa­vorados, mas decididos a não confessar isso um ao outro, os dois meninos entraram por aquela passagem traiçoeira, agarrando-se a qualquer saliência que encontrassem no paredão de pedra e depois, quando chegaram à parte mais estreita, segurando firme na camiseta do companheiro.

Embora a sua atenção estivesse longe dali, anos e anos de prática per­mitiram que Andrew fosse se esgueirando junto à sólida muralha de terra e rocha, com a água correndo a centímetros dos seus tênis. Depois, baixan­do a cabeça e com um movimento ágil, penetrou pela fenda que haviam descoberto na colina tantos anos atrás. Na ocasião, aquilo lhes pareceu uma recompensa divina pela ousadia que haviam demonstrado. Agora, já não conseguia ficar de pé ali dentro, mas o lugar, pouco maior que uma barraca de acampamento para duas pessoas, era grande o bastante para que dois adolescentes ficassem deitados, um ao lado do outro, com o rio correndo lá fora e as árvores recortando o pedacinho de céu que dava para ver pela abertura triangular da gruta.

Quando estiveram naquele local pela primeira vez, cavaram a parede dos fundos com uns gravetos, mas não encontraram nenhuma passagem secreta que levasse à abadia que ficava lá no alto. Contentaram-se, po­rém, com o fato de só eles terem descoberto aquele esconderijo e juraram que tal descoberta seria o seu segredo para o resto da vida. Andrew tinha uma vaga lembrança de os dois terem feito um juramento solene, cus­pindo e dizendo palavrões. Logo que encontraram aquela pequena gruta, batizaram-na de Caverna, mas, de uns tempos para cá, tinham passado a chamá-la de Pombal.

O esconderijo tinha cheiro de terra, embora o teto inclinado fosse pura pedra. Uma linha verde-escura mostrava que a água havia invadido aquela espécie de gruta em algum momento, cobrindo-a praticamente toda. O chão estava repleto de guimbas e filtros dos cigarros que os dois tinham fumado ali dentro. Andrew se sentou, com as pernas penduradas sobre a água esverdeada que corria mais abaixo. Tirou do bolso do casa­co os cigarros e o isqueiro que tinha comprado com o último dinheiro que ganhou de aniversário, já que, agora, a sua mesada havia sido cor­tada. Acendeu um cigarro, deu uma profunda tragada e se pôs a reviver o glorioso encontro com Gaia Bawden com o máximo de detalhes que conseguiu: cintura estreita e quadris curvilíneos; pele clara aparecendo entre couro e camiseta; boca grande, de lábios carnudos; "Ah, oi". Foi a primeira vez que a viu sem o uniforme da escola. Onde estaria indo assim, sozinha, com aquela bolsa de couro? O que teria para fazer em Pagford numa manhã de sábado? Talvez fosse pegar o ônibus para Yarvil. O que será que Gaia aprontava quando ele não podia vê-la? Que misté­rios femininos a absorviam?

Andrew se perguntou então pela enésima vez se era possível que car­ne e ossos dispostos daquele jeito abrigassem uma personalidade banal. Nunca tinha pensado nisso antes: a idéia de um corpo e uma alma como entidades separadas jamais tinha lhe passado pela cabeça até ele dar com os olhos em Gaia. Mesmo quando tentava imaginar como seriam os seus seios e como seria passar a mão neles — a partir do que pudera perceber através de uma blusa de uniforme ligeiramente translúcida, quando tudo que via era um sutiã branco —, o garoto não podia acreditar que a atração que ela exercia sobre ele fosse exclusivamente física. Gaia tinha um jeito de andar que mexia com ele tanto quanto música, a coisa que o tocava mais que tudo no mundo. Com toda a certeza, o espírito que animava aquele corpo incomparável só podia ser também algo fora do comum. Por que a natureza faria um frasco como aquele se não fosse para lhe dar um conteúdo ainda mais precioso?

Andrew sabia como era uma mulher nua, pois os pais de Bola não controlavam o computador que ficava no quarto do filho. Juntos, os dois já tinham navegado por todos os sites pornô gratuitos que conseguiram en­contrar: vulvas depiladas, lábios rosados bem afastados para mostrar aber­turas escuras e profundas, bundas arreganhadas revelando o buraquinho do ânus, bocas pintadíssimas, sêmen escorrendo. A sua excitação era sem­pre escorada pela certeza assustadora de que só daria para saber que a sra. Wall estava se aproximando quando ela chegasse naquela parte da escada que rangia. Ás vezes, encontravam umas coisas tão esquisitas que caíam na gargalhada, muito embora o garoto não soubesse dizer exatamente se aquilo o deixava mais excitado ou mais enojado (chicotes e selas, arreios, cordas, mangueiras. Viram até, e, dessa vez, nem Bola conseguiu rir, uns apetrechos metálicos fotografados bem de perto, agulhas espetadas na car­ne macia, rostos de mulheres apavoradas, gritando).

Bola e ele tinham se tornado especialistas em peitos siliconados, aque­las coisas enormes, firmes e bem redondas.

— Plástica — dizia um deles, com ar impassível, diante do monitor, com a porta do quarto trancada para barrar a entrada dos pais de Bola. Na tela, a loura de braços erguidos estava sentada a cavalo num homem peludo, com os seios de mamilos escuros saltando do peito estreito como duas bolas de boliche. Debaixo de cada um deles, umas linhas finas e rosadas mostravam o lugar onde o silicone havia sido implantado. Olhando para aqueles seios, dava quase para saber como seriam ao toque da mão: firmes, como se houvesse uma bola de futebol por baixo da pele. Andrew não podia imaginar nada mais erótico que seios naturais: macios, levemente porosos, talvez um tanto maleáveis, e os mamilos (essa era a sua expectati­va) contrastando nitidamente com o resto.

E, à noite, todas aquelas imagens se misturavam às possibilidades ofe­recidas pelas garotas reais, garotas humanas, e o pouco que dava para perceber por baixo da roupa quando se conseguia chegar perto o bastan­te. Niamh era a menos bonita das gêmeas Fairbrother, mas foi quem se mostrou mais disponível naquele auditório abafado durante a tal festa de Natal. Meio escondidos pela velha cortina do palco, os dois ficaram se agarrando, e Andrew conseguiu enfiar a língua na boca da garota. As suas mãos chegaram até a tira do sutiã e só não foram adiante porque ela ficou o tempo todo tentando impedi-lo de fazer o que pretendia. O que mais o estimulou foi saber que, em algum lugar ali por perto, no escuro, Bola es­tava indo mais longe. E, agora, o seu cérebro pulsava e transbordava com a imagem de Gaia. Ela não era só a garota mais sexy que jamais tinha visto, mas também provocava nele um outro desejo inteiramente inexplicável. Certas modulações num acorde, certos ritmos o faziam estremecer bem lá no fundo, e alguma coisa em Gaia Bawden provocava a mesma sensação.

Acendeu um cigarro no outro e jogou a guimba na água. Ouviu então o ruído tão conhecido de passos arrastados. Debruçou-se e viu Bola, ainda com o terno do enterro, colado ao paredão de pedra, agarrando-se aqui e ali para percorrer a estreita faixa de terra que levava à gruta onde Andrew estava.

Oi, Bola.

Oi, Arf.

O garoto encolheu as pernas para que o amigo pudesse entrar no Pombal.

Puta que pariu! — exclamou Bola, assim que passou pela fresta na rocha. Estava parecendo até uma aranha esquisita, com aquelas pernas e aqueles braços compridos, e ainda mais magro no terno preto.

Andrew lhe deu um cigarro. Bola sempre acendia os cigarros como se estivesse ventando muito, com uma das mãos em concha para proteger a chama e o rosto ligeiramente franzido. Deu uma tragada, soltou um anel de fumaça para fora da pequena gruta e afrouxou a gravata cinza-escuro que trazia no pescoço. Parecia mais velho e até mesmo menos bobo com aquele terno cheio de terra nos joelhos e nos punhos, marcas do trajeto até o esconderijo.

Quem visse ia achar que eles tinham um caso mesmo — disse o garoto, depois de dar mais uma profunda tragada no cigarro.

Pombinho estava muito arrasado, é?

Arrasado é pouco! Ele estava tendo uma crise histérica. Soluçava feito sei lá o quê. Pior que a porra da viúva.

Andrew riu. Bola soltou mais um anel de fumaça e ficou mexendo numa das orelhas enormes.

Caí fora mais cedo. Ainda nem tinham enterrado ele.

Continuaram a fumar em silêncio, olhando para o rio lamacento. Nes­se meio-tempo, Andrew ficou pensando nas palavras do amigo, "Caí fora mais cedo": quanta autonomia Bola parecia ter, em comparação com ele mesmo... Simon e a sua fúria formavam uma barreira entre Andrew e uma boa dose de liberdade. Lá em Hilltop House, acontecia de alguém ficar de castigo só porque estava em determinado lugar em determinada ocasião. Uma vez, a imaginação do garoto foi atraída por um estranho tópico da aula de filosofia e religião em que se discutiram os deuses primitivos, com toda a sua ira e violência arbitrárias, e as tentativas das civilizações daque­les tempos no sentido de aplacá-las. Andrew pensou então na natureza da justiça tal como ele a conhecia: o pai como um deus pagão, e a mãe como a alta sacerdotisa do culto, tentando interpretar e interceder, geralmente em vão, mas, mesmo assim, e apesar de todas as evidências, insistindo em afirmar que havia uma magnanimidade e uma sensatez por trás das atitu­des da sua deidade.

Bola apoiou a cabeça na parede de pedra do Pombal e ficou sopran­do uns anéis de fumaça para o teto. Estava pensando no que queria dizer a Andrew. Passou todo o serviço fúnebre, enquanto o pai solu­çava com o rosto enfiado no lenço, ensaiando mentalmente um jeito de começar. Estava tão empolgado com a perspectiva de contar que mal conseguia se conter, mas tinha decidido que não ia falar assim de repente. Para ele, contar era quase tão importante quanto fazer. Não queria que Andrew achasse que ele tinha vindo até ali só para lhe dizer aquilo.

Sabe como era o Fairbrother lá no Conselho? — perguntou An­drew.

Sei — respondeu Bola, adorando que o amigo tivesse puxado con­versa.

Docinho de Coco está dizendo que vai se candidatar!

Vai mesmo? — exclamou Bola, franzindo as sobrancelhas. — Que diabo deu nele?

Ele acha que Fairbrother estava levando propina de um fornecedor qualquer — respondeu Andrew, que tinha ouvido uma conversa entre os pais na cozinha naquela mesma manhã. E aquilo explicava tudo. — Está querendo entrar na jogada também.

Mas não era Barry Fairbrother — disse Bola, rindo e batendo a cinza do cigarro no chão. — E não aconteceu no Conselho Distrital. Foi um cara chamado sei lá o quê Frierly, lá em Yarvil. Ele era do Conselho de Administração da Winterdown. Pombinho teve um ataque. Os jornalistas começaram a ligar pedindo que ele falasse sobre o assunto e todas essas coisas. O tal do Frierly se ferrou. Docinho de Coco não lê a Gazeta?

Andrew ficou olhando fixo para o amigo.

É a cara dele!

Apagou o cigarro no chão de terra, envergonhado com a burrice do pai. Mais uma vez ele tinha entendido tudo errado. Desprezava a comunidade local, não dava a mínima para as questões do vilarejo e tinha o maior orgulho do isolamento em que viviam naquela casinha vagabunda lá no alto da colina. De repente, ouve uma coisa qualquer que não tem nada a ver e, por conta disso, decide expor a família in­teira ao ridículo.

Safado esse tal de Docinho de Coco, hein? — disse Bola.

Era assim que Ruth chamava o marido. Uma vez, quando ficou para lanchar na casa deles, Bola ouviu a mãe do amigo usar esse apelido e, desde então, nunca mais se referiu a Simon de outra forma.

Se é... — respondeu Andrew, pensando se conseguiria dissuadir o pai de se candidatar contando-lhe que ele estava pensando no homem errado e no Conselho errado.

Que coincidência... Pombinho também vai se candidatar — pros­seguiu Bola, soltando a fumaça pelo nariz e olhando a parede da gruta além da cabeça de Andrew. — Será que os eleitores vão votar no babaca um — acrescentou — ou no babaca dois?

Andrew riu. Poucas coisas lhe pareciam mais engraçadas que ouvir o próprio pai ser chamado de babaca por Bola.

Agora, saca só isso aqui — prosseguiu o garoto, deixando o cigarro preso entre os lábios e dando uns tapinhas nos bolsos da calça, embora soubesse perfeitamente que o envelope estava no bolso interno do paletó.

— Pronto! — exclamou, pegando o tal envelope e abrindo-o para que o amigo visse o que ele continha: umas bolinhas marrons do tamanho de pimenta em grãos misturadas com folhas e raminhos secos. — E o que chamam de sensimilla.

O que é isso?

Partes da planta que é nossa velha conhecida: a maconha — respondeu Bola —especialmente preparada para o seu prazer de fumar.

E qual é a diferença entre esse troço aí e a maconha normal? — perguntou Andrew, que já tinha dividido alguns baseados com o amigo ali mesmo no Pombal.

Só um fumo diferente, né? — replicou Bola, apagando o cigarro. Tirou do bolso uma caixinha de Rizla, pegou três daquelas folhas de papel fininhas e começou a enrolá-las.

Arranjou isso com Kirby? — indagou Andrew, remexendo no enve­lope e cheirando o seu conteúdo.

Todo mundo sabia que Skye Kirby era avião. Estava um ano acima de­les na escola. O seu avô era um velho hippie que tinha sido detido várias vezes por manter a sua própria plantação.

Foi. Sabe de uma coisa? — disse Bola, abrindo uns cigarros e des­pejando o tabaco nas folhinhas de papel. — Lá em Fields tem um cara chamado Obbo. Ele consegue qualquer coisa. Até a porra da heroína, se a gente quiser.

Mas a gente não quer, né? — indagou Andrew, observando o rosto do amigo.

Claro que não — respondeu o outro, pegando o envelope e pon­do a sensimilla em cima do tabaco. Enrolou tudo junto, lambeu a borda do papel para colá-la, enfiou o filtro numa das extremidades e torceu a outra para formar um bico. — Perfeito! — exclamou, todo contente.

Tinha planejado contar a novidade depois de apresentar a sensimilla, como uma espécie de preliminar. Estendeu a mão pedindo o isqueiro, pôs a ponta com o filtro na boca e acendeu o baseado. Deu então uma tragada profunda, contemplativa, soprou um jato azulado de fumaça e repetiu a operação.

Hmmm — murmurou. Prendendo a fumaça nos pulmões e imi­tando Pombinho, que tinha ganhado de presente da mulher no Natal um curso de vinhos, disse: — Herbáceo. Retrogosto persistente. Notas sutis de... Cacete!

Sentiu a cabeça rodar, embora estivesse sentado.

Experimenta só isso, cara! — exclamou, soltando a fumaça e rindo.

Andrew se debruçou sobre o amigo, rindo também, não só pela expec­tativa, mas principalmente por causa do sorriso beatífico que via no rosto de Bola e que não combinava absolutamente com a sua cara emburrada habitual.

Deu uma tragada e sentiu o poder da droga se irradiar, a partir dos seus pulmões, relaxando-o, deixando-o mais solto. Uma segunda tragada, e Andrew achou que parecia até que a sua mente havia sido sacudida como uma colcha e, depois, voltava a se assentar sem dobras, tudo ficando macio, simples, fácil e gostoso.

Cacete — disse, então, fazendo eco a Bola e sorrindo ao ouvir o som da própria voz. Devolveu o baseado ao amigo, que o esperava com os dedos a postos e ficou saboreando aquela sensação de bem-estar.

E então? Tá a fim de ouvir uma coisa interessante? — perguntou Bola, sem conseguir conter o riso.

Pode falar.

Trepei com ela ontem à noite.

Andrew quase perguntou "Com quem?", mas o seu cérebro atordoa­do acabou se lembrando: Krystal Weedon, é claro. Quem mais poderia ser?

Onde? — perguntou bestamente. Não era isso que estava querendo saber.

Com o terno do enterro, Bola se deitou de costas, com os pés voltados para o rio. Sem dizer uma palavra, Andrew se deitou ao seu lado, no sen­tido contrário. Era o que faziam em criança, quando ficavam para dormir na casa um do outro. O garoto ficou só olhando para o teto de pedra, onde a fumaça azulada tinha ficado retida, rodopiando bem devagar, e esperou para ouvir a história toda.

Eu disse para Pombinho e Tessa que tinha ido para a sua casa. Por­tanto... — principiou Bola. Passou o baseado para o amigo, juntou as mãos compridas sobre o peito e ficou se ouvindo contar. — Aí, peguei o ônibus e fui para Fields. A gente se encontrou na porta do Oddbins.

Perto do Tesco? — indagou Andrew, que não sabia por que estava fazendo aquelas perguntas idiotas.

Isso! — respondeu Bola. — Fomos para o parquinho. Tem umas árvores num dos cantos, atrás dos banheiros públicos. É legal e bem escon­dido. Já estava escurecendo.

Bola se remexeu, e Andrew lhe passou de novo o baseado.

Meter lá dentro é mais difícil do que eu imaginava — disse o garoto. Andrew estava fascinado, com vontade de rir, mas também com medo de perder qualquer detalhe que o amigo pudesse lhe fornecer. — Ela tava mais molhada enquanto eu só tava enfiando os dedos.

Uma risada subiu pelo peito de Andrew como um arroto, mas morreu ali mesmo.

Tem que fazer muita força para conseguir entrar direito. É mais apertado do que eu imaginava.

Andrew viu um jato de fumaça subindo do lugar onde devia estar a cabeça do amigo.

Gozei em dez segundos. É bom paca quando a gente tá lá dentro...

Andrew conteve uma gargalhada, afinal, podia ter mais coisa...

Usei camisinha. Deve ser melhor sem.

Devolveu o baseado à mão de Andrew. O garoto deu uma tragada, pensativo. Mais difícil de entrar do que ele imaginava, e acabou em dez segundos. Não parece muito tempo. Mesmo assim, o que ele não daria para fazer isso também? Imaginou Gaia Bawden deitada de barriga para cima, todinha para ele, e, sem querer, soltou um ligeiro grunhido que Bola pareceu não ouvir. Perdido numa onda de imagens eróticas, fuman­do o baseado, Andrew ficou deitado naquele pedacinho de chão que o seu corpo havia esquentado, de pau duro, ouvindo o barulhinho da água a poucos metros da sua cabeça.

Que que conta na vida, Arf? — perguntou Bola, depois de um longo silêncio sonhador.

Com a cabeça nadando de um jeito gostoso, Andrew respondeu:

Sexo.

É isso aí — disse o outro, encantado. — Foder. É isso que importa. Propo... Propogar a espécie. Abaixo as camisinhas. Crescer e multiplicar.

Isso mesmo — replicou Andrew, rindo.

E morrer — acrescentou Bola. Ele tinha ficado impressionado com a realidade daquele caixão e com a pouca quantidade de material que separava todos os abutres em alerta do efetivo cadáver. Não lamentava mesmo ter saído antes que o tal caixão desaparecesse no chão. — Não tem outro jeito, né? Morrer.

É — disse Andrew, pensando em guerras e acidentes de automóvel, e em morrer sob as luzes da velocidade e da glória.

É — repetiu Bola. — Foder e morrer. É isso aí, né? Foder e morrer. É a vida!

Tentar foder e tentar não morrer.

Ou tentar morrer — replicou Bola. — Para algumas pessoas é as­sim. Correndo riscos.

Verdade. Correndo riscos.

Houve um novo silêncio. O esconderijo estava frio e enevoado.

É música — disse Andrew, baixinho, olhando a fumaça azulada que flutuava na rocha escura.

É — concordou Bola, com uma voz distante. — É música.

E o rio continuou correndo além do Pombal.

 

                                     Comentário fundamentado

7.33 Em questões de interesse público, um comentário fundamentado não é passível de ação judicial.

           Charles Arnold-Baker

           Administração dos Conselhos Locais

 

Choveu na sepultura de Barry Fairbrother. A tinta dos cartões ficou toda borrada. A cabeça robusta do girassol de Siobhan conseguiu desafiar as gotas persistentes, mas os lírios e as frésias de Mary sucumbiram e se desmancharam. O remo de crisântemos escureceu ao murchar. A chuva fez o rio encher, criou verdadeiros riachos nas sarjetas e transformou as estradas íngremes que levam a Pagford em pistas escorregadias e traiçoei­ras. As janelas do ônibus escolar embaçaram totalmente. As floreiras pendentes lá da praça ficaram encharcadas. E Samantha Mollison, com os limpadores de para-brisa funcionando a todo vapor, bateu com o carro quando voltava do trabalho na cidade, mas foi um acidente de pequenas proporções.

Um exemplar da Gazeta de Yarvil e Adjacências ficou entalado na porta da casa da sra. Catherine Weedon, na Hope Street, por três dias e acabou encharcado e ilegível. Finalmente, a assistente social Kay Bawden conseguiu tirá-lo da fenda para correspondência, espiou pela portinhola enferrujada e viu uma senhora idosa caída no chão ao pé da escada. Um guarda ajudou a arrombar a porta, e a sra. Weedon foi levada de ambulân­cia para o Hospital South West.

E não parava de chover, o que obrigou o pintor que havia sido contra­tado para refazer o letreiro da antiga sapataria — com a chaleira de cobre que daria nome ao café — a adiar o trabalho. A chuva caiu por dias e noites a fio. A praça ficou repleta de gente encurvada usando capas, e os guarda-chuvas se esbarravam nas calçadas estreitas.

Howard Mollison achava aquele tamborilar na janela escura bem relaxante. Sentado no escritório que fora um dia o quarto da filha Patrícia, leu o e-mail que acabava de receber do jornal local. Eles tinham decidido publicar o artigo em que o conselheiro Fairbrother defendia que Fields continuasse pertencendo a Pagford. No entanto, em nome da imparciali­dade, gostariam que outro conselheiro defendesse o ponto de vista contrá­rio no número seguinte.

Viu, Fairbrother? O tiro saiu pela culatra, pensou Howard, satisfeito da vida. Você estava crente que ia conseguir fazer as coisas do seu jeito...

Fechou a mensagem e se voltou para a pequena pilha de papel que estava ao seu lado. Eram cartas que começavam a chegar, pedindo a reali­zação de uma eleição para o preenchimento da vaga de Barry. A legislação determinava que eram necessárias nove dessas solicitações para justificar o voto popular, e ele tinha recebido dez. Voltou a lê-las enquanto as vozes da sua mulher e da sua sócia se erguiam e baixavam lá na cozinha, desfiando os detalhes do escândalo da queda da velha sra. Weedon, só descoberta bem mais tarde.

...não troca de médico assim sem motivo, não é mesmo? Aos brados, Karen disse...

...dizendo que tinham lhe dado remédio errado, é, eu sei — inter­rompeu Shirley, que achava que detinha o monopólio em termos de es­peculação médica, já que trabalhava como voluntária no hospital. — Vão fazer exames lá no South West, espero eu.

Se eu fosse a dra. Jawanda, estaria preocupadíssima.

Ela deve ter esperanças que os Weedon sejam ignorantes demais para pensar em processo, mas isso não vai ser problema se o South West descobrir que houve mesmo erro na medicação.

Ela vai perder o registro — disse Maureen, deliciada.

Com certeza — retrucou Shirley. — E não duvido nada que muita gente ache que não era sem tempo. Que ela já vai tarde.

Metodicamente, Howard separou as cartas em pilhas. Os formulários da candidatura de Miles, devidamente preenchidos, ficaram de um lado. As outras comunicações eram de colegas conselheiros. Ali, não havia nada que pudesse surpreender: assim que Parminder lhe enviou um e-mail dizendo que conhecia alguém interessado em se candidatar para a vaga de Barry, imaginou que aqueles seis se aliariam à médica, pedindo a realização de eleições. Além da própria Aluga-Ouvido, estavam os outros integrantes do que Howard chamava A Facção Rebelde, cujo líder desapa­recera recentemente. Nesta pilha, ele pôs os formulários preenchidos por Colin Wall, o candidato escolhido por esse grupo.

Numa terceira pilha, ele pôs mais quatro cartas que, como as ante­riores, eram algo que se podia esperar, pois Howard os conhecia bem: os reclamões profissionais de Pagford, gente eternamente insatisfeita e desconfiada, todos eles prolíficos correspondentes da Gazeta de Yarvil e Adjacências. Cada uma dessas pessoas tinha lá o seu interesse obsessivo por alguma questão esotérica e se julgava "independente" em termos de opinião. Provavelmente, seriam os primeiros a acusá-lo de "nepotismo" se Miles fosse indicado, mas, por outro lado, incluíam-se nesse grupo alguns dos mais ferrenhos anti-Fields do vilarejo.

Pegou então as duas últimas cartas, uma em cada mão, e se pôs a ava­liá-las. Uma delas era de uma mulher que ele jamais tinha visto e que dizia (Howard nunca se fiava em nada) trabalhar na Clínica de Reabilitação Bellchapel (mas nada na carta indicava se a mulher era casada ou não, e isso fazia com que ele tendesse a acreditar nela). Depois de alguma hesi­tação, Howard pôs a carta junto com a candidatura de Pombinho Wall.

A última, que não trazia assinatura e havia sido escrita no computador, pedia a realização de eleições em termos nada moderados. Parecia ter sido feita às pressas, sem maiores cuidados, e estava repleta de erros de digita­ção, como no trecho que exaltava as virtudes de Barry Fairbrother e citava especificamente Miles como a pessoa menos indicada para ocupar "o sue lugar". Será que o seu filho teria algum cliente insatisfeito que pudesse vir a lhes criar problemas?, perguntou-se Howard. Não custava nada estar preparado para eventualidades como essa... No entanto, o presidente do Conselho não acreditava que essa carta, por ser anônima, fosse considera­da voto válido para a realização de uma eleição, e, por isso, ela foi parar na pequena fragmentadora de papéis que Shirley tinha lhe dado de presente no Natal.

 

Edward Collins & Cia., o escritório de advocacia de Pagford, ocupava o andar de cima de uma casa de tijolos que tinha uma ótica no térreo. Edward Collins já havia falecido, e a firma contava agora com dois advo­gados: Gavin Hughes, o sócio assalariado cujo escritório tinha uma janela, e Miles Mollison, o sócio proprietário cujo escritório tinha duas janelas. Ambos dividiam a mesma secretária, uma moça de vinte e oito anos, sol­teira, meio sem graça, mas com boa aparência. Shona ria demais com as piadas de Miles e tratava Gavin com uma condescendência que chegava a ser quase ofensiva.

Na sexta-feira depois do funeral de Barry Fairbrother, Miles bateu à porta da sala de Gavin à uma da tarde e entrou sem esperar resposta. Encontrou o sócio observando o céu cinzento através da vidraça molhada pela chuva.

Vou dar uma saidinha para almoçar — disse Miles. — Se Lucy Bevan chegar antes de mim, diga-lhe que estou de volta às duas, pode ser? Shona saiu.

Claro. Digo, sim — respondeu Gavin.

Está tudo bem?

Mary telefonou. Parece que tem um probleminha com o seguro de vida de Barry. Ela me pediu para ajudar a resolver.

Ah, sei. Mas você pode ver isso sozinho, não pode? De qualquer jeito, às duas horas estou aqui.

Miles enfiou o sobretudo, desceu correndo a escada e, a passos rápidos, pegou a ruazinha varrida pela chuva, que ia dar na praça do vilarejo. Uma brecha momentânea na camada de nuvens deixou que o sol fosse bater no reluzente memorial e nas floreiras penduradas. Ele se sentiu tomado por um orgulho atávico ao atravessar a praça rumo à Mollison & Lowe, aquela instituição local, aquela lojinha tão refinada... Um orgulho que a familiaridade jamais desgastara, pelo contrário, só vinha tornando ainda mais forte e mais profundo.

A sineta tocou quando Miles empurrou a porta. Na loja, havia um cer­to movimento por causa da hora do almoço: uma fila de oito pessoas espe­rava diante do balcão, e Howard, nos seus trajes mercantis, com as moscas de pescaria reluzindo no chapéu Sherlock Holmes, falava sem parar.

...e duzentos e cinqüenta gramas de azeitonas pretas para você, Rosemary. É só por hoje? É só para Rosemary... Seriam oito libras e sessenta e dois pence, mas, para você, querida, vou fazer por oito, em honra da nossa longa e frutífera associação...

Risinhos e agradecimentos. O barulho da gaveta da caixa registradora se abrindo e se fechando.

E aí está o meu advogado. Veio me inspecionar... — disse ele, com a sua voz de trovão, piscando e rindo para Miles do seu lugar atrás do bal­cão. — Se quiser me esperar lá nos fundos da loja, doutor, vou tentar não dizer à sra. Howson nada que possa me incriminar...

Miles sorriu para aquelas senhoras de meia-idade que o olhavam en­cantadas. Alto, com o cabelo cacheado que começava a ficar grisalho, grandes olhos azuis e a barriga disfarçada pelo sobretudo, ele era um acrés­cimo bastante atraente aos biscoitos caseiros e aos queijos da região. Com cuidado, atravessou a loja, passando entre as mesinhas que continham pilhas de guloseimas, e se deteve na abertura entre a delicatéssen e a velha sapataria. Pela primeira vez, o arco estava sem a proteção da cortina de plástico. Maureen (Miles reconheceu a sua letra) tinha posto um cartaz numa bandeja de sanduíches bem no meio da passagem. Não entre. Em breve: o café Copper Kettle. O rapaz deu uma espiada para aquele espaço vazio que, em breve, abrigaria o melhor e mais novo café de Pagford. Tudo ali tinha sido revestido e pintado, e o assoalho escuro acabava de ser envernizado.

Contornou o canto do balcão quase esbarrando em Maureen, que esta­va usando o cortador de frios, o que a fez soltar uma risada brusca e vulgar, e passou pela porta que levava à salinha dos fundos. Havia ali uma mesa de fórmica, sobre a qual se via o Daily Mail de Maureen, dobrado, os ca­sacos dos dois sócios pendurados num cabideiro e a porta do banheiro, de onde vinha um cheiro artificial de lavanda. Miles pendurou o sobretudo e puxou uma velha cadeira para junto da mesa.

Um ou dois minutos depois, Howard apareceu trazendo duas travessas cheias de produtos da delicatéssen.

Quer dizer que já está decidido que o nome vai ser "Copper Kettle"? — indagou Miles.

Bom, Mo gosta desse nome — respondeu Howard, pondo uma das travessas diante do filho.

Saiu novamente, voltou trazendo duas garrafas de cerveja e fechou a porta com o pé, deixando a salinha sem janelas mergulhada numa pe­numbra só amenizada pela luz fraca do lustre. Howard se sentou com um grunhido profundo. Tinha adotado um tom de conspiração quando telefonou lá pelo meio da manhã, e deixou o filho esperando ainda mais alguns minutos enquanto tirava a tampa de uma das garrafas.

Wall já mandou seus formulários — disse ele, enfim, passando a cerveja a Miles.

- Ah, é?

Vou estabelecer um prazo. Duas semanas, a contar de hoje, para os candidatos se apresentarem.

Bem razoável.

Pelo que diz a sua mãe, o tal do Price continua interessado. Já per­guntou a Sam se ela sabe quem é o sujeito?

Não — respondeu Miles.

Howard coçou uma das pregas da barriga que tinha ficado bem perto dos seus joelhos quando ele se sentou na cadeira que rangia.

Está tudo bem com vocês dois?

Como sempre, Miles ficou espantado com a intuição quase paranormal do pai.

Não muito.

Não teria confessado isso para a mãe, pois vivia tentando não fomentar a constante guerra fria entre ela e Samantha, uma guerra em que ele pró­prio era, a um só tempo, refém e troféu.

Ela não gosta da idéia de eu me candidatar — disse ele, cauteloso. Howard ergueu as fartas sobrancelhas, com a papada balançando ao mo­vimento da mastigação. — Não posso imaginar que diabo deu nela. Anda numa daquelas fases anti-Pagford.

Howard engoliu sem pressa. Limpou a boca com um guardanapo e arrotou.

Vai mudar de opinião assim que você tiver sido eleito — retrucou ele. — Tem todo o lado social. Muita atividade para as esposas. Recepções na Sweetlove House... Ela vai fazer parte do grupo — acrescentou, toman­do mais um gole de cerveja e coçando a barriga novamente.

Não faço idéia de quem é esse tal de Price — disse Miles, voltando ao assunto principal. — Mas tenho uma vaga lembrança que tinha um filho dele na mesma turma de Lexie lá na St. Thomas.

Mas ele nasceu em Fields: aí é que está! — observou Howard. — Alguém nascido em Fields que pode trabalhar a nosso favor. Os votos dos pró-Fields podem ser divididos entre ele e Wall.

Verdade — replicou Miles. — Faz sentido...

Isso não tinha lhe passado pela cabeça. Ficava encantado com o jeito como a mente do pai funcionava.

A sua mãe já ligou para a mulher dele e deu as instruções para ela baixar os formulários do site. Talvez seja bom ela telefonar de novo hoje à noite, avisando que o prazo é de duas semanas, tentando pressioná-lo.

Então, são três candidatos? — indagou Miles. — Com Colin Wall.

Não ouvi falar de ninguém mais. É possível que apareça mais al­guém depois que os detalhes forem divulgados pelo site. Mas estou con­fiante nas nossas possibilidades. Estou mesmo. Aubrey ligou — acrescen­tou ele. Havia sempre um toque adicional de pompa na voz de Howard quando ele se referia a Aubrey Fawley pelo nome de batismo. — Não preciso nem dizer que ele apoia a sua candidatura. Volta hoje à noite. Está na cidade.

Em geral, quando um pagfordiano dizia "na cidade", estava se refe­rindo a Yarvil. Howard e Shirley, porém, usavam a expressão, imitando Aubrey Fawley, para dizer "em Londres".

Disse algo sobre nos encontrarmos para conversar. Talvez amanhã. Pode até nos convidar para ir à sua casa. Sam vai gostar da idéia.

Miles tinha acabado de morder um bom pedaço do pão irlandês com patê de fígado, mas mostrou que concordava com um enfático aceno de cabeça. Gostava da idéia de ser apoiado por Aubrey Fawley. Por mais que Samantha debochasse do fascínio dos seus pais pelo casal, já tinha perce­bido que, nas raras ocasiões em que a sua mulher esteve com um ou com outro dos Fawley, o seu jeito de falar se alterava sutilmente e ela assumia uma atitude mais recatada.

Ah, tem mais uma coisa — disse Howard, mais uma vez coçando a barriga. — Hoje de manhã, recebi um e-mail da Gazeta de Yarvil e Adjacências, pedindo a minha opinião sobre Fields. Como presidente do Conselho Distrital.

Não brinca! Pensei que Fairbrother tivesse conseguido nos passar a perna...

O tiro saiu pela culatra, não é mesmo? — exclamou Howard, satis­feitíssimo. — Vão publicar o artigo dele e querem que alguém defenda a visão contrária na semana seguinte. Querem ter a outra versão da história. Você bem que poderia me ajudar, com o fraseado dos advogados e coisas do gênero.

Claro — replicou Miles. — Podíamos falar daquela maldita clínica de reabilitação. Isso seria fundamental.

Isso mesmo... Ótima idéia... Excelente.

De tão entusiasmado, Howard engoliu um bocado grande demais, e Miles teve de lhe dar uns tapas nas costas até ele desengasgar. Finalmente, enxugando com o guardanapo os olhos, que lacrimejavam, e ainda sem fôlego, ele disse:

Aubrey está recomendando que o município, por sua vez, corte as verbas da clínica, e, quanto a mim, vou alegar que o contrato de locação já está expirando. Não faria mal nenhum defender essa questão na mídia. Quanto tempo e quanto dinheiro já foram destinados a esse maldito lugar, e a gente não vê nenhum retorno! Tenho todos os números — acrescentou ele, dando um arroto sonoro. — O mais completo absurdo! Desculpe...

 

Naquela noite, em casa, Gavin preparou o jantar para Kay, abrindo latas e esmagando alho com um sentimento de injustiça.

Depois de uma briga, é preciso dizer certas coisas para selar as pazes: essas são as regras, como todos sabem. Do carro, no trajeto de volta do enterro de Barry, Gavin ligou para Kay e disse que gostaria que ela tivesse ido com ele, que o dia tinha sido terrível e que seria bom vê-la à noite. Achou que admitir isso, com toda a humildade, eqüivalia mais ou menos ao preço que precisava pagar por uma noite com uma companhia que não exigisse demais dele.

Kay, porém, lhe deu a impressão de estar encarando os fatos mais como um adiantamento da renegociação de um contrato. Você sentiu a minha falta. Desejou que eu estivesse ao seu lado quando ficou chateado. Lamentou não termos ido juntos ao enterro. Bom, então, vamos tratar de não repetir esse erro. Daquele momento em diante, passou a haver uma certa condescendência na forma como ela o tratava, uma certa pressa, uma sensação de expectativa renovada.

Estava preparando um espaguete à bolonhesa. Recusou-se, deliberadamente, a comprar uma sobremesa ou já deixar a mesa posta: estava fazendo de tudo para lhe mostrar que não tinha caprichado muito... Apa­rentemente, Kay não deu pela coisa; parecia até interpretar essa atitude sem cerimônia como sendo um elogio. Sentou-se à pequena mesa, con­versando com ele ao som da chuva que batia na claraboia, passando os olhos pelos utensílios da cozinha. Só tinha estado ali umas poucas vezes.

Deve ter sido Lisa que escolheu esse amarelo, não foi?

Pronto! Lá estava ela fazendo aquilo de novo: rompendo tabus, como se eles tivessem acabado de atingir um nível mais profundo de intimidade. Gavin preferia não falar de Lisa, se não fosse absolutamente indispensável, e, a essa altura, Kay já devia ter aprendido isso. Jogou um pouco de orégano na carne picada que estava na frigideira e disse:

Não. Foi o antigo proprietário. Ainda não deu para trocar nada.

Ah, sei — disse a moça, tomando uns golinhos de vinho. — É bonitinho. Só um pouco sem graça.

Aquele palpite deixou Gavin irritado, já que, na sua opinião, tudo ali dentro do Smithy era superior a qualquer aspecto do número dez da Hope Street. Ficou olhando a massa na água fervente, de costas para ela.

Ah, sabe de uma coisa? — principiou Kay. — Encontrei Samantha Mollison hoje à tarde.

Gavin se virou de imediato. De onde Kay conhecia Samantha Mollison?

Lá na praça, bem na porta da delicatéssen. Eu estava indo comprar isso aqui — prosseguiu ela, batendo com a unha na garrafa de vinho ao seu lado. — Ela me perguntou se eu era a namorada de Gavin.

Disse aquilo com um ar meio divertido, mas, no fundo, ficou animada com as palavras de Samantha. Foi um alívio achar que era assim que Ga­vin se referia a ela falando com os amigos.

E o que você respondeu?

Respondi... que era.

O seu rosto estava agora tristonho. Gavin não pretendia fazer aquela pergunta num tom assim tão agressivo... Teria dado tudo para que Kay e Samantha nunca se encontrassem.

Bom, mas pouco importa — acrescentou a moça, com uma ponta de mágoa na voz. — O que conta é que ela nos convidou para jantar na sexta-feira que vem. Daqui a uma semana.

Ah, droga! — exclamou Gavin, irritadíssimo.

Boa parte da animação de Kay já havia se dissipado.

Qual é o problema?

Nada. Não é... nada — respondeu ele, cutucando o espaguete que fervia. — Para ser sincero, é que eu já passo o dia inteiro com Miles!

Era exatamente o que ele mais temia: que ela desse um jeito de ir se chegando e eles acabassem se tornando Gavin-e-Kay, com um círculo de amigos, pois, assim, ia ficar cada vez mais difícil eliminá-la da sua vida. Como foi deixar isso acontecer? Por que permitiu que ela viesse morar ali? A fúria que sentia contra si mesmo não tardou a se transformar em raiva contra Kay. Será que não dava para perceber que ele não estava tão a fim dela assim? Por que ela não caía fora por conta própria em vez de obrigá-lo a fazer o papel do canalha? Escorreu o espaguete na pia, xingando baixi­nho, e respingou água fervendo na roupa.

Então é melhor você ligar para Miles e Samantha e dizer que não dá — disse Kay.

A voz dela tinha agora um tom duro. Seguindo o seu hábito tão profun­damente arraigado, Gavin tratou de impedir a eclosão de um conflito que parecia iminente e deixar que o futuro se resolvesse por si só.

Não, não — exclamou, secando a camisa com um pano de prato. — Vamos, sim. Tudo bem. Vamos jantar lá.

Mas com a sua evidente falta de entusiasmo tentou deixar bem claro algo que poderia vir a usar mais tarde: Você sabia que eu não estava a fim de vir. Não gostei, não. Não pretendo repetir a dose.

Passaram uns bons minutos comendo em silêncio. Gavin estava com medo que acontecesse outra briga e Kay o forçasse a discutir de novo as questões que até então haviam ficado implícitas. Começou a procurar alguma coisa para dizer e resolveu então falar da história de Mary Fairbro­ther com a companhia de seguros.

Eles estão sendo uns grandessíssimos filhos da puta — disse. — Barry tinha feito um seguro alto, mas os advogados da companhia estão buscando um jeito de não pagar. Estão tentando alegar que ele sonegou informações.

Como assim?

Bom, um tio de Barry também morreu de aneurisma. Mary jura que Barry disse isso ao agente quando assinou a apólice, mas não existe nenhuma menção a esse fato na ficha dele. Vai ver que o sujeito não se deu conta que isso pode ser um problema genético. Não sei se Barry efe­tivamente...

A sua voz falhou. Horrorizado e constrangido, Gavin baixou o rosto vermelho e ficou olhando o próprio prato. Estava com um nó na garganta e não conseguia se livrar dele. Os pés da cadeira de Kay arrastaram no chão. O rapaz teve esperanças de que ela fosse ao banheiro, mas, de re­pente, sentiu os braços dela nos seus ombros, puxando-o para junto de si. Sem pensar, ele também passou um dos braços pelos ombros da moça.

Era tão bom ser abraçado... Se ao menos aquela relação pudesse se manifestar apenas por gestos de conforto simples e sem palavras... Por que os humanos tinham de aprender a falar?

Um pouco de catarro do seu nariz pingou nas costas da blusa de Kay.

Desculpe — disse ele, com voz rouca, limpando aquilo com o guardanapo.

Afastou-se dela e assoou o nariz. Kay puxou a cadeira para o lado dele e pôs uma das mãos no seu braço. Gavin gostava muito mais dela assim, calada, e com o rosto brando e preocupado como agora.

Não consigo... Ele era um bom sujeito — disse então. — Barry. Ele era um bom sujeito.

Verdade. É o que todos dizem — observou Kay.

Gavin nunca deixou que ela conhecesse o famoso Barry Fairbrother, mas Kay estava intrigada com aquela cena de emoção do rapaz e com a pessoa que a provocara.

Ele era divertido? — perguntou, porque podia imaginar Gavin fasci­nado por um sujeito engraçado; alguém que estivesse sempre à frente das farras, que enchesse a cara nos bares.

Acho que era. Bem, não exatamente. Normal. Gostava de rir... Mas era simplesmente... um cara tão bacana... Gostava de gente, sabe?

Kay ficou esperando, mas Gavin não parecia capaz de lhe dar mais esclarecimentos sobre as qualidades de Barry.

E os meninos... e Mary... Coitadinha... Meu Deus, você não pode imaginar...

Kay continuou a lhe dar uns tapinhas no braço, mas a sua solidarieda­de tinha se reduzido um pouco. Não posso imaginar, pensou ela, o que significava ficar só? Não posso imaginar como é difícil ter que agüentar sozinha a responsabilidade de sustentar uma família? E de mim, Gavin não tinha pena?

Eles eram felizes, de verdade — acrescentou ele, com a voz embar­gada. — Ela está um caco.

Sem dizer nada, Kay lhe acariciou o braço, pensando que ela própria nunca tinha podido se dar ao luxo de ficar um caco.

Estou bem — disse Gavin, limpando o nariz no guardanapo e pe­gando novamente o garfo. E, com um gesto quase imperceptível, indicou que ela já podia tirar a mão do seu braço.

 

O tal convite para jantar foi motivado por um misto de desejo de vingança e tédio. Samantha via aquilo como uma retaliação contra Miles, que, ago­ra, vivia às voltas com uns esquemas sobre os quais não lhe pedia opinião, mas para os quais contava com a sua colaboração. Queria ver como ele ia reagir quando ficasse sabendo que ela tinha combinado alguma coisa sem consultá-lo. E, de quebra, também ia passar a perna em Maureen e Shirley, aquelas velhas bisbilhoteiras que viviam tão fascinadas com a vida privada de Gavin, mas não sabiam praticamente nada sobre a relação en­tre ele e a namorada de Londres. Ainda por cima, ia ter mais uma oportu­nidade de dar umas alfinetadas em Gavin, sempre tão covarde e indeciso com relação à própria vida amorosa: podia tocar no assunto casamento na frente de Kay ou dizer como era bom ver Gavin finalmente assumir um compromisso.

No entanto, os seus planos para criar situações embaraçosas para os outros acabaram lhe dando menos prazer do que ela esperava. Quando contou a Miles, no sábado de manhã, o convite que tinha feito, ele reagiu com um entusiasmo que a deixou desconfiada.

Ah, ótimo! Faz séculos que Gavin não vem aqui. E vai ser uma óti­ma oportunidade para você conhecer Kay.

Como assim?

Ora, você sempre se deu bem com Lisa, não é verdade?

Miles! Eu odiava Lisa...

Bom, então... quem sabe você não gosta mais de Kay?

Samantha olhou para o marido, perguntando-se de onde teria saído tamanho bom humor. Lexie e Libby, que tinham vindo passar o fim de semana em casa e não podiam sair por causa da chuva, estavam vendo um DVD musical na sala de estar. Lá da cozinha, onde o casal estava conversando, dava para ouvir o som pesado de uma guitarra em altos brados.

Olhe — disse Miles, brandindo o celular —, Aubrey quer ter uma conversa comigo sobre o Conselho. Acabei de ligar para papai. Os Fawley convidaram todos nós para jantar hoje à noite na Sweetlove...

Não, obrigada — replicou Samantha, interrompendo a fala do ma­rido. De repente, estava tomada por uma fúria que não conseguia explicar nem para si mesma. E saiu do aposento.

Passaram o dia inteiro discutindo em voz baixa pela casa toda, tentando não estragar o fim de semana das filhas. Samantha se recusava a mudar de idéia ou a expor os seus motivos. Miles, com medo de se enfurecer, ficava alternando frieza e atitudes conciliatórias.

Não acha que vai pegar muito mal se você não for? — perguntou ele, às dez para as oito, parado na porta da sala de estar, já pronto para sair, de terno e gravata.

Não tenho nada a ver com isso, Miles — disse Samantha. — O candidato é você.

Gostava de vê-lo assim aflito. Sabia que o marido estava morrendo de medo de se atrasar, mas, ao mesmo tempo, ainda tinha esperanças de convencê-la a ir com ele.

Sabe muito bem que eles estão contando com o casal.

Estão mesmo? Ninguém me convidou.

Ah, pelo amor de Deus, Samantha! Você sabe que eles... que eles acharam que não precisavam nem dizer que o convite era para os dois.

Pois então acharam errado! Não estou com vontade de ir. É melhor você ir andando... Não vai querer deixar papai e mamãe esperando...

E ele saiu. Samantha ouviu o carro dando marcha a ré na entrada da garagem. Foi então até a cozinha, abriu uma garrafa de vinho, pegou uma taça e voltou para a sala. Ficou imaginando Howard, Shirley e Miles jan­tando juntos na Sweetlove House. Com certeza aquele ia ser o primeiro orgasmo de Shirley em muitos anos...

Mas os seus pensamentos estavam sempre se desviando de forma irre­sistível para o que o contador tinha lhe dito durante a semana. Os lucros vinham caindo, por mais que ela dissesse o contrário ao sogro. O contador chegou mesmo a sugerir que Samantha fechasse a loja e ficasse apenas com as vendas on-line. Só que isso seria admitir o seu fracasso, coisa que ela não estava preparada para fazer, por um motivo bem específico: Shirley adoraria ver a loja fechando. A sogra tentou puxar o seu tapete desde o começo. Des­culpe, Sam, mas não tem nada a ver com o meu gosto... Um pouquinho extra­vagante demais... Mas Samantha adorava a sua lojinha vermelha e preta lá em Yarvil; adorava sair de Pagford diariamente, conversar com os clientes, fofocar com Carly, a vendedora. O mundo ia ficar menor sem a loja que ela mantinha há quatorze anos: ia se resumir a Pagford.

(Pagford! Droga de vilarejo! Samantha nunca quis morar ali. Ela e Mi­les haviam planejado viver um ano fora antes de começarem a trabalhar, fazendo uma viagem de volta ao mundo. Já tinham até traçado o itinerário e tirado os vistos. O seu sonho era andar descalça, de mãos dadas com o namorado, pelas imensas praias australianas. Mas foi então que descobriu que estava grávida.

Uma semana depois de se formar, pegou o resultado do teste de gravi­dez e, no dia seguinte, veio ver Miles em Ambleside. Em oito dias, esta­riam embarcando para Cingapura.

Samantha não quis lhe dar a notícia ali naquela casa, pois tinha medo de que os pais dele pudessem ouvir. Shirley parecia estar por trás de cada porta que ela abria naquele chalé.

Esperou então até que os dois estivessem sentados num cantinho mais escuro do Black Canon. Lembrava ainda das mandíbulas cerradas de Mi­les quando ela lhe contou. De alguma forma que não conseguia definir, ele pareceu envelhecer assim que ouviu aquelas palavras.

Passou alguns segundos num silêncio de pedra e, depois, disse:

— Tudo bem. Vamos nos casar.

Contou-lhe então que já tinha comprado um anel de noivado, pois pretendia pedi-la em casamento em algum lugar bem especial, talvez no topo da Pedra Ayers. E, de fato, assim que voltaram para o chalé, ele foi buscar a caixinha na mochila onde já a tinha guardado. Era um peque­no diamante solitário de uma joalheria de Yarvil. Miles o comprou com parte do dinheiro que a avó lhe deixou quando morreu. Sentada na beira da cama do namorado, Samantha chorou, chorou, chorou... Os dois se casaram três meses depois.)

Sozinha com a sua garrafa de vinho, resolveu ligar a televisão. Na tela, apareceu o DVD que Lexie e Libby estavam vendo antes: a imagem conge­lada de quatro rapazes que mal pareciam ter saído da adolescência e usando umas camisetas bem justas cantando para ela. Apertou então a tecla "Play". Quando a música terminou, entrou a cena de uma entrevista. Samantha esvaziou o copo, vendo os garotos da banda fazerem brincadeiras uns com os outros e, depois, ficando mais sérios quando o assunto passou a ser o amor que tinham pelos fãs. Ela achou que saberia que eram americanos mesmo que a TV estivesse sem som. Tinham uns dentes tão perfeitos...

Já era tarde. Samantha deu pausa no DVD, subiu, mandou as filhas pararem de jogar PlayStation e irem para cama. Voltou então para a sala, onde havia ficado a garrafa já esvaziada em três quartos do seu conteúdo. Não acendeu as luzes. Apertou de novo a tecla "Play" e continuou beben­do. Quando o DVD terminou, ela voltou ao início e viu a parte que havia perdido.

Um dos rapazes parecia nitidamente mais maduro que os outros três. Tinha ombros largos, bíceps bem definidos sob a camiseta, um pescoço forte e um queixo quadrado. Samantha ficou olhando, vendo-o rebolar, com os olhos voltados para a câmera e uma expressão séria, meio vaga, no rosto bonito que era todo planos, ângulos e sobrancelhas escuras com uma curvatura acentuada.

Pensou no sexo com Miles. A última vez tinha sido três semanas atrás. A performance do marido era tão previsível quanto uma saudação maçônica. Uma das suas frases favoritas era: "Em time que está ganhando não se mexe."

Samantha despejou o resto do vinho na taça e se imaginou fazendo amor com o rapaz da tela. Ultimamente, os seus seios ficavam mais boni­tos com sutiã: quando se deitava, eles se espalhavam por todo lado, e ela se sentia flácida, horrorosa. Imaginou-se imprensada numa parede, com uma das pernas erguidas, o vestido levantado até a cintura e aquele rapaz moreno e lindo, com a calça jeans baixada até os joelhos, entrando e sain­do de dentro dela...

Com um aperto na boca do estômago que parecia até felicidade, ouviu o carro entrando no quintal e a luz dos faróis percorrendo a sala escura.

Na pressa de sintonizar o noticiário, Samantha se atrapalhou toda com os controles e demorou muito mais que o normal. Enfiou a garrafa vazia debaixo do sofá e agarrou o copo onde havia apenas um restinho de vinho, como se quisesse se apoiar nele. A porta da frente se abriu e se fechou. Miles entrou na sala às suas costas.

Por que está sentada assim no escuro?

Acendeu uma das luzes, e Samantha olhou para ele. Continuava tão impecável quanto no momento em que saiu de casa, a não ser por umas marquinhas da chuva nos ombros do paletó.

E aí? Como foi o jantar?

Foi ótimo — respondeu ele. — Todos sentiram a sua falta. Aubrey e Julia lamentaram que você não tenha podido ir.

Ah, claro... Aposto que a sua mãe chorou de tão desapontada.

Miles sentou numa poltrona perto da esposa e ficou olhando para ela.

Samantha afastou o cabelo que lhe caía sobre os olhos.

O que está acontecendo, Sam?

Bom, se você não sabe, Miles...

Mas ela própria não tinha tanta certeza, ou, pelo menos, não sabia como condensar toda aquela vaga sensação de estar sendo injustiçada numa acusação coerente.

Não entendo por que a minha candidatura ao Conselho Distrital...

Ah, pelo amor de Deus, Miles! — gritou ela, e chegou a se assustar ao perceber como a própria voz podia sair alta.

Vamos, me explique, por favor... — prosseguiu ele. — Que diferen­ça isso faz para você?

Ela o encarou, lutando para articular o que queria dizer para a mente jurídica tão pedante do marido, uma mente que parecia usar uma pinça para catar palavras em meio a um estoque reduzido de opções e que, em geral, acabava não conseguindo captar o plano mais amplo. O que dizer que ele pudesse entender? Que achava aquelas conversas intermináveis de Howard e Shirley sobre o Conselho a coisa mais insuportável do mundo? Que, se ele já era tão chato contando sempre as mesmas velhas histórias sobre os anos dourados do clube de rúgbi e se autoelogiando com relação ao trabalho, imagine quando começasse a pontificar sobre Fields!

É que eu estava achando — disse Samantha, sentada naquela sala de estar quase às escuras — que nós tínhamos outros planos.

Que planos? — indagou Miles. — Não sei do que você está fa­lando...

Tínhamos combinado que — replicou ela, articulando as palavras com todo o cuidado por sobre a borda do copo que tremia —, quando as meninas saíssem da escola, íamos viajar. Prometemos que faríamos isso, lembra?

A princípio, a raiva e a tristeza meio vagas que vinham consumindo Samantha desde que Miles declarara que pretendia se candidatar ao Con­selho não a fizeram lamentar os planos de passar um ano viajando que tiveram de abandonar. Agora, porém, tinha a impressão de que esse era o verdadeiro problema, ou, pelo menos, era o que mais poderia expressar aquele misto de desejo e de hostilidade que havia dentro dela.

Miles parecia inteiramente atônito.

Do que você está falando?

Quando fiquei grávida da Lexie — respondeu ela, sempre em voz alta —, não pudemos viajar, e a infeliz da sua mãe fez a gente se casar às pressas. O seu pai arranjou emprego para você com Edward Collins e você só disse: "Nós concordamos. Vamos deixar isso para quando as meni­nas crescerem. Aí, então, vamos viajar e fazer tudo que não pudemos fazer naquela época."

Miles ficou abanando a cabeça, bem devagar.

Não me lembro de nada disso — observou ele. — De onde diabos você tirou toda essa história?

Nós estávamos lá no Black Canon, Miles. Eu lhe contei que estava grá­vida e você disse... Pelo amor de Deus, Miles... Eu contei que estava grávida e você prometeu, você prometeu...

Está querendo umas férias? — perguntou ele. — E isso? Quer sair de férias?

Não, Miles, não quero férias porra nenhuma! Quero... Não se lem­bra? Dissemos que deixaríamos os nossos planos para mais tarde. Que passaríamos um ano viajando depois que as meninas crescessem.

Tudo bem — retrucou Miles. Ele parecia irritado, decidido a se livrar dela. — Tudo bem. Quando Libby fizer dezoito anos, ou seja, daqui a quatro anos, voltamos a falar desse assunto. Não vejo por que eu assumir o cargo de conselheiro mudaria alguma coisa nessa história.

Bom, sem contar com o maldito tédio de ficar ouvindo você e seus pais reclamando de Fields pelo resto da nossa vida natural...

Nossa vida natural? — indagou ele, em tom de deboche. — O con­trário disso seria vida o quê?

Ah, não enche! — exclamou Samantha. — Deixe de ser tão metido, Miles! Você pode até impressionar a sua mãe...

Olhe, francamente, continuo a não ver problema...

O problema — interrompeu ela, aos berros — é que estamos falan­do do nosso futuro, Miles. Nosso. E não quero voltar a falar disso daqui a quatro anos, porra! Quero falar disso agora!

Acho que você devia comer alguma coisa — disse Miles, levantan- do-se da poltrona. — Já bebeu bastante...

Vai se foder!

Desculpe, mas, se é para começar com xingamentos...

Virou-se, então, e saiu da sala. Só a muito custo Samantha conseguiu se conter para não atirar a taça nele.

Se Miles entrasse para o Conselho, nunca mais sairia dele. Jamais re­nunciaria ao cargo, à oportunidade de ser um figurão de Pagford, como Howard. Mais uma vez, ele assumia um compromisso com o vilarejo, re­novando os votos feitos à sua cidade natal, e rumava para um futuro muito diferente do que havia prometido à jovem de quem acabava de ficar noivo e que chorava, desesperada, sentada na sua cama.

Quando foi a última vez que falaram dessa história de viajar pelo mun­do? Samantha não sabia ao certo. Talvez muitos anos atrás. Hoje à noite, porém, Samantha decidiu que pelo menos ela não tinha mudado de idéia. Isso mesmo. Passou a vida inteira esperando que, um dia, os dois fizessem as malas e embarcassem em busca do calor e da liberdade, a meio mundo de distância de Pagford, de Shirley, da Mollison & Lowe, da chuva, da mesmice e da mesquinharia. Talvez há anos não pensasse nas areias bran­cas da Austrália e de Cingapura desejando estar lá, mas preferia mil vezes estar lá, mesmo com as coxas grossas e as estrias, a estar ali, aprisionada em Pagford, obrigada a ficar só olhando enquanto Miles ia pouco a pouco se transformando em Howard.

Deixou-se cair de novo no sofá, apanhou os controles e sintonizou ou­tra vez o DVD de Libby. A banda, agora em preto e branco, passeava bem devagarinho por uma praia deserta, cantando. A camisa aberta do rapaz de ombros largos esvoaçava ao vento. Uma ligeira penugem descia do seu umbigo para desaparecer por baixo do jeans.

 

Alison Jenkins, a jornalista da Gazeta de Yarvil e Adjacências, tinha en­fim conseguido descobrir qual das tantas residências em nome da famí­lia Weedon em Yarvil abrigava Krystal. Não foi nada fácil. No tal ende­reço, não havia ninguém inscrito na justiça eleitoral e nenhum registro de telefone fixo. Alison resolveu ir pessoalmente à Foley Road num do­mingo, mas a garota tinha saído, e Terri, desconfiada e hostil, se recusou a lhe dizer quando a filha estaria de volta e nem sequer quis confirmar se ela morava ali.

Krystal chegou cerca de vinte minutos depois que a jornalista foi em­bora, e ela e a mãe tiveram mais uma daquelas brigas.

Por que não disse pra ela esperar? Ela vai me entrevistar sobre Fields e essa história toda!

Entrevistar você? Qual é! A troco de quê?

A discussão foi esquentando, e Krystal saiu novamente. Foi para a casa de Nikki levando o celular de Terri no bolso da calça de moletom. Vira e mexe fazia isso. Muitas das brigas entre as duas começavam porque a mãe pedia o telefone de volta e a garota fingia que não fazia idéia de onde ele estava. Ela tinha uma vaga esperança de que a jornalista pudesse ter aquele número e viesse a ligar.

Estava num café lotado e barulhento do shopping, contando a história da jornalista a Nikki e a Leanne, quando o celular tocou.

Alô? Você é a tal da jornalista?

...fala? ...erri?

Aqui é Krystal. Quem tá falando?

...sua... outra... irmã.

Quem? — berrou a garota. Tapando o outro ouvido, saiu andando por entre as mesas lotadas, procurando um lugar mais tranqüilo.

É Danielle — disse a mulher, agora claramente, do outro lado da linha. — Irmã da sua mãe.

Ah, sei — replicou Krystal, decepcionada.

Sua vaca esnobe, pensou a garota assim que ouviu aquele nome. Nem sabia se já tinha visto a tia alguma vez.

É sobre a sua bisa.

Quem?

Vó Cath — disse Danielle, impaciente. Krystal chegou à varanda interna que dava para o vão central do shopping. O sinal era bem melhor ali.

Que que tem ela? — perguntou a garota. Parecia que o seu estô­mago estava se revirando, como uma garotinha dando cambalhotas sobre um parapeito exatamente igual ao que tinha agora à sua frente. Uns dez metros abaixo, um monte de gente passava de um lado para o outro, car­regando sacolas plásticas, empurrando carrinhos de bebê ou arrastando crianças pela mão.

Ela está no South West. Faz uma semana que está internada. Teve um AVC.

Ela tá no hospital há uma semana? — perguntou Krystal, com o estômago ainda se revirando. — Ninguém avisou pra gente.

Bom, ela não está falando direito, mas já disse o seu nome duas vezes.

O meu? — perguntou ela, agarrando o celular com mais força.

É. Acho que ela quer te ver. É grave, viu? Estão dizendo que ela não deve sair dessa.

Qual enfermaria? — perguntou Krystal. A sua cabeça estava rodando.

Doze. Terapia semi-intensiva. O horário de visitas é de meio-dia às quatro, e de seis às oito, ok?

É...

Tenho que ir agora. Achei melhor avisar porque você pode querer passar lá. Tchau.

E desligou. Krystal tirou o celular do ouvido, mas ficou olhando para a tela. Com o polegar, apertou várias vezes uma tecla, até que surgiu a palavra "Privado". A tia tinha ocultado o número.

Ela voltou então para junto das amigas. As duas logo perceberam que havia algo errado.

Vai ver ela — disse Nikki, olhando a hora no celular. — Dá pra chegar às duas. Pega o ônibus.

Tá — replicou Krystal, apática.

Pensou em ir buscar a mãe e levá-la, juntamente com Robbie, para ver a avó Cath, mas, depois da briga feia que tiveram um ano atrás, as duas nunca mais haviam se visto. Tinha certeza de que ia ter muito trabalho para convencer Terri a ir ao hospital e não sabia se a avó Cath ficaria feliz ao vê-la.

É grave, viu? Estão dizendo que ela não deve sair dessa.

Tem dinheiro? — perguntou Leanne, enfiando a mão nos bolsos, enquanto as três iam andando até o ponto do ônibus.

Tenho, sim — respondeu Krystal, verificando se era verdade. — Da­qui até o hospital é só uma libra, né?

Deu tempo de fumar um cigarro até o vinte e sete aparecer. Nikki e Leanne ficaram paradas, acenando, como se ela estivesse indo para algum lugar bem legal. No último instante, Krystal ficou com medo e quis gritar: "Venham comigo!" Mas o ônibus arrancou, e as duas garotas já estavam indo embora, fofocando.

O estofado do banco, velho e fedido, chegava a ser pegajoso. O ônibus seguiu pela zona comercial e dobrou à direita, pegando a avenida princi­pal, onde ficavam as lojas mais famosas.

O medo se remexia na barriga de Krystal como um feto. A garota sabia que a avó Cath estava ficando mais velha e mais frágil, mas, às vezes, tinha uma vaga esperança de que ela se recuperasse, que voltasse à antiga forma que parecia ter durado tanto: o cabelo novamente preto, a coluna outra vez ereta e a memória tão afiada quanto a sua língua ferina. Nunca pen­sou na morte da avó Cath, alguém que sempre associou às idéias de força e invulnerabilidade. Se tivesse lhe ocorrido refletir sobre a deformação do tronco da bisavó e as inúmeras rugas que recortavam o seu rosto, decerto as veria como nobres cicatrizes adquiridas durante a sua bem-sucedida luta pela sobrevivência. Krystal não conhecia ninguém que tivesse morri­do tão velho assim.

(A morte chegava cedo para aqueles que cercavam a sua mãe, muitas vezes até mesmo antes que os seus rostos e corpos ficassem abatidos e acabados. O cadáver que Krystal encontrou no banheiro quando tinha seis anos era de um belo rapaz, branco e bonito como uma estátua, ou pelo menos era essa a lembrança que tinha dele. Às vezes, porém, acha­va essas lembranças confusas e chegava a duvidar que as coisas tivessem acontecido assim mesmo. Era difícil saber em que acreditar. Quando era criança, ouviu tantas coisas que, mais tarde, os adultos acabavam negando ou contradizendo... Podia jurar que Terri tinha dito: "Era o seu pai." Anos depois, porém, ela disse: "Deixa de ser boba. Seu pai não morreu. Ele tá lá em Bristol." Krystal teve então que voltar atrás e recuperar a idéia de que o cara que todos chamavam de Grinfa é que era o seu pai.

O tempo todo, porém, existia a avó Cath por trás do que quer que fosse. Se Krystal escapou de ir parar num daqueles lares provisórios foi porque a bisavó sempre esteve ali em Pagford, pronta para recebê-la com uma rede de proteção bem forte, apesar de não muito confortável. Apareceu por lá, furiosa, xingando tanto Terri quanto a assistente social, e levou para casa a bisneta igualmente furiosa.

Krystal não sabia se adorava ou odiava aquela casinha da Hope Street, caindo aos pedaços e cheirando a água sanitária. Tinha-se a impressão de estar aprisionado ali dentro. Por outro lado, havia segurança, a mais completa segurança. A avó Cath só deixava que pessoas da sua confiança cruzassem a soleira da porta. Num canto da banheira, dentro de um pote de vidro, tinha uns daqueles sais de banho bem antigos.)

E se tivesse outras pessoas com a avó Cath quando chegasse ao hospi­tal? Krystal não conhecia metade da própria família, e a idéia de encontrar estranhos ligados a ela por laços de sangue lhe parecia assustadora. Terri tinha vários meios-irmãos, nascidos dos inúmeros relacionamentos amo­rosos do pai e que ela nunca tinha visto. Mas a avó Cath tentava manter contato com todos eles, insistindo em não perder de vista a grande família desconectada que os seus filhos haviam produzido. Ao longo dos anos, aconteceu de uns parentes que Krystal não conhecia aparecerem na casa da bisavó quando ela estava lá. Achava que aquela gente a olhava com des­confiança e fazia comentários a seu respeito, falando em voz baixa. Fingia então não perceber nada e ficava só esperando todo mundo ir embora para ela ter a avó Cath só para si novamente. A idéia que mais a desagradava era saber que existiam outras crianças na vida da bisavó.

(— Quem são esses aí? — perguntou ela, enciumada, quando tinha nove anos, apontando para o aparador, onde havia um porta-retratos com a foto de dois meninos com uniforme da Paxton High.

São dois dos meus bisnetos — disse a avó Cath. — Dan e Ricky. Seus primos.

Krystal não queria aqueles primos e não queria que eles ficassem ali no aparador da bisavó.

E quem é aquela? — perguntou, apontando para uma garotinha de cachinhos louros.

É a filha do meu Michael, Rhiannon, com cinco anos. Era linda, né? Mas ela foi embora e casou com um desses africanos — respondeu a velha.

Nunca teve nenhuma foto de Robbie naquele aparador.

Você nem sabe quem é o pai, né, sua puta? Tô lavando as minhas mãos, Terri. Pra mim chega, Terri. Já chega: agora você vai se virar sozinha.)

O ônibus ia atravessando a cidade, passando pelas lojas que abriam do­mingo à tarde. Quando ela era pequena, Terri a levava ao centro de Yarvil quase todo fim de semana. Mas a mãe a obrigava a ir de carrinho, mesmo depois que a menina já não precisava daquilo, porque era muito mais fácil esconder coisas roubadas ali dentro, enfiando-as sob as pernas da criança, cobrindo-as com as sacolas enfurnadas no cesto debaixo do assento. Às ve­zes, Terri ia fazer os seus furtos em companhia da irmã com quem falava, Cheryl, que era casada com Shane Tully. Ambas moravam em Fields, a quatro quarteirões uma da outra, e as coisas pegavam fogo quando as duas brigavam, aos palavrões, o que acontecia com freqüência. Krystal nunca sabia se devia estar ou não falando com os primos Tully, e também não se dava o trabalho de tentar descobrir, mas falava com Dane sempre que cruzava com ele. Tinham transado uma vez, depois de dividirem uma garrafa de sidra lá no parquinho do bairro, quando tinham quatorze anos. Mas nem um nem outro jamais voltou a tocar nesse assunto. A garota não sabia ao certo se era legal ou não transar com um primo. Uma coisa que Nikki tinha dito a fez achar que talvez não fosse...

O ônibus chegou à rua onde fica a entrada principal do South West e parou a uns quinze metros de um imenso prédio retangular de paredes cinza e janelas envidraçadas. Havia ali alguns canteiros gramados, umas poucas árvores não muito altas e uma floresta de placas e letreiros.

Krystal desceu do ônibus atrás de duas senhoras idosas e ficou parada ali, com as mãos nos bolsos da calça, olhando ao seu redor. Já tinha es­quecido em que tipo de enfermaria Danielle havia lhe dito que a bisavó estava. Só se lembrava do número doze. Dirigiu-se então à placa mais próxima, como quem não quer nada, apertando os olhos para enxergar. Tudo que viu foram linhas e linhas de umas indicações impenetráveis, com palavras quase tão compridas quanto o seu braço, e milhares de setas apontando para a esquerda ou para a direita, tinha até algumas na diago­nal. Krystal não lia lá muito bem. Diante de uma grande quantidade de palavras, ela se sentia intimidada e ficava irritada. Depois de lançar várias olhadas disfarçadas para aquelas setas, chegou à conclusão que não havia ali número algum e, então, seguiu as duas senhoras idosas que iam entran­do pela porta dupla de vidro do prédio principal.

O saguão de entrada estava lotado e era mais confuso que aquelas pla­cas lá de fora. Tinha uma loja bem movimentada separada por vidraças que iam do teto ao chão; várias fileiras de cadeiras de plástico que pare­ciam cheias de gente comendo sanduíches; num canto, um café também lotado e, bem no meio do saguão, uma espécie de balcão hexagonal onde umas mulheres respondiam a perguntas e verificavam coisas na tela do computador. Krystal foi até lá, sempre com as mãos nos bolsos.

Onde é a enfermaria doze? — perguntou a uma das mulheres, num tom meio grosseiro.

Terceiro andar — respondeu a mulher, no mesmo tom.

Krystal não quis perguntar mais nada por puro orgulho, então deu as costas e saiu andando até avistar os elevadores na outra ponta do saguão. Entrou num deles que ia subir.

Levou quase quinze minutos para encontrar a enfermaria. Por que aquela gente não botava números e setas nas placas, em vez daquelas pa­lavras enormes idiotas? Mas, quando ela estava andando por um corredor pintado de verde-claro, com os tênis rangendo no piso de linóleo, alguém a chamou pelo nome.

Krystal?

Era sua tia Cheryl, uma mulher grandalhona de saia jeans e um paletó branco bem justo, com o cabelo amarelo-canário de raízes escuras. Tinha os braços grossos cobertos de tatuagens até os nós dos dedos e usava várias argolas que mais pareciam de prender cortinas em ambas as orelhas. E trazia na mão uma latinha de Coca.

Ela nem quis saber, né? — perguntou Cheryl, parada com as pernas bem separadas, parecendo até uma sentinela.

Quem?

Terri. Ela não quis vir?

Ela ainda não sabe. Fiquei sabendo agora. Danielle ligou e me disse.

Cheryl abriu a Coca e tomou uns goles. Os seus olhinhos miúdos, per­didos num rosto largo e achatado que parecia até um salaminho de tantas manchas, encaravam a sobrinha por cima da borda da latinha.

Disse pra Danielle te ligar quando aconteceu. Ela ficou três dias caída na porra daquela casa e ninguém viu! Ela tá num estado... Puta que pariu!

Krystal nem perguntou por que a própria Cheryl não percorreu aquela distância de nada até a Foley Road para dar a notícia a Terri. Era evidente que as duas estavam novamente sem se falar. Não conseguiam se entender mesmo.

Cadê ela? — perguntou Krystal.

Cheryl saiu andando na frente com as rasteirinhas batendo no chão.

Ah — disse ela, no meio do caminho —, uma jornalista me ligou perguntando por você.

Ligou?

E deixou um telefone.

A garota queria perguntar mais coisas, mas tinham acabado de entrar numa enfermaria absolutamente silenciosa, e, de repente, ela ficou assus­tada. Não gostava daquele cheiro.

A avó Cath estava praticamente irreconhecível. Um dos lados do seu rosto estava todo retorcido, como se os músculos houvessem sido repuxados com um arame. A boca também estava torta para um lado, e até mes­mo o olho dela parecia caído. Tinham prendido mil tubos nela e enfiado uma agulha no seu braço. Ali deitada, a deformidade do seu peito ficava muito mais visível. O lençol fazia uns altos e baixos em lugares estranhos, parecendo uma cabeça grotesca plantada num pescoço esquálido e saindo de um barril.

Quando Krystal sentou ao seu lado, a avó Cath não fez movimento algum. Ficou simplesmente olhando fixo. Uma das suas mãozinhas estre­meceu ligeiramente.

Ela não tá falando, mas repetiu o seu nome duas vezes ontem à noite — disse Cheryl, com um olhar tristonho que aparecia por trás da latinha.

O peito de Krystal estava apertado. Não sabia se a avó Cath ia sentir dor se ela segurasse na sua mão. Chegou então os dedos a uns poucos centímetros da bisavó, mas os deixou pousados na cama.

Rhiannon teve aqui — disse Cheryl. — John e Sue também. Sue tá tentando localizar Anne-Marie.

Krystal se animou ao ouvir aquilo.

Onde é que ela tá? — perguntou.

Em algum lugar lá pras bandas de Frenchay. Sabe que ela teve bebê?

É, alguém me disse — respondeu Krystal. — É menino ou menina?

Não sei — respondeu Cheryl, tomando um gole de Coca.

Alguém lá da escola tinha lhe dito: Ei, Krystal, a sua irmã vai ter bebê!

Ficou empolgada com a notícia. Ia ser titia, mesmo que nunca viesse a ver a criança. Passou a vida inteira adorando a idéia de ter uma irmã. Quando ela nasceu, Anne-Marie já tinha sido levada embora, transportada para uma outra dimensão, como uma personagem de contos de fadas, tão linda e misteriosa quanto o rapaz morto no banheiro da sua mãe.

Os lábios da avó Cath se moveram.

Que é? — indagou Krystal, inclinando-se sobre a bisavó, meio as­sustada, meio animada.

Quer alguma coisa, vó? — perguntou Cheryl, e falou tão alto que as visitas que sussurravam junto aos outros leitos se viraram para olhar.

Tudo que Krystal podia ouvir era um chiado ruidoso, mas, aparente­mente, a avó Cath estava mesmo tentando articular uma palavra. Cheryl também se debruçou sobre a cama, apoiando-se com uma das mãos na barra metálica da cabeceira.

Mmm... Hã... — murmurou a enferma.

Quê? — perguntaram as duas ao mesmo tempo.

Os olhos da avó Cath se moveram alguns milímetros, uns olhos cheios de secreção, embaçados, que fitavam o rosto jovem de Krystal. De boca aberta, debruçada sobre a bisavó, a garota tinha um ar intrigado, ansioso, assustado.

...mando... — disse aquela voz alquebrada.

Ela não sabe o que diz — gritou Cheryl, virando a cabeça para trás e dirigindo-se ao tímido casal que visitava a paciente do leito ao lado. — Três dias caída na merda daquele chão... Não é de espantar, né?

Mas as lágrimas haviam turvado os olhos de Krystal. A enfermaria, com aquelas janelas altas, se desfez em luz branca e sombras. A garota teve a impressão de ver um raio de sol luminoso batendo na água verde-escura, estilhaçando-se em faíscas reluzentes a cada movimento de subida e des­cida dos remos.

Pode deixar — sussurrou ela. — Vou continuar remando, vó Cath.

Só que não era verdade, porque o sr. Fairbrother tinha morrido.

 

— Que diabo foi isso na sua cara? Caiu da bicicleta de novo? — pergun­tou Bola.

— Não — respondeu Andrew. — Foi Docinho de Coco que me deu porrada. Tava tentando explicar àquele babaca que ele tinha entendido tudo errado naquela história do Fairbrother.

Os dois estavam no galpão do quintal, enchendo os cestos que ficavam de ambos os lados da lareira na sala de estar. Simon lhe deu com uma acha na cabeça, e o garoto caiu com a cara cheia de espinhas em cima da pilha de lenha.

Acha que sabe mais que eu, seu merdinha espinhento? Se ficar sabendo que você disse uma palavra sobre o que acontece nessa casa...

Eu não...

Eu esfolo você vivo, tá entendendo? Como sabe que Fairbrother não esta­va metido na tramóia, hein? E que só o outro vigarista foi burro o bastante para se deixar apanhar?

Depois disso, fosse por orgulho ou numa atitude de desafio, ou ainda porque as suas fantasias de dinheiro fácil tivessem chegado a ponto de superar os fatos concretos, Simon enviou os formulários de candidatura. A humilhação, que ia atingir a família toda, era líquida e certa.

Sabotagem. Andrew ficou ruminando aquela palavra. Queria derrubar o pai das alturas a que os seus sonhos de ganhar dinheiro fácil o tinham erguido e, se possível (porque preferia a glória sem a morte), queria fazer isso de um jeito que Simon nunca viesse a descobrir quem havia armado para pôr por terra as suas ambições.

Não disse isso a ninguém, nem mesmo a Bola. Contava praticamente tudo ao amigo, e as raras exceções eram questões mais amplas, aquelas que ocupavam quase todo o seu espaço interior. Uma coisa era sentar no quarto de Bola, com o maior tesão, e ficar olhando garotas transando com garotas na internet. Outra coisa bem diferente era confessar que vinha pro­curando obsessivamente um jeito de puxar conversa com Gaia Bawden. Também era fácil sentar lá no Pombal e chamar o pai de babaca, mas ele nunca contaria que os ataques de fúria de Simon deixavam as suas mãos geladas e o seu estômago embrulhado.

Chegou, porém, uma hora em que as coisas mudaram. Tudo começou com um simples desejo de nicotina e beleza. A chuva tinha enfim parado, e um pálido sol de primavera brilhava nos vidros sujos do ônibus escolar que ia sacolejando pelas ruas estreitas de Pagford. Lá do fundo, onde es­tava sentado, não conseguia ver Gaia, que tinha ficado mais na frente, perto de Sukhvinder e das órfãs Fairbrother, que acabavam de voltar às aulas. Praticamente não tinha visto Gaia o dia todo, e já imaginava uma noite chata em que o seu único consolo seriam aquelas velhas fotos do Facebook.

Quando o ônibus foi se aproximando da Hope Street, Andrew lembrou que nem o pai, nem a mãe estariam em casa para dar falta dele. No bolso, trazia três cigarros que Bola tinha lhe dado, e Gaia já estava de pé, segu­rando firme na barra do encosto do banco, pronta para saltar, mas ainda conversando com Sukhvinder Jawanda.

Por que não? Por que não?

Levantou também, pendurou a mochila no ombro e, quando o ônibus parou, saiu em disparada pelo corredor e desceu atrás das duas garotas.

— Até mais tarde — exclamou, ao passar pelo irmão, que parecia espantadíssimo.

Desceu na calçada ensolarada, e o ônibus foi embora. Acendeu um cigarro, observando Gaia e Sukhvinder por cima das mãos em concha. As duas não estavam indo para a casa de Gaia, na Hope Street. Seguiam em direção à praça. Fumando e franzindo ligeiramente a testa, numa imi­tação inconsciente da pessoa mais descolada que conhecia — Bola —, Andrew foi andando atrás delas, deliciando-se com a visão do cabelo acobreado de Gaia, que ia balançando nos seus ombros, e com o movimento da saia dela acompanhando o ritmo dos quadris.

Ao chegarem perto da praça, as garotas reduziram o passo, dirigindo-se para a Mollison & Lowe, a loja mais atraente do lugar, com o letreiro azul e dourado e quatro floreiras penduradas na fachada. Andrew hesitou. As duas pararam para ler um pequeno cartaz colado na vidraça do novo café e, depois, entraram na delicatéssen.

O rapaz então deu uma volta na praça, passou pelo Black Canon e pelo Hotel George, e parou para ver o tal cartaz também. Era um anúncio escrito à mão, pedindo alguém para trabalhar nos fins de se­mana.

Morrendo de vergonha da acne, que andava particularmente inflama­da na ocasião, apagou o cigarro com cuidado, enfiou o resto no bolso e entrou na loja.

As garotas estavam paradas junto de uma mesinha cheia de pacotes de biscoitos integrais, observando o sujeito imenso com aquele chapéu Sherlock Holmes que, por trás do balcão, conversava com um senhor mais idoso. Gaia se virou quando a sineta tilintou.

Oi — disse Andrew, sentindo a boca seca.

Oi — respondeu ela.

Ofuscado pela própria ousadia, o garoto se aproximou e esbarrou com a mochila no mostruário onde ficavam os guias turísticos de Pagford e exemplares de um livro de receitas tradicionais da região. Mais que de­pressa, Andrew segurou o mostruário, evitando que ele caísse, e tirou a mochila do ombro.

Veio ver o emprego? — perguntou Gaia baixinho, com aquele in­crível sotaque londrino.

Vim — respondeu ele. — Você também?

Ela fez que sim com a cabeça.

Ponha lá na página de sugestões, Eddie — dizia Howard, com aque­la voz de trovão. — Poste no site, e vou incluir a questão na pauta. Conse­lho Distrital de Pagford, uma palavra só, ponto co, ponto uk, barra, página de sugestões. Ou então clique no link. Conselho... — repetiu ele, desta vez mais devagar, e o cliente pegou papel e caneta para anotar com mão trêmula: "Conselho..."

Nesse instante, Howard avistou os adolescentes esperando ali ao lado daqueles biscoitos tão gostosos. Os três usavam o uniforme sem graça da

Winterdown, que permitia tanto desleixo e tantas variações que nem pa­recia um uniforme. (Que diferença quanto à St. Anne, que exigia o blazer e a saia escocesa!) Apesar de tudo, a garota branca era deslumbrante, um verdadeiro diamante lapidado que se destacava ainda mais junto da filha feiosa dos Jawanda, cujo nome ele não sabia, e daquele rapazinho de ca­belo desbotado e com a cara cheia de espinhas.

O tal freguês saiu da loja, fazendo a sineta tilintar.

O que vão querer? — perguntou Howard, sem tirar os olhos de Gaia.

Bom... É sobre o emprego — disse ela, dando alguns passos à frente e apontando para o pequeno cartaz pregado na vidraça.

Ah, claro — exclamou Howard, com um sorriso radiante. O garçom que haviam contratado para o fim de semana o deixou na mão poucos dias antes, trocando o café por Yarvil e o trabalho num supermercado. — Claro, claro. Está querendo ser garçonete? Pagamos o salário mínimo para trabalhar de nove às cinco e meia aos sábados, e de meio-dia às cin­co e meia aos domingos. Estamos inaugurando daqui a duas semanas. E nós mesmos nos encarregamos do treinamento. Quantos anos você tem, querida?

Aquela garota era perfeita, perfeita, exatamente o que ele havia ima­ginado: bonita de rosto e de corpo. Podia até vê-la com um vestido preto justo e um avental branco debruado de renda. Ia lhe ensinar a operar a caixa registradora e lhe mostrar onde ficava o estoque. Ia se divertir com aquela garota e talvez até lhe desse uma gratificação extra nos dias em que entrasse mais dinheiro.

Howard veio se esgueirando de trás do balcão e, ignorando Sukhvinder e Andrew, pegou Gaia pelo braço e a levou até o arco que dividia as duas lojas. Ainda não havia mesas e cadeiras, mas o balcão já tinha sido insta­lado, e, na parede atrás dele, um mural de azulejos, em preto e creme, mostrava a praça em outros tempos. Mulheres de anquinhas e homens de cartola circulavam por todo lado; uma sege Brougham estava estacionada diante de uma loja onde se lia o nome Mollison & Lowe e, ao lado dela, o pequeno café Copper Kettle. O artista havia improvisado uma daquelas bombas de água bem antigas para substituir o memorial aos mortos da guerra.

Andrew e Sukhvinder ficaram para trás, sentindo-se desajeitados e va­gamente irritados por estarem ali sozinhos.

Sim? Desejam alguma coisa?

Uma mulher bem encurvada com um cabelo todo armado de um pre­to retinto surgiu lá dos fundos da loja. Andrew e Sukhvinder murmuraram que estavam esperando, e, então, Howard e Gaia apareceram no arco di­visório. Ao ver Maureen, ele soltou o braço da garota, que tinha ficado segurando o tempo todo enquanto lhe explicava quais eram as funções de uma garçonete.

Acho que consegui alguém para nos ajudar no café, Mo — disse ele.

Ah, é? — exclamou a mulher, voltando os olhos ávidos para Gaia. — Você tem experiência?

Howard porém a interrompeu, contando a Gaia tudo sobre a delicatés­sen e dizendo-lhe que gostava muito de pensar na loja como um pedaci­nho de Pagford, um pedacinho da paisagem local.

Já são trinta e cinco anos — disse ele, desdenhando solenemente do seu próprio mural. — A mocinha aqui é nova na cidade, Mo — acres­centou.

E vocês também estão querendo emprego? — perguntou Maureen, dirigindo-se aos outros dois.

Sukhvinder abanou a cabeça. Andrew fez um movimento um tanto ambíguo com os ombros, mas Gaia, olhando para a amiga, disse:

Ande. Você disse que até que poderia ser.

Howard observou a garota, que decerto não ficaria muito bem num vestido preto justo com avental de babados, mas a sua mente fértil e maleável atirava para todo lado. Um elogio ao seu pai, um certo controle sobre a sua mãe, um favorzinho inesperado... Muita coisa além da pura estética talvez devesse ser levada em conta nesse caso.

Bom, se as coisas correrem como estamos esperando, é provável que precisemos de duas pessoas — disse ele, coçando a papada e com os olhos pregados em Sukhvinder, que tinha enrubescido de um jeito nada atraente.

Eu não... — principiou a garota, mas Gaia insistiu.

Vamos. A gente vai trabalhar junto.

Sukhvinder estava toda vermelha, e os seus olhos se encheram de lá­grimas.

Eu...

Ah, vamos... — sussurrou Gaia.

Eu... Está bem.

Vamos fazer um período de experiência, srta. Jawanda — disse Howard.

Apavorada, a garota mal conseguia respirar. O que a sua mãe ia dizer?

E você deve estar querendo ser o nosso quebra-galho — acrescen­tou ele com aquele seu vozeirão, agora dirigindo-se a Andrew.

Quebra-galho?

Precisamos de força bruta, meu amigo — prosseguiu Howard. Andrew só ficou olhando, piscando os olhos, inteiramente desconcertado. Tudo que tinha lido foram as letras maiores no tal cartaz. — Tem que levar caixotes para o estoque, trazer caixas de leite lá do porão e transportar os sacos de lixo para os fundos. É trabalho braçal mesmo. Acha que pode dar conta?

Claro — respondeu o garoto. Ia estar ali quando Gaia também esti­vesse? Isso era tudo que importava.

Vamos precisar de você bem cedo. Provavelmente às oito. Digamos, de oito às três, para vermos como funciona. Vamos fazer um período de experiência de duas semanas.

Por mim, está ótimo.

Como se chama?

Quando ouviu a resposta do garoto, Howard ergueu as sobrancelhas.

O seu pai se chama Simon? Simon Price?

Isso mesmo.

Andrew ficou aflito: normalmente, ninguém sabia quem era o seu pai.

Howard mandou que as duas garotas voltassem no domingo à tarde, quando teria condições de lhes dar o treinamento necessário. Pelo visto, gostaria que Gaia continuasse ali conversando, mas, nesse momento, che­gou um freguês, e os adolescentes aproveitaram para ir embora.

Andrew não conseguia pensar em nada que pudesse dizer quando se viram do outro lado da porta que tilintava. Antes, porém, que pudesse dominar os próprios pensamentos, Gaia disse um "tchau" sem maiores cerimônias e saiu andando com Sukhvinder. O garoto acendeu o segundo cigarro dos três que Bola tinha lhe dado (não era hora de acender uma guimba), o que lhe deu uma desculpa para ficar parado, vendo a garota se afastar na escuridão, que ia ficando mais acentuada.

Por que chamam esse garoto de Amendoim? — perguntou Gaia, assim que se viu a uma distância considerável.

Porque ele tem alergia — respondeu Sukhvinder, que estava apa­vorada com a perspectiva de ter de contar para a mãe o que havia feito. E ela mal reconheceu a própria voz. — Lá na St. Thomas, ele quase morreu quando alguém lhe deu um amendoim escondido num marshmallow.

— Ah, tá — exclamou Gaia. — Achei que era porque ele tinha um pau bem pequenininho.

E riu. Com algum esforço, Sukhvinder fez o mesmo, como se ouvisse piadinhas sobre pênis o tempo todo.

Andrew as viu olhar para trás rindo e teve certeza de que estavam falando dele. Não era assim tão conhecedor das garotas, mas sabia que aquele risinho bem poderia ser um sinal de esperança. Rindo sozinho, saiu andando, com a mochila no ombro e o cigarro na mão. Atravessou a praça, em direção à Church Row, para encarar, a partir dali, uns qua­renta minutos de subida íngreme até sair da cidade e chegar a Hilltop House.

À luz do crepúsculo, as cercas vivas do caminho estavam de uma palidez fantasmagórica com as suas florezinhas brancas. De ambos os lados, os abrunheiros estavam floridos, e as celidônias bordejavam toda a rua com as suas folhinhas miúdas, luzidias, em forma de coração. O cheiro das flores, o profundo prazer do cigarro e a promessa de passar os fins de semana com Gaia, tudo aquilo se misturava, criando uma gloriosa sinfonia de felicidade e beleza que acompanhou a respiração ofegante do garoto colina acima. Da próxima vez que o pai lhe dissesse "já arranjou emprego, hein, Cara de Pizza?", responderia "já". Ia ser colega de trabalho de Gaia Bawden todo fim de semana.

E, como se não bastasse, tinha finalmente descoberto um jeito de dar uma facada anônima bem no meio das costas do pai.

 

Depois que passou o primeiro impulso de desprezo, Samantha lamentou amargamente ter convidado Gavin e Kay para jantar. Passou toda a manhã da sexta-feira fazendo gozações com a sua vendedora sobre a noite assus­tadora que ia ter, mas o seu humor despencou assim que deixou Carly encarregada de cuidar da "Super Super Sutiãs" (nome que fez Howard rir tanto, da primeira vez que o ouviu, que ele chegou a ter uma crise de asma, e que fazia Shirley fechar a cara sempre que ele era pronunciado na sua frente). Voltando para Pagford antes da hora do rush, para ter tempo de ir comprar os ingredientes e começar a preparar a comida, Samantha tentou se animar imaginando perguntas bem embaraçosas que poderia fazer a Gavin. Talvez devesse se perguntar, em voz alta, por que Kay não tinha ido morar com ele: essa seria ótima!

Indo a pé para casa, carregando em cada mão uma sacola da Mollison & Lowe bem cheia, encontrou Mary Fairbrother no caixa eletrônico da agência do banco em que Barry trabalhava.

Oi, Mary... Como vai?

Ela estava magra e pálida, com umas olheiras acentuadas. A conversa que tiveram foi estranha, forçada. Não se falavam desde aquela viagem de ambulância, tendo apenas trocado umas poucas palavras de condolências no funeral.

Andei pensando em dar um pulinho na sua casa — disse a viúva. — Vocês foram tão gentis... E eu queria agradecer a Miles...

Imagine — replicou Samantha, bastante sem jeito.

Ah, mas eu gostaria...

Então, venha quando quiser...

Depois que Mary se afastou, Samantha teve o terrível pressentimento: talvez ela tivesse ficado com a impressão de que aquela noite seria o mo­mento ideal para aparecer.

Assim que chegou em casa, largou as bolsas de compras no vestíbulo e ligou para o escritório de Miles para lhe contar o que tinha feito. Ele, porém, demonstrou um descaso irritante com relação à perspectiva de ter uma viúva recente incorporada aos dois casais para um jantar.

Na verdade, não vejo problema algum — disse ele. — Vai ser bom para Mary sair um pouco.

Mas eu não disse que Gavin e Kay estavam vindo...

Mary gosta de Gavin — retrucou Miles. — Não precisa se preocu­par com isso.

Samantha achou que o marido estava sendo deliberadamente obtuso, com certeza como forma de retaliação por ela ter se recusado a ir jantar na Sweetlove House. Quando desligou o telefone, ficou pensando se deveria ligar para Mary, dizendo-lhe que não viesse aquela noite, mas ficou com medo de parecer grosseira e decidiu apostar na esperança de que a outra afinal não se sentisse à vontade para vir até ali.

Irritada, foi para a sala de estar, pôs o DVD da tal banda da filha num volume bem alto para poder ouvi-lo lá da cozinha, apanhou as sacolas e se preparou para começar a fazer um cozido e a sobremesa que sempre lhe servia de quebra-galho: a chamada torta de lama do Mississippi. Adoraria ter comprado uma torta bem grande na Mollison & Lowe, pois, assim, teria menos trabalho, mas Shirley teria ficado sabendo imediatamente e logo começaria com aquela velha história de criticar a nora por usar e abusar das comidas prontas e dos congelados.

A essa altura, Samantha já conhecia o DVD da banda de cor e salteado, e podia visualizar as imagens correspondentes à música que soava aos brados na cozinha. Várias vezes, durante a semana, quando Miles estava lá em cima, no escritório, ou no telefone com o pai, ela tinha visto tudo aquilo novamente. Quando ouviu os primeiros acordes da música em que o rapaz musculoso aparecia caminhando pela praia, com a camisa aberta balançando ao vento, correu para espiar, de avental e tudo, lambendo distraída os dedos sujos de chocolate.

Tinha planejado tomar um bom banho enquanto Miles botava a mesa, esquecendo que ele ia chegar mais tarde porque tinha de ir antes até Yarvil para buscar as garotas na St. Anne. Quando Samantha se deu conta de que o marido ainda não havia voltado e que as filhas viriam com ele, teve de correr para preparar a sala de jantar e arranjar alguma coisa para Lexie e Libby comerem antes que os convidados chegassem. Às sete e meia, Miles encontrou a mulher com a mesma roupa que tinha ido trabalhar, suada, chateada e decidida a culpá-lo por uma idéia que havia sido dela mesma.

Libby, a caçula, de quatorze anos, foi direto para a sala de estar, sem cumprimentar a mãe, e tirou o DVD do aparelho.

Nossa! Não fazia idéia de onde tinha deixado isso! — exclamou. — Por que a televisão está ligada? Você andou vendo esse DVD?

Às vezes, Samantha achava que a filha tinha alguma coisa de Shirley.

Eu estava vendo o jornal, Libby. Não tenho tempo para DVDs. Pode vir, a sua pizza está pronta. Vamos ter convidados para o jantar.

Pizza congelada de novo?

Miles! Tenho que ir me arrumar. Será que pode amassar as batatas para mim? Miles?

Mas ele já havia desaparecido no andar de cima. Samantha, então, teve de cuidar sozinha das batatas, enquanto as filhas comiam na bancada que ficava no meio da cozinha. Libby tinha posto a caixa do DVD apoiada no copo de Pepsi Diet e ficou olhando para ela, encantada.

Mikey é tão gostoso — disse ela, num tom de desejo tão intenso que Samantha tomou um susto. Mas o rapaz musculoso se chamava Jake, e ela ficou feliz ao descobrir que as duas não gostavam do mesmo sujeito.

Em voz alta e em tom confiante, Lexie falava sem parar sobre o colé­gio: uma verdadeira metralhadora de informações sobre garotas que Sa­mantha não conhecia e cujas bobagens, brigas e mudanças de grupinhos ela não tinha a menor condição de acompanhar.

Bom, tenho que ir me arrumar. Limpem tudo quando terminarem, ok?

Baixou o fogo sob a panela do cozido e subiu a escada correndo. Mi­les estava no quarto, abotoando a camisa, observando-se no espelho do guarda-roupa. Tudo ali cheirava a sabonete e loção pós-barba.

Tudo sob controle, hein?

Claro. Obrigada. Que bom que deu tempo de você tomar banho - disse ela, irritada, pegando a blusa e a saia longa favoritas e batendo a porta do armário.

Você podia tomar banho também.

Eles vão chegar daqui a dez minutos. Não vai dar tempo de secar o cabelo e me maquiar — replicou ela, sacudindo as pernas para tirar os sapatos. Um deles foi bater no aquecedor fazendo um barulhão. — Quan­do terminar de se embonecar, será que pode descer e escolher as bebidas?

Depois que Miles saiu do quarto, Samantha tentou desembaraçar o cabelo espesso e retocar a maquiagem. Estava horrível. Só quando já tinha acabado de se vestir, percebeu que não estava usando o sutiã adequado para aquela blusa justinha. Saiu procurando-o freneticamente para enfim se lembrar de que o sutiã ideal estava secando lá na lavanderia. Tratou de ir buscá-lo, mas, assim que saiu do quarto, ouviu a campainha tocando. Com um palavrão, voltou correndo. Do quarto de Libby vinha o som da banda daquele rapaz.

Os convidados chegaram às oito em ponto, porque Gavin ficou com medo do que Samantha pudesse dizer caso se atrasassem. Imaginou que ela pudesse sugerir que os dois tinham perdido a noção da hora por esta­rem trepando ou tendo uma briga. A mulher de Miles parecia achar que uma das vantagens do casamento era autorizar as pessoas a dar palpites ou se intrometer na vida amorosa dos solteiros. Parecia achar também que a sua falta de cerimônia e o seu jeito grosseiro de falar, principalmente quando bebia, eram uma demonstração de humor cáustico.

Olá, olá, olá! — exclamou Miles, afastando-se para que o casal pu­desse passar. — Vamos entrando, vamos entrando. Sejam bem-vindos à Mansão Mollison!

Deu dois beijos no rosto de Kay e pegou os bombons que ela estava trazendo.

Para nós? Obrigado. Até que enfim tenho o prazer de conhecê-la. Já era mais que tempo de Gav deixar de manter você tão escondida...

Pegou também o vinho que o rapaz trazia e lhe deu uns tapinhas nas costas, coisa que o deixou bem irritado.

Mas entrem. Sam vai descer num minuto. O que querem beber?

A primeira impressão de Kay foi que Miles assumia um tom de exces­siva intimidade e era um pouco simpático demais, no entanto a moça es­tava decidida a não fazer qualquer avaliação a esse respeito. É importante que os casais convivam com os amigos um do outro e que consigam se dar bem com eles. Aquela noite representava um avanço significativo na sua tentativa de penetrar mais fundo na vida de Gavin, de ter acesso a setores dos quais vinha sendo mantida afastada. Kay queria demonstrar que ficava à vontade na casa grande e um tanto exibida dos Mollison e que, portanto, ele não precisava mais excluí-la. Sorriu então para Miles, disse que toma­ria um vinho tinto e elogiou a sala espaçosa com o seu assoalho de tábuas corridas, o seu sofá superacolchoado e os quadros nas paredes.

Já faz... humm... quase quatorze anos que moramos aqui — disse Miles, às voltas com o saca-rolhas. — Você está morando na Hope Street, não é? Aquelas casas são umas graças. Tem umas excelentes oportunida­des de investimento por lá.

Samantha apareceu, com um sorriso não muito acolhedor. Kay, que só a tinha visto usando um sobretudo, reparou na blusa laranja apertadíssima sob a qual se via nitidamente cada detalhe do sutiã de renda. O rosto dela era ainda mais escuro que o seu colo bem vincado. A maquiagem dos olhos, carregada, não a favorecia em nada. E, na opinião da moça, aquelas argolas douradas nas orelhas e os tamancos de salto alto também doura­dos eram vulgares. Samantha lhe deu a impressão de ser uma daquelas mulheres que saem para noitadas com amigas, acham shows de striptease divertidíssimos e, nas festas, meio bêbadas, ficam flertando com o acom­panhante de quem estiver por lá.

Oi, gente! — disse ela. Deu dois beijos em Gavin e sorriu para Kay. — Ah, já estão bebendo. Ótimo! Também vou querer um vinho tinto, Miles.

Foi se sentar, não sem antes avaliar a aparência da outra mulher: Kay tinha seios pequenos e quadris largos, e, com toda a certeza, tinha escolhi­do aquela calça preta para minimizar o tamanho da bunda. Era melhor que estivesse de salto alto, pensou Samantha, já que tinha pernas curtas. O rosto dela era bem atraente, com a pele morena, os grandes olhos escuros e uma boca generosa, mas aquele cabelo curtinho de menino e os sapatos sem salto nenhum eram indícios definitivos de certas crenças inabaláveis. Gavin tinha repetido a dose. Mais uma vez, escolheu uma mulher despro­vida de humor e dominadora que tornaria a vida dele um inferno...

Então... — disse Samantha, em tom animado e erguendo a taça. — Gavin-e-Kay!

Satisfeita da vida, viu um sorriso encabulado no rosto de Gavin. Antes, porém, de poder intimidá-lo ainda mais e extrair de ambos alguma infor­mação privada para exibir diante de Shirley e de Maureen, a campainha tocou outra vez.

Era Mary, parecendo mais frágil e angulosa, especialmente ao lado de Miles, que a acompanhou até a sala. A camiseta que ela usava pendia dos ossos saltados dos seus ombros.

Ah! — exclamou ela, parando assustada na soleira da porta. — Não sabia que tinham...

Gavin e Kay acabaram de chegar — disse Samantha, de forma um tanto brusca. — Entre, Mary, por favor... Beba alguma coisa...

Mary, esta é Kay — disse Miles. — Kay, esta é Mary Fairbrother.

Ah... — balbuciou Kay, atônita. Estava achando que seriam só os quatro para jantar. — Claro. Como vai?

Gavin, que podia jurar que Mary não tinha intenção de participar de um jantar e estava prestes a dar meia-volta e ir embora, deu uns tapinhas no sofá ao seu lado. A viúva de Barry se sentou com um sorrisinho apaga­do. O rapaz estava encantado em vê-la ali. Ela seria o seu para-raios. Até mesmo Samantha seria capaz de perceber que aquelas conversas picantes que eram a sua marca registrada não seriam nada convenientes diante de uma mulher que estava de luto. Além do mais, a tão constrangedora sime­tria dos dois casais havia sido rompida.

Como é que você está? — perguntou ele, baixinho. — Na verdade, estava pensando em telefonar... Tenho mais algumas notícias sobre a his­tória do seguro...

Tem alguma coisa para mastigar, Sam? — perguntou Miles.

Samantha saiu da sala, olhando para o marido com um ar emburrado. Assim que abriu a porta da cozinha, sentiu o cheiro de carne esturricada.

Merda, merda, merda...

Tinha esquecido por completo o cozido, e o caldo tinha secado. Agora, só havia uns pedaços de carne e de legumes esturricados, míseros sobrevi­ventes da catástrofe, no fundo escurecido da panela. Derramou ali dentro vinho e caldo, raspando com uma colher o que havia ficado grudado nas paredes da panela, mexendo vigorosamente, suando por causa do calor. Lá da sala, veio a gargalhada estridente de Miles. Samantha pôs para es­correr os brócolis excessivamente cozidos, esvaziou a própria taça, abriu um pacote de salgadinhos sabor tortilla, um pote de homus e despejou os dois numas tigelas.

Quando voltou para a sala de estar, Mary e Gavin ainda estavam conversando em voz baixa no sofá, enquanto Miles mostrava a Kay um quadro que era uma foto aérea de Pagford e lhe dava uma aula de história do vilarejo. Samantha pôs as tigelas na mesinha de centro, serviu-se de mais uma taça de vinho e foi sentar numa poltrona, sem fazer qualquer esforço para se incluir em nenhuma das duas conversas. A presença de Mary era terrivelmente desconfortável. A aura de sofri­mento que a cercava era tão pesada que ela poderia perfeitamente ter chegado ali arrastando atrás de si uma mortalha. Mas com certeza não ia ficar para jantar.

Gavin estava decidido a fazê-la ficar. Conversando com ela sobre os mais recentes acontecimentos da batalha que travavam com a companhia de seguros, sentia-se muito mais relaxado e no controle da situação do que geralmente acontecia quando estava na presença de Miles e de Saman­tha. Ninguém o estava diminuindo ou tentando lhe dar ordens, e, por al­gum tempo, Miles o estava eximindo de toda e qualquer responsabilidade quanto a Kay.

...e bem aqui, nesse lugar que não dá para ver... — dizia Miles, apontando um ponto dois centímetros além da moldura do quadro —, fica a Sweetlove House, a residência dos Fawley. É uma mansão estilo Rainha Ana, com mansardas, cantoneiras de pedra... É magnífica. Você devia ir visitar. A casa é aberta ao público aos domingos, durante o verão. Os Fawley são uma importante família da região.

"Cantoneiras de pedra?" "Importante família da região?" Céus, Miles, como você é babaca!

Samantha se levantou da poltrona onde estava sentada e voltou para a cozinha. Embora o cozido estivesse com caldo, o que prevalecia era o gosto de queimado. Os brócolis estavam moles e sem gosto; o purê de ba­tatas, frio e seco. Ela resolveu então desistir. Despejou tudo em travessas e praticamente as atirou na mesa redonda da sala de jantar.

O jantar está servido! — gritou para os que estavam no outro apo­sento.

Ah, tenho que ir — exclamou Mary, levantando-se de um salto. — Não tinha a intenção de...

Não, não, não — disse Gavin, num tom que Kay jamais ouvira an­tes: delicado e cativante. — Vai ser bom para você comer um pouco. Não tem problema deixar os meninos sozinhos por uma hora.

Miles reforçou a proposta de Gavin, e Mary, insegura, olhou para Sa­mantha, que foi obrigada a fazer coro aos dois e a voltar à sala de jantar para botar mais um lugar à mesa.

Convidou Mary a sentar entre Gavin e Miles, porque deixá-la ao lado de outra mulher parecia acentuar ainda mais a ausência do marido. Kay e Miles falavam agora sobre assistência social.

Não invejo você — disse ele, pondo uma concha bem-servida do cozido no prato da moça. E Samantha viu umas crostinhas pretas de quei­mado se espalharem junto com o molho na louça branca. — É um traba­lho danado! Dificílimo!

Bom, nunca temos verba suficiente — replicou Kay —, mas pode ser um trabalho muito gratificante, principalmente quando a gente vê que está conseguindo mudar alguma coisa.

E pensou nos Weedon. Na véspera, lá na clínica, o exame de urina de Terri tinha dado negativo para a heroína, e Robbie tinha ido à escola a semana inteira. Aquela lembrança a animou, servindo para contrabalançar a ligeira ir­ritação que sentia ao ver que Gavin continuava a dar atenção exclusivamente a Mary, sem fazer nada para facilitar a sua conversa com os amigos dele.

Você tem uma filha, não é, Kay?

Tenho, sim. Gaia. Está com dezesseis anos.

A mesma idade de Lexie. Seria bom que elas se conhecessem — disse Miles.

Você é divorciada? — indagou Samantha, delicadamente.

Não — respondeu Kay. — Não éramos casados. Namoramos na universidade e nos separamos logo depois que Gaia nasceu.

Ah, sei. Nós também éramos recém-formados — observou Sa­mantha.

A moça ficou sem saber se a sua anfitriã estava querendo marcar uma diferença entre ela própria, que tinha casado com aquele sujeito exibido que era pai das suas filhas, e Kay, que tinha sido abandonada... Não que Samantha pudesse adivinhar que foi Brendan que a deixou...

Na verdade, Gaia acabou de arranjar um emprego de fim de sema­na com o seu pai — disse ela, dirigindo-se a Miles. — No novo café.

Miles ficou encantado. Adorava a idéia de que ele e Howard fossem uma parte tão importante da trama daquele vilarejo que, de um jeito ou de outro, todos ali tivessem conexão com eles, fosse como amigos, clien­tes, fregueses ou empregados. Gavin, que mastigava e mastigava um pe­daço de carne borrachenta que se recusava a ceder aos seus dentes, sentiu um novo aperto na boca do estômago. Para ele, era novidade essa história de Gaia ir trabalhar com o pai de Miles. Nem lhe passou pela cabeça que Kay tinha, na filha, mais uma arma poderosa para se fixar em Pagford. Quando não estava tão perto assim das suas entradas e saídas batendo as portas, dos seus olhares enfurecidos e dos seus apartes mordazes, ele tendia a esquecer que Gaia existia. Que a garota não era simplesmente um detalhe do desconfortável pano de fundo de lençóis com cheiro de guardado, comida ruim e rancores venenosos contra o qual a sua relação com Kay ia se arrastando.

Gaia está gostando de Pagford? — indagou Samantha.

Bom, isso aqui é um pouco parado demais em comparação com Hackney — replicou Kay. — Mas ela está se adaptando direitinho.

Tomou um bom gole de vinho para lavar a boca depois de ter pregado uma mentira tão gigantesca. Ainda agora mesmo, antes de sair, ela e a filha tinham brigado mais uma vez.

(— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ao ver a garota sentada à mesa da cozinha, debruçada sobre o notebook, com um robe por cima das roupas comuns. Na tela, quatro ou cinco caixas de diálogo estavam abertas ao mesmo tempo. Kay sabia que Gaia estava conversando com os amigos que havia deixado lá em Hackney, amigos que, em sua maioria, estavam juntos desde os tempos da escola primária.

Gaia?

A falta de resposta era algo novo e terrível. Kay já estava acostumada às explosões de raiva contra ela mesma e, especialmente, contra Gavin.

Estou falando com você, Gaia!

Eu sei. Não sou surda.

Então, tenha a gentileza de me responder.

As letras pretas iam surgindo no espaço branco da tela e também umas carinhas engraçadas, piscando o olho ou dando pulinhos.

Será que você pode me responder, Gaia?

Quê? Que foi?

Estou tentando saber como foi o seu dia.

Uma merda. Ontem também. E amanhã vai ser a mesma coisa.

A que horas você chegou?

Na de sempre.

Às vezes, mesmo depois de todos esses anos, Gaia não escondia que ficava chateada por ter de abrir a porta com a própria chave, por não ter Kay ali à sua espera como as mães dos livros de histórias.

Quer me contar por que o seu dia foi uma merda?

Porque você me arrastou pra morar nesse fim de mundo.

Kay estava decidida a não gritar. Ultimamente, as duas vinham brigan­do aos berros, e ela tinha certeza de que a rua inteira podia ouvi-las.

Sabe que vou sair com Gavin hoje à noite?

Gaia murmurou alguma coisa que ela não conseguiu distinguir.

O quê?

Eu disse que achava que ele não gostava de sair com você.

O que quer dizer com isso?

Mas Gaia não respondeu. Limitou-se a digitar uma resposta numa das várias conversas que se desenrolavam na tela do computador. Kay hesitou: queria pressionar a filha, mas tinha medo do que pudesse ouvir.

Estou de volta lá pela meia-noite, acho.

Gaia não disse nada. Kay foi esperar Gavin no saguão de entrada.)

Ela fez amizade com uma garota que mora na sua rua — disse Kay. — Como é mesmo que ela se chama? Narinder, acho...

Sukhvinder — disseram o marido e a mulher ao mesmo tempo.

É uma ótima garota — observou Mary.

Conhece o pai dela? — indagou Samantha.

Não — respondeu Kay.

Ele é cirurgião cardiovascular — prosseguiu a anfitriã, que já estava na quarta taça de vinho. — Absolutamente, incrivelmente lindo!

Ah! — exclamou a moça.

Como um astro de Bollywood.

Samantha percebeu que ninguém tinha se dado o trabalho de dizer que o jantar estava gostoso, o que teria sido uma questão de educação, mesmo que tudo estivesse horrível. Já que não tinha condições de ator­mentar Gavin, poderia ao menos dar umas alfinetadas em Miles...

Eu lhe garanto que Vikram é o único aspecto positivo de se morar nesse fim de mundo — prosseguiu ela. — É a sensualidade em pessoa.

E a mulher dele é a clínica geral da cidade — atalhou Miles. — E também membro do Conselho Distrital. Você é contratada pelo Conse­lho Municipal de Yarvil, não é, Kay?

Isso mesmo — respondeu ela. — Mas passo a maior parte do tempo em Fields. Tecnicamente, o bairro faz parte do distrito de Pagford, não faz?

Ah, Fields não!, pensou Samantha. Pelo amor de Deus, não mencione o maldito Fields...

É — replicou Miles, com um sorriso sugestivo. — Fields faz parte de Pagford, tecnicamente. Como você disse, tecnicamente. Esse é um as­sunto espinhoso, Kay.

Ah, é? Por quê? — indagou a moça, na esperança de fazer com que a conversa se generalizasse, pois Gavin continuava falando em voz mais baixa com a viúva.

Bom, tudo começou lá nos anos 1950 — principiou Miles, que parecia estar embarcando num discurso bem-ensaiado. — Yarvil queria expandir o conjunto habitacional de Cantermill e, em vez de construir nos terrenos a oeste, onde hoje fica aquele entroncamento...

Gavin? Mary? Vocês querem mais vinho? — indagou Samantha, tentando suplantar a voz do marido.

...Eles foram um tanto ambíguos... Quando compraram as terras, ninguém esclareceu ao certo o que pretendiam fazer com elas e, de­pois, quando começaram as obras, ultrapassaram os limites do distrito de Pagford.

Por que você não mencionou o velho Aubrey Fawley, Miles? — per­guntou Samantha, que tinha finalmente atingido aquele delicioso ponto de embriaguez em que a língua ficava maldosa e o medo das conseqüên­cias desaparecia. Estava louca para provocar e irritar, procurando apenas se divertir ao máximo. — A verdade é que o velho Aubrey Fawley, que vinha a ser o proprietário daquelas adoráveis cantoneiras de pedra, ou seja lá o que Miles tenha lhe dito, fechou um negócio às escondidas...

Você está sendo injusta, Sam — interrompeu Miles. Mais uma vez, porém, ela continuou falando e abafou a voz do marido.

...Vendeu as terras onde hoje fica o bairro de Fields e embolsou, não sei exatamente, mas deve ter sido coisa de uns duzentos e cinqüenta mil, por aí...

Não diga bobagens, Sam! Na década de 1950?

Depois, quando ele percebeu que todo mundo estava com ódio dele, fingiu que não podia imaginar que aquilo fosse trazer tanto transtor­no. Um idiota da alta sociedade. E bêbado... — acrescentou Samantha.

Nada disso é verdade, garanto — disse Miles em tom decidido. — Para conseguir entender todo o alcance do problema, Kay, é preciso co­nhecer um pouco da história local.

Com o queixo apoiado na mão, Samantha fingiu que o cotovelo escorre­gava da mesa de tanto tédio. Embora não achasse aquela mulher nada agra­dável, Kay riu, e Gavin e Mary interromperam a sua conversa em voz baixa.

Estamos falando sobre Fields — disse a moça, de um jeito que pre­tendia lembrar a Gavin que ela estava lá e que o seu papel era lhe dar algum apoio moral.

De imediato, Miles, Samantha e Gavin se deram conta de que aquele era o assunto mais inconveniente possível para se tratar na frente de Mary, já que sempre fora o pomo da discórdia entre Barry e Howard.

Aparentemente, este é um tema um tanto delicado em termos lo­cais — acrescentou a moça, tentando forçar o namorado a dar a sua opi­nião, a participar da conversa.

Hã, hã — replicou ele e, voltando-se novamente para Mary, pergun­tou: — E então, como anda Declan no futebol?

Kay sentiu uma pontada de ódio. Tudo bem que Mary estivesse de luto, mas a solicitude de Gavin parecia fora de propósito. Tinha imagi­nado que aquela noite seria bem diferente: um jantar a quatro durante o qual o rapaz teria de perceber que eles eram efetivamente um casal. No entanto, ao ver aquela cena, ninguém poderia imaginar que eles fossem mais que simples conhecidos. Ainda por cima, a comida estava horrível. Kay cruzou os talheres, deixando no prato mais da metade do que lhe ti­nha sido servido — detalhe que Samantha não deixou de notar — e, mais uma vez, se dirigiu a Miles.

Você cresceu aqui em Pagford?

Bom, tenho que admitir que sim — respondeu ele, com um sorriso complacente. — Nasci no velho Hospital Kelland, lá no fim da rua. Ele foi fechado nos anos 1980.

Você...? — principiou ela, mas Samantha nem esperou pelo fim da frase.

De jeito nenhum! Vim parar aqui por acidente.

Desculpe, mas não perguntei o que você faz, Samantha.

Tenho uma lo...

Ela vende sutiãs de tamanhos especiais — interrompeu Miles.

Samantha se levantou bruscamente para ir buscar outra garrafa de vi­nho. Quando voltou para a mesa, Miles estava contando a Kay um episó­dio engraçado, sem dúvida com a intenção de demonstrar que todo mun­do conhecia todo mundo em Pagford: a noite em que ele foi parado por um guarda e acabou descobrindo que era um amigo do tempo da escola primária. A descrição detalhada da camaradagem entre ele próprio e Steve Edwards era algo que Samantha conhecia de cor e salteado. Ao dar a volta na mesa para encher todas as taças, percebeu a expressão austera de Kay. Era óbvio que ela não achava graça nenhuma nessas histórias de gente que dirigia embriagada.

...E lá estava Steve, segurando o bafômetro, e eu, me preparando para soprar, quando, do nada, os dois caímos na gargalhada. O outro po­licial não estava entendendo nada e ficou com uma cara assim — disse Miles, imitando o sujeito, que abanava a cabeça de um lado para o outro, absolutamente atônito. — Steve se dobrava de tanto rir, quase mijando, porque ele e eu nos lembramos da última vez que ele ficou segurando uma coisa para eu soprar. Tinha sido uns dezenove, vinte anos atrás...

Era uma boneca inflável — disse Samantha, sem sequer sorrir, vol­tando a se sentar ao lado do marido. — Miles e Steve puseram a tal bone­ca na cama dos pais de um amigo deles, Ian, que estava fazendo dezoito anos e dando uma festa. Bom, mas Miles acabou recebendo uma multa considerável e perdeu três pontos na carteira, porque era a segunda vez que ele era parado por excesso de velocidade. Ou seja, é uma história engraçadíssima...

O sorriso no rosto de Miles ficou congelado como um balão vazio es­quecido num fim de festa. Um ventinho gélido soprou naquela sala, que, por alguns minutos, ficou em silêncio. Embora tenha achado o seu anfi­trião o suprassumo da chatice, Kay tomou o seu partido. Afinal, ele era a única pessoa ali na mesa que parecia minimamente interessada em facili­tar a sua primeira participação na vida social de Pagford.

Tenho que admitir que Fields não é nada fácil — disse ela, voltando ao assunto que, aparentemente, deixava Miles mais à vontade e ainda sem desconfiar que aquele era um tema delicado com Mary ali por perto. — Trabalhei em bairros de periferia. Não esperava encontrar tanta miséria na zona rural, mas aquilo lá não é muito diferente de Londres. Só existe menos mistura étnica, é claro.

Ah, é claro! Também temos a nossa cota de viciados e vagabun­dos — observou Miles. — Acho que não dá mais, Sam — acrescentou então, empurrando o prato onde ainda havia uma boa quantidade de comida.

Samantha começou a tirar a mesa, e Mary se levantou para ajudar.

Não, Mary. Pode deixar. Fique tranqüila — disse a dona da casa. Para aumentar ainda a irritação de Kay, Gavin também se levantou, in­sistindo, com um ar todo cavalheiro, que Mary voltasse a se sentar. Mas a viúva não cedeu.

Estava ótimo, Sam — disse ela, enquanto as duas jogavam a comida quase toda na lata de lixo.

Não estava, não. Estava horrível — retrucou Samantha, que come­çava a perceber o quanto estava bêbada agora que tinha ficado de pé. — O que achou de Kay?

Não sei... — respondeu Mary. — Não é o que eu estava imagi­nando.

Pois ela é exatamente o que eu estava imaginando — replicou a anfitriã, apanhando uns pratos para a sobremesa. — Se quer saber, é uma segunda Lisa.

Ah, não diga isso! — exclamou Mary. — Ele merece coisa melhor dessa vez...

Isso era novidade para Samantha... Na sua opinião, a covardia de Ga­vin merecia punição constante.

As duas voltaram para a sala de jantar, onde Miles e Kay conversavam animadamente, ao passo que Gavin estava só sentado ali, calado.

...empurrar a responsabilidade para cima deles, o que me parece uma atitude bem autocentrada e egoísta...

Ora, acho interessante ouvir você usar a palavra "responsabilida­de" — observou Miles —, porque acredito que este é o verdadeiro xis do problema, sabe? A questão é saber onde exatamente estabelecer o limite.

Aparentemente, deixando Fields de fora — disse Kay rindo, e o seu riso nada tinha de condescendente. — Vocês querem traçar uma linha bem nítida entre a classe média proprietária e a classe...

Muitos dos habitantes de Pagford são da classe trabalhadora, Kay. E esta é a diferença entre nós: aqui, a maioria trabalha. Sabe quantos dos moradores de Fields vivem de alocações do governo? Você falou de responsabilidade. E a responsabilidade pessoal, onde é que fica? Há anos que recebemos moradores de Fields na nossa escola: crianças que não têm na família uma única pessoa que trabalhe. A idéia de ganhar a vida é coisa que eles desconhecem. São gerações e gerações de gente que não trabalha, e nós é que temos que sustentá-los...

E, para você, a solução é empurrar o problema para Yarvil — inter­rompeu Kay —, e não enfrentar qualquer das questões que estão por trás...

Torta de lama do Mississippi? — perguntou Samantha.

Gavin e Mary aceitaram uma fatia cada, e agradeceram. Kay, o que só fez deixar a dona da casa furiosa, limitou-se a estender o prato, como se ela fosse uma garçonete, e continuou inteiramente voltada para Miles.

...segundo consta, há quem esteja se articulando para fechar a clí­nica de reabilitação, por exemplo, que é absolutamente indispensável...

Ora, se você está se referindo à Bellchapel — disse Miles, abanando a cabeça e dando um sorriso de desdém —, espero que esteja a par dos resultados que ela vem apresentando, Kay. É patético. Sinceramente, pa­tético. Hoje mesmo, pela manhã, andei observando os números, e, para ser franco, quanto mais cedo ela fechar...

Esses números correspondem a...?

Os resultados positivos, Kay, como acabei de dizer: a quantida­de de gente que parou efetivamente de usar drogas, os que ficaram limpos...

Ah, me desculpe, mas essa é uma perspectiva muito ingênua. Se pretende avaliar resultados simplesmente...

Mas de que outro jeito poderíamos avaliar o sucesso de uma clínica de reabilitação, meu Deus? — perguntou Miles, incrédulo. — Pelo que sei, tudo que a Bellchapel faz é sair distribuindo metadona, coisa que me­tade dos seus pacientes continua usando junto com a heroína.

A questão das drogas como um todo é muitíssimo complicada — replicou Kay. — E é ingênuo e simplista encarar o problema somente em termos de usuários e não...

Miles, porém, ficou abanando a cabeça e sorrindo. Kay, que estava até gostando do duelo verbal com aquele advogado convencido, ficou subita­mente irritada.

Bom, posso lhe dar um exemplo concreto do que a Bellchapel vem fazendo. É uma família com quem estou trabalhando: mãe, filha adoles­cente e filho pequeno. Se a mãe não estivesse tomando metadona, estaria pelas ruas tentando ganhar dinheiro para sustentar o vício. Não há dúvida que os filhos vão estar muito...

Vão estar muito melhor longe dessa mãe, pelo que estou vendo! — exclamou Miles.

E para onde exatamente você propõe que eles sejam levados?

Uma casa de família decente seria um bom começo.

Sabe quantas casas substitutas existem, em comparação com a quantidade de crianças que precisariam delas? — perguntou Kay.

A melhor solução seria encaminhar essas crianças para adoção as­sim que elas nascem...

Ah, perfeito! Vou entrar na minha máquina do tempo... — retrucou a moça.

Conhecemos um casal que está tentando desesperadamente adotar um filho — interrompeu Samantha, vindo inesperadamente respaldar as opiniões do marido. Nunca ia perdoar a grosseria daquele prato estendi­do... Kay era mandona e truculenta, exatamente como Lisa, que mono­polizava todas as reuniões a que compareciam com as suas opiniões po­líticas e o seu trabalho como advogada de família, desprezando a própria Samantha por ser dona de uma loja de sutiãs. — Adam e Janice — disse ela, à guisa de parênteses, dirigindo-se ao marido, que assentiu com um aceno de cabeça. — E não estão conseguindo um bebê de jeito nenhum, não é mesmo?

Exatamente. Um bebê — replicou Kay, revirando os olhos. — E o que todos querem. E Robbie já tem quase quatro anos. Não sabe usar o vaso sanitário, está abaixo da expectativa de desenvolvimento para a sua idade e poderia jurar que já presenciou cenas de sexo. Será que os seus amigos gostariam de adotar um menino assim?

Mas, se ele tivesse sido tirado da mãe na hora em que nasceu...

Ela não estava usando drogas quando teve o menino, e vinha de­monstrando progressos consideráveis — disse Kay. — Amava a criança, queria ficar com ela e, na época, dava conta de cuidar dela. Já tinha criado Krystal, com alguma ajuda da família...

Krystal! — exclamou Samantha. — Ah, meu Deus! Estamos falan­do dos Weedon?

Kay ficou horrorizada por ter citado nomes. Em Londres, isso não ti­nha a menor importância, mas, pelo visto, ali em Pagford todo mundo se conhecia mesmo.

Eu não devia...

Miles e Samantha, porém, estavam rindo, e Mary parecia tensa. Kay, que não tinha tocado na torta e comera muito pouco durante o jantar, percebeu que tinha bebido demais. Por puro nervoso, ficou bebericando o tempo todo e, agora, havia sido absolutamente indiscreta. No entanto, era tarde demais para desfazer o que havia sido feito, e a raiva acabou su­plantando qualquer outra consideração.

Krystal Weedon não recomenda absolutamente a capacidade ma­terna dessa mulher — observou Miles.

Ela está tentando loucamente manter a família unida — disse Kay. — Adora o irmãozinho. Morre de medo que ele seja levado...

Eu não confiaria nela nem para tomar conta de um ovo cozinhan­do — retrucou Miles, e Samantha riu novamente. — E claro que o amor pelo irmão é um ponto a seu favor, mas ele não é um brinquedinho fofo...

Ah, eu sei — interrompeu Kay, lembrando-se do bumbum sujo e assado do menino. — Mesmo assim, é amado.

Krystal agrediu a nossa filha Lexie — disse Samantha —, portanto conhecemos um lado dessa garota que, com toda a certeza, não é o que ela mostra para você.

Veja bem — interveio Miles —, nós todos sabemos que a vida dessa garota não é nada fácil. Ninguém aqui está negando isso. O problema todo é a mãe viciada.

Na verdade, ela vem seguindo direitinho o programa da Bellchapel.

Mas, com o seu histórico — insistiu Miles —, não é preciso ter bola de cristal para imaginar que ela vai ter uma recaída, não é verdade?

Se formos aplicar essa regra a todas as situações possíveis, você não deveria ter carteira de motorista. Afinal, com o seu histórico, você está fadado a beber e sair dirigindo novamente.

Por alguns instantes, Miles ficou sem reação, mas Samantha disse, fria­mente:

Acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Acha? — indagou Kay. — E exatamente o mesmo princípio.

Bom, se quer saber a minha opinião, muitas vezes o problema são os princípios — observou Miles. — Em geral, basta ter um pouco de bom senso.

É, é assim que as pessoas costumam chamar os próprios preconcei­tos — retrucou a moça.

Segundo Nietzsche — disse uma voz diferente, em tom áspero, e todos ali na sala se assustaram —, a filosofia é a biografia do filósofo.

Uma Samantha em miniatura estava parada na porta que dava para o corredor: uma garota de uns dezesseis anos, seios grandes, usando um jeans apertado e uma camiseta. Estava comendo umas uvas e parecia bem satisfeita com a sua intervenção.

Minha gente, essa é Lexie — disse Miles, todo orgulhoso. — Obri­gado pela contribuição, gênio.

De nada — respondeu a garota, num tom espevitado, e desapare­ceu na escada.

Um pesado silêncio se instalou sobre a mesa. Sem saber exatamente por quê, Samantha, Miles e Kay olharam para Mary, que parecia estar a ponto de chorar.

Café? — disse Samantha, se levantando meio trôpega. Mary foi para o banheiro.

Vamos sentar lá na outra sala — propôs Miles, sentindo que o clima estava um tanto carregado, mas certo de que poderia, com algumas brin­cadeiras e com o seu jeito bonachão, reintroduzir uma atmosfera amistosa entre os seus convidados. — Tragam os seus copos.

Os argumentos de Kay haviam abalado as suas convicções tanto quanto um rochedo seria abalado por uma brisa ligeira, e Miles não experimentava nenhum sentimento negativo pela moça. Na verdade, tinha pena dela. De todos ali, era o menos alterado pelo ininterrupto encher dos copos, mas, ao chegar à sala de estar, percebeu que a sua bexiga estava no limite.

Ponha uma música aí, Gav. Vou buscar aqueles bombons.

Mas Gavin não fez nenhum movimento em direção à coleção de CDs empilhados nas estantes estreitas de acrílico. Parecia estar esperando por alguma reação de Kay. E, de fato, assim que Miles saiu da sala, ela disse:

Ora, ora... Muitíssimo obrigada, Gav. Você ficou sempre ao meu lado.

O rapaz tinha bebido ainda mais que ela durante o jantar, numa comemo­ração particular por não ter sido oferecido em sacrifício aos ataques belicosos de Samantha. Olhou então direto para Kay, cheio de uma coragem nascida, não apenas do vinho, mas de ter passado uma hora sendo tratado por Mary como uma pessoa importante, inteligente e com quem se pode contar.

Pelo visto, você se saiu muito bem sozinha — disse ele.

Na verdade, o pouco que se permitiu ouvir da discussão entre Kay e Miles tinha lhe dado uma tremenda sensação de déjà vu. Se Mary não es­tivesse ali para distraí-lo, talvez tivesse se sentido voltando àquela célebre noite, na mesmíssima sala de jantar, quando Lisa disse a Miles que ele era o modelo perfeito de tudo que havia de errado na sociedade. Miles caiu na risada. Lisa ficou furiosa e foi embora sem esperar pelo café. Não muito tempo depois, ela admitiu que estava dormindo com um advogado da firma em que trabalhava e sugeriu que Gavin fizesse o exame para ver se estava com clamídia.

Não conheço ninguém aqui — prosseguiu Kay —, e você não fez absolutamente nada para facilitar as coisas para mim, não é?

O que queria que eu fizesse? — indagou Gavin, que se sentia perfeitamente tranqüilo, protegido pela perspectiva da volta iminente dos Mollison e de Mary, e pelas generosas doses de Chianti que havia consumido. — Não quero saber de discussões sobre Fields. Não estou nem aí para essa história toda. Além do mais — acrescentou ele —, é um assunto delicado para ser tratado diante de Mary. Barry vinha se baten­do, no Conselho, para que Fields continuasse a fazer parte de Pagford.

Mas, nesse caso, você não poderia ter me avisado? Me dado um toque?

Ele riu, exatamente como Miles tinha feito. Antes, porém, que ela pu­desse replicar, os outros voltaram para a sala, parecendo até os Reis Magos carregando os seus presentes: Samantha trazia uma bandeja com as xíca­ras; atrás dela, vinha Mary com o bule e, depois, Miles com os bombons de Kay. Ao ver a fita dourada reluzindo sobre a caixa, a moça se lembrou do otimismo que sentia em relação àquela noite quando foi comprar os chocolates. Desviou o rosto, tentando disfarçar a raiva, pois estava mor­rendo de vontade de gritar com Gavin e sentindo uma súbita e espantosa necessidade de chorar.

Foi uma noite muito agradável — disse Mary, numa voz meio rou­ca que sugeria que também ela estivera chorando —, mas não vou ficar para o café. Não quero chegar tarde em casa. Declan anda meio... meio inseguro atualmente. Muito obrigada, Sam, Miles... Foi muito bom... sair um pouquinho.

Vou levá-la até... — principiou Miles, mas a voz de Gavin suplantou a sua.

Fique, Miles. Pode deixar que eu acompanho Mary. Vou levá-la até em casa. São só cinco minutos. Lá no alto da rua é muito escuro.

Kay mal conseguia respirar. Todo o seu ser estava concentrado em de­testar a complacência de Miles, a fragilidade e a vulgaridade de Saman­tha, o abatimento de Mary, mas, principalmente, o próprio Gavin.

Ah, claro — ouviu a própria voz dizendo, já que todos pareciam aguardar a sua permissão. — Claro! Vá levar Mary em casa, Gav.

A porta da frente se fechou, e Gavin se foi. Miles estava lhe servindo uma xícara de café. Kay ficou olhando o líquido escuro caindo e, de re­pente, teve a dolorosa consciência do quanto havia arriscado mudando toda a sua vida por causa daquele homem que estava indo embora com outra mulher.

 

Pela janela do escritório, Colin Wall viu Gavin e Mary passando. Reco­nheceu imediatamente a silhueta de Mary, mas teve de forçar a vista para identificar o sujeito magricela que ia ao seu lado, antes que os dois che­gassem ao trecho iluminado pela luz do poste. Debruçado para a frente, erguendo o corpo da cadeira, ficou olhando boquiaberto até que eles de­sapareceram na escuridão.

Não podia estar mais chocado! Para ele, Mary estava vivendo numa espécie de reclusão, recebendo, no santuário que era a sua casa, apenas mulheres, entre as quais Tessa, que continuava a visitá-la praticamente todo dia. Nunca havia lhe passado pela cabeça que Mary tivesse qualquer atividade social noturna, muito menos com um homem solteiro. Colin se sentiu pessoalmente traído, como se Mary, em algum plano espiritual, estivesse lhe botando um par de chifres.

Será que ela tinha permitido que Gavin visse o corpo de Barry? Será que o advogado passava as noites sentado na poltrona favorita de Barry, junto da lareira? Será que Gavin e Mary...? Será possível que eles...? Afi­nal, essas coisas acontecem o tempo todo. Quem sabe... Quem sabe já desde antes da morte de Barry...

Colin ficava sempre assustado diante do estado esfarrapado da moral alheia. Tentava se proteger contra o choque obrigando-se a imaginar o pior: preferia conjurar cenas terríveis de depravação e traição a esperar que a verdade se abrisse como um fruto maduro destruindo as suas inocentes ilusões. Para ele, a vida era uma longa batalha contra a dor e a decepção, e todos, exceto a sua própria mulher, eram inimigos até prova em contrário.

Chegou a pensar em descer correndo e contar a Tessa o que tinha acabado de ver. Quem sabe ela não poderia lhe dar alguma explicação inócua para aquele passeio noturno de Mary e tranquilizá-lo, convencen­do-o de que a viúva do seu melhor amigo era, e sempre tinha sido, fiel ao marido. Mas resistiu àquele impulso porque estava com raiva da mulher.

Por que ela fazia questão de demonstrar tamanha falta de interesse pela sua candidatura ao Conselho? Será que não notava como a ansie­dade vinha tomando conta dele de um jeito cada vez mais forte desde que ele tinha mandado o formulário preenchido? Embora Colin pudesse imaginar que ia se sentir assim, a dor não era menor por ser previsível, exatamente como o fato de ser atropelado por um trem não seria menos devastador para alguém que tivesse visto a composição se aproximando pelos trilhos. Ele simplesmente sofria duas vezes: com a expectativa e com a concretização.

As suas novas fantasias apavorantes giravam em torno dos Mollison e das formas que eles provavelmente escolheriam para atacá-lo. Contra-argumentações, justificativas e explicações estavam o tempo todo circulando pela sua cabeça. Já se via acuado, lutando para salvar a própria reputação. A ponti­nha de paranóia que sempre se mostrava quando Colin precisava enfrentar o mundo estava ficando cada vez mais acentuada. Nesse meio-tempo, Tessa fingia que nem sabia o que estava acontecendo e não fazia absolutamente nada para tentar aliviar aquela pressão terrível, esmagadora.

Sabia perfeitamente que ela era contra aquela candidatura. Talvez também estivesse apavorada com a perspectiva de Howard Mollison es­cancarar as entranhas do passado de ambos e espalhar os seus terríveis segredos para que todos os abutres de Pagford pudessem se regalar.

Colin já tinha dado alguns telefonemas para pessoas que sempre ha­viam apoiado Barry. Para sua surpresa e contentamento, ninguém questio­nou as suas credenciais ou lhe perguntou como pretendia enfrentar essa ou aquela questão. Sem exceção, todos expressaram o seu profundo pesar pela perda de Barry e a sua profunda antipatia por Howard Mollison, ou "aquele canalha metido a besta", como disse um dos eleitores mais gros­seiros. "Tá tentando nos empurrar o filho dele. Vai ver ficou rindo à toa quando soube que Barry tinha morrido." Colin, que tinha feito uma lista de argumentos pró-Fields, não precisou olhar para aquele papel nem uma única vez. Pelo visto, as suas maiores qualidades como candidato eram ser amigo de Barry e não se chamar Mollison.

O seu rosto em miniatura, em preto e branco, sorria para ele lá da tela do computador. Passou boa parte da noite sentado ali, tentando redigir o seu panfleto de propaganda, e tinha decidido usar a mesma foto que aparecia no site da Winterdown: só o rosto, com um ligeiro sorriso um tanto anódino e a testa alta e reluzente. Aquele retrato tinha, a seu fa­vor, o fato de já haver sido submetido à apreciação pública sem provocar qualquer estrago ou deboche, o que era uma recomendação considerável. Mas, debaixo da foto, onde deveriam ficar as informações pessoais, havia apenas uma ou duas frases ainda incipientes. Durante as últimas duas horas, Colin só fez escrever e deletar. A certa altura, conseguiu redigir um parágrafo inteiro, mas logo o destruiu, apagando letra por letra, batendo freneticamente com o indicador na tecla com a setinha.

Incapaz de suportar a indecisão e o isolamento, levantou-se de um sal­to e foi lá para baixo. Tessa estava deitada no sofá da sala, aparentemente cochilando, com a televisão ligada.

E aí? — perguntou ela, sonolenta, entreabrindo os olhos.

Mary acabou de passar por aqui. Estava subindo a rua com Gavin Hughes.

Ah — disse Tessa. — Ela disse alguma coisa sobre passar na casa de Miles e Samantha. Vai ver que Gavin estava lá e foi levá-la em casa.

Colin ficou horrorizado. Mary indo visitar Miles, o homem que estava tentando ocupar o lugar do marido dela? Que se opunha invariavelmente a tudo pelo que Barry sempre lutou?

Mas que diabos ela foi fazer na casa dos Mollison?

Você sabe que eles foram com ela até o hospital — respondeu Tessa, sentando no sofá, soltando um leve gemido e esticando as pernas curtas.

— Mary ainda não tinha procurado por eles. Queria agradecer. Já termi­nou o panfleto?

Quase. Tessa... Entre as informações... Quer dizer, no espaço des­tinado às informações pessoais... Ponho os cargos que ocupei antes? Ou deixo só a Winterdown? O que você acha?

Não acho que seja necessário. Basta dizer onde você trabalha agora. Mas por que não pergunta a Minda? Ela... — disse Tessa, bocejando. — Ela já fez isso.

Verdade — replicou Colin. E ficou parado ali, esperando, mas a sua mulher não se ofereceu para ajudar nem sequer para ler o que ele tinha escrito até então. — É. Boa idéia — disse Colin, desta vez falando um pouco mais alto. — Vou pedir a Minda para dar uma olhada nisso.

Tessa fez um grunhido, massageando os tornozelos, e ele saiu da sala, cheio de orgulho ferido. Ela não fazia idéia do estado em que ele se en­contrava, dormindo pouquíssimo e com o estômago se roendo por dentro.

Na verdade, ela estava só fingindo que dormia. Os passos de Mary e Gavin a tinham acordado uns dez minutos atrás.

Tessa mal conhecia Gavin. Ele era quinze anos mais moço que ela e o marido, mas o principal empecilho para uma proximidade maior sempre fora o fato de Colin tender a ter ciúme das outras amizades de Barry.

Ele está sendo fantástico com a história do seguro — disse-lhe Mary quando se falaram por telefone mais cedo. — Tem ligado para a compa­nhia diariamente, pelo que vejo, e vive me dizendo para não me preocu­par com os seus honorários. Ah, meu Deus, Tessa! Se eles não pagarem a...

Gavin vai resolver isso tudo para você — replicou Tessa. — Tenho certeza que vai.

Seria tão bom convidar Mary para jantar, pensou ela, deitada ali no sofá, toda doída e com sede. Seria uma oportunidade para a amiga arejar um pouco a cabeça, mas também para se assegurar de que ela estava co­mendo direito. Mas havia uma barreira insuperável: Mary achava Colin um sujeito difícil de agüentar. Esse fato constrangedor e até pouco tempo oculto começou a vir à tona na noite em que Barry morreu, como os destroços de um naufrágio revelados pela vazante da maré. Não podia ter ficado mais evidente que Mary queria ter ao seu lado apenas Tessa: ela recuava diante de qualquer proposta para que Colin ajudasse com alguma coisa e evitava falar com ele ao telefone por mais de alguns instantes. Ti­nham se encontrado tantas vezes, só os quatro, durante anos, e a antipatia de Mary jamais transpareceu, provavelmente abafada pelo bom humor de Barry.

Tessa tinha que lidar com a nova situação usando todo o tato possível. Conseguiu convencer o marido de que Mary ficava mais feliz na compa­nhia de outras mulheres. O funeral havia sido o seu único fracasso, porque Colin assaltou a viúva de surpresa na saída da igreja e ficou tentando ex­plicar, numa fala entrecortada de soluços, que ia se candidatar à vaga de Barry no Conselho para levar adiante o trabalho do amigo, para assegurar a sua vitória póstuma. Tessa percebeu a expressão chocada e ofendida de Mary e tirou o marido de perto dela.

De lá para cá, Colin manifestou, por uma ou duas vezes, a intenção de ir mostrar a Mary todo o seu material de campanha e lhe perguntar se Barry teria aprovado. Chegou até a dizer que iria pedir alguns conselhos sobre a forma como Barry teria conduzido o processo de sair em busca de eleitores. Tessa acabou lhe dizendo, com toda a firmeza, que ele não tinha nada que ficar importunando Mary com essas histórias de Conse­lho. Colin ficou indignado com a atitude da mulher, mas, aos olhos dela, era melhor ele ficar zangado com ela do que trazer mais sofrimento para Mary ou obrigá-la a uma recusa categórica, como tinha acontecido no caso do velório.

Ora, ora! Os Mollison! — exclamou Colin, entrando novamente na sala com uma xícara de chá nas mãos. Nem perguntou à mulher se ela queria uma também. Em geral, ele era bem egoísta nessas pequenas coisas: vivia tão ocupado com as próprias preocupações que nem se dava conta disso. — Com tantos conhecidos por aí, ela foi escolher logo a casa deles para ir jantar! Essa gente que é contra tudo que Barry sempre defen­deu!

Você está sendo um pouco melodramático, Col — disse Tessa. — E, de todo modo, Mary nunca teve tanto interesse quanto Barry em Fields.

Mas Colin só podia compreender o amor como lealdade irrestrita, tole­rância ilimitada. Mary tinha caído no seu conceito, e de forma irreparável.

 

— Onde é que o senhor vai? — perguntou Simon, plantado bem no meio do minúsculo corredor.

A porta da frente estava aberta, e, às suas costas, a varanda envidraçada, repleta de sapatos e casacos, chegava a ofuscar com o brilho do sol da manhã de sábado. Toda aquela luz transformava Simon em mera silhueta. A sua sombra ia subindo a escada, parando exatamente no degrau onde Andrew estava.

Pra cidade, com Bola.

Já terminou o dever?

Já.

Era mentira, mas Simon não ia se dar o trabalho de conferir.

Ruth? Ruth!

A mulher apareceu na porta da cozinha, de avental, com o rosto afogueado e as mãos cobertas de farinha.

O que foi?

Estamos precisando de alguma coisa lá da cidade?

O quê? Não. Acho que não.

Vai com a minha bicicleta, não é? — perguntou Simon, dirigindo- -se ao filho.

Vou. Eu ia...

Deixar ela na casa de Bola?

Isso.

A que horas queremos ele de volta? — indagou Simon, voltando-se novamente para a mulher.

Ah, sei lá, Si — respondeu Ruth, impaciente. O máximo de irrita­ção que ela se permitia com relação ao marido era quando ele, embora basicamente de bom humor, resolvia ditar regras só de brincadeira. Era comum o garoto ir à cidade com o amigo sob a condição vagamente im­plícita de voltar para casa antes do anoitecer.

Às cinco, então — disse Simon, de forma arbitrária. — Se chegar depois disso, vai ficar de castigo.

Ok — respondeu Andrew.

Estava com a mão direita no bolso do casaco, apertando com toda a força um pedacinho de papel, tomando o maior cuidado com ele, como se fosse uma granada pulsante. Passou a semana inteira atormentado pelo medo de perder aquele papelzinho, onde estava escrita uma linha num código meticulosamente copiado e várias frases riscadas, mil vezes feitas e refeitas. Por precaução, levava o tal papel onde quer que fosse e dormia com ele dentro da fronha do travesseiro.

Simon praticamente não se mexeu, e Andrew precisou se esgueirar entre o pai e a parede para chegar à varanda, sempre segurando firme o pedacinho de papel. Estava morrendo de medo de que o pai resolvesse ver o que ele tinha nos bolsos, à cata de cigarros, é claro.

Então, tchau.

Simon não respondeu. Andrew foi até a garagem, onde tirou o bilhe­te do bolso, desdobrou o papel e releu o que havia ali. Sabia que não estava sendo nada sensato, que a simples proximidade do pai não pode­ria ter alterado nada ali, mas, mesmo assim, quis se certificar. Satisfeito por ver que estava tudo bem, dobrou novamente o papelzinho, voltou a enfiá-lo bem no fundo do bolso e pressionou o colchete para fechá-lo. Saiu da garagem e desceu a rampa do quintal empurrando a bicicleta. Sabia que Simon estava espiando pela porta envidraçada da varanda, com toda a certeza na esperança de vê-lo cair ou fazer um estrago qual­quer na bicicleta.

Pagford estava lá embaixo, ligeiramente enevoada ao sol frio de prima­vera, e o ar estava fresco, quase cortante. Andrew sentiu o ponto em que os olhos de Simon deixaram de vê-lo: foi como se houvessem tirado um peso das suas costas.

Desceu a toda a colina, rumo ao vilarejo, sem tocar nos freios, e, de­pois, virou na Church Row. Mais ou menos na metade da rua, reduziu a velocidade e entrou na alameda da casa do amigo pedalando de um jeito comedido, tomando cuidado para não esbarrar no carro de Pombinho.

Oi, Andy — disse Tessa, abrindo a porta da frente.

Olá, sra. Wall.

Andrew havia aceitado, como uma convenção, que os pais de Bola eram ridículos: Tessa era gordinha e sem graça, com um corte de cabelo bem estranho e sem a mínima noção de como se vestir, ao passo que Pombinho era tão estressado que chegava a ser cômico. Mesmo assim, desconfiava seriamente que, se fosse filho dos Wall, ficaria tentado a gostar deles. Aqueles dois eram tão civilizados, tão bem-educados. Na casa deles, nunca se tinha a sensação de que o chão podia se abrir a qualquer momen­to e mergulhar tudo no caos.

Bola estava sentado no último degrau da escada, calçando os tênis. Dava para ver nitidamente a ponta de um pacotinho de tabaco aparecen­do no bolso da frente do seu casaco.

Oi, Arf!

Oi, Bola!

Quer deixar a bicicleta do sr. Price na garagem, Andy?

Quero, sim. Obrigado, sra. Wall.

(Era sempre assim que ela se referia a Simon, pensou o garoto. Sabia que Tessa detestava o seu pai, e essa era uma das coisas que o levavam a desconsiderar aquelas roupas horrorosas que ela usava e aquela franja malcortada que tanto a enfeava.

A sua antipatia datava daquela ocasião assustadora — e inesquecível —, anos e anos atrás, quando Bola, que tinha então seis anos, veio passar a tarde de sábado em Hilltop House pela primeira vez. Equilibrando-se precariamente em cima de uma caixa na garagem, para tentar pegar umas velhas raquetes de badminton, os dois meninos derrubaram sem querer tudo que estava numa prateleira meio bamba.

Andrew se lembrou da lata de creosoto caindo, batendo no teto do carro e abrindo. Lembrou-se também do terror que tomou conta dele e da sua incapacidade de explicar ao amigo, que ria às gargalhadas, o que esperava por eles.

Simon ouviu o barulho e correu para a garagem. Avançou para os me­ninos com a mandíbula projetada para a frente, fazendo aquele grunhido baixinho, animalesco, antes de começar a berrar ameaças de terríveis castigos físicos, com os punhos cerrados a poucos centímetros daquelas carinhas que o encaravam, olhando para cima.

Bola fez xixi na calça. Um fio de urina veio escorrendo pelas suas per­nas até cair no chão da garagem. Ruth, que tinha ouvido a gritaria lá da cozinha, veio correndo, tentando intervir:

Não, Si... Si, não... Foi sem querer. — O menino estava pálido e tremia. Quis voltar para casa. Queria a sua mãe.

Quando Tessa chegou, Bola correu para ela aos prantos, com o short encharcado. Foi a única vez na vida que Andrew viu o pai recuar, sem saber o que fazer. Sabe-se lá como, Tessa deixou claro que estava furiosa sem gritar, sem ameaçar, sem bater. Preencheu um cheque e o enfiou na mão de Simon, enquanto Ruth ficou repetindo Não, não. Não precisa. Não precisa. Simon a acompanhou até o carro, tentando fazer a coisa toda parecer uma brincadeira, mas Tessa o olhou com o maior desprezo, pôs o filho, que ainda chorava, no banco do carona e bateu a porta do motorista na cara sorridente do dono da casa. Andrew entendeu tudo pela expressão dos pais: Tessa estava levando ladeira abaixo, para o vilarejo, algo que nor­malmente ficava escondido naquela casa do alto da colina.)

Naquela época, Bola tentava cativar Simon. Sempre que vinha a Hilltop House, se desdobrava para fazer o outro rir. Em troca, Simon achava ótimo receber o menino em casa, adorava as piadas mais grosseiras que ele contava e se divertia com o relato das suas travessuras. No entanto, quando estava sozinho com Andrew, Bola concordava em gênero, número e grau que Simon era um babaca de primeira...

Garanto que ela é sapatão — disse Bola, quando os dois estavam passando em frente à antiga casa paroquial, aquele casarão quase encober­to pela sombra do pinheiro-da-escócia e com hera pelas paredes.

A sua mãe? — indagou Andrew, que, perdido nos próprios pensa­mentos, mal tinha ouvido o que o amigo dissera.

Qual é! — gritou o garoto, e Andrew percebeu que ele estava genui­namente indignado. — Porra, cara! Sukhvinder Jawanda.

Ah, tá...

Andrew riu, e, um minutinho depois, Bola começou a rir também.

O ônibus para Yarvil estava lotado. Os dois garotos tiveram que sen­tar juntos, em vez de ocupar dois bancos cada, como gostavam de fazer. Quando passaram pela Hope Street, Andrew ficou olhando, mas a rua estava deserta. Não tinha visto Gaia na escola desde aquela tarde em que ambos arranjaram emprego no Copper Kettle. O café ia ser inaugurado no próximo fim de semana, e ele sentia umas ondas de euforia sempre que se lembrava disso.

Docinho de Coco já está em plena campanha eleitoral? — pergun­tou Bola, ocupado em enrolar um cigarro. Uma das suas pernas compri­das estava no meio do corredor e, em vez de pedirem licença, as pessoas passavam quase pulando por cima dela. — Pombinho já começou a fazer merda, e olha que, até agora, só está preparando uns panfletos.

É, ele tem trabalhado nisso — respondeu Andrew, e aguentou firme uma onda de pânico na boca do estômago.

Pensou nos pais sentados à mesa da cozinha, como vinham fazendo to­das as noites, desde a semana passada. Pensou na caixa de panfletos idiotas que Simon tinha imprimido na gráfica, na lista de tópicos que Ruth tinha ajudado a levantar e que ele usava toda noite, telefonando para todos os seus conhecidos naquela região eleitoral. Dava a impressão de fazer tudo aquilo com um imenso esforço. Em casa, estava sempre na maior tensão, despejando mais que nunca a sua agressividade nos filhos. Parecia até que estava tendo de carregar um fardo que os filhos haviam se recusado a transportar. O único tema de conversa na hora das refeições era a eleição, pois o casal ficava especulando sobre as forças que teriam se unido contra Simon. Consideravam quase uma ofensa pessoal o fato de haver outros candidatos concorrendo à vaga deixada por Barry Fairbrother. Pelo visto, presumiam que Colin Wall e Miles Mollison passavam a maior parte do tempo confabulando, de olho em Hilltop House, não pensando em outra coisa a não ser em derrotar o homem que morava lá.

Mais uma vez, Andrew meteu a mão no bolso para ver se o papel con­tinuava ali dentro. Não tinha contado ao amigo o que pretendia fazer. Tinha medo de que ele pudesse espalhar para todo mundo e não sabia muito bem como convencê-lo da absoluta necessidade de guardar segre­do, como lembrar a Bola que o maníaco que fazia criancinhas mijarem na calça continuava vivo, muito bem de saúde, e morando com ele, na mesma casa.

Pombinho não está muito preocupado com Docinho de Coco — disse o garoto. — Ele acha que o grande adversário é mesmo Miles Mollison.

Sei — replicou Andrew. Tinha ouvido os pais falando a esse respei­to. Ambos pareciam achar que Shirley os tinha traído, que ela devia ter proibido o filho de desafiar Simon.

Sabe, para Pombinho, essa porra toda é uma verdadeira cruzada — prosseguiu Bola, rolando um cigarro entre o polegar e o indicador. — Ele está erguendo a bandeira do companheiro morto. Salve Barry Fairbrother!

Com um fósforo, começou a enfiar o tabaco pela ponta do rolinho de papel.

A mulher de Miles Mollison tem uns peitos gigantescos — disse ele.

Uma senhora idosa que estava no banco da frente se virou para olhar o garoto. Andrew começou a rir novamente.

Cada peitão do cacete — disse Bola bem alto, encarando aquele rosto enrugado e contraído. — Uns peitões suculentos, tamanho extragrande...

Toda vermelha, a mulher virou o rosto bem devagar e voltou a olhar para a frente. Andrew mal conseguia respirar.

Os dois saltaram do ônibus bem no centro de Yarvil, perto da aveni­da periférica e do principal calçadão do comércio local, e, fumando os cigarros que Bola havia enrolado, saíram andando em meio às pessoas que faziam compras. Andrew não tinha um tostão. O salário de Howard Mollison ia ser muito bem-vindo.

De longe, o letreiro de um alaranjado luminoso do cyber café atraiu o olhar de Andrew, como se o convidasse a entrar. O garoto não conseguia mais se concentrar no que Bola estava dizendo. Vai fazer isso mesmo?, era a pergunta que não lhe saía da cabeça. Tem certeza?

Ainda não sabia. Os seus pés continuavam a se mover, e o letreiro esta­va ficando cada vez maior, tentando atraí-lo, seduzi-lo.

Se ficar sabendo que você disse uma palavra sobre o que acontece nessa casa, eu esfolo você vivo.

Mas a alternativa era a humilhação de ver o pai exibir para o mundo inteiro o que ele realmente era e também o preço que a família teria de pagar quando, depois de semanas de besteiras e expectativas, ele fosse derrotado, o que certamente ia acontecer. Então, viriam a raiva e o despeito, e a determinação de fazer todos os demais pagarem pelas suas próprias decisões lunáticas. Ainda na véspera, à noite, Ruth tinha dito, toda animada: "Os meninos podem ir colar os seus cartazes lá em Pagford." Com o rabo do olho, Andrew tinha visto o horror estampado no rosto de Paul e percebeu que o irmão tentava olhar para ele disfarçadamente.

— Vou entrar aqui — murmurou Andrew, virando à direita.

Compraram tíquetes com senhas e sentaram diante de computado­res diferentes, separados por duas outras baias ocupadas. O sujeito de meia-idade que estava à direita de Andrew fedia e ficava o tempo todo fungando.

Andrew entrou na internet e digitou o nome do site: conselho... distri­tal... de... pagford... ponto... co... ponto... uk...

A página inicial ostentava o emblema do Conselho, em azul e branco, e uma foto de Pagford tirada de algum lugar bem perto de Hilltop House, com a silhueta da abadia de Pargetter recortada contra o céu. O site, como Andrew já sabia, porque tinha entrado nele pelo computador da escola, tinha uma aparência de coisa antiga e amadorística. O garoto não ousou fazer isso do seu próprio notebook. O seu pai podia ser completamente ig­norante em termos de internet, mas Andrew achava que era bem possível que ele arranjasse alguém lá do trabalho para ajudá-lo a investigar depois que a coisa já tivesse estourado...

Mesmo naquele lugar anônimo e movimentado, não havia como evi­tar que a data aparecesse na postagem, nem como fingir que não tinha ido a Yarvil naquele dia. Simon, porém, nunca entrou num cyber café na vida e talvez nem soubesse da existência deles.

Andrew sentiu o coração apertado, um aperto que chegou a doer. Mais que depressa, procurou a área de mensagens, que, pelo visto, não era muito freqüentada. Havia alguns tópicos intitulados: coleta de lixo — esclarecimento e área de abrangência das escolas de Crampton e Little Manning. E, mais ou menos a cada dez entradas, havia uma postagem do administrador do site, incluindo trechos da ata da última reunião do Conselho. Bem no fim da página, surgiu o título: Falecimento do cons. Barry Fairbrother. Esse tópico tinha sido visitado cento e cinqüenta e duas vezes e recebido quarenta e três respostas. Depois, na segunda página de mensagens, encontrou o que estava procurando: um post do falecido.

Uns dois meses atrás, a turma de informática de Andrew tinha sido acompanhada por um jovem professor substituto que ficou tentando pare­cer um sujeito descolado para cativar os alunos. Ele não deveria ter men­cionado as injeções SQL de jeito nenhum, e Andrew tinha certeza de que não havia sido o único a sair dali direto para procurá-las no próprio computador. Tirou do bolso o papelzinho onde tinha anotado o código que procurou nos tempos vagos na escola e acessou a página de login do site do Conselho. Ele estava apostando todas as fichas numa suposição: como aquele site havia sido criado há muito tempo e por um amador, não devia ter qualquer proteção contra os procedimentos clássicos mais simples de invasão.

Com todo o cuidado, usando apenas o indicador, Andrew introduziu ali aquela linha mágica de caracteres.

Leu e releu tudo atentamente, verificando se cada vírgula estava onde deveria estar, e, por um segundo, ficou hesitando, com a respiração ofegante. Finalmente, pressionou a tecla "Enter".

Andrew chegou a perder o fôlego, feliz como uma criança, e precisou se conter para não gritar ou sair dando socos no ar. Tinha conseguido penetrar naquele sitezinho vagabundo na primeira tentativa. Ali, na tela à sua frente, estavam os dados de Barry Fairbrother: o seu nome, a sua senha, o seu perfil completo.

Desamassou então o papelzinho que tinha guardado no seu travessei­ro por uma semana e começou a trabalhar. Digitar o parágrafo seguinte, com todas aquelas coisas riscadas e refeitas, ia ser uma tarefa bem mais complicada.

Andou tentando encontrar um estilo que fosse o mais impessoal e im­penetrável possível, um estilo que tivesse aquele tom impassível dos jorna­listas dos grandes jornais.

 

Simon Price, candidato ao cargo de conselheiro distrital, pretende de­fender como plataforma o corte dos gastos excessivos da instituição. O sr. Price conhece por certo muito bem os processos de redução de custos e poderia beneficiar o Conselho fornecendo os nomes dos seus contatos tão úteis. Em casa, ele faz economia adquirindo mercadorias roubadas — o exemplo mais recente foi um computador de mesa — e é a pessoa a ser procurada na Gráfica Harcourt-Walsh por quem estiver interessado em mandar fazer algum trabalho a preço reduzido, pagando em dinheiro vivo, depois que o gerente-geral já tiver ido embora.

 

Andrew leu e releu aquele texto de ponta a ponta. Mentalmente, já o tinha repassado mil vezes. Podia fazer inúmeras acusações contra Simon, mas não existia um tribunal em que ele pudesse apresentar queixa formal contra o pai, em que ele pudesse apresentar como prova as lembranças que tinha do terror físico e da constante humilhação. Tudo que tinha eram...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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