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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHERES APAIXONADAS / D. H. Lawrence
MULHERES APAIXONADAS / D. H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Úrsula e Gudrun Brangwen estavam naquela manhã sentadas à janela de sua casa, em Beldover, trabalhando e conversando. A primeira ocupava-se em um bordado de cores vivas e cintilantes, a outra desenhava sobre uma prancheta colocada em cima dos joelhos. Na maior parte do tempo mantinham-se em silêncio, e só falavam quando um pensamento qualquer lhes atravessava o espírito.
- Úrsula - disse Gudrun - você não tem mesmo vontade de se casar?
Úrsula descansou o bordado no colo e encarou a irmã, sem abandonar o seu ar calmo e ponderado.
- Não sei - respondeu. - Depende da interpretação que você dá a isso.
Gudrun, um tanto embaraçada, observou a outra durante alguns instantes. - Ora essa! - respondeu, com ironia. - A interpretação só pode ser uma. Não acha - continuou, fazendo-se mais séria - que a sua situação melhoraria muito?

 

 

 

 

 

 

Uma nuvem velou o rosto de Úrsula.

Talvez. A verdade é que não sei, ao certo.
Gudrun calou-se, levemente irritada. Gostaria que a outra se tivesse explicado melhor.
- Você acha dispensável a experiência do casamento?
- E você acha que seria, de fato, qualquer coisa desse gênero? - tornou Úrsula.
- De uma maneira ou de outra, deve ser assim, - disse friamente Gudrun. - Talvez não seja bem o que se deseja, mas não deixa de ser uma experiência.
- Nem tanto. Talvez melhor seria dizermos que seria o ponto final das experiências.
Gudrun permaneceu calada, considerando o problema.
- Sem dúvida - declarou por fim - temos de considerar esse aspecto. - Com essas palavras a conversa interrompeu-se. Gudrun, quase colérica, pegou a borracha e apagou parte do desenho que estava fazendo. Úrsula absorveu-se no bordado.
- O que acharia você de um pedido de casamento? - perguntou ainda.
- Já tenho rejeitado alguns.
- É mesmo? - perguntou Gudrun, corando. - Propostas realmente tentadoras? E você recusou?
- Mil libras de rendimento anual e um homem encantador.
- Ora veja! E não sentiu a menor tentação?
- Em teoria, sim; mas na prática, não. Quando se chega ao ponto em que estou já não existe tentação; se eu a tivesse, ter-me-ia casado sem hesitar. Senti-me tentada apenas a dizer não. - E as duas irmãs olharam uma para a outra com ar divertido.
- É extraordinária a vontade que temos de dizer às vezes que não! - observou Gudrun. Riram-se, mas no íntimo de seus corações havia um pouco de receio.
Voltou o silêncio. Úrsula costurava e Gudrun continuava a desenhar. Eram mulheres feitas: a primeira tinha vinte e seis anos, a segunda vinte e cinco; ambas, porém, com aquele olhar remoto, virginal, de jovens recatadas, mais irmãs de Artemia do que de Hebe. Gudrun era, na verdade, bela, tranquila, de pele aveludada e braços roliços. Estava vestida de azul-escuro, com uma guarnição de rendas azuis e verdes no pescoço e nas mangas e meias de tom verde-esmeralda. Seu ar discreto e tímido contrastava com a sensibilidade expectante de Úrsula. As pessoas do lugar, constrangidas pelas maneiras sóbrias e pela perfeita paz de espírito de Gudrun, classificavam-na de "senhora distinta". Chegara recentemente de Londres, onde passara alguns anos frequentando uma escola de belas-artes e "ateliers" de artistas.
- Esperava que aparecesse agora um homem - disse ela, de repente, mordendo o lábio inferior e fazendo uma careta entre séria e cômica. Úrsula sobressaltou-se:
- E voltou para casa na esperança de encontrá-lo aqui? - perguntou.
- Minha querida Úrsula, eu não me daria ao trabalho de procurar - respondeu. - Mas se surgisse algum, realmente sedutor e de razoáveis posses, então... - Não terminou a frase e olhou para a irmã, como que para experimentá-la. - Não acha que a nossa vida está ficando aborrecida? Não parece haver coisas escapando de nós? Nada se define, tudo murcha, ainda em botão.
- O quê?
- Ora, tudo... nós mesmas... as coisas em geral. - Houve uma pausa, durante a qual as duas irmãs consideraram vagamente o seu destino.
- Estou assustada com você - disse Úrsula. Houve uma nova pausa. - Mas acha que através do casamento você atingiria algum fim?
- Acho que sim, de modo inevitável - retorquiu Gudrun.
Úrsula ficou pensativa, com ar de tristeza. Era, há alguns anos, professora do Instituto de Educação Primária de Willey Green.
- Imaginando pelo lado teórico... Mas, admitamos a realidade: imagine um homem entrando em casa todas as noites, dizendo olá e dando-nos um beijo. Durante alguns momentos não pronunciaram palavra.
- É verdade - começou Gudrun com a voz sumida - que não posso imaginar semelhante coisa. A ideia de um homem me deixa perturbada.
- E depois, viriam os filhos... - arriscou a outra. A expressão de Gudrun endureceu-se.
- Você gostaria de ter filhos, Úrsula? - perguntou friamente, e a irmã sentiu-se confusa e perturbada.
- Ainda estou muito moça para isso - foi a resposta.
- Você acha? Não consigo habituar-me à ideia de vir a ter filhos.
Ao dizer isso, olhou para a sua interlocutora com ar inexpressivo, como se tivesse afivelado uma máscara ao rosto. A outra fez-se carrancuda. - Talvez - continuou Gudrun, vacilante - eu não tivesse sido sincera. Talvez um sentimento superficial em que o coração não tomou parte. - Ficou séria. Não lhe convinha definir demasiadamente o que sentia.
- Quando se pensa nos filhos dos outros... - insinuou Úrsula.
Fitaram-se novamente, Gudrun quase hostil.
- Está bem - disse finalmente, dando por encerrada a conversa.
Continuaram a trabalhar em silêncio. Úrsula conservava no olhar um brilho estranho, como se ali houvesse uma chama prisioneira, ansiosa por fugir. Vivia fechada em si mesma, distraindo-se sozinha, ensinando, vendo passarem os dias, sempre com o espírito ativo, procurando dominar a vida e compreende-la. Sua vida estava como que suspensa, mas pressentia que alguma coisa se preparava para chegar. Se ao menos conseguisse quebrar as últimas cadeias que a detinham! Parecia esforçar-se e distender as mãos como uma criança no ventre da mãe. Mas tudo era muito prematuro! Possuía, porém, um vago pressentimento de que alguma coisa estava para surgir.
Pousou o trabalho e olhou para a irmã. Achou Gudrun encantadora, deliciosa na sua delicadeza, na sua graça, na perfeição da pele, na pureza de linhas. Havia nela muita jovialidade, com leves tinturas de ironia, sem que por isso deixasse de ser circunspecta. Úrsula admirava-a com toda a sua alma.
- Por que você voltou para casa, Prune?
Gudrun sabia que era estimada. Recostou-se mais, desviando a vista do desenho e fixando a irmã por entre os cílios finos e recurvos.
- Por que voltei? - repetiu ela. - Já fiz a mim mesma essa pergunta.
- E não sabe responder?
- Acho que sei. Meu regresso consistiu unicamente em reculer pour mieux sauter - Recuar para saltar melhor - nota da tradutora).
Ao dizer isso fixava em Úrsula um olhar cheio de experiência.
- Imagino - disse esta um tanto confusa, mas com o ar dissimulado de quem nada sabe. - Mas como se pode armar o salto, aqui?
- Não importa - volveu Gudrun com ar superior. - Se saltarmos a barreira, temos de cair em qualquer lugar.
- Não é muito arriscado?
No rosto de Gudrun desenhou-se pouco a pouco um sorriso de mofa.
- Ora! - disse ela, rindo. - Palavras, nada mais. - E mais uma vez suspendeu a conversa. Úrsula, porém, continuava a meditar.
- E o que acha da casa, agora que voltou?
Gudrun refletiu durante alguns segundos antes de responder. Depois, em tom sincero e tranquilo, confessou:
- Sinto-me nela como uma estranha.
- E papai?
Gudrun olhou para Úrsula quase com ressentimento e desespero.
- Não pensei nele. Tenho-o evitado - respondeu friamente.
- Entendo - murmurou Úrsula. E o colóquio interrompeu-se mais uma vez. Era como se um abismo se tivesse cavado entre as duas irmãs e elas se contemplassem por cima dele.
Trabalharam ainda alguns momentos sem nada dizer. O rosto de Gudrun estava ruborizado pela emoção que ela procurava reprimir e pelo receio de que os seus sentimentos transparecessem.
- Vamos lá fora ver o casamento? - propôs, de repente, de modo casual.
- Vamos! - anuiu Úrsula com vivacidade, arremessando a costura e precipitando-se como para fugir a qualquer coisa, demonstrando assim o mal-estar que a conversa lhe causara. Os nervos de Gudrun ressentiram-se daquela demonstração.
Ao subir ao andar superior e ao entrar no quarto, Úrsula compenetrou-se de tudo o que a rodeava. Quanto ódio nutria por aquele ambiente familiar e aborrecido! Chegou a afligir-se com a má vontade que sentia pelo meio em que se achava, pela própria atmosfera e por todas aquelas antiquadas condições de vida.
Pouco depois as duas moças seguiam, a passos rápidos, pela rua principal de Beldover - rua larga, ladeada pelas lojas comerciais e pelas casas de moradia, sujas e sem graça, embora sem aspecto de pobreza. Gudrun, recém-chegada de Chelsea e Sussex, impressionava-se bastante com aquela fealdade amorfa e acinzentada da cidadezinha mineira de Midland. Contudo, continuava andando, através de toda aquela mesquinhez pela rua arenosa e feia. Ia exposta a todos os olhares, como quem se força voluntariamente a um tormento. Era estranho ter querido voltar, sujeitando-se a tanta coisa desagradável! Por que se teria ela exposto ao cenário ignominioso que a torturava, à presença daquela gente desagradável, naquele recanto característico da província? Experimentava a sensação de um escaravelho lutando contra a poeira. Sentia náuseas. Mudando de rumo, contornaram a mancha escura de uma horta, onde troncos fuliginosos se erguiam impudentemente. Ninguém sentia vergonha, ninguém tinha vergonha de coisa alguma.
- É como um país subterrâneo - comentou Gudrun - Os mineiros trazem-nos aos poucos cá para cima e espalham-no em derredor. Mas isso é maravilhoso, Úrsula: é um mundo ao contrário. Os homens são vampiros e as coisas são todas fantasmagóricas. Não há nada que não seja uma réplica espectral do mundo real, uma réplica alterada e ignóbil. É como se todos estivéssemos loucos.
Caminhavam agora por uma vereda escura, através da terra negra e imunda. À esquerda estendia-se a paisagem ampla, o vale com as minas de carvão e, nas colinas em frente, campos de trigo e bosques, negros a distância, como se tudo fosse avistado através de um véu negro. A fumaça, branca ou acinzentada, elevava-se em colunas densas, como que irreal naquela atmosfera tenebrosa. Começavam ali perto os agrupamentos de casas subindo pela colina e seguindo depois em linha horizontal, lá no topo: construções de tijolos vermelho-escuros, quebradiços, com telhados de ardósia sombria. O atalho por onde as irmãs caminhavam era escuro, marcado pela passagem contínua dos mineiros e separado dos campos por cercas de arame: a cancela era lustrosa pelo roçar constante das roupas dos operários. As duas moças tinham agora, de um lado e do outro, casas de aparência miserável, em cujas portas havia mulheres que conversavam, com os braços enrolados nos aventais de fazenda grosseira e que fitavam com o modo persistente e infatigável de moradores da região os forasteiros que passavam. As crianças injuriavam os transeuntes.
Gudrun continuava a caminhar, bastante perturbada. Se aquilo era a vida humana e tais criaturas seres humanos, habitantes de um mundo normal, o que seria então aquela esfera em que ela própria se movia? Não lhe saía da cabeça a maneira como estava vestida: meias verdes, chapéu de abas largas de veludo cor de musgo, capa ampla e macia, de um azul excessivamente forte. Tinha a impressão de flutuar, sem estabilidade, com o coração opresso, como se, de um momento para o outro, pudesse ser arrojada ao chão. Sentia medo!
Aconchegou-se a Úrsula, que já se habituara a desvendar aquele mundo sombrio, anormal e hostil. Mas a alma não deixava de exclamar, como no Juízo Final: "Quero partir, quero ir-me embora, não quero conhecer isto, que para mim não existe". No entanto, era preciso prosseguir.
Úrsula percebeu o que se passava com ela.
- Você odeia tudo isto, não? - perguntou.
- Perturba-me - murmurou a outra.
- Não vai ficar aqui por muito tempo.
E Gudrun continuou a andar, louca por se ver livre de tudo aquilo.
Afastaram-se da região mineira, subiram a colina ate o espaço mais desanuviado, em direção a Willey Green. Mas ainda os vestígios de carvão persistiam nos campos e nos outeiros arborizados, parecendo encher o ar de reverberações escuras. A manhã primaveril e fresca dourava-se, de vez em quando, pelos raios do sol; entre as sebes surgiam quelidônias amarelas e nos jardins dos casebres de Willey Green as groselheiras mostravam as primeiras folhas; nas trepadeiras que pendiam dos muros de pedra despontavam, aqui e ali, florezinhas brancas.
Dobrando uma esquina, acharam-se na estrada principal que conduzia à igreja. Avistaram, então, numa curva do caminho, um grupo de curiosos que conversavam sob as árvores aguardando o casamento da filha de Thomas Crich - principal proprietário das minas do distrito. A jovem casava-se com um oficial de marinha.
- É melhor voltarmos - disse Gudrun - Veja quantas mulheres estão ali!
E parou, hesitante, no meio da rua.
- Não se importe com elas - disse Úrsula. - São todas conhecidas. Sabem quem somos, não se meterão conosco.
- Precisamos passar no meio dessa multidão?
- São pessoas decentes - afirmou Úrsula, tomando a dianteira. As duas irmãs se aproximaram daquele grupo de gente, todos com ares simplórios e contrafeitos. O grupo se constituía de mulheres de operários, de aparência muito pobre, com as faces sumidas e expressão resignada.
Úrsula e Gudrun continuaram sempre em direção ao portão. As mulheres afastaram-se apenas o suficiente para as deixar passar, mal-humoradas por terem de lhes ceder terreno. As irmãs atravessaram em silêncio os umbrais de pedra e subiram os degraus atapetados de vermelho, sob as vistas de um policial.
- Quanto teriam custado as meias? - murmurou alguém bem às costas de Gudrun, que se sentiu tomada de uma cólera súbita e violenta, cheia de desejos homicidas. Sentiu vontade de aniquilar aquela gente, arrasar tudo aquilo de modo que o mundo ficasse inteiramente desimpedido. Tinha horror de fazer aquele trajeto, de galgar a escadaria e de pisar a passadeira vermelha, sempre acompanhada pelos olhares dos outros.
- Não entro na igreja - declarou ela de repente e com um tom tão decidido que Úrsula parou. Depois, fazendo meia volta, dirigiu-se para um caminho transversal que ia dar numa entrada particular do colégio, cujos jardins se ligavam ao da igreja.
Lá penetraram e Úrsula sentou-se no muro baixinho, à sombra dos loureiros, para descansar. Atrás dela elevava-se majestosamente o edifício do colégio, de tijolo rubro, com as janelas todas abertas, como era costume nos dias de festa. À sua frente, por cima dos arbustos, surgiram os telhados pálidos e a torre da velha igreja. As duas irmãs permaneciam ocultas pela folhagem do jardim.
Gudrun sentou-se também, sem dizer nada com os lábios apertados e o rosto contraído. Arrependia-se amargamente de ter voltado à casa paterna. Úrsula fitou-a, pensando em quanto a irmã era bonita, assim corada pela irritação; mas notou, também, como aquela atitude de desânimo a perturbava, chegando a produzir-lhe um intenso cansaço. Preferia estar só, livre da presença rígida de Gudrun.
- Ficamos aqui? - perguntou esta.
- Queria descansar um pouco - respondeu Úrsula, levantando-se, como se houvesse sido repreendida. - Vamos para o cantinho do jogo de pela e de lá veremos tudo.
Naquele momento a luz brilhava sobre o adro da igreja; havia um cheiro esparso de seiva, de primavera, e talvez das violetas nas sepulturas do cemitério. Viam-se margaridas brancas desabrochadas, resplandecentes como anjos. Nas árvores, as folhas que vinham despontando pareciam vermelhas de sangue.
Às onze horas em ponto começaram a chegar as carruagens. A multidão correu para a porta, rodeando os carros; os convidados subiram os degraus atapetados que iam dar na igreja. Mostravam-se alegres e felizes, talvez por causa do esplendor do sol.
Gudrun olhava-os curiosa, em rigoroso exame. Via em cada um uma figura completa, personagem de romance, motivo de pintura ou boneco de mola: criação perfeita, acabada. Divertia-se considerando-lhes as diversas características e colocando-os na melhor posição, sob a luz mais favorável, fixando-os assim de forma definitiva - e eles passavam à sua frente, a caminho da igreja. Conhecia-os bem, tinha-os já descrito e catalogado, para seu uso próprio. Nenhum daqueles convidados apresentava qualquer peculiaridade que ela não descobrisse e tabelasse. Os Criches vieram então, e o interesse de Gudrun aumentou. A sua curiosidade atingiu o auge. Ali estava alguma coisa não inteiramente prevista.
Apareceu em primeiro lugar a mãe, a Senhora Crich, com o filho mais velho, Gerald. Mulher de aspecto estranho e desgrenhado, apesar dos esforços que evidentemente fizera para parecer bem arranjada. Tinha as faces pálidas, amarelecidas, a pele clara e transparente, as feições muito acentuadas, embora perfeitas; o olhar, abstrato, parecia nada ver; o corpo inclinava-se para frente e os cabelos de cor indefinida saíam-lhe debaixo do chapéu de seda azul e flutuavam por cima da capa da mesma cor. Dir-se-ia uma criatura excessivamente orgulhosa, escrava de alguma obsessão.
O filho era alto, de bela fisionomia, queimado pelo sol; vestia com elegância quase rebuscada; mas havia nele, também, algo estranho e reservado, uma expressão distante, como se não considerasse as outras pessoas feitas da mesma massa que ele. Gudrun destacou-o, de um só relance. O tipo nórdico de Gerald magnetizara-a imediatamente. No tom claro de sua pele, nos seus cabelos louros, percebia-se um reflexo idêntico ao do sol através dos blocos de gelo; parecia feito de um material novo, intacto, puro como uma substância rara. Devia ter uns trinta anos, talvez mais. Sua beleza máscula e esplendorosa, qual a de um jovem lobo, satisfeito, brincalhão, denotou logo à jovem a natureza perigosa daquele temperamento, a gravidade iminente daquele caráter insubmisso. "O lobo é o seu totem" - pensou ela - "e a mãe é uma loba velha e rebelde". E logo a seguir, experimentou um verdadeiro paroxismo, puro arrebatamento, como se tivesse feito uma descoberta incrível, desconhecida de todas as pessoas da terra. Um estranho êxtase a tomou e por todas as suas veias correu seiva dolorosa e violenta. "Meu Deus", exclamou no seu íntimo, "O que é isto?". E depois, passada a primeira sensação, murmurou, agora mais calma. "Preciso saber tudo a respeito desse homem". Torturava-a o desejo de tornar a vê-lo, espécie de saudade, de imperioso desejo de o contemplar de novo; necessidade de certificar-se de que não tinha havido engano, de que não iludira a si mesma, que sentira, de fato, em face dele, tão extraordinária impressão - conhecimento do indivíduo em sua própria essência, percepção dominadora e cruel! "Estarei realmente marcada, de qualquer maneira, para ele. Haverá na verdade aquela luz pálida, ártica, dourada, a nos envolver, a nós dois somente?" Meditava naquilo, mas não podia crer e quase não tinha consciência do que se passava à sua volta.
As damas de honra já estavam lá, mas o noivo ainda não havia chegado. Úrsula pôs-se a conjeturar se não houvera qualquer engano, se o casamento não se realizaria devido à omissão de uma formalidade qualquer. Sentia-se preocupada como se a culpa fosse sua. Enquanto as primeiras damas de honra subiam os degraus, Úrsula deteve-se a observá-las; reconheceu uma delas, mulher alta, lenta, pouco simpática, de cabeleira loura e farta, face pálida e comprida. Era Hermione Roddice, amiga dos Criches. Levantava o rosto, ao andar, e o enorme chapéu de veludo amarelo-claro, de copa baixa balançava, agitando as penas de avestruz cor de castanha, verdadeiras. Deixava-se conduzir um tanto inconscientemente, estendendo o rosto branco, fingindo não ver ninguém. Rica, trajava-se em veludo de seda flexível, de um tom amarelo desmaiado, com um ramo abundante de ciclamens. Os sapatos e as meias eram cor de café com leite, combinando com as plumas do chapéu. Com os cabelos fazendo-lhe peso, ela caminhava sem mover os quadris, de forma curiosa; dir-se-ia que a marcha independia da sua vontade. Naqueles lindos tons de amarelo e castanho-claro, Hermione causava forte impressão, embora macabra e pouco atraente. Os espectadores conservavam-se silenciosos à sua passagem, intrigados, inquietos, desejando rir sem, entretanto, se atreverem. Aquele rosto longo e branco, que ela erguia no ar, à maneira de Rossetti, parecia um tanto sonolento, como se na escuridão do cérebro se lhe enovelassem confusos pensamentos e ela não conseguisse jamais desembaraçar-se deles.
Úrsula fitava-a, fascinada. Conhecia-a vagamente. Era a mulher mais importante dos Midlands. O pai, proprietário no Derbyshire e baronete, pertencia à velha escola; a filha saíra à moderna, eivada de intelectualismo, em tão alto grau que lhe arrasava os nervos. Mostrava interesse apaixonado pelas reformas e toda ela se entregava, de alma e coração, aos problemas sociais. Convivendo mais com os homens, era o mundo masculino o que a atraía principalmente.
Ligara-se em intimidade espiritual com alguns deles, indivíduos de categoria mental. Úrsula conhecia, daquele meio, apenas Rupert Birkin, inspetor escolar do condado. Gudrun, porém, encontrara-se com outros em Londres. Como ia, com os artistas das suas relações, à casa de um e de outro, tivera já ocasião de conhecer pessoas de reputação e de crédito. Vira Hermione por duas vezes, mas entre elas não se estabelecera grande cordialidade. E achava engraçado tornar a encontrá-la nos Midlands, onde a respectiva situação social era tão diversa, depois de terem estado face a face, em pé de igualdade, em casa de vários amigos, na cidade. Gudrun fizera certo furor naqueles meios e relacionara-se com alguns aristocratas audaciosos que tomavam contato com as artes.
Hermione tinha consciência de se vestir bem; sentia-se igual, se não superior a qualquer outra mulher que por acaso aparecesse em Willey Green e sabia que era bem recebida no mundo ilustrado e literário. Podia-se considerar uma Kulturtrager - Portador de cultura - nota da tradutora) excelente médium para a troca de ideias. Ombreava com tudo o que havia de mais elevado, quer na sociedade, quer na vida do espírito ou da ação, e ate da arte, dando-se familiarmente com os mais avançados nesses setores. Ninguém poderia amesquinhá-la ou divertir-se à sua custa, pois Hermione contava-se no número dos melhores; os que lhe fizessem oposição social estariam muito abaixo dela, tanto do ponto de vista social como da situação econômica e ainda no domínio do pensamento e da inteligência. Desta forma tornava-se invulnerável. Toda a vida ambicionara sê-lo - mulher inatacável, acima das investidas do mundo e dos seus preconceitos.
Contudo, a alma continuava torturada e sem defesa. Mesmo ali, a caminho da igreja, persuadida como estava de que era um ser superior à crítica do vulgo, sabedora como estava de que a sua aparência não podia ser mais perfeita e apurada, de acordo com o último figurino, Hermione sofria torturas, apesar da confiança e do orgulho natural; não vencia a sensação de estar exposta às feridas do sarcasmo e do despeito. Compreendia que tinha pontos fracos, que sempre houvera uma fenda secreta na armadura que a revestia, sem que, todavia soubesse em que consistia: talvez falta de uma personalidade mais forte; escasseava-lhe a naturalidade, existia nela um vácuo terrível, necessidade, deficiência, fosse lá o que fosse.
Precisava de alguém que preenchesse aquela lacuna, que a preenchesse para sempre; suspirava por Rupert Birkin. Quando este estava presente, ela sentia-se completa. Fora disso, era como se pisasse em areia movediça, como se a tivessem colocado em cima de um abismo, apesar de toda a sua vaidade e de toda a sua arrogância; qualquer criada de temperamento positivo, sem papas na língua, seria capaz de a desnortear pela mais leve alusão trocista ou desdenhosa. E, constantemente, aquela mulher apreensiva e torturada acumulava em sua defesa novos conhecimentos estéticos, cultura, opiniões e obras desinteressadas. Mas nada disto conseguia ocultar o terrível vazio da sua insuficiência.
Se ao menos Birkin quisesse formar com ela uma união estreita e permanente, sentir-se-ia sossegada para o resto da viagem da vida - tão difícil! Só ele a poderia tornar completa e triunfante, superior ate aos próprios anjos do céu. Ah! Se Birkin quisesse! Mas o receio e a dúvida torturavam-na. Hermione procurava fazer-se bonita, esforçando-se ao máximo para atingir aquele grau de beleza e superioridade que talvez o convencesse. E sempre, sempre, a mesma deficiência!
Mas a verdade é que ele era perverso: bania-a de si, e quanto mais ela tentava atraí-lo, mais ele a escorraçava... Eram amantes há tantos anos! Como tudo se tornava enfadonho, doloroso! Começava a sentir-se tão fatigada! Mas ainda tinha confiança em si própria; sabia que ele pretendia descartar-se, que tentava romper de forma definitiva para ficar livre. Hermione, porém, queria possuir força para o reter, acreditava em sua ciência consumada. A cultura de Birkin era importante; ela, contudo, considerava-se a pedra de toque da verdade, o centro da vida dele. O que lhe fazia falta era uma associação permanente com o amante.
A aliança com Hermione Roddice, que para ele também era da maior importância, era negada por Birkin, com a perversidade de uma criança voluntariosa. E com obstinação infantil, ansiava por quebrar o laço que os unia.
Como amigo do noivo, também ele devia comparecer à cerimônia. Naturalmente já estaria dentro do templo esperando e a veria entrar. Ao atravessar a porta Hermione estremeceu de desejo, de nervosa apreensão. Sim, ele devia estar lá e, com certeza, veria como ela estava bem com aquele vestido e compreenderia que se fazia bela para ele. Compenetrar-se-ia disso, teria de reconhecer como fora feita para ele, e que ela, a primeira, merecia o primeiro lugar. Rupert acabaria por aceitar o seu destino - tão favorável - sem a renegar jamais.
Com essa esperança que a fatigava, Hermione entrou na igreja e procurou-o lentamente, voltando o rosto em todas as direções. O corpo esbelto agitava-se e tremia numa ligeira convulsão. Como padrinho do casamento, era natural que ele estivesse ao lado do altar. Tornou a lançar a vista, vagamente, numa demora que implicava a certeza de o ver.
Contudo, Birkin não estava. Hermione sentiu-se levada numa corrente tempestuosa, prestes a afogar-se. O desespero devastava-lhe a alma. Foi-se aproximando do altar em passos maquinais. Nunca sentira tamanha decepção. Sentia-se abandonada e só.
O noivo e o padrinho ainda não tinham chegado. Lá fora a desilusão era geral. Úrsula considerava-se quase responsável: não admitia que a noiva estivesse chegando e o noivo, não. Não era possível que aquele consórcio resultasse em fracasso. Não, não era possível.
Eis que chegava a carruagem da noiva adornada de fitas. Alegres, os cavalos corcoveavam em direção ao portal da igreja, e todos os seus movimentos denotavam regozijo, vivacidade, satisfação. A portinhola do carro abriu-se para deixar passar a própria graça florescente da manhã. Mas os observadores, postados na rua, murmuraram, como que desiludidos, quando o pai se apeou como uma sombra que escurecesse o dia. Era um homem grande, magro, alquebrado de preocupações, com uma barba negra salpicada de fios brancos. Desceu e ficou à espera, como que esquecido.
Surgiu então uma abundância de flores, depois aquela alvura de cetins e rendas, enquanto uma voz alegre perguntava:
- Como é que poderei sair?
Pela multidão atenta correu um frêmito de prazer. Todos se comprimiram para admirar a noiva, contemplando com deleite a loura cabeça curvada, os botões de flores e o pé delicado e branco que hesitava no estribo da carruagem. Qual floco de espuma, ela avançou e era como se uma onda se espraiasse, muito alva. Ao lado do pai, na sombra matinal das árvores, a jovem desdobrava ao mesmo tempo o véu e o riso.
- Estou pronta - disse ela.
Pousou a mão no braço dele, que estava preocupado e pálido e, sacudindo a roda do vestido, seguiu pelo extenso tapete vermelho. O pai, sem dizer uma só palavra, com a barba a dar-lhe uma aparência ainda mais séria, subiu os degraus rigidamente, como quem tem o espírito ausente; mas a graça risonha da noiva não se desvanecia.
E o noivo não chegava! Era quase intolerável. Úrsula, o coração opresso pela ansiedade, vigiava a colina que se erguia em frente. Seria fácil avistar no caminho íngreme qualquer pessoa que chegasse. Foi então que surgiu uma carruagem a toda brida. Devia ser a dele; era, sem dúvida. Úrsula voltou-se para a noiva e para os circunstantes e soltou uma exclamação, lá do seu posto de observação, como se quisesse preveni-los da sua descoberta. Mas foi um som inarticulado e inaudível e ela corou profundamente, perplexa entre a sua vontade de comunicar o que vira e a vergonha de o fazer.
O carro descia ruidosamente e aproximava-se cada vez mais. Houve um murmúrio entre o povo. A noiva, que atingia o alto da escadaria, voltou-se para saber qual a causa daquele rumor. Percebeu o tumulto dos espectadores e uma carruagem que parava. Ele, apeando-se, abriu caminho entre os cavalos e a multidão.
- Tibs! Tibs - gritou ela numa excitação repentina e jovial, agitando o ramo de flores e erguendo o busto à claridade do sol. O noivo, que não a ouvira, esforçava-se por avançar, com o chapéu na mão.
- Tibs! - repetiu a noiva, descendo o olhar até ele, que ergueu o seu, admirado e a descobriu perto do pai, lá no alto, parada. Surpreendido, sorriu, hesitou um momento e preparou-se para subir, a fim de juntar-se a ela.
- Ah! ah! ah! - fez a moça, num grito estranho, irrefletido; e partiu, em movimento instintivo para o interior da igreja, apressadamente, batendo nervosa com os sapatinhos brancos e fazendo oscilar e roçar o vestido alvo e flutuante. Ele como um galgo, foi-lhe ao encalço, saltando os degraus, deixando para trás o pai. Os músculos ágeis moviam-se-lhe como os de um animal que se lançasse sobre a vítima.
- Isso! Agarre-a! - gritaram as mulheres de fora, entusiasmadas com a cena.
A noiva, agitando as flores em torno de si, como flocos de espuma, tomava agora impulso para transpor a porta do templo. Ainda olhou para trás e, com uma exclamação vibrante e alegre de desafio, virou o corpo, equilibrou-se e desapareceu no interior da igreja. Nesse mesmo instante, o noivo inclinou-se para frente, sempre a correr, - e por sua vez, em perseguição da noiva, sumiu também da vista dos que se achavam embaixo.
As pessoas apinhadas à porta soltaram brados e exclamações. E Úrsula reparou mais uma vez no vulto parado e sombrio de Crich, esperando imóvel à entrada e olhando com ar inexpressivo aquela fuga para a igreja. Os noivos tinham desaparecido e o pai voltou-se para ver quem estava ali. Rupert Birkin adiantou-se para ele e foi fazer-lhe companhia.
- Iremos na cauda do cortejo - disse Birkin meio risonho.
- É verdade - concordou o outro, laconicamente. E os dois homens prosseguiram juntos o seu caminho.
Birkin, magro como Crich, tinha as faces pálidas e parecia doente. O rosto era estreito, mas bem modelado. Coxeava levemente, coisa de que mal tinha consciência; e, embora estivesse vestido a rigor para a cerimônia, mostrava, contudo certa incorreção inata que lhe dava uma aparência um tanto ridícula. De natureza inteligente e original, nunca se encontrava perfeitamente à vontade dentro das convenções sociais. Todavia procurava subordinar-se à maioria, imitando os outros naquele particular.
Afetava perfeita vulgaridade, absoluta semelhança ao resto do mundo. E fazia isso tão bem, adaptando-se ao modo de ser dos outros, pondo à vontade o seu interlocutor e cingindo-se às circunstâncias, que realizava com a maior naturalidade a acomodação que tinha em vista, o que, por momentos, lhe granjeava simpatias, desarmando os que pretendiam atacar-lhe as singularidades.
Caminhando ao lado de Crich, falava-lhe agora com desenvoltura e afabilidade, equilibrando-se o melhor possível como quem deslizasse em corda bamba; qualquer que fosse a situação, o seu desejo era mostrar-se à vontade.
- Lamento termos nos atrasado - explicou ele. - Não conseguíamos encontrar as abotoaduras e daí a demora. O senhor chegou na hora.
- Geralmente somos pontuais - respondeu Crich.
- E eu, em regra, chego tarde - continuou Birkin. - Hoje, porém se não fosse esse incidente, teria vindo a tempo. Foi pena.
Os dois homens desapareceram e então não houve mais nada a observar. Úrsula ficou pensando em Birkin; despertava-lhe a curiosidade, traía-a e, simultaneamente, causava-lhe certo nervosismo.
Gostaria de conhecê-lo mais de perto. Falara-lhe uma ou duas vezes, mas somente em razão da qualidade oficial de inspetor, de que ele se revestia. Parecia-lhe, no entanto, que Birkin mostrava sentir a existência entre eles, de qualquer afinidade, de certa compreensão tácita e natural, como de quem lê pelo mesmo livro. Não haviam dado, porém oportunidade de desenvolver essa camaradagem. Havia uma coisa que, ao mesmo tempo, a chamava para ele e a repelia: seria, da parte de Birkin, determinada hostilidade, uma reserva oculta, fria, inacessível.
Apesar disso desejaria conhecê-lo melhor.
- Que pensa de Rupert Birkin? - perguntou a Gudrun, com certa relutância. Não era muito do seu agrado discutir aquele assunto.
- Que penso de Rupert Birkin? - repetiu a outra. - Acho-o cativante, palavra de honra. O que não tolero nele é a sua maneira de tratar as pessoas, de tratar, por exemplo, qualquer imbecil com todas as demonstrações da maior consideração. Sentimo-nos atraiçoadas, nós outras.
- Por que será que ele faz isso? - perguntou Úrsula.
- Porque não tem senso crítico, pelo menos em relação às pessoas - respondeu Gudrun.
- É o que digo: trata qualquer boboca como você ou a mim, e é isso que considero insultuoso.
- Realmente, - assentiu Úrsula - temos que fazer distinções...
- Temos de fazê-las - repetiu a irmã. - Em todo o caso é criatura notável, sob outros aspectos: uma personalidade bem marcante. Mas não se pode confiar nele.
- Talvez - murmurou Úrsula, distraída. Sentia-se sempre obrigada a concordar com as opiniões de Gudrun, ainda que intimamente não as aceitasse.
Ficaram sentadas e em silêncio, à espera da saída do cortejo. Gudrun não tinha paciência de falar; preferia pensar em Gerald Crich e gostaria de saber se o sentimento tão forte que lhe havia despertado era, de fato, verdadeiro. Queria estar pronta para a experiência.
Na igreja prosseguiam as formalidades do casamento. Hermione Roddice não tirava o pensamento de Birkin. Estava junto dele e parecia atraída para aquele homem como que na confirmação de uma lei física; o seu gosto seria mesmo tocá-lo para ter a certeza de o ter perto de si. Entretanto conservou-se tranquila, atenta ao desenrolar das cerimônias.
Tinha sofrido tanto com a demora de Birkin que ainda não estava refeita da comoção. Era como uma doença, espécie de nevralgia e a ideia da ausência dele tornava-se bastante para despertar a dor. Havia-o esperado sob vaga tensão nervosa. Assim, de pé, com o olhar absorto, meditava, chegava a parecer espiritual, tinha qualquer coisa de angélico: esse aspecto provinha da sua tortura moral, e tornava-se tão pungente que Rupert Birkin se condoeu. Via-lhe a cabeça descaída e a face estática, embora em êxtase demoníaco. Sentindo que ele a contemplava, Hermione ergueu a cabeça e procurou fitá-lo nos olhos; os dela, castanhos e formosos, cintilavam como a dirigir-lhe uma súplica luminosa. Ele, porém, evitou o encontro e ela deixou cair o rosto aflito e envergonhado. O tormento continuou a roer-lhe o coração. Birkin mostrava também o mesmo enleio e alguma aversão por aquela mulher, pois não queria sentir aquele olhar nem desejava receber-lhe a flama ardente da gratidão.
Os noivos estavam casados. Os convivas dirigiram-se para a sacristia. Hermione aproximou-se involuntariamente de Birkin, ansiosa por um contato. Ele não se esquivou.
O pai de Úrsula e Gudrun tocava órgão e as filhas ouviam-no de fora. Era a marcha nupcial e o músico devia executá-la desvanecido. Finalmente, o novo par saiu da igreja ao som dos sinos que faziam vibrar o ar. Úrsula meditava, pensando se as árvores e as flores perceberiam aquela vibração e como reagiriam àquele estranho movimento atmosférico. A noiva vinha, muito reservada, pelo braço do noivo que, de olhos ao alto, mirava o céu, fechando-os e abrindo-os inconscientemente, como que alheio a tudo o mais. Tinha qualquer coisa de cômico, assim a pestanejar e a afetar naturalidade, quando, no fundo, o enervava o fato de ser obrigado a defrontar-se com a multidão. Era bem um oficial de marinha, viril, talhado para os deveres do cargo.
Birkin surgiu ao lado de Hermione. O aspecto dela era de triunfo e arrebatamento, como um anjo decaído e a seguir reintegrado, mas ainda com alguns resíduos diabólicos, agora que Birkin a trazia pelo braço. Ele, porém, não denunciava nada na expressão apática; deixava-se levar pela mulher, como se isso fosse o seu destino, sem opor resistência.
Gerald Crich passou também, belo, resplandecente, saudável cheio de energias concentradas. Conservava-se ereto, íntegro e uma força secreta parecia emanar da sua aparência amável e quase satisfeita. Gudrun levantou-se bruscamente e foi andando. Não conseguira suportar aquilo. Queria estar só, compenetrar-se melhor daquela estranha e violenta inoculação que lhe havia transformado a própria substância do sangue.


Capítulo II
Shortlands
Os Brangwens regressaram a Beldover, e os convidados do casamento seguiram para Shortlands, onde ficava a residência dos Criches. Tratava-se de uma velha casa baixa, comprida, espécie de solar rural, que se espraiava no cume de uma colina, precisamente na parte de trás daquele estreito lago de Willey Water. De Shortlands descobria-se uma campina em declive, com ares de parque (em virtude de suas árvores grandes e solitárias, plantadas aqui e ali), e ainda as águas do lago e o outeiro arborizado, que tinha a ventura de esconder a região mineira situada para além, sem, no entanto ocultar de todo a fumaça que subia de lá. Contudo, o panorama era bucólico e pitoresco, o mais plácido do mundo, e a propriedade emitia um encanto muito particular.
A família e os convidados enchiam-na agora. O pai, valetudinário como era, retirara-se para descansar. Gerald fazia as honras da casa e postara-se na entrada, afável e acolhedor, recebendo os homens. Parecia achar graça no desempenho das suas funções, sorrindo, mostrando-se da maior hospitalidade.
As senhoras divagavam um pouco, acompanhadas pelas filhas dos Criches, já todas casadas. A cada momento se ouvia a voz de uma delas dizendo: "Helen, venha cá um momento; Marjorice, preciso de você; sou toda ouvidos, Senhora Witham..." Sentia-se o rumor dos vestidos de seda, divisavam-se criaturas elegantemente vestidas, via-se uma criança atravessar o vestíbulo, em passo de dança, para retroceder da mesma maneira, ou alguma criada apressada.
Entretanto, os homens distribuíam-se em grupinhos, sossegadamente, conversando e fumando, fingindo não dar importância à agitação do mundo feminino. Mas não lhes seria possível falar e fazer-se ouvir realmente, por causa daquela confusão provocada pelos risos cristalinos das senhoras pelo murmúrio das suas vozes constantes; de maneira que se puseram à espera, um tanto contrafeitos, com a conversa suspensa e quase aborrecidos. Mas Gerald continuava jovial e feliz, inconsciente da sua inatividade e apenas preocupado com ser a própria alma da reunião.
De repente, a Senhora Crich apareceu sem ninguém perceber e olhou em volta, esticando o rosto pálido e forte. Trazia ainda o chapéu na cabeça e vestia o largo casaco de seda azul.
- Que aconteceu, mamãe? - perguntou Gerald.
- Nada... nada - respondeu ela vagamente. E foi direto a Birkin, que estava falando com um cunhado do dono da casa.
- Como está, senhor Birkin? - murmurou num tom de voz apagado, que se diria quase indiferente. Ao mesmo tempo lhe estendia a mão.
- Oh! minha senhora! - exclamou o interpelado. - Ainda não me tinha sido possível chegar ate junto da senhora.
- Metade das pessoas que estão aqui não são minhas conhecidas - disse ela na mesma voz velada. O genro afastara-se para atender a alguém.
- Não gosta dos desconhecidos? - perguntou Birkin, sorrindo. - Quanto a mim, não percebo a razão de termos de nos ocupar de certas pessoas só porque estão na mesma sala em que estamos. Por que preciso saber que estão presentes?
- Sim, é verdade, por quê? - repetiu a Senhora Crich no tom do costume. - Mas o fato é que estão presentes. Geralmente não conheço as pessoas que encontro em casa. As meninas apresentam-me: "Mamãe, este é o senhor fulano". Eu fico na mesma. De que me adianta saber que aquele é o senhor fulano? Que tenho eu a ver com isso?
Birkin fitou-a bem nos olhos, que eram azuis e sonolentos. Não conseguiu ler neles. E disse para si mesmo, com certa petulância: "Sou eu a guarda-costas do meu irmão?"
Lembrou-se então de que fora aquele o grito de Caim. E Gerald, se a alguém se assemelhasse, seria precisamente a este. Não que fosse exatamente um Caim, se bem que tivesse matado o irmão. A coisa sucedera como puro acidente e as consequências não podiam pesar sobre ele, embora, daquele modo, houvesse destruído uma existência: Gerald, em pequeno, matara, por acaso, um irmãozinho. E depois, que tem isso? Para que lançar um ferrete e a maldição sobre a criatura que causou o acidente? Pode um homem vir ao mundo por acaso, e por acaso morrer. Ou isto não é verdade? A vida de qualquer pessoa está sujeita a meras eventualidades; só a raça, o gênero, a espécie, gozam de leis universais. Ou não será assim, nem haverá mesmo puros acidentes? Existirá significado universal para tudo o que acontece? Será isto? Birkin, meditando ali, em pé, esquecera-se da Senhora Crich, como esta se esquecera dele.
Não lhe parecia admissível que qualquer coisa existisse por mero acaso. Tudo se equilibra no mundo, no mais profundo dos sentidos.
Acabava de repetir mentalmente esta sentença quando uma das Criches se aproximou, dizendo à mãe:
- Não quer tirar o chapéu? Daqui a pouco iremos para a mesa, e isso seria contra o protocolo, não acha? - Enfiou o braço no da mãe e afastaram-se as duas.
Birkin foi conversar com o cavalheiro que se encontrava mais próximo.
A sineta anunciou o almoço. Os homens levantaram a cabeça, mas ninguém se dirigiu para a sala de jantar. As senhoras da família pareciam não compreender o que aquele som significava. Passaram-se cinco minutos. O criado mais velho, Crowter, apareceu no limiar da porta, indignado, e olhou para Gerald com ar suplicante; e este, pegando em um búzio que se encontrava em cima de uma prateleira e sem se preocupar com o público, soprou com quanta força tinha. Produziu-se um ruído estranho, que despertou toda a gente e fez palpitar os corações. A intimação surtiu um efeito quase mágico. Todos acorreram ao sinal, dirigindo-se rapidamente para a mesa.
Gerald esperou um momento que a irmã fizesse as honras da casa, pois sabia que a mãe desdenharia das suas obrigações. Mas a irmã limitou-se a ir ocupar o seu lugar. Então o rapaz indicou o de cada um dos convidados, numa atitude levemente ditatorial.
Houve uns minutos de calma, enquanto as pessoas olhavam para os hors-d'oeuvres que estavam sendo servidos em torno da mesa. No meio do silêncio que se fazia, uma menina de treze ou catorze anos, de cabelos soltos sobre os ombros, declarou em voz muito tranquila:
- Gerald, você esqueceu-se de papai quando fez aquele barulho espantoso?
- Você acha? - perguntou o interpelado. Depois, voltando-se para a assistência: - Meu pai foi repousar. Não se sentia muito bem.
- É verdade, como vai ele? - perguntou uma das filhas casadas, ao mesmo tempo em que observava o enorme bolo de noiva que se erguia sobre a mesa, inundando com suas flores artificiais.
- Não se queixa de nenhuma dor, apenas de fadiga - replicou Winifred, que era a pequena de cabelos ate os ombros.
Serviram vinho e toda a gente falou em voz alta. Na extremidade da mesa via-se a mãe, com a sua cabeleira desmanchada. Ao lado dela estava Birkin. Às vezes, olhando sobranceira para as faces alinhadas dos convivas, ela fitava-os sem cerimônia, com o rosto estendido para frente; e dizia, em voz baixa ao vizinho:
- Quem é aquele rapaz?
- Não sei - respondia Birkin, discretamente.
- Já o teria visto alguma vez? - insistia ela.
- Não faço ideia. Quanto a mim, tenho certeza de que nunca o vi.
A Senhora Crich estava satisfeita. Semicerrava os olhos de cansaço e parecia uma rainha repousando. A paz desenhava-se-lhe no rosto. Depois sobressaltou-se, sorriu um sorriso convencional e, durante instantes, mostrou-se dona de casa, atenciosa. Chegou ate a curvar-se complacente, como se todos se lhe afigurassem pessoas simpáticas e estimadas; mas, de repente, a sombra recaiu, um súbito olhar de rapinante lhe desceu de sob as pálpebras, como uma criatura sinistra que se visse aflita e detestasse a todos.
- Mamãe, - disse Diana, uma linda garota um pouco mais velha que Winifred - posso tomar vinho, não posso?
- Sim, pode - aquiesceu a mãe, maquinalmente; o assunto não a interessava. Diana fez sinal ao criado para que lhe enchesse o copo.
- Gerald não seria capaz de me proibir - disse a pequena, falando a todos de uma maneira geral e bebendo o vinho em ar de desafio.
- É claro, Di - replicou o irmão.
Reinava na casa uma liberdade anormal, que chegava às raias da anarquia. Mais do que liberdade, dir-se-ia antes resistência à autoridade familiar. Gerald conseguia manter certa autoridade, em consequência da sua personalidade e não pela situação de mais velho. A voz dele era dominadora, embora afável e isso impunha-o aos outros, que eram todos mais novos.
Hermione iniciara uma discussão com o recém-casado acerca de nacionalidade.
- Não - contestava ela - para mim o apelo ao patriotismo é um erro. Assemelha-se a uma casa de negócios que rivaliza com outra casa de negócios.
- Mas diz essas coisas a sério? - perguntou Gerald, que tinha verdadeira paixão pelas discussões. - Não pode comparar a raça com uma firma comercial. A nacionalidade, no meu entender, confunde-se com a raça. Esse é seu fim.
Houve um intervalo na conversa. Gerald e Hermione mantinham recíproca hostilidade, constante, mas delicada.
- Pensa então que raça e nacionalidade são a mesma coisa? - inquiriu ela com ar de meditação e parecendo indecisa.
Birkin percebeu que Hermione esperava a intervenção dele. Em vista disso, começou por declarar:
- Creio que Gerald tem razão. A raça é um elemento essencial da nacionalidade, pelo menos na Europa.
Hermione ouviu em silêncio, como que para deixar arrefecer aquela sentença. A seguir, em tom autoritário e insólito, contestou:
- Seja; mas, assim mesmo, será o apelo patriótico dirigido ao instinto racial ou, o contrário, dirigido ao instinto de propriedade, ao sentimento comercial? Não será isto o que nós tomamos por nacionalidade?
- É possível - obtemperou Birkin, que achava aquela discussão inoportuna e deslocada.
Geraldo, porém, seguira na pista dos argumentos.
- A raça pode ter o seu aspecto comercial. E, de fato, deve tê-lo. É como a família. Necessita-se de fazer provisões. E para isso, precisa-se de lutar contra outras famílias, contra outras nações. Não vejo motivo para que não seja assim.
Hermione ficou calada por alguns segundos, em silêncio frio e altivo. Depois, respondeu:
- Sei disso, e acho que não é bom provocar esse espírito de rivalidade. Desorganiza o sangue. E o sangue corrompido vai-se acumulando.
- Mas quer acabar inteiramente com o espírito de emulação?
- interveio Gerald. - É um dos incentivos necessários à produção e ao desenvolvimento.
- De acordo - atalhou Hermione, no desejo de o espicaçar.
- Mas parece-me que podemos prescindir dele.
- Devo explicar - acudiu Birkin - que detesto esse tal espírito de emulação.
Hermione partiu com os dentes um pedaço de pão e tirou-o da boca, devagar, com os dedos, num movimento vagamente irônico! Voltou-se para Birkin:
- Você detesta isso, é verdade - confirmou satisfeita, em tom persuasivo.
- Detesto - repetiu ele.
- Muito bem - murmurou Hermione, contente consigo mesma.
- Mas - insistiu Gerald - se você não impede que um indivíduo se aproprie dos meios de existência do próximo, por que há de negar a uma nação o direito de fazer o mesmo a outra nação?
Houve um murmúrio lento e prolongado. Hermione, com indiferença lacônica, observou:
- Nem sempre se trata da questão de propriedade, creio eu; tudo se resume num problema de subsistência.
Gerald indignou-se com aquela dedução de materialismo tão vulgar.
- Sim, mais ou menos - retorquiu. - Se eu me aproximo de um homem e lhe arranco o chapéu da cabeça, esse chapéu se transforma em símbolo da liberdade individual. E quando o homem vier brigar comigo para ver se o recupera, combate pela própria liberdade.
Hermione parecia confusa.
- Ora! - disse ela, irritada. - Esse processo de discutir com exemplos imaginários não é sério, em minha opinião. Ninguém virá arrancar-me o chapéu.
- Apenas porque a lei o proíbe - respondeu Gerald.
- Não é só por isso. Noventa e nove pessoas em cada cem desinteressam-se por completo do meu chapéu - atalhou Birkin.
- Questão de pontos de vista - replicou Gerald.
- Ou de chapéus - interveio o noivo, galhofeiro.
- E se realmente me querem tirar o chapéu, tal qual ele é, - replicou Birkin - tenho ainda a faculdade de decidir o que representa para mim maior perda, se o chapéu, se a liberdade, visto que sou homem livre e desapaixonado. Se for compelido a lutar, prefiro perder a última. A questão resume-se em saber o que tem mais valor para mim, se o chapéu, se a liberdade.
- Tem razão - disse Hermione, olhando Birkin de modo estranho.
- Mas deixaria alguém aproximar-se da senhora e arrancar-lhe o chapéu da cabeça? - perguntou o noivo a Hermione.
Então, aquela mulher alta e rígida voltou lentamente o rosto para o seu interlocutor, com ar de sonolência:
- Não - respondeu ela, em voz baixa e cruel, como se tentasse abafar o riso. - Não consentiria que ninguém me fizesse tal coisa.
- E de que forma se defenderia? - inquiriu Gerald.
- Não sei - tornou Hermione, vagarosamente. - É provável que matasse o agressor.
Sentia-se-lhe, na voz, uma intenção trocista, nas suas maneiras, uma ironia persuasiva e perigosa.
- Sem dúvida - disse Gerald - compreendo o que Rupert quer dizer. Trata-se de averiguar o que é mais importante para ele, se o chapéu, se a paz de espírito.
- A paz do corpo - esclareceu Birkin.
- Seja, se prefere - replicou Gerald. - Mas, tratando-se de uma nação, como se há de decidir?
- Deus me livre de tal - brincou Birkin.
- Certo, mas admitamos que fosse necessário resolver - insistiu Gerald Crich.
- É a mesma coisa. A coroa nacional pode-se comparar a um chapéu velho de que o ambicioso lança mão.
- Aceita então que o símbolo da raça ou da nação seja um chapéu velho?
- Quanto a mim, tenho boas razões para crer.
- Eu não - volveu Gerald.
- Também não sou dessa opinião, Rupert - interveio Hermione.
- Está bem - aquiesceu Birkin.
- Então viva o velho chapéu nacional! - proclamou Gerald, muito divertido.
- Parece que está maluco - gritou Diana, a impertinente da irmã, que andava por volta dos quinze anos.
- Basta de chapéus velhos! - exclamou Laura Crich. - Mudemos de assunto, Gerald. Passemos agora aos brindes. Brindes! Tragam copos. E discursos, façam discursos!
Birkin olhava para o copo que lhe enchiam de champanha e pensava ao mesmo tempo na morte da raça e da nação. As bolhas vieram desfazer-se na superfície, o criado afastou-se e Rupert Birkin, experimentando súbita sede ao ver o vinho espumante, levou a taça à boca e esvaziou-a. Houve certo retraimento na assistência e Birkin caiu em si. Sentia-se constrangido.
"Teria eu feito isto por acaso ou de propósito?" - disse ele com os seus botões. E decidiu - para recorrer a uma expressão banal - que fora "expressamente por acaso". Procurou com a vista o criado, que se aproximou silencioso, com ar de reprovação. Birkin convenceu-se de que detestava os brindes e os copeiros e as reuniões e a humanidade inteira, sob todos os aspectos. Depois levantou-se para usar da palavra. Estava, entretanto, aborrecido.
Por fim, a refeição terminou. Alguns dos homens foram espairecer no jardim. Havia um campo gramado, canteiros de flores e lá no extremo, um recinto gradeado que todos chamavam de parque. A vista era agradável; a estrada principal, ladeada de árvores, continuava ate o lago. Na manhã primaveril, as águas cintilavam e o bosque fronteiro rejuvenescia em tons de púrpura. As vacas vinham ate as cercas e afocinhavam, com as largas ventas resfolegantes, os passantes dispersos, à procura talvez de um acepipe.
Birkin debruçou-se na paliçada. Uma das vacas umedeceu-lhe a mão com o seu hálito quente.
- Bonitos animais, bem bonitos - disse Marshall, um dos cunhados. - Dão o melhor leite que há.
- É verdade - confirmou Birkin.
- Olá, minha linda! - continuou Marshall, numa estranha voz de falsete. O outro fazia esforços desesperados para não se arrebentar de rir.
- Quem venceu a corrida? - perguntou ele ao noivo, para disfarçar a hilaridade.
O interpelado retirou o charuto da boca.
- Que corrida? - exclamou. Depois, sorriu amarelo. Não se atrevia a falar daquela fuga da noiva e respectiva perseguição, à porta da igreja. - Chegamos ao mesmo tempo. Em todo o caso, foi ela quem tocou primeiro com a mão, embora eu lhe houvesse posto a minha sobre o ombro.
- De que estão falando? - inquiriu Gerald.
Birkin relatou-lhe a correria do noivo atrás da noiva.
- Hum! - comentou Gerald. - Mas qual foi a razão da demora?
- Lupton insistia em discutir a imortalidade da alma e, além disso, não apareciam as abotoaduras.
- Jesus! - gritou Marshall. - A imortalidade da alma no dia do casamento! Vocês não tinham nada melhor com que se ocupar?
- Que mal faz isso? - replicou o noivo. Era marinheiro, usava o rosto bem barbeado e corava com facilidade.
- Dá a impressão de que você ia ser executado, em vez de vir para um casamento. A imortalidade da alma - repetiu o cunhado, em tom enfático, irresistível, mas que soou como uma coisa desafinada.
- E a que conclusão chegaram? - perguntou Gerald, apurando o ouvido à espera de uma discussão metafísica.
- Hoje não tem necessidade da alma, meu caro amigo - declarou Marshall. - Atravancar-lhe-ia o caminho.
- Pelo amor de Deus, Marshall, pare com isso! - bradou Gerald, tomado de súbita impaciência.
- É isso mesmo o que eu quero - respondeu o cunhado, aborrecido. - Estou cheio dos seus sermões e da sua história de almas.
Disse isto e retirou-se, zangado. Gerald acompanhou-o com os olhos, sentindo também uma certa irritação, que foi gradualmente abrandando, à medida que se perdia ao longe aquele vulto saudável e robusto. Depois voltou-se bruscamente para o noivo:
- Há ainda uma coisa, Lupton. Laura não introduziu um imbecil na família, como fez Lottie.
- Reconforte-se com essa ideia - acudiu Birkin, zombeteiro.
- Não dei por isso - redarguiu o noivo, também risonho.
- E a propósito da tal corrida - tornou Gerald. - Quem foi que deu início?
- Nós estávamos atrasados. Laura se achava no alto da escadaria da igreja quando parou o carro que nos transportava. A noiva descobriu Lupton, que corria para ela, e fugiu. Mas por que ficou tão furioso? Por acaso isso colide com o sentimento da honra familiar?
- Sim, Rupert. Se se tem de fazer uma coisa, façamo-la como deve ser. Se não, mais vale abster-se.
- Belo aforismo, Gerald.
- Não é da mesma opinião?
- Em absoluto. Mas não tenho paciência de ouvi-lo proferindo sentenças.
- Com os diabos, Rupert! Você deveria estar como peixe dentro d'água.
- Não. Por meu gosto acabaria com os aforismos, mas você não se cansa de os impingir.
Gerald sorriu contrafeito. Depois, desfranziu a testa e pensou em outra coisa.
- Não acredita, de maneira nenhuma, que se tenha uma norma de conduta? - perguntou ele a Birkin, com ar de censura.
- Uma norma, não. Detesto tal coisa. Mas é necessária para a gente vulgar. Quem for diferente, que fique como é e faça o que lhe aprouver.
- Que pretende dizer com isso? É um aforismo ou um lugar comum?
- Quero dizer que cada um deve fazer o que lhe apetece. Acho que foi muito natural da parte de Laura fugir de Lupton e entrar pela igreja adentro. Chego a achar uma obra-prima de procedimento. Uma das coisas mais difíceis deste mundo é o ato de espontaneidade; é a única coisa que se pode executar com distinção, uma vez que estejamos aptos a fazê-la.
- Não espera que o tome a sério, hein, Rupert?
- Pelo contrário, você é uma das poucas pessoas de quem o podia esperar.
- Sinto muito, mas (e nisto pelo menos) tenho de o desiludir. Segundo o seu modo de ver, cada qual deveria proceder como lhe desse na veneta?
- Sempre pensei assim. Preferia que os homens gostassem de fazer o que lhes parece mais pessoal, que pudessem agir com originalidade em vez de estarem repetindo os atos de toda a gente.
- Pois eu - retorquiu Gerald, de mau humor - não gostaria de viver em um mundo em que as pessoas agissem espontânea e individualmente, conforme você se exprime. No fim de cinco minutos, estariam todos nas mãos uns dos outros.
- Daí o seu desejo de colocar todas sob disciplina! - observou Birkin.
- Como tirou essa conclusão? - indagou Gerald, mais irritado ainda.
- Ninguém esmurra o semelhante a não ser que este mostre vontade de ser esmurrado. Eis a pura verdade. É preciso duas pessoas para haver um crime: o assassino e a vítima. A vítima é uma criatura assassinável; e quem apresenta esta qualidade, tem profundo, embora oculto, o desejo de ser assassinado.
- Você às vezes diz coisas insensatas. Na realidade, nenhum de nós pretende levar uma surra, nem ninguém está disposto a nos bater, assim, sem mais nem menos.
- É uma maneira muito esquisita de ver as coisas, Gerald; não admira que você tenha medo de si mesmo e das suas próprias desventuras.
- O quê? Tenho medo de mim mesmo? Pois saiba que não me considero também desventurado.
- Dir-se-ia nutrir o desejo secreto de ter a cabeça rachada e imagina que qualquer homem traz um cacete para lhe descarregar em cima.
- Por que motivo julga isso, Rupert?
- Dedução - sentenciou este.
Houve entre os dois homens um silêncio de estranha inimizade, porém muito próximo da afeição. Era sempre assim entre eles dois; a conversa arrastava-os a uma intimidade terrível, perigosa, que compartilhava da estima e do ódio. Separavam-se depois com indiferença aparente, como se se tratasse apenas de uma ocorrência trivial, e assim a consideravam, no nível de simples aventura. Mas os respectivos corações tinham fome um do outro. Consumiam-se ambos, interiormente, sem o darem a entender. As suas relações procuravam apresentá-las como amizade fortuita, livre, desembaraçada; e recusavam-se a confessar qualquer hostilidade, o que seria pouco humano e pouco natural. Não acreditavam, absolutamente, na existência de amigos íntimos e essa descrença impedia o desenvolvimento de uma forte estima, até aí reprimida.


Capítulo III
Na aula
As lições daquele dia estavam terminando. A última aula decorria tranquila, sossegada. Era de rudimentos de botânica. As carteiras continuavam cheias de flores - de aveleira e de salgueiro - que as crianças tinham estado a desenhar. O céu escurecera a pouco e pouco, com o esmorecer do dia. Já não havia luz bastante para o trabalho. Úrsula ficara de pé, defronte dos alunos, fazendo-lhes perguntas para os instruir melhor na estrutura e no papel desempenhado por aquelas flores.
Pela janela da parte ocidental da sala entrava um raio de sol. Pesado, cor de cobre, punha tons de ouro avermelhado na cabeça das crianças e decorava a parede oposta com uma claridade opulenta. Úrsula, porém, mal tinha consciência daquilo. Estava ocupada, o dia chegava ao fim, a tarefa prosseguia como o fluxo normal da maré, prestes a baixar.
O dia transcorrera como tantos outros, numa atividade um tanto hipnótica. Agora, apressava-se ela para terminar o que tinha entre as mãos. Fazia perguntas aos meninos para que, ao soar a sineta, eles já tivessem apreendido tudo, e conservava-se de pé, na sombra da sala, com os cachos de flores entre os dedos. Na sua paixão de mestra, curvava-se, absorta, sobre as crianças.
A porta abriu-se; Úrsula ouviu o ruído, mas não se moveu do seu lugar. De repente, porém, estremeceu. Viu, no clarão vermelho do sol, junto de si, um rosto de homem. Brilhava como fogo, observando-a, esperando que ela desse pela sua presença. Úrsula pensou que ia desmaiar. O medo oculto, subconsciente, veio à superfície, irrompendo com angústia.
- Assustei-a? - perguntou Rupert Birkin, apertando-lhe a mão - Julguei que me tivesse visto entrar.
- Não - balbuciou a professora, incapaz de dizer mais qualquer coisa. Ele sorriu, desculpando-se, e ela perguntava a si mesma por que motivo estaria o outro tão contente.
- Está escuro - observou o homem. - Posso acender a luz?
Dirigiu-se para um canto e apertou o interruptor. A sala de aula, depois da suave magia da sombra que a enchia ainda há pouco, surgiu com aspecto estranho, destacado e rígido. Birkin aproximou-se e olhou para Úrsula com curiosidade. Os olhos dela estavam muito abertos, como que admirados e os lábios tremiam-lhe levemente. Parecia uma pessoa acordada em sobressalto. No rosto, como delicada luz de alvorecer, espelhava-se uma claridade tênue. Rupert fitou-a com prazer novo para si, sentindo-se de coração alegre e irresponsável.
- É o tema da lição? - inquiriu, pegando algumas flores de aveleira dispostas em uma das carteiras, à sua frente. - Já estão assim abertas? Este ano ainda não reparei.
Tornou a contemplar, absorto, o ramo que tinha na mão.
- As vermelhas também servem - continuou, observando os reflexos rubros que produziam os carpelos.
Encaminhou-se ao longo das carteiras, enquanto a professora observava o que ele iria fazer. Nos movimentos do inspetor havia uma grande tranquilidade, capaz de sossegar as batidas do coração de Úrsula Brangwen. Julgar-se-ia que ela, na imobilidade do seu silencio, o via girar em um mundo diferente e fechado e a presença de Birkin era tão calma que se notava uma espécie de vácuo no ambiente que os envolvia.
De súbito o homem ergueu a cabeça, fitou-a e a moça estremeceu com o sopro da voz que lhe dizia:
- Dê-lhes lápis, sim? Gostaria que indicassem o gineceu em vermelho e o androceu em amarelo. Marca-se simplesmente a cores sem mais nada, apenas amarelo e vermelho. É apenas esse detalhe que precisamos destacar.
- Não tenho lápis de cores.
- Deve haver em qualquer parte, vermelhos e amarelos, não precisamos de outras.
Úrsula mandou um menino procurá-los.
- São capazes de sujar os livros - disse ela ao inspetor corando intensamente.
- Não importa. Deve pôr esses fatos em evidência. É sobre isso que convém chamar a atenção e não sobre as impressões subjetivas. Que fatos são esses, afinal? O pequenino estigma pontiagudo e vermelho da flor feminina e a antera amarela máscula oscilante, e o pólen dourado que voa de um para o outro. Faça um esboço disso, como uma criança que desenhasse uma face com os olhos, nariz, boca e dentes, assim... - E Rupert traçou uma cara no quadro, com o giz.
Naquele momento outro rosto apareceu atrás das vidraças da entrada: o de Hermione Roddice.
Birkin dirigiu-se para lá e abriu a porta.
- Vi o seu carro aqui - disse ela. - Importa-se que eu venha busca-lo? Tive vontade de surpreendê-lo em pleno trabalho.
Olhou para ele durante muito tempo, satisfeita, com ar de familiaridade. Depois deixou escapar uma risadinha. Só então é que reparou em Úrsula, que tinha, como toda a classe, observado a cena entre os dois amantes.
- Como vai, Miss Brangwen? - disse Hermione com voz grave, musical, estranha, como se estivesse a troçar com a professora - Estou sendo importuna?
E aqueles olhos cinzentos, quase sardônicos, pousaram-se na outra, de forma inquisitorial.
- De maneira nenhuma - respondeu Úrsula.
- Tem certeza? - insistiu no mesmo tom frio e quase desabrido.
- É um prazer enorme - tornou a mestra, levemente irritada mas sorrindo; chegava a admirar a audácia de Hermione, tão familiar como se entre elas houvesse grande intimidade. Intimas como poderiam sê-lo?
Hermione não esperava outra resposta. Voltou-se para Birkin muito satisfeita:
- De que falavam? - E novamente cantou as palavras, de forma impertinente e lânguida.
- De flores! - informou Birkin.
- Ah! sim?! E o que diziam a esse respeito? - Falava sempre com ar de mofa, como se tudo aquilo não passasse de brincadeira. Animada pelo interesse que Birkin punha no assunto pegou uma das flores e segurou-a. A sua figura impunha-se estranhamente na sala, com aquela capa verde muito ampla, bordada de ouro fosco; a gola elevada e o forro da capa eram guarnecidos de peles escuras. Por baixo usava um vestido de fazenda lilás, também adornado de peles; o chapéu, de tecido escuro, ornamentado de verde e ouro. Hermione parecia alta e estranha; dir-se-ia descida de um quadro moderno, de composição audaciosa.
- Conhece os pequeninos ovários vermelhos destas flores que produzem o fruto? Já reparou nisso? - E fazendo estas perguntas, Birkin aproximou-se e apontou para o ramo que ela tinha na mão.
- Nunca reparei. Que é?
- Estas dão origem às sementes e aquelas, mais compridas, contém o pólen, destinado a fertilizar as primeiras.
- Ah, sim? Ah, sim? - repetia a visitante, olhando de mais perto.
- Destes pontinhos rubros nascem as avelãs, caso recebam o pólen dos longos estames.
- Lindas chamazinhas - murmurou Hermione para si mesma. E ficou alguns momentos a considerar os reflexos vermelhos do estigma.
- Tão bonita, não acha? Acho adorável. - Encostou-se a Birkin e designou, com o dedo branco e comprido, os filamentos vermelhos.
- Nunca reparara? - inquiriu o inspetor.
- Não, ate agora - confirmou Hermione.
- Agora não se esquecerá mais...
- Hei de observar sempre. Obrigada por me haver mostrado. São tão bonitas estas chamazinhas rubras...
Estava absorta, em êxtase profundo. Birkin e Úrsula esperavam, sem dizer nada. Aqueles pistilos vermelhos faziam-na mergulhar numa contemplação apaixonada e quase mística.
Terminara a lição. Os livros foram deixados de lado e os alunos saíram da sala. Hermione permanecia sentada, com o queixo apoiado na mão e o cotovelo fincado na mesa; os olhos, erguidos, não se fixavam em parte alguma. O inspetor fora ate a janela e, daquela sala brilhantemente iluminada, olhava para o exterior acinzentado e sombrio, onde a chuva caía silenciosa. Úrsula arrumava as suas coisas no armário.
Finalmente, Hermione levantou-se e foi até junto da outra.
- Sua irmã está agora em casa?
- Está - respondeu Úrsula.
- E sente-se contente por ter regressado a Beldover?
- Isso não.
- Fico admirada por vê-la suportar semelhante lugar. Quando estou nesta terra, faltam-me as forças para arrostar tamanha fealdade. Não querem vir visitar-me? Venha com sua irmã passar uns dias em Breadalby. Combinado?
- Agradeço-lhe muito.
- Escrever-lhe-ei então. Acha que sua irmã vai aceitar? Eu gostava tanto dela! Acho-a admirável. Possuo dois trabalhos dela, esculpidos em madeira. Já viu esses trabalhos?
- Não, nunca os vi.
- Parecem-me extraordinários... cintilantes de intuição...
- Ela faz esculturas curiosas - observou Úrsula.
- Inteiramente belas... cheias de paixão primitiva... Trabalha sempre em objetos minúsculos, que se podem fechar na mão, pássaros, animaizinhos... Prefere ver o mundo com as lentes do binóculo ao contrário. Por que será? Que lhe parece?
Hermione baixou para Úrsula aquele olhar demorado e perscrutador, que enervava a moça.
- Sim... - disse a primeira, depois de certo tempo. - É interessante. Dir-se-ia que as coisas pequenas, para ela, são mais sutis.
- Mas não o são, não é verdade? O rato não é mais sutil do que o leão.
Hermione olhou outra vez, lenta e persistentemente, como se seguisse algum dos seus próprios pensamentos, sem se preocupar com o que a outra dizia.
- Não sei - foi a sua resposta. - Rupert, Rupert - chamou com voz doce e cantante, atraindo-o para si. Birkin aproximou-se em silêncio. - Acha que as coisas pequenas são mais sutis do que as grandes? - perguntou-lhe, com aquele modo tão extravagante de rir, que parecia estar caçoando dele ao mesmo tempo em que o interrogava.
- Sei lá! - exclamou Rupert.
- Detesto sutilezas - disse Úrsula.
Hermione observou-a demoradamente.
- Detesta?
- Sempre as considerei um sinal de fraqueza - declarou a professora, pronta para lutar, como se o seu prestígio estivesse ameaçado.
Hermione Roddice não lhe deu atenção. O rosto, de repente, franziu-se, sob o peso de algum pensamento. Como se Úrsula não estivesse presente, dirigiu a palavra unicamente a Birkin:
- Pensa realmente, Rupert, que valha a pena? Acha que as crianças estão mais aptas a compreender as coisas?
No rosto dela passou a sombra de uma raiva silenciosa. De faces pálidas e encovadas, tinha o aspecto de um ser sobrenatural. Aquela mulher, com a sua pergunta séria e torturante, incomodava-o ao máximo.
- A compreensão vem delas mesmas, quer queiram, quer não.
- Mas acha aconselhável excitá-las, estimulá-las? Não seria preferível que continuassem ignorantes dos mistérios da botânica? Que vejam a vida em conjunto, sem essas discriminações, sem esses pormenores?
- Quanto a você, gostaria mais de saber ou de não saber que esses pontinhos vermelhos estão aí à espera do pólen? - perguntou ele asperamente. A voz tornara-se-lhe rude, desdenhosa e cruel.
Hermione ficou com o rosto levantado, no meio da sua abstração. Birkin calou-se, irritado.
- Não sei - disse ela finalmente, suave e hesitante. - Não sei.
- O saber é tudo para você, é a sua própria vida - recomeçou Birkin. Hermione contemplou-o demoradamente.
- Acha?
- Sim, toda a sua vida. Não possui senão isso: a ciência. Não há senão uma árvore e um fruto, em sua boca.
Ela guardou novo silêncio.
- Um só? - perguntou finalmente, com a mesma calma imperturbável. E depois, em tom de caprichosa curiosidade: - Que fruto, Rupert?
- A eterna maçã! - replicou o inspetor, exasperado e odiando já as suas próprias metáforas.
- Ah! - fez ela e lançou em volta um olhar de cansaço. Reinou novo silêncio, por alguns momentos. Então, reanimando-se num movimento violento, Hermione recapitulou, em voz cantante e indiferente.
- Não falémos de mim, Rupert. Pensa você que as crianças se tornam melhores, mais generosas, mais felizes, com a aquisição de tais conhecimentos? Crê sinceramente nisso? Não valeria mais deixá-las intactas, espontâneas? Deixá-las serem animais simples, naturais, instintivos ou outra coisa qualquer, em vez de lhes impor essa sabedoria, tornando-as inaptas à espontaneidade?
Os outros dois pensaram que ela havia concluído o seu discurso. Entretanto, com uma entonação estranha na voz, ela prosseguiu:
- Não seria melhor que elas fossem qualquer outra coisa e não seres que crescem inválidos... inválidos na alma, nos sentimentos... assim repelidos... recolhidos em si próprios... incapazes... - Hermione cerrava os punhos, como em um estado hipnótico, continuou, porém: - ... incapazes de ações livres, sempre circunspectos, sempre amedrontados de qualquer deliberação e nunca satisfeitos?
Julgaram outra vez que tinha acabado. Mas, quando Rupert ia falar, ela retomou a sua estranha dissertação.
- Jamais satisfeitos ou livres de embaraços, antes constantemente preocupados, sempre alertas. Não haverá outra educação melhor do que essa? Seria preferível que se conservassem animais, puros animais sem alma, a serem assim, a viverem nesse vácuo...
- Então julga que é a ciência que nos impede de viver e que nos faz sentir responsáveis? - perguntou ele, indignado.
Hermione arregalou os olhos e fitou-o demoradamente.
- Julgo - respondeu. Fez uma pausa e continuou a observá-lo, agora de maneira lânguida. Depois passou os dedos pela testa, num gesto fatigado. Tudo aquilo o irritou ainda mais. - É o espírito - acrescentou; - é, portanto, a morte. - Encarou-o novamente e repetiu, contraindo o corpo em um movimento convulso: - Não é o espírito que nos mata? Não é ele que destrói toda a nossa espontaneidade, todos os nossos instintos? E essas pequeninas criaturas, que estão crescendo agora, não teriam já sido atingidas pela morte antes mesmo de experimentarem a vida?
- Não por terem excesso de inteligência, antes o seriam por escassez - exclamou ele rudemente.
- Tem certeza? Pois me parece o oposto. Possuem abundância de conhecimentos; isso é que os aflige e os mata.
- Prisioneiros de concepções limitadas e falsas - atalhou Birkin.
Ela não fez caso da observação e continuou interrogando na sua voz cantada e plangente:
- Não é verdade que, ao adquirirmos o conhecimento, perdemos todo o resto? Se passo a saber tudo o que diz respeito à flor, não perco de vista a flor para só guardar a noção científica? Não trocamos a substância pela sua sombra, não atraiçoamos a vida pela esterilidade da sabedoria? E o que representa isso tudo para mim, afinal de contas? De que me serve toda essa ciência? Para mim não significa nada.
- Você está apenas formando frases - disse ele. - Para você o saber é tudo. Essa mesma animalidade que defende é discutida pelo espírito. Não pretende ser um animal instintivo, mas sim observar as suas próprias funções animais e daí extrair uma emoção intelectual. É coisa puramente secundária e mais decadente do que o mais obstinado intelectualismo. Que é ele senão a pior e a mais degradada forma de intelectualismo, esse amor que mostra pelas paixões e pelos instintos animais? Paixões e instintos, você os deseja firmemente, mas através do seu espírito, na sua inteligência. Tudo o que se passa no seu cérebro, dentro da sua caixa craniana. O pior é que não quer certificar-se da realidade: prefere a mentira para combinar com o resto das suas noções.
Hermione, face ao ataque, ergueu-se empertigada e colérica. Úrsula ficou cheia de espanto e de vergonha. Assustava-a o reconhecimento do quanto aqueles dois entes se odiavam.
- É a lenda daquela Lady of Shalott - rematou ele, em voz forte e bem timbrada. Parecia acusá-la, mas falava como se não a visse. - Tomou um espelho, determinou qual a sua vontade, a sua compreensão imortal, o seu mundo consciente e limitado; não havia nada para além do espelho, mas, na superfície, encontrou tudo. E agora, sabedora das suas conclusões, pretende voltar atrás e viver como um selvagem, ignorante de todas as coisas. Aspira a uma existência de puras sensações e de paixão.
Pronunciou a última palavra com ar irônico. Hermione sentiu-se ofendida e furiosa, sem dizer coisa alguma, qual pitonisa dos oráculos gregos, fulminada.
- Ora, a sua paixão não é senão uma mentira - continuou Rupert, cheio de violência. - Não é paixão, sequer. Apenas a sua vontade, a sua vontade feroz. Sente necessidade de reter as coisas e as conservar em seu poder. O seu desejo é dominar tudo. E por quê? Porque não tem realmente um corpo, um corpo repleto de sensualidade e de vida. Não possui sensualidade alguma. É só vontade presunção de inteligência, cobiça de poder para atingir o conhecimento.
Dizendo tais palavras, olhou-a com um misto de ódio e de desprezo, e ao mesmo tempo com piedade por vê-la sofrer e ainda com vergonha por saber que estava torturando a mulher. Teve vontade de ajoelhar-se diante dela, de pedir perdão. Mas apoderou-se-lhe da razão uma ira mais amarga, vermelha como sangue; esqueceu a presença dela, dir-se-ia que era só uma voz apaixonada proclamando:
- Espontânea! Você e a espontaneidade! Você, a criatura mais refletida que ate hoje veio ao mundo! Quando muito será deliberadamente voluntária: assim é que é. O que pretende é que tudo esteja à mercê da sua vontade, do seu sentimento propositadamente espontâneo. O que lhe apetece é colocar tudo no seu asqueroso cerebrozinho, que se devia partir como se faz a uma noz, porque você será sempre a mesma ate que a esmaguem como se faz a um inseto. Se alguém conseguisse fazer isso, talvez que, depois de espremido esse cérebro, se pudesse fazer de você uma mulher natural, apaixonada, com verdadeira sensualidade. Tal como é agora, o que você deseja é a pornografia, e mirar-se ao espelho, contemplar os gestos do animal, toda nua de forma a encaixá-los na cabeça e a torná-los intelectuais.
Havia no próprio ar uma sensação de ultraje, como se ele houvesse dito tudo quanto há de irremediável. Úrsula, contudo, retraíra-se e meditava em seus próprios problemas, de acordo com as palavras que Rupert pronunciara. Estava pálida e absorta.
- E aspira, efetivamente, à sensualidade? - indagou ela, um tanto confusa.
Birkin olhou-a e começou, muito atencioso, a explicar o seu pensamento:
- Sim, isso e nada mais. É uma grande realização desvendar esse sombrio conhecimento que encerramos dentro de nós, o ser obscuro e involuntário. É a morte dele, mas é assim que damos origem ao nascimento de um ente novo.
- Mas como podemos ter conhecimento senão em nosso cérebro? - perguntou Úrsula, incapaz de interpretar devidamente a concepção de Birkin.
- No sangue; quando o espírito e o mundo visível mergulharem nas trevas... tudo deve perecer... será o dilúvio. Então achar-se-á, a si mesma, como um corpo palpável de sombras, um demônio...
- Por que hei de ser um demônio?
- A mulher pranteando o seu amante demoníaco... - citou Birkin. Por quê? Não sei.
Hermione regressou como do além, de uma aniquilação mortal.
- Este homem é terrivelmente satânico, não acha? - perguntou ela à outra, com voz singular e ressoante, que acabou numa risadinha ridícula. As duas mulheres escarneciam-no, escarneciam-no ate o arrasarem. O riso motejador, penetrante, da mulher vitoriosa, provinha de Hermione; brincava com ele como se Birkin fosse uma criatura insignificante.
- Você é o autêntico demônio - volveu ele - e não deixa a própria vida existir.
Hermione envolveu-o em um olhar longo, demorado, malévolo e arrogante.
- Como é que sabe tudo isso? - perguntou em tom de troça, frio, insultante.
Rupert respondeu mostrando um rosto fino e claro como o aço:
- Sei o suficiente.
Então Hermione sentiu terrível desespero e, ao mesmo tempo, certa sensação de alívio, de libertação. Voltou-se para Úrsula com familiaridade amável e insistente:
- Posso contar com você em Breadalby?
- Terei muito gosto em ir.
A visitante agradeceu-lhe com os olhos, meditativos e estranhamente distantes, como se já não estivesse ali, mas possuída pelo demônio.
- Ainda bem! - murmurou, caindo em si. - Mais ou menos dentro de quinze dias. Sim? Escrever-lhe-ei para aqui, para a escola, concorda? Muito bem. Não deixe de comparecer. Ficarei muito feliz. Terei imenso prazer em vê-las. Adeus...
Estendeu-lhe a mão e fitou-a nos olhos. Sabia que Úrsula era uma possível rival e esse fato a divertia bastante. Além disso, despedia-se, e a ideia de partir e de deixar a outra dava-lhe uma sensação de força e de vantagem, tanto mais que arrastava consigo o amante, nem que fosse apenas por ódio.
Birkin conservava-se afastado, imóvel, irreal. Chegou, porém, a vez de se despedir e recomeçou então a falar:
- Eis toda a diferença que existe no mundo entre o verdadeiro tipo sensual e a viciosa libertinagem mental que o destino nos impôs. Nas nossas noites, a libertinagem está continuamente acesa, espiamo-nos a nós mesmos, recolhemos nos nossos cérebros todos os conhecimentos. É preciso deixar passar o tempo antes de sabermos o que é a realidade sensual ultrapassar o desconhecido e renunciar à nossa vontade. Assim é que se deve fazer. Deve-se aprender a não ser antes que possamos chegar a ser. Somos, porém, muito vaidosos e é aí que está o problema. Muita vaidade e nenhum orgulho! Não temos nenhum brio, somos só petulância, presunção do nosso "eu" de papier-mâché - Literalmente, papel amassado; aqui, em sentido figurado, a expressão equivale a "disforme, deformado" - nota da tradutora). Preferimos morrer a abandonar a nossa vontadezinha, teimosos como somos.
Estabeleceu-se o silêncio na sala. Ambas as mulheres se mostravam hostis e ressentidas. As palavras do inspetor ressoavam como se fossem pronunciadas em um comício. Hermione mal o ouvia; descontente, limitava-se a encolher os ombros.
Úrsula observava-o furtivamente, sem ter verdadeira consciência dos seus atos. Rupert possuía grande atração física, curiosa riqueza oculta, que transparecia através da magreza e da palidez como uma segunda voz, revelando-o de forma mais completa. Na curva das sobrancelhas e do queixo - curvas generosas, belas, delicadas - residia a beleza poderosa da própria vida, qualquer coisa risonha, invisível e consoladora. A magia do corpo fascinava-a, seduzia-a a obliquidade dos quadris. Ela nem saberia explicar em que consistia isso. Mas desse homem irradiava uma sensação de fertilidade e de força de inteira liberdade.
- Nós, porém, não seremos bastante sensuais sem o querer? Perguntou a professora, voltando-se para Rupert; nos olhos verdes brilhava-lhe um riso dourado, que parecia terrível e descuidado, mas a boca não o acusou.
- Não, não somos. Estamos demasiadamente cheios de nós.
- Não é, com certeza, questão de vaidade...
- É sim, e nada mais.
Úrsula ficou sinceramente preocupada.
- Não acha que é das energias sexuais que as pessoas são mais orgulhosas?
- Isso não as faz sensuais, apenas meigas, o que é diferente. Ocupam-se sempre, muito mais de si próprias e são de tal maneira afetadas que em vez de se libertarem e de viverem em um mundo diferente, em outras esferas...
- Ainda não tomou chá - disse Hermione, dirigindo-se a Úrsula com a maior urbanidade. - Trabalhou todo o dia...
Birkin interrompeu-se imediatamente. Úrsula experimentou um movimento de cólera e de logro. O rosto dele tornava-se duro. Disse-lhe adeus, mas como se já não a estimasse ver.
Birkin e Hermione foram-se embora. A professora ficou a olhar junto da porta, durante alguns momentos. Depois apagou as luzes, e feito isto, sentou-se outra vez na cadeira, absorta e esquecida. E então começou a chorar num pranto muito triste, muito triste: se de desgosto, se de alegria, nunca chegou, porém, a sabê-lo.


Capítulo IV
O nadador
A semana passou. No sábado choveu, uma chuva miudinha, que a espaços se interrompia. Em um desses intervalos, Gudrun e Úrsula saíram a passeio, na direção de Willey Water. A atmosfera estava cinzenta e translúcida, os pássaros cantavam, espertos, nos ramos das árvores, e a terra favorecia e apressava o crescimento dos vegetais. As duas moças seguiam a passo rápido, contentes com o brando e sutil ambiente da manhã, penetrado da umidade brumosa. Ao longo da estrada, via-se o espinheiro negro cheio de flores claras e orvalhadas, com as pequeninas bagas de âmbar cintilando entre a névoa dealbada em cachos. Os galhos cor de púrpura escureciam a luminosidade grisalha do ar, as altas sebes luziam como sombras em relevo, pairando próximo, como que fazendo parte da criação. A manhã enchera-se de uma vida nova.
Quando chegaram a Willey Water admiraram o lago, que jazia acinzentado, sobrenatural, estirado entre o nevoeiro panorama transparente de árvores e de prados. De trás do caminho chegava o rumor de máquinas elétricas em movimento, das vozes das aves que pipilavam alternadamente, e da água que sussurrava ao cair da represa.
As irmãs continuaram a andar, apressadas. À frente delas, ao canto do lago, perto da estrada, havia uma casinhola coberta de musgo, sombreada por uma nogueira, e uma ponte-cais onde estava amarrado um barco que se movia como nódoa na água tranquila, cor de cinza, aos pés de estacas verdes e carcomidas. A aproximação do estio envolvia tudo de sombras.
Subitamente, da casa pequenina, surgiu uma figura clara, que, em corrida ágil, atravessou a velha ponte e se arremessou no espaço, formando um arco esbranquiçado; depois a água agitou-se e, no meio das ondas uniformes, viu-se um nadador que avançava levantando leves respingos. Aquele mundo aquático, alheio às duas observadoras, pertencia-lhe inteiramente; movia-se na pura transparência alvadia daquela água virginal.
Gudrun olhava-o, apoiada ao muro de pedra.
- Como o invejo! - disse ela em voz baixa e cobiçosa.
- Ui! Com tanto frio! - respondeu Úrsula, arrepiada.
- É verdade, mas como deve ser agradável nadar ali dentro! - As irmãs ficaram observando o nadador rasgando as águas plúmbeas, naquela amplidão líquida, sempre em movimentos curtos e regulares, sob a abóbada florestal, enevoada.
- Você gostaria de estar no lugar dele? - perguntou Gudrun, olhando para Úrsula.
- Gostaria - respondeu esta. - Mas... teria que me molhar!
- Que dúvida! - respondeu a irmã abruptamente. Contemplava, como que fascinada, as ondas que se estendiam à superfície do lago. O nadador, depois de ter atingido certa distância, retrocedeu, agora de costas, e descobriu as duas moças olhando-o lá de cima. Percebia-se que as vira, enquanto, de rosto corado, prosseguia nas suas evoluções tranquilas.
- É Gerald Crich - disse Úrsula.
- Eu sei - respondeu Gudrun.
Conservavam-se imóveis, admirando o vulto que mergulhava no lago e dele emergia conforme as fases da natação. De lá daquele frio elemento, Gerald via-as e exultava com a ideia de se encontrar em um mundo diverso, inteiramente seu. Orgulhava-se da força que possuía, dos movimentos que executava e do impulso da água fria sobre os membros vigorosos, mantendo-se à tona da água. Percebia que as moças o observavam, quando se descobria todo à superfície e ficava satisfeito. Levantou o braço acima das ondas, para lhes fazer sinal.
- Está acenando - notou Úrsula.
- Está - repetiu a outra. Continuaram a olhar. Gerald não respondeu, mas deixou-se ficar de olhos postos na água.
O nadador, de repente, virou-se e foi-se afastando sempre nadando com braçadas laterais, muito velozes. Agora estava só, só e imune entre as águas, que lhe pertenciam totalmente. Regalava-se com o seu isolamento no ambiente líquido, sem que ninguém lhe fizesse perguntas nem lhe impusesse obrigações. Sentia-se feliz, estendendo as pernas, avançando o corpo, sem entraves de nenhuma espécie, único homem dentro do universo aquático.
Gudrun invejava-o quase de maneira dolorosa. Aquela posse momentânea da pura solidão e do elemento fluido afigurava-se-lhe tão terrivelmente apetitosa que ela experimentou, ali na estrada, a sensação de estar sofrendo um castigo.
- Como seria bom ser homem, meu Deus!
- O quê? - perguntou Úrsula, surpreendida.
- Independência, liberdade, mobilidade! - continuou Gudrun, com ar estranho, corada, de olhos brilhantes. - Fosse eu homem e quisesse fazer uma coisa, quem me impediria? Não encontrava os milhares de obstáculos que uma mulher tem sempre à sua frente.
Úrsula pensava no que poderia ter sucedido à irmã para pensar daquela forma. Achava-a incompreensível.
- Que é que você pretende fazer? - indagou.
- Nada - respondeu Gudrun, numa refutação imediata. - Suponhamos, porém, que pretendesse alguma coisa; suponhamos que desejava nadar ali embaixo. Seria impossível, uma das grandes impossibilidades da vida, despir a roupa e atirar-me à água. Não é ridículo? Não é uma coisa que impede, simplesmente, de viver?
Estava tão ofegante, tão vermelha, tão furiosa, que Úrsula ficou perplexa.
Por fim, continuaram no seu passeio, ao longo do caminho. Passavam agora debaixo das árvores, precisamente ao pé de Shortlands. Contemplaram a casa ampla, baixa, pardacenta e fascinante na umidade da manhã, com os cedros oblíquos em frente das janelas. Gudrun parecia estudá-la atentamente:
- Não a acha convidativa, Úrsula?
- Muito. É tão pacífica, tão agradável!
- Tem arquitetura, também. Pertence a qualquer estilo.
- Qual?
- Provavelmente século XVIII, do tempo de Dorothy Wordsworth e de Jane Austen. Não lhe parece assim?
Úrsula riu-se.
- Você não pensa como eu? - repetiu Gudrun.
- Talvez. Mas não creio que esteja de acordo com os Criches. Ouvi dizer que Gerald instalou um gerador elétrico para iluminar a casa e que introduziu toda a espécie de melhoramentos modernos.
Gudrun encolheu os ombros num movimento espontâneo.
- É claro - replicou. - São coisas inevitáveis.
- Inevitáveis - exclamou Úrsula, divertida. - Ele está, realmente, adiantado várias gerações em relação às outras pessoas. Por isso o detestam. Agarra a todos pelo pescoço e atira-os para frente, muito satisfeito. Convém que morra cedo, quando já tiver realizado todos os melhoramentos possíveis e não lhe reste mais nada a fazer. É um homem ativo, em todo o caso.
- Sem dúvida que é. Nunca vi nenhum, realmente, que me desse tanto essa impressão. O pior é que não sabemos o que faz dessa atividade, nem que resultados tira.
- Eu sei - atalhou Úrsula. - Emprega-a na utilização das últimas invenções.
- Deve ser isso - assentiu Gudrun.
- Sabe que matou o irmão com um tiro?
- O irmão? - exclamou a outra, franzindo a testa, incrédula.
- Não sabia? Pois é verdade. Julguei que você estivesse a par. Ele e o irmão brincavam juntos, com uma espingarda. Gerald disse-lhe que olhasse pelo cano e, como a arma estava carregada, o tiro fez-lhe saltar os miolos. É uma história de arrepiar os cabelos.
- Que coisa horrível! - declarou Gudrun. - E foi há muito tempo?
- Ah, sim! Eram bem pequeninos. Para mim é um dos casos mais tristes que conheço.
Naturalmente ele não sabia que a espingarda estava carregada.
- Claro. Era uma velha espingarda que jazia na cavalariça na muitos anos. Ninguém sonhava que os meninos a encontrariam e que estivesse carregada. Acho terrível ter acontecido uma coisa dessas...
- Trágico! E ainda mais pensar que isso pode suceder a uma criança, que ficará com remorsos toda a sua vida. Imagine dois pequenos que brincam sozinhos e a desgraça cai-lhes em cima, sem razão plausível, vinda não se sabe por quê. É um horror, Úrsula! Eu não poderia suportar. Um assassínio, por vontade de quem? Acontecer uma coisa dessas...
- Talvez haja uma vontade inconsciente por detrás dos nossos atos. - opinou Úrsula. - Isso de brincar com armas deriva do desejo de matar, não acha?
- Desejo? - bradou Gudrun empertigando-se. - Não admito que estivessem brincando com essas intenções. Para mim o caso passou-se desta forma: um dos meninos disse ao outro. "Olha pelo cano, enquanto eu carrego no gatilho, e vê o que acontece". Parece a explicação mais natural para o acidente.
- Não - tornou Úrsula. - Eu seria incapaz de fazer pressão no gatilho, por mais vazia que a arma estivesse, uma vez que houvesse alguém espreitando pelo cano. Não se faz instintivamente o que não se pode.
Gudrun ficou pensativa por alguns momentos, em desacordo com a irmã.
- Decerto - disse Gudrun, friamente. - Quando se é mulher e crescida, o instinto pode preservar-nos. Mas a doutrina não se aplica a dois garotos que estejam a brincar.
A voz saía-lhe dura e hostil.
- Não - ia insistir a outra. Mas ouviu-se, naquele instante, uma mulher que dizia alto, a poucos metros de distância - Como isto é difícil! - Aproximaram-se e viram Laura Crich e Hermione Roddice no campo, do outro lado da sebe. Laura tentava abrir a cancela para sair. Úrsula correu para lá e ajudou-a. Muito obrigada - disse Laura, ruborizando-se, confusa - Não gira bem nos gonzos.
- É muito pesada - confirmou Úrsula.
- É incrível! - exclamou Laura.
- Como está? - Era a voz cantante de Hermione, do outro lado do campo. Esperava a ocasião de se poder fazer ouvir. - O tempo agora está ótimo. Vão passear? Sim? Estes novos brotos estão adoráveis... Um encanto! Bom dia, bom dia, venham visitar-me na próxima semana... Obrigada! Adeus, adeus!
Gudrun e Úrsula ficaram observando Hermione baixar e erguer a cabeça, lentamente, acenando, movendo a mão vagarosa, como que a despedi-las, ao mesmo tempo em que esboçava um sorriso afetado. Era uma figura estranha e assustadora, alta como era, com os cabelos louros e espessos tombando-lhe sobre os olhos. Então as duas irmãs se afastaram, como pessoas subalternas que tivessem sido mandadas retirar. Assim se separaram as quatro mulheres.
Depois de alguns passos, Úrsula disse, ainda com as faces afogueadas:
- Mas é um desaforo!
- O quê? Refere-se a Hermione Roddice? - inquiriu Gudrun.
- De que maneira ela nos trata, hein?
- Por que você acha um desaforo? - perguntou Gudrun com indiferença.
- Ela é desaforada. Acho intolerável aquele jeito importante que tem. Pura fanfarronice. É uma mulher descarada. Venham visitar-me... Como se devêssemos ficar enternecidas com tamanha honra!
- Não compreendo, Úrsula, por que você está tão fora de si - observou Gudrun, aborrecida. - Todas sabem que essas mulheres livres que se emanciparam da aristocracia são insolentes.
- Mas não há necessidade... de ser tão grosseira!
- Não, não a vejo sob esse aspecto. E, mesmo que assim fosse, pour moi elle n'existe pás - Para mim, ela não existe - nota da tradutora). Não lhe dou o direito de ser malcriada comigo.
- Acha que ela gosta de você? - perguntou Úrsula.
- Não, acho que não.
- Então, por que está convidando você para ir a Breadalby passar uns dias?
Gudrun encolheu tranquilamente os ombros.
- No fim de contas, tem o bom senso de não nos considerar pessoas vulgares. Seja o que for, estúpida é que não é. Prefiro essa mulher que, aliás, detesto, às outras vulgaríssimas, cheias de preconceitos. Hermione Roddice toma a responsabilidade de suas ações.
Úrsula refletiu no que acabava de ouvir.
- Não me parece - replicou. - Na realidade, a que se expõe ela? Creio que devemos admirá-la antes por ser capaz de nos convidar, a nós, professoras, sem se arriscar muito.
- Justamente! - atalhou Gudrun. - Pense nos milhares de outras mulheres que não se atreveriam a tanto. Faz dos seus privilégios o máximo uso, e já é alguma coisa. No caso dela julgo que procederíamos da mesma forma.
- Não, não - respondeu Úrsula. - Seria uma maçada. Não perderia tempo a representar essas farsas. É degradante.
As duas irmãs assemelhavam-se às lâminas das tesouras que unindo-se uma contra a outra, tudo cortassem a torto e a direito ou a faca e a pedra de amolar, aquela aguçando-se sempre dê encontro a esta.
- É claro - exclamou Úrsula, de repente. - Se a formos visitar, terá de dar graças a Deus. Você é muitíssimo mais bonita do que Hermione, mil vezes mais do que ela é ou jamais foi e na minha opinião, mil vezes também mais elegante. Hermione nunca parece sadia nem natural como uma flor, mas sempre velha, desmazelada; além disso, somos mais inteligentes do que a maioria das pessoas.
- Sem dúvida! - declarou Gudrun.
- Temos de nos convencer disso; o resto são histórias...
- Temos, sim. Mas você vai ver que a autêntica elegância consiste em uma pessoa ser absolutamente vulgar, tão comum e semelhante a média que se torne uma obra-prima de humanidade, não só a criatura mediana, mas a sua produção artística
- Que horror! - exclamou Úrsula.
- Sim, horroroso sob muitos aspectos. Não nos atrevemos a ser outra coisa senão o espantosamente à terre, tão à terre que chega a ser uma maravilha de banalidade.
- É idiota transformar-se a gente em uma coisa pior do que se é - observou Úrsula, risonha.
- É estupidíssimo - concordou Gudrun. Sim, Úrsula, é essa a palavra apropriada. Dá até vontade de ser bombástica e dizer palavras tiradas a Corneille.
Gudrun ruborizou-se, excitada com a própria inteligência.
- Pavoneie-se - disse-lhe a outra. - Dá vontade de sermos como um cisne no meio dos gansos.
- E eles estão tão entretidos a bancar os "patinhos feios" - insinuou Úrsula com um risinho de mofa. - Quanto a mim não tenho vocação para desempenhar esse papel modesto e comovente. Sinto-me, sim, um cisne entre gansos. Não posso evitar isso. A culpa é deles. E pouco me importo com o que pensam de mim. Je m'en fiche. Gudrun lançou à irmã um olhar estranho e vago, de inveja, de descontentamento.
- Claro que a única coisa possível é desprezá-los a todos, sem exceção - asseverou.
As irmãs voltaram para casa, para ler, conversar, trabalhar, ate que viesse a segunda-feira, dia de retornar à escola. Úrsula muitas vezes perguntava a si mesma que é que se podia esperar, além do começo e do fim das férias. Eis a sua vida toda! Não era raro ter fases de horror intenso, ao imaginar que a existência decorria, e chegaria ao seu termo, sem ter sido outra coisa mais do que isso. Nunca admitiu, contudo, que assim acontecesse. Tinha o espírito ativo e a vida dela assemelhava-se a um rebento que cresce muito firme, mas que ainda não despontou fora da terra.

Capítulo V
No trem
Um dia, por aquela época, Birkin foi chamado a Londres. Não estava ainda certo quanto ao lugar onde iria residir. Como o seu principal trabalho era em Nottingham, conservara naquela cidade um quarto alugado. Ia, porém, muitas vezes a Londres e Oxford. Deslocava-se com frequência, e a vida parecia-lhe incerta, sem ritmo definido e sem intenção especial.
Na estação descobriu Gerald Crich, que estava lendo um jornal e esperava, evidentemente, a chegada do trem. Birkin conservou-se à distancia, no meio da multidão. Por sistema, nunca se aproximava de ninguém.
De tempos em tempos, de modo característico, Gerald erguia a cabeça e olhava em torno de si. Ate quando lia o jornal mantinha um olho vigilante sobre tudo que se passava à sua volta. Dir-se-ia possuir consciência dupla. Meditava seriamente no que estava lendo, sem perder de vista a afloração de vida que o rodeava, e assim nada lhe podia escapar. Birkin, que o observava sentia-se irritado com aquela dualidade. Havia notado também, que Gerald punha sempre as pessoas a distância, apesar de suas maneiras - quando bem disposto - serem bizarras joviais e afáveis.
O inspetor, naquele momento, sobressaltou-se ao reparar que o rosto de Gerald tomara um aspecto risonho. Percebeu que se lhe dirigia, de mão estendida.
- Olá, Rupert, para onde vai?
- A Londres. Você também, ao que suponho.
- É verdade.
Os olhos de Gerald perscrutavam, curiosos, a fisionomia do outro.
- Viajaremos juntos, se lhe agrada - disse ele.
- Costuma ir na primeira classe? - indagou Birkin.
- Não tolero a multidão - respondeu Gerald Crich - prefiro a terceira. Há restaurante, poderemos tomar o nosso chá.
Sem nada mais para dizer, ambos olharam para o relógio da estação.
- Que é que lia no jornal?
Crich prestou a maior atenção ao seu interlocutor.
- Coisas engraçadas, estas que eles escrevem nos jornais. Aqui estão dois artigos de fundo (mostrou O Daily Telegraph) cheios de gíria (e designou as colunas compactas) e agora veja esta... como é que se chama? Ensaio, talvez... ao lado dos editoriais e propugnando pelo aparecimento de um homem que valorize as coisas, que nos ensine novas verdades, nova maneira de viver, ou não seremos, dentro de alguns anos, mais que um pais em ruínas, um vácuo desolador.
- Quer-me parecer que se trata, como de costume, do jargão jornalístico - aventou Birkin.
- Creio ver aqui um tom de sinceridade - discordou Gerald.
- Deixe ver. - E Rupert estendeu a mão para a folha.
O trem chegou, os dois subiram para o vagão-restaurante e sentaram-se a uma das mesinhas, junto da portinhola. Birkin relanceou os olhos pelo jornal, e depois fitou Gerald, que estava à espera.
- Creio realmente que é o pensamento do articulista...
- E pensa que pode ser verdade? Parece-lhe, de fato, que temos necessidade de um novo evangelho?
Birkin encolheu os ombros.
- Sei muito bem que as pessoas que dizem precisar de uma nova religião são sempre as últimas a aceitar qualquer coisa diferente. É possível que se desejem novidades. Mas, ao analisar-se esta vida que se está organizando, perde-se a coragem de rejeitar o que se fez à nossa imagem e semelhança, e de destruir os nossos velhos ídolos. O que se tem a fazer é desembaraçar-se a gente de tudo que é obsoleto, antes que o novo consinta em aparecer mesmo dentro de nós.
Gerald examinava-o de soslaio.
- Julga que devemos pôr de parte esta maneira de vida e prepararmo-nos para outra? - perguntou.
- Esta vida? Ah, sem dúvida. Penso que a devemos destruir por completo ou então encolhermo-nos dentro da pele porque ela não se pode esticar mais.
Nos olhos de Gerald perpassou uma expressão calma e curiosa de quem estava achando a coisa engraçada.
- E por onde se propõe começar? Calculo que pretende reformar a sociedade de alto a baixo.
Birkin teve um rápido, mas profundo franzir de sobrancelhas. Ele, igualmente, ansiava por falar.
- Não me proponho fazer nada. Quando, na realidade, queremos qualquer coisa melhor, tratamos primeiro de destruir o que existe. Ate essa altura, sejam quais forem as ideias, não hão de passar de brincadeira enfadonha para meia dúzia de criaturas.
O sorriso começou a extinguir-se na face de Gerald, que retrucou lançando ao companheiro um olhar cortante:
- Pensa então que as coisas vão assim tão mal?
- Inteiramente mal.
O sorriso desapareceu.
- Em que sentido?
- Em todos os sentidos - afirmou Birkin. - Somos terrivelmente mentirosos. O que nos anima é só a ideia de mentirmos a nós próprios. Temos o ideal de um mundo perfeito, correto, eficaz e decente. Mas, em seguida, cobrimos a terra de imundícies; a vida é um pântano de fadigas, nós, um amontoado de insetos debatendo-nos no charco, a fim de que o mineiro tenha um piano na sala e você um mordomo e um automóvel na sua casa modernizada; e todos, como nação, podemos divertir-nos no Ritz ou no Empire, com a Gabyh Deslys e com os jornais de domingo. É lúgubre, meu amigo!
Depois desse discurso, Gerald ficou silencioso, como que reunindo forças para revidar.
- Gostaria que vivêssemos sem habitações, que regressássemos ao estado de natureza selvagem?
- De maneira nenhuma. Cada um faz o que lhe apetece e o que pode. Se se conseguisse fazer outra coisa, ninguém esperaria por autorização.
Gerald pôs-se outra vez a refletir. Não tencionava levar a sério as objurgações de Rupert Birkin.
- Não considera você o piano do mineiro (segundo a sua expressão) como símbolo de uma ambição verdadeira, o desejo de qualquer coisa mais elevada na vida do operário?
- Mais elevada? Sim. Perturbadoras alturas da grandeza absoluta. Eleva-o bastante aos olhos do mineiro, seu vizinho. Vê-se refratado no conceito deste último, como que aumentado através da neblina... algumas vezes o comprimento do piano... e fica satisfeito. Vive para manter essa ilusão, que é a sua própria imagem refletida na opinião pública. Você não faz diferença. Se, aos olhos dos semelhantes, é pessoa de importância, não é de menor importância com relação a si mesmo. Eis a razão pela qual trabalha com tanto afinco nas minas. Se for capaz de extrair carvão suficiente para cozinhar cinco mil jantares por dia, é cinco vezes mais notável do que se o produzisse apenas para o seu próprio jantar.
- Acho que sim - obtemperou Gerald, rindo.
- Supõe que ajudar a vizinhança a comer tem mais merecimento do que comer sozinho. Eu como, tu comes, ele come, nós comemos, vós comeis, eles comem. E que mais? Todos querem conjugar o verbo ate o fim. Para mim, basta a primeira pessoa do singular.
- Você devia partir de exemplos concretos - disse Gerald. (A esta contestação Birkin não respondeu nada.) - Devemos ter algum fim na vida e não sermos apenas gado que pasta e que não sabe fazer mais nada.
- Diga-me uma coisa. Quais são as suas intenções neste mundo? - perguntou Birkin.
Crich mostrou-se hesitante.
- Sim, quais são elas? - continuou o outro. - Eu (pelo menos assim o julgo) vivo para trabalhar, para produzir alguma obra, na simples convicção de que tenho um fim a cumprir. Fora isso, vivo porque existo. Quanto ao seu trabalho, em que consiste? Em tirar da terra mais de mil toneladas de carvão em cada dia. E, uma vez extraído o carvão necessário, comprada a mobília forrada de pelúcia e o piano, bem aquecidos e bem alimentados, sentados ao canto da lareira a ouvir a mulher tocar música, que resta a vocês? Sim, o que resta? Está tudo obtido no campo das coisas materiais.
Gerald sorriu àquelas palavras e ao bom humor que as ditava. Mas não deixou também de meditar.
- Ainda não chegamos todos a esta meta. Há muitos que ainda não têm o coelho para meter na panela nem o fogão para o cozinhar.
- Quer dizer que, enquanto você desbrava as minas, compete a eu caçar o coelho?
- Mais ou menos, Rupert.
Birkin fitou-o atentamente. Notou que o outro mantinha perfeita indiferença mesclada de bom humor, talvez ate de malícia, transparecendo em tudo isso a filosofia própria do industrial.
- Detesto-o ainda mais, Gerald.
- Já sei. E por que será?
Birkin pensou alguns minutos, sem que o companheiro lhe adivinhasse o pensamento.
- Gostaria de saber se você, por seu lado, o tem a consciência de me detestar - declarou por fim. - Acha que me odeia conscientemente? Com um ódio... místico? Há estranhos momentos em que o detesto, impessoalmente...
Gerald estava um tanto embaraçado. Chegou a atrapalhar-se. Não sabia ao certo o que responder.
- Já se vê... - começou ele - pode haver ocasiões... em que eu implique com você. Mas não me apercebo disso, não tenho inteira consciência... a verdade é esta.
- Tanto pior para você - concluiu Birkin.
Gerald contemplou-o com olhos curiosos. Não conseguia compreender.
- Tanto pior, diz você?
Houve um silêncio entre os dois homens, durante alguns momentos, enquanto o trem continuava a rodar. No rosto de Birkin notava-se certa contrariedade; tinha a testa enrugada e o ar preocupado. Gerald examinava-o cautelosamente, ignorante do que se passava na mente do seu companheiro de viagem.
De súbito, o olhar de Birkin caiu em cheio, dominador, sobre Gerald Crich.
- Qual pensa você ser o desígnio, o objetivo da sua vida? Mais uma vez Gerald se sentiu confuso com a pergunta. Não sabia a que ponto queria o outro chegar. Estaria brincando ou falaria a sério?
- Não posso responder assim, de repente - replicou o interrogado com uma pontinha de ironia.
- Parece-lhe que o amor seja a razão de ser, o motivo da vida? - Birkin falava em tom grave, circunspecto.
- Da minha vida?
- Sim, da sua.
Houve uma pausa, durante a qual ambos se sentiram contrafeitos.
- Não sei dizer. Ate agora não aconteceu isso.
- E então, ate agora, que tem sido a sua existência?
- Ora... encontrar o que quero, por mim próprio... fazer experiências... pôr as coisas em andamento.
O outro franziu o sobrolho numa atitude de aspereza.
- Admito que se tenha necessidade de uma atividade pura e simples. O amor pode muito bem ser essa atividade. Eu, no entanto, e por enquanto, não amo realmente ninguém.
- E já amou? - perguntou Crich.
- Sim, e não.
- Não, em resumo?
- Em resumo... não - confirmou Birkin.
- Nem eu.
- E gostaria de vir a amar?
Gerald encarou o companheiro com um olhar brilhante, quase trocista.
- Não sei - respondeu.
- Eu sei. Eu preciso de amor.
- Verdadeiramente?
- Para mim o amor é uma finalidade.
- A finalidade do amor... - repetiu Gerald. E ficou alguns instantes calado. Depois, acrescentou: - Só uma mulher?
A luz da tarde, inundando os campos com o seu clarão amarelo, refletiu-se no rosto de Rupert, que se conservava com ar distante e resoluto. Gerald continuou sem o perceber.
- Só uma mulher - concordou Birkin.
Mas, para Gerald Crich, aquela frase deu a impressão de ser um pensamento em voz alta, mais do que uma confidência.
- Pois eu não acredito que uma mulher, e só uma mulher, possa ocupar-me a vida inteira - redarguiu este.
- Não crê que esse amor possa ser o centro, o âmago da vida? - inquiriu Rupert Birkin.
Ao fitar o interlocutor, Gerald teve um sorriso estranho e equívoco. Respondeu:
- Nunca vi as coisas por esse prisma.
- Nunca? Então em que consiste, para você, o centro da vida?
- Não sei e gostaria que me dissesse qual é. Tanto quanto posso entender, acho que a vida não tem esse fulcro. É o mecanismo social que a condiciona inteiramente.
Birkin refletiu, como quem procura a forma de vibrar o golpe decisivo.
- Bem sei. Realmente esse centro não existe. Os velhos ideais estão mortos para sempre, não há nada que fazer. Parece-me que o que festa é unicamente essa perfeita união com uma mulher e nada mais.
- Quer dizer que, se não existissem mulheres na nossa vida, o resto não contaria?
- Nem mais nem menos, admitindo que não há Deus.
- Isso não é animador - disse Crich. E voltou-se para a janela, admirando a paisagem dourada e fugidia.
Birkin não pôde deixar de sentir quanto o rosto de Gerald era bem talhado e másculo e como denunciava a coragem da sua indiferença. E disse-lhe:
- Pensa que temos de lutar contra forças superiores?
- Decerto, se fizermos depender a nossa vida de uma mulher, de uma só. Mas não creio que, a esse respeito, chegue a comprometer a minha existência.
Birkin encarou-o com certa indignação.
- Você é um cético nato.
- Sinto apenas o que sinto - explicou Crich. E tornou a olhar para o outro quase sardonicamente, com os seus olhos azuis, viris, luminosos. Os de Birkin, nesse momento, estavam cheios de cólera. Mas, pouco a pouco, perturbaram-se, tornaram-se indecisos, encheram-se de afeto risonho, ardente, sincero. Enrugando a testa, declarou:
- Isso me comove, Gerald.
- Bem o reconheço - volveu o companheiro, entreabrindo a boca num riso marcial e brusco.
Gerald deixava-se dominar, inconscientemente, pelo outro. Desejava estar perto dele, queria viver na sua esfera de influência; encontrava grandes afinidades em Birkin. Mas, além disso, não reconhecia mais nada, pois considerava-se mais seguro, mais sólido nas suas teorias do que supunha Rupert nas dele; sabia-se mais velho, mais experiente. O que apreciava no amigo era a volubilidade fácil, a eloquência brilhante e ardorosa, a arte de brincar com as palavras e de expor com desembaraço os sentimentos próprios. O verdadeiro conteúdo, porém, daqueles discursos, Gerald não o retinha sequer; considerava-se muito mais entendido na matéria.
Birkin percebia tudo isto. Via que Gerald pretendia dispensar-lhe interesse e amizade sem, contudo o tomar muito a sério; esta ideia tornava-o duro e retraído. Pela janela aberta, via desaparecer a paisagem, e, daí a pouco, Gerald desapareceu também dos seus olhos, deixou de existir para ele. Olhando para fora, para a noite que crescera, Rupert ia pensando: "Se a humanidade perecer, se formos aniquilados como Sodoma, basta-me que fique uma noite bela sobre o mundo, assim iluminada e com árvores. Tudo quanto importa está aqui, jamais se perderá. No fim de contas a humanidade não é senão uma expressão do incompreensível; e, se a humanidade acabar, tal fato significará simplesmente que essa expressão atingiu o seu máximo. O que ainda está sendo exprimido, o que ainda falta para ser expresso, não pode ser diminuído. Tudo está aqui, neste anoitecer cintilante. Deixemos sucumbir a humanidade; já é tempo. O verbo criador não cessará, só esse irá permanecer. Os homens deixaram de alimentar a voz do incompreensível. A humanidade morreu. Haverá uma nova consubstanciação, um novo progresso. Que o gênero humano desapareça, pois, quanto antes".
Gerald Crich interrompeu-lhe o solilóquio, perguntando:
- Onde mora, em Londres?
- No Soho, com outro sujeito. Pago metade do aluguel e lá me instalo quando quero.
- Boa ideia: ter um canto que, mais ou menos, nos pertença.
- Talvez. Mas isso já não me seduz. Estou fatigado da obrigação de encontrar sempre as mesmas pessoas.
- Que espécie de pessoas?
- Artistas, músicos, a boêmia de Londres, a mais calculista e velhaca em questões de dinheiro. Ainda assim há meia dúzia de criaturas decentes, sob certos aspectos. Repudiam e são repudiados do mundo, talvez existam apenas em razão do seu inconformismo; mas, negativamente, sempre são alguém, seja como for.
- Diz que são músicos, pintores?
- Pintores, músicos, escritores, e parasitas, modelos, moças emancipadas, gente em luta aberta com as conveniências, que não é de parte alguma. Às vezes há estudantes das universidades, mulheres que vivem a sua vida, como elas dizem...
- Todos livres?
Birkin percebeu que a curiosidade do outro despertara.
- Em certo sentido, e muitos presos, em outro. Pelo lado mau, todos se assemelham.
Ao dizer isto, via como Gerald exprimia, no brilho dos seus olhos azuis, os desejos que lhe iam por dentro. Aquela atitude tornava-o mais belo, mais insinuante. Sentia-se-lhe a fluidez magnética do sangue. O olhar ardia com uma chama intensa, mas fria, e em todo o corpo bem modelado reconhecia-se uma beleza solida.
- Podíamo-nos encontrar uma vez ou outra - disse ele. - Demoro-me em Londres dois ou três dias.
- Ótimo. Não gosto de teatro nem de concertos; é melhor que você venha visitar-me em casa e ver o que se pode fazer de Halliday e da turma.
- Obrigado; é melhor assim - concordou Crich, alegremente. - O que tenciona fazer esta noite?
- Prometi a Halliday ir com ele ao Pompadour. É lugar imundo, mas não há outra coisa.
- Para que lado fica?
- Piccadilly Circus.
- Posso ir também?
- Claro. Você vai achar divertido.
A noite caíra de todo. Já tinham passado por Bedford. Rupert perscrutou a escuridão do campo e sentiu uma espécie de desespero. Era sempre assim ao aproximar-se de Londres. A repugnância que experimentava pela humanidade, pela humanidade inteira, tornava-se-lhe quase doentia.
Calma, a tarde, que vai, seu sorriso dourado
Espalha em tudo, lento...

murmurou para si mesmo, como um condenado à morte. Gerald, que ouvira muito bem, já que seus sentidos eram todos sempre alertas, inclinou-se para o amigo e perguntou-lhe, risonho:
- O que é que está dizendo?
Birkin relanceou-lhe o olhar, riu-se também e repetiu:

Calma, a tarde que vai, seu sorriso dourado
Espalha em tudo, lento...
Sobre os campos de pasto de onde, agora, o gado
Recolhe sonolento.

Crich pôs-se também a mirar a paisagem, e Birkin, que, por qualquer razão, se sentia cansado e sem ânimo, confidenciou-lhe:
- Tenho sempre a sensação de que sou um condenado, quando o trem chega a Londres. Invade-me tamanha desesperança! Como se o mundo estivesse para acabar...
- E o fim do mundo deixa-o assustado?
Birkin encolheu os ombros, fatigado.
- Não sei - respondeu. - Assusta-me pela sua ameaça, pela sua queda iminente. Quanto às pessoas, produzem-me tão má impressão!
Nos olhos de Gerald brilhou um sorriso jovial.
- Ah, sim? - observou.
Daí a poucos minutos a composição atravessava os arredores infectos da cidade. Cada qual esperava com impaciência o momento de desembarcar. Por fim entraram na arcada vastíssima da estação, na tremenda sombra da metrópole. Birkin recolheu-se no seu mutismo, no seu próprio eu.
Tomaram juntos um táxi.
- Não se sente como um condenado? - perguntou Rupert, ao sentar-se naquela pequenina prisão ambulante, espiando a imensa rua sem graça.
- Não - respondeu Gerald Crich.
- Pois isto é a morte, nem mais nem menos.

 

Capítulo VI
"Creme de menthe"
Encontraram-se horas mais tarde no café. Através da porta giratória, Gerald penetrou na sala vasta e alta, onde se distinguiam caras e crânios entre a névoa de fumo, refletidos mais confusamente e repetidos ate o infinito nos espelhos enormes das paredes, de tal forma que se tinha a impressão de entrar em um mundo vago e obscuro de espectros que sussurrassem no meio da atmosfera azulada pelo tabaco. Havia, contudo, a pelúcia vermelha das cadeiras para dar realidade a essa ilusão dos sentidos.
Gerald seguiu na sua maneira lenta de andar, sempre observador, junto das mesas e das pessoas, cujos rostos obscurecidos se erguiam à sua passagem. Parecia-lhe que mergulhavam em um elemento estranho, numa região desconhecida e nebulosa, na companhia de almas libertinas. Sentia-se contente, divertido olhava, para além da neblina, as faces (iluminadas fantasticamente por uma luz que se esbatia) daqueles consumidores curvados sobre os copos. Depois viu Birkin que se levantava e lhe fazia sinal.
Na mesa de Birkin estava uma jovem de cabelos escuros soltos, macios, cortados como os das artistas; tombavam lisos e fartos, dando-lhe o ar de uma princesa egípcia. Era pequenina e delicada, tinha olhos grandes, sombrios, hostis, e a pele apresentava um colorido quente. Dir-se-ia quase bela na sua fragilidade, e, ao mesmo tempo, sentia-se-lhe certa rudeza de espírito, o que, não deixando de ser atraente, logo despertou um clarão de interesse nos olhos de Gerald.
Rupert Birkin, que parecia mudo, alheio, ausente, apresentou-a com o nome de Miss Darrington. A moça estendeu a mão, num movimento brusco e involuntário, olhando durante todo o tempo para Gerald com um espanto sincero, não disfarçado. Quando se sentou, tinha ela as faces em brasa.
O garçom aproximou-se. Gerald relanceou a vista pelos copos dos outros dois. Birkin bebia qualquer coisa esverdeada e Miss Darrington tinha diante de si um cálice onde não restava senão uma gotazinha de licor.
- Não quer tomar mais nada?
- Conhaque - disse ela, sorvendo a derradeira gota e afastando o cálice. O garçom desapareceu. - Ele não sabe que eu já voltei - continuou a jovem, dirigindo-se a Birkin. - Vai ficar horrorizado quando me vir aqui.
Trocava, em geral, os rr por uu, dando a impressão de uma criança a falar, simultaneamente afetada e séria nas suas maneiras. A voz era baça, sem relevo.
- Onde está ele neste momento? - inquiriu Rupert.
- Está expondo em casa de Lady Snellgrove. Warens acompanha-o.
Houve uma pausa na conversa.
- Muito bem - começou Birkin com ar indiferente e protetor. - Então, que tenciona fazer agora?
A jovem calara-se, amuada. Aquela pergunta irritava-a.
- Não tenho projeto algum - disse por fim. - Amanhã procurarei um pintor que me queira para modelo.
- Em quem pensa?
- Bentley em primeiro lugar. Mas parece-me que está danado comigo por lhe haver fugido da outra vez.
- No tempo da Madonna?
- Sim. Aliás, se não precisar de mim, tenho a certeza de encontrar trabalho em casa de Camarthen.
- Camarthen?
- Lord Camarthen. Dedica-se à fotografia.
- Ombros nus...
- Claro, mas é uma pessoa decente.
Calaram-se outra vez.
- E o que vai fazer de Julius? - perguntou Rupert.
- Nada - asseverou Miss Darrington. - Ignorar a sua existência.
- Rompeu definitivamente com ele?
Ela virou o rosto, de mau humor, e não respondeu à pergunta. Aproximou-se da mesa outro rapaz, muito apressado.
- Olá, Birkin! Olá, Bichana! Quando voltou? - foi dizendo o desconhecido, ainda ofegante.
- Hoje mesmo.
- Halliday já sabe?
- Ignoro. Nem me interessa saber.
- Ah! Ah! O vento sopra sempre do mesmo quadrante, não é isso? Incomoda-os se eu tomar lugar nesta mesa?
- Estou conversando com Upert; importa-se? - replicou a jovem tranquilamente, embora em tom suplicante, como uma criança.
- Confissão plenária: isso alivia a consciência, heim? - exclamou o recém-vindo. - Então passem bem.
E, lançando um olhar rápido a Birkin e a Gerald, o rapaz afastou-se, fazendo girar, na pressa, as abas do paletó.
Durante todo o tempo, Gerald Crich conservou-se perfeitamente na sombra. Contudo, sentia que a moça já sentira o influxo da sua presença. Ele, entretanto, esperava, ouvia o que os outros diziam e esforçava-se por decifrar aqueles fragmentos de conversa.
- Fica na sua casa? - perguntou Miss Darrington ao inspetor.
- Por três dias. E você?
- Não sei ainda. É possível que vá à casa de Bertha.
Houve novo silêncio.
De repente a jovem voltou-se para Gerald e perguntou-lhe, em tom convencional, delicado, como quem reconhece a inferioridade da sua posição social, embora assuma certa intimidade de camaradagem com o homem a quem se dirige:
- Conhece bem a cidade?
- Não é fácil responder. Tenho vindo a Londres muitas vezes, mas nunca tinha entrado aqui.
- Não é então artista? - inquiriu ela de uma maneira que o classificava, evidentemente, de estranho ao grupo.
- Não sou - confirmou o outro.
- É soldado, explorador, um Napoleão da indústria - interveio Birkin, exibindo assim as credenciais de Gerald.
- Soldado? - repetiu a moça cheia de curiosidade aparentando indiferença.
- Agora não, há muitos anos que deixei o serviço.
- Esteve na última guerra - explicou Birkin.
- Ah, esteve?
- E depois foi explorar o Amazonas - continuou Rupert. - Presentemente é diretor de minas de carvão.
A mulher afirmou-se em Gerald com admiração recolhida, enquanto ele ria, ao ver-se descrito assim. Sentia-se orgulhoso, estuante de força máscula. Os olhos, vivos e azuis, iluminaram-se de prazer e o rosto corado daquele homem de cabelos louros e finos animou-se de maior vigor.
Miss Darrington sentia-se interessada; perguntou-lhe:
- Quanto tempo se demora?
- Um ou dois dias. Não tenho nada que me chame com urgência.
Continuou a observá-lo com aquele olhar envolvente que, para ele, se tornava já tão curioso e excitante. Gerald, por seu lado, tinha a vaidosa consciência de si próprio, do seu poder de sedução. Estava cheio de vida, capaz de desferir ondas magnéticas; não se eximia à ideia de que os olhos dela, escuros e ardentes o perscrutavam naquele momento. E como era belo o olhar de Miss Darrington, amplo, sombrio, envolvendo-o, a Gerald, dos pés à cabeça! Parecia flutuar aí uma película solta, de infortúnio e melancolia, espécie de mancha de óleo à tona d'água... No salão fazia um calor intenso e ela havia tirado o chapéu; a blusa, simples e folgada, apertava-se-lhe em volta do pescoço com um elástico: era feita de bom crepe-da-china, amarelo-claro, e descaía-lhe em pregas suaves ao longo do pescoço esguio e dos punhos delicados. O aspecto daquela mulher resultava natural e perfeito, na verdade cheio de beleza, devido à regularidade dos contornos, à maciez dos cabelos que caíam lisos em volta da cabaça, às feições corretas, miúdas e suaves, ao modelado egípcio do corpo, ao pescoço delgado e à blusa sóbria, de cor tão agradável, que lhe descia dos ombros esbeltos. Estava agora silenciosa, quase apagada no seu jeito reservado e vigilante.
A Gerald ela parecia atraente. Sentia possuir sobre ela um poder ao mesmo tempo terrível e estimulante, e isso provocava-lhe certa ternura instintiva, vizinha da crueldade. Era uma vítima nata, ele a tinha nas mãos, e seria generoso; passava-lhe dos membros túrgidos uma corrente elétrica de volúpia ardente. Podia, com a violência da descarga, aniquilar por completo aquela mulher. Ela, porém, ainda fora do alcance, começava já a abandonar-se-lhe.
Foram falando de banalidades. De repente, Birkin disse:
- Lá está o Julius! - E soergueu-se na cadeira, inclinando-se para o recém-chegado. Miss Darrington, num gesto de curiosidade e de malícia, olhou por cima do ombro, sem sequer mover o corpo. Gerald admirou-lhe a cabeleira negra e abundante, que oscilava em torno das orelhas; percebeu que a moça olhava com o maior interesse o homem que havia chegado, e por isso olhou também. Tratava-se de um rapaz magro e pálido, de cabelos louros e compridos aparecendo por sob o chapéu: caminhava desajeitado e mostrava na face um sorriso insípido, se bem que ingênuo e afetuoso. Aproximou-se de Birkin, impaciente por cumprimentá-lo.
Só quando já estava muito perto é que ele reparou na presença de Miss Darrington. Recuou, empalideceu ainda mais e disse em voz alta e esganiçada:
- Bichana, o que está fazendo aqui?
Todos no café levantaram a cabeça, como os animais quando ouvem um grito. Halliday ficou imóvel e um risinho quase imbecil perpassou-lhe vagamente nos lábios. Ela tinha-se limitado a observá-lo com olhar sombrio, no qual se notava uma confissão de impotência e ao mesmo tempo o insondável inferno da sua sujeição: sentia-se prisioneira.
- Por que voltou? - insistiu Halliday, com a mesma voz histérica e penetrante. - Eu lhe disse que não viesse.
Ela não respondeu, limitando-se a olhá-lo fixamente, demoradamente, enquanto ele recuava para a mesa próxima, como que em busca de um refúgio.
- Você bem sabe como desejava que ela regressasse. Venha para aqui e sente-se - ordenou Birkin.
- Não, eu não queria que ela voltasse e até lhe disse que não o fizesse. Bichana, por que fez isso?
- Claro que não foi por sua causa - declarou ela em tom de profundo ressentimento.
- Mas qual foi o motivo, afinal de contas? - insistiu Halliday, cuja voz era cada vez mais estridente.
- Ela vem sempre que quiser - atalhou Birkin. - Venha sentar-se aqui.
- Não quero ficar onde Bichana está.
- Não vou fazer-lhe mal algum, não precisa ter medo - disse ela secamente, quase protetora.
Halliday chegou-se para a mesa e sentou-se, pondo a mão no peito e exclamando:
- Oh, isso não me faz diferença! Bichana, eu não queria que você agisse assim. O que foi que aconteceu?
- Nada que lhe interesse saber - redarguiu Miss Darrington.
- Não existe outra resposta? - replicou ele em altos brados. Então ela voltou-se por completo para Gerald Crich, cujos olhos cintilavam, sutilmente divertido.
- Não teve muito medo das suas aventuras em meio aos selvagens? - perguntou, na sua maneira infantil e pausada de falar.
- Não, nunca tive. São inofensivos, em regra; ainda não despertaram para a vida, não se pode realmente ter medo deles. Sabemos a forma de os conduzir.
- Verdade? Não são muito ferozes?
- Não. Aliás, não há muitas criaturas ferozes. Não há tantos seres assim, sejam homens ou animais que ofereçam realmente perigo.
- Exceto quando agrupados - atalhou Rupert.
- Engraçado - volveu ela. - Julgava que os selvagens podiam ser muito perigosos, que nos tirassem a vida antes que a gente pudesse escapar.
- Julgava? - e Gerald começou a rir. - É dar-lhes importância demais! Não passam de gente como nós e, uma vez conhecidos, não despertam grande interesse.
- Então não é preciso muita buavua para ser explorador?
- Não, é mais uma questão de aguentar fadiga e privações.
- E nunca teve medo?
- Nunca tive medo em toda a minha vida. Ou melhor, tenho medo, sim, de certas coisas: ser fechado à chave em qualquer lugar, ser amarrado... Ficaria aterrorizado se me ligassem os pés e as mãos...
Miss Darrington fixou-o com os seus olhos negros, firmemente longamente... Ele sentiu-se estimulado, mas o espírito conservou-se calmo. Era delicioso ficar ali sentindo como aquela mulher lhe trazia a alma à superfície, arrancando-a da mais íntima e profunda substância do seu ser; ela desejava conhecê-lo, e aquele olhar sombrio o penetrava todo. Não havia dúvida de que a estava atraindo, que o destino a enviava para que suas vidas se cruzassem. Precisava conhecê-la a fundo, analisá-la... Tal ideia despertava em Gerald uma exultação estranha. Compreendia que não tardaria muito em tê-la em suas mãos, para a dominar inteiramente. Dir-se-ia uma escrava a contemplá-lo tão absorta e tão estranha! Não se interessara pelo que ele dissera, mas pelo que o homem lhe revelava de si mesmo: desejava os seus segredos e a experiência da sua masculinidade.
O rosto de Gerald iluminou-se de um sorriso involuntário misterioso, repleto de esplendor e de vida. Permaneceu com os cotovelos fincados na mesa; e as mãos, queimadas de sol, semelhantes a duas garras - embora atraentes e belas - continuaram estendidas para a vítima. Fascinavam-na; ela bem o sabia e saboreava a sua própria fascinação.
Outros homens chegaram, para falar a Birkin ou a Halliday. Gerald, em voz baixa, disse à moça:
- De onde é que voltou?
- Do campo - respondeu ela, também baixinho, mas distintamente. Tornara-se muito séria, e relanceava continuamente os olhos para Halliday. Depois uma chama sombria apareceu neles o homem, tristonho, tinha-se afastado de Bichana; no fundo, notava-se que a temia. Nos instantes que se seguiram, ela, por sua vez, pareceu ter-se esquecido de Gerald; a conquista ainda não estava feita.
- E o que tem Halliday com isso? - indagou Crich ainda em surdina.
Durante alguns segundos Miss Darrington não respondeu. Por fim explicou, um tanto contrafeita:
- Obrigou-me a ir viver com ele e agora pretende abandonar-me. E, apesar disso, não quer que eu ande com mais ninguém. Exige que eu more no campo, escondida de todos. E depois declara que sou eu que o persigo e que não é capaz de se desembaraçar de mim.
- Naturalmente ele não sabe bem o que quer.
- Não tem vontade própria, como é que há de saber o que quer? Espera sempre que os outros lhe digam o que deve fazer. Não faz nada por si mesmo, pois desconhece os seus próprios desejos. É uma verdadeira criança.
Gerald olhou para Halliday, observando-lhe as feições flácidas, indicadoras de certa degenerescência. Mas isso constituía nele um certo atrativo; mostrava uma natureza branda, modorrenta, corrupta, de quem se podia esperar tudo o que se quisesse.
- E tem alguma autoridade sobre você? - inquiriu Gerald!
- Já disse que me forçou a ir viver com ele, o que não era da minha vontade. Veio falar comigo e desatou a chorar. Se você visse as lágrimas que derramou! Dizia que não poderia viver se eu não o acompanhasse. Era capaz de ficar ali para sempre se eu não concordasse em partir. Depois, procedeu como de costume. E, agora, que vou ter uma criança, resolveu dar-me cem libras e mandar-me para o campo. Ora, eu não vou obedecer a ele...
Gerald lançou-lhe um olhar desconfiado.
- Vai ter uma criança? - interrogou, com ar incrédulo. Parecia-lhe impossível, uma pequena assim tão nova e tão longe, aparentemente, da ideia de maternidade!
Ela o fixou em pleno rosto, e naqueles olhos sombrios de iniciada passou uma expressão rápida, cheia de experiência do mal, soturna e indomável. Um dos seus raios atingiu diretamente o coração de Gerald.
- É verdade - respondeu. - Que coisa estúpida!
- Você não queria?
- Ah! Não! - declarou com ênfase.
- Mas... há quanto tempo sabe disso?
- Há dez semanas.
Durante aquele colóquio, Miss Darrington fitou sempre o seu interlocutor, que depois se manteve silencioso, pensativo. De repente, como que desinteressado do assunto, tornou em tom de ternura calculada.
- Pode-se comer alguma coisa aqui? O que lhe apeteceria?
- Gostaria de algumas ostras.
- Ótimo. Vamos às ostras. - E fez sinal ao garçom.
Halliday não reparou em nada. Só quando o prato chegou é que ele disse, bruscamente:
- Você não pode comer ostras. Lembre-se de que tomou conhaque...
- O que é que você tem com isso?
- Nada, nada... Mas comer ostras depois de ter bebido conhaque...
- Não bebi conhaque! - E atirou-lhe à cara o resto de licor que tinha no cálice. Ele soltou um grito e ela ficou a olhá-lo com a maior indiferença.
- Por que fez isso, Bichana? - exclamou o homem, espantado.
Gerald teve a impressão de que ele tinha medo dela, mas que gostava de experimentar aquele sentimento. Dir-se-ia deliciar-se no receio e no ódio da amante, e fazê-los render, extrair-lhes todo o sabor no meio da excitação que lhe causavam. Gerald imaginava-o um desses loucos excêntricos, sem deixar de ser divertido.
- Oh, Bichana! - interveio outro homem que falava com o tom rápido e baixo de Eton. - Você prometeu não lhe fazer mal nenhum.
- E não o fiz.
- Que vai tomar? - indagou o mesmo; era moreno, de pele fina e todo ele denunciava vigor.
- Olhe, Maxim, tudo, menos cerveja preta - respondeu ela.
- Então peça champanha - replicou o rapaz na sua voz delicada e murmurante.
Gerald teve, de súbito, o palpite de que aquilo não passava de uma insinuação. Exclamou, rindo:
- Tomamos champanha?
- Seco, se lhe agrada - sugeriu Miss Darrington no seu balbuciar de criança.
Gerald observava-a enquanto ela comia as ostras, discretamente, com dedos finos que pareciam estreitar-se nas pontas; fazia gestos breves e cautelosos, de requintada delicadeza. Crich estava embevecido naquela contemplação, o que sobremaneira irritava Rupert Birkin. Todos tomaram champanha. Maxim, rapaz russo de faces lisas e coradas, cabelos pretos, era o único que aparentava perfeita calma e sobriedade. Birkin conservava-se abstrato e pálido, muito pouco natural. Gerald sorria sempre, com um brilho de satisfação nos olhos frios, inclinado para Miss Darrington em atitude protetora; esta salientava-se pela sua beleza branda e desfolhada como alguma rubra flor em perturbadora glória, orgulhosa agora, excitada pela bebida e pela animação dos homens. Halliday perdera as estribeiras. Um copo era o suficiente para o embebedar e para deixá-lo a rir estupidamente. Mantinha, no entanto, certa candura pitoresca, que o tornava mais simpático.
- Nada me faz medo, exceto as baratas - declarou a Bichana levantando de repente os olhos negros, nos quais parecia vogar uma quase invisível chispa de fogo e fixando-os em Gerald. Este soltou uma gargalhada em que tomou parte todo o seu organismo. O balbuciar daquela garota acariciava-lhe os nervos; e os olhos dela, ardentes e perturbados, percorriam o corpo dele, fazendo-o esquecer-se de si próprio e restituindo-o à mais completa liberdade.
- Não tenho medo de mais nada! - repetiu Miss Darrington.
- Mas de baratas, ui! - E estremeceu, como se a própria ideia delas lhe fosse insuportável.
- Quer dizer - acudiu Gerald, com a meticulosidade de bêbado - que se assusta à vista de uma barata, ou receia que ela morda ou faça algum mal?
- Elas mordem? - perguntou a moça.
- São asquerosas! - sentenciou Halliday.
- Não sei se as baratas mordem - respondeu Gerald olhando para os circunstantes. - As baratas mordem? O importante não é isto. Tem medo da dentada ou é apenas uma antipatia metafísica?
Ela continuava a fitá-lo inexpressivamente.
- Acho-as medonhas, horríveis! - gritou. - Quando vejo alguma fico logo arrepiada. Se subissem em mim acho que eu desmaiava. Morria ate!
- Espero que tal não aconteça - murmurou o russo.
- Estou convencida de que morreria, Maxim.
- Em vista disso, ficam proibidas de passearem sobre você - garantiu Gerald, sorrindo com ar de suficiência. Ele compreendia Miss Darrington de um modo estranho.
- É metafísica, como lembrou o Crich - opinou Birkin.
Houve um silêncio. Todos se sentiam constrangidos.
- Não há outra coisa que lhe dê medo, Bichana? - indagou o rapaz russo, com aquele acento vivo e elegante que lhe era peculiar.
- Palavra que não! - respondeu ela. - Tenho medo de algumas coisas, mas não é o mesmo. Ver sangue não me assusta...
- Não tem horror ao sangue! - exclamou um sujeito de rosto largo e descorado, e ar risonho, que acabava de se aproximar da mesa encomendando um uísque.
Miss Darrington mirou-o com enfado, olhando-o com desprazer.
- Não tem, na verdade, horror ao sangue? - insistiu ele, em tom de brincadeira.
- Não, não tenho.
- Mas já o viu alguma vez sem ser no dentista?
_ Não estou falando com você - respondeu ela com dignidade.
- Pois devia responder!
Como resposta, a Bichana espetou-lhe uma faca na mão gorda e branca. O rapaz levantou-se de um salto, soltando uma exclamação de dor.
- Isso mostra quem é você - concluiu a moça.
- Raios a partam! - exclamou o ferido, de pé ao lado da mesa, olhando com raiva para a agressora.
- Acabem com isso! - ordenou Gerald, instintivamente.
O rapaz continuava a olhar para Miss Darrington, agora com ar sardônico, mas a inquietação espelhava-se-lhe no rosto flácido e amarelo. O sangue começara a correr-lhe da mão.
- É horrível! Esconda isso! - gritou Halliday, tornando-se lívido e voltando o rosto para o outro lado.
- Sente-se mal? - perguntou-lhe o agredido, que se mostrava solicitamente irônico. - Sente-se mal, Julius? Não foi nada, não vamos dar a ela a impressão de que foi uma façanha. Não vamos lhe dar esse prazer, meu caro: é isso o que ela quer.
- Oh! - grunhiu Halliday.
- É capaz de desmaiar - preveniu a jovem, dirigindo-se a Maxim. Então este levantou-se e saiu com Halliday, a quem segurava pelo braço. Birkin, pálido e aborrecido, contemplara toda a cena sem nada dizer. E o ferido, ainda com o seu ar sardônico, fingia não perceber que tinha a mão ensanguentada, o que era feito de maneira muito afetada.
- Não passa de um grande covarde - disse Bichana a Gerald. - Tem enorme influência sobre Julius.
- Quem é? - perguntou aquele.
- É judeu, sem dúvida. Não o suporto.
- Não lhe dê importância. Agora, quanto a Julius, o que aconteceu?
- Julius é o maior covarde que já conheci. Desmaia sempre que pego numa faca. Tem um medo terrível de mim.
- Hum!
- Todos têm medo de mim - continuou ela. - O judeu pensa que pode comigo. Pois é o mais poltrão da turma; treme de medo da opinião alheia. Julius é que pouco se incomoda com isso.
- A coragem de todos eles, somada, pouco chega para cada um - observou Gerald, de bom humor.
Bichana concedeu-lhe um lento, vago sorriso. Estava tão bela, corada, cheia de confiança no meio da sua terrível aventura da vida. Nos olhos de Gerald acenderam-se dois pontinhos luminosos.
- Por que a chamam de Bichana? É por se parecer com uma gatinha? - perguntou.
- Creio que sim - respondeu ela.
O sorriso acentuou-se no rosto de Crich.
- Parece mesmo... Ou melhor, uma panterazinha.
- Oh! Gerald! - gritou Birkin, meio enfastiado.
Os dois olharam para ele, contrariados.
- Você tem estado silencioso esta noite, Rupert! - observou Miss Darrington, num tom levemente insolente, escudada como se sentia com a presença do outro.
Halliday estava voltando; tinha um aspecto desanimado e doentio.
- Bichana - disse ele. - Eu gostaria que você não fizesse mais essas coisas. Oh! - e deixou-se cair numa cadeira, suspirando!
- É melhor ir para casa - lembrou ela.
- Já vou. Mas vocês também devem vir. - Dirigia-se particularmente a Gerald. - Ficaria satisfeito se viesse! Vai ser ótimo! - Olhou em volta para ver se descobria o garçom. - Chame um táxi! - Suspirou mais uma vez e disse: - Você vem, Bichana? Acompanhem-me todos, vai ser assombroso!
- Por que você é tão idiota? - exclamou Miss Darrington com ar tranquilo.
- Idiota eu não sou! Venham, vai ser ótimo. Você também, Bichana. Você tem de vir. Não crie problemas, minha querida. Estou tão bem disposto agora!
- Você sabe que não pode beber - disse ela, formalizada.
- Garanto que não estou bêbado. Isso é uma consequência do seu procedimento desleal! Obrigado, Libidmikov, mostre-nos o caminho!
- Não tomou mais do que um copo - explicou o russo, com sua fala rápida e acariciante. - Apenas um copo!
Dirigiram-se todos para a porta. A moça ia junto de Gerald, parecia deslocar-se simultaneamente com ele, como se formassem uma única pessoa. Gerald percebeu isso, o que o encheu de uma satisfação diabólica, saber que o movimento que fazia a unia completamente a ele! Tinha-a nas mãos, àquela criaturinha ágil, discreta, invisível no andar.
Os cinco entraram no carro e lá se acomodaram. Halliday foi o primeiro a subir e refestelou-se no assento do outro lado da porta. Depois foi Bichana, e Gerald ficou junto dela. Ouviram o russo dar instruções ao motorista; iam todos apertados, no escuro, sentindo Halliday suspirar, debruçado para fora. Ouviam o deslizar veloz do carro.
Miss Darrington, sentada ao lado de Gerald, parecia fundir-se, passar sutilmente para o corpo dele, como se fosse uma corrente elétrica que o penetrasse em tenebroso fluxo. Todo o seu ser se dissolvia nas veias daquele homem, com uma densidade magnética, concentrando-se na base da coluna vertebral, qual foco de espantosa força. Contudo, a voz dela soava aguda e indiferente, dirigindo-se ora a Birkin, ora a Maxim. Entre ela e Gerald havia, porém, aquele silêncio e aquela compreensão profunda que se opera no escuro. Depois, ela apossou-se da mão dele e apertou-a contra a sua numa delicada pressão. A escuridão era completa, mas a intenção foi tão nítida que rápidas vibrações atravessaram o cérebro e o sangue de Gerald Crich, fazendo-o perder o domínio de si mesmo. Outra vez a voz da moça repercutiu como uma campainha, num som vagamente galhofeiro. E como balançasse a cabeça, as mechas finas do cabelo roçaram pela face dele, pondo-lhe todos os nervos em fogo, qual um contato elétrico e sutil. Mas o centro principal da sua força, de que Gerald era tão orgulhoso - mantinha-se sempre na base da coluna vertebral.
Chegaram a um agrupamento de casas, subiram pelo elevador, e logo uma porta se abriu, aparecendo nela a figura de um hindu. Gerald olhou surpreendido, pensando se seria algum cavalheiro, um daqueles indianos que frequentavam Oxford. Mas não, era apenas o criado.
- Prepare o chá, Hasan - ordenou Halliday.
- Há quarto para mim? - perguntou Birkin.
O oriental respondeu, a um e a outro, com um murmúrio de palavras, arreganhando os dentes.
Gerald ficou indeciso, pois, alto, delgado discreto como o outro parecia, a impressão que lhe dava era a de um cavalheiro.
- É o seu criado? - perguntou a Halliday. - Tem um aspecto tão distinto!
- Talvez. Mas é porque está usando uma roupa que não lhe pertence. Pode ser tudo, menos elegante. Encontra-mo-lo na rua, esfomeado. Recolhi-o aqui, outros lhe deram a roupa. É tudo o que você quiser, menos o que aparenta. A única vantagem que possui é não falar inglês e não compreender o que a gente fala. Deixa-nos perfeitamente tranquilos.
- Parece-me sujo - observou o russo, com sua voz secante.
Daí a instantes o homem reapareceu no limiar da porta.
- Que temos? - perguntou Halliday.
O hindu mostrou os dentes e murmurou timidamente:
- Preciso falar com o patrão.
Gerald examinou-o, cheio de curiosidade. O criado parecia bem, muito calmo, distinto, aristocrático. Era, no entanto, semisselvagem, abrindo a boca como um idiota. Halliday saiu ao corredor para atendê-lo.
- O quê? - ouviram-no gritar. - O quê? Que é que está dizendo? Repete! Dinheiro? Para que mais dinheiro? - Seguiram-se confusos sons na língua de Hasan e por fim Halliday voltou, rindo-se perdidamente e explicando:
- Diz que precisa de dinheiro para comprar roupa branca. Quem é que pode emprestar um xelim? Obrigado, um xelim é o bastante para comprar toda a roupa de que precisa. - Recebeu a moeda das mãos de Gerald e foi outra vez ao corredor, onde o ouviram declarar: - Ontem eu lhe dei três xelins e seis pences. Não torne a pedir dinheiro. E traga o chá, sem demora.
Gerald circunvagou os olhos pelo aposento. Era a sala de estar infalível de todas as casas que se alugam mobiliadas em Londres: vulgar e feia. Apesar disso, avultavam algumas estatuetas de negros, trabalhos de madeira esculpida provenientes da África Ocidental, estranhos e perturbadores; as figuras representadas tinham aparência de fetos humanos. Um deles significava uma mulher nua sentada em posição extravagante; julgar-se-ia estar submetida a qualquer tortura e exibia um ventre saliente. O rapaz russo esclareceu que ela se encontrava com as dores do parto e que se agarrava à faixa amarrada no pescoço para melhor suportar e ajudar a operação. O rosto da mulher, rudimentar, estranho, sugeriu igualmente a Gerald a ideia de um feto e tinha também uma coisa extraordinária: mostrava os extremos da sensação física, aquém dos limites da consciência intelectual.
- Não acham um tanto obsceno? - perguntou ele, enfastiado.
- Não sei - murmurou Maxim. - Nunca defini o obsceno. Parece-me que as estatuetas são boas.
Gerald afastou-se. No quarto havia um ou dois quadros de pintura futurista e ainda um piano de cauda. E móveis, como os que possuem todas as pensões de Londres.
Bichana tirara o chapéu e a capa e sentara-se no sofá. Não havia dúvida de que estava como em sua própria casa, se bem que indecisa. Não sabia ao certo qual seria a sua posição. Por enquanto era Gerald o homem a quem ela pertencia, mas não tinha confiança na maneira como os outros admitiriam o fato e tentava encontrar uma solução. Resolvera lançar-se naquela aventura. Ate agora ninguém lhe havia oposto obstáculos. O rosto estava corado, só de pensar na possibilidade de uma luta. O olhar era pensativo, mas resoluto.
O criado entrou com o chá e uma garrafa de licor, depondo a bandeja numa mesinha, defronte do divã.
- Bichana - disse Halliday - sirva o chá.
Ela não se mexeu.
- Não quer? - perguntou o dono da casa, já fora de si.
- Não estou aqui nas mesmas circunstâncias dos outros tempos - elucidou ela. - Vim apenas porque estes senhores me pediram e não por sua causa.
- Você faz o que quiser, minha querida Bichana; não a obrigo a coisa alguma; disponha desta casa como quiser, já lhe disse muitas vezes.
Miss Darrington não deu resposta, mas, silenciosa e reservadamente, pegou no bule. Sentaram-se todos e tomaram chá. Gerald verificou que, entre ele e ela, continuava a existir aquela forte atração sentimental; porém, como a moça permanecia calada e alheia, indicando que tudo ia tomar um novo rumo, o rapaz ficou um tanto perplexo perante uma nova onda de calor e amabilidade. Como chegaria a tornar-se seu amante? Que era inevitável, isso ele sentia. Deixava-se arrastar pela corrente que os unia um ao outro. A perplexidade era apenas superficial: haveria novos protestos. Bastava deixar-se impelir, nada os poderia deter.
Birkin levantou-se. Pouco faltava para uma hora da manhã.
- Vou-me deitar - disse ele. - Gerald, telefone amanhã de manhã; ou melhor, eu telefonarei para você.
- Combinado - respondeu Crich. Birkin retirou-se da sala.
Logo a seguir, Halliday convidou Gerald, em tom persuasivo.
- Passe a noite aqui. Fique conosco!
- Não cabe toda a gente aqui!
- Cabe! Há mais três camas além da minha. Fique, se quiser. Gosto tanto de ver a casa cheia!
- Mas só há dois quartos - interveio Miss Darrington muito fria, quase hostil. - E Rupert está aqui...
- Bem sei que são dois os quartos - redarguiu Halliday com aquela maneira estranha de falar - E que tem isso?
Sorria alvamente e falava apressado, cheio de convicção.
- Julius e eu ficaremos juntos - disse o russo, discreto e sutil. Halliday e ele eram amigos desde os tempos de Eton.
- É simples - afirmou Gerald, erguendo-se e estirando os braços. Depois foi examinar outra vez uma das pinturas. Suas pernas se entumeciam com um vigor elástico; o peito, distendido como o de um tigre, era percorrido por uma espécie de fogo. Sentia-se orgulhoso de si mesmo.
Miss Darrington levantou-se também. Lançou a Halliday um olhar sinistro, que trouxe ao rosto do homem um novo sorriso estúpido e satisfeito. Depois abandonou a sala, com um cumprimento de boa noite geral e cerimonioso.
Houve um breve intervalo, ouviu-se uma porta que se fechava e, por fim, Maxim disse, sempre com a mesma voz requintada:
- Perfeitamente...
Olhou para Gerald, com certa intenção, e acrescentou, curvando-se:
- Tudo corre bem. Esteja à sua vontade.
Crich fitou-o, viu-lhe a face lisa, vermelha, suave, os olhos estranhos e maliciosos, e pareceu-lhe que as palavras do russo, débeis e distintas, lhe soavam mais no sangue do que nos ouvidos.
- Tudo corre bem? - perguntou.
- Sim, sim! Às mil maravilhas - confirmou o russo. Halliday continuou a sorrir e não disse nada.
De súbito, a jovem reapareceu à porta, e a sua carinha infantil parecia taciturna e indignada.
- Sei que me querem apanhar - declarou com arrogância. - Mas pouco me importo, pouco me importo que me apanhem...
Deu meia volta e desapareceu outra vez. Vestia um robe de seda vermelha, amarrado em volta da cintura. Tinha um aspecto tão frágil, quase comovente, de criança!
Entretanto, o clarão sombrio dos seus olhos fez Gerald mergulhar numa escuridão tremenda, de que ele próprio se assustou.
Os homens acenderam novos cigarros e conversaram com naturalidade.


Capítulo VII
Totem
Era já tarde quando Gerald acordou. Dormira um sono pesado. Bichana estava ainda adormecida, enternecedoramente infantil. Parecia muito pequenina, enroscada e indefesa; o sangue do rapaz despertou numa chama de paixão insatisfeita, devoradora e ávida comiseração. Olhou mais uma vez para ela. Seria crueldade despertá-la. Dominou-se e saiu do quarto.
Ao ouvir vozes na sala - era Halliday que falava com Libidnikov - foi ate a porta e relanceou a vista, imaginando o que poderia fazer naquela casa de solteirões.
Com grande surpresa sua, viu os dois homens junto ao fogão, completamente nús. Halliday fitou-o com ar satisfeito.
- Bom dia - disse ele. - Precisa de toalha? - Nu como estava, dirigiu-se para o corredor, estranha figura branca deslocando-se no meio do mobiliário inerte. Regressou com duas toalhas e voltou à primitiva posição, agachado diante do fogo.
- Não gosta de experimentar a sensação do fogo sobre a pele?
- Deve ser agradável - concordou Gerald.
- Que bom será viver onde se possa andar sem roupa nenhuma em cima de nós! - tornou Halliday.
- Sim, se não houvessem insetos para picar e morder.
- É uma desvantagem - murmurou Maxim.
Gerald mirou-o e viu, com certa repulsão, o animal humano na sua nudez dourada e vagamente humilhante. Halliday era diferente; tinha, pelo contrário, uma beleza sólida, branca, firme, civilizada. Lembrava o Cristo de alguma Pietá. O animal não avultava, mas sim a beleza sólida e serena. Reparou ainda como os olhos de Halliday eram belos, muito azuis, ardentes e expressivos. A luz das brasas tombava-lhe nas costas dobradas, enquanto ele estava naquela posição; mas o rosto, erguido, mostrava-se na sua graça particular e impressionante, se bem que as feições fossem um pouco salientes.
- Certamente - observou o russo - você viajou pelos países quentes, em lugares onde a população anda despida.
- Sim? - exclamou Halliday. - Onde?
- América do Sul... Amazonas... - elucidou Gerald.
- Esplêndido, esplêndido! Era uma das coisas que eu mais gostaria de fazer: ficar dias inteiros sem vestir coisa alguma! Se pudesse conseguir isso, teria a impressão de, realmente ter vivido.
- Mas, por quê? - indagou Gerald. - Não vejo que haja assim, tanta diferença...
- Ora, continuo a achar que seria magnífico. A vida teria outro sabor, seria absolutamente bela!
- Mas, por quê? - repetiu Gerald. - Por que diz isso?
- Sentiríamos as coisas em lugar de nos limitarmos a vê-las. Perceberia o ar a envolver-me, compreenderia tudo em que tocasse, em vez de olhar apenas; acho que a vida se tornou desagradável por excesso de visualidade: não ouvimos, não sentimos, nem apreciamos nada; Vemos, somente. Estou persuadido de que isso foi um erro.
- Tem razão, tem razão - concordou o eslavo.
Gerald viu-lhe o corpo delicado, com os cabelos negros e finos, soltos, como se fossem gavinhas e os membros semelhantes ao tronco liso das árvores. Era saudável e bem constituído... Por que daria, então, uma impressão de repulsa? Por que motivo Gerald se aborrecia? Era naquilo que se resumia o corpo humano? "Tão pouco sugestivo!", pensou.
Birkin apareceu, de súbito, junto à porta, igualmente nú, com a toalha e o pijama no braço. Magro, de pele clara, parecia uma criatura à parte.
- Disponham do banheiro, se querem - disse ele a todos os presentes e já se ia embora quando Gerald o chamou.
- Escute, Rupert!
- Que é? - A figura pálida deu entrada na sala.
- Que acha desta estatueta? Gostaria de saber.
Birkin, estranha presença, aproximou-se da escultura de madeira, que representava a negra em transe de parto, nua, de formas protuberantes, numa postura dolorosa, com as mãos a agarrarem a faixa pendente do pescoço.
- É artístico - proclamou ele.
- Lindo, lindo! - observou o russo.
Todos se aproximaram para ver melhor. Gerald contemplou o grupo daqueles homens despidos: Maxim Libidnikov, dourado, espécie de planta aquática; Halliday, alto e melancólico; Birkin, muito branco e ágil, difícil de definir, absorto no exame da escultura. Gerald ergueu também os olhos para esta com o maior interesse. O coração contraiu-se-lhe.
Analisou com espírito claro a face parda e esticada daquela preta absorvida num esforço físico inultrapassável. Era um rosto terrível, nulo, distendido, quase abstrato de significação pelo peso do sofrimento nas entranhas. Viu ali o exemplo da Bichana; o vulto transmudara-se no dela, como em sonho.
- Por que diz que é artístico? - inquiriu Gerald, desconcertado e descontente.
- Aqui está uma verdade completa - explicou Birkin. - A verdade completa desta situação, malgrado tudo o que você pensar.
- Mas não vai chamar a isto de arte... com maiúscula.
- Arte! Por trás desta estatueta de madeira há séculos e centenas de séculos de desenvolvimento. É um estádio assombroso de cultura, de uma categoria especial.
- Qual cultura? - perguntou Crich, disposto a contrariar. Detestava simplesmente tudo o que era africano.
- Cultura da sensação, da consciência física, realmente a mais conscienciosa, alheia ao espírito, inteiramente sensual. Tão sensual que atinge a finalidade suprema.
Mas Gerald recusava-se a aceitar a explicação; preferia conservar certas ilusões, certas ideias como revestimento do seu espírito.
- Você gosta do que não deve, Rupert - disse ele - do que é contrário à sua própria natureza.
- Bem sei, mas não importa - tornou o outro, afastando-se. Quando Gerald voltou para seu quarto, de volta do banho, trazia também a roupa no braço. Parecia-lhe que, naquela casa, seria inconveniente não andar despido. No fim de contas, era tão agradável, tão simples! Achava mesmo divertido que cada qual andasse, decididamente, nu em pêlo.
Bichana ainda estava deitada, imóvel: os olhos escuros e redondos assemelhavam-se a duas lagoas sombrias e tristes. Talvez se sentisse desgraçada. A sensação do possível sofrimento despertou nele a velha chama da piedade, piedade dolorosa, paixão quase cruel.
- Já acordou? - disse Gerald.
- Que horas são? - perguntou ela numa voz apagada.

 


                                                          CONTINUA