Parecia refluir para longe dele, espécie de maré a desaparecer irremediavelmente. Aquele olhar de ser primitivo, de escrava violada, cujo papel consiste em deixar-se vencer continuamente, fazia-lhe vibrar os nervos num desejo agudo e desesperado. Em última análise, esta é que era a vontade de Gerald, e Miss Darrington representava a substância passiva daquela vontade. Sensação mordente e sutil, que lhe punha os ouvidos a zumbir! Então compreendeu que se devia afastar, que era forçoso estabelecer entre ambos a separação.
Seguiu-se um almoço sem incidentes; os quatro homens tinham o aspecto asseado de quem acabou de tomar banho. Gerald e o russo estavam corretíssimos e comme il faut tanto na aparência quanto nas maneiras; Birkin, descarnado e com ar cansado, denunciava o fracasso que experimentara ao querer apresentar-se elegante como os primeiros. Halliday usava uma roupa de quadradinhos, camisa de flanela verde e um projeto de gravata que lhe ia muito bem. O hindu trouxe torradas; apresentava a mesma figura da véspera, exatamente igual.
Bichana apareceu no final da refeição; vestia o robe de seda vermelha ajustado por uma faixa mal apertada. Refizera-se um pouco com o sono mas continuava silenciosa, sem vida. Era-lhe um martírio ter de responder a alguém. O rosto dela assemelhava-se a uma máscara, bela mas funesta, reveladora de uma vontade sofredora. Pouco faltava para o meio-dia. Gerald levantou-se e saiu para tratar dos seus negócios, contente por escapar. Mas não de vez: precisava voltar ainda à noite, para jantarem todos juntos e levá-los a um music-hall - exceção feita de Birkin.
Regressaram à casa de madrugada, de novo aquecidos pelo álcool. Mais uma vez o criado oriental - que desaparecia invariavelmente entre as dez e a meia-noite - veio, silencioso e impenetrável, com a bandeja do chá, curvando-se, lento e estranho como um leopardo, para a abandonar suavemente sobre a mesa. Continuava com aquela expressão hermética, com seu quê de aristocrático sobre a pigmentação pardacenta. Era novo e tinha boa aparência. Birkin, porém, ao observá-lo, sentia um vago mal-estar: a cor daquele homem fazia-lhe lembrar cinza ou substâncias em deterioração; e, na elegante impassibilidade dos seus modos, transparecia uma estupidez bestial e antipática.
Falaram, como na noite anterior, com animação e cordialidade. Mas já um pouco de frieza descia sobre os presentes: Birkin tomava-se de irritação insensata, Halliday começava a detestar Gerald, Bichana mantinha-se dura e fria como uma faca de pedra, enquanto o dono da casa renovava as suas familiaridades com ela. No fundo, o que a mulher queria era apoderar-se dele, dominá-lo por completo.
Na manhã seguinte, erraram, ociosos, pelos quartos. Gerald, contudo, percebeu que havia na atmosfera uma estranha hostilidade contra ele. Teimoso como era, preferiu em não abandonar o campo. Teimou mais uns dois dias. O resultado foi, na quarta noite, uma cena desagradável e injustificada com Halliday. Este, ao café, com absurda animosidade contra o seu hóspede, chamou-o de parte. Houve luta. Gerald estava prestes a derrotar o outro, enchendo-lhe a cara de socos, mas invadiu-o uma súbita repugnância e abandonou o terreno com indiferença, deixando Halliday convencido do seu triunfo. Miss Darrington foi reposta no seu trono e Maxim ficou livre de preocupações. Birkin estava ausente, tinha ido outra vez à cidade.
Gerald sentia-se aborrecido por não ter deixado dinheiro à Bichana. Na verdade, não sabia se ela o desejava ou não. Mas com dez libras, a moça alegrar-se-ia e ele ficaria satisfeito em ter-lhe dado aquela importância. Agora, sentia-se constrangido. Ao afastar-se, mordia os lábios. Compreendia que ela estava feliz por ter-se livrado do importuno. Recuperava o seu Halliday e satisfaria a sua vontade. Tinha-o de novo em seu poder. Talvez se casasse com ele. Era o seu mais ardente desejo. Não pensava noutra coisa. Nunca mais queria saber de Gerald, a menos talvez, que se visse em apuros, pois, no fim de contas, Crich era o que se chama um homem e todos os outros. Halliday, Libidnikov, Birkin, a boêmia inteira, não o chegavam a ser. Mas, enfim, era gente com quem ela se podia entender. No meio deles, considerava-se segura. Os homens autênticos, como Gerald Crich, pô-la-iam em seu verdadeiro lugar.
Todavia respeitava Gerald, e seriamente. Tomara a precaução de anotar o endereço dele, para poder procurá-lo em alguma possível necessidade. Sabia que ele estaria disposto a lhe dar dinheiro. Talvez ate escrevesse a ele, quando o horizonte estivesse negro.
Capítulo VIII
Breadalby
Breadalby era uma casa do período georgiano, de colunas da ordem coríntia, construída em meio dos outeiros mais verdes e mais suaves do Derbyshire, não muito longe de Cromford. A fachada dava para um relvado, mais adiante havia meia dúzia de árvores e entre elas encontravam-se os estábulos e a horta; ao fundo ficava a floresta.
Lugar verdadeiramente tranquilo, a poucas milhas da estrada real, na retaguarda do Derwent Valley, constituía um cenário maravilhoso. Silenciosa, abandonada, aquela moradia deixava ver, através do arvoredo, o seu estuque dourado; diante dela, o parque jamais mudara de aspecto.
Nos últimos tempos, contudo, Hermione permanecia ali com mais frequência. Fugia de Londres, fugia de Oxford e vinha refugiar-se no sossego do campo. O pai estava a maior parte das vezes ausente no estrangeiro; e ele entretinha-se só com os seus convidados, que eram sempre vários, ou com o irmão solteiro, deputado liberal. Este chegava quando não havia sessões parlamentares, embora se tivesse a impressão de que estava sempre presente em Breadalby; mas era perfeito cumpridor de seus deveres legislativos.
Começara já o verão quando Úrsula e Gudrun aceitaram, pela segunda vez, um convite para se instalarem ali. Logo que o carro em que viajavam entrou no parque, olharam além do declive, no vale em que as lagoas repousavam, e viram as colunas da mansão cobertas de sol, pequeninas como um desenho inglês da velha escola, na aba da colina verde, entre as árvores. Viam-se figuras humanas sobre o relvado, senhoras de vestidos azuis e amarelos movendo-se à sombra oscilante do belo cedro majestoso.
- Não parece um quadro? - perguntou Gudrun. - É perfeito. - Notava-se um certo ressentimento em sua voz, como se aquilo a cativasse involuntariamente, como se fosse obrigada a admirar contra a sua vontade.
- Gosta? - perguntou Úrsula.
- Não gosto, mas parece-me o melhor dentro desse gênero.
O automóvel desceu um outeiro e subiu outro e, fazendo uma curva, parou junto à porta lateral da casa. Surgiu uma criada; e depois Hermione, de rosto pálido e erguido; com as mãos estendidas, dirigiu-se às recém-vindas, murmurando em sua voz cantante:
- Aqui estão as minhas amigas! Muito prazer em recebê-las. (Beijou Gudrun). Imenso prazer! (Beijou Úrsula e ficou a abraçá-la). Estão cansadas?
- Nem um pouco - declarou Úrsula.
- E você, Gudrun?
- Também não, obrigada.
- Não? - repetiu Hermione vagarosamente. Continuou imóvel, a olhar para as duas irmãs, que se sentiam embaraçadas pelo fato de não serem convidadas a entrar enquanto a dona da casa insistia naquela cena de boas-vindas ali mesmo à porta. As criadas esperavam.
- Venham - disse por fim, depois de as ter contemplado longamente. Decidiu que era Gudrun a mais bonita e sedutora, Úrsula a mais escultural e feminina. Admirou o vestido de Gudrun, de popelina verde, com uma capa por cima, muito larga, listrada de verde-escuro e castanho. O chapéu era esverdeado, cor de feno novo e tinha uma fita franzida, em preto e laranja; as meias verdes e os sapatos pretos. Ambas formavam um belo conjunto, ao mesmo tempo pessoal e moderno. Úrsula, de vestido azul escuro, parecia mais vulgar, embora estivesse bem vestida.
Hermione trajava seda cor de ameixa: tinha ao pescoço contas de coral. As meias eram do mesmo tom. O vestido, porém, parecia muito usado e sujo, dir-se-ia ate que tinha manchas.
- Querem ver seus quartos, naturalmente... Vamos subir.
Úrsula ficou satisfeita ao se ver sozinha no quarto. Hermione demorava-se tanto em tudo, complicava de tal maneira as coisas! Punha-se tão perto das pessoas, asfixiava, comprometia! Estorvava a liberdade de cada um.
Serviram o almoço no campo relvado, sob uma árvore enorme, cujos ramos desciam quase ate o chão. Lá estavam também uma italiana, esbelta e elegante, uma jovem de ar atlético, Miss Bradley, um baronete erudito e seco, dos seus cinquenta anos, que dizia graças constantemente e ria a propósito delas um riso áspero como um relincho; e estavam ainda Rupert Birkin e uma senhora nova, bonita, magra, que era secretária de qualquer coisa: Fraulein Marz.
Os pratos eram de primeira ordem, o que significava bastante. Gudrun, que costumava ser exigente em tudo, deu-lhes inteira aprovação. Úrsula apreciou o lugar, a mesa resplandecente debaixo do cedro, o perfume da manhã, o cenário do parque frondoso e os veados, ao longe pastando sossegadamente. Era como se tivessem traçado, em volta daquele lugar, um círculo mágico, de onde o presente fora excluído, para guardar apenas o passado delicioso, as árvores, as corças, o silêncio, tudo como um sonho.
Mas no fundo ela se sentia infeliz. A conversa prosseguia, espécie de ribombar de guerra em pequena escala, sempre um pouco sentenciosa: e esse caráter acentuava-se ainda pelo espoucar contínuo dos ditos espirituosos, salpicos permanentes de ironias, destinados a dar um tom de leveza aos diálogos que abordavam assuntos de ordem crítica e geral. Mas a conversa, em vez de se alastrar como uma corrente, seguia, por assim dizer, canalizada.
O tom era intelectual e fatigante. Apenas o velho sociólogo cuja fibra mental excessivamente dura o tornava insensível, só esse parecia inteiramente feliz. Birkin mantinha-se cabisbaixo. Hermione procurava, com surpreendente insistência, ridicularizá-lo e fazê-lo antipático aos olhos de todos. E era curioso verificar como conseguia o seu propósito, tão desamparado se sentia o inspetor em face dela! Deviam achá-lo mais do que insignificante. Úrsula e Gudrun, nada habituadas ao meio, conservavam-se caladas, limitando-se a ouvir a voz lenta e cantante de Hermione, os ditos espirituosos de Sir Joshua, a tagarelice da alémã ou as respostas das duas outras senhoras.
Terminado o almoço, serviu-se o café e mais adiante, sentando-se os convivas em cadeiras confortáveis, sobre a relva, à sombra uns e outros ao sol, conforme as predileções. A Fraulein entrou em casa, Hermione pegou no bordado, a italiana em um livro, Miss Bradley pôs-se a trançar tirinhas de erva - e assim aproveitaram aquela tarde de verão trabalhando ou conversando acerca de coisas mais ou menos intelectuais.
Ouviu-se, de súbito, o ranger de freios e o ruído de um carro que parava.
- É Salsie! - exclamou Hermione, sempre na sua voz cantante e arrastada. E, largando o trabalho, levantou-se vagarosamente, atravessou o campo relvado, contornou as sebes e desapareceu.
- Quem é? - perguntou Gudrun.
- Roddice, o irmão dela. Pelo menos, parece que é - respondeu Sir Joshua.
- Salsie? Sim, é o irmão - confirmou a condessinha italiana, erguendo por momentos os olhos de cima do livro e falando como quem dá uma simples informação, no seu inglês gutural e um tanto exagerado.
Ficaram na expectativa. Por trás dos arbustos surgiu a figura alta de Alexander Roddice; vinha em largas passadas, como um herói romântico de Meredith fiel à recordação de Disraeli. Cordial para com todos, tornou-se imediatamente o anfitrião habituado a dispensar a mais afável hospitalidade aos amigos de Hermione. Chegava precisamente de Londres, da Câmara dos Deputados, cuja atmosfera se espalhou logo em volta dele; o ministro dissera isto e aquilo; e ele, Roddice, por outro lado, pensava assim e assado e não se esquivara a declará-lo ao Presidente do Conselho.
Hermione surgia agora na companhia de Gerald Crich, que tinha vindo com Alexander. Gerald foi apresentado às outras pessoas; depois esteve uns momentos ali guardado por Hermione, junto de quem acabou por se sentar. Era, evidentemente, o hóspede de honra.
Havia qualquer dissidência no Ministério; o titular da pasta da Instrução demitira-se em face de certas críticas dos adversários. Aquilo originou, entre os convidados dos Roddices, uma conversa a respeito de instrução pública.
- Sabe-se - disse Hermione, esticando o rosto, como de costume - que não há razão nem desculpa para se ministrar conhecimentos senão invocando a própria alegria e beleza do saber. - Pareceu estar, durante um minuto, a imaginar pensamentos profundos, e depois observou: - O ensino obrigatório não é instrução; é ate uma forma de a destruir.
Gerald, alheio à discussão, respirava o ar do campo com delícia, preparando-se para intervir.
- Necessariamente, não é - disse ele. - Mas a instrução não será como a ginástica? O fim da primeira é produzir espíritos vigorosos, aptos, enérgicos.
- Assim como os desportos atléticos produzem corpos saudáveis, prontos para o que der e vier - atalhou Miss Bradley, em reforço daquela opinião.
Gudrun observou-a em silêncio, horrorizada.
- Enfim... - tornou Hermione, divagando. - Não sei. Para mim o prazer do conhecimento é tão grande, tão extraordinário! Nada significa tanto na minha vida como o conhecimento. Nada, tenho a certeza.
- Que espécie de conhecimento? - perguntou o irmão.
Hermione levantou o rosto e continuou a divagar:
- Não sei... Mas como eu compreendi as estrelas, quando soube alguma coisa sobre elas! Sentimo-nos elevar tanto, tão sem limites.
Birkin olhava para ela, lívido de cólera.
- Por que deseja ser ilimitada? - perguntou, sarcástico. - Tenho a impressão de que não precisa disso.
Hermione recuou na cadeira, ofendida.
Gerald interveio:
- Não há dúvida, tem-se essa sensação de ilimitado, como quem subisse ao alto de uma montanhas divisasse o Pacífico.
- Silencioso, sobre uma rocha no Dariayn - Verso final de um soneto de Keats - nota da tradutora) - disse a italiana, erguendo, por um momento, os olhos de cima do livro.
- Não é necessariamente no Darien - notou Gerald, enquanto Úrsula começava a rir.
Hermione deixou passar alguns segundos e depois retomou a palavra, firme no seu ponto de vista:
- Saber é o mais importante da vida. Significa ser feliz, ser livre.
- A ciência, já se sabe, é a liberdade - corroborou Malleson.
- Em comprimidos - concluiu Birkin, fixando os olhos no corpo seco e pequenino do baronete. Gudrun, imediatamente, viu o famoso sociólogo transformado em frasquinho achatado, cheio de comprimidos de Liberdade.
A ideia fê-la sorrir. Sir Joshua ficava definido e catalogado no seu espírito para sempre.
- Que quer dizer com isso, Rupert? - indagou a dona da casa, em um tom de repreensão amigável.
- Em sentido estrito, não se pode ter conhecimento senão do passado - replicou Birkin. - É como quem engarrafasse a liberdade do ano passado em frascos de conservas.
- Não se pode ter conhecimento senão do passado? - perguntou o baronete, já com certo azedume.
- O que sabemos das leis da gravidade está incluído nessa categoria?
- Está - respondeu Birkin.
- Neste livro há uma coisa mais engraçada - exclamou de repente a italiana. - Diz que o homem chegou à porta e atirou os olhos para a rua.
Houve uma gargalhada geral. Miss Bradley aproximou-se e olhou por cima dos ombros da contessa.
- Vejam - disse esta. E leu: - "Bezarov abriu a porta e atirou apressadamente os olhos para a rua".
Seguiu-se outra gargalhada estrondosa. O mais divertido era o baronete, cujo riso dava a impressão de um desmoronar de pedras.
- Que livro é esse? - perguntou Alexander, muito interessado.
- Pais e Filhos, de Turguenev - respondeu a estrangeira, pronunciando distintamente cada sílaba. Ela mesma examinou a capa, para se certificar.
- É uma velha edição americana - elucidou Birkin.
- Ah! Nota-se que é traduzida do francês - disse Alexander com a sua entonação declamatória. "Bazarov ouvrit la porte et jeta les yeux dans la rue". Circunvagou depois o olhar brilhante pela roda dos amigos.
- Gostaria de saber o que seria o apressadamente - observou Úrsula.
Fizeram conjecturas.
Naquele momento, com surpresa para todos, a criada chegou com a bandeja do chá. A tarde passara rapidamente!
Em seguida ao chá, os hóspedes foram convocados para um passeio.
- Quer vir passear? - perguntou Hermione a cada um deles, um por um. Todos disseram que sim, sentindo-se um pouco como os prisioneiros enfileirados para a marcha Birkin foi o único a recusar.
- Venha, Rupert.
- Não, Hermione.
- De verdade?
- De verdade.
Houve um instante de hesitação.
- E qual o motivo? - perguntou ela. A mais leve contrariedade punha-lhe o sangue em ebulição. Ela pretendia levá-los através do parque.
- Não gosto de andar em bando.
Percebeu-se que Hermione sufocava a voz na garganta; mas respondeu, com uma calma inesperada:
- Vamos deixar o menino sozinho, já que ele está rabugento. Depois desta sátira, Hermione mostrou-se muito alegre. Ele, porém, ficou ainda mais casmurro.
A dona da casa dirigiu-se lentamente ao encontro dos outros, limitando-se a acenar, de longe, a Birkin, gritando-lhe em tom de brincadeira:
- Adeus, menino, adeus.
"Adeus, bruxa feia", dizia ele consigo mesmo.
Os convidados seguiram pelo parque. Hermione desejava mostrar-lhes narcisos silvestres em um talude. - Por aqui, por aqui - ouvia-se indicar, de vez em quando, a sua voz musical. Todos acorriam à chamada. Os narcisos deviam ser lindos, mas não era fácil contemplá-los. Úrsula mantinha-se contrariada, cheia de hostilidade contra tudo o que a cercava. Gudrun, mais objetiva e irônica, observava as coisas e tomava nota mentalmente.
Viram as corças tímidas; Hermione falava com o veado como se fosse uma pessoa que ela quisesse mimar e lisonjear. É possível que - visto tratar-se de um macho - conseguisse exercer um certo domínio sobre o animal. Contornaram os lagos e Hermione descreveu-lhes o combate de dois cisnes que haviam brigado por ciúmes. Tinha um risinho abafado ao descrever como o amoroso vencido se deitou na areia, com a cabeça escondida debaixo da asa.
Estavam em casa outra vez. Hermione parou no relvado e chamou em voz alta, estranha e sempre cantante:
- Rupert! Rupert! - A primeira sílaba era dita alto e de forma prolongada; a outra enfraquecida: - Ru-u-u-u-pert!
Nenhuma resposta. Surgiu uma criada.
- Onde está o Sr. Birkin, Alice? - perguntou a patroa, com entonação meiga e distraída, que ocultava, no íntimo, uma vontade persistente e quase insana.
- Acho que está no quarto, minha senhora.
- Está?
Subiu a escada, atravessou o corredor, chamando sempre:
- Ru-u-u-pert!
Chegando à porta do aposento, bateu e gritou ainda:
- Ruu-u-u-pert!
- Que é? - respondeu uma voz, lá dentro.
- Que está fazendo?
A pergunta era carinhosa, mas indiscreta.
Não ouviu nada, a princípio. Depois sentiu-o abrir a porta. - Já voltamos - explicou ela - os narcisos são lindos.
- Eu sei; já os vi.
Ela o fitou com um olhar demorado, impassível, que lhe caía lentamente pelas faces.
- Já os viu? - repetiu como um eco. E ficou olhando para ele. Estimulava-a, mais do que tudo, aquele estado do conflito com Rupert quando este se portava como um rapazinho teimoso, ali à sua mercê, em Breadalby. Mas, no fundo, reconhecia não ter motivos de queixa e que a sua indignação era inconsciente, mas intensa.
- Que estava fazendo? - tornou a perguntar, em tom calmo e indiferente. Birkin não respondeu e Hermione foi entrando pelo quarto adentro. Viu então que ele trouxera de outro aposento um desenho chinês que representava gansos e o copiara com muita perícia e arte.
- Copiava isto? - perguntou ela, parando junto da mesa e examinando o trabalho.
- Sim, senhor, muito belo! Gosta tanto assim deste trabalho, Rupert?
- Acho-o uma maravilha.
- Verdade? Estimo saber, porque eu também sempre o adorei. Foi o embaixador da China que me ofereceu, como presente.
- Eu já sabia.
- Mas por que razão o copia - indagou ela, distraidamente. - Por que não faz qualquer obra original?
- Desejo conhecê-lo bem. Copiando-se isto, aprende-se mais quanto à China do que na leitura de todos os livros.
- E o que é que aprende?
Ela animou-se por fim, pousou sobre ele as mãos, em um gesto violento, como para lhe arrancar o segredo. Era preciso saber. Para ela constituía uma força tirânica e terrível, uma obsessão, estar a par de todos os pensamentos dele. Rupert ficou uns momentos calado, relutando em responder. Depois, forçado a isso, começou:
- Aprendo a conhecer de que centros se desenvolve a vida destes animais, a sua percepção, a sua maneira de sentir, a violência, a precisão dos fenômenos de centralidade de um ganso no remoinho das águas frias e lodosas, o calor penetrante e estranho do sangue a circular, como que uma inoculação de fogo corrupto... fogo do limo a um tempo frio e escaldante , o mistério do lodaçal.
Hermione olhou para ele, descendo lentamente a vista ao longo das faces pálidas. Singulares, aqueles olhos! Dir-se-ia que tomara algum narcótico. As pálpebras pesavam, tombando. Os seios magros arfavam convulsivamente. Rupert voltou-se para ela e ficou impassível, com ar diabólico, Numa nova convulsão, sentindo-se doente, Hermione afastou-se: era como se o corpo estivesse se dissolvendo todo. O espírito ficara incapaz de compreender as palavras daquele homem; ele a tinha em suas garras, indefesa, e destruía-a com um poder oculto, insidioso.
- Compreendo - murmurou ela, sem saber o que dizia. - Compreendo... - E endireitou-se, procurando recuperar a serenidade. Mas não conseguiu, a inteligência recusava-se, sentia-se desequilibrada. Toda a sua vontade lutava, mas não conseguia o domínio de si mesma. Sofria os horrores da dissolução que a torturava e destruía. Ele continuava implacável, sem despregar os olhos da mulher; e Hermione dirigiu-se para fora, pálida e consumida como um espectro, como que atingida pelas influências perseguidoras de além-túmulo. Desfazia-se como um cadáver, sem realidade, sem nexo. O homem mantinha-se duro e vingativo.
Quando desceu para jantar, Hermione apresentava estranho aspecto, sepulcral; os olhos, cansados, estavam repletos de densas trevas. Vestira-se de brocado verde, rígido, muito justo, o que a fazia parecer mais alta, assustadora, semelhante a um fantasma. À luz alegre do salão o seu vulto parecia sobrenatural e opressivo. Mas, sentada na penumbra da sala de jantar, hirta em frente às velas que projetavam sombras, era já uma força, uma presença. Escutava e respondia como se estivesse sob a ação de algum estimulante.
Os convidados mostravam-se alegres e divertidos; todos, menos Birkin e Joshua Malleson, tinham envergado traje a rigor. A italianinha, a confessa, usava um vestido de veludo, com largos babados em tons de laranja, preto e ouro; Gudrun estava de verde-esmeralda com aplicações de ráfia; Úrsula de amarelo com uma faixa de prata fosca; Miss Bradley de cinza e vermelho, Fraulein Marz, de azul-claro. A dona da casa sentiu uma súbita sensação de prazer ao contemplar aquelas cores vivas à claridade das velas. Percebeu que a conversa continuava, incessante, dominada pela voz de Joshua; que os risos argentinos das mulheres e as suas respostas vivas prosseguiam sem descanso; que o colorido era brilhante, a toalha muito branca e que havia sombras no teto e no assoalho; e tudo isso a fazia quase desmaiar de satisfação, dava-lhe arrepios de prazer, que não a impediam de se sentir doente, de se considerar um revenant. Mal intervinha na palestra, embora não deixasse de ser toda ouvidos.
Terminado o jantar, todos se dirigiram para o salão, como se formassem uma só família, muito à vontade, sem cerimônias. Fraulein serviu o café, fumaram-se cigarros ou cachimbos, de que havia grande quantidade.
- Fuma? Cigarro ou cachimbo? - perguntava a alemã, muito solícita. Era como numa assembleia: Sir Joshua com o seu ar século XVIII; Gerald, belo tipo de rapaz inglês que se diverte; Alexander, político elegante e categorizado, liberal e inteligente; Hermione, estranha como uma Cassandra aborrecida; e as outras mulheres, de cores agradáveis, todos a fumar com gravidade os seus longos cachimbos de gesso, sentados em semicírculo na sala confortável e suavemente iluminada, em torno da lenha que ardia na lareira de mármore.
A conversa girava em torno dos assuntos políticos e sociais, cheia de interesse, de sabor curiosamente anarquista. Na sala acumulava-se uma poderosa atmosfera destruidora. Parecia que tudo fora lançado no crisol; para Úrsula aquelas criaturas assemelhavam-se a feiticeiras, ocupadas em pôr a panela ferver. Em tudo aquilo havia orgulho e satisfação, porém, ao espírito dos novatos, tornava-se cruelmente exaustivo, exigindo implacável tensão intelectual; o poder que emanava de Joshua, de Hermione e de Birkin consumia as inteligências, dominava imperiosamente o restante dos convidados.
- Salsie, você é capaz de tocar alguma coisa? - perguntou a irmã, suspendendo por completo a conversa geral. - Quem quer dançar? Você dança não é verdade, Gudrun? Eu gostava tanto de vê-la dançar. Anche tu, Palestra, ballerai? Si, per piacere - Você também dançará, Palestra? Sim, faça o favor - nota da tradutora) - Você também, Úrsula.
Assim dizendo, levantou-se, puxou o cordão de borla dourada que pendia junto da lareira, segurando-o durante um momento; depois, de súbito, largou-o. Parecia uma sacerdotisa inconsciente, imersa em uma espécie de transe.
Surgiu à porta uma criada que, dali a instantes, voltava, com um carregamento de camisolas, xales, lenços, quase tudo gosto oriental, guarda-roupa que Hermione, com o seu amor pelos adornos belos e extravagantes, havia colecionado pouco a pouco.
- Vocês três, meninas, vão dançar em conjunto - declarou ela.
- Que devo tocar? - perguntou Alexander, levantando-se bruscamente.
- Vergini delle Rocchette - exclamou logo a confessa.
- É tão lento... - observou Úrsula.
- As três bruxas de Macbeth - propôs a Fraulein, como coisa mais prática. Finalmente decidiram representar Noemi, Ruth e Orfa. Úrsula seria a primeira. Gudrun faria de Ruth e a contessa de Orfa. Tratava-se de um bailado no estilo russo, como os da Pavlova e Nijinsky. A italiana preparou-se antes das outras; Alexander sentou-se ao piano, e os espectadores deixaram um espaço livre. Orfa, maravilhosamente vestida à oriental, começou a dançar, indolentemente, o tema da morte do marido. Então Ruth aproximou-se e ambas choraram, lamentando-se, ate que Noemi chegou para as consolar. Tudo isto numa cena muda, bailando elas de forma a expressarem por gestos a sua emoção. O drama levou cerca de um quarto de hora.
Úrsula ficava linda no papel de Noemi. Tendo-lhe morrido os homens, só lhe restava manter-se numa rigorosa defensiva, sem nada reclamar: Ruth dedicava-lhe o seu amor Orfa, viúva ardente, sensual, sutil, queria voltar ao passado, recomeçar a vida. O desempenho das três jovens era bastante real, chegava a impressionar. Era curioso ver Gudrun perseguir Úrsula com paixão violenta e desesperada, se bem que sorrisse com ligeira malícia, observando a outra no momento de condescender, silenciosa, incapaz de tomar uma decisão por si própria - ou com a ajuda de outrem - mas perigosa, indomável, recalcando a dor.
Hermione adorou o espetáculo, apreciando a contessa, ligeira como uma doninha, entregue às manifestações das suas sensações; Gudrun unindo-se por fim, traiçoeiramente, à mulher encarnada por sua irmã; e Úrsula, na sua temerosa incapacidade, insatisfeita, irremediavelmente perdida.
- Foi admirável - disseram todos em coro. Mas Hermione tinha a alma torturada, na impossibilidade de ultrapassar o próprio conhecimento. Reclamou outro bailado, exigindo que a contessa e Birkin fizessem uma dança burlesca a Malbrouk.
Gerald ficara perturbado com o episódio de Gudrun unindo-se desesperadamente a Noemi. A essência daquela mulher, a sua oculta temeridade, um tanto irônica, escaldavam-lhe o sangue. Não conseguia esquecer-se de Gudrun, erguida, ofertante, cheia de ousadia no seu apelo e, ainda por cima, escarninha. E Birkin, espiando como um Bernardo eremita lá do seu esconderijo, tinha assistido à derrota espetacular e desamparada de Úrsula. Sentia-a dominadora, repleta de energia terrível. Dir-se-ia um gérmen estranho e inconsciente do poder feminino. Atraía-o, sem ele querer. Divisava nela o seu futuro.
Alexander tocou peças húngaras e todos dançaram, arrebatados pelo espírito da música. Gerald surpreendeu-se a si próprio, quando reparou que se dirigia a Gudrun para lhe pedir que dançasse com ele; os pés não fugiam à tentação da valsa e do two-step, ele agitava-se cheio de força, todo o organismo ansiava por sair do cativeiro. Não sabia como dançar naqueles passos convulsionados, mas sentia facilidade em começar. Birkin, quando conseguiu livrar-se da obsessão das pessoas presentes que ele detestava, pôde então dançar com agilidade, verdadeiramente à vontade. Hermione, agora, não lhe perdoava esse à vontade irresponsável.
- Estou percebendo - disse a italiana, muito excitada, observando-lhe a alegria dos movimentos, alegria que ele parecia guardar apenas para si. - Estou percebendo que o Sr. Birkin muda constantemente.
Hermione olhou para ele e estremeceu, pensando que somente uma estrangeira seria capaz de ter reparado naquilo e o manifestado sem rodeios.
- Cosa vuol'dire, Palestra? - Que é que você quer dizer, Palestra? - nota da tradutora) - indagou a dona da casa na sua voz cantante.
- Repare - respondeu a outra em italiano. - Não é um homem, é um camaleão; todo ele é metamorfose.
"Homem não, e sim um traidor; não é dos nossos", disse Hermione com os seus botões. E a alma afligia-se por ser sua escrava, pelo poder que tinha Rupert de escapar e existir sozinho, ao contrário dela; não possuía consistência, não era um homem era menos do que isso. Odiava-o e o desespero a dilacerava de alto a baixo. Era como se suportasse a completa dissolução do organismo, como se fosse um cadáver; sentia-se alheia a tudo, menos àquela horrível moléstia da decomposição que lavrava em toda ela, tanto no corpo como na alma.
A casa estava inteiramente ocupada; Gerald ficara no quarto menor, que era, na realidade, saleta de vestir e se comunicava com o quarto de dormir de Birkin. Quando todos se retiraram para os seus aposentos, de castiçal na mão, onde as velas ardiam docilmente, Hermione chamou Úrsula e levou-a consigo, para lhe falar em particular. Naquele quarto desconhecido e amplo, Úrsula experimentou certo constrangimento. Hermione parecia descer sobre ela, terrível e ameaçadora, atraindo-a para si. Admiraram umas camisolas de seda indiana, vistosas e sensuais, de forma e esplendor quase escandalosos. Hermione aproximou-se da moça, com o peito palpitante, e esta empalideceu de medo. Naquele momento, os olhos esgazeados de Hermione descobriram o terror na face da outra e mais uma vez se sentiu derrotada. Úrsula pegou numa das camisolas de seda - vermelha e azul - feita para alguma princesa de catorze anos e exclamou maquinalmente:
- Que maravilha! Ninguém se atreveria a juntar essas duas cores berrantes...
A criada entrou, silenciosamente, e Úrsula, morta de susto, fugiu, cedendo à força irresistível que a dominava.
Birkin foi direto para a cama. Sentia-se feliz e tinha sono. Estava bem disposto desde que dançara. Mas Gerald queria falar com ele. Usava ainda o traje do jantar. Sentando-se à beira da cama de Rupert - onde este já se deitara - principiou:
- Quem são estas duas irmãs Brangwens?
- Elas moram em Beldover.
- Beldover? O que fazem?
- São professoras primárias.
Houve uma pausa.
- Engraçado! Tinha a impressão de já tê-las visto.
- Desiludido?
- Eu? Não. Mas como é que Hermione as convidou?
- Conheceu Gudrun em Londres. É a mais nova, a de cabelos escuros. É artista, dedica-se à escultura.
- Então não é professora. É só a outra?
- Ambas. Gudrun leciona desenho, Úrsula é de conhecimentos gerais.
- E o pai?
- É mestre de artes aplicadas.
- Curioso!
- Entre as classes sociais já não existem barreiras.
Gerald estava um tanto encabulado com o tom gracejador de Birkin.
- Que nos importa que o pai seja isso?!
Rupert ria-se, ao falar assim, e Gerald olhava para ele, ali deitado, com a cabeça na almofada, indiferente e brincalhão. Faltou-lhe coragem para ir-se embora.
- Não creio que você tenha possibilidade de ver Gudrun durante muito tempo. É um pássaro que não se demora no poleiro. Dentro de uma semana ou duas, põe-se a caminho - disse Birkin.
- Para onde?
- Londres, Paris, Roma... Deus o sabe. Estou sempre à espera de que ela levante voo para Damasco ou San Francisco. É uma ave do paraíso. Não se sabe o que veio fazer em Beldover! Incompreensível como nos sonhos.
Gerald refletiu alguns momentos.
- Como é que a conhece tão bem?
- Conheci-a em Londres, no grupo Algernon Strange. Ela deve ter ouvido falar da Bichana, do Libidnikov, dos outros, mesmo que não sejam das suas relações pessoais. Nunca pertenceu, propriamente, ao grupo; é, de certa maneira, dada a convenções. Conheço-a faz dois anos, se não estou enganado.
- E ganha dinheiro, além das lições?
- Um pouco, mas não é coisa regular. Vende os seus trabalhos. Trazem-lhe publicidade.
- E quanto pode custar cada trabalho?
- Um guinéu, dez guinéus.
- São bons? Que representam?
- São extraordinariamente bons, na minha opinião. São dela as duas alvéolas do escritório de Hermione. Você já as viu. Escultura de madeira pintada.
- Julguei que ainda se tratasse daquela escultura de selvagens...
- Não. O que Gudrun executa é isto: animais, principalmente aves. Às vezes figurinhas de pessoas vestidas como nós, realmente belas quando bem feitas. Possuem certo humor, inconsciente e sutil.
- Será artista famosa, algum dia? perguntou Gerald, pensativo.
- É possível. Mas não creio que chegue a tanto. Costuma colocar a arte de lado sempre que outra coisa lhe sorri. O seu espírito contraditório impede-a de se tomar a sério, a si própria. Ela tem medo de se abandonar inteiramente. É isso que me desagrada com esse tipo de mulheres. A propósito, o que aconteceu a Bichana depois que eu parti?
- Tolices, banalidades. Halliday portou-se de forma censurável; estive quase dando a ele uma boa lição.
Birkin ouvia em silêncio.
- É verdade - disse, finalmente. - Julius não tem lá muito juízo. Por um lado, possui a mania religiosa; por outro, fascina-o a sensualidade. Ou é puro crente, ajoelhado, ou então representa Cristo em desenhos de uma liberdade excessiva (ação e reação) e entre os dois limites, não chega a haver meio termo. É, na verdade, doido varrido. Às vezes, um lírio impoluto, jovem de rosto a Botticelli; outras, só se satisfaz com Bichana, para se profanar juntamente com ela.
- É isso que eu não compreendo - notou Gerald. - Gostara ou não da Bichana?
- Não gosta nem desgosta. Ela é a meretriz de que Julius necessita. Precisa absolutamente de se conspurcar no contato com essa criatura. Depois reage, suspira pelo lírio da pureza e, de uma ou de outra maneira, ele se distrai. Eterna história: ação e reação, sem transição nenhuma.
- Não sei - tornou Gerald, depois de um intervalo na conversa - se a Bichana se considera muito ofendida. Fiquei admirado com o seu jeito tão depravado.
- Todavia, acho que você tem interesse nela - exclamou Birkin. - Eu sempre a apreciei. É certo que, quanto a esse aspecto, nunca houve nada entre nós.
- Interessou-me durante dois dias, não o nego - disse Gerald. - Mas uma semana com ela ter-me-ia dado volta ao estômago. Essas mulheres têm um cheiro estranho na pele que, por fim, nos faz enjoar, inexplicavelmente, ainda que a princípio estejamos apaixonados.
- Bem sei - replicou Birkin. Depois acrescentou, um tanto rabugento: - Vá-se deitar, Gerald. Já deve ser muito tarde.
Gerald consultou o relógio, levantou-se e dirigiu-se para o quarto que lhe fora destinado. Mas daí a pouco voltava, em camisa:
- Uma coisa - apressou-se a dizer, tornando a sentar-se na cama de Rupert. - Rompemos, eu e ela, tempestuosamente e não tive tempo de lhe dar nada.
- Dinheiro? - insinuou Birkin. - A Bichana vai buscar o que precisa no bolso de Halliday ou de qualquer outro da turma.
- Nesse caso, eu devia ter-lhe pago o que era devido, regularizando assim as contas.
- Ela pouco se importa.
- Talvez. Mas fico com a impressão de estar em dívida e preferia liquidar o débito.
- Acha que sim? - E Rupert olhava para as pernas brancas de Gerald Crich, sentado ali, em camisa, na beira do seu leito. Eram grossas, musculosas, rijas, vigorosas. E, contudo, impressionavam Birkin e enterneciam-no, como se fossem pernas frágeis de criança.
- Parece-me que seria preferível saldar a conta - disse Gerald como se falasse consigo mesmo.
- De uma forma ou de outra, o caso não tem importância - asseverou Birkin.
- Nada tem importância para você - comentou Gerald, um tanto admirado e fixando afetuosamente o seu interlocutor.
- É a pura verdade.
- Aliás, ela porta-se muito bem.
- Dá a Cesarina o que é de Cesarina - concluiu Rupert, virando-se de lado. Achava que o outro estava falando só pelo vício de falar. - Vá-se embora, Gerald. Estou cansado. E já é tão tarde!
- Gostaria que me dissesse qualquer coisa que tivesse importância - disse Gerald, sem desviar os olhos do inspetor, como quem espera uma resposta definitiva. Mas Birkin voltou o rosto para o outro lado. Crich pôs-se de pé.
- Nesse caso, boa noite e durma bem - acrescentou, pousando a mão no ombro de Rupert, em gesto carinhoso.
Na manhã seguinte, logo que Gerald acordou e ouviu o vizinho mexer-se no quarto contíguo, gritou-lhe:
- Penso ainda que devo dar à Bichana algum dinheiro, umas dez libras.
- Deus do Céu! - exclamou Birkin. - Não seja tão positivo. Liquide a conta na consciência, é o único lugar onde o pode fazer.
- Que quer dizer com isso?
- Conheço-a bem - foi a resposta lacônica de Rupert.
Gerald ficou um momento pensativo.
- Sou de opinião que o melhor que temos a fazer com mulheres como a Bichana é pagar-lhes sempre.
- E com as amantes é conservá-las. E com as esposas: viver debaixo do mesmo teto. Integer vitae scelerisque purus... Integro e livre da vida criminosa - nota da tradutora) - sentenciou Birkin.
- Não vale dizer coisas esquisitas.
- Mas é que isso me enfastia. Não quero saber dos seus pecadilhos.
- Queira ou não queira saber, o caso é que a mim interessam - concluiu Gerald.
A manhã, como a anterior, resplandecia de sol. A criada trouxera água e afastara as cortinas. Birkin sentado na cama, olhava preguiçosamente para o parque muito verde e tão deserto àquela hora, com o seu ar romântico, perdido no passado. "Como as coisas pretéritas", pensava ele, "são adoráveis, seguras, completas, definitivas - esse passado delicioso, tão perfeito! - e como esta casa é silenciosa e dourada, com o jardim adormecido nos seus séculos de paz... E todavia, nesta beleza imóvel de tudo, quantas armadilhas e quantas desilusões, e que horrível e monótona prisão significa realmente Breadalby, com esta intolerável clausura da sua tranquilidade! Sempre é melhor, afinal, do que a torpe confusão do presente. Se, ao menos, se pudesse criar o futuro de acordo com a nossa vontade! Um pouco de verdade, sincera e pura - um pouco dessa verdade tão simples, aplicada à vida, eis o que a alma não cessa de exigir."
- Não compreendo, no fim de contas, em que é que você me deixa ter interesse - ouviu-se exclamar, do quarto ao lado, a voz de Crich. - Nem Bichanas, nem minas, nem nada absolutamente.
- Interesse-se pelo que quiser, Gerald. A mim é que essas coisas não interessam, compreende? - respondeu Birkin.
- Que devo fazer então?
- O que quiser. E eu, o que é que eu preciso fazer? Houve um silêncio durante o qual Birkin sentiu que Gerald estava pensando no caso.
- Macacos me mordam se percebo patavina - tornou ele lá de dentro, em tom de bom humor.
- Ora veja - respondeu Birkin - uma parte de você reclama Miss Darrington, e só esta mulher; a outra parte ocupa-se das minas, de negócios e nada senão isso: ei-lo partido em dois pedaços.
- E uma parte de mim deseja ainda outra coisa - atalhou Gerald, com voz sincera, calma, singular.
- O quê? - perguntou Rupert um tanto surpreendido.
- Isso é o que eu queria que você dissesse.
Calaram-se durante algum tempo.
- Não me é possível satisfazê-lo. Eu próprio ainda não encontrei o meu caminho, como vou saber qual é o seu? Experimente casar.
- Com quem? Com a Bichana?
- Talvez. - Birkin levantou-se e foi até a janela.
- É esse o seu remédio? - perguntou Gerald. - Mas ainda não aplicou o tratamento a si próprio, embora esteja necessitado dele.
- Acredito. No entanto, espero curar-me.
- Por meio do casamento?
- Sim... - respondeu Birkin.
- Não, digo eu. Não e não, meu caro Rupert!
Ficaram outra vez silenciosos, envoltos numa vaga hostilidade. Procuravam sempre abrir, entre eles, como que um fosso; queriam manter-se a distância, para conservarem inteira liberdade. E, no entanto, atraía-os uma curiosa corrente de simpatia.
- Salvator femininus - Salvador feminino - nota da tradutora) - disse Gerald, rindo-se.
- E por que não?
- Realmente, se dá bom resultado... Mas com quem se casaria você, Rupert?
- Com uma mulher.
- Muito bem! - concluiu Crich.
Os dois foram os últimos que se apresentaram para o almoço. Hermione gostava que todos comparecessem pontualmente. Se o dia lhe parecia menor, sofria e tinha a impressão de estar atraiçoando sua vida. Parecia agarrar as horas com ambas as mãos e extrair-lhes todo o poder vital. Tinha um ar pálido e espectral, pela manhã, como um objeto abandonado. E, contudo, mantinha-se enérgica, sua vontade continuava extraordinariamente persuasiva. Com a entrada dos dois homens, surgiu um repentino mal-estar.
A dona da casa levantou o rosto e pronunciou, na sua voz cantada:
- Bom dia! Dormiram bem? Sinto-me felicíssima. - E baixou o rosto, não lhes dando mais atenção. Birkin, que a conhecia, percebeu que a intenção dela era ignorar sua existência.
- Tire o que quiser aí do bufê - disse Alexander, em tom de censura. - Espero que não esteja completamente gelado. Importa-se de apagar o esquentador, Rupert?
Quando Hermione se mostrava fria, Alexander tomava um tom autoritário Afinava-se pelo diapasão da irmã; isso era coisa sabida. Birkin sentou-se e circunvagou o olhar pela mesa. Estava habituadíssimo àquela casa, à sala de jantar, à atmosfera que nela reinava. A sua intimidade vinha de longe; mas agora rebelava-se com tudo aquilo: não tinha mais nada que fazer ali. Conhecia bem Hermione, à sua frente, ereta e silenciosa, um pouco abstrata e, no entanto, dominadora consciente do seu poder! Conhecia-a completamente, de maneira torturante. E era difícil não se sentir desnorteado - quase que se julgava na galeria de um túmulo de faraós, com os mortos sentados à volta, eternos e imponentes! Sabia já de cor o que dizia. Joshua Malleson, que falava em voz áspera, afetadamente, interminavelmente, sempre com grande esforço mental, mas sempre interessante embora tratasse de coisas sabidas; tudo o que dizia já estava previsto, por mais inteligente e original que fosse. E Alexander, homem da moda, com o seu sangue-frio, sempre à vontade; a Fraulein, cuja pronúncia lembrava um repicar alegre de sinos; a italianinha, essa confessa que dava atenção a todos, ocupada no seu papel, objetiva e fria como uma doninha à espreita, divertindo-se, mas sem se revelar por completo; por fim, Miss Bradley, pesada e subserviente, tratada por Hermione com indiferença irônica, e olhada, por consequência, com igual desprezo pelos outros. Birkin conhecia-os a todos muito bem, como pedras de um jogo manejado há muito tempo a rainha, os cavalos, os peões, sempre as mesmas figuras, movendo-se em fases intermináveis... Mas o jogo era tão repetido, desenrolava-se em tal fantasmagoria que agora já não despertava o menor interesse.
Via também a seu lado Gerald Crich, com muito boa disposição: aquilo parecia diverti-lo; Gudrun, observando com os olhos muito abertos, imensos, hostis; os problemas daquele xadrez fascinavam-na e horrorizavam-na ao mesmo tempo; Úrsula, de expressão um pouco admiradas como se alguém a tivesse ferido e a dor a atingisse fora da consciência.
De repente, Birkin levantou-se e saiu, dizendo para si mesmo:
"Estou farto disto."
Hermione viu-lhe o gesto, como num sonho. Ergueu os olhos modorrentos, sentindo-se arrastada de súbito por uma onda ignota que rolava sobre ela. Apenas a vontade indomável lhe permanecia estática, maquinal; sentada à mesa, continuava embebida nos seus pensamentos. Mas as trevas haviam-na envolvido, qual navio soçobrado. Mas o mecanismo persistente daquela vontade prosseguiu sem descanso: era a sua única força.
- Vamos nadar? - sugeriu ela, dirigindo-se de chofre aos convidados.
- Esplêndida ideia! - disse Joshua. - O tempo está ótimo.
- Delicioso! - corroborou a Fraulein.
- Combinado. Vamos ao banho - concordou a italiana.
Mas Gerald declarou:
- Não tenho roupa de banho.
- Eu lhe empresto o meu - ofereceu Alexander. - Preciso ir à igreja e ler a Bíblia. Estão esperando por mim.
- É protestante? - perguntou a condessa, tomada de súbito interesse.
- Não - elucidou ele. - Não sou. Mas acho de meu dever seguir as tradições.
- Que são tão belas! - observou galantemente a alémã.
- Não há dúvida! - exclamou Miss Bradley. Dirigiram-se para o gramado. Era uma daquelas manhãs doces e claras do princípio do verão, em que a vida circula sutilmente, como se fosse uma reminiscência. Os sinos da igreja badalavam ao longe; não havia uma nuvem no céu, os cisnes lembravam açucenas pousadas na água, os pavões desdobravam a cauda, passeando majestosamente sobre a erva, ora na sombra, ora expostos aos raios de sol. Era tudo tão belo que dava vontade de ali ficar, esquecido.
- Até logo! - gritou Alexander, acenando, muito contente, desaparecendo atrás dos arbustos, a caminho da igreja.
- E agora, - disse Hermione - vamos ao banho?
- Eu não - informou Úrsula.
- Não nos acompanha - e Hermione contemplou-a demoradamente.
- Não estou com vontade.
- Nem eu - acrescentou Gudrun.
- E a minha roupa? - inquiriu Gerald.
- Não sei - disse Hermione, rindo, com entonação estranha, divertida. - Quer um lenço, um lenço bem grande?
- Aceito.
- Venha, então.
A primeira que atravessou o jardim, a correr, foi a italiana, pequenina como uma gata; as pernas brancas cintilavam-lhe na corrida e a cabeça pendia-lhe para a frente, amarrada em um lenço de seda amarela. Passou o portão, pisando o campo gramado, e parou, imóvel como uma estátua de marfim e bronze, à borda da piscina, olhando para os cisnes que se aproximavam surpreendidos. Depois foi a vez de Miss Bradley, que veio também correndo, semelhante a uma grossa ameixa carnuda em sua roupa escura. A seguir apareceu Gerald, com um lenço de cabeça amarrado em torno dos rins e com a toalha no braço. Gostava de se pavonear assim ao sol, demorando-se e brincando, muito à vontade, branco, mas natural em sua nudez. Veio também Sir Joshua, metido dentro de um roupão e, por fim, Hermione, dando largas passadas, elegante e inflexível com uma capa enorme de seda vermelha e com a cabeça oculta por um lenço roxo e dourado. Tinha beleza aquele corpo firme e alto, aquelas pernas alvas e direitas. Havia em toda ela uma magnificência rígida, com o manto a flutuar livremente atrás de si. Atravessou o jardim e aproximou-se da água, lenta e majestosa, evocando aos olhos dos outros qualquer coisa de muito estranho.
Eram três piscinas, em sucessivos planos, descendo para o vale, grandes, belas e cheias. Sobre elas dardejava o sol. A água corria por cima de um pequeno muro, atravessava algumas pedras e caía nos reservatórios ate chegar ao de nível inferior. Os cisnes haviam-se retirado para a margem oposta. Havia o cheiro agradável dos juncos e uma ligeira brisa acariciava a pele.
Gerald mergulhara, depois de Sir Joshua, e fora nadando ate o outro extremo. Ali, subiu no muro e sentou-se. Ouviu-se outro mergulho e a condessinha nadou como um rato, a fim de o alcançar. Ficaram ambos descansando ao sol, rindo, com os braços cruzados sobre o peito. Sir Joshua alcançou-os e fez parte do grupo, de pé, com a água ate os ombros. Depois Hermione e Miss Bradley atravessaram a piscina e sentaram-se também na margem, lado a lado.
- Não acha que são assustadores? - perguntou Gudrun à irmã. - Não parecem sáurios? Lembram-me lagartos grandes. Já viu alguém parecido com Sir Joshua? Sinto, Úrsula, que aquele homem pertence ao mundo primitivo, quando sobre a terra andavam enormes lagartos rastejantes...
Gudrun olhava consternada para o sociólogo, que se conservava de pé dentro do tanque, com água pelo peito e com os cabelos, compridos e grisalhos, empastados sobre os olhos; o pescoço escondia-se no meio dos ombros fortes e espessos. Estava conversando com Miss Bradley, que, sentada em cima do muro, rechonchuda, bem feita, toda molhada, parecia prestes a resvalar e mergulhar como se fosse uma foca do Jardim Zoológico.
Úrsula admirava em silêncio. Gerald, entre Hermione e a italiana ria, cheio de satisfação. Parecia-se com Dionísio, com aqueles cabelos louros e o rosto cheio e jovial. Hermione, na sua elegância opulenta, rígida, perigosa, inclinava-se para ele, espantada, como quem dissesse que não tinha culpa do que pudesse vir a fazer. Gerald reconhecia naquela mulher a presença de uma ameaça qualquer como uma loucura involuntária. Mas não parou de rir, e, cada vez mais, voltava-se para a condessinha, que o fitava com os olhos brilhando.
Mergulharam todos na piscina, nadando juntos como um bando de lobos-marinhos. Hermione, dentro d'água, era um ser poderoso e inconsciente, vasto, lento, forte; a condessa, rápida e silenciosa como uma ratazana da água; Gerald flutuava e virava-se oscilante, formando uma sombra clara e agradável. Um após outro foram saindo da piscina e regressaram a casa.
Gerald demorou-se, contudo, um instante para falar a Gudrun.
- Não gosta de nadar?
A moça fitou-o com um olhar demorado, indecifrável, en quanto ele permanecia à sua frente com a pele toda cintilante de gotas de água.
O outro não se mexeu, à espera de mais algum comentário.
- Sabe nadar?
- Sei.
Ele não queria perguntar, é claro, qual o motivo por que, sendo assim, não fora também tomar banho. Notava naquela jovem qualquer coisa de irônico. Afastou-se, despeitado pela primeira vez na sua vida.
- Por que não quis nadar? - tornou-lhe a perguntar mais tarde, já vestido de novo como um elegante jovem inglês.
Ela hesitou um momento, antes de dar a resposta, resistindo assim à insistência do seu interlocutor.
- Porque não gosto de promiscuidade - foi a resposta.
Gerald riu-se, a frase ecoou e tornou a ecoar na sua consciência. O sabor daquela linguagem abria-lhe o apetite. Quer quisesse quer não, aquela menina significava para ele o mundo real. Desejaria elevar-se ate àquele padrão e satisfazer-lhe os sonhos de mulher. Compreendeu que o critério da artista era o único verdadeiro. Os outros eram simples com opiniões instintivas, por mais bem situados que fossem socialmente. Gerald não podia escapar àquela sedução; procuraria adaptar-se às aspirações dela, encarnar a sua ideia do homem e do ente humano.
Depois do lanche, quando alguns já se haviam retirado, Hermione, Gerald e Birkin continuaram na sala conversando. Houvera discussão - muito intelectual e pretensiosa no seu conjunto - acerca da nova ordem social, da posição do indivíduo no mundo de amanhã. Supondo que as velhas instituições se destruíam e perdiam, o que renasceria, por fim, do caos?
A grande ideia social, dissera Sir Joshua, era a igualdade de todas as pessoas. Não, respondera Gerald, o melhor seria que cada um pudesse desempenhar o seu papel, por menor que fosse; deixassem-no fazer isso, permitissem-lhe a felicidade à sua maneira. O principal nivelador das classes devia ser o trabalho garantido a cada um. Somente o trabalho e a produção uniriam a humanidade. Simples coisa mecânica, decerto; mas que era a sociedade senão um mecanismo? Fora do trabalho ficariam livres, podendo agir como bem lhes parecesse. A conversa continuara.
- Ah, só teríamos nomes profissionais, seríamos como os alémães, apenas Herr Obermeister e Herr Untermeister - Respectivamente, mestre e oficial, nas corporações - nota da tradutora). Posso fazer uma ideia: sou a Senhora Diretora das Minas Crich, ou a Senhora Deputada Roddice, ou a Senhora Professora de Arte Brangwen. Linda coisa! - exclamou Gudrun.
- Tudo correria melhor assim, Senhora Professora de Arte Brangwen - disse Gerald.
- Tudo o quê? Explique-me, Sr. Diretor das Minas de Carvão Crich. As relações entre nós dois, par exemple?
- Isso, por exemplo - interveio a italiana. - As relações entre homens e mulheres...
- Não é do âmbito social - observou Birkin, em tom sarcástico.
- Muito bem. Entre mim e uma mulher a questão social nada tem que ver. O caso é comigo - disse Gerald.
- Ganhou dez libras! - volveu Birkin.
- O senhor não admite que a mulher seja um ente social? - perguntou Úrsula a Gerald.
- Sim e não. Sim, no que respeita à sociedade. Mas, na sua própria vida privada, pode agir livremente; isso é problema dela, nada temos a censurar.
- E não seria um tanto difícil conciliar as duas metades? - continuou Úrsula.
- Não - replicou Gerald. - Que se arranjem sozinhas. Vê-se isso agora por toda parte.
Mas Birkin atalhou:
- Não se ria antes do tempo.
- Eu estava rindo?
- Se ao menos - disse, por fim Hermione - pudéssemos ser iguais em espírito, se nisso, formássemos uma irmandade, o resto não teria importância; nunca mais se ouviria falar de críticas, invejas, lutas pelo poder, que são coisas destrutivas e nada mais.
Este comentário foi recebido em silêncio e quase a seguir todos se levantaram da mesa. Mas, quando os outros já tinham desaparecido, Birkin voltou-se para os que haviam ficado e declarou com amargura:
- É precisamente o oposto, precisamente o contrário, Hermione. Somos todos, em espírito, diferentes, desiguais. Mas nas coisas da vida material é que, teórica e matematicamente, pode haver igualdade; como, na prática, não há, resultam daí as chamadas diferenças sociais. Qualquer pessoa sente fome e sede, tem dois olhos, um nariz, duas pernas. Numericamente somos todos os mesmos; porém, na ordem espiritual, existem diferenças; nem a igualdade nem a desigualdade são termos que sirvam. É sobre este mínimo de conhecimentos que devem ser baseadas as instituições. A sua democracia é uma refinada mentira, a sua fraternidade humana pura falsidade, se a fizer sair dos domínios da abstração. Todos começamos por beber leite, depois comemos pão e carne, todos queremos andar de automóvel; eis o começo e o fim da fraternidade entre os homens. A igualdade não existe.
"Mas eu, que sou eu e mais ninguém - continuou Birkin - que tenho a ver com a igualdade, com outro homem, com outra mulher? Em espírito, estou tão longe como uma estrela o está de outra estrela, muito diferente em qualidade e em quantidade. Veja se é capaz de organizar um Estado com isto. Nenhum homem é melhor do que outro, não porque sejam iguais, mas porque são intrinsecamente diversos e não pode haver, entre eles, termo de comparação. Logo que se começa a fazer comparações, vê-se quanto um indivíduo difere de outro; toda desigualdade que se possa imaginar, ei-la demonstrada por natureza. Desejo que cada um tenha o seu quinhão nos bens deste mundo, de maneira que eu possa desembaraçar-me de mais um importuno. E então dir-lhe-ia: agora você tem o que pretendia, possui uma fatia dos benefícios terrenos; vá, louco, saboreia-a, não existe senão uma boca, sacie-se e não me aborreça."
Hermione olhava-o de esguelha e Rupert sentia que, a despeito de tudo quanto ele dizia, ondas de ódio e de enfado emanavam daquela mulher: ódio e enfado dinâmicos, provindos fortes e sombrios do subconsciente de Hermione. Ouvira-lhe as palavras inconscientemente, mas conscientemente se fazia surda para não lhes dar atenção.
- Isso cheira a megalomania - disse Gerald, jovial, dirigindo-se a Birkin.
Hermione emitiu uma espécie de grunhido. Rupert deu um passo para trás.
- Mudemos de assunto - exclamou de súbito. A voz, que pesara sobre os outros dois com tão dominadora insistência, apagara-se por completo. E ele foi-se embora.
Mais tarde, porém, sentiu-se arrependido. Fora violento, cruel para com a infeliz Hermione. Desejaria recompensá-la, desfazer a má impressão. Ferira-a, tinha sido vingativo. A sua vontade, agora, era de fazer as pazes.
Hermione estava no seu escritório, quarto afastado, repleto de almofadas. Sentara-se à mesa e escrevia cartas quando Rupert apareceu. Levantou o rosto, distraída, viu-o aproximar-se do sofá e sentar-se ali; recomeçou a tarefa interrompida.
Birkin pegou um livro volumoso que já lera uma vez e embrenhou-se de novo na leitura. Tinha as costas voltadas para Hermione, que não conseguia mais escrever. Todo o seu espírito era um caos; mergulhava nas trevas, e procurava readquirir o domínio de si própria, tal como o nadador a se debater dentro de uma ressaca. Todavia, apesar dos esforços, tinha a impressão de que o coração ia saltar. A terrível tensão ia aumentando mais e mais, era uma agonia pavorosa, como a de alguém que estivesse sendo emparedado.
A parede era Birkin - eis o que ela compreendeu; a presença daquele homem sufocava-a. Se não conseguisse demoli-lo, morreria de morte horrível, asfixiada. Sim, ele era a parede. Era preciso abatê-lo; tinha de afastá-lo da sua frente, detestável obstáculo que lhe dificultaria a vida ate ao fim.
Seu corpo tremia como se choques elétricos de uma corrente de muitos volts a traspassassem. A presença dele, sentado a poucos passos impunha-se-lhe sempre; era um incrível espetáculo maléfico. Tanto bastava para lhe aniquilar o espírito, para o sufocar, aquele homem de costas para ela, curvado sobre o livro.
Sentiu ao longo dos braços um arrepio voluptuoso. Ia conhecer o prazer sensual de provocar a morte. Tremiam-lhe as mãos. Que delírio sentir a força que possuía. Experimentaria dar a morte, enfim, com os sentidos em êxtase! Não demoraria muito. No cúmulo do terror e da angústia, compreendeu que o momento chegara, num máximo de bem-aventurança. Tinha a mão colocada sobre uma linda bola de lazulite, que servia de peso para papéis, na secretária. Brincava com ela, fazendo-a rolar, e, silenciosamente, levantou-se da cadeira. O coração ardia-lhe no peito, em labaredas, mas o seu arrebatamento deixava-a sem consciência. Dirigiu-se para Rupert e ficou estática uns instantes, de pé atrás dele - que, mergulhado na magia da leitura, continuava sem movimento, alheio a tudo.
Então, subitamente, num ímpeto que lhe percorreu todo o ser, espécie de fluido luminoso que lhe proporcionava uma satisfação perfeita, inexprimível, da vontade, bateu com toda força na cabeça dele, com a bola, aquela jóia de pedra tão preciosa. Os dedos, porém, que apertavam a estranha arma, fizeram amortecer a pancada. Contudo, Birkin bateu com a testa de encontro à mesa, onde repousava o livro; a bola escorregou de lado, pela orelha abaixo. Hermione sentiu uma excitação de prazer, aumentada pela dor que experimentava nos dedos Mas ainda não era bastante. Ergueu o braço mais alto para vibrar novo golpe, justamente sobre aquele crânio apoiado ali à mesa. Precisava parti-lo, era preciso que assim fosse para que o seu espasmo atingisse o auge. Mil vidas ou mil mortes não teriam agora nenhuma importância: o que lhe interessava era a realização completa do seu desejo.
No entanto, faltava-lhe vivacidade, não podia agir senão com lentidão. Rupert, num esforço supremo, reagiu, levantou a cabeça e fitou-a. O braço de Hermione estava outra vez no ar e a mão segurava a bola de lazulite. Era a mão esquerda; mais uma vez verificou ele, com horror, que Hermione se ajeitava melhor com esta. Imediatamente, em movimento instintivo, Birkin protegeu a cabeça com o volume de Tucídides. O golpe desferido foi atingi-lo no pescoço, fazendo-lhe o coração pulsar com violência.
Magoado, mas ainda com sangue-frio, deu uma volta e empurrou a mesa de maneira a colocar um obstáculo entre ambos. Sentia-se como um frasco reduzido a estilhaços; tinha a impressão de que todo ele era composto de fragmentos, de pedacinhos. Mas os movimentos continuavam coerentes e ágeis; a alma conservava-se íntegra e sossegada.
- Não, Hermione disse em voz baixa - não consentirei.
Via-a defronte dele, alta, lívida, expectante, com a pedra fortemente apertada na mão. Aproximou-se dela e ordenou:
- Afaste-se. Deixe-me sair.
Como se a mão de Rupert a empurrasse, Hermione recuou, fitando-o sempre, como um anjo derrotado que ainda o afrontasse.
- Não vale a pena - continuou ele, depois de se haver desvencilhado. - Não seria eu o assassinado. Percebeu?
Não deixou de olhá-la enquanto não saiu do quarto, com receio de que ela ainda tentasse alguma coisa. Agora que o homem recuperara o domínio, Hermione não se atrevia sequer a mexer-se. Estava salvo e ela recaíra na impotência. Finalmente, Rupert desapareceu. A mulher manteve-se de pé.
E assim ficou, grande espaço de tempo, absolutamente rígida. Depois dirigiu-se cambaleando para o sofá, onde se deixou cair, adormecendo profundamente. Quando acordou, lembrou-se do que fizera, mas com a impressão de que lhe havia batido - como qualquer outra mulher poderia ter feito pelo fato de que ele a torturara. Achava-se cheia de razão; pelo menos sentia que, em teoria, assim devia ser. Fizera o que fora do seu direito, consoante a sua justiça infalível. Era justiceira; estava inocente. E, no rosto, percebia-se uma expressão permanente de quase sinistro misticismo, um pouco entorpecido.
Birkin, vagamente cônscio do que se passara, mas andando perfeitamente, deixou a casa e atravessou o parque em direção às colinas, para se encontrar em pleno campo. O dia, que estivera tão claro, tornara sombrio; começavam a cair gotas grossas de chuva. Errou por ali, ate alcançar um canto agreste do vale, onde havia aveleiras em quantidade, imensas flores, montes de urzes e pinheirinhos novos cheios de rebentos tenros. Já estava tudo molhado. Ao fundo do vale, que parecia escuro, corria um riacho. Birkin admirava-se de não recuperar a perfeita consciência da situação; andava como que num sonho.
Sentia-se feliz naquele pedaço da colina coberto de plantas, sombrio por entre as ramadas floridas. Quisera poder tocar-lhes, saciar-se do contato daquele mundo vegetal. Despiu a roupa e sentou-se, nú, no meio das primaveras, agitando-as docemente com os pés, com as pernas, os joelhos, os braços, quase até aos ombros; depois estendeu-se no chão, roçando-as com a barriga, com o peito. Saturava-se daquele contato brando, fresco, sutil. Tudo aquilo era, porém, suave demais. Através do prado extenso procurou um grupo de pinheiros que não tinham mais altura do que um homem.
Os ramos macios e compridos batiam-lhe nas pernas, magoavam-no quando ele os afastava ao passar, vertiam-lhe no ventre frias gotas de água e espetavam-lhe os quadris com as folhas aguçadas. Sentiu-se ferido por um cardo, não muito fundo, porque os movimentos que fazia eram disciplinados e brandos. Estender-se no chão, revolver-se no meio dos jacintos úmidos e pegajosos, jazer de barriga para baixo e cobrir o corpo com punhados de erva tenra e molhada, suave como a brisa, mais leve, mais delicada, mais bela do que uma carícia de mulher; e depois roçar as coxas nas folhas dos pinheiros sombrios e viciosos; receber nos ombros a chicotada rápida dos ramos das aveleiras, que o espicaçavam ao mesmo tempo, abraçar o tronco prateado dos vidoeiros, sentindo-lhes a casca lisa ou rugosa, e os nós e os sulcos, tudo isso era bom, tudo isso era realmente bom e consolador. Mas de nada serviria, mais nada poderia satisfazê-lo. Somente aquela frescura e aquela sutileza da vegetação insinuando-se-lhe nas veias. Que felicidade para ele haver uma floresta tão deliciosa, perturbadora, tão igual à sua alma, esperando por ele! Como lhe matava a sede e a fome! Como Rupert se considerava venturoso!
Enquanto se enxugava com o lenço, Rupert lembrou-se de Hermione e do incidente. Sentia dores em um lado da cabeça. No fim de contas, que importância tinha isso? Que lhe interessava Hermione e todos os outros juntos? Bastava-lhe aquela solidão fresca, aprazível, inexplorada. Na verdade, cometera um erro quando pensou que lhe importava tal gente, ao supor que precisava de uma mulher. Não precisava de nenhuma, de nenhuma absolutamente. As folhas das plantas, as prímulas, as árvores, eis o que era adorável, apetecível, consolador; eis o que lhe penetrava no sangue e se misturava com ele. Sentia-se agora incomensuravelmente enriquecido e tão feliz!
Que Hermione houvesse pretendido matá-lo, achava ate natural. Que tinha de comum com aquela criatura? Que tinha que fazer com os outros seres humanos? Aqui é que estava o seu mundo, não queria nada mais senão a encantadora, sutilíssima vegetação irmã da sua alma; contentar-se-ia consigo, com o seu próprio ser.
Mas era preciso regressar ao seio dos homens. Não podia fugir a isso. Daí em diante já se conhecia bem. Sabia a quem devia pertencer. Sabia para onde fugir: sob as árvores, entre a folhagem deliciosa e fresca das plantas. Era ali o seu refúgio, o lugar do seu idílio. O mundo ficar-lhe-ia como estranho.
Subiu a colina, perguntando a si próprio se teria enlouquecido. Mas, caso assim fosse, preferia essa loucura a uma perfeita saúde de espírito. Rejubilava-se com tal insensatez, pois era livre. Não ambicionava o juízo decrépito da sociedade, que se lhe tornara odioso. Regozijava-se com a descoberta da sua nova demência. Considerava-se livre, puro, satisfeito.
Quanto a certo pesar que, ao mesmo tempo sentia na alma, isso não era mais, afinal, do que a reminiscência de uma velha ética que incitava os seres humanos a aderirem à humanidade. Mas estava cansado dessa moral já gasta, dos homens e de toda a coletividade. O que venerava agora era o reino vegetal, excelente, calmo, perfeito. Passaria sobre as dores antigas, poria de lado a velha ética, seria livre na nova ordem que fundava.
De minuto a minuto acentuava-se a dor que experimentara no crânio. Foi seguindo através da estrada, para alcançar a estação mais próxima. Chovia, e Birkin não trouxera chapéu. Mas quantos excêntricos não andam hoje na chuva, de cabeça descoberta!
Pensava também se não seria devido à ideia de que alguém o houvesse visto nu, estirado na terra, aquela preocupação que o acompanhava, certa depressão moral de que não conseguia livrar-se. A humanidade... os outros... ah, como odiava tudo aquilo! Este pensamento conduzia-o quase ao terror, uma espécie de pânico - ter sido observado por qualquer pessoa! Se estivesse em outra ilha, como Alexandre Silkirk - Marinheiro escocês desembarcado sozinho na ilha de João Fernandes, no Pacífico. A notícia das suas aventuras inspirou a Defoe o seu Robinson - nota da tradutora) só com os animais e as plantas, seria livre e contente, sem grandes apreensões, sem receios de qualquer espécie. Amaria à vontade os vegetais, seria feliz, livre dos importunos, a sós consigo mesmo.
Talvez fosse melhor escrever um bilhete a Hermione; ela poderia inquietar-se a seu respeito, coisa que Birkin não queria que sucedesse. Uma vez na estação, redigiu um bilhete:
"Parto para a cidade. Não desejo voltar por enquanto a Breadalby. Tudo vai bem. Não julgue, de maneira nenhuma, que me magoou. Diga aos outros que se trata de mais um dos meus caprichos. Teve muita razão em me agredir: bem sabia eu que era essa a sua vontade. E assim, tudo acabou".
No trem, entretanto, Rupert Birkin sentiu-se mal. Cada solavanco era uma dor que lhe causava; não estava bem de saúde. Da estação onde saltou seguiu à procura de um carro, andando devagar, como um cego, sustentado apenas pelo esforço obscuro da vontade.
Esteve doente durante uma ou duas semanas, mas nada comunicou a Hermione, que o julgava quando muito, zangado. Estabeleceu-se indiferença entre ambos. Ela absorvia-se no sentimento de que estava cheia de razão. Vivia na estima de si própria, persuadida da justeza do seu espírito.
Capítulo IX
Pó de carvão
De regresso à casa, de tardinha, depois da aula, as irmãs Brangwens desceram a colina, entre as pitorescas residências de Willey Green, ate atingirem a passagem de nível. Encontraram a cancela fechada, pois aproximava-se o trem da empresa de mineração. Ouviram a locomotiva ofegante avançar com precaução. O sinaleiro coxo, na guarita junto da linha, via-a chegar, em segurança, como um caranguejo escondido no seu buraco.
Enquanto as moças esperavam, apareceu Gerald Crich montado em uma égua baia de sangue árabe. Montava bem, com aprumo, contente por sentir entre os joelhos o estremecimento nervoso do animal. Tinha um ar pitoresco, pelo menos aos olhos de Gudrun, seguro e elegante sobre a esbelta égua, cuja cauda comprida flutuava ao vento. Gerald cumprimentou as duas irmãs e esperou que abrissem a cancela, olhando para a linha férrea para ver surgir o trem. Apesar do sorriso irônico que o seu aspecto despertava em Gudrun, a moça não se cansava de contemplá-lo. Gerald mantinha-se firme, à vontade; as cores quentes do rosto queimado faziam sobressair o bigode claro e áspero e os olhos azuis, na distância, cintilavam de uma luz muito viva.
A locomotiva arfava vagarosa, escondida ainda no meio dos taludes. A égua impacientava-se, começando a recuar, como se aquele barulho desconhecido a tivesse assustado. Mas o cavaleiro dominou-a, obrigando-a a enfrentar a cancela. As explosões repetidas da máquina chegavam cada vez com mais força, e aquele inimigo oculto, que produzia um ruído tão terrível, infundia pavor na égua, que saltou, como uma mola arrebentada. Gerald esboçou outro sorriso, e trouxe-a, como da primeira vez, ao seu lugar, sem que ela pudesse deixar de obedecer.
O barulho aumentou e a pequenina locomotiva, com a sua biela de aço rangente, surgiu na via férrea, matraqueando. O animal pulou como uma gota d'água sobre ferro em brasa. Úrsula e Gudrun, aterrorizadas, foram-se refugiar na sebe. Mas Gerald mantinha-se seguro e conseguiu conter a montaria. Parecia subjugá-la magneticamente e impôs mais uma vez a sua vontade.
- Que louco! - exclamou Úrsula em voz alta. - Por que não se afasta, ate que o comboio passe?
Gudrun admirava-o com os olhos dilatados, como que fascinada. Ele, porém, continuava teimoso, com o olhar brilhante, forçando a égua, que revoluteava, resistindo e desviando-se, sem poder, contudo, esquivar-se ao império do cavaleiro nem escapar ao estrépido enlouquecedor que a assustava, à medida que os vagões deslizavam pesados, vagarosos, amedrontadores, um após outro, como que perseguindo-se, sobre os trilhos da passagem de nível.
A locomotiva - dir-se-ia consciente das próprias manobras pôs um freio no seu entusiasmo, e os vagões percutiram-se nas molas de ferro, entrechocando-se como horríveis pratos de música, com um estrondo cada vez mais próximo e em pancadas medonhamente estridentes. A égua abriu a boca, erguendo-se, mas devagar, como se fosse levantada por uma rajada de pavor. Depois, de repente, as patas dianteiras agitaram-se, e o animal foi totalmente dominado pelo medo; as duas jovens agarraram-se uma à outra, certas de que cavalgadura e cavaleiro cairiam ambos por terra. Mas Gerald inclinou-se para frente, com o rosto a brilhar de prazer e obrigou o animal a abaixar as patas e regressar ao lugar de onde pretendera fugir. Tão forte como a pressão exercida pelo cavaleiro era a repulsa oposta pela égua, que a levava a evitar a proximidade da linha e, assim, ela volteou, apoiando-se nas pernas traseiras, sempre em roda, como se fosse o centro de um redemoinho. O espetáculo produziu em Gudrun vertigens e aflições,
- Não! Não! Deixe o animal! Que imprudência! - gritou Úrsula com voz alterada, completamente fora de si. A irmã deplorou aquela falta de classe, principalmente o tom de voz que Úrsula empregara, metálica e penetrante.
O olhar de Gerald parecia morder a égua como um gume afiado, obrigando-o a dar meia volta. O animal relinchava, abria desmesuradamente as narinas, como se fossem fornalhas ardentes, escancarava a boca, arregalava os olhos. Era um espetáculo impressionante. Mas Gerald mantinha-o obediente, com uma inexorabilidade quase animal, rija como se uma espada o atravessasse. Tanto o homem como o animal estavam cobertos de suor. Gerald, entretanto, mantinha-se perfeitamente controlado.
Os vagões desfilavam muito lentamente, dando trancos uns nos outros, numa espécie de pesadelo sem fim. As correntes que os uniam gemiam e chiavam em variados tons; a égua escarvava, recuava de vez em quando, cheia de terror, agora que o cavaleiro a dominava inteiramente; dava patadas às cegas, de modo impressionante, e Gerald apertava-lhe os flancos, prendendo-a, como se ela fizesse parte do seu próprio corpo.
- Está sangrando! - exclamou Úrsula, furiosa com o homem e aborrecida com a cena. Só ela compreendia tudo, dado o contraste de temperamentos.
Gudrun viu as gotas de sangue na barriga do animal e empalideceu. Naquele momento, sobre as próprias feridas, as esporas faiscantes fizeram nova pressão. Gudrun sentiu a cabeça rodar, tudo desapareceu da sua vida.
Quando voltou a si, tinha o espírito tranquilo e indiferente; não conseguia pensar. Os vagões continuavam a deslizar e o homem e a égua lutavam sem descanso. Mas Gudrun estava alheia e serena, já não sentia: ficara completamente fria e insensível.
O ruído da máquina diminuía; breve cessaria o intolerável entre chocar de ferros. A égua, meio aturdida, arfava pesadamente. Gerald parecia confiante: sua vontade corajosa triunfara. Um empregado observava a cena. E, através dos olhos do homem, Gudrun pôde reconstituir todo o espetáculo, fixando-o para a eternidade.
Adorável, grato silêncio sucedia à balbúrdia do comboio: delicioso silêncio! Úrsula lançou um olhar raivoso às ferragens do último vagão, que já sumia na distância o guarda estava à porta da sua casinhola, pronto para abrir a canela. Mas Gudrun, subitamente, colocou-se à frente do animal rebelde, levantou a tranca e separou os dois batentes da portinhola, empurrando um para cima do guarda e correndo através do outro que escancarou sobre a linha. Gerald deixou a égua seguir. Foi então que Gudrun bradou-lhe em voz aguda e estranha, qual bruxa que gritasse à passagem do viajante:
- O senhor é um vaidoso!
As palavras foram pronunciadas clara e nitidamente. Gerald, torcendo o corpo sobre a montada, que ia cabriolando, olhou, surpreso e interessado. Depois, o animal, tendo batido por três vezes com os cascos nos trilhos da via férrea, batidas que ressoavam como tambores, saltou com agilidade e alcançou a estrada.
As jovens ficaram observando montaria e cavaleiro desaparecerem. O guarda-cancela veio coxeando, fazendo retinir nos barrotes da via as pancadas da sua perna de pau. Fechou a portinhola e, voltando-se para as duas irmãs, disse:
- Estupendo cavaleiro! Faz o que quer com a montaria.
- É verdade- concordou Úrsula com a sua voz quente e dominadora - Mas por que não conservou a montaria afastada ate que o comboio passasse? É louco. É um déspota. Não vê que não é humano tratar assim um animal? É um ser vivo, não pode ser tratado com tamanha brutalidade.
Houve uma pausa. O guarda inclinou a cabeça e tornou a falar:
- É isso mesmo. E a égua é esplêndida. Linda estampa. Mas, o pai dele não trataria assim um animal daqueles. Nunca vi duas pessoas tão diferentes, o Sr. Gerald e o pai.
Seguiu-se novo silêncio.
- Por que será que ele procede assim? - exclamou Úrsula. - Supõe ser sinal de valentia brutalizar um animal tão sensível, dez vezes mais sensível que ele?
Ficaram de novo calados. Depois o homem abanou a cabeça, como se não fosse dizer mais nada, embora continuasse pensativo. Falou, finalmente:
- Acho que ele está acostumando a égua a não ter medo de nada. É um puro-sangue árabe; não estamos acostumados a ver disso por aqui. Completamente diferente dos nossos cavalos. Dizem que foi comprado em Constantinopla.
- Ah, sim? - retorquiu Úrsula. - Mais valia que o tivessem deixado com os turcos, que o tratariam, estou certa, com mais humanidade.
O homem entrou em casa, para tomar o seu chá e as moças seguiram pelo atalho, coberto de uma camada de poeira negra e mole. Gudrun parecia entorpecida pela impressão causada pela presença imponente e desembaraçada daquele homem a cavalo: louro, as pernas fortes e implacáveis dominando o corpo fremente do animal, certo de que não seria desobedecido; espécie de império instintivo e magnético mantido pelos quadris, pelas coxas e pela barriga das pernas, com que fechava e envolvia pesadamente a égua, obrigando-a a uma incompreensível subordinação, sujeição, para o animal, inevitável.
Enquanto as jovens iam andando, percebiam surgir, à esquerda, enormes montes de hulha e depósitos de carvão, a estrada de ferro, enegrecida com as carretas paradas, tudo aquilo dando a impressão de um porto submerso de uma vasta baía onde tivessem ancorado vagões.
Perto da segunda passagem de nível, que atravessava inúmeros trilhos luzidios, havia uma herdade pertencente à empresa; no campo ao lado da estrada repousava silencioso um enorme globo de ferro, antiga caldeira enferrujada, em torno da qual ciscavam galinhas com seus pintinhos.
Do outro lado da passagem, a um canto da estrada, elas notaram um amontoado de pedras de tom cinza-claro, destinadas à reparação da estrada, e uma carroça parada. Curvado sobre a pá estava um homem de meia idade, a conversar com um rapaz de polainas, em pé junto ao cavalo. Tanto um como o outro olhavam para a passagem de nível.
Viram as duas se aproximar, figuras pequeninas e luminosas, no esplendor da tarde. Ambas usavam trajes claros e alegres: Úrsula, um casaco de malha alaranjada; Gudrun, um vestido amarelo-pálido. As meias da primeira eram cor de canário, as da segunda, em tom rosa brilhante; seus vultos pareciam cintilar à medida que se aproximavam do vasto espaço da encruzilhada: o branco e o amarelo, o cor-de-rosa e o alaranjado faiscavam ao mover-se naquele mundo ardente, obstruído pelo pó de carvão.
Os dois homens, imóveis e silenciosos, ficaram observando as duas, sob um sol tórrido. O mais velho deles era baixo, de rosto duro e enérgico; o mais moço, um operário, devia ter uns vinte e três anos. Viram as duas passar e viram-nas desaparecer na estrada poeirenta ladeada de casas e de campos de trigo tenro.
Foi o mais velho quem disse ao outro, em tom malicioso:
- Quanto deve valer aquilo? Confesso que me calhava às mil maravilhas.
- Qual delas? - perguntou o rapaz, cheio de curiosidade.
- A das meias cor-de-rosa. Eu daria o meu salário de uma semana, só por cinco minutos. Palavra, só cinco minutos...
O rapaz tornou a rir, replicando:
- A sua patroa haveria de gostar muito...
Gudrun voltou-se e deparou com os dois homens. Pareceram-lhe criaturas sinistras, ali paradas perto do monte de escórias. Achava-os detestáveis, principalmente o velho.
- É da alta, não é? - gritou, quase.
- Acha que ela vale uma semana de salário? - tornou o rapaz, pensativo.
- Eu não pensaria duas vezes!
O rapaz examinou Gudrun e Úrsula com ar sério, como se tentasse calcular o que valiam, certificar-se de que pudessem merecer uma semana de salário. E abanou a cabeça com ceticismo.
- Não - declarou. - Eu não pagaria tanto.
- Pois para mim - disse o mais velho - garanto-lhe que vale.
E continuou a remexer as pedras com a pá.
As moças desceram a estrada entre as casas de telhado de ardósia e paredes de tijolo enegrecido. O sol começava a declinar na sua opulência dourada, iluminando toda a região mineira; a fealdade que a beleza da tarde punha a descoberto era como que um narcótico para os sentidos. Nos caminhos cobertos de pó preto, a luz tombava com mais calor, mais pesadamente; e, por cima daquela sordidez amorfa, fundia-se uma espécie de esplendor mágico lançado pelo crepúsculo.
- Este lugar é, ao mesmo tempo, encantador e asqueroso - comentou Gudrun, impressionada, evidentemente, com tudo aquilo. - Não se encontra aqui um certo estímulo sensual? Acontece isso comigo e é uma coisa que eu não consigo entender.
Passaram pelo aglomerado de casas dos mineiros. Em alguns pátios, situados nos fundos, podiam-se descobrir operários que se lavavam ao ar livre, nus ate a cintura, com as largas calças escorregando-lhes pelas pernas abaixo. Outros, já prontos, estavam de cócoras, costas apoiadas à parede, conversando, ou calados, aproveitando o seu bem-estar físico, o descanso após um dia de trabalho. Vozes ressoavam com acentos fortes, e o dialeto rude que empregavam estremecia os ouvidos de quem os escutasse. Esse quadro envolvia Gudrun numa cariciosa atmosfera mineira; errava no espaço o vigor físico dos homens, uma camada espessa de vida operária e de virilidade. Era assim em toda a região e os habitantes nem percebiam mais.
Para Gudrun, contudo, o ambiente era forte em demasia. Nunca pudera explicar por que motivo Beldover se mostrava tão completamente diverso de Londres e do Sul, por que razão os sentimentos se diferenciavam tanto, a ponto de se julgar viver em outro hemisfério. Agora, porém, compreendia que isso resultara da presença dos homens enérgicos que trabalhavam debaixo da terra, que passavam nas trevas a maior parte do tempo. Na linguagem deles havia a ressonância da escuridão, daquele mundo subterrâneo e poderoso, temível, descuidado e subumano. As vozes soavam como sons de máquinas estranhas, pesadas, cheias de óleo. Possuíam a volúpia semelhante à das máquinas, fria, dura como o ferro.
Era o mesmo todas as tardes, ao voltar para casa; tinha a impressão de que se debatia numa onda de força dissolvente, impressão que lhe vinha da presença de milhares de mineiros vigorosos, habituados à vida subterrânea e semitransformados em autômatos; aquela força lhe penetrava no cérebro e no coração, acordava-lhe desejos fatais e uma fatal insensibilidade. No entanto, sentia sempre saudade daquele lugar. Detestava-o, sabia que significava desterro, sabia que tudo era odioso, inerme, nauseabundo. Então, batia as asas como uma nova Dafne, transformada não em árvore, mas em máquina... A nostalgia, no entanto a atormentava. Procurava adaptar-se ao ambiente, procurando encontrar um pouco de alegria.
Às tardes, sentia-se atraída para a rua principal da cidade, tão inexpressiva e feia quanto repleta da mesma atmosfera fria e insensível. Havia sempre mineiros. Chegavam a impressionar com a sua dignidade não destituída de beleza, certa tranquilidade no porte e o ar abstrato e resignado dos rostos magros e pálidos. Pertenciam a um outro mundo, mas transmitiam um encanto singular.
Ela habituara-se a ir, com as outras mulheres do povo, à feira das sextas, à noite. A sexta-feira era o dia do pagamento dos operários, e, ao escurecer, abria-se o mercado.
Não havia mulher que não viesse para a rua, não havia homem que não Saísse, ou para fazer compras com a mulher ou para se juntar aos camaradas. Os caminhos léguas distantes, ficavam apinhados pela gente que os enchia, e a feira no alto da colina e a rua principal de Beldover enchiam-se também de compacta multidão.
Já estava escuro, o mercado exibia seus bicos de petróleo que projetavam clarões avermelhados nas faces graves dos compradores e no rosto pálido e absorto dos maridos. O ar vibrava com as conversas, e ondas compactas de gente avançavam pelas calçadas em direção às barracas. A rua pululava de homens, mineiros novos e velhos. O dinheiro corria com pródiga liberalidade.
As carroças que vinham já não podiam prosseguir. Seus condutores precisavam gesticular e esbravejar para que a multidão se afastasse. Por toda a parte se viam rapazes e moças. As portas dos bares estavam abertas e as lojas iluminadas, os homens entravam e saíam num fluxo e refluxo contínuo aqui e ali chamavam uns pelos outros ou corriam ao encontro dos conhecidos; às vezes ficavam de pé, em grupinhos, discutindo, discutindo sem cessar. O rumor das conversas, o zumbido confuso das discussões e das confidências, as intermináveis questões acerca de minas e política vibravam no ar como um mecanismo dissonante. Eram as vozes o que mais afetava Gudrun. Despertavam-lhe um desejo nostálgico e doentio, qualquer coisa de demoníaco, impossível de satisfazer.
Como todas as moças do povo que viviam no distrito, Gudrun ia e vinha ao longo da calçada, comprida uns duzentos passos, bem iluminada, muito perto da feira. Sabia que era um prazer popular e que a mãe e o pai não haveriam de entender; mas a nostalgia havia-se apoderado dela, precisava estar entre o povo. Uma vez por outra sentava-se no cinema, no meio de pessoas rudes. Era gente de aspecto libertino, que não inspirava simpatia. Mas Gudrun não conseguia dispensar a companhia dos outros.
E, como todas as moças da terra, acabou por encontrar o seu rapaz. Era um eletricista, recentemente contratado por Gerald Crich. Vivo, inteligente, dedicado às ciências, com decidida paixão pela sociologia, morava só, em uma casa que alugara em Willey Green. Era distinto, educado e ganhava o suficiente. A senhoria contava histórias a seu respeito: que exigia, no quarto, uma grande tina de madeira e que, ao voltar do trabalho, entornava baldes e mais baldes a fim de se banhar todos os dias. Envergava camisas, roupa de baixo e meias de seda escrupulosamente lavadas; sob esse aspecto, era enfadonho e meticuloso, mas, quanto ao resto, não se diferenciava dos outros e, acrescentava a velhota, não incomodava ninguém.
Gudrun estava a par de tudo isto. À residência dos Brangwens iam ter, natural e inevitavelmente, todos os falatórios das comadres. Palmer, a princípio, tornara-se amigo de Úrsula. Mas, naquele rosto pálido, delicado e sério, exprimia-se a mesma ansiedade que sentia Gudrun. Tinha também, como os outros, de cruzar a rua sexta-feira à noite; assim, começou a passear com a mais nova das irmãs, estabelecendo-se uma amizade mais estreita. Ele, no entanto, não estava apaixonado por Gudrun; desejava, na verdade, a outra, mas, por qualquer razão estranha, nada aconteceu entre os dois. Gostava de conversar com Gudrun devido às afinidades de espírito que notava nela somente por isso. A moça, por sua vez, não nutria por ele nenhum sentimento especial. Era um cientista, precisava de uma mulher que o ajudasse; mas faltava-lhe personalidade, dir-se-ia apenas possuir a delicadeza de uma peça bem trabalhada: frio em demasia, excessivamente egoísta para se ocupar verdadeiramente de uma mulher. Estava influenciado pelos homens, que individualmente lhe desagradavam e a quem ele desprezava, mas, que, em conjunto, o fascinavam, como o fascinava a mecânica. Constituíam, para ele, uma nova espécie de maquinismo - incalculável, incalculável...
Dessa maneira, Palmer e Gudrun passeavam pelas ruas ou se instalavam no cinema. A face dele, pálida e delicada, estremecia durante as observações sarcásticas que ela costumava fazer-lhe. Ei-los, pois, reunidos: eram dois elegantes, duas unidades que não pertenciam ao conjunto do povo, mas sentiam necessidade de irmanar-se àqueles mineiros rudes. O mesmo segredo parecia existir na alma dessas criaturas - de Palmer, de Gudrun, dos rapazolas de sangue na guelra, dos homens ativos e dos velhos. Todos possuíam um sentimento secreto de poder, da força inexprimível e destruidora, mas de fatal escassez de ânimo, uma espécie de podridão da vontade.
Às vezes Gudrun afastava-se, compreendia-se e se sentia naufragar. Então invadiam-na, furiosamente, a cólera e o desprezo. Tinha a sensação de afundar no anonimato junto com os outros, unida a eles, confundida, numa agonia sufocante... Era horrível. Preparou-se para fugir, começou a trabalhar de maneira febril. Mas não tardou muito que desistisse. Voltou à terra - aquela sua terra sombria e feiticeira, cuja magia novamente a dominou.
Capítulo X
Álbum de desenhos
Certa manhã estavam as duas irmãs desenhando, à beira de Willey Green, em um dos recantos mais afastados do lago. Gudrun atravessara a vau ate atingir um banco de areia e ali se sentara, como um monge budista, olhando fixamente para as plantas aquáticas que se elevavam opulentas acima das margens lodosas. Tudo o que os seus olhos viam era a terra lamacenta, mole, vertendo água, e dessa fria podridão erguiam-se as plantas, espessas, carnudas, frescas, muito rígidas e túrgidas, com as folhas saindo em ângulo reto. As cores eram sombrias, verde-escuro, com manchas de púrpura quase negras ou bronzeadas. Sentia-lhe a estrutura infiltrada dos tecidos, como uma coisa sensual, compreendia como elas se desenvolviam no lodo, fugindo a si mesmas, impondo-se vigorosamente, suculentamente, no espaço aéreo.
Úrsula admirava as borboletas, de que havia grande quantidade voando perto da água, umas pequeninas, azuis, nascidas subitamente do nada para a sua vida fulgurante; uma grande, verde e vermelha, pousara sobre uma flor e absorvia, com as asas sedosas, o ar puro e a claridade etérea, que a perturbavam; duas outras, brancas, que roçavam quase pelo chão, deixando um halo em volta; ah, quando passaram mais próximo, que tons de laranja lhes descobrira no rebordo das asas! Daí o reflexo que haviam deixado no ar. Úrsula pôs-se de pé e afastou-se, inconsciente como as próprias borboletas.
Gudrun, absorta na contemplação das plantas aquáticas, fascinada de as ver surgir assim, descansava na restinga do lago e continuava a desenhar, quase sem levantar a cabeça; mas, quando o fazia, extasiava-se à vista dos caules rígidos, suculentos e uns que emergiam do fundo. Ele se descalçara e atirara o chapéu para a margem fronteira.
Sobressaltou-a o chapinhar de remos na água. Olhou em volta e viu um barco com um toldo vistoso, conduzido por um homem vestido de branco. Era Gerald. Vinha com ele uma mulher: Hermione. Gudrun reconheceu-os instantaneamente e instantaneamente experimentou um arrepio agudo de antecipação, espécie de vibração elétrica nas veias, tão ou mais intensa do que aquela que zumbia pesadamente na atmosfera de Beldover.
Gerald seria, para ela, um meio de fugir ao turvo lamaçal do mundo de mineiros pálidos e automáticos. Elevava-se acima do limo impuro; era o patrão. Gudrun via-o de costas, admirava-lhe o movimento dos músculos brancos - ou melhor, ele é que envolvia a brancura quando remava, inclinado para a frente. Parecia curvar-se para abranger o mundo. Os cabelos muito claros e luminosos davam a impressão de recolher a eletricidade atmosférica.
- Lá está Gudrun! - ouviu-se a voz de Hermione, flutuando distintamente sobre a água. - Quer ir falar-lhe? Não se importa?
Gerald voltou a cabeça e descobriu a jovem à beira do lago, olhando para ele. Dirigiu o barco para lá, como se tivesse sido atraído, sem ao menos pensar no que fazia. No seu mundo consciente, Gudrun ainda não existia, mas era do jeito de Hermione desfazer as diferenças sociais, pelo menos na aparência.
- Como está, Gudrun? - disse Hermione em sua voz modulada e tratando-a pelo nome de batismo, o que julgava mais elegante. - O que está fazendo aí?
- Como vai, Hermione? Estou desenhando.
- Ah! - o barco continuava a aproximar-se ate tocar na margem. - Posso ver? Sempre gostei dos seus trabalhos.
Não valeria a pena opor-se a um desejo de Hermione.
- Pois não... - respondeu a artista um pouco constrangida. Sempre detestara mostrar trabalhos incompletos. - É coisa de pouco interesse...
- Acha? Deixe-me ver, por favor.
Gudrun levantou o álbum dos desenhos e Gerald estendeu o braço para o receber. Ao fazer isso lembrou-se das últimas palavras que ela lhe dissera e do rosto da jovem levantado para ele, quando estava montado a cavalo. Sentiu um estremecimento de orgulho, sentia que atraía aquela mulher. Havia entre os dois uma permuta de sentimentos bastante forte, embora, por enquanto, alheia à consciência de ambos.
Como num encantamento, Gudrun via surgir o corpo de Gerald, qual labareda dó pântano, dirigindo-se para ela, com o braço estendido qual a haste de uma flor. A percepção aguda e voluptuosa que sentiu fez com que o sangue arrefecesse nas veias e o espírito se tornasse obscuro e inconsciente. Gerald balançava-se naturalmente na água como o tremular de uma chama. Voltando-se para observar o barco, notou que este sé afastara um pouco. Tomou o remo para o trazer de novo à terra. E a visão daquele homem remando lentamente, sobre a água parada e leve, dava-lhe a perturbação deliciosa de uma vertigem.
- Foram aquelas que desenhou? -perguntou Hermione, examinando atentamente as plantas da margem e comparando-as com o esboço de Gudrun. Ela olhou na direção apontada e confirmou:
- Aquelas mesmas - respondeu distraidamente, sem prestar a menor atenção à pergunta.
- Deixe-me ver - acudiu Gerald, inclinando-se para segurar o caderno. Mas Hermione não fez caso do pedido; que tinha o rapaz de se intrometer, antes que ela o apreciasse à vontade? Ele, porém, cuja vontade era tão persistente quanto a dela, continuou de braço estendido ate conseguir tocar no álbum. Hermione sobressaltou-se com aquela teimosia; largou o álbum antes de Gerald o ter segurado e o resultado é que ele caiu na borda do barco e escorregou para o lago.
- Ora! Que desastrado! - exclamou Hermione em tom de triunfo maldoso. - Veja se o pode salvar, Gerald!
As últimas palavras foram pronunciadas com ansiedade zombeteira, o que encheu o outro de raiva contra ela. Inclinou-se para a água, demasiadamente estendido fora do barco - posição ridícula de que ele próprio se compenetrou.
- Não vale a pena - dizia Gudrun, em voz alta. Gerald estirou-se ainda mais, e o barquinho adernou bruscamente. Hermione ficou imperturbável. O rapaz alcançou, finalmente, o álbum, e levantou-o. gotejante.
- Sinto! Sinto muito! - repetia Hermione. - Acho que a culpa foi minha.
- Não tem importância, palavra de honra. Não faz mal nenhum - respondia Gudrun, com o rosto vermelho. Depois, estendeu a mão, impaciente, para recuperar o livro molhado e pôr fim àquela cena. Gerald atendeu-a, um pouco desconcertado.
- Sinto muito - tornou a dizer Hermione. Gudrun e Gerald já estavam desesperados. - Acha que tem remédio?
- Remédio, como? - repetiu a outra, ironicamente.
- Os desenhos podem ser salvos?
Houve um momento de silêncio, durante o qual a artista deu claramente a entender que não apreciava a insistência de Hermione.
- Os desenhos estão tão bons como antes - respondeu Gudrun. - Preciso deles apenas como documentação.
- Permite que lhe ofereça um álbum novo? Dê-me esse prazer. Isso aborreceu-me tanto. Sinto-me a única culpada.
- Pelo que pude observar - assegurou Gudrun - a culpa não foi sua. Se alguém a teve, foi o Sr. Crich. Mas isso não tem importância, é tolice falarmos mais no assunto.
Enquanto ela recusava a oferta de Hermione, Gerald observava-a atentamente. Havia nela uma vontade fria. Examinava-a com tal profundidade que chegava quase à clarividência. Via naquela criatura um espírito perigoso, hostil, incapaz de se deixar abater ou diminuir. E, além disso, era perfeita e completa nas suas atitudes.
- Ainda bem que o prejuízo não foi maior - disse ele.
Gudrun mirou-o com os seus belos olhos azuis e achou-se inteiramente integrada naquela alma; e assim respondeu - agora que se dirigia a ele - com uma voz que soou cheia de intimidade, como se fosse uma carícia:
- É verdade, afinal de contas, não houve prejuízo. Estabelecia-se um laço entre os dois, e o olhar e o tom das palavras estreitaram ainda mais. Ele sentia o quanto tinham de iguais, como se entre um e outro se houvesse estabelecido uma espécie de maçonaria. Daí por diante - Gudrun bem o sabia - teria domínio sobre aquele homem. Em qualquer lugar em que se encontrassem, estariam secretamente associados. No par, seria ele o mais fraco. A alma dela exultava.
- Adeus! Ainda bem que me perdoou. Ade-e-e-eus!
Hermione despedia-se num grito cantado, acenando com a mão. Gerald, automaticamente, pegou o remo e fez-se ao largo. Mas continuou a olhar para Gudrun, com uma admiração que lhe fazia sorrir e cintilar os olhos. A moça, na margem, agitou por momentos o álbum molhado. Depois, voltou-se, esquecida do barco que se afastava. Gerald, porém, não cessava de olhar para ela enquanto remava, indiferente a tudo o mais que fazia.
- Não estamos nos afastando muito para a esquerda? - perguntou Hermione que se sentara, distraída, debaixo do toldo colorido.
Gerald olhou, sem responder, para os remos que mergulhavam na água e espelhavam ao sol.
- Creio que estamos indo bem - respondeu ele, por fim, de bom humor, recomeçando a remar sem perceber. Hermione odiou-o pelo seu ar de felicidade e pelo pouco caso que fazia dela. Sentia-se aniquilada, incapaz de recuperar a sua importância.
Capítulo XI
Uma ilhota
Entretanto, Úrsula desviara-se de Willey Water, seguindo o curso do riacho cintilante. Cantos de calhandras enchiam o ar naquela tarde. Pela encosta brilhante da colina ardia um fogo rasteiro, sem chamas. À beira da água os miosótis floriam, em tudo se notava o esplendor e a alegria da vida.
Abstrata, errava por ali, contemplando os arroios. O seu desejo era atingir a lagoa do moinho, cuja casa estava deserta: viviam na casa apenas um trabalhador e a mulher deste. Úrsula atravessou o pátio vazio e um jardim abandonado e subiu a encosta pelo lado da comporta. Quando chegou em cima e pôde descobrir a superfície da água imóvel, percebeu que, à beira da água, havia um homem consertando um barco de fundo chato, serrando e martelando. Era Birkin.
Úrsula deteve-se a observá-lo. Ignorante da presença de mais alguém, ele aferrava-se ao trabalho, ativamente, esforçadamente, como um operário. A jovem sentiu que deveria afastar-se. Rupert não desejaria falar-lhe, ocupado como estava. Mas na verdade ela não sentia vontade de partir, de modo que foi caminhando pela margem ate que ele a visse.
O que, aliás, não demorou muito. Quando a avistou, Rupert largou as ferramentas e veio ao encontro da professora, dizendo:
- Como vai? Estou vedando melhor o barquinho. Será que vai ficar bom? Acho que você poderia dar-me uma opinião autorizada.
Ela inclinou-se e examinou os remendos.
- Bem na verdade, não entendo nada de carpintaria. Tenho a impressão de que está bem assim.
- Espero que ele não afunde. Quer ajudar-me a lançá-lo à água?
Ajudando-se mutuamente, eles conseguiram virar a canoa, que era pesada, e pô-la a flutuar.
- Agora - disse ele - vou experimentar e você observa o que vai acontecer. Se der bom resultado, virei buscá-la para irmos à ilhota.
- Combinado - concordou Úrsula, observando a manobra com a maior atenção.
- A lagoa era extensa; perfeitamente imóvel e com o tom sombrio das águas profundas. Havia duas ilhotas no meio com arbustos e árvores. Birkin afastou-se e fez uma volta bastante desajeitada. Felizmente a canoa descaiu de modo que ele pôde agarrar um galho de salgueiro e desse modo aproximar-se da ilha.
- A mata está cerrada - declarou, olhando para o interior. - Mas é muito bonita. Vou buscá-la. O barco está fazendo um pouquinho de água. - Pouco tempo depois ele voltou para junto de Úrsula, que entrou na canoa molhada.
- Vai conduzir-nos direitinho - disse ele. E manobrou de novo em direção à ilha.
Desembarcaram debaixo de um salgueiro. A moça atemorizou-se com a vegetação inóspita que se lhe deparou. Cheirava à plantas deterioradas. Birkin, porém, tomou a dianteira.
- Vou ceifar tudo isto - explicou. - E ficará uma coisa romântica, do gênero Paulo e Virgínia.
- Poderemos fazer adoráveis piqueniques à Watteau - exclamou Úrsula, entusiasmada.
Birkin tomou uma expressão melancólica.
- Não, aqui não quero piqueniques à Watteau.
- Só quer a sua Virgínia. Sorriu com amargura e acrescentou: - Não, nem sequer a desejo.
Úrsula reparou melhor no amigo, que não via desde a estada em Breadalby. Ele mostrava-se mais magro, com as faces cavadas e um ar espectral.
- Esteve doente, não é verdade? - perguntou-lhe, um tanto penalizada.
- Estive - confirmou Birkin, secamente.
Haviam-se sentado debaixo do salgueiro, e daquele refúgio da ilhota contemplavam a lagoa.
- Ficou preocupado? - indagou a companheira.
- Com quê? - perguntou ele, voltando-se para Úrsula. Havia naquele homem algo de inumano e de imoderado que a perturbava e a punha, às vezes, fora de si.
- De estar doente. De estar muito doente.
- Não é muito agradável. Mas ter ou não ter medo da morte, não sei... Tudo depende da disposição de cada um.
- Mas, pelo menos, não sente vergonha, não é? Sempre achei que o fato de estarmos doentes nos deveria envergonhar; doença é coisa tão humilhante!
Rupert refletiu durante alguns instantes.
- É possível - disse - embora saibamos que a vida, na sua origem, não é realmente honesta. É nisso que está a humilhação. Não me parece, no fim de contas, que doença seja coisa muito importante. Adoecemos porque não vivemos como deveríamos viver. É o fracasso da vida que produz a doença e a humilhação.
- Considera-se fracassado? - inquiriu a moça em tom de brincadeira.
- Claro que sim. Nunca fui um vitorioso durante toda a minha existência. Sempre tive a impressão de bater com o nariz na porta.
Úrsula pôs-se a rir. Estava um pouco assustada e, quando isso acontecia, costumava rir e fingir-se muito à vontade.
- Pobre nariz! - exclamou, olhando-o bem no rosto.
- Não admira que seja feio - retrucou Birkin.
Úrsula calou-se durante algum tempo, lutando contra a sua própria decepção. Era instintivo o costume que tinha de enganar a si mesma.
- Quanto a mim, sou feliz. Acho a vida agradabilíssima.
- Talvez - atalhou ele, com relativa indiferença.
Ao colocar a mão no bolso do casaco, Úrsula encontrou um pedaço de papel desses de embrulhar chocolate. Retirou-o e começou a fazer um barquinho. Rupert observava-a distraidamente. Havia algo de estranho nos movimentos que ela fazia com as pontas dos dedos, inconscientemente. Ele se sentiu comovido.
- Divirto-me com as coisas. E você?
- Eu fico furioso por não poder atingir o ângulo de mim mesmo. Sei que me confundo, que não triunfo em coisa alguma. Não sei nunca o que devo fazer... se é que devo fazer alguma coisa.
- Para que trabalhar? Isso é tão plebeu! Acho melhor ser-se exclusivamente nobre e nada fazer senão existir; ser como uma flor que se movesse...
- Concordo plenamente - tornou ele - se a flor desabrochar. Quanto a mim, jamais conseguirei que desabroche. Ou se estiola ainda em botão, ou apodrece ou morre de sede. Maldita flor, que não chega sequer a despontar! Há sempre uma dificuldade qualquer pelo caminho.
Úrsula tornou a rir. Ele estava tão nervoso, tão exasperado! Ela, por sua vez, ansiosa e preocupada. Que resolução tomar? Teria de fazer alguma coisa.
Calaram-se por momentos, durante os quais ela sentiu vontade de chorar. Pegando outro pedacinho de papel, fez um novo barco. Por fim, exclamou:
- Como é possível não haver floração nem dignidade na vida humana?
- Atualmente ate as ideias desapareceram. A própria humanidade seca ou apodrece. Há miríades de seres pendentes dos ramos, com aparência rósea e tentadora, como as moças saudáveis que vemos por aí. Mas são maçãs de Sodoma, na realidade; frutos do Mar Morto, frutos da amargura. Não é possível que signifiquem outra coisa. O interior está cheio de cinza ácida e corrompida.
- No entanto, há gente capaz... - insistiu Úrsula.
- É possível. Mas a humanidade não passa de uma árvore que secou, coberta de belas e brilhantes frutas secas, que somos nós...
Úrsula não pôde deixar de se insurgir contra aquele discurso, ao mesmo tempo categórico e pitoresco. Desejava, contudo, ouvir o resto.
- Mas se assim é, como se explica? - perguntou com ar hostil. Excitavam-se um ao outra no entusiasmo da contradição.
- Por que é que os homens são invólucros de poeira amarga? É porque não tombam da árvore quando estão maduros. Ficam dependurados e aquela posição já não é mais adequada. Finalmente, os vermes o invadem e eles apodrecem.
Houve um grande silêncio. A voz de Birkin tornara-se ardente e bastante sarcástica. Úrsula estava perturbada, desnorteada. De tudo ambos se esqueciam, exceto da própria paixão.
- Admitindo que todos procedem mal... você é, por acaso, exceção à regra? - perguntou ela. - Em que você é melhor do que os outros?
- Eu? Eu não sou melhor - declarou Rupert.
- Mas reconheço os fatos e é nisso que repousa a única superioridade que possuo. Detesto o que sou exteriormente. Odeio-me como ser humano. A humanidade é um imenso agregado de mentiras, mas uma grande mentira vale menos do que uma pequena verdade. A humanidade vale menos, muito menos do que o indivíduo, pois este, às vezes, é suscetível de verdade e aquela é um poço de convenções. E ainda dizem que o amor é coisa sublime! Persistem em afirmá-lo, os mentirosos, e veja o que fazem! Observe os milhões de pessoas que repetem constantemente que o amor é a maior coisa do mundo, a caridade também... e reparem como procedem. Pelos seus atos os conhecemos, cambada de intrujões e de covardes, que não se atrevem a tomar a responsabilidade das suas ações, e muito menos das palavras que proferem.
- Mas - interrompeu a professora com ar de tristeza - isso não desmente a tese de ser o amor a coisa mais importante da vida. O que eles fazem não altera ia verdade do que apregoam.
- Altera, sim, pois se o que dissessem fosse verdadeiro, não poderiam agir de maneira contrária. Mas conservam-se na mentira e, por fim, tudo fracassa. É errônea a afirmação de que o amor seja tudo para a humanidade. Poderíamos dizer, por exemplo, que o ódio também é tudo na vida, visto que o oposto de qualquer coisa equilibra a sua afirmação. As pessoas precisam é de ódio, ódio e nada mais. E em nome da justiça e do amor, não fazem senão espalhá-lo! Todas elas destilam nitroglicerina tudo por causa do amor. E a mentira mata. Se é de ódio que nós necessitamos, deixem-nos tê-lo, mais a morte, o crime, a tortura, a destruição violenta; deem-nos tudo isto, mas não em nome do amor! Detesto a humanidade, gostaria que fosse toda destruída. Não haveria grande prejuízo se a humanidade inteira perecesse amanhã. A realidade permaneceria intacta. Seria ate melhor. A verdadeira árvore da vida ficaria desembaraçada da colheita, mais pesada e pior que as maçãs de Sodoma, aquele fardo insuportável de miríades de simulacros humanos, peso infinito de mentiras letais.
- Com que, então, você deseja o aniquilamento da espécie humana? - perguntou Úrsula.
- Exatamente.
- E quer um mundo vazio?
- Sim. Você mesma não acha uma ideia deliciosa imaginar a Terra desprovida de gente? Tudo não passar de uma grande extensão de erva e uma lebre sentada em cima?
A sinceridade divertida daquela voz obrigou a professora a considerar sua própria situação. Não havia dúvida de que era uma perspectiva tentadora: um mundo limpo, encantador, deserto de seres humanos. O coração dela hesitava e exultava. Birkin, no entanto, não a satisfizera inteiramente com as suas teorias.
- Mas - objetou Úrsula - visto que você também teria morrido, que vantagem lhe adviria disto?
- Morreria contente, ao saber que a Terra ia ser depurada de todos os seus habitantes. Belo pensamento, verdadeiramente libertador! E depois, seria preciso não criar outra humanidade ignóbil para corromper o universo outra vez.
- Não - resumiu Úrsula. - Não haveria mais nada.
- Como? Mais nada? Apenas porque a humanidade foi destruída? Não tenha tal presunção. Ainda haveria muita coisa.
- Como, se morreriam todos?
- Supõe que a criação depende do homem? Não é verdade. E os pássaros? E as árvores? Prefiro imaginar um nascer do dia, na Terra, sem qualquer ente humano. O homem foi um equívoco, é preciso que desapareça. Existem as lebres, as serpentes, os seres invisíveis, anjos presentes em todos os lugares, quando a abjeta humanidade os não impede, e os demônios bons e puros. É admirável!
Aquilo que ele dizia encantava Úrsula, encantava-a como uma fantasia deliciosa. Apenas uma fantasia, é claro. Ela própria sabia o que era a humanidade, a odiosa humanidade de agora; não seria fácil vê-la desaparecer de repente. Havia ainda um longo caminho a percorrer, longo e doloroso. Conhecia tudo isso muito bem, no seu espírito sutil, inteligente e feminino.
- Se ao menos se expulsasse o homem da Terra, a criação recomeçaria maravilhosamente, de um ponto de partida não humano. O homem foi um dos erros da criação, assim como o ictiossauro. Se desaparecesse também, como seriam agradáveis os dias deste mundo! Puros como se viessem diretamente das mãos de Deus.
- Contudo - objetou ela -o homem nunca desaparecerá. - Falava com absoluta certeza dos horrores daquela permanência. - E o mundo acabar-se-ia com ele.
- Ah, não - acudiu Birkin. - Não é assim. Creio nos anjos orgulhosos e nos demônios que são os nossos predecessores. Também os ictiossauros não o eram: rastejavam como nós. Veja, agora, as flores dos sabugueiros e as campânulas: provam a existência da criação pura; e a borboleta? Mas a humanidade nunca ultrapassou o estágio de lagarta; apodrece na crisálida e jamais adquire as asas. É uma anticriação, como os macacos.
Enquanto Birkin falava, Úrsula não tirava os olhos dele, em que pareceu vibrar uma espécie de furor impaciente, embora parecesse divertido com as próprias teorias, tolerante, até. Mas era daquela tolerância que Úrsula desconfiava. Notara bem, que, apesar de tudo, Rupert tentava salvar o mundo. Isso trouxe-lhe um certo conforto à alma e contudo, encheu-a de ódio e de desdém pelo homem. Queria-o só para si, detestava o papel de Salvador Mundi que se arrogava. Era esse aspecto difuso e generalizador o que Úrsula mais abominava. Birkin teria procedido da mesma maneira, dito as mesmas palavras, ter-se-ia aberto completamente a quem quer que fosse, a este ou aquele que o tomasse por confidente. Achava aquela atitude intolerável, considerando como que uma forma insidiosa de prostituição. De maneira que lhe disse:
- Crê, ao menos, no amor individual, já que não acredita no amor universal?
- Não creio em amor algum, quero dizer, não creio tanto quanto creio na dor e no ódio. O amor é uma emoção como outra qualquer e tudo vai bem quando a sentimos. Mas não vejo como pode transformar-se em coisa absoluta. Faz parte apenas das relações humanas, e nada mais. Nunca se encontra fora dessas relações humanas. E por que o haveríamos de sentir mais intensamente do que sentimos tristeza e alegria? Não concebo tal hipótese. O amor não é um desideratum, é uma emoção que se pode ou não experimentar, de acordo com as circunstâncias.
- Então, por que motivo se preocupa com os outros - perguntou ela - se não crê no amor? Que lhe interessa a humanidade?
- Por quê? Porque não consigo evitar.
- E por que ama o seu semelhante? - acrescentou Úrsula.
A insistência irritou-o. Mas replicou:
- Se amo, isso faz parte do meu quadro mórbido.
- É uma doença de que você pão deseja ficar curado - comentou a moça, friamente, com ar zombeteiro.
Rupert calou-se e teve a impressão de que ela queria magoar.
- Se não acredita no amor, então em que é que crê? - prosseguiu a professora, sempre irônica. - Apenas no fim do mundo e na vegetação?
Birkin começava a sentir-se tolo. - Creio nos seres invisíveis.
- E em nada mais? Não confia nas coisas visíveis à exceção das plantas e das aves? O mundo da sua concepção é um espetáculo muito insípido.
- Talvez - respondeu o inspetor, cheio de superioridade e de frieza, agora que se considerava ofendido. Tomara uma atitude afetada, aumentando a distância entre ambos.
Úrsula achou-o antipático, mas sentiu que perdera qualquer coisa. Observou-o sentado na margem da lagoa, e descobriu-lhe um ar de rigidez pretensiosa e dogmática, verdadeiramente detestável. E, no entanto, o aspecto daquele homem era fino e atraente, inspirando uma sensação de autêntica liberdade, que se lhe irradiava das sobrancelhas, do queixo, de todo o físico, algo de muito vivo, em qualquer parte do seu ser, apesar da aparência doentia.
Aquela diversidade de sentimentos que Rupert despertava em Úrsula fazia mover nas entranhas desta uma aversão não destituída de certo encantamento. Era, por um lado, aquela maravilhosa e apreciada exuberância de vida, qualidade primacial de um homem para torná-lo atraente; por outro lado, aquela ridícula e mesquinha pretensão de salvador do mundo e o ar doutoral e pedante de professor do tipo empertigado.
Ele olhou para ela e viu-lhe o rosto estranhamente emocionado, como se de dentro para fora escapasse um fogo de avassaladora ternura. A alma de Birkin impressionou-se, deslumbrada. A jovem deixava-se devorar nas chamas do seu próprio incêndio interior. Levado por aquela sedução, sinceramente atraído, Rupert aproximou-se da companheira que estava sentada como uma rainha lendária, quase sobrenatural na opulência do seu sorriso esplendoroso.
- A verdade - disse ele, integrando-se rapidamente à situação - é que detestamos o amor porque vulgarizamos demasiadamente a palavra. Devia ser proscrita, proibida de ser pronunciada durante muitos anos, ate que descobríssemos outra nova e melhor.
Houve entre os dois uma centelha de entendimento recíproco.
- Mas o significado seria sempre o mesmo - observou ela. Ah, meu Deus! Não! Que signifique mais alguma coisa, e que o velho sentido da palavra desapareça...
- Será sempre amor - insistiu a jovem. Nos seus olhos brilhou um clarão dourado, perverso, singular.
Ele hesitava, confuso, receoso de se aproximar demais. Murmurou:
- Não, nunca mais se exprimirá pela voz. Não há necessidade de pronunciar a palavra.
- Cabe a você extrair, no momento propício, do Tabernáculo. - e calou-se, sorrindo.
Tornaram a fitar-se. Úrsula ergueu-se, de súbito, voltou-lhe as costas e começou a andar. Ele também se levantou, vagarosamente, e foi ate a beira da ilhota, onde, agachando-se, ficou brincando com a água, distraidamente. Colheu uma margarida e fê-la mergulhar; a haste funcionou como quilha e a flor flutuou como uma açucena aquática, desabrochada para o céu. E foi revoluteando, numa lenta dança de derviche, ate desaparecer.
Rupert lançou então outra flor à água, e depois outra e ficou a vê-las, com os olhos brilhantes, debruçado na lagoa. Úrsula voltou-se e olhou também. Apossava-se dela um sentimento estranho, como se estivesse presenciando algo de novo. Uma espécie de autodomínio chamou-a à realidade, sem que pudesse compreender bem o que estava sentindo. Via apenas as corolas cintilantes das margaridas desaparecerem vagarosamente naquela viagem através da água lustrosa e sombria. A flotilha de minúsculos barquinhos desaparecia como pontos brancos e luminosos, perdidos na distância.
- Vamos para a terra a fim de as acompanhar - disse ela, já assustada, sentindo-se uma prisioneira ali na ilha durante tanto tempo.
Entraram no barco. Úrsula sentia-se contente pelo regresso. Seguiu, ao longo da margem, até a comporta do reservatório. As florezinhas haviam-se espalhado por toda a lagoa e eram agora pontinhos radiantes de exaltação, aqui e ali. Por que motivo a comoviam tanto, de uma maneira tão intensa e tão mística?
- Repare - disse o inspetor - o seu barquinho de papel roxo está escoltando as flores; parece um comboio de jangadas.
Algumas margaridas vinham-se aproximando lentamente, hesitantes, simulando uma dança complicada na superfície das águas escuras Quanto mais perto estavam, mais a sua brancura comovia o coração de Úrsula, quase ao ponto de fazê-la chorar.
- Por que serão assim tão adoráveis? Por que as acho amorosas?
- Lindas flores - murmurou ele, sentindo-se tocado pela emoção daquela voz. Pouco depois acrescentou: - Você sabe que a margarida é uma flor composta, dando a impressão de uma só? Os botânicos a colocam no mais alto grau da escala do desenvolvimento, não?
- Sim, é composta - respondeu Úrsula - isto é, acho que sim. - Úrsula tinha o hábito de colocar em dúvida até o que ela sabia muito bem.
- Diga-me: a margarida é como uma democracia em ponto pequeno?
- Não, não. Ela não é democrática.
- Pois bem. É então a turba áurea do proletariado, cercada por uma pomposa guarda de ricaços indolentes.
- Que coisa odiosa! Ordens sociais!
- É verdade. Falávamos de uma flor. Deixemo-la continuar em paz.
- Sim. Deixá-la ser, por esta vez, uma espécie de concorrente ignorado. Se é que, para você, há alguma coisa ignorada... - acrescentou ela com ar sarcástico.
Conservaram-se distantes um do outro, imóveis e esquecidos. Apesar de meio estonteados, não percebiam a tonteira o insignificante conflito surgido entre eles dilacerava-lhes a consciência e deixava-os frente à frente, como duas forças despersonalizadas.
Rupert percebeu a situação e tentou dizer qualquer coisa, propondo outro passeio.
- Sabe que tenho acomodações no moinho? Vamos até lá para conversar mais um pouco?
- Ah, sim? - respondeu ela, fingindo não perceber aquela proposta para estreitarem o conhecimento.
Então, Birkin reconsiderou, e tornou-se imediatamente distante, como era seu costume.
- Se me convencer - prosseguiu - de que posso viver sozinho, renunciarei por completo ao trabalho. Não creio na humanidade para pretender fazer parte dela, pouco me interessam os ideais da sociedade em que vivo, detesto a moral moribunda desses tempos, de modo que trabalhar como educador não passa de uma ilusão. Direi adeus a tudo isso, assim que estiver livre... amanhã talvez... e serei apenas eu.
- Tem o suficiente para viver? - indagou Úrsula.
- Ganho cerca de quatrocentas libras por ano. Isso garante o meu conforto.
Houve um silêncio.
- E quanto a Hermione?
- Tudo acabou, finalmente. Puro fracasso, e claro que nunca poderia ter sido outra coisa.
- Ainda se falam?
- Seria difícil passarmos por estranhos, não lhe parece?
Houve outra pausa, mais demorada.
- Não será um rompimento passageiro? - perguntou Úrsula, finalmente.
- Acho que não. Você terá ocasião de constatar. Ficaram mais algum tempo sem falar Birkin refletia.
- Devemos repelir tudo, tudo, para podermos alcançar aquilo de que mais precisamos - sentenciou ele.
- Aquilo quê? - perguntou a jovem, com ar de desafio.
- Não sei... A própria liberdade.
Úrsula teria preferido que ele respondesse: o amor.
Ouviu-se, mais abaixo, cães ladrando raivosamente. Rupert ficou preocupado. Ela, contudo, nada percebia: apenas reparou que o companheiro parecia confuso.
- Acho - disse Birkin em voz baixa - que é Hermione chegando com Gerald Crich. Ela está interessada em ver os quartos, antes de serem mobiliados.
- Ah! Ela vai mobiliar a sua casa?
- Talvez. Isso tem importância?
- Oh, não! Creio que não. Eu, pessoalmente, não a posso suportar. Acho-a a personificação da mentira se me permite, já que me falou tanto na mentira. - Meditou durante um momento e depois explodiu: - Importo-me, sim. Importo-me que ela se meta nesse assunto da sua mobília. Importo-me bastante. Importo-me que você continue agarrado a ela!
Rupert ficou silencioso, com a testa franzida.
- Não preciso que ela me venha mobiliar a casa nem desejo ficar agarrado nela. Apenas, não vejo necessidade de ser grosseiro. Vamos ao encontro deles!
- Não estou com vontade - respondeu a moça indiferente e indecisa.
- Não está com vontade? Tolice! Venha comigo ver a casa.
Capítulo XII
Decoração
Rupert Birkin seguiu pela margem e Úrsula acompanhou-o, contrariada. Mas, se não fosse com ele, também teria ficado aborrecida.
- Conhecemo-nos muito bem, você e eu - disse Rupert. A moça não respondeu.
Na cozinha escura e ampla do moinho abandonado, a senhoria conversava com Hermione e com Gerald; tanto este, de branco, como a sua companheira, vestida de seda azulada e brilhante, punham manchas luminosas na obscuridade do aposento; ao mesmo tempo, em gaiolas penduradas na parede, uns doze canários cantavam com quanta força tinham. As gaiolas haviam sido colocadas em volta de uma janelinha quadrangular, na parte de trás, através da qual entravam raios de luz filtrados pelas folhas verdes de uma árvore. A voz da Senhora Salmon sobrepunha-se, muito aguda, à chilreada das aves, que se tornava, por sua vez, desenfreada e triunfante. Mas a da mulher redobrava de vigor e os pássaros treplicavam com maior animação.
- Cá está o Rupert! - exclamou Gerald no meio daquela espantosa confusão. Como tinha os ouvidos delicados, sentia-se aflitíssimo.
- Oh, que pássaros! Não deixam ninguém falar - observou a senhoria, irritada. - Vou cobri-los com um pano.
E precipitou-se em busca de qualquer coisa, pano de pó, avental, toalha ou guardanapo, com que os cobrisse.
- Agora, calém-se e deixem cada um dizer o que tem a dizer! - gritou ela, ainda mais esganiçada.
Os outros esperavam. Uma vez cobertas, as gaiolas tomaram um estranho ar funéreo. Mas, por debaixo das toalhas ainda escapavam pios e murmúrios de desafio.
- Vão ficar quietos - explicou a mulherzinha, a fim de reanimar os visitantes. - Não demora muito e adormecem.
- Sim... - disse Hermione com amabilidade.
- Com certeza - corroborou Gerald. - Vão dormir por efeito da noite artificial.
- São fáceis de iludir! - atalhou Úrsula.
- Ora! Não conhece a história de Fabre, que, em pequeno, pegou uma galinha e escondeu-lhe a cabeça debaixo da asa para que ela adormecesse depressa?
- E foi isso, Gerald, que lhe despertou a vocação de naturalista? - perguntou Birkin.
- Provavelmente - respondeu o outro.
No entanto, Úrsula espreitava, levantando uma das toalhas, a gaiola; e descobriu um dos canários, no canto do poleiro, preparando-se para dormir.
- Que ingenuidade! - exclamou ela. - Pensa mesmo que é noite. Que absurdo! Como se pode ter consideração por um bicho que se deixa enganar tão facilmente?
- Não há dúvida - concordou Hermione, com sua voz musical, pondo-se também a observar o pássaro. Colocou a mão no braço de Úrsula e riu entredentes. - Como isso é engraçado! É o mesmo que um marido estúpido! Depois - e ainda segurando o braço da professora - recuou um pouco e disse com a sua entonação de sempre:
- Qual foi o acaso que a trouxe aqui, Úrsula? Também encontramos a Gudrun.
- Vim passear na lagoa e encontrei o Sr. Birkin.
- São os domínios dos Brangwens, não é verdade?
- Assim pensei... Corri para aqui, para refugiar-me, e então os avistei, no lago, navegando...
- Ah, viu-nos?
As pálpebras de Hermione tremeram, num movimento involuntário, embora conservasse o seu ar desembaraçado e voluntarioso.
- Eu ia despedir-me - elucidou Úrsula. - Mas o Sr. Birkin insistiu em mostrar-me os quartos que alugou. Deve ser delicioso viver aqui.
- É verdade - assentiu Hermione, distraidamente. E afastou-se da professora, como se se esquecesse da sua existência. Voltando-se para o inspetor, disse-lhe em tom diferente, quase afetuoso:
- Como se sente agora, Rupert?
- Muito bem.
- Estará confortável aqui? - Hermione olhou-o com êxtase, de maneira penetrante e indiscreta.
- O mais confortavelmente possível - respondeu ele. Houve um demorado silêncio, enquanto ela o contemplava, erguendo as pálpebras pesadas e sonolentas. Por fim, inquiriu:
- Espera ser feliz nesta casa?
- Tenho certeza de que sim.
- Farei por ele tudo o que puder - disse a senhoria. - E meu marido também, de forma que tenho esperança de que este senhor se sinta bem instalado.
Hermione voltou-se para a mulher e examinou-a.
- Agradeço-lhe muito - foi a sua única frase. Depois alheou-se por completo dela. Retomou a atitude do princípio e, levantando o rosto para Birkin, falou exclusivamente com ele:
- Mediu os quartos?
- Não, Hermione. Estive consertando a canoa.
- Vamos medir, então? - propôs, muito tranquila, embora um tanto hesitante.
- Tem uma fita métrica Senhora Salmon? - perguntou ele, voltando-se para a senhoria.
- Sim, senhor, acho que tenho uma - respondeu a mulher, começando logo a procurar dentro de um cesto. - Não tenho outra, mas esta deve servir.
Embora a fita fosse apresentada a Birkin, foi Hermione quem a recebeu, dizendo:
- Muito obrigada. Vai servir muito bem. Obrigada, Senhora Salmon. - Dirigindo-se a Birkin, sugeriu-lhe, satisfeita: - Vamos lá, Rupert?
- E os outros? Vão-se aborrecer - disse o inspetor, com alguma relutância.
- Vocês se aborrecem? - perguntou Hermione vagamente a Úrsula e Gerald.
- De modo algum - foi a esperada resposta.
- Que quarto veremos primeiro? - perguntou Hermione, voltando-se novamente para Birkin, com a mesma expressão alegre, agora que o ia levar na sua companhia.
- Qualquer um - respondeu Rupert.
- Querem que prepare o chá? - perguntou a senhoria, desejosa de prestar algum serviço.
- Seria ótimo - respondeu Hermione, chegando-se para ela em um movimento de intimidade que parecia envolvê-la e atraí-la, deixando os outros completamente à margem. - Onde poderemos tomá-lo?
- Aqui mesmo, ou lá fora, no relvado.
- Onde tomaremos o chá? - cantou a voz musical de Hermione, dirigindo-se às pessoas que a cercavam.
Birkin deu a sua opinião:
-Na margem da lagoa. Nós carregaremos tudo, Senhora Salmon. Basta que a senhora nos faça o favor de preparar as coisas.
- Pois não - respondeu a mulher, satisfeita.
Todos se encaminharam para o corredor e entraram no quarto fronteiro, que estava vazio, mas limpo e batido de sol. Havia uma janela dando para o jardim, jardim esse bastante emaranhado.
- Aqui é a sala de jantar - explicou Hermione. - Vamos medi-la. Abaixe-se, Rupert.
- Posso ajudar? - perguntou Gerald, segurando a outra extremidade da fita métrica.
- Não é preciso, obrigada - respondeu Hermione, inclinando-se para o chão, mesmo vestida de seda cintilante. A verdade é que sentia prazer em se encarregar daqueles trabalhos e em tomar a direção dos mesmos, na companhia de Birkin, que lhe obedecia, submisso. Úrsula e Gerald ficaram observando. Constituía uma das peculiaridades de Hermione essa de, em cada ocasião, destacar uma pessoa com a sua familiaridade, obrigando os outros ao papel de espectadores. Isso sempre lhe dava uma pequena sensação de triunfo.
Mediram a sala de jantar, discutiram, e Hermione decidiu quais deviam ser os tapetes. Ser contrariada, em tais ocasiões, punha a sempre fora de si. Birkin resolveu deixá-la fazer o que quisesse.
Atravessando o corredor, foram para o quarto da frente, um pouco menor do que o outro.
- Este é o escritório - decretou Hermione. - Rupert, tenho um tapete que gostaria que viesse para cá.
- Como é ele? - perguntou Birkin.
- Você ainda não o viu. É, na maior parte, de um tom rosa avermelhado, depois azul, azul mais forte, azul-metálico e ainda azul-escuro. Tenho a impressão de que vai gostar.
- Deve ser bonito. De que estilo é? Oriental? Felpudo?
- É persa. Feito de lã de camelo, muito sedosa. Creio que é em estilo Bérgamo. Tem quatro por dois. Acha que serve?
- Sem dúvida. Mas por que me oferece um tapete tão valioso? Posso arranjar-me perfeitamente com o que tenho há tanto tempo, o turco, de Oxford.
- Aceita?
- Quanto lhe custou?
Hermione fitou-o e declarou:
- Não me lembro. Não foi caro.
Rupert olhou para ela sem mudar de expressão.
- Não posso aceitar, Hermione.
- Deixe-me presentear os seus aposentos - insistiu Hermione, aproximando-se do inspetor e colocando-lhe de leve a mão no braço, suplicante. - Não me faça essa desfeita.
- Bem sabe que não gosto de receber presentes - disse Birkin, sem muita convicção.
- Não pretendo oferecer-lhe presentes - respondeu ela, irritada - Mas, quanto ao tapete está combinado, não?
- Está bem - anuiu Rupert, dando-se por vencido. Era o triunfo de Hermione.
Subiram para o andar superior. Havia aí dois quartos correspondentes ao piso inferior. Um deles estava semimobiliado, notando-se que Birkin, evidentemente, dormira lá. Hermione inspecionou-o com a maior atenção, detendo-se em cada pormenor, sorvendo o testemunho da presença masculina em todas aquelas coisas inanimadas. Tateou a cama e examinou a roupa.
- Está bem instalado? - perguntou ela, apalpando os travesseiros.
- Muitíssimo bem - respondeu Birkin com ar indiferente.
- Não sente frio? Não estou vendo cobertores. É preciso arranjar um.
- Já fiz uma encomenda. Deve estar chegando.
Mediram os quartos, demorando-se em considerações variadas. Úrsula fora para a janela, de onde via a mulher da casa nos preparativos para o chá, à margem da lagoa. Como detestava aquele palavreado de Hermione! O seu desejo seria fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, para se esquivar àquelas cenas e àquelas conversas.
Finalmente, vieram todos para fora, dando início ao piquenique. Hermione serviu o chá; Úrsula, para ela, já não existia; e a professora, refeita do acesso de mau humor, voltou-se para Gerald, dizendo-lhe:
- Oh, Sr. Crich! Outro dia, cheguei a sentir raiva do senhor.
- E por quê? - perguntou Gerald, retraindo-se ligeiramente.
- Por haver tratado aquele animal de forma tão bárbara. Cheguei a odiá-lo!
- Que foi que ele fez? - perguntou Hermione com aquela voz cantante.
- Obrigou aquela linda égua árabe, nervosa como é, a permanecer na cancela da estrada de ferro, enquanto desfilavam aqueles horríveis vagões; o animal, coitado, estava impacientíssimo, e deve ter sofrido muito. Não se pode imaginar espetáculo mais revoltante.
- Para que isso, Gerald? - perguntou Hermione, muito calma.
- A égua precisa aprender a conservar-se quieta; de que me servirá ela se for tão tímida que desate a fugir todas as vezes que ouvir um trem apitar?
- Mas não seria preciso infligir-lhe tamanha tortura... - argumentou Úrsula. - Para que, durante todo aquele tempo em que o comboio passou? O senhor poderia ter dado uma volta na estrada e poupar a égua ao martírio. Tinha as ancas sangrando, por causa das esporas! Simplesmente horrível.
Gerald empertigou-se.
- Devo treiná-la - replicou. - E se eu quiser confiar no animal, tenho de acostumá-lo a ouvir ruídos e permanecer impassível.
- Com que direito - tornou Úrsula acaloradamente. - Trata-se de um ser vivo. Por que submetê-lo despoticamente à sua vontade? Tem tanto direito à vida como o senhor.
- É nisso que eu discordo - atalhou Gerald. - Considero aquela égua uma coisa de meu uso, não pelo fato de a ter comprado, mas porque assim é na ordem natural. É mais legítimo que o homem tenha uma égua para o seu serviço do que para ajoelhar-se à frente dela, suplicando-lhe que faça o que lhe agrada, acomodando-se às suas fantasias.
Úrsula ia abrir a boca para discordar, quando Hermione ergueu o rosto e começou, na cantilena do costume:
- Parece-me... parece-me realmente... que devemos ter a coragem de utilizar os animais para a satisfação das nossas necessidades. Julgo ser um erro atribuir a todos os seres vivos sentimentos iguais aos nossos, considerando-os como semelhantes. É um lapso de observação da nossa parte, uma falta de espírito crítico.
- Muito bem - interveio Rupert, bruscamente. - Nada mais detestável do que o costume piegas de conceder aos animais sentimentos humanos e consciência humana.
- Sim, - continuou Hermione, com ar cansado - devemos, na verdade, tomar uma posição definida. Ou nos servimos dos animais ou então eles é que se servirão de nós.
- O fato é este: os cavalos são suscetíveis de tanta vontade como o homem - explicou Gerald - embora, em sentido rigoroso, não possuam inteligência. Se a nossa vontade não for a dominante, o cavalo é que se torna, então, dono de nós. Ora, eu não posso eximir-me de ser o dono da minha égua.
- Se ao menos - disse Hermione - soubéssemos empregar a nossa vontade, poderíamos conseguir tudo. A vontade pode até curar e transformar todas as coisas, uma vez que a utilizemos de uma forma inteligente e capaz.
- Que quer dizer isso? - indagou Birkin.
- Foi um grande médico quem me disse - elucidou ela, dirigindo-se a Úrsula e a Gerald, de modo vago. - Disse-me, por exemplo, que a melhor coisa para obrigar uma pessoa a deixar um mau hábito é forçá-la a fazê-lo em ocasião que não o queira fazer. O hábito acaba por desaparecer.
- Como assim? - perguntou Gerald.
- Você, suponhamos, rói as unhas. Nesse caso, espero um momento em que não lhe agrade fazer tal, e intimo-o a roê-las. Acaba por se curar.
- Acha que sim?
- Acho. Eu própria, em muitos casos, tirei a prova. Eu fui moça muito nervosa, muito esquisita. E só pelo esforço da vontade, simplesmente, fiquei boa por completo.
Enquanto Hermione falava, com aquela voz lenta, desapaixonada, singular, Úrsula não tirava os olhos dela e sentia um calafrio percorrer-lhe o corpo. Aquela mulher possuía um estranho e sombrio poder, repulsivo e fascinante ao mesmo tempo.
- Não é bom empregar a vontade dessa maneira - exclamou vivamente Birkin. - Indigna-me. A vontade, assim, me parece obscena.
Hermione contemplou-o por muito tempo, com aquele seu olhar pesado e sombrio. Tinha as faces caídas, pálidas, translucidas, fosforescentes, quase.
- Sou capaz de jurar que não - disse ela, por fim. Havia sempre um intervalo, uma estranha separação entre o que denotava sentir e o que, na realidade, dizia e pensava. Dir-se-ia agarrar as suas ideias quando elas passavam à superfície de um turbilhão de emoções e reações negras e caóticas. Birkin sempre experimentava repulsa, pois aquilo era infalível, nunca deixava de suceder. A voz tomava inflexões calmas, iguais, denunciando a maior confiança em si mesma, embora estremecesse com uma espécie de náusea, que ameaçava submergi-lo; mas, apesar disso, o espírito conservava-se intacto, a vontade permanecia inatingida. Tudo isto punha Birkin fora de si. Contudo, jamais se atrevia a ir de encontro à vontade dela, ou livrá-la do redemoinho dos pensamentos, ou descobrir-lhe a última extravagância. Mas não deixava de a fulminar com meia dúzia de frases.
- Já se sabe - disse Rupert a Gerald - que os cavalos não dispõem de completa vontade, como os homens. Isto é, nenhum cavalo tem vontade, de forma genérica; tem duas vontades. Com uma delas, procura submeter-se completamente ao dono e com a outra, deseja libertar-se. As duas, às vezes, unem-se; deve tê-lo notado quando, ao conduzir um cavalo, o bicho morde o freio...
- Senti um, certa vez, tomar o freio nos dentes - volveu Gerald - mas não fiquei com a impressão de que a vontade dele fosse dupla. O que percebi é que o animal se tinha assustado.
Hermione deixara de ouvir. Tornava-se abstrata, sempre que discutiam assuntos de que não participava.
- Como é que um cavalo se submete voluntariamente ao domínio do homem? - indagou Úrsula. - Para mim é incompreensível. Não creio que jamais um animal tenha semelhante desejo.
- Contudo, deve ser verdade. É o derradeiro, e talvez o mais elevado dos impulsos amorosos, depor a sua vontade nas mãos dos superiores - declarou Birkin.
- Você - retorquiu a professora - tem uma noção de amor bastante curiosa.
- Nisso a mulher é semelhante aos cavalos: tem duas vontades opostas; com a primeira, está apta a sujeitar-se inteiramente e, com a outra, procura fugir e lançar o cavaleiro de pernas para o ar.
- Sou, nesse caso, da segunda espécie, uma rebelde - exclamou Úrsula, dando uma gargalhada.
- Se é perigoso domar cavalos, quanto mais as mulheres - observou Birkin. - A regra tem sempre exceções.
- Ainda bem - assentiu Úrsula.
E Gerald, com um sorriso fugidio, interveio:
- Isso é verdade. E torna tudo mais interessante. Hermione já não podia mais suportar a conversa. Levantou-se e expôs, na sua vagarosa cadência:
- Que linda tarde! Às vezes invade-me tal sensação de beleza que me chega a fazer mal.
Úrsula, a quem a outra se dirigia, ergueu-se também, comovida ate o mais íntimo do ser. Birkin afigurava-se-lhe quase um monstro de arrogância, que se devia odiar. Seguiu com Hermione ao longo da margem, conversando sobre coisas belas e reconfortantes e colhendo prímulas graciosas.
- Gostaria de ter um vestido de algodão assim amarelo, com botões cor de laranja?
- Gostaria - disse Hermione. Parou para admirar a flor, deixando que a ideia penetrasse o seu espírito e a acalmasse. - Seria bem bonito, adorável! - E voltou-se para Úrsula, num movimento de genuína simpatia.
Gerald ficara com o inspetor; tencionava aprofundar-lhe o pensamento acerca da sua opinião sobre a dupla vontade dos cavalos. No rosto de Gerald notava-se a agitação que o dominava.
Hermione e Úrsula continuaram juntas, unidas por um súbito laço de profunda afeição e intimidade.
- Na verdade - disse a primeira, detendo-se defronte da professora, com os punhos fechados para o chão - em verdade não quero andar envolvida em toda esta crítica e análise da vida. O que desejo é ver as coisas na sua integridade, mantida a beleza e o seu aspecto natural e sagrado. Não sente assim? Não sente que é demais torturarem-nos com novos conhecimentos?
- Tem razão - respondeu Úrsula. - Sinto o mesmo. E essas indiscrições e curiosidades tornam-me doente.
- Ainda bem que está de acordo. Muitas vezes - continuou Hermione, parando de novo no passeio e fitando a companheira - pergunto a mim própria se tenho de submeter-me a estas discussões, se não será fraqueza esquivar-me a elas. Mas não posso, acho que não posso! Parece-me que aniquila tudo, tudo quanto há de verdadeiramente belo e sagrado; e, sem isto, não posso viver.
- E seria, de fato, insensatez viver sem isso - confirmou Úrsula. - É irreverência supor que a inteligência resolve tudo.
Precisamos excluir a parte que pertence a Deus; foi e será sempre assim.
- Diz bem - tornou Hermione, apaziguando-se como uma criança. - Tem de ser assim, não é verdade? E Rupert - aqui ela levantou o rosto, como que extática - porfia em tudo querer dilacerar. Parece um menino desmanchando os brinquedos para ver como são feitos. Não posso admitir que ele tenha razão. É irreverência, como você diz.
- Tal como se destruíssemos o botão de uma flor para examinar como seria a própria flor - sugeriu Úrsula.
- Exatamente. E assim mata-se tudo, não é verdade? Não se deixa à planta nenhuma possibilidade de florir.
- Claro que não. É a destruição pura e simples.
- Sim, sim! Não há dúvida!
Hermione olhou demoradamente para Úrsula, mostrando apreciar aquela concordância com os seus pensamentos. Depois ficaram ambas silenciosas. Tão depressa estavam de acordo, quanto passavam a experimentar uma recíproca desconfiança. Úrsula, contra sua vontade, sentia que se afastava de Hermione. Era tudo o que podia fazer para moderar a aversão.
Voltaram para junto dos homens, como conspiradoras que se houvessem retirado a fim de concluir algum pacto. Birkin ergueu os olhos para elas e Úrsula antipatizou com a frieza do seu olhar.
- Vamo-nos embora? - propôs Hermione. - Rupert, você vem jantar em Shortlands? Não hesite, venha conosco, sim?
- Não estou devidamente trajado - respondeu Birkin. - Bem sabe que Gerald, neste ponto, é muito formal.
- Nem tanto - atalhou Gerald Crich. - Mas, se sentisse como eu a desordem que reina nas casas, preferiria que todos fossem respeitadores e convencionais, pelo menos durante as refeições.
- Muito bem explicado - exclamou Rupert Birkin.
- Não poderíamos esperar que se vestisse? - insistiu Hermione.
- Como quiser.
Levantou-se e entrou na casa. Úrsula declarou também que se ia embora.
- Mas antes - disse ela voltando-se para Gerald - devo informá-lo de uma coisa: ainda que o homem seja dono dos animais domésticos, continuo a achar que não tem nenhum direito de violentar os sentimentos dos seres que lhe são inferiores. Persisto em acreditar que seria muito mais sensato e muito mais nobre se o senhor se tivesse afastado para a estrada durante a passagem do trem.
- Aceito a lição - respondeu Gerald, com um sorriso amarelo. - Oxalá não me esqueça, a próxima vez.
Pelo caminho, Úrsula dizia com os seus botões: "Tomam-me todos por uma mulher que se intromete onde não é chamada".
Apressou o passo, absorta em seus pensamentos. Chegara a sentir-se impressionada com Hermione. Consolidara mesmo certa intimidade com ela, e assim se estabelecera entre as duas mulheres uma espécie de aliança. E, todavia, não a podia suportar, fato esse que procurava combater. "É boa criatura" dizia consigo mesma; "deseja realmente o bem e a justiça". E esforçou-se, em espírito, por tomar o partido de Hermione e negar razão a Birkin. Era decididamente hostil a Rupert Birkin. Mas sentia-se ligada a ele por qualquer causa mais séria, o que a irritava e alegrava simultaneamente.
Vez por outra percorriam-na calafrios, originados pelo seu subconsciente; e isso provinha do fato, bem o sabia, de ter desafiado Birkin e ele ter, convencido ou não, aceito o repto. Seria, entre ambos, uma luta de morte, ou então o início de uma vida nova. É, contudo, ninguém poderia dizer em que consistiria aquele conflito.
Capítulo XIII
"Mino"
Os dias passavam, sem que recebesse quaisquer notícias dele. Continuaria assim a desconhecer a sua existência e não fazer caso do segredo que os ligava? A ansiedade pungia-a, envolvendo-a de amargura. E, todavia, Úrsula tinha o pressentimento de que se enganava no seu pessimismo: ele a procuraria, com certeza. Contudo, não fazia confidências a ninguém.
E, de fato, chegou uma carta em que Rupert lhe pedia que fosse, com a irmã, tomar chá em sua casa.
- "Por que será que também convida Gudrun?", foi a primeira pergunta que fez a si mesma. "Será para se proteger, ou pensa que eu não seria capaz de ir só?"
A primeira hipótese preocupava-a um pouco. Mas acabou por dizer com os seus botões:
"Não me convém levar Gudrun, pois preciso que ele me diga qualquer coisa além de simples frases feitas. Não contarei nada a minha irmã e irei sozinha. E ficarei sabendo o que se passa".
Assim foi. Resolveu ir sozinha até a casa em que ele vivia. Parecia atravessar um país de sonho, espiando as ruas sórdidas que tinham ficado para trás, como se fosse também alheia ao universo material. Que relação havia entre ela e aquilo que a rodeava? Era um corpo palpitante, mas irreal, em meio a um cenário fantástico. Pouco lhe importava o que os outros dissessem ou pensassem a seu respeito. O resto da humanidade não fazia parte do seu mundo; Úrsula sentia-se desintegrada, arrancada, de maneira estranha e confusa, fora do invólucro da existência física, como uma semente que se despregasse do fruto para cair em meio desconhecido e hostil.
Birkin esperava de pé na sala, quando Úrsula foi introduzida pela senhoria. Estava comovido, e a emoção manifestava-se extedormente. A professora notou-lhe a agitação e observou-lhe o corpo magro e trêmulo.
- Veio sozinha? -perguntou à recém-chegada
- Vim. Gudrun não pôde acompanhar-me.
Rupert percebeu que ela agira intencionalmente.
Sentaram-se ambos em silêncio, sentindo â tensão do ambiente.
Úrsula percebeu que a sala era agradável, clara, repousante em seus detalhes e que havia um vaso de fúcsias, de onde pendiam flores escarlates e roxas.
- Lindas fúcsias! - exclamou ela, para dizer alguma coisa.
- Acha? Pensei que se tivesse esquecido do que eu disse.
A professora perturbou-se.
- Não precisa lembrar-me, se não o deseja fazer - conseguiu responder.
Tornaram a ficar calados.
- Não - tornou ele. - Não é isso: se queremos conhecermos melhor, precisamos tornar a nossa amizade definitiva e infalível...
A voz traía-lhe a desconfiança. Parecia aborrecido. Úrsula não disse nada; sentia o coração oprimido, sentia-se incapaz de falar.
Percebendo que ela não respondia, Rupert prosseguiu, com certa amargura:
- Não saberei dizer se é amor o que lhe ofereço. Parece-me, antes, uma coisa mais impessoal, mais difícil e mais rara.
Estabeleceu-se uma pausa, depois do que ela interrogou:
- Está dizendo que não me tem amor? Ela sofria à simples ideia.
- Sim, já que pretende colocar a questão nesses termos. Na verdade, não sei. Não sinto por você aquela perturbação do amor, e não desejo senti-la, porque o amor acaba por se extinguir.
- Como? - perguntou ela com os lábios quase cerrados.
- Sim, extingue-se. No fim, ficamos sozinhos, livres da influência do amor. Há um eu impessoal, que ultrapassa o amor e qualquer outra ligação de ordem emotiva. Assim aconteceria conosco. Mas desejamos sempre ter a ilusão de que o amor está na raiz. Puro engano! O amor reside apenas nos ramos. A raiz está além, no perfeito isolamento, um eu isolado, que não encontra ninguém com quem se misture e que seria mesmo incapaz de o fazer.
Úrsula fitava-o com os olhos muito abertos. O rosto dele se iluminava no entusiasmo das suas abstrações.
- Quer dizer que não poderá me amar? - perguntou-lhe a moça.
- Sim, é verdade. Eu amei: mas existe uma vida futura desprovida de amor.
Aquelas teorias não a convenciam. Sentia-se prestes a desmaiar.
- Como sabe se nunca amou verdadeiramente?
- Existe um além, em você, em mim, que é mais distante do que o amor, fora do nosso alcance, como há estrelas fora do alcance da nossa visão.
- Com que, então, não existe amor - concluiu Úrsula.
- Em última análise, não, mas há outra coisa. Afinal, o amor não existe mesmo.
Úrsula sentiu-se esmagada com aquela sentença. Depois, ergueu-se na cadeira e disse, em tom decidido:
- Nesse caso, deixe-me ir embora. Que vim eu fazer aqui?
- Nada a impede de sair - foi a resposta.
Úrsula ficou indecisa em face do dilema. Por momentos não fez movimento algum. Acabou por sentar-se novamente.
- Se não há amor, o que existe então? - perguntou ironicamente.
- Qualquer coisa - declarou o inspetor, olhando para ela e reprimindo corajosamente os ímpetos do próprio coração.
- Que coisa?
Houve um longo silêncio. Birkin não se sentia capaz de continuar.
- Existe - explicou finalmente - um eu poderoso, impessoal, além de toda e qualquer responsabilidade. É assim em todas as pessoas. E é aí que eu desejo encontrá-la, nesse campo onde não há palavras nem termos convencionais, em vez de nos encontrarmos no terreno puramente sentimental do amor. Lá, então, seremos dois entes completos é desconhecidos, duas criaturas totalmente estranhas uma à outra; terei desejo de aproximar-me de você, assim como você de mim. Não haverá nenhuma obrigação, porque faltam as normas do domínio, porque nenhuma inteligência foi forçada a tal. Fica acima dos interesses humanos; não se pode recorrer aos livros, seja de que maneira for, pois cada qual está num plano superior ao limite das coisas convencionadas, e não pode ser atingido pelas regras estabelecidas. Somente nos é dado seguir o nosso impulso, aceitar o que é, sem nenhuma responsabilidade, sem que ninguém preste contas nem tenha de as dar. Apenas o desejo primitivo servirá de guia.
Úrsula ouvia-lhe as palavras, mas o seu espírito permanecia inerte, quase insensível; era tão inesperado, tão perverso o que ele dizia!
- É o que se pode chamar o mais puro egoísmo - foi a explicação que deu.
- Concordo com o puro, mas não é egoísmo, porque, afinal, não sei o que pretendo de você. Vindo até você, entrego-me ao desconhecido, sem pensamento definido nem defesa. Penetro no ignoto, com as mãos vazias. O pior é que, entre nós, se torna necessário um pacto, para que possamos, ambos, deixar tudo de lado, esquecermos a nós mesmos, e ate cessar de ser de maneira que se defina o que há de perfeito em nós próprios.
Ela refletia, seguindo o curso daquelas ideias.
- Mas você me deseja porque gosta de mim? - insistiu.
- Não, mas sim porque acredito em você, se é que, efetivamente, devo acreditar em você.
- Então não tem certeza? - exclamou ela, rindo, mas subitamente magoada.
Rupert fitava-a, mas pouca atenção dava ao que a moça dizia.
- Sim, devo acreditar em você, senão não estaria aqui, fazendo essas declarações. Mas é a única prova que possuo. Neste momento especial, minha crença não chega a ser muito forte.
Úrsula ressentiu-se daquela franqueza inesperada, daquela pouca persistência na fé.
- Você nem me acha agradável à vista - tornou ela, ironizando.
Birkin fitou-a mais detidamente para verificar o que pensava a respeito.
- Não sinto que você seja agradável à vista - respondeu.
- Nem atraente - continuou ela, sempre em tom de troça.
Ele ficou carrancudo, exasperando-se.
- Não se trata, absolutamente, de uma questão de apreciação visual. Não preciso vê-la. Tenho admirado dúzias de mulheres, e estou farto e cansado de as admirar. Preciso de uma mulher que eu não veja.
- É pena que eu não lhe possa dar o prazer de me tornar invisível - e ela se riu novamente.
- Mas você é invisível para mim, se não me forçar a tomar conhecimento visual de sua pessoa. Mas não desejo vê-la nem ouvi-la.
- Então por que me convidou para tomar chá?
Birkin não fez caso da pergunta. Continuava monologando:
- Preciso encontrá-la naquilo que não seja a sua própria existência, a parte de sua alma que renega inteiramente. Não necessito de seus belos olhos, de seus sentimentos femininos. Não desejo seus pensamentos, opiniões ou ideias para mim isso não vale nada.
- É muito convencido, cavalheiro - comentou a professora, divertida. - Se não conhece meus sentimentos femininos, meus pensamentos, minhas ideias... - Nem sequer sabe o que eu penso de você neste momento...
- E nem quero saber, por favor.
- Pois acho-o um tolo. Dá a impressão de que tenciona declarar-me o seu amor, mas que fabrica mil atalhos para chegar ate lá.
- Muito bem - exclamou ele, agora excitado. - Vá-se embora e deixe-me em paz. Não quero continuar a ouvir suas zombarias humilhantes.
- Serão realmente zombarias? - Úrsula tinha um ar irônico e não conseguiu conter uma gargalhada. Interpretava as palavras dele como genuína declaração de amor. Mas que palavras absurdas tivera o homem de empregar!
Ficaram silenciosos por alguns instantes. Úrsula sentia-se contente, satisfeita como uma criança. Rupert saiu de seu estado de concentração e começou a olhar para ela com mais simplicidade e naturalidade.
- O que desejo é uma união muito singular - principiou a dizer, com voz tranquila. - Nem simples encontros, nem mistura... você tem absoluta razão, mas o equilíbrio, puro equilíbrio de dois seres... como as estrelas se equilibram umas com as outras...
Úrsula observou. Rupert tornara-se muito solene, e a solenidade sempre lhe parecera ridícula e vulgar. Isso fê-la sentir-se pouco à vontade, desconfortável. E, contudo, gostava tanto dele! Mas a que propósito vinham as estrelas?
- Isso me parece um pouco disparatado - retrucou, rindo-se. Birkin riu também e aconselhou:
- É melhor reler os termos do contrato, antes de o assinar. Um gato cinzento estava dormindo no sofá. De repente, saltou para o chão, espreguiçando-se, arqueou a espinha e colocou-se na ponta dos pés. Ficou uns instantes imóvel e majestoso, mirando qualquer coisa. Por fim, como uma flecha, saltou para fora da sala através da janela aberta e alcançou o jardim dos fundos da casa.
- Que terá visto ele? - exclamou Birkin, levantando-se.
O gato caminhava agora com ar solene, pelo caminho calçado do jardim, balançando a cauda. Era um gato vulgar, de patas brancas. Perto do muro achava-se uma gata de pêlo pardo, agachada, pronta para saltar. Mino dirigiu-se com imponência para ela, com lentidão viril. A fêmea encolheu-se diante dele, apertando-se contra a terra, cheia de humildade, pobre pária de pêlos sedosos - mirou com olhos agressivos, verdes e desafiadores como enormes gemas cintilantes. O gato apenas avistou-a de relance. Então a bichana deu mais uns passos à frente, a caminho do portão dos fundos, arrastando-se quase de maneira a não ser pressentida. Movia-se habilmente, como uma dama.
Ele, porém, seguia com passadas ágeis, logo atrás; e, de súbito, tocou-lhe velozmente com a pata no canto do focinho. A gata afastou-se um pouco como uma folha soprada pelo vento e encolheu-se, submissa, medrosa. Mino fingia não vê-la, piscando os olhos, soberbo, à paisagem que o rodeava. Daí a pouco, ela tornou a dar um passo à frente, suavemente. Mais alguns passos daqueles e teria desaparecido, como num sonho, mas o bicho, cinzento e imponente, saltou-lhe adiante e deu-lhe uma pancadinha rápida e graciosa, o que a fez deter-se de novo, sempre obediente.
- É uma gata sem dono - explicou Birkin. - Apareceu aqui, vinda do bosque.
Os olhos desvairados da gatinha relancearam em torno e fixaram-se em Birkin, como grandes fachos de luz verde. Com um salto ágil, encontrou-se, de repente, no meio do jardim, de onde olhou vagarosamente para todos os lados. Mino voltou a cabeça para o dono, com ar superior, fechou os olhos devagar e sentou-se sobre as patas traseiras, numa atitude de estátua. A gata continuava a observar com suas pupilas dilatadas, misteriosos fogos esverdeados. Depois, como uma sombra, deslizou de novo em direção à cozinha.
Num pulo elástico, veloz como o vento, Mino alcançou-a e lançou-lhe duas patadas enérgicas. A outra recuou, silenciosa, sem insistir, enquanto o macho a perseguia, arranhando-a mais vezes, cheio de confiança, lançando-lhe, em movimentos bruscos, as unhas afiadas e mágicas. Úrsula estava indignada.
- Por que está fazendo isso? - perguntou zangada.
- Isso é um sinal de intimidade - respondeu Birkin.
- O fato de lhe bater?
- Sim, creio que ele pretende provar-lhe essa intimidade de maneira insofismável - explicou Birkin, rindo.
- É horrível! - declarou Úrsula. E saindo para o jardim começou a chamar por Mino.
- Chega! Não seja perverso! Acabe com isso!
A gatinha desaparecera como uma sombra invisível. Mino fitou a professora, e, a seguir, desdenhosamente, levantou os olhos para o dono.
- És muito mau? - perguntou-lhe este.
O esperto bichano mirou-o, cerrando vagarosamente as pupilas. Depois contemplou a paisagem, detendo-se na admiração do horizonte, como se aqueles dois seres humanos já não existissem para ele.
- Não gosto de ti, Mino - falou Úrsula. - És cruel como todos os machos.
- Não - atalhou Rupert. - Ele tem justificação. Não é cruel. Insiste com aquela pobre gatinha perdida, para que ela se convença de que ele é o seu próprio destino. Você bem viu, aquele animalzinho sem dono é arisco e incerto como o vento. Estou inteiramente do lado de Mino. Queremos estabilidade nas coisas.
- Sim, bem sei - volveu Úrsula. - Não quer fazer senão o que lhe apetece. Compreendo o sentido das suas palavras: mandar, ser o patrão...
O gato olhou outra vez para Birkin, como quem confirma o seu desdém por aquela mulher inquieta.
- Concordo totalmente contigo - disse Birkin. - Conserva a tua dignidade masculina e a tua inteligência superior.
De novo Mino contraiu as pupilas como se estivesse a fixar o sol. E, por fim, fazendo de conta que não tinha relação alguma com aqueles dois, afastou-se apressado, com fingida alegria e afetada espontaneidade, de cauda ereta e as patinhas brancas muito ligeiras.
- Vai encontrar-se de novo com a gatinha do bosque e demonstrar-lhe a sua alta sabedoria... - explicou Rupert, jovialmente.
Aquele homem de cabelos ao vento e de olhos sorridentes e irônicos espicaçava Úrsula. Por isso, gritou-lhe:
- Como me irrita essa suposta superioridade masculina! Não passa de uma mentira. Se ainda houvesse, ao menos, alguma justificativa...
- A gatinha não se importa: encontra justificativa.
- Acha? Conte essa história a quem quiser...
- A eles também.
- É exatamente como no caso de Gerald Crich e da égua: a luxúria da brutalidade, autêntica Wille zur Macht - Vontade de dominar - nota da tradutora) mas tão baixa, tão mesquinha!
- Concordo em que a Wille zur Macht seja uma coisa baixa e mesquinha. Mas com Mino verifica-se o desejo de trazer aquela fêmea ao estado puro de equilíbrio, relação transcendente e durável com o macho que vive só. Ao passo que, sem ele, a outra não passaria (você bem viu) de mera partícula perdida e esporádica do caos. Seja volonté de pouvoir se assim o quer, vontade de poder, tomando pouvoir como verbo.
- Ora, sofismas, velhos como Adão!
- Pois sim. Mas Adão conservou Eva num paraíso indestrutível, quando a tomou para si, espécie de estrela na sua órbita.
- Isso, isso! - exclamou Úrsula, apontando para ele com o dedo erguido. - Aí está: uma estrela na sua órbita. Satélite de Marte, eis o que é a mulher para você. Você acaba de confessar precisa de um satélite, Marte e o seu satélite! Você o disse, você o disse, desmascarou-se!
Birkin sorria, mesmo apanhado em falso, ao mesmo tempo irritado e divertido, cheio de admiração e de amor. Vacilante e viva como uma chama sagaz, e tão vingativa, essa jovem era uma grande sensibilidade, ardente e perigosa.
- Não foi bem isso o que eu disse - replicou ele. - Deixe me explicar, ao menos...
- Não, não! Não o deixo falar! Empregou o termo satélite, não vá agora torcer a frase. Disse-o e está dito!
- Bem, ninguém mais a convencerá de que eu não disse tal coisa, mas não tive a intenção, não mencionei, não afirmei, não concluí nada que se pareça com satélite...
- Seu prevaricador! - gritou ela, sinceramente escandalizada.
- O chá está pronto, Sr. Birkin - veio anunciar à porta a dona da casa.
Olharam ambos para a mulher, da mesma forma que os gatos haviam olhado para eles, momentos antes.
- Está bem, obrigado, Senhora Daykin.
Houve um instante de silenciosa expectativa.
- Vamos tomar chá - convidou Rupert.
- Está bem, boa ideia - concordou ela, recuperando as forças.
Sentaram-se diante um do outro.
- Não quis comparar as mulheres a satélites. Aludia apenas a dois astros solitários, equilibrados, em conjunção...
- Você se traiu, deixou perceber completamente o seu jogo - interrompeu a professora, começando a tomar o chá. Rupert compreendeu que ela não faria atenção alguma às suas explicações e então se resolveu a tomar o chá.
- Quantas coisas bonitas vejo aqui na mesa! - comentou Úrsula.
- Sirva-se de açúcar - disse ele, passando-lhe o açucareiro.
A louça era fina: belas xícaras e pires guarnecidos de vermelho e verde, elegantes tigelas e pratos de vidro, tudo sobre uma toalha bordada em cinza pálido, preto e púrpura. Tudo demonstrava riqueza e bom gosto, e Úrsula suspeitou da influência de Hermione.
- Seu serviço é encantador - comentou ela, quase com ironia.
- Gosto dele assim. É para mim um verdadeiro prazer usar objetos que sejam atraentes e agradáveis. A Senhora Daykin é simpática. Gosto de tudo que me pertence e me diz respeito.
- Realmente... - assentiu a professora. - Hoje em dia, as senhorias valém mais do que as esposas. Têm mais gosto e interesse, ao que parece. Isto aqui está muito mais bonito e organizado do que se você fosse casado.
- Pense, porém, no vácuo deste aposento - pediu ele, sorrindo.
- Não - replicou Úrsula - Dá-me pena ver homens como você com tão boa dona de casa e tanto conforto: não precisa desejar mais nada.
- No que se refere a arranjos domésticos, é verdade que não desejo. Mas é triste alguém casar só para ter um lar.
- Pois hoje em dia - observou Úrsula - os homens têm muito pouca necessidade de se casar.
- É possível no que se refere às coisas externas à sua alma, exceto no que respeita a dormir na mesma cama e procriar os filhos. Mas, quanto à sua própria essência, a necessidade é a mesma de sempre. O pior é que ninguém se dá ao trabalho de ser essencial.
- Como assim? - indagou ela.
- Quero dizer que o mundo se mantém apenas por uma associação mística, pelo acordo final entre as pessoas, o que constitui um laço. E o primeiro de todos os laços é entre o homem e a mulher.
- Isso é uma velha cantiga. Por que há de ser o amor um laço? Para mim não serve.
- Se marchar no sentido do oeste, irá perdendo os seus direitos, ao norte, ao sul e ao leste. Se admitir o acordo, renuncia a todas as possibilidades de caos.
- Mas o amor é liberdade! - declarou a professora.
Não me venha com essas histórias. O amor é uma direção que exclui quaisquer outras. É liberdade para dois, se me permite a expressão.
- O amor, para mim, compreende tudo.
- Hipocrisia sentimental. O que você deseja é o estado caótico. Puro niilismo, isso de liberdade no amor, essa liberdade que é amor e esse amor que é liberdade. E, de fato, se nos colocamos um uníssono, a coisa se torna irrevogável, e só assim será pura. Só há um caminho, como daqui para uma estrela.
- Ah, meu Deus! Velha e defunta moralidade...
- Não, Úrsula. É a lei da criação. Devemo-nos unir ao semelhante, para sempre. Não se trata de abandonar o nosso eu, mas sim conservá-lo em um equilíbrio místico e íntegro, como um astro em conjunção com outro astro.
- Não confio muito nas suas comparações com o firmamento. Se estivesse seguro do que diz, não precisaria ir tão longe.
- Se é assim, não precisa confiar. Basta que eu tenha confiança em mim mesmo.
- Outro erro, afinal. Você não está convencido de si mesmo, nem em uma única palavra do que diz. Na verdade, pouco ou nada deseja tais uniões, senão, em vez de falar tanto, lançar-se-ia antes ao domínio dos fatos.
Rupert ficou perplexo por alguns instantes.
- Como assim? - falou, afinal.
- Entregar-se-ia ao amor - declarou ela, em tom de desafio. Ele tornou a ficar calado, remoendo a raiva. Mas retrucou:
- É como lhe digo, não acredito nesse gênero de amor Repito-lhe: não quero acrescentá-lo ao seu egoísmo, para seu único proveito. Para você, o amor é um processo de subserviência; para muita gente, aliás. Detesto-o!
- Não - exclamou ela, recuando a cabeça como uma cobra os olhos fuzilando. - É um processo de orgulho. Convém-me ser orgulhosa.
- Orgulho e subserviência, conheço isso muito bem! Orgulho e submissão, ou submissão ao orgulho. Conheço você e essa espécie de amor. É um tique-taque, tique-taque, dança de antagonistas.
- Parece-lhe? - disse-lhe ela com ar perverso. - O meu amor é assim?
- Tenho a certeza.
- Grande certeza! Ninguém pode ter razão, com uma segurança dessas. Só prova que você se engana.
Rupert calou-se, melindrado. Tinham discutido tanto que ambos já estavam exaustos.
- Fale-me agora de você e dos seus - sugeriu ele.
Úrsula falou-lhe então dos Brangwens, da mãe, de Skrebensky, seu primeiro amor - e das suas derradeiras aventuras. Birkin continuava silencioso, sem tirar os olhos dela; dir-se-ia ouvi-la por deferência. O rosto da professora mostrava-se belo, cheio de estranha claridade, enquanto contava todas essas histórias que a haviam desiludido e magoado tão profundamente. E ele parecia aquecer e reconfortar a alma ao doce calor daquela natureza.
"Se ela, realmente, fosse capaz de um compromisso...", pensava Rupert com apaixonada insistência, se bem que pouco esperançado. Todavia, em seu coração, surgiu um lampejo de contentamento.
- Nós todos temos sofrido muito - comentou, ironicamente.
Úrsula mirou-o, e logo um clarão de alegria se lhe espalhou na face, curiosa luz dourada que lhe provinha do olhar.
- Não é verdade? - exclamou, numa voz alta e estouvada. - Quase absurdo, hein?
- Inteiramente absurdo. O sofrimento aborrece-me, nada mais.
- A mim também.
Rupert chegava a ter medo do riso inconsiderado que lhe via nos lábios. Ali estava uma mulher que iria ate as profundezas do céu ou do inferno, qualquer que fosse o seu destino; desconfiava dela, sentia medo de uma criatura assim suscetível de tanto abandono, de tão perigosa consciência na destruição. Contudo, ele, também, ria-se por dentro.
Úrsula levantou-se, pôs-lhe a mão no ombro e fitou-o com os seus olhos estranhos, de um brilho dourado, muito terno, sob os quais se escondia uma curiosa intenção diabólica.
- Diga que me ama; diga: meu amor! - implorou ela.
Birkin fixou-a bem e leu-lhe no rosto o significado daquela expressão sardônica.
- Amo-a bastante - confirmou, de mau modo. - Mas necessita de muito mais que isso.
- E por quê? E por quê? - insistiu a jovem, inclinando para ele o rosto luminoso. - Por que não é o bastante?
- Porque podemos fazer coisa melhor - respondeu ele, passando os braços em torno do pescoço da companheira.
- Não, não podemos fazer nada melhor - volveu Úrsula, com voz forte e voluptuosa entregando-se, todavia. - O mais que podemos fazer é amar-nos um ao outro. Diga meu amor, vamos, vamos!
Apertou-o também em seus braços. Rupert enlaçou-a, beijou-a devagar, murmurou-lhe em tom apaixonado e submisso, mas irônico.
- Sim, meu amor... Sim, meu amor... Que o amor seja o bastante para nós. Amo-te, amo-te! Não quero saber de mais nada.
- Que assim seja - respondeu ela, aninhando-se suavemente de encontro a ele.
Capítulo XIV
Festa aquática
Todos os anos, os Criches ofereciam no lago uma festa mais ou menos popular. Em Willey Water havia uma barca a motor e várias canoas com remos; os convidados podiam tomar chá em uma barraca erguida no gramado em frente da casa ou organizar um piquenique à sombra da enorme nogueira junto do cais, à beira do lago. Nesse ano, o pessoal do Instituto de Educação havia sido convidado; da mesma maneira os funcionários mais graduados da empresa das minas. Gerald e os irmãos não se interessavam por aquela festa, que se tornara tradicional e proporcionava tanto prazer ao pai: era a única ocasião que lhe permitia reunir e obsequiar algumas pessoas. Gostava de ser atencioso para com os que dependiam dele ou eram mais pobres, mas os filhos preferiam a companhia de seus iguais em bens e situação social; detestavam tanto a humildade dos inferiores como sua gratidão ou grosseria.
Contudo, condescendiam em assistir à festa, o que faziam desde muito tempo; além disso, sentiam-se agora um pouco culpados e não desejavam contrariar mais o pai, doente como estava. Por isso, Laura se preparou cuidadosamente para receber os convivas, em lugar da mãe, e Gerald assumiu a responsabilidade dos divertimentos aquáticos.
Birkin escrevera a Úrsula, dizendo que esperava encontrá-la naquela oportunidade, com a irmã; embora ela escarnecesse do patrocínio dos Criches, não deixava de acompanhar o pai e a mãe, quando o tempo estava bom.
Chegou finalmente o dia, com um céu azul e cheio de sol, se bem que levemente ventoso. As duas irmãs vestiram-se de crepe branco e chapéus de palha fina. Gudrun, porém, destacava-se por uma faixa preta, rosa e amarela, brilhante, largamente enrolada na cintura, e meias de seda cor-de-rosa, além de guarnições róseas e douradas no chapéu. No braço levava um casaco de seda amarela, o que lhe emprestava um ar distinto, como se ela fosse um quadro do Salão não obstante a impressão desagradável que produziu no pai.
- Não acha - disse ele zangado - que você podia também vestir-se de "Christmas cracker", e deixar-nos em paz?
Mas Gudrun estava realmente bela e vistosa e exibia aquele traje em sinal de desafio. Quando mostravam espanto à sua passagem, soltando indiretas, não deixava ela de comentar em voz alta para a irmã:
- Regarde, regarde ces gens-là! Ne sont-ils des hiboux incroyables? - e, com essas palavras ditas em francês, olhava por cima do ombro para as pessoas que a fitavam curiosas.
- Não, realmente, é impossível! - replicava Úrsula de forma a ser bem ouvida. E as duas moças afrontavam daquela maneira o inimigo comum. O pai, porém, ficava cada vez mais indignado.
Úrsula também estava vestida de branco, mas seu chapéu cor-de-rosa não levava qualquer enfeite. Os sapatos eram vermelhos, simples, e o casaco, alaranjado. Dessa maneira, partiram os quatro a pé, a caminho de Shortlands: o pai e a mãe iam à frente.
Riam-se as duas da mãe, que trajava um vestido de tecido leve de listras pretas e roxas e um chapéu de palha também roxo; ela estava mais trêmula e tímida que uma jovem, como nunca as filhas haviam sido; andava com fingida modéstia ao lado do marido, que parecia, conforme o costume, amarrotado em sua roupa dominical, como se fosse um jovem papai que houvesse tomado ao colo seus bebês enquanto a esposa se vestia.
- Repare no casalzinho que vai ali adiante - disse Gudrun muito séria. Úrsula olhou para os pais e teve um súbito ataque de riso impossível de controlar. As duas irmãs se detiveram no caminho e riram tanto que até lágrimas lhes vieram aos olhos, tudo por causa do tímido par tão pouco mundano que as precedia.
- Estamos nos divertindo à sua custa, mãe - disse Úrsula, apertando mais o passo em direção aos pais.
A Senhora Brangwen voltou-se, com um olhar entre admirado e colérico.
- Essa não! - exclamou. - Que tenho eu de tão divertido? Não se convencia facilmente de que havia qualquer coisa fora do lugar em sua aparência. Mantinha perfeita calma e ouvia com a maior indiferença todas as apreciações críticas, considerando-se superior á elas. Os vestidos que usava eram sempre esquisitos e sempre caíam mal, embora os exibisse com desembaraço e ate com satisfação. Fosse qual fosse o traje que envergasse, uma vez limpo, sentia-se confiante e acima de qualquer censura tão aristocrático era o instinto daquela mulher.
- A senhora tem um ar majestoso e parece ate uma fidalga de aldeia - declarou Úrsula, rindo, mas com certa ternura que lhe suscitava a expressão ingênua e surpresa da mãe.
- Exatamente como uma fidalga de aldeia - confirmou Gudrun. Mas a arrogância natural da Senhora Brangwen impôs-se novamente e as jovens zombaram outra vez.
- Voltem para casa, suas tolas, com essas risadas idiotas! - gritou o pai no auge da irritação.
Úrsula começou a fazer caretas para o velho mal-humorado. Nos olhos deste chispavam clarões amarelos de uma raiva autêntica que o levavam para frente.
- Não dê atenção a essas duas tolas - aconselhou a mulher, continuando a andar.
- Ate quando continuarei a ser seguido por essa dupla de palermas que não sabem senão guinchar? - volveu ele, furioso.
As filhas continuavam a rir ao longo do caminho que seguia junto da sebe.
- Você é tão tolo quanto elas se continuar se aborrecendo dessa maneira - disse a Senhora Bragwen, irritando-se, por sua vez, ao ver a contrariedade do marido.
- Vem gente aí, pai! - avisou Úrsula, em tom irônico. O homem olhou em torno e, sempre colérico, prosseguiu ao lado da mulher. As filhas os acompanharam, já cansadas de tanto rir.
Depois que as pessoas se afastaram, Brangwen declarou em voz alta:
- Se isto continuar, volto para casas. Macacos me mordam se vou dar espetáculo em público!
Estava realmente fora de si. Ao ouvirem-lhe a voz surda, anunciadora de tempestade, as duas irmãs cessaram de repente as brincadeiras, com o coração penalizado. Mas detestaram a expressão "em público". Que se importavam elas com as pessoas da rua? Gudrun, no entanto, tornou-se mais conciliadora.
- Não estávamos rindo para aborrecê-los - explicou com meiguice, mas sem jeito, o que contribuiu para deixar os pais ainda menos à vontade. - Fazíamos aquilo porque gostamos muito de vocês.
- Vamos então à frente, já que são suscetíveis a tal ponto - propôs Úrsula, melindrada.
E foi daquela maneira que chegaram a Willey Water. O lago estava azul e resplandecente; de um lado, as colinas em suave declive, à luz do sol; do outro, as matas sombrias e espessas terminavam abruptamente na água. A barca a motor afastava-se da margem, barulhenta com sua música estridente e cheia de convidados; a água espadanava sob as rodas propulsoras. Perto do cais havia muita gente vestida de cores alegres e os vultos pareciam pequenos à distância. Na estrada, espreitando por cima da sebe, viam-se curiosos, que contemplavam invejosos, como almas recusadas ao Paraíso.
- Meu Deus! - exclamou Gudrun, sotto você, olhando para a multidão lá em baixo. - Quanta gente! Imagine, nós no meio daquilo tudo, Úrsula!
O horror de Gudrun pelos outros comunicou-se à irmã:
- Vai ser bem desagradável - comentou ela com alguma ansiedade.
- Imagine o que virá depois! - retrucou a primeira ainda em voz baixa e nervosa. Contudo, foi avançando com passo decidido.
- Tenho esperança de que possamos nos livrar - sugeriu a segunda, sempre ansiosa.
- Será bonito se não conseguirmos - continuou Gudrun. Aquela repugnância e aquela apreensão, ambas cheias de ironia, afligiam bastante a irmã.
- Não temos obrigação de ficar - lembrou ela.
- Pois não ficarei mais de cinco minutos no meio dessa gente - asseverou a outra. Aproximaram-se mais e descobriram no portão guardas fardados.
- Guardas para nos prenderem lá dentro! - exclamou Gudrun. - Palavra, o caso está complicado.
- Será melhor esperarmos papai e mamãe - lembrou Úrsula, receosa.
- Mamãe é bem capaz de se arrumar sozinha - esclareceu a outra, vagamente despeitada.
Mas Úrsula sabia que o pai se sentiria constrangido, mal-humorado e infeliz, e isso tirava-lhe o sossego de espírito. Alto e franzino, dentro da roupa amarfanhada, lá vinha ele, rabugento e nervoso como uma criança, sentindo-se deslocado naquele meio festivo. Não se considerava pessoa distinta e nada mais sentia do que pura irritação.
Úrsula colocou-se ao lado do pai, apresentaram ao guarda o convite e entraram os quatro: Brangwen, alto e avermelhado, carrancudo como um menino acanhado; a mulher, muito à vontade, com a sua pele fresca, o mais calma possível, se bem que o penteado tivesse escorregado para um lado da cabeça; depois Gudrun, de olhos redondos, fixos, sombrios, rosto macio e cheio, impassível, semizangada, parecendo pouco predisposta à festa; e, por fim, Úrsula, os olhos espantados, estranhos e brilhantes, o que sempre sucedia quando se encontrava em situação falsa.
Birkin foi o anjo salvador. Dirigiu-se para os recém-chegados, sorridente, com aquela graça afetada das ocasiões elegantes, quase sempre fora de propósito. Dessa vez, tirou o chapéu, exibiu um sorriso simpático, e logo Brangwen, aliviado, gritou-lhe com a maior sinceridade:
- Como vai? Está melhor, não é verdade?
- Estou melhor, obrigado. E a Senhora Brangwen? Quanto a Gudrun e Úrsula, vejo que estão bem.
Os olhos cintilavam-lhe, com aquele ardor que lhe era peculiar. Falava sempre delicadamente com as senhoras, particularmente com aquelas que já não eram novas. A Senhora Brangwen respondeu satisfeita, embora com frieza:
- Minhas filhas têm feito muitas referências ao senhor.
Birkin riu. Gudrun olhou em torno, sentindo-se humilhada. Os convidados permaneciam de pé, formando grupos: muitas senhoras haviam-se sentado à sombra da nogueira, com as xícaras de chá nas mãos. Em volta circulava um criado de casaca. Algumas jovens, de ar pretensioso, empunhando sombrinhas, descansavam sobre a relva, assim como os rapazes, que acabavam de regressar do passeio de barco. Estavam em mangas de camisa, com os punhos arregaçados e tinham-se sentado de pernas cruzadas, com as mãos descansadas sobre as calças de flanela branca. Voavam-lhes em torno do pescoço gravatas de cores alegres, e eles riam e experimentavam mostrar espírito em presença das moças.
"Por que será - pensou Gudrun, mal impressionada - que não têm educação suficiente para conservar o paletó vestido, em vez de tomarem essa atitude excessivamente familiar?"
Horrorizavam-na aqueles rapazes vulgares, com os cabelos bem penteados para trás, e uma intimidade grosseira em demasia.
A certa altura surgiu Hermione Roddice; ostentava um lindo vestido de renda branca coberto por um enorme xale de seda semeado de flores bordadas. Na cabeça, balançava um chapéu descomunal, sem enfeites. Chamava a atenção, impressionava, quase parecia macabra, tão alta que era, com as franjas do imenso xale roçando o solo, atrás de si, a cabeleira muito espessa tombada sobre os olhos e o rosto estranho, comprido e pálido - e as flores bordadas cintilando em volta.
- Parece sobrenatural... - ouviu Gudrun cochicharem ao seu lado. Eram as jovens na grama, sufocando o riso a custo.
- Como têm passado? - exclamou Hermione, musicalmente, aproximando-se, cheia de amabilidade e observando com rigor papai e mamãe Brangwen. Momento terrível que exasperou Gudrun. Hermione estava tão fortemente convencida da superioridade de sua condição social que seria muito capaz de querer conhecer os outros por simples curiosidade, como se se tratasse de animais de exposição. Gudrun, todavia, teria feito o mesmo, mas aborrecia-se por se encontrar em situação de examinada.
Hermione, atenciosa, querendo ser agradável aos recém-chegados, conduziu-os ao lugar onde Laura Crich recebia os convivas.
- Aqui está a Senhora Brangwen - anunciou ela, em voz cantante. E Laura, que envergava um vestido de linho com bordados, apertou a mão da senhora e manifestou-lhe o prazer que tinha em a cumprimentar. Apareceu então, Gerald. Trajava calças brancas e um casaco de golfe, com listras pretas e castanhas; era, realmente, um belo rapaz. Foi também apresentado aos pais Brangwen; falou com a Senhora Brangwen como a uma grande dama, e ao marido, como se não o tivesse na conta de um cavalheiro. Na maneira de tratar os outros Gerald não disfarçava suas impressões. Naquele momento, só estendia a mão esquerda, porque a outra estava machucada e a conservava oculta no bolso. Gudrun ficou satisfeita porque ninguém na família perguntou o que ele tinha na mão.
A barca de passeio fazia grande barulho, com sua música e as pessoas gritando, excitadas, para os que estavam em terra Gerald foi assistir ao desembarque, enquanto Birkin trazia chá para a Senhora Brangwen. O marido unira-se ao grupo dos professores do Instituto, Hermione continuara ao lado daquela e as filhas aproximaram-se do cais para ver a barca atracar.
O apito era estrondoso, mas, de súbito, as rodas pararam, foram lançados cabos para a margem e a embarcação veio, impelida, provocando um leve choque. Os passageiros precipitaram-se imediatamente, na pressa de vir para terra.
- Esperem um instante, um instante só! - gritou Gerald em tom de comando.
Era preciso esperar que a barca estivesse completamente amarrada e que se lançasse uma prancha. Então desembarcaram todos como se chegassem à América.
- Que belo passeio! - diziam as moças. - Foi delicioso! Os criados vieram de bordo com os cestos de provisões. O capitão descansava na pontezinha. Vendo que tudo correra bem, Gerald foi ao encontro de Úrsula e de Gudrun.
- Não querem embarcar na próxima viagem e tomar chá no meio do lago? perguntou ele.
- Não, obrigada - respondeu Gudrun friamente.
- Tem medo da água?
- Não, pelo contrário.
Gerald fitou-a como se procurasse ler-lhe o pensamento.
- Não gosta da barca?
Gudrun custou a responder.
- Não posso dizer que gosto - respondeu finalmente, muito ruborizada e aborrecida sem saber por quê.
- É gente demais - interveio Úrsula, apaziguadora.
- Sim, muita gente - concordou ele, com um riso breve. - Vê? Já está cheia.
Gudrun fitou-o com os olhos brilhantes.
- Já viajou alguma vez da ponte de Westminster para Richmonde nos barcos do Tâmisa? - perguntou.
- Não - respondeu Gerald. - Acho que não.
- Pois ouça. Foi uma das minhas piores aventuras. - Ela falava rapidamente, faces afogueadas. - Não havia um único lugar para sentar; um homem, perto de mim, cantou Embalado no Berço do Abismo durante todo o trajeto; era cego e tinha conseguido um realejo, desses portáteis; além disso, pedia esmolas. Pode imaginar o que era aquilo? Da cozinha vinha constantemente cheiro de comida e da casa de máquinas vinham baforadas quentes de óleo; a viagem durou horas e horas e, durante milhas, na margem, garotos corriam, hediondos, na lama repugnante do Tâmisa, enterrando-se às vezes ate a barriga. Tinham calças vestidas pelo avesso, chafurdando naquele lodo incrível, sempre olhando para nós e gritando, como pedaços de carne deteriorada: Aqui estamos, senhores, aqui estamos. Que cena repugnante e indecente! Os chefes de família, a bordo, riam quando os garotos se atolavam na lama e de vez em quando atiravam-lhes moedas. Ah! Aquele olhar ávido dos pequenos e a maneira como se precipitavam no chão em busca do dinheiro. Na verdade, nenhum abutre, nenhum chacal, se igualaria a eles em matéria de podridão. Nunca mais pretendo andar nesses barcos de excursão. Nunca mais!
Enquanto ela falou, Gerald não desviou os olhos, brilhantes e animados, de cima da jovem. Não pelo que estava ouvindo, mas porque Gudrun o excitava, o espicaçava com alfinetadas breves e incisivas.
- É natural! - disse ele - que as pessoas tenham em si um lado abjeto.
- Por quê? - perguntou Úrsula. - Eu não tenho.
- Mas não era só isso, era também a qualidade do conjunto: chefes de família que riam, achando a coisa engraçada, atirando moedas... Mães com seus joelhos adiposos que comiam sem parar... - acrescentou Gudrun.
Úrsula interveio:
- Parece que há um verdadeiro lado mau nessas pessoas de que o senhor fala.
Gerald desatou a rir.
- Não faz mal. Desiste-se do passeio na barca. Gudrun corou ao ouvir aquela censura disfarçada.
Houve um instante de silêncio. Gerald, arvorado em sentinela, vigiava os convivas que desembarcavam. Sem dúvida ele era elegante e distinto, mas aquela atitude marcial não deixava de ser um pouquinho irritante.
- Preferem tomar chá aqui, ou mais perto de casa, na relva? - indagou ele.
- Não se poderia arranjar um barquinho a remos? - sugeriu Úrsula, que não fazia rodeios quando desejava alguma coisa.
- Querem fugir?
- Bem - interveio Gudrun, aflita com a sem-cerimônia da irmã -, nós não conhecemos ninguém aqui, somos quase completamente desconhecidas.
-Ora - volveu Gerald -, farei algumas apresentações.
Gudrun procurou observar se ele dizia aquilo com más intenções. Mas logo lhe concedeu um sorriso.
- Ah! Sabe o que queremos dizer. Não poderíamos subir aquela encosta e fazer algumas explorações? - Apontou para um bosquezinho da colina, do lado dos prados, próximo ao lago. - Deve ser um lugar adorável. Poderíamos ate nos banhar. Que lindo parece, a esta luz! Na verdade, assemelha-se às margens do Nilo, isto é, como as imaginamos.
Gerald sorriu daquele entusiasmo por um lugar afastado.
- Têm a certeza de que é bastante longe? - perguntou ironicamente. E acrescentou a seguir: - Sim, podem ir até lá se conseguirmos um barco. Mas creio que estão todos ocupados.
Percorreu com a vista e contou os barcos a remo que por ali andavam.
- Devia ser agradável! - repetiu Úrsula, pensativa.
- E não querem chá?
- Não seria má ideia tomarmos uma chávena e escapulirmos depois - lembrou Gudrun.
Gerald olhava risonho, ora para uma, ora para outra. Sentia-se um pouco melindrado, mas levava o caso na brincadeira...
- Sabem remar? - perguntou.
- Sabemos - respondeu Gudrun secamente.
- Sim - corroborou Úrsula. - Sabemos remar, como duas aranhas de água.
- Bem... Tenho uma canoa muito leve, que não trouxe para cá com medo que houvesse algum acidente. Seriam capazes de se aguentar nela?
- Sem dúvida - afirmou Gudrun.
- O senhor é um anjo! - exclamou Úrsula.
- Evitem, pelo amor de Deus, qualquer acidente; sou responsável por tudo o que acontecer no lago.
- Fique descansado - disse Gudrun.
- Bem, nesse caso, vou arranjar um cesto e as senhoras farão o piquenique sozinhas. Boa ideia, hein?
- Estupenda! Mal posso acreditar - gritou Gudrun, ruborizando-se outra vez. E o sangue dele também se aqueceu nas veias, quando a viu olhar de forma tão carinhosa, fazendo penetrar no corpo do rapaz a gratidão que sentia.
- Por onde anda Birkin? - perguntou Gerald, com os olhos brilhando. - Poderia ajudar-me a trazer o barco para fora.
- Mas o que tem na mão? Está machucado? - perguntou Gudrun de maneira um tanto indiferente, como se desejasse evitar familiaridade. Era a primeira vez que se fazia alusão ao ferimento. Os subterfúgios sutis de que se servia a moça trouxeram a Gerald uma nova carícia; tirou a mão direita do bolso: estava envolta numa atadura. Olhou para ela e tornou a colocá-la no bolso. Gudrun estremeceu ao ver o curativo.
- Eu me arranjarei com a outra mão. A canoa é leve como uma pena. Lá vem Rupert. Rupert!
Birkin abandonara suas obrigações sociais e vinha ao encontro deles.
- O que foi que lhe aconteceu, finalmente? - perguntou Úrsula, que há mais de meia hora mal continha a pergunta.
- Minha mão? Foi apanhada por uma das máquinas - respondeu Gerald.
- Que horror! - exclamou Úrsula. - E machucou-se muito?
- Sim, mas está melhorando. Tive os dedos esmagados.
- Oh! - exclamou ela novamente, como se também estivesse sentindo dor. - Sofro tanto como se fosse comigo. - E sacudiu a mão.
- Que desejam? - perguntou Birkin.
Ele e Gerald lançaram à água a canoa, muito pequena e estreita.
- Estão certas de não correr perigo? - perguntou Gerald.
- Sim, estamos - afirmou Gudrun. - Não seria tão estouvada que me metesse a fazer o que não sei. Já tive um barco desses em Arundel e garanto-lhe que sei lidar com ele.
Tendo feito essa afirmação, ela e a irmã entraram na frágil embarcação e conduziram-na cuidadosamente para o lago. Os dois rapazes ficaram a observá-las. Gudrun remava. Sabia que estava sendo observada e isso a tornava desajeitada e morosa. O rubor subiu-lhe ao rosto como um estandarte vermelho.
- Muito obrigada - disse ela, já de longe, enquanto o barco se ia afastando. - É uma sensação deliciosa, como se estivéssemos em cima de uma folha...
Gerald riu-se da comparação. Vinda da distância, a voz chegava-lhe aos ouvidos estranha e penetrante. Contemplou-a a remar. Havia naquela jovem alguma coisa quase infantil; era confiante e educada como uma criança. Enquanto pôde, ficou a admirá-la. E, para Gudrun, havia real encanto, como que um pretexto em ser criança, em se acolher à proteção daquele homem que permanecia no cais, belo e altivo em seu traje de verão, e que era, além disso, o homem mais importante que ela conhecera ate então. Quanto a Birkin, que estava ao lado dele, Gudrun não dava a menor atenção, era um vulto incerto, indeciso e oscilante... Apenas um vulto ocupara, naquele momento, o espaço em que pousavam seus olhos.
O barco deslizava suavemente. Passaram pelos banhistas, cujas barracas listradas se espalhavam entre os salgueiros, no limite dos prados, e foram, ao longo da margem descoberta, contornando as pastagens que desciam oblíquas sob a luz de ouro dá tarde já avançada. Na margem oposta, cheia de árvores, havia barcos, semiocultos, de onde vinham ruídos de risos e de conversa. Mas Gudrun prosseguiu na direção do tufo de plantas que se balançava ao longe, douradas de sol.
As duas irmãs descobriram um lugar onde um arroio desaguava no lago, entre juncos, formando um pau florido de flores cor-de-rosa, tendo ao lado uma prainha de areia. Ali atracaram, cautelosas, a canoa frágil, e, descalçando os sapatos e as meias, prepararam-se para atingir a margem. As ondas do lago, pequeninas, corriam tépidas e claras. Úrsula e Gudrun conduziram o barco para terra e olharam em volta, satisfeitas Estavam perfeitamente a sós naquela enseada esquecida; no outeiro, protegendo-as, erguia-se o grupo de arbustos.
- Vamos tomar um banho rápido? - propôs Úrsula. - Depois tomamos o chá.
Olharam em volta. Ninguém poderia vê-las, nem apanhá-las de surpresa. Em menos de um minuto, Úrsula despiu-se, e, completamente nua, mergulhou na água, nadando logo para fora. Logo Gudrun a alcançou. Assim nadaram durante alguns minutos, silenciosas, felizes, na água da enseada. Depois voltaram para a margem e embrenharam-se no bosquezinho, como ninfas.
- Como é bom ser livre - exclamou Úrsula, correndo ligeira por entre os troncos das árvores, inteiramente nua e com os cabelos flutuantes. A mata compunha-se de faias, esplêndidas e frondosas, verdadeiro entrelaçado de ramos cor de aço e folhas e brotos verdes, mais tenros; do lado norte havia uma abertura, espécie de janela, através da qual se distinguia o horizonte.
Quando os corpos já estavam enxutos, as moças vestiram-se depressa e sentaram-se para tomar o chá. Instalaram-se no lado setentrional do bosque, sob os clarões dourados do sol, olhando para a colina, sozinhas naquele mundo selvagem para elas reservado. O chá estava quente e perfumado e havia deliciosos sanduíches de pepino e de caviar, além de bolos em que havia sabor de vinho.
- Sente-se bem, Prune? - inquiriu Úrsula, extasiada.
- Sinto-me perfeitamente feliz - replicou a outra, com ar grave, dirigindo os olhos para o sol poente.
- Eu também!
Sempre que faziam o que lhes agradava, Úrsula e Gudrun consideravam-se satisfeitas, no seu universo particular e completo. E este agora constituía um dos momentos perfeitos de liberdade e bem-estar, como só as crianças conhecem, quando tudo lhes parece decorrer como uma deliciosa aventura.
Uma vez tomado o chá, continuaram elas como estavam, silenciosas e tranquilas. Depois, Úrsula, que possuía bela voz, começou a entoar para si mesma, docemente, Annchen von Tharau. Gudrun ouvia, ali sentada debaixo das árvores, e o seu coração encheu-se de melancolia. A irmã parecia tão sossegada, sem ambições, limitando-se a trautear a canção, confiante e livre dentro do seu pequeno mundo! Quanto a ela, Gudrun, sentia-se fora daquele ambiente: era perturbador aquele sentimento de desolação que a invadia; sentia-se à margem da vida, como espectadora, enquanto a outra tomava parte nela. Isso causava-lhe sofrimento, dava-lhe a sensação do nada e obrigava-a a pedir à irmã que lhe prestasse atenção, que não se esquecesse dela.
- Você se importa que eu dance, Úrsula? - perguntou baixinho, quase sem mover os lábios?
- O quê? - perguntou Úrsula, olhando surpreendida para a irmã.
- Quer cantar para que eu dance? - repetiu a primeira, irritada por ter de repetir o pedido.
- Você quer...
- Quero dançar Dalcroze - explicou a mais nova, envergonhada, apesar de estar falando com a irmã.
- Ah! Dalcroze? Eu não estava entendendo. Está bem. Gosto de vê-la dançar. Que devo cantar?
- O que quiser. Vou tentar pegar o ritmo.
Úrsula, porém, não atinava com o que devia cantar. Todavia, começou em voz risonha:
Meu amor é bem nascido...
Gudrun, como se uma cadeia invisível lhe pesasse nas mãos e nos pés, principiou lentamente a dançar, fazendo movimentos rítmicos, batendo e agitando os pés no compasso, e formando, com os braços e as mãos, gestos lentos e regulares, ora abrindo-os e levantando-os acima da cabeça, ora deixando-os afastados um do outro, com o rosto levantado e os pés sempre a bater, correndo para acompanhar a canção, como se se tratasse de um estranho encantamento. A forma branca e extasiada do corpo elevava-se aqui e ali em um arrebatamento singular e impulsivo, como se levada na aragem mágica, estremecendo em passinhos leves e delicados. Úrsula estava sentada na relva, cantando, enquanto os olhos riam-se como se achasse aquilo tudo muito engraçado, mas ao mesmo tempo sujeita a uma espécie de influência hipnótica.
Meu amor é bem nascido,
Mais triste que ciumento...
CONTINUA
Parecia refluir para longe dele, espécie de maré a desaparecer irremediavelmente. Aquele olhar de ser primitivo, de escrava violada, cujo papel consiste em deixar-se vencer continuamente, fazia-lhe vibrar os nervos num desejo agudo e desesperado. Em última análise, esta é que era a vontade de Gerald, e Miss Darrington representava a substância passiva daquela vontade. Sensação mordente e sutil, que lhe punha os ouvidos a zumbir! Então compreendeu que se devia afastar, que era forçoso estabelecer entre ambos a separação.
Seguiu-se um almoço sem incidentes; os quatro homens tinham o aspecto asseado de quem acabou de tomar banho. Gerald e o russo estavam corretíssimos e comme il faut tanto na aparência quanto nas maneiras; Birkin, descarnado e com ar cansado, denunciava o fracasso que experimentara ao querer apresentar-se elegante como os primeiros. Halliday usava uma roupa de quadradinhos, camisa de flanela verde e um projeto de gravata que lhe ia muito bem. O hindu trouxe torradas; apresentava a mesma figura da véspera, exatamente igual.
Bichana apareceu no final da refeição; vestia o robe de seda vermelha ajustado por uma faixa mal apertada. Refizera-se um pouco com o sono mas continuava silenciosa, sem vida. Era-lhe um martírio ter de responder a alguém. O rosto dela assemelhava-se a uma máscara, bela mas funesta, reveladora de uma vontade sofredora. Pouco faltava para o meio-dia. Gerald levantou-se e saiu para tratar dos seus negócios, contente por escapar. Mas não de vez: precisava voltar ainda à noite, para jantarem todos juntos e levá-los a um music-hall - exceção feita de Birkin.
Regressaram à casa de madrugada, de novo aquecidos pelo álcool. Mais uma vez o criado oriental - que desaparecia invariavelmente entre as dez e a meia-noite - veio, silencioso e impenetrável, com a bandeja do chá, curvando-se, lento e estranho como um leopardo, para a abandonar suavemente sobre a mesa. Continuava com aquela expressão hermética, com seu quê de aristocrático sobre a pigmentação pardacenta. Era novo e tinha boa aparência. Birkin, porém, ao observá-lo, sentia um vago mal-estar: a cor daquele homem fazia-lhe lembrar cinza ou substâncias em deterioração; e, na elegante impassibilidade dos seus modos, transparecia uma estupidez bestial e antipática.
Falaram, como na noite anterior, com animação e cordialidade. Mas já um pouco de frieza descia sobre os presentes: Birkin tomava-se de irritação insensata, Halliday começava a detestar Gerald, Bichana mantinha-se dura e fria como uma faca de pedra, enquanto o dono da casa renovava as suas familiaridades com ela. No fundo, o que a mulher queria era apoderar-se dele, dominá-lo por completo.
Na manhã seguinte, erraram, ociosos, pelos quartos. Gerald, contudo, percebeu que havia na atmosfera uma estranha hostilidade contra ele. Teimoso como era, preferiu em não abandonar o campo. Teimou mais uns dois dias. O resultado foi, na quarta noite, uma cena desagradável e injustificada com Halliday. Este, ao café, com absurda animosidade contra o seu hóspede, chamou-o de parte. Houve luta. Gerald estava prestes a derrotar o outro, enchendo-lhe a cara de socos, mas invadiu-o uma súbita repugnância e abandonou o terreno com indiferença, deixando Halliday convencido do seu triunfo. Miss Darrington foi reposta no seu trono e Maxim ficou livre de preocupações. Birkin estava ausente, tinha ido outra vez à cidade.
Gerald sentia-se aborrecido por não ter deixado dinheiro à Bichana. Na verdade, não sabia se ela o desejava ou não. Mas com dez libras, a moça alegrar-se-ia e ele ficaria satisfeito em ter-lhe dado aquela importância. Agora, sentia-se constrangido. Ao afastar-se, mordia os lábios. Compreendia que ela estava feliz por ter-se livrado do importuno. Recuperava o seu Halliday e satisfaria a sua vontade. Tinha-o de novo em seu poder. Talvez se casasse com ele. Era o seu mais ardente desejo. Não pensava noutra coisa. Nunca mais queria saber de Gerald, a menos talvez, que se visse em apuros, pois, no fim de contas, Crich era o que se chama um homem e todos os outros. Halliday, Libidnikov, Birkin, a boêmia inteira, não o chegavam a ser. Mas, enfim, era gente com quem ela se podia entender. No meio deles, considerava-se segura. Os homens autênticos, como Gerald Crich, pô-la-iam em seu verdadeiro lugar.
Todavia respeitava Gerald, e seriamente. Tomara a precaução de anotar o endereço dele, para poder procurá-lo em alguma possível necessidade. Sabia que ele estaria disposto a lhe dar dinheiro. Talvez ate escrevesse a ele, quando o horizonte estivesse negro.
Capítulo VIII
Breadalby
Breadalby era uma casa do período georgiano, de colunas da ordem coríntia, construída em meio dos outeiros mais verdes e mais suaves do Derbyshire, não muito longe de Cromford. A fachada dava para um relvado, mais adiante havia meia dúzia de árvores e entre elas encontravam-se os estábulos e a horta; ao fundo ficava a floresta.
Lugar verdadeiramente tranquilo, a poucas milhas da estrada real, na retaguarda do Derwent Valley, constituía um cenário maravilhoso. Silenciosa, abandonada, aquela moradia deixava ver, através do arvoredo, o seu estuque dourado; diante dela, o parque jamais mudara de aspecto.
Nos últimos tempos, contudo, Hermione permanecia ali com mais frequência. Fugia de Londres, fugia de Oxford e vinha refugiar-se no sossego do campo. O pai estava a maior parte das vezes ausente no estrangeiro; e ele entretinha-se só com os seus convidados, que eram sempre vários, ou com o irmão solteiro, deputado liberal. Este chegava quando não havia sessões parlamentares, embora se tivesse a impressão de que estava sempre presente em Breadalby; mas era perfeito cumpridor de seus deveres legislativos.
Começara já o verão quando Úrsula e Gudrun aceitaram, pela segunda vez, um convite para se instalarem ali. Logo que o carro em que viajavam entrou no parque, olharam além do declive, no vale em que as lagoas repousavam, e viram as colunas da mansão cobertas de sol, pequeninas como um desenho inglês da velha escola, na aba da colina verde, entre as árvores. Viam-se figuras humanas sobre o relvado, senhoras de vestidos azuis e amarelos movendo-se à sombra oscilante do belo cedro majestoso.
- Não parece um quadro? - perguntou Gudrun. - É perfeito. - Notava-se um certo ressentimento em sua voz, como se aquilo a cativasse involuntariamente, como se fosse obrigada a admirar contra a sua vontade.
- Gosta? - perguntou Úrsula.
- Não gosto, mas parece-me o melhor dentro desse gênero.
O automóvel desceu um outeiro e subiu outro e, fazendo uma curva, parou junto à porta lateral da casa. Surgiu uma criada; e depois Hermione, de rosto pálido e erguido; com as mãos estendidas, dirigiu-se às recém-vindas, murmurando em sua voz cantante:
- Aqui estão as minhas amigas! Muito prazer em recebê-las. (Beijou Gudrun). Imenso prazer! (Beijou Úrsula e ficou a abraçá-la). Estão cansadas?
- Nem um pouco - declarou Úrsula.
- E você, Gudrun?
- Também não, obrigada.
- Não? - repetiu Hermione vagarosamente. Continuou imóvel, a olhar para as duas irmãs, que se sentiam embaraçadas pelo fato de não serem convidadas a entrar enquanto a dona da casa insistia naquela cena de boas-vindas ali mesmo à porta. As criadas esperavam.
- Venham - disse por fim, depois de as ter contemplado longamente. Decidiu que era Gudrun a mais bonita e sedutora, Úrsula a mais escultural e feminina. Admirou o vestido de Gudrun, de popelina verde, com uma capa por cima, muito larga, listrada de verde-escuro e castanho. O chapéu era esverdeado, cor de feno novo e tinha uma fita franzida, em preto e laranja; as meias verdes e os sapatos pretos. Ambas formavam um belo conjunto, ao mesmo tempo pessoal e moderno. Úrsula, de vestido azul escuro, parecia mais vulgar, embora estivesse bem vestida.
Hermione trajava seda cor de ameixa: tinha ao pescoço contas de coral. As meias eram do mesmo tom. O vestido, porém, parecia muito usado e sujo, dir-se-ia ate que tinha manchas.
- Querem ver seus quartos, naturalmente... Vamos subir.
Úrsula ficou satisfeita ao se ver sozinha no quarto. Hermione demorava-se tanto em tudo, complicava de tal maneira as coisas! Punha-se tão perto das pessoas, asfixiava, comprometia! Estorvava a liberdade de cada um.
Serviram o almoço no campo relvado, sob uma árvore enorme, cujos ramos desciam quase ate o chão. Lá estavam também uma italiana, esbelta e elegante, uma jovem de ar atlético, Miss Bradley, um baronete erudito e seco, dos seus cinquenta anos, que dizia graças constantemente e ria a propósito delas um riso áspero como um relincho; e estavam ainda Rupert Birkin e uma senhora nova, bonita, magra, que era secretária de qualquer coisa: Fraulein Marz.
Os pratos eram de primeira ordem, o que significava bastante. Gudrun, que costumava ser exigente em tudo, deu-lhes inteira aprovação. Úrsula apreciou o lugar, a mesa resplandecente debaixo do cedro, o perfume da manhã, o cenário do parque frondoso e os veados, ao longe pastando sossegadamente. Era como se tivessem traçado, em volta daquele lugar, um círculo mágico, de onde o presente fora excluído, para guardar apenas o passado delicioso, as árvores, as corças, o silêncio, tudo como um sonho.
Mas no fundo ela se sentia infeliz. A conversa prosseguia, espécie de ribombar de guerra em pequena escala, sempre um pouco sentenciosa: e esse caráter acentuava-se ainda pelo espoucar contínuo dos ditos espirituosos, salpicos permanentes de ironias, destinados a dar um tom de leveza aos diálogos que abordavam assuntos de ordem crítica e geral. Mas a conversa, em vez de se alastrar como uma corrente, seguia, por assim dizer, canalizada.
O tom era intelectual e fatigante. Apenas o velho sociólogo cuja fibra mental excessivamente dura o tornava insensível, só esse parecia inteiramente feliz. Birkin mantinha-se cabisbaixo. Hermione procurava, com surpreendente insistência, ridicularizá-lo e fazê-lo antipático aos olhos de todos. E era curioso verificar como conseguia o seu propósito, tão desamparado se sentia o inspetor em face dela! Deviam achá-lo mais do que insignificante. Úrsula e Gudrun, nada habituadas ao meio, conservavam-se caladas, limitando-se a ouvir a voz lenta e cantante de Hermione, os ditos espirituosos de Sir Joshua, a tagarelice da alémã ou as respostas das duas outras senhoras.
Terminado o almoço, serviu-se o café e mais adiante, sentando-se os convivas em cadeiras confortáveis, sobre a relva, à sombra uns e outros ao sol, conforme as predileções. A Fraulein entrou em casa, Hermione pegou no bordado, a italiana em um livro, Miss Bradley pôs-se a trançar tirinhas de erva - e assim aproveitaram aquela tarde de verão trabalhando ou conversando acerca de coisas mais ou menos intelectuais.
Ouviu-se, de súbito, o ranger de freios e o ruído de um carro que parava.
- É Salsie! - exclamou Hermione, sempre na sua voz cantante e arrastada. E, largando o trabalho, levantou-se vagarosamente, atravessou o campo relvado, contornou as sebes e desapareceu.
- Quem é? - perguntou Gudrun.
- Roddice, o irmão dela. Pelo menos, parece que é - respondeu Sir Joshua.
- Salsie? Sim, é o irmão - confirmou a condessinha italiana, erguendo por momentos os olhos de cima do livro e falando como quem dá uma simples informação, no seu inglês gutural e um tanto exagerado.
Ficaram na expectativa. Por trás dos arbustos surgiu a figura alta de Alexander Roddice; vinha em largas passadas, como um herói romântico de Meredith fiel à recordação de Disraeli. Cordial para com todos, tornou-se imediatamente o anfitrião habituado a dispensar a mais afável hospitalidade aos amigos de Hermione. Chegava precisamente de Londres, da Câmara dos Deputados, cuja atmosfera se espalhou logo em volta dele; o ministro dissera isto e aquilo; e ele, Roddice, por outro lado, pensava assim e assado e não se esquivara a declará-lo ao Presidente do Conselho.
Hermione surgia agora na companhia de Gerald Crich, que tinha vindo com Alexander. Gerald foi apresentado às outras pessoas; depois esteve uns momentos ali guardado por Hermione, junto de quem acabou por se sentar. Era, evidentemente, o hóspede de honra.
Havia qualquer dissidência no Ministério; o titular da pasta da Instrução demitira-se em face de certas críticas dos adversários. Aquilo originou, entre os convidados dos Roddices, uma conversa a respeito de instrução pública.
- Sabe-se - disse Hermione, esticando o rosto, como de costume - que não há razão nem desculpa para se ministrar conhecimentos senão invocando a própria alegria e beleza do saber. - Pareceu estar, durante um minuto, a imaginar pensamentos profundos, e depois observou: - O ensino obrigatório não é instrução; é ate uma forma de a destruir.
Gerald, alheio à discussão, respirava o ar do campo com delícia, preparando-se para intervir.
- Necessariamente, não é - disse ele. - Mas a instrução não será como a ginástica? O fim da primeira é produzir espíritos vigorosos, aptos, enérgicos.
- Assim como os desportos atléticos produzem corpos saudáveis, prontos para o que der e vier - atalhou Miss Bradley, em reforço daquela opinião.
Gudrun observou-a em silêncio, horrorizada.
- Enfim... - tornou Hermione, divagando. - Não sei. Para mim o prazer do conhecimento é tão grande, tão extraordinário! Nada significa tanto na minha vida como o conhecimento. Nada, tenho a certeza.
- Que espécie de conhecimento? - perguntou o irmão.
Hermione levantou o rosto e continuou a divagar:
- Não sei... Mas como eu compreendi as estrelas, quando soube alguma coisa sobre elas! Sentimo-nos elevar tanto, tão sem limites.
Birkin olhava para ela, lívido de cólera.
- Por que deseja ser ilimitada? - perguntou, sarcástico. - Tenho a impressão de que não precisa disso.
Hermione recuou na cadeira, ofendida.
Gerald interveio:
- Não há dúvida, tem-se essa sensação de ilimitado, como quem subisse ao alto de uma montanhas divisasse o Pacífico.
- Silencioso, sobre uma rocha no Dariayn - Verso final de um soneto de Keats - nota da tradutora) - disse a italiana, erguendo, por um momento, os olhos de cima do livro.
- Não é necessariamente no Darien - notou Gerald, enquanto Úrsula começava a rir.
Hermione deixou passar alguns segundos e depois retomou a palavra, firme no seu ponto de vista:
- Saber é o mais importante da vida. Significa ser feliz, ser livre.
- A ciência, já se sabe, é a liberdade - corroborou Malleson.
- Em comprimidos - concluiu Birkin, fixando os olhos no corpo seco e pequenino do baronete. Gudrun, imediatamente, viu o famoso sociólogo transformado em frasquinho achatado, cheio de comprimidos de Liberdade.
A ideia fê-la sorrir. Sir Joshua ficava definido e catalogado no seu espírito para sempre.
- Que quer dizer com isso, Rupert? - indagou a dona da casa, em um tom de repreensão amigável.
- Em sentido estrito, não se pode ter conhecimento senão do passado - replicou Birkin. - É como quem engarrafasse a liberdade do ano passado em frascos de conservas.
- Não se pode ter conhecimento senão do passado? - perguntou o baronete, já com certo azedume.
- O que sabemos das leis da gravidade está incluído nessa categoria?
- Está - respondeu Birkin.
- Neste livro há uma coisa mais engraçada - exclamou de repente a italiana. - Diz que o homem chegou à porta e atirou os olhos para a rua.
Houve uma gargalhada geral. Miss Bradley aproximou-se e olhou por cima dos ombros da contessa.
- Vejam - disse esta. E leu: - "Bezarov abriu a porta e atirou apressadamente os olhos para a rua".
Seguiu-se outra gargalhada estrondosa. O mais divertido era o baronete, cujo riso dava a impressão de um desmoronar de pedras.
- Que livro é esse? - perguntou Alexander, muito interessado.
- Pais e Filhos, de Turguenev - respondeu a estrangeira, pronunciando distintamente cada sílaba. Ela mesma examinou a capa, para se certificar.
- É uma velha edição americana - elucidou Birkin.
- Ah! Nota-se que é traduzida do francês - disse Alexander com a sua entonação declamatória. "Bazarov ouvrit la porte et jeta les yeux dans la rue". Circunvagou depois o olhar brilhante pela roda dos amigos.
- Gostaria de saber o que seria o apressadamente - observou Úrsula.
Fizeram conjecturas.
Naquele momento, com surpresa para todos, a criada chegou com a bandeja do chá. A tarde passara rapidamente!
Em seguida ao chá, os hóspedes foram convocados para um passeio.
- Quer vir passear? - perguntou Hermione a cada um deles, um por um. Todos disseram que sim, sentindo-se um pouco como os prisioneiros enfileirados para a marcha Birkin foi o único a recusar.
- Venha, Rupert.
- Não, Hermione.
- De verdade?
- De verdade.
Houve um instante de hesitação.
- E qual o motivo? - perguntou ela. A mais leve contrariedade punha-lhe o sangue em ebulição. Ela pretendia levá-los através do parque.
- Não gosto de andar em bando.
Percebeu-se que Hermione sufocava a voz na garganta; mas respondeu, com uma calma inesperada:
- Vamos deixar o menino sozinho, já que ele está rabugento. Depois desta sátira, Hermione mostrou-se muito alegre. Ele, porém, ficou ainda mais casmurro.
A dona da casa dirigiu-se lentamente ao encontro dos outros, limitando-se a acenar, de longe, a Birkin, gritando-lhe em tom de brincadeira:
- Adeus, menino, adeus.
"Adeus, bruxa feia", dizia ele consigo mesmo.
Os convidados seguiram pelo parque. Hermione desejava mostrar-lhes narcisos silvestres em um talude. - Por aqui, por aqui - ouvia-se indicar, de vez em quando, a sua voz musical. Todos acorriam à chamada. Os narcisos deviam ser lindos, mas não era fácil contemplá-los. Úrsula mantinha-se contrariada, cheia de hostilidade contra tudo o que a cercava. Gudrun, mais objetiva e irônica, observava as coisas e tomava nota mentalmente.
Viram as corças tímidas; Hermione falava com o veado como se fosse uma pessoa que ela quisesse mimar e lisonjear. É possível que - visto tratar-se de um macho - conseguisse exercer um certo domínio sobre o animal. Contornaram os lagos e Hermione descreveu-lhes o combate de dois cisnes que haviam brigado por ciúmes. Tinha um risinho abafado ao descrever como o amoroso vencido se deitou na areia, com a cabeça escondida debaixo da asa.
Estavam em casa outra vez. Hermione parou no relvado e chamou em voz alta, estranha e sempre cantante:
- Rupert! Rupert! - A primeira sílaba era dita alto e de forma prolongada; a outra enfraquecida: - Ru-u-u-u-pert!
Nenhuma resposta. Surgiu uma criada.
- Onde está o Sr. Birkin, Alice? - perguntou a patroa, com entonação meiga e distraída, que ocultava, no íntimo, uma vontade persistente e quase insana.
- Acho que está no quarto, minha senhora.
- Está?
Subiu a escada, atravessou o corredor, chamando sempre:
- Ru-u-u-pert!
Chegando à porta do aposento, bateu e gritou ainda:
- Ruu-u-u-pert!
- Que é? - respondeu uma voz, lá dentro.
- Que está fazendo?
A pergunta era carinhosa, mas indiscreta.
Não ouviu nada, a princípio. Depois sentiu-o abrir a porta. - Já voltamos - explicou ela - os narcisos são lindos.
- Eu sei; já os vi.
Ela o fitou com um olhar demorado, impassível, que lhe caía lentamente pelas faces.
- Já os viu? - repetiu como um eco. E ficou olhando para ele. Estimulava-a, mais do que tudo, aquele estado do conflito com Rupert quando este se portava como um rapazinho teimoso, ali à sua mercê, em Breadalby. Mas, no fundo, reconhecia não ter motivos de queixa e que a sua indignação era inconsciente, mas intensa.
- Que estava fazendo? - tornou a perguntar, em tom calmo e indiferente. Birkin não respondeu e Hermione foi entrando pelo quarto adentro. Viu então que ele trouxera de outro aposento um desenho chinês que representava gansos e o copiara com muita perícia e arte.
- Copiava isto? - perguntou ela, parando junto da mesa e examinando o trabalho.
- Sim, senhor, muito belo! Gosta tanto assim deste trabalho, Rupert?
- Acho-o uma maravilha.
- Verdade? Estimo saber, porque eu também sempre o adorei. Foi o embaixador da China que me ofereceu, como presente.
- Eu já sabia.
- Mas por que razão o copia - indagou ela, distraidamente. - Por que não faz qualquer obra original?
- Desejo conhecê-lo bem. Copiando-se isto, aprende-se mais quanto à China do que na leitura de todos os livros.
- E o que é que aprende?
Ela animou-se por fim, pousou sobre ele as mãos, em um gesto violento, como para lhe arrancar o segredo. Era preciso saber. Para ela constituía uma força tirânica e terrível, uma obsessão, estar a par de todos os pensamentos dele. Rupert ficou uns momentos calado, relutando em responder. Depois, forçado a isso, começou:
- Aprendo a conhecer de que centros se desenvolve a vida destes animais, a sua percepção, a sua maneira de sentir, a violência, a precisão dos fenômenos de centralidade de um ganso no remoinho das águas frias e lodosas, o calor penetrante e estranho do sangue a circular, como que uma inoculação de fogo corrupto... fogo do limo a um tempo frio e escaldante , o mistério do lodaçal.
Hermione olhou para ele, descendo lentamente a vista ao longo das faces pálidas. Singulares, aqueles olhos! Dir-se-ia que tomara algum narcótico. As pálpebras pesavam, tombando. Os seios magros arfavam convulsivamente. Rupert voltou-se para ela e ficou impassível, com ar diabólico, Numa nova convulsão, sentindo-se doente, Hermione afastou-se: era como se o corpo estivesse se dissolvendo todo. O espírito ficara incapaz de compreender as palavras daquele homem; ele a tinha em suas garras, indefesa, e destruía-a com um poder oculto, insidioso.
- Compreendo - murmurou ela, sem saber o que dizia. - Compreendo... - E endireitou-se, procurando recuperar a serenidade. Mas não conseguiu, a inteligência recusava-se, sentia-se desequilibrada. Toda a sua vontade lutava, mas não conseguia o domínio de si mesma. Sofria os horrores da dissolução que a torturava e destruía. Ele continuava implacável, sem despregar os olhos da mulher; e Hermione dirigiu-se para fora, pálida e consumida como um espectro, como que atingida pelas influências perseguidoras de além-túmulo. Desfazia-se como um cadáver, sem realidade, sem nexo. O homem mantinha-se duro e vingativo.
Quando desceu para jantar, Hermione apresentava estranho aspecto, sepulcral; os olhos, cansados, estavam repletos de densas trevas. Vestira-se de brocado verde, rígido, muito justo, o que a fazia parecer mais alta, assustadora, semelhante a um fantasma. À luz alegre do salão o seu vulto parecia sobrenatural e opressivo. Mas, sentada na penumbra da sala de jantar, hirta em frente às velas que projetavam sombras, era já uma força, uma presença. Escutava e respondia como se estivesse sob a ação de algum estimulante.
Os convidados mostravam-se alegres e divertidos; todos, menos Birkin e Joshua Malleson, tinham envergado traje a rigor. A italianinha, a confessa, usava um vestido de veludo, com largos babados em tons de laranja, preto e ouro; Gudrun estava de verde-esmeralda com aplicações de ráfia; Úrsula de amarelo com uma faixa de prata fosca; Miss Bradley de cinza e vermelho, Fraulein Marz, de azul-claro. A dona da casa sentiu uma súbita sensação de prazer ao contemplar aquelas cores vivas à claridade das velas. Percebeu que a conversa continuava, incessante, dominada pela voz de Joshua; que os risos argentinos das mulheres e as suas respostas vivas prosseguiam sem descanso; que o colorido era brilhante, a toalha muito branca e que havia sombras no teto e no assoalho; e tudo isso a fazia quase desmaiar de satisfação, dava-lhe arrepios de prazer, que não a impediam de se sentir doente, de se considerar um revenant. Mal intervinha na palestra, embora não deixasse de ser toda ouvidos.
Terminado o jantar, todos se dirigiram para o salão, como se formassem uma só família, muito à vontade, sem cerimônias. Fraulein serviu o café, fumaram-se cigarros ou cachimbos, de que havia grande quantidade.
- Fuma? Cigarro ou cachimbo? - perguntava a alemã, muito solícita. Era como numa assembleia: Sir Joshua com o seu ar século XVIII; Gerald, belo tipo de rapaz inglês que se diverte; Alexander, político elegante e categorizado, liberal e inteligente; Hermione, estranha como uma Cassandra aborrecida; e as outras mulheres, de cores agradáveis, todos a fumar com gravidade os seus longos cachimbos de gesso, sentados em semicírculo na sala confortável e suavemente iluminada, em torno da lenha que ardia na lareira de mármore.
A conversa girava em torno dos assuntos políticos e sociais, cheia de interesse, de sabor curiosamente anarquista. Na sala acumulava-se uma poderosa atmosfera destruidora. Parecia que tudo fora lançado no crisol; para Úrsula aquelas criaturas assemelhavam-se a feiticeiras, ocupadas em pôr a panela ferver. Em tudo aquilo havia orgulho e satisfação, porém, ao espírito dos novatos, tornava-se cruelmente exaustivo, exigindo implacável tensão intelectual; o poder que emanava de Joshua, de Hermione e de Birkin consumia as inteligências, dominava imperiosamente o restante dos convidados.
- Salsie, você é capaz de tocar alguma coisa? - perguntou a irmã, suspendendo por completo a conversa geral. - Quem quer dançar? Você dança não é verdade, Gudrun? Eu gostava tanto de vê-la dançar. Anche tu, Palestra, ballerai? Si, per piacere - Você também dançará, Palestra? Sim, faça o favor - nota da tradutora) - Você também, Úrsula.
Assim dizendo, levantou-se, puxou o cordão de borla dourada que pendia junto da lareira, segurando-o durante um momento; depois, de súbito, largou-o. Parecia uma sacerdotisa inconsciente, imersa em uma espécie de transe.
Surgiu à porta uma criada que, dali a instantes, voltava, com um carregamento de camisolas, xales, lenços, quase tudo gosto oriental, guarda-roupa que Hermione, com o seu amor pelos adornos belos e extravagantes, havia colecionado pouco a pouco.
- Vocês três, meninas, vão dançar em conjunto - declarou ela.
- Que devo tocar? - perguntou Alexander, levantando-se bruscamente.
- Vergini delle Rocchette - exclamou logo a confessa.
- É tão lento... - observou Úrsula.
- As três bruxas de Macbeth - propôs a Fraulein, como coisa mais prática. Finalmente decidiram representar Noemi, Ruth e Orfa. Úrsula seria a primeira. Gudrun faria de Ruth e a contessa de Orfa. Tratava-se de um bailado no estilo russo, como os da Pavlova e Nijinsky. A italiana preparou-se antes das outras; Alexander sentou-se ao piano, e os espectadores deixaram um espaço livre. Orfa, maravilhosamente vestida à oriental, começou a dançar, indolentemente, o tema da morte do marido. Então Ruth aproximou-se e ambas choraram, lamentando-se, ate que Noemi chegou para as consolar. Tudo isto numa cena muda, bailando elas de forma a expressarem por gestos a sua emoção. O drama levou cerca de um quarto de hora.
Úrsula ficava linda no papel de Noemi. Tendo-lhe morrido os homens, só lhe restava manter-se numa rigorosa defensiva, sem nada reclamar: Ruth dedicava-lhe o seu amor Orfa, viúva ardente, sensual, sutil, queria voltar ao passado, recomeçar a vida. O desempenho das três jovens era bastante real, chegava a impressionar. Era curioso ver Gudrun perseguir Úrsula com paixão violenta e desesperada, se bem que sorrisse com ligeira malícia, observando a outra no momento de condescender, silenciosa, incapaz de tomar uma decisão por si própria - ou com a ajuda de outrem - mas perigosa, indomável, recalcando a dor.
Hermione adorou o espetáculo, apreciando a contessa, ligeira como uma doninha, entregue às manifestações das suas sensações; Gudrun unindo-se por fim, traiçoeiramente, à mulher encarnada por sua irmã; e Úrsula, na sua temerosa incapacidade, insatisfeita, irremediavelmente perdida.
- Foi admirável - disseram todos em coro. Mas Hermione tinha a alma torturada, na impossibilidade de ultrapassar o próprio conhecimento. Reclamou outro bailado, exigindo que a contessa e Birkin fizessem uma dança burlesca a Malbrouk.
Gerald ficara perturbado com o episódio de Gudrun unindo-se desesperadamente a Noemi. A essência daquela mulher, a sua oculta temeridade, um tanto irônica, escaldavam-lhe o sangue. Não conseguia esquecer-se de Gudrun, erguida, ofertante, cheia de ousadia no seu apelo e, ainda por cima, escarninha. E Birkin, espiando como um Bernardo eremita lá do seu esconderijo, tinha assistido à derrota espetacular e desamparada de Úrsula. Sentia-a dominadora, repleta de energia terrível. Dir-se-ia um gérmen estranho e inconsciente do poder feminino. Atraía-o, sem ele querer. Divisava nela o seu futuro.
Alexander tocou peças húngaras e todos dançaram, arrebatados pelo espírito da música. Gerald surpreendeu-se a si próprio, quando reparou que se dirigia a Gudrun para lhe pedir que dançasse com ele; os pés não fugiam à tentação da valsa e do two-step, ele agitava-se cheio de força, todo o organismo ansiava por sair do cativeiro. Não sabia como dançar naqueles passos convulsionados, mas sentia facilidade em começar. Birkin, quando conseguiu livrar-se da obsessão das pessoas presentes que ele detestava, pôde então dançar com agilidade, verdadeiramente à vontade. Hermione, agora, não lhe perdoava esse à vontade irresponsável.
- Estou percebendo - disse a italiana, muito excitada, observando-lhe a alegria dos movimentos, alegria que ele parecia guardar apenas para si. - Estou percebendo que o Sr. Birkin muda constantemente.
Hermione olhou para ele e estremeceu, pensando que somente uma estrangeira seria capaz de ter reparado naquilo e o manifestado sem rodeios.
- Cosa vuol'dire, Palestra? - Que é que você quer dizer, Palestra? - nota da tradutora) - indagou a dona da casa na sua voz cantante.
- Repare - respondeu a outra em italiano. - Não é um homem, é um camaleão; todo ele é metamorfose.
"Homem não, e sim um traidor; não é dos nossos", disse Hermione com os seus botões. E a alma afligia-se por ser sua escrava, pelo poder que tinha Rupert de escapar e existir sozinho, ao contrário dela; não possuía consistência, não era um homem era menos do que isso. Odiava-o e o desespero a dilacerava de alto a baixo. Era como se suportasse a completa dissolução do organismo, como se fosse um cadáver; sentia-se alheia a tudo, menos àquela horrível moléstia da decomposição que lavrava em toda ela, tanto no corpo como na alma.
A casa estava inteiramente ocupada; Gerald ficara no quarto menor, que era, na realidade, saleta de vestir e se comunicava com o quarto de dormir de Birkin. Quando todos se retiraram para os seus aposentos, de castiçal na mão, onde as velas ardiam docilmente, Hermione chamou Úrsula e levou-a consigo, para lhe falar em particular. Naquele quarto desconhecido e amplo, Úrsula experimentou certo constrangimento. Hermione parecia descer sobre ela, terrível e ameaçadora, atraindo-a para si. Admiraram umas camisolas de seda indiana, vistosas e sensuais, de forma e esplendor quase escandalosos. Hermione aproximou-se da moça, com o peito palpitante, e esta empalideceu de medo. Naquele momento, os olhos esgazeados de Hermione descobriram o terror na face da outra e mais uma vez se sentiu derrotada. Úrsula pegou numa das camisolas de seda - vermelha e azul - feita para alguma princesa de catorze anos e exclamou maquinalmente:
- Que maravilha! Ninguém se atreveria a juntar essas duas cores berrantes...
A criada entrou, silenciosamente, e Úrsula, morta de susto, fugiu, cedendo à força irresistível que a dominava.
Birkin foi direto para a cama. Sentia-se feliz e tinha sono. Estava bem disposto desde que dançara. Mas Gerald queria falar com ele. Usava ainda o traje do jantar. Sentando-se à beira da cama de Rupert - onde este já se deitara - principiou:
- Quem são estas duas irmãs Brangwens?
- Elas moram em Beldover.
- Beldover? O que fazem?
- São professoras primárias.
Houve uma pausa.
- Engraçado! Tinha a impressão de já tê-las visto.
- Desiludido?
- Eu? Não. Mas como é que Hermione as convidou?
- Conheceu Gudrun em Londres. É a mais nova, a de cabelos escuros. É artista, dedica-se à escultura.
- Então não é professora. É só a outra?
- Ambas. Gudrun leciona desenho, Úrsula é de conhecimentos gerais.
- E o pai?
- É mestre de artes aplicadas.
- Curioso!
- Entre as classes sociais já não existem barreiras.
Gerald estava um tanto encabulado com o tom gracejador de Birkin.
- Que nos importa que o pai seja isso?!
Rupert ria-se, ao falar assim, e Gerald olhava para ele, ali deitado, com a cabeça na almofada, indiferente e brincalhão. Faltou-lhe coragem para ir-se embora.
- Não creio que você tenha possibilidade de ver Gudrun durante muito tempo. É um pássaro que não se demora no poleiro. Dentro de uma semana ou duas, põe-se a caminho - disse Birkin.
- Para onde?
- Londres, Paris, Roma... Deus o sabe. Estou sempre à espera de que ela levante voo para Damasco ou San Francisco. É uma ave do paraíso. Não se sabe o que veio fazer em Beldover! Incompreensível como nos sonhos.
Gerald refletiu alguns momentos.
- Como é que a conhece tão bem?
- Conheci-a em Londres, no grupo Algernon Strange. Ela deve ter ouvido falar da Bichana, do Libidnikov, dos outros, mesmo que não sejam das suas relações pessoais. Nunca pertenceu, propriamente, ao grupo; é, de certa maneira, dada a convenções. Conheço-a faz dois anos, se não estou enganado.
- E ganha dinheiro, além das lições?
- Um pouco, mas não é coisa regular. Vende os seus trabalhos. Trazem-lhe publicidade.
- E quanto pode custar cada trabalho?
- Um guinéu, dez guinéus.
- São bons? Que representam?
- São extraordinariamente bons, na minha opinião. São dela as duas alvéolas do escritório de Hermione. Você já as viu. Escultura de madeira pintada.
- Julguei que ainda se tratasse daquela escultura de selvagens...
- Não. O que Gudrun executa é isto: animais, principalmente aves. Às vezes figurinhas de pessoas vestidas como nós, realmente belas quando bem feitas. Possuem certo humor, inconsciente e sutil.
- Será artista famosa, algum dia? perguntou Gerald, pensativo.
- É possível. Mas não creio que chegue a tanto. Costuma colocar a arte de lado sempre que outra coisa lhe sorri. O seu espírito contraditório impede-a de se tomar a sério, a si própria. Ela tem medo de se abandonar inteiramente. É isso que me desagrada com esse tipo de mulheres. A propósito, o que aconteceu a Bichana depois que eu parti?
- Tolices, banalidades. Halliday portou-se de forma censurável; estive quase dando a ele uma boa lição.
Birkin ouvia em silêncio.
- É verdade - disse, finalmente. - Julius não tem lá muito juízo. Por um lado, possui a mania religiosa; por outro, fascina-o a sensualidade. Ou é puro crente, ajoelhado, ou então representa Cristo em desenhos de uma liberdade excessiva (ação e reação) e entre os dois limites, não chega a haver meio termo. É, na verdade, doido varrido. Às vezes, um lírio impoluto, jovem de rosto a Botticelli; outras, só se satisfaz com Bichana, para se profanar juntamente com ela.
- É isso que eu não compreendo - notou Gerald. - Gostara ou não da Bichana?
- Não gosta nem desgosta. Ela é a meretriz de que Julius necessita. Precisa absolutamente de se conspurcar no contato com essa criatura. Depois reage, suspira pelo lírio da pureza e, de uma ou de outra maneira, ele se distrai. Eterna história: ação e reação, sem transição nenhuma.
- Não sei - tornou Gerald, depois de um intervalo na conversa - se a Bichana se considera muito ofendida. Fiquei admirado com o seu jeito tão depravado.
- Todavia, acho que você tem interesse nela - exclamou Birkin. - Eu sempre a apreciei. É certo que, quanto a esse aspecto, nunca houve nada entre nós.
- Interessou-me durante dois dias, não o nego - disse Gerald. - Mas uma semana com ela ter-me-ia dado volta ao estômago. Essas mulheres têm um cheiro estranho na pele que, por fim, nos faz enjoar, inexplicavelmente, ainda que a princípio estejamos apaixonados.
- Bem sei - replicou Birkin. Depois acrescentou, um tanto rabugento: - Vá-se deitar, Gerald. Já deve ser muito tarde.
Gerald consultou o relógio, levantou-se e dirigiu-se para o quarto que lhe fora destinado. Mas daí a pouco voltava, em camisa:
- Uma coisa - apressou-se a dizer, tornando a sentar-se na cama de Rupert. - Rompemos, eu e ela, tempestuosamente e não tive tempo de lhe dar nada.
- Dinheiro? - insinuou Birkin. - A Bichana vai buscar o que precisa no bolso de Halliday ou de qualquer outro da turma.
- Nesse caso, eu devia ter-lhe pago o que era devido, regularizando assim as contas.
- Ela pouco se importa.
- Talvez. Mas fico com a impressão de estar em dívida e preferia liquidar o débito.
- Acha que sim? - E Rupert olhava para as pernas brancas de Gerald Crich, sentado ali, em camisa, na beira do seu leito. Eram grossas, musculosas, rijas, vigorosas. E, contudo, impressionavam Birkin e enterneciam-no, como se fossem pernas frágeis de criança.
- Parece-me que seria preferível saldar a conta - disse Gerald como se falasse consigo mesmo.
- De uma forma ou de outra, o caso não tem importância - asseverou Birkin.
- Nada tem importância para você - comentou Gerald, um tanto admirado e fixando afetuosamente o seu interlocutor.
- É a pura verdade.
- Aliás, ela porta-se muito bem.
- Dá a Cesarina o que é de Cesarina - concluiu Rupert, virando-se de lado. Achava que o outro estava falando só pelo vício de falar. - Vá-se embora, Gerald. Estou cansado. E já é tão tarde!
- Gostaria que me dissesse qualquer coisa que tivesse importância - disse Gerald, sem desviar os olhos do inspetor, como quem espera uma resposta definitiva. Mas Birkin voltou o rosto para o outro lado. Crich pôs-se de pé.
- Nesse caso, boa noite e durma bem - acrescentou, pousando a mão no ombro de Rupert, em gesto carinhoso.
Na manhã seguinte, logo que Gerald acordou e ouviu o vizinho mexer-se no quarto contíguo, gritou-lhe:
- Penso ainda que devo dar à Bichana algum dinheiro, umas dez libras.
- Deus do Céu! - exclamou Birkin. - Não seja tão positivo. Liquide a conta na consciência, é o único lugar onde o pode fazer.
- Que quer dizer com isso?
- Conheço-a bem - foi a resposta lacônica de Rupert.
Gerald ficou um momento pensativo.
- Sou de opinião que o melhor que temos a fazer com mulheres como a Bichana é pagar-lhes sempre.
- E com as amantes é conservá-las. E com as esposas: viver debaixo do mesmo teto. Integer vitae scelerisque purus... Integro e livre da vida criminosa - nota da tradutora) - sentenciou Birkin.
- Não vale dizer coisas esquisitas.
- Mas é que isso me enfastia. Não quero saber dos seus pecadilhos.
- Queira ou não queira saber, o caso é que a mim interessam - concluiu Gerald.
A manhã, como a anterior, resplandecia de sol. A criada trouxera água e afastara as cortinas. Birkin sentado na cama, olhava preguiçosamente para o parque muito verde e tão deserto àquela hora, com o seu ar romântico, perdido no passado. "Como as coisas pretéritas", pensava ele, "são adoráveis, seguras, completas, definitivas - esse passado delicioso, tão perfeito! - e como esta casa é silenciosa e dourada, com o jardim adormecido nos seus séculos de paz... E todavia, nesta beleza imóvel de tudo, quantas armadilhas e quantas desilusões, e que horrível e monótona prisão significa realmente Breadalby, com esta intolerável clausura da sua tranquilidade! Sempre é melhor, afinal, do que a torpe confusão do presente. Se, ao menos, se pudesse criar o futuro de acordo com a nossa vontade! Um pouco de verdade, sincera e pura - um pouco dessa verdade tão simples, aplicada à vida, eis o que a alma não cessa de exigir."
- Não compreendo, no fim de contas, em que é que você me deixa ter interesse - ouviu-se exclamar, do quarto ao lado, a voz de Crich. - Nem Bichanas, nem minas, nem nada absolutamente.
- Interesse-se pelo que quiser, Gerald. A mim é que essas coisas não interessam, compreende? - respondeu Birkin.
- Que devo fazer então?
- O que quiser. E eu, o que é que eu preciso fazer? Houve um silêncio durante o qual Birkin sentiu que Gerald estava pensando no caso.
- Macacos me mordam se percebo patavina - tornou ele lá de dentro, em tom de bom humor.
- Ora veja - respondeu Birkin - uma parte de você reclama Miss Darrington, e só esta mulher; a outra parte ocupa-se das minas, de negócios e nada senão isso: ei-lo partido em dois pedaços.
- E uma parte de mim deseja ainda outra coisa - atalhou Gerald, com voz sincera, calma, singular.
- O quê? - perguntou Rupert um tanto surpreendido.
- Isso é o que eu queria que você dissesse.
Calaram-se durante algum tempo.
- Não me é possível satisfazê-lo. Eu próprio ainda não encontrei o meu caminho, como vou saber qual é o seu? Experimente casar.
- Com quem? Com a Bichana?
- Talvez. - Birkin levantou-se e foi até a janela.
- É esse o seu remédio? - perguntou Gerald. - Mas ainda não aplicou o tratamento a si próprio, embora esteja necessitado dele.
- Acredito. No entanto, espero curar-me.
- Por meio do casamento?
- Sim... - respondeu Birkin.
- Não, digo eu. Não e não, meu caro Rupert!
Ficaram outra vez silenciosos, envoltos numa vaga hostilidade. Procuravam sempre abrir, entre eles, como que um fosso; queriam manter-se a distância, para conservarem inteira liberdade. E, no entanto, atraía-os uma curiosa corrente de simpatia.
- Salvator femininus - Salvador feminino - nota da tradutora) - disse Gerald, rindo-se.
- E por que não?
- Realmente, se dá bom resultado... Mas com quem se casaria você, Rupert?
- Com uma mulher.
- Muito bem! - concluiu Crich.
Os dois foram os últimos que se apresentaram para o almoço. Hermione gostava que todos comparecessem pontualmente. Se o dia lhe parecia menor, sofria e tinha a impressão de estar atraiçoando sua vida. Parecia agarrar as horas com ambas as mãos e extrair-lhes todo o poder vital. Tinha um ar pálido e espectral, pela manhã, como um objeto abandonado. E, contudo, mantinha-se enérgica, sua vontade continuava extraordinariamente persuasiva. Com a entrada dos dois homens, surgiu um repentino mal-estar.
A dona da casa levantou o rosto e pronunciou, na sua voz cantada:
- Bom dia! Dormiram bem? Sinto-me felicíssima. - E baixou o rosto, não lhes dando mais atenção. Birkin, que a conhecia, percebeu que a intenção dela era ignorar sua existência.
- Tire o que quiser aí do bufê - disse Alexander, em tom de censura. - Espero que não esteja completamente gelado. Importa-se de apagar o esquentador, Rupert?
Quando Hermione se mostrava fria, Alexander tomava um tom autoritário Afinava-se pelo diapasão da irmã; isso era coisa sabida. Birkin sentou-se e circunvagou o olhar pela mesa. Estava habituadíssimo àquela casa, à sala de jantar, à atmosfera que nela reinava. A sua intimidade vinha de longe; mas agora rebelava-se com tudo aquilo: não tinha mais nada que fazer ali. Conhecia bem Hermione, à sua frente, ereta e silenciosa, um pouco abstrata e, no entanto, dominadora consciente do seu poder! Conhecia-a completamente, de maneira torturante. E era difícil não se sentir desnorteado - quase que se julgava na galeria de um túmulo de faraós, com os mortos sentados à volta, eternos e imponentes! Sabia já de cor o que dizia. Joshua Malleson, que falava em voz áspera, afetadamente, interminavelmente, sempre com grande esforço mental, mas sempre interessante embora tratasse de coisas sabidas; tudo o que dizia já estava previsto, por mais inteligente e original que fosse. E Alexander, homem da moda, com o seu sangue-frio, sempre à vontade; a Fraulein, cuja pronúncia lembrava um repicar alegre de sinos; a italianinha, essa confessa que dava atenção a todos, ocupada no seu papel, objetiva e fria como uma doninha à espreita, divertindo-se, mas sem se revelar por completo; por fim, Miss Bradley, pesada e subserviente, tratada por Hermione com indiferença irônica, e olhada, por consequência, com igual desprezo pelos outros. Birkin conhecia-os a todos muito bem, como pedras de um jogo manejado há muito tempo a rainha, os cavalos, os peões, sempre as mesmas figuras, movendo-se em fases intermináveis... Mas o jogo era tão repetido, desenrolava-se em tal fantasmagoria que agora já não despertava o menor interesse.
Via também a seu lado Gerald Crich, com muito boa disposição: aquilo parecia diverti-lo; Gudrun, observando com os olhos muito abertos, imensos, hostis; os problemas daquele xadrez fascinavam-na e horrorizavam-na ao mesmo tempo; Úrsula, de expressão um pouco admiradas como se alguém a tivesse ferido e a dor a atingisse fora da consciência.
De repente, Birkin levantou-se e saiu, dizendo para si mesmo:
"Estou farto disto."
Hermione viu-lhe o gesto, como num sonho. Ergueu os olhos modorrentos, sentindo-se arrastada de súbito por uma onda ignota que rolava sobre ela. Apenas a vontade indomável lhe permanecia estática, maquinal; sentada à mesa, continuava embebida nos seus pensamentos. Mas as trevas haviam-na envolvido, qual navio soçobrado. Mas o mecanismo persistente daquela vontade prosseguiu sem descanso: era a sua única força.
- Vamos nadar? - sugeriu ela, dirigindo-se de chofre aos convidados.
- Esplêndida ideia! - disse Joshua. - O tempo está ótimo.
- Delicioso! - corroborou a Fraulein.
- Combinado. Vamos ao banho - concordou a italiana.
Mas Gerald declarou:
- Não tenho roupa de banho.
- Eu lhe empresto o meu - ofereceu Alexander. - Preciso ir à igreja e ler a Bíblia. Estão esperando por mim.
- É protestante? - perguntou a condessa, tomada de súbito interesse.
- Não - elucidou ele. - Não sou. Mas acho de meu dever seguir as tradições.
- Que são tão belas! - observou galantemente a alémã.
- Não há dúvida! - exclamou Miss Bradley. Dirigiram-se para o gramado. Era uma daquelas manhãs doces e claras do princípio do verão, em que a vida circula sutilmente, como se fosse uma reminiscência. Os sinos da igreja badalavam ao longe; não havia uma nuvem no céu, os cisnes lembravam açucenas pousadas na água, os pavões desdobravam a cauda, passeando majestosamente sobre a erva, ora na sombra, ora expostos aos raios de sol. Era tudo tão belo que dava vontade de ali ficar, esquecido.
- Até logo! - gritou Alexander, acenando, muito contente, desaparecendo atrás dos arbustos, a caminho da igreja.
- E agora, - disse Hermione - vamos ao banho?
- Eu não - informou Úrsula.
- Não nos acompanha - e Hermione contemplou-a demoradamente.
- Não estou com vontade.
- Nem eu - acrescentou Gudrun.
- E a minha roupa? - inquiriu Gerald.
- Não sei - disse Hermione, rindo, com entonação estranha, divertida. - Quer um lenço, um lenço bem grande?
- Aceito.
- Venha, então.
A primeira que atravessou o jardim, a correr, foi a italiana, pequenina como uma gata; as pernas brancas cintilavam-lhe na corrida e a cabeça pendia-lhe para a frente, amarrada em um lenço de seda amarela. Passou o portão, pisando o campo gramado, e parou, imóvel como uma estátua de marfim e bronze, à borda da piscina, olhando para os cisnes que se aproximavam surpreendidos. Depois foi a vez de Miss Bradley, que veio também correndo, semelhante a uma grossa ameixa carnuda em sua roupa escura. A seguir apareceu Gerald, com um lenço de cabeça amarrado em torno dos rins e com a toalha no braço. Gostava de se pavonear assim ao sol, demorando-se e brincando, muito à vontade, branco, mas natural em sua nudez. Veio também Sir Joshua, metido dentro de um roupão e, por fim, Hermione, dando largas passadas, elegante e inflexível com uma capa enorme de seda vermelha e com a cabeça oculta por um lenço roxo e dourado. Tinha beleza aquele corpo firme e alto, aquelas pernas alvas e direitas. Havia em toda ela uma magnificência rígida, com o manto a flutuar livremente atrás de si. Atravessou o jardim e aproximou-se da água, lenta e majestosa, evocando aos olhos dos outros qualquer coisa de muito estranho.
Eram três piscinas, em sucessivos planos, descendo para o vale, grandes, belas e cheias. Sobre elas dardejava o sol. A água corria por cima de um pequeno muro, atravessava algumas pedras e caía nos reservatórios ate chegar ao de nível inferior. Os cisnes haviam-se retirado para a margem oposta. Havia o cheiro agradável dos juncos e uma ligeira brisa acariciava a pele.
Gerald mergulhara, depois de Sir Joshua, e fora nadando ate o outro extremo. Ali, subiu no muro e sentou-se. Ouviu-se outro mergulho e a condessinha nadou como um rato, a fim de o alcançar. Ficaram ambos descansando ao sol, rindo, com os braços cruzados sobre o peito. Sir Joshua alcançou-os e fez parte do grupo, de pé, com a água ate os ombros. Depois Hermione e Miss Bradley atravessaram a piscina e sentaram-se também na margem, lado a lado.
- Não acha que são assustadores? - perguntou Gudrun à irmã. - Não parecem sáurios? Lembram-me lagartos grandes. Já viu alguém parecido com Sir Joshua? Sinto, Úrsula, que aquele homem pertence ao mundo primitivo, quando sobre a terra andavam enormes lagartos rastejantes...
Gudrun olhava consternada para o sociólogo, que se conservava de pé dentro do tanque, com água pelo peito e com os cabelos, compridos e grisalhos, empastados sobre os olhos; o pescoço escondia-se no meio dos ombros fortes e espessos. Estava conversando com Miss Bradley, que, sentada em cima do muro, rechonchuda, bem feita, toda molhada, parecia prestes a resvalar e mergulhar como se fosse uma foca do Jardim Zoológico.
Úrsula admirava em silêncio. Gerald, entre Hermione e a italiana ria, cheio de satisfação. Parecia-se com Dionísio, com aqueles cabelos louros e o rosto cheio e jovial. Hermione, na sua elegância opulenta, rígida, perigosa, inclinava-se para ele, espantada, como quem dissesse que não tinha culpa do que pudesse vir a fazer. Gerald reconhecia naquela mulher a presença de uma ameaça qualquer como uma loucura involuntária. Mas não parou de rir, e, cada vez mais, voltava-se para a condessinha, que o fitava com os olhos brilhando.
Mergulharam todos na piscina, nadando juntos como um bando de lobos-marinhos. Hermione, dentro d'água, era um ser poderoso e inconsciente, vasto, lento, forte; a condessa, rápida e silenciosa como uma ratazana da água; Gerald flutuava e virava-se oscilante, formando uma sombra clara e agradável. Um após outro foram saindo da piscina e regressaram a casa.
Gerald demorou-se, contudo, um instante para falar a Gudrun.
- Não gosta de nadar?
A moça fitou-o com um olhar demorado, indecifrável, en quanto ele permanecia à sua frente com a pele toda cintilante de gotas de água.
O outro não se mexeu, à espera de mais algum comentário.
- Sabe nadar?
- Sei.
Ele não queria perguntar, é claro, qual o motivo por que, sendo assim, não fora também tomar banho. Notava naquela jovem qualquer coisa de irônico. Afastou-se, despeitado pela primeira vez na sua vida.
- Por que não quis nadar? - tornou-lhe a perguntar mais tarde, já vestido de novo como um elegante jovem inglês.
Ela hesitou um momento, antes de dar a resposta, resistindo assim à insistência do seu interlocutor.
- Porque não gosto de promiscuidade - foi a resposta.
Gerald riu-se, a frase ecoou e tornou a ecoar na sua consciência. O sabor daquela linguagem abria-lhe o apetite. Quer quisesse quer não, aquela menina significava para ele o mundo real. Desejaria elevar-se ate àquele padrão e satisfazer-lhe os sonhos de mulher. Compreendeu que o critério da artista era o único verdadeiro. Os outros eram simples com opiniões instintivas, por mais bem situados que fossem socialmente. Gerald não podia escapar àquela sedução; procuraria adaptar-se às aspirações dela, encarnar a sua ideia do homem e do ente humano.
Depois do lanche, quando alguns já se haviam retirado, Hermione, Gerald e Birkin continuaram na sala conversando. Houvera discussão - muito intelectual e pretensiosa no seu conjunto - acerca da nova ordem social, da posição do indivíduo no mundo de amanhã. Supondo que as velhas instituições se destruíam e perdiam, o que renasceria, por fim, do caos?
A grande ideia social, dissera Sir Joshua, era a igualdade de todas as pessoas. Não, respondera Gerald, o melhor seria que cada um pudesse desempenhar o seu papel, por menor que fosse; deixassem-no fazer isso, permitissem-lhe a felicidade à sua maneira. O principal nivelador das classes devia ser o trabalho garantido a cada um. Somente o trabalho e a produção uniriam a humanidade. Simples coisa mecânica, decerto; mas que era a sociedade senão um mecanismo? Fora do trabalho ficariam livres, podendo agir como bem lhes parecesse. A conversa continuara.
- Ah, só teríamos nomes profissionais, seríamos como os alémães, apenas Herr Obermeister e Herr Untermeister - Respectivamente, mestre e oficial, nas corporações - nota da tradutora). Posso fazer uma ideia: sou a Senhora Diretora das Minas Crich, ou a Senhora Deputada Roddice, ou a Senhora Professora de Arte Brangwen. Linda coisa! - exclamou Gudrun.
- Tudo correria melhor assim, Senhora Professora de Arte Brangwen - disse Gerald.
- Tudo o quê? Explique-me, Sr. Diretor das Minas de Carvão Crich. As relações entre nós dois, par exemple?
- Isso, por exemplo - interveio a italiana. - As relações entre homens e mulheres...
- Não é do âmbito social - observou Birkin, em tom sarcástico.
- Muito bem. Entre mim e uma mulher a questão social nada tem que ver. O caso é comigo - disse Gerald.
- Ganhou dez libras! - volveu Birkin.
- O senhor não admite que a mulher seja um ente social? - perguntou Úrsula a Gerald.
- Sim e não. Sim, no que respeita à sociedade. Mas, na sua própria vida privada, pode agir livremente; isso é problema dela, nada temos a censurar.
- E não seria um tanto difícil conciliar as duas metades? - continuou Úrsula.
- Não - replicou Gerald. - Que se arranjem sozinhas. Vê-se isso agora por toda parte.
Mas Birkin atalhou:
- Não se ria antes do tempo.
- Eu estava rindo?
- Se ao menos - disse, por fim Hermione - pudéssemos ser iguais em espírito, se nisso, formássemos uma irmandade, o resto não teria importância; nunca mais se ouviria falar de críticas, invejas, lutas pelo poder, que são coisas destrutivas e nada mais.
Este comentário foi recebido em silêncio e quase a seguir todos se levantaram da mesa. Mas, quando os outros já tinham desaparecido, Birkin voltou-se para os que haviam ficado e declarou com amargura:
- É precisamente o oposto, precisamente o contrário, Hermione. Somos todos, em espírito, diferentes, desiguais. Mas nas coisas da vida material é que, teórica e matematicamente, pode haver igualdade; como, na prática, não há, resultam daí as chamadas diferenças sociais. Qualquer pessoa sente fome e sede, tem dois olhos, um nariz, duas pernas. Numericamente somos todos os mesmos; porém, na ordem espiritual, existem diferenças; nem a igualdade nem a desigualdade são termos que sirvam. É sobre este mínimo de conhecimentos que devem ser baseadas as instituições. A sua democracia é uma refinada mentira, a sua fraternidade humana pura falsidade, se a fizer sair dos domínios da abstração. Todos começamos por beber leite, depois comemos pão e carne, todos queremos andar de automóvel; eis o começo e o fim da fraternidade entre os homens. A igualdade não existe.
"Mas eu, que sou eu e mais ninguém - continuou Birkin - que tenho a ver com a igualdade, com outro homem, com outra mulher? Em espírito, estou tão longe como uma estrela o está de outra estrela, muito diferente em qualidade e em quantidade. Veja se é capaz de organizar um Estado com isto. Nenhum homem é melhor do que outro, não porque sejam iguais, mas porque são intrinsecamente diversos e não pode haver, entre eles, termo de comparação. Logo que se começa a fazer comparações, vê-se quanto um indivíduo difere de outro; toda desigualdade que se possa imaginar, ei-la demonstrada por natureza. Desejo que cada um tenha o seu quinhão nos bens deste mundo, de maneira que eu possa desembaraçar-me de mais um importuno. E então dir-lhe-ia: agora você tem o que pretendia, possui uma fatia dos benefícios terrenos; vá, louco, saboreia-a, não existe senão uma boca, sacie-se e não me aborreça."
Hermione olhava-o de esguelha e Rupert sentia que, a despeito de tudo quanto ele dizia, ondas de ódio e de enfado emanavam daquela mulher: ódio e enfado dinâmicos, provindos fortes e sombrios do subconsciente de Hermione. Ouvira-lhe as palavras inconscientemente, mas conscientemente se fazia surda para não lhes dar atenção.
- Isso cheira a megalomania - disse Gerald, jovial, dirigindo-se a Birkin.
Hermione emitiu uma espécie de grunhido. Rupert deu um passo para trás.
- Mudemos de assunto - exclamou de súbito. A voz, que pesara sobre os outros dois com tão dominadora insistência, apagara-se por completo. E ele foi-se embora.
Mais tarde, porém, sentiu-se arrependido. Fora violento, cruel para com a infeliz Hermione. Desejaria recompensá-la, desfazer a má impressão. Ferira-a, tinha sido vingativo. A sua vontade, agora, era de fazer as pazes.
Hermione estava no seu escritório, quarto afastado, repleto de almofadas. Sentara-se à mesa e escrevia cartas quando Rupert apareceu. Levantou o rosto, distraída, viu-o aproximar-se do sofá e sentar-se ali; recomeçou a tarefa interrompida.
Birkin pegou um livro volumoso que já lera uma vez e embrenhou-se de novo na leitura. Tinha as costas voltadas para Hermione, que não conseguia mais escrever. Todo o seu espírito era um caos; mergulhava nas trevas, e procurava readquirir o domínio de si própria, tal como o nadador a se debater dentro de uma ressaca. Todavia, apesar dos esforços, tinha a impressão de que o coração ia saltar. A terrível tensão ia aumentando mais e mais, era uma agonia pavorosa, como a de alguém que estivesse sendo emparedado.
A parede era Birkin - eis o que ela compreendeu; a presença daquele homem sufocava-a. Se não conseguisse demoli-lo, morreria de morte horrível, asfixiada. Sim, ele era a parede. Era preciso abatê-lo; tinha de afastá-lo da sua frente, detestável obstáculo que lhe dificultaria a vida ate ao fim.
Seu corpo tremia como se choques elétricos de uma corrente de muitos volts a traspassassem. A presença dele, sentado a poucos passos impunha-se-lhe sempre; era um incrível espetáculo maléfico. Tanto bastava para lhe aniquilar o espírito, para o sufocar, aquele homem de costas para ela, curvado sobre o livro.
Sentiu ao longo dos braços um arrepio voluptuoso. Ia conhecer o prazer sensual de provocar a morte. Tremiam-lhe as mãos. Que delírio sentir a força que possuía. Experimentaria dar a morte, enfim, com os sentidos em êxtase! Não demoraria muito. No cúmulo do terror e da angústia, compreendeu que o momento chegara, num máximo de bem-aventurança. Tinha a mão colocada sobre uma linda bola de lazulite, que servia de peso para papéis, na secretária. Brincava com ela, fazendo-a rolar, e, silenciosamente, levantou-se da cadeira. O coração ardia-lhe no peito, em labaredas, mas o seu arrebatamento deixava-a sem consciência. Dirigiu-se para Rupert e ficou estática uns instantes, de pé atrás dele - que, mergulhado na magia da leitura, continuava sem movimento, alheio a tudo.
Então, subitamente, num ímpeto que lhe percorreu todo o ser, espécie de fluido luminoso que lhe proporcionava uma satisfação perfeita, inexprimível, da vontade, bateu com toda força na cabeça dele, com a bola, aquela jóia de pedra tão preciosa. Os dedos, porém, que apertavam a estranha arma, fizeram amortecer a pancada. Contudo, Birkin bateu com a testa de encontro à mesa, onde repousava o livro; a bola escorregou de lado, pela orelha abaixo. Hermione sentiu uma excitação de prazer, aumentada pela dor que experimentava nos dedos Mas ainda não era bastante. Ergueu o braço mais alto para vibrar novo golpe, justamente sobre aquele crânio apoiado ali à mesa. Precisava parti-lo, era preciso que assim fosse para que o seu espasmo atingisse o auge. Mil vidas ou mil mortes não teriam agora nenhuma importância: o que lhe interessava era a realização completa do seu desejo.
No entanto, faltava-lhe vivacidade, não podia agir senão com lentidão. Rupert, num esforço supremo, reagiu, levantou a cabeça e fitou-a. O braço de Hermione estava outra vez no ar e a mão segurava a bola de lazulite. Era a mão esquerda; mais uma vez verificou ele, com horror, que Hermione se ajeitava melhor com esta. Imediatamente, em movimento instintivo, Birkin protegeu a cabeça com o volume de Tucídides. O golpe desferido foi atingi-lo no pescoço, fazendo-lhe o coração pulsar com violência.
Magoado, mas ainda com sangue-frio, deu uma volta e empurrou a mesa de maneira a colocar um obstáculo entre ambos. Sentia-se como um frasco reduzido a estilhaços; tinha a impressão de que todo ele era composto de fragmentos, de pedacinhos. Mas os movimentos continuavam coerentes e ágeis; a alma conservava-se íntegra e sossegada.
- Não, Hermione disse em voz baixa - não consentirei.
Via-a defronte dele, alta, lívida, expectante, com a pedra fortemente apertada na mão. Aproximou-se dela e ordenou:
- Afaste-se. Deixe-me sair.
Como se a mão de Rupert a empurrasse, Hermione recuou, fitando-o sempre, como um anjo derrotado que ainda o afrontasse.
- Não vale a pena - continuou ele, depois de se haver desvencilhado. - Não seria eu o assassinado. Percebeu?
Não deixou de olhá-la enquanto não saiu do quarto, com receio de que ela ainda tentasse alguma coisa. Agora que o homem recuperara o domínio, Hermione não se atrevia sequer a mexer-se. Estava salvo e ela recaíra na impotência. Finalmente, Rupert desapareceu. A mulher manteve-se de pé.
E assim ficou, grande espaço de tempo, absolutamente rígida. Depois dirigiu-se cambaleando para o sofá, onde se deixou cair, adormecendo profundamente. Quando acordou, lembrou-se do que fizera, mas com a impressão de que lhe havia batido - como qualquer outra mulher poderia ter feito pelo fato de que ele a torturara. Achava-se cheia de razão; pelo menos sentia que, em teoria, assim devia ser. Fizera o que fora do seu direito, consoante a sua justiça infalível. Era justiceira; estava inocente. E, no rosto, percebia-se uma expressão permanente de quase sinistro misticismo, um pouco entorpecido.
Birkin, vagamente cônscio do que se passara, mas andando perfeitamente, deixou a casa e atravessou o parque em direção às colinas, para se encontrar em pleno campo. O dia, que estivera tão claro, tornara sombrio; começavam a cair gotas grossas de chuva. Errou por ali, ate alcançar um canto agreste do vale, onde havia aveleiras em quantidade, imensas flores, montes de urzes e pinheirinhos novos cheios de rebentos tenros. Já estava tudo molhado. Ao fundo do vale, que parecia escuro, corria um riacho. Birkin admirava-se de não recuperar a perfeita consciência da situação; andava como que num sonho.
Sentia-se feliz naquele pedaço da colina coberto de plantas, sombrio por entre as ramadas floridas. Quisera poder tocar-lhes, saciar-se do contato daquele mundo vegetal. Despiu a roupa e sentou-se, nú, no meio das primaveras, agitando-as docemente com os pés, com as pernas, os joelhos, os braços, quase até aos ombros; depois estendeu-se no chão, roçando-as com a barriga, com o peito. Saturava-se daquele contato brando, fresco, sutil. Tudo aquilo era, porém, suave demais. Através do prado extenso procurou um grupo de pinheiros que não tinham mais altura do que um homem.
Os ramos macios e compridos batiam-lhe nas pernas, magoavam-no quando ele os afastava ao passar, vertiam-lhe no ventre frias gotas de água e espetavam-lhe os quadris com as folhas aguçadas. Sentiu-se ferido por um cardo, não muito fundo, porque os movimentos que fazia eram disciplinados e brandos. Estender-se no chão, revolver-se no meio dos jacintos úmidos e pegajosos, jazer de barriga para baixo e cobrir o corpo com punhados de erva tenra e molhada, suave como a brisa, mais leve, mais delicada, mais bela do que uma carícia de mulher; e depois roçar as coxas nas folhas dos pinheiros sombrios e viciosos; receber nos ombros a chicotada rápida dos ramos das aveleiras, que o espicaçavam ao mesmo tempo, abraçar o tronco prateado dos vidoeiros, sentindo-lhes a casca lisa ou rugosa, e os nós e os sulcos, tudo isso era bom, tudo isso era realmente bom e consolador. Mas de nada serviria, mais nada poderia satisfazê-lo. Somente aquela frescura e aquela sutileza da vegetação insinuando-se-lhe nas veias. Que felicidade para ele haver uma floresta tão deliciosa, perturbadora, tão igual à sua alma, esperando por ele! Como lhe matava a sede e a fome! Como Rupert se considerava venturoso!
Enquanto se enxugava com o lenço, Rupert lembrou-se de Hermione e do incidente. Sentia dores em um lado da cabeça. No fim de contas, que importância tinha isso? Que lhe interessava Hermione e todos os outros juntos? Bastava-lhe aquela solidão fresca, aprazível, inexplorada. Na verdade, cometera um erro quando pensou que lhe importava tal gente, ao supor que precisava de uma mulher. Não precisava de nenhuma, de nenhuma absolutamente. As folhas das plantas, as prímulas, as árvores, eis o que era adorável, apetecível, consolador; eis o que lhe penetrava no sangue e se misturava com ele. Sentia-se agora incomensuravelmente enriquecido e tão feliz!
Que Hermione houvesse pretendido matá-lo, achava ate natural. Que tinha de comum com aquela criatura? Que tinha que fazer com os outros seres humanos? Aqui é que estava o seu mundo, não queria nada mais senão a encantadora, sutilíssima vegetação irmã da sua alma; contentar-se-ia consigo, com o seu próprio ser.
Mas era preciso regressar ao seio dos homens. Não podia fugir a isso. Daí em diante já se conhecia bem. Sabia a quem devia pertencer. Sabia para onde fugir: sob as árvores, entre a folhagem deliciosa e fresca das plantas. Era ali o seu refúgio, o lugar do seu idílio. O mundo ficar-lhe-ia como estranho.
Subiu a colina, perguntando a si próprio se teria enlouquecido. Mas, caso assim fosse, preferia essa loucura a uma perfeita saúde de espírito. Rejubilava-se com tal insensatez, pois era livre. Não ambicionava o juízo decrépito da sociedade, que se lhe tornara odioso. Regozijava-se com a descoberta da sua nova demência. Considerava-se livre, puro, satisfeito.
Quanto a certo pesar que, ao mesmo tempo sentia na alma, isso não era mais, afinal, do que a reminiscência de uma velha ética que incitava os seres humanos a aderirem à humanidade. Mas estava cansado dessa moral já gasta, dos homens e de toda a coletividade. O que venerava agora era o reino vegetal, excelente, calmo, perfeito. Passaria sobre as dores antigas, poria de lado a velha ética, seria livre na nova ordem que fundava.
De minuto a minuto acentuava-se a dor que experimentara no crânio. Foi seguindo através da estrada, para alcançar a estação mais próxima. Chovia, e Birkin não trouxera chapéu. Mas quantos excêntricos não andam hoje na chuva, de cabeça descoberta!
Pensava também se não seria devido à ideia de que alguém o houvesse visto nu, estirado na terra, aquela preocupação que o acompanhava, certa depressão moral de que não conseguia livrar-se. A humanidade... os outros... ah, como odiava tudo aquilo! Este pensamento conduzia-o quase ao terror, uma espécie de pânico - ter sido observado por qualquer pessoa! Se estivesse em outra ilha, como Alexandre Silkirk - Marinheiro escocês desembarcado sozinho na ilha de João Fernandes, no Pacífico. A notícia das suas aventuras inspirou a Defoe o seu Robinson - nota da tradutora) só com os animais e as plantas, seria livre e contente, sem grandes apreensões, sem receios de qualquer espécie. Amaria à vontade os vegetais, seria feliz, livre dos importunos, a sós consigo mesmo.
Talvez fosse melhor escrever um bilhete a Hermione; ela poderia inquietar-se a seu respeito, coisa que Birkin não queria que sucedesse. Uma vez na estação, redigiu um bilhete:
"Parto para a cidade. Não desejo voltar por enquanto a Breadalby. Tudo vai bem. Não julgue, de maneira nenhuma, que me magoou. Diga aos outros que se trata de mais um dos meus caprichos. Teve muita razão em me agredir: bem sabia eu que era essa a sua vontade. E assim, tudo acabou".
No trem, entretanto, Rupert Birkin sentiu-se mal. Cada solavanco era uma dor que lhe causava; não estava bem de saúde. Da estação onde saltou seguiu à procura de um carro, andando devagar, como um cego, sustentado apenas pelo esforço obscuro da vontade.
Esteve doente durante uma ou duas semanas, mas nada comunicou a Hermione, que o julgava quando muito, zangado. Estabeleceu-se indiferença entre ambos. Ela absorvia-se no sentimento de que estava cheia de razão. Vivia na estima de si própria, persuadida da justeza do seu espírito.
Capítulo IX
Pó de carvão
De regresso à casa, de tardinha, depois da aula, as irmãs Brangwens desceram a colina, entre as pitorescas residências de Willey Green, ate atingirem a passagem de nível. Encontraram a cancela fechada, pois aproximava-se o trem da empresa de mineração. Ouviram a locomotiva ofegante avançar com precaução. O sinaleiro coxo, na guarita junto da linha, via-a chegar, em segurança, como um caranguejo escondido no seu buraco.
Enquanto as moças esperavam, apareceu Gerald Crich montado em uma égua baia de sangue árabe. Montava bem, com aprumo, contente por sentir entre os joelhos o estremecimento nervoso do animal. Tinha um ar pitoresco, pelo menos aos olhos de Gudrun, seguro e elegante sobre a esbelta égua, cuja cauda comprida flutuava ao vento. Gerald cumprimentou as duas irmãs e esperou que abrissem a cancela, olhando para a linha férrea para ver surgir o trem. Apesar do sorriso irônico que o seu aspecto despertava em Gudrun, a moça não se cansava de contemplá-lo. Gerald mantinha-se firme, à vontade; as cores quentes do rosto queimado faziam sobressair o bigode claro e áspero e os olhos azuis, na distância, cintilavam de uma luz muito viva.
A locomotiva arfava vagarosa, escondida ainda no meio dos taludes. A égua impacientava-se, começando a recuar, como se aquele barulho desconhecido a tivesse assustado. Mas o cavaleiro dominou-a, obrigando-a a enfrentar a cancela. As explosões repetidas da máquina chegavam cada vez com mais força, e aquele inimigo oculto, que produzia um ruído tão terrível, infundia pavor na égua, que saltou, como uma mola arrebentada. Gerald esboçou outro sorriso, e trouxe-a, como da primeira vez, ao seu lugar, sem que ela pudesse deixar de obedecer.
O barulho aumentou e a pequenina locomotiva, com a sua biela de aço rangente, surgiu na via férrea, matraqueando. O animal pulou como uma gota d'água sobre ferro em brasa. Úrsula e Gudrun, aterrorizadas, foram-se refugiar na sebe. Mas Gerald mantinha-se seguro e conseguiu conter a montaria. Parecia subjugá-la magneticamente e impôs mais uma vez a sua vontade.
- Que louco! - exclamou Úrsula em voz alta. - Por que não se afasta, ate que o comboio passe?
Gudrun admirava-o com os olhos dilatados, como que fascinada. Ele, porém, continuava teimoso, com o olhar brilhante, forçando a égua, que revoluteava, resistindo e desviando-se, sem poder, contudo, esquivar-se ao império do cavaleiro nem escapar ao estrépido enlouquecedor que a assustava, à medida que os vagões deslizavam pesados, vagarosos, amedrontadores, um após outro, como que perseguindo-se, sobre os trilhos da passagem de nível.
A locomotiva - dir-se-ia consciente das próprias manobras pôs um freio no seu entusiasmo, e os vagões percutiram-se nas molas de ferro, entrechocando-se como horríveis pratos de música, com um estrondo cada vez mais próximo e em pancadas medonhamente estridentes. A égua abriu a boca, erguendo-se, mas devagar, como se fosse levantada por uma rajada de pavor. Depois, de repente, as patas dianteiras agitaram-se, e o animal foi totalmente dominado pelo medo; as duas jovens agarraram-se uma à outra, certas de que cavalgadura e cavaleiro cairiam ambos por terra. Mas Gerald inclinou-se para frente, com o rosto a brilhar de prazer e obrigou o animal a abaixar as patas e regressar ao lugar de onde pretendera fugir. Tão forte como a pressão exercida pelo cavaleiro era a repulsa oposta pela égua, que a levava a evitar a proximidade da linha e, assim, ela volteou, apoiando-se nas pernas traseiras, sempre em roda, como se fosse o centro de um redemoinho. O espetáculo produziu em Gudrun vertigens e aflições,
- Não! Não! Deixe o animal! Que imprudência! - gritou Úrsula com voz alterada, completamente fora de si. A irmã deplorou aquela falta de classe, principalmente o tom de voz que Úrsula empregara, metálica e penetrante.
O olhar de Gerald parecia morder a égua como um gume afiado, obrigando-o a dar meia volta. O animal relinchava, abria desmesuradamente as narinas, como se fossem fornalhas ardentes, escancarava a boca, arregalava os olhos. Era um espetáculo impressionante. Mas Gerald mantinha-o obediente, com uma inexorabilidade quase animal, rija como se uma espada o atravessasse. Tanto o homem como o animal estavam cobertos de suor. Gerald, entretanto, mantinha-se perfeitamente controlado.
Os vagões desfilavam muito lentamente, dando trancos uns nos outros, numa espécie de pesadelo sem fim. As correntes que os uniam gemiam e chiavam em variados tons; a égua escarvava, recuava de vez em quando, cheia de terror, agora que o cavaleiro a dominava inteiramente; dava patadas às cegas, de modo impressionante, e Gerald apertava-lhe os flancos, prendendo-a, como se ela fizesse parte do seu próprio corpo.
- Está sangrando! - exclamou Úrsula, furiosa com o homem e aborrecida com a cena. Só ela compreendia tudo, dado o contraste de temperamentos.
Gudrun viu as gotas de sangue na barriga do animal e empalideceu. Naquele momento, sobre as próprias feridas, as esporas faiscantes fizeram nova pressão. Gudrun sentiu a cabeça rodar, tudo desapareceu da sua vida.
Quando voltou a si, tinha o espírito tranquilo e indiferente; não conseguia pensar. Os vagões continuavam a deslizar e o homem e a égua lutavam sem descanso. Mas Gudrun estava alheia e serena, já não sentia: ficara completamente fria e insensível.
O ruído da máquina diminuía; breve cessaria o intolerável entre chocar de ferros. A égua, meio aturdida, arfava pesadamente. Gerald parecia confiante: sua vontade corajosa triunfara. Um empregado observava a cena. E, através dos olhos do homem, Gudrun pôde reconstituir todo o espetáculo, fixando-o para a eternidade.
Adorável, grato silêncio sucedia à balbúrdia do comboio: delicioso silêncio! Úrsula lançou um olhar raivoso às ferragens do último vagão, que já sumia na distância o guarda estava à porta da sua casinhola, pronto para abrir a canela. Mas Gudrun, subitamente, colocou-se à frente do animal rebelde, levantou a tranca e separou os dois batentes da portinhola, empurrando um para cima do guarda e correndo através do outro que escancarou sobre a linha. Gerald deixou a égua seguir. Foi então que Gudrun bradou-lhe em voz aguda e estranha, qual bruxa que gritasse à passagem do viajante:
- O senhor é um vaidoso!
As palavras foram pronunciadas clara e nitidamente. Gerald, torcendo o corpo sobre a montada, que ia cabriolando, olhou, surpreso e interessado. Depois, o animal, tendo batido por três vezes com os cascos nos trilhos da via férrea, batidas que ressoavam como tambores, saltou com agilidade e alcançou a estrada.
As jovens ficaram observando montaria e cavaleiro desaparecerem. O guarda-cancela veio coxeando, fazendo retinir nos barrotes da via as pancadas da sua perna de pau. Fechou a portinhola e, voltando-se para as duas irmãs, disse:
- Estupendo cavaleiro! Faz o que quer com a montaria.
- É verdade- concordou Úrsula com a sua voz quente e dominadora - Mas por que não conservou a montaria afastada ate que o comboio passasse? É louco. É um déspota. Não vê que não é humano tratar assim um animal? É um ser vivo, não pode ser tratado com tamanha brutalidade.
Houve uma pausa. O guarda inclinou a cabeça e tornou a falar:
- É isso mesmo. E a égua é esplêndida. Linda estampa. Mas, o pai dele não trataria assim um animal daqueles. Nunca vi duas pessoas tão diferentes, o Sr. Gerald e o pai.
Seguiu-se novo silêncio.
- Por que será que ele procede assim? - exclamou Úrsula. - Supõe ser sinal de valentia brutalizar um animal tão sensível, dez vezes mais sensível que ele?
Ficaram de novo calados. Depois o homem abanou a cabeça, como se não fosse dizer mais nada, embora continuasse pensativo. Falou, finalmente:
- Acho que ele está acostumando a égua a não ter medo de nada. É um puro-sangue árabe; não estamos acostumados a ver disso por aqui. Completamente diferente dos nossos cavalos. Dizem que foi comprado em Constantinopla.
- Ah, sim? - retorquiu Úrsula. - Mais valia que o tivessem deixado com os turcos, que o tratariam, estou certa, com mais humanidade.
O homem entrou em casa, para tomar o seu chá e as moças seguiram pelo atalho, coberto de uma camada de poeira negra e mole. Gudrun parecia entorpecida pela impressão causada pela presença imponente e desembaraçada daquele homem a cavalo: louro, as pernas fortes e implacáveis dominando o corpo fremente do animal, certo de que não seria desobedecido; espécie de império instintivo e magnético mantido pelos quadris, pelas coxas e pela barriga das pernas, com que fechava e envolvia pesadamente a égua, obrigando-a a uma incompreensível subordinação, sujeição, para o animal, inevitável.
Enquanto as jovens iam andando, percebiam surgir, à esquerda, enormes montes de hulha e depósitos de carvão, a estrada de ferro, enegrecida com as carretas paradas, tudo aquilo dando a impressão de um porto submerso de uma vasta baía onde tivessem ancorado vagões.
Perto da segunda passagem de nível, que atravessava inúmeros trilhos luzidios, havia uma herdade pertencente à empresa; no campo ao lado da estrada repousava silencioso um enorme globo de ferro, antiga caldeira enferrujada, em torno da qual ciscavam galinhas com seus pintinhos.
Do outro lado da passagem, a um canto da estrada, elas notaram um amontoado de pedras de tom cinza-claro, destinadas à reparação da estrada, e uma carroça parada. Curvado sobre a pá estava um homem de meia idade, a conversar com um rapaz de polainas, em pé junto ao cavalo. Tanto um como o outro olhavam para a passagem de nível.
Viram as duas se aproximar, figuras pequeninas e luminosas, no esplendor da tarde. Ambas usavam trajes claros e alegres: Úrsula, um casaco de malha alaranjada; Gudrun, um vestido amarelo-pálido. As meias da primeira eram cor de canário, as da segunda, em tom rosa brilhante; seus vultos pareciam cintilar à medida que se aproximavam do vasto espaço da encruzilhada: o branco e o amarelo, o cor-de-rosa e o alaranjado faiscavam ao mover-se naquele mundo ardente, obstruído pelo pó de carvão.
Os dois homens, imóveis e silenciosos, ficaram observando as duas, sob um sol tórrido. O mais velho deles era baixo, de rosto duro e enérgico; o mais moço, um operário, devia ter uns vinte e três anos. Viram as duas passar e viram-nas desaparecer na estrada poeirenta ladeada de casas e de campos de trigo tenro.
Foi o mais velho quem disse ao outro, em tom malicioso:
- Quanto deve valer aquilo? Confesso que me calhava às mil maravilhas.
- Qual delas? - perguntou o rapaz, cheio de curiosidade.
- A das meias cor-de-rosa. Eu daria o meu salário de uma semana, só por cinco minutos. Palavra, só cinco minutos...
O rapaz tornou a rir, replicando:
- A sua patroa haveria de gostar muito...
Gudrun voltou-se e deparou com os dois homens. Pareceram-lhe criaturas sinistras, ali paradas perto do monte de escórias. Achava-os detestáveis, principalmente o velho.
- É da alta, não é? - gritou, quase.
- Acha que ela vale uma semana de salário? - tornou o rapaz, pensativo.
- Eu não pensaria duas vezes!
O rapaz examinou Gudrun e Úrsula com ar sério, como se tentasse calcular o que valiam, certificar-se de que pudessem merecer uma semana de salário. E abanou a cabeça com ceticismo.
- Não - declarou. - Eu não pagaria tanto.
- Pois para mim - disse o mais velho - garanto-lhe que vale.
E continuou a remexer as pedras com a pá.
As moças desceram a estrada entre as casas de telhado de ardósia e paredes de tijolo enegrecido. O sol começava a declinar na sua opulência dourada, iluminando toda a região mineira; a fealdade que a beleza da tarde punha a descoberto era como que um narcótico para os sentidos. Nos caminhos cobertos de pó preto, a luz tombava com mais calor, mais pesadamente; e, por cima daquela sordidez amorfa, fundia-se uma espécie de esplendor mágico lançado pelo crepúsculo.
- Este lugar é, ao mesmo tempo, encantador e asqueroso - comentou Gudrun, impressionada, evidentemente, com tudo aquilo. - Não se encontra aqui um certo estímulo sensual? Acontece isso comigo e é uma coisa que eu não consigo entender.
Passaram pelo aglomerado de casas dos mineiros. Em alguns pátios, situados nos fundos, podiam-se descobrir operários que se lavavam ao ar livre, nus ate a cintura, com as largas calças escorregando-lhes pelas pernas abaixo. Outros, já prontos, estavam de cócoras, costas apoiadas à parede, conversando, ou calados, aproveitando o seu bem-estar físico, o descanso após um dia de trabalho. Vozes ressoavam com acentos fortes, e o dialeto rude que empregavam estremecia os ouvidos de quem os escutasse. Esse quadro envolvia Gudrun numa cariciosa atmosfera mineira; errava no espaço o vigor físico dos homens, uma camada espessa de vida operária e de virilidade. Era assim em toda a região e os habitantes nem percebiam mais.
Para Gudrun, contudo, o ambiente era forte em demasia. Nunca pudera explicar por que motivo Beldover se mostrava tão completamente diverso de Londres e do Sul, por que razão os sentimentos se diferenciavam tanto, a ponto de se julgar viver em outro hemisfério. Agora, porém, compreendia que isso resultara da presença dos homens enérgicos que trabalhavam debaixo da terra, que passavam nas trevas a maior parte do tempo. Na linguagem deles havia a ressonância da escuridão, daquele mundo subterrâneo e poderoso, temível, descuidado e subumano. As vozes soavam como sons de máquinas estranhas, pesadas, cheias de óleo. Possuíam a volúpia semelhante à das máquinas, fria, dura como o ferro.
Era o mesmo todas as tardes, ao voltar para casa; tinha a impressão de que se debatia numa onda de força dissolvente, impressão que lhe vinha da presença de milhares de mineiros vigorosos, habituados à vida subterrânea e semitransformados em autômatos; aquela força lhe penetrava no cérebro e no coração, acordava-lhe desejos fatais e uma fatal insensibilidade. No entanto, sentia sempre saudade daquele lugar. Detestava-o, sabia que significava desterro, sabia que tudo era odioso, inerme, nauseabundo. Então, batia as asas como uma nova Dafne, transformada não em árvore, mas em máquina... A nostalgia, no entanto a atormentava. Procurava adaptar-se ao ambiente, procurando encontrar um pouco de alegria.
Às tardes, sentia-se atraída para a rua principal da cidade, tão inexpressiva e feia quanto repleta da mesma atmosfera fria e insensível. Havia sempre mineiros. Chegavam a impressionar com a sua dignidade não destituída de beleza, certa tranquilidade no porte e o ar abstrato e resignado dos rostos magros e pálidos. Pertenciam a um outro mundo, mas transmitiam um encanto singular.
Ela habituara-se a ir, com as outras mulheres do povo, à feira das sextas, à noite. A sexta-feira era o dia do pagamento dos operários, e, ao escurecer, abria-se o mercado.
Não havia mulher que não viesse para a rua, não havia homem que não Saísse, ou para fazer compras com a mulher ou para se juntar aos camaradas. Os caminhos léguas distantes, ficavam apinhados pela gente que os enchia, e a feira no alto da colina e a rua principal de Beldover enchiam-se também de compacta multidão.
Já estava escuro, o mercado exibia seus bicos de petróleo que projetavam clarões avermelhados nas faces graves dos compradores e no rosto pálido e absorto dos maridos. O ar vibrava com as conversas, e ondas compactas de gente avançavam pelas calçadas em direção às barracas. A rua pululava de homens, mineiros novos e velhos. O dinheiro corria com pródiga liberalidade.
As carroças que vinham já não podiam prosseguir. Seus condutores precisavam gesticular e esbravejar para que a multidão se afastasse. Por toda a parte se viam rapazes e moças. As portas dos bares estavam abertas e as lojas iluminadas, os homens entravam e saíam num fluxo e refluxo contínuo aqui e ali chamavam uns pelos outros ou corriam ao encontro dos conhecidos; às vezes ficavam de pé, em grupinhos, discutindo, discutindo sem cessar. O rumor das conversas, o zumbido confuso das discussões e das confidências, as intermináveis questões acerca de minas e política vibravam no ar como um mecanismo dissonante. Eram as vozes o que mais afetava Gudrun. Despertavam-lhe um desejo nostálgico e doentio, qualquer coisa de demoníaco, impossível de satisfazer.
Como todas as moças do povo que viviam no distrito, Gudrun ia e vinha ao longo da calçada, comprida uns duzentos passos, bem iluminada, muito perto da feira. Sabia que era um prazer popular e que a mãe e o pai não haveriam de entender; mas a nostalgia havia-se apoderado dela, precisava estar entre o povo. Uma vez por outra sentava-se no cinema, no meio de pessoas rudes. Era gente de aspecto libertino, que não inspirava simpatia. Mas Gudrun não conseguia dispensar a companhia dos outros.
E, como todas as moças da terra, acabou por encontrar o seu rapaz. Era um eletricista, recentemente contratado por Gerald Crich. Vivo, inteligente, dedicado às ciências, com decidida paixão pela sociologia, morava só, em uma casa que alugara em Willey Green. Era distinto, educado e ganhava o suficiente. A senhoria contava histórias a seu respeito: que exigia, no quarto, uma grande tina de madeira e que, ao voltar do trabalho, entornava baldes e mais baldes a fim de se banhar todos os dias. Envergava camisas, roupa de baixo e meias de seda escrupulosamente lavadas; sob esse aspecto, era enfadonho e meticuloso, mas, quanto ao resto, não se diferenciava dos outros e, acrescentava a velhota, não incomodava ninguém.
Gudrun estava a par de tudo isto. À residência dos Brangwens iam ter, natural e inevitavelmente, todos os falatórios das comadres. Palmer, a princípio, tornara-se amigo de Úrsula. Mas, naquele rosto pálido, delicado e sério, exprimia-se a mesma ansiedade que sentia Gudrun. Tinha também, como os outros, de cruzar a rua sexta-feira à noite; assim, começou a passear com a mais nova das irmãs, estabelecendo-se uma amizade mais estreita. Ele, no entanto, não estava apaixonado por Gudrun; desejava, na verdade, a outra, mas, por qualquer razão estranha, nada aconteceu entre os dois. Gostava de conversar com Gudrun devido às afinidades de espírito que notava nela somente por isso. A moça, por sua vez, não nutria por ele nenhum sentimento especial. Era um cientista, precisava de uma mulher que o ajudasse; mas faltava-lhe personalidade, dir-se-ia apenas possuir a delicadeza de uma peça bem trabalhada: frio em demasia, excessivamente egoísta para se ocupar verdadeiramente de uma mulher. Estava influenciado pelos homens, que individualmente lhe desagradavam e a quem ele desprezava, mas, que, em conjunto, o fascinavam, como o fascinava a mecânica. Constituíam, para ele, uma nova espécie de maquinismo - incalculável, incalculável...
Dessa maneira, Palmer e Gudrun passeavam pelas ruas ou se instalavam no cinema. A face dele, pálida e delicada, estremecia durante as observações sarcásticas que ela costumava fazer-lhe. Ei-los, pois, reunidos: eram dois elegantes, duas unidades que não pertenciam ao conjunto do povo, mas sentiam necessidade de irmanar-se àqueles mineiros rudes. O mesmo segredo parecia existir na alma dessas criaturas - de Palmer, de Gudrun, dos rapazolas de sangue na guelra, dos homens ativos e dos velhos. Todos possuíam um sentimento secreto de poder, da força inexprimível e destruidora, mas de fatal escassez de ânimo, uma espécie de podridão da vontade.
Às vezes Gudrun afastava-se, compreendia-se e se sentia naufragar. Então invadiam-na, furiosamente, a cólera e o desprezo. Tinha a sensação de afundar no anonimato junto com os outros, unida a eles, confundida, numa agonia sufocante... Era horrível. Preparou-se para fugir, começou a trabalhar de maneira febril. Mas não tardou muito que desistisse. Voltou à terra - aquela sua terra sombria e feiticeira, cuja magia novamente a dominou.
Capítulo X
Álbum de desenhos
Certa manhã estavam as duas irmãs desenhando, à beira de Willey Green, em um dos recantos mais afastados do lago. Gudrun atravessara a vau ate atingir um banco de areia e ali se sentara, como um monge budista, olhando fixamente para as plantas aquáticas que se elevavam opulentas acima das margens lodosas. Tudo o que os seus olhos viam era a terra lamacenta, mole, vertendo água, e dessa fria podridão erguiam-se as plantas, espessas, carnudas, frescas, muito rígidas e túrgidas, com as folhas saindo em ângulo reto. As cores eram sombrias, verde-escuro, com manchas de púrpura quase negras ou bronzeadas. Sentia-lhe a estrutura infiltrada dos tecidos, como uma coisa sensual, compreendia como elas se desenvolviam no lodo, fugindo a si mesmas, impondo-se vigorosamente, suculentamente, no espaço aéreo.
Úrsula admirava as borboletas, de que havia grande quantidade voando perto da água, umas pequeninas, azuis, nascidas subitamente do nada para a sua vida fulgurante; uma grande, verde e vermelha, pousara sobre uma flor e absorvia, com as asas sedosas, o ar puro e a claridade etérea, que a perturbavam; duas outras, brancas, que roçavam quase pelo chão, deixando um halo em volta; ah, quando passaram mais próximo, que tons de laranja lhes descobrira no rebordo das asas! Daí o reflexo que haviam deixado no ar. Úrsula pôs-se de pé e afastou-se, inconsciente como as próprias borboletas.
Gudrun, absorta na contemplação das plantas aquáticas, fascinada de as ver surgir assim, descansava na restinga do lago e continuava a desenhar, quase sem levantar a cabeça; mas, quando o fazia, extasiava-se à vista dos caules rígidos, suculentos e uns que emergiam do fundo. Ele se descalçara e atirara o chapéu para a margem fronteira.
Sobressaltou-a o chapinhar de remos na água. Olhou em volta e viu um barco com um toldo vistoso, conduzido por um homem vestido de branco. Era Gerald. Vinha com ele uma mulher: Hermione. Gudrun reconheceu-os instantaneamente e instantaneamente experimentou um arrepio agudo de antecipação, espécie de vibração elétrica nas veias, tão ou mais intensa do que aquela que zumbia pesadamente na atmosfera de Beldover.
Gerald seria, para ela, um meio de fugir ao turvo lamaçal do mundo de mineiros pálidos e automáticos. Elevava-se acima do limo impuro; era o patrão. Gudrun via-o de costas, admirava-lhe o movimento dos músculos brancos - ou melhor, ele é que envolvia a brancura quando remava, inclinado para a frente. Parecia curvar-se para abranger o mundo. Os cabelos muito claros e luminosos davam a impressão de recolher a eletricidade atmosférica.
- Lá está Gudrun! - ouviu-se a voz de Hermione, flutuando distintamente sobre a água. - Quer ir falar-lhe? Não se importa?
Gerald voltou a cabeça e descobriu a jovem à beira do lago, olhando para ele. Dirigiu o barco para lá, como se tivesse sido atraído, sem ao menos pensar no que fazia. No seu mundo consciente, Gudrun ainda não existia, mas era do jeito de Hermione desfazer as diferenças sociais, pelo menos na aparência.
- Como está, Gudrun? - disse Hermione em sua voz modulada e tratando-a pelo nome de batismo, o que julgava mais elegante. - O que está fazendo aí?
- Como vai, Hermione? Estou desenhando.
- Ah! - o barco continuava a aproximar-se ate tocar na margem. - Posso ver? Sempre gostei dos seus trabalhos.
Não valeria a pena opor-se a um desejo de Hermione.
- Pois não... - respondeu a artista um pouco constrangida. Sempre detestara mostrar trabalhos incompletos. - É coisa de pouco interesse...
- Acha? Deixe-me ver, por favor.
Gudrun levantou o álbum dos desenhos e Gerald estendeu o braço para o receber. Ao fazer isso lembrou-se das últimas palavras que ela lhe dissera e do rosto da jovem levantado para ele, quando estava montado a cavalo. Sentiu um estremecimento de orgulho, sentia que atraía aquela mulher. Havia entre os dois uma permuta de sentimentos bastante forte, embora, por enquanto, alheia à consciência de ambos.
Como num encantamento, Gudrun via surgir o corpo de Gerald, qual labareda dó pântano, dirigindo-se para ela, com o braço estendido qual a haste de uma flor. A percepção aguda e voluptuosa que sentiu fez com que o sangue arrefecesse nas veias e o espírito se tornasse obscuro e inconsciente. Gerald balançava-se naturalmente na água como o tremular de uma chama. Voltando-se para observar o barco, notou que este sé afastara um pouco. Tomou o remo para o trazer de novo à terra. E a visão daquele homem remando lentamente, sobre a água parada e leve, dava-lhe a perturbação deliciosa de uma vertigem.
- Foram aquelas que desenhou? -perguntou Hermione, examinando atentamente as plantas da margem e comparando-as com o esboço de Gudrun. Ela olhou na direção apontada e confirmou:
- Aquelas mesmas - respondeu distraidamente, sem prestar a menor atenção à pergunta.
- Deixe-me ver - acudiu Gerald, inclinando-se para segurar o caderno. Mas Hermione não fez caso do pedido; que tinha o rapaz de se intrometer, antes que ela o apreciasse à vontade? Ele, porém, cuja vontade era tão persistente quanto a dela, continuou de braço estendido ate conseguir tocar no álbum. Hermione sobressaltou-se com aquela teimosia; largou o álbum antes de Gerald o ter segurado e o resultado é que ele caiu na borda do barco e escorregou para o lago.
- Ora! Que desastrado! - exclamou Hermione em tom de triunfo maldoso. - Veja se o pode salvar, Gerald!
As últimas palavras foram pronunciadas com ansiedade zombeteira, o que encheu o outro de raiva contra ela. Inclinou-se para a água, demasiadamente estendido fora do barco - posição ridícula de que ele próprio se compenetrou.
- Não vale a pena - dizia Gudrun, em voz alta. Gerald estirou-se ainda mais, e o barquinho adernou bruscamente. Hermione ficou imperturbável. O rapaz alcançou, finalmente, o álbum, e levantou-o. gotejante.
- Sinto! Sinto muito! - repetia Hermione. - Acho que a culpa foi minha.
- Não tem importância, palavra de honra. Não faz mal nenhum - respondia Gudrun, com o rosto vermelho. Depois, estendeu a mão, impaciente, para recuperar o livro molhado e pôr fim àquela cena. Gerald atendeu-a, um pouco desconcertado.
- Sinto muito - tornou a dizer Hermione. Gudrun e Gerald já estavam desesperados. - Acha que tem remédio?
- Remédio, como? - repetiu a outra, ironicamente.
- Os desenhos podem ser salvos?
Houve um momento de silêncio, durante o qual a artista deu claramente a entender que não apreciava a insistência de Hermione.
- Os desenhos estão tão bons como antes - respondeu Gudrun. - Preciso deles apenas como documentação.
- Permite que lhe ofereça um álbum novo? Dê-me esse prazer. Isso aborreceu-me tanto. Sinto-me a única culpada.
- Pelo que pude observar - assegurou Gudrun - a culpa não foi sua. Se alguém a teve, foi o Sr. Crich. Mas isso não tem importância, é tolice falarmos mais no assunto.
Enquanto ela recusava a oferta de Hermione, Gerald observava-a atentamente. Havia nela uma vontade fria. Examinava-a com tal profundidade que chegava quase à clarividência. Via naquela criatura um espírito perigoso, hostil, incapaz de se deixar abater ou diminuir. E, além disso, era perfeita e completa nas suas atitudes.
- Ainda bem que o prejuízo não foi maior - disse ele.
Gudrun mirou-o com os seus belos olhos azuis e achou-se inteiramente integrada naquela alma; e assim respondeu - agora que se dirigia a ele - com uma voz que soou cheia de intimidade, como se fosse uma carícia:
- É verdade, afinal de contas, não houve prejuízo. Estabelecia-se um laço entre os dois, e o olhar e o tom das palavras estreitaram ainda mais. Ele sentia o quanto tinham de iguais, como se entre um e outro se houvesse estabelecido uma espécie de maçonaria. Daí por diante - Gudrun bem o sabia - teria domínio sobre aquele homem. Em qualquer lugar em que se encontrassem, estariam secretamente associados. No par, seria ele o mais fraco. A alma dela exultava.
- Adeus! Ainda bem que me perdoou. Ade-e-e-eus!
Hermione despedia-se num grito cantado, acenando com a mão. Gerald, automaticamente, pegou o remo e fez-se ao largo. Mas continuou a olhar para Gudrun, com uma admiração que lhe fazia sorrir e cintilar os olhos. A moça, na margem, agitou por momentos o álbum molhado. Depois, voltou-se, esquecida do barco que se afastava. Gerald, porém, não cessava de olhar para ela enquanto remava, indiferente a tudo o mais que fazia.
- Não estamos nos afastando muito para a esquerda? - perguntou Hermione que se sentara, distraída, debaixo do toldo colorido.
Gerald olhou, sem responder, para os remos que mergulhavam na água e espelhavam ao sol.
- Creio que estamos indo bem - respondeu ele, por fim, de bom humor, recomeçando a remar sem perceber. Hermione odiou-o pelo seu ar de felicidade e pelo pouco caso que fazia dela. Sentia-se aniquilada, incapaz de recuperar a sua importância.
Capítulo XI
Uma ilhota
Entretanto, Úrsula desviara-se de Willey Water, seguindo o curso do riacho cintilante. Cantos de calhandras enchiam o ar naquela tarde. Pela encosta brilhante da colina ardia um fogo rasteiro, sem chamas. À beira da água os miosótis floriam, em tudo se notava o esplendor e a alegria da vida.
Abstrata, errava por ali, contemplando os arroios. O seu desejo era atingir a lagoa do moinho, cuja casa estava deserta: viviam na casa apenas um trabalhador e a mulher deste. Úrsula atravessou o pátio vazio e um jardim abandonado e subiu a encosta pelo lado da comporta. Quando chegou em cima e pôde descobrir a superfície da água imóvel, percebeu que, à beira da água, havia um homem consertando um barco de fundo chato, serrando e martelando. Era Birkin.
Úrsula deteve-se a observá-lo. Ignorante da presença de mais alguém, ele aferrava-se ao trabalho, ativamente, esforçadamente, como um operário. A jovem sentiu que deveria afastar-se. Rupert não desejaria falar-lhe, ocupado como estava. Mas na verdade ela não sentia vontade de partir, de modo que foi caminhando pela margem ate que ele a visse.
O que, aliás, não demorou muito. Quando a avistou, Rupert largou as ferramentas e veio ao encontro da professora, dizendo:
- Como vai? Estou vedando melhor o barquinho. Será que vai ficar bom? Acho que você poderia dar-me uma opinião autorizada.
Ela inclinou-se e examinou os remendos.
- Bem na verdade, não entendo nada de carpintaria. Tenho a impressão de que está bem assim.
- Espero que ele não afunde. Quer ajudar-me a lançá-lo à água?
Ajudando-se mutuamente, eles conseguiram virar a canoa, que era pesada, e pô-la a flutuar.
- Agora - disse ele - vou experimentar e você observa o que vai acontecer. Se der bom resultado, virei buscá-la para irmos à ilhota.
- Combinado - concordou Úrsula, observando a manobra com a maior atenção.
- A lagoa era extensa; perfeitamente imóvel e com o tom sombrio das águas profundas. Havia duas ilhotas no meio com arbustos e árvores. Birkin afastou-se e fez uma volta bastante desajeitada. Felizmente a canoa descaiu de modo que ele pôde agarrar um galho de salgueiro e desse modo aproximar-se da ilha.
- A mata está cerrada - declarou, olhando para o interior. - Mas é muito bonita. Vou buscá-la. O barco está fazendo um pouquinho de água. - Pouco tempo depois ele voltou para junto de Úrsula, que entrou na canoa molhada.
- Vai conduzir-nos direitinho - disse ele. E manobrou de novo em direção à ilha.
Desembarcaram debaixo de um salgueiro. A moça atemorizou-se com a vegetação inóspita que se lhe deparou. Cheirava à plantas deterioradas. Birkin, porém, tomou a dianteira.
- Vou ceifar tudo isto - explicou. - E ficará uma coisa romântica, do gênero Paulo e Virgínia.
- Poderemos fazer adoráveis piqueniques à Watteau - exclamou Úrsula, entusiasmada.
Birkin tomou uma expressão melancólica.
- Não, aqui não quero piqueniques à Watteau.
- Só quer a sua Virgínia. Sorriu com amargura e acrescentou: - Não, nem sequer a desejo.
Úrsula reparou melhor no amigo, que não via desde a estada em Breadalby. Ele mostrava-se mais magro, com as faces cavadas e um ar espectral.
- Esteve doente, não é verdade? - perguntou-lhe, um tanto penalizada.
- Estive - confirmou Birkin, secamente.
Haviam-se sentado debaixo do salgueiro, e daquele refúgio da ilhota contemplavam a lagoa.
- Ficou preocupado? - indagou a companheira.
- Com quê? - perguntou ele, voltando-se para Úrsula. Havia naquele homem algo de inumano e de imoderado que a perturbava e a punha, às vezes, fora de si.
- De estar doente. De estar muito doente.
- Não é muito agradável. Mas ter ou não ter medo da morte, não sei... Tudo depende da disposição de cada um.
- Mas, pelo menos, não sente vergonha, não é? Sempre achei que o fato de estarmos doentes nos deveria envergonhar; doença é coisa tão humilhante!
Rupert refletiu durante alguns instantes.
- É possível - disse - embora saibamos que a vida, na sua origem, não é realmente honesta. É nisso que está a humilhação. Não me parece, no fim de contas, que doença seja coisa muito importante. Adoecemos porque não vivemos como deveríamos viver. É o fracasso da vida que produz a doença e a humilhação.
- Considera-se fracassado? - inquiriu a moça em tom de brincadeira.
- Claro que sim. Nunca fui um vitorioso durante toda a minha existência. Sempre tive a impressão de bater com o nariz na porta.
Úrsula pôs-se a rir. Estava um pouco assustada e, quando isso acontecia, costumava rir e fingir-se muito à vontade.
- Pobre nariz! - exclamou, olhando-o bem no rosto.
- Não admira que seja feio - retrucou Birkin.
Úrsula calou-se durante algum tempo, lutando contra a sua própria decepção. Era instintivo o costume que tinha de enganar a si mesma.
- Quanto a mim, sou feliz. Acho a vida agradabilíssima.
- Talvez - atalhou ele, com relativa indiferença.
Ao colocar a mão no bolso do casaco, Úrsula encontrou um pedaço de papel desses de embrulhar chocolate. Retirou-o e começou a fazer um barquinho. Rupert observava-a distraidamente. Havia algo de estranho nos movimentos que ela fazia com as pontas dos dedos, inconscientemente. Ele se sentiu comovido.
- Divirto-me com as coisas. E você?
- Eu fico furioso por não poder atingir o ângulo de mim mesmo. Sei que me confundo, que não triunfo em coisa alguma. Não sei nunca o que devo fazer... se é que devo fazer alguma coisa.
- Para que trabalhar? Isso é tão plebeu! Acho melhor ser-se exclusivamente nobre e nada fazer senão existir; ser como uma flor que se movesse...
- Concordo plenamente - tornou ele - se a flor desabrochar. Quanto a mim, jamais conseguirei que desabroche. Ou se estiola ainda em botão, ou apodrece ou morre de sede. Maldita flor, que não chega sequer a despontar! Há sempre uma dificuldade qualquer pelo caminho.
Úrsula tornou a rir. Ele estava tão nervoso, tão exasperado! Ela, por sua vez, ansiosa e preocupada. Que resolução tomar? Teria de fazer alguma coisa.
Calaram-se por momentos, durante os quais ela sentiu vontade de chorar. Pegando outro pedacinho de papel, fez um novo barco. Por fim, exclamou:
- Como é possível não haver floração nem dignidade na vida humana?
- Atualmente ate as ideias desapareceram. A própria humanidade seca ou apodrece. Há miríades de seres pendentes dos ramos, com aparência rósea e tentadora, como as moças saudáveis que vemos por aí. Mas são maçãs de Sodoma, na realidade; frutos do Mar Morto, frutos da amargura. Não é possível que signifiquem outra coisa. O interior está cheio de cinza ácida e corrompida.
- No entanto, há gente capaz... - insistiu Úrsula.
- É possível. Mas a humanidade não passa de uma árvore que secou, coberta de belas e brilhantes frutas secas, que somos nós...
Úrsula não pôde deixar de se insurgir contra aquele discurso, ao mesmo tempo categórico e pitoresco. Desejava, contudo, ouvir o resto.
- Mas se assim é, como se explica? - perguntou com ar hostil. Excitavam-se um ao outra no entusiasmo da contradição.
- Por que é que os homens são invólucros de poeira amarga? É porque não tombam da árvore quando estão maduros. Ficam dependurados e aquela posição já não é mais adequada. Finalmente, os vermes o invadem e eles apodrecem.
Houve um grande silêncio. A voz de Birkin tornara-se ardente e bastante sarcástica. Úrsula estava perturbada, desnorteada. De tudo ambos se esqueciam, exceto da própria paixão.
- Admitindo que todos procedem mal... você é, por acaso, exceção à regra? - perguntou ela. - Em que você é melhor do que os outros?
- Eu? Eu não sou melhor - declarou Rupert.
- Mas reconheço os fatos e é nisso que repousa a única superioridade que possuo. Detesto o que sou exteriormente. Odeio-me como ser humano. A humanidade é um imenso agregado de mentiras, mas uma grande mentira vale menos do que uma pequena verdade. A humanidade vale menos, muito menos do que o indivíduo, pois este, às vezes, é suscetível de verdade e aquela é um poço de convenções. E ainda dizem que o amor é coisa sublime! Persistem em afirmá-lo, os mentirosos, e veja o que fazem! Observe os milhões de pessoas que repetem constantemente que o amor é a maior coisa do mundo, a caridade também... e reparem como procedem. Pelos seus atos os conhecemos, cambada de intrujões e de covardes, que não se atrevem a tomar a responsabilidade das suas ações, e muito menos das palavras que proferem.
- Mas - interrompeu a professora com ar de tristeza - isso não desmente a tese de ser o amor a coisa mais importante da vida. O que eles fazem não altera ia verdade do que apregoam.
- Altera, sim, pois se o que dissessem fosse verdadeiro, não poderiam agir de maneira contrária. Mas conservam-se na mentira e, por fim, tudo fracassa. É errônea a afirmação de que o amor seja tudo para a humanidade. Poderíamos dizer, por exemplo, que o ódio também é tudo na vida, visto que o oposto de qualquer coisa equilibra a sua afirmação. As pessoas precisam é de ódio, ódio e nada mais. E em nome da justiça e do amor, não fazem senão espalhá-lo! Todas elas destilam nitroglicerina tudo por causa do amor. E a mentira mata. Se é de ódio que nós necessitamos, deixem-nos tê-lo, mais a morte, o crime, a tortura, a destruição violenta; deem-nos tudo isto, mas não em nome do amor! Detesto a humanidade, gostaria que fosse toda destruída. Não haveria grande prejuízo se a humanidade inteira perecesse amanhã. A realidade permaneceria intacta. Seria ate melhor. A verdadeira árvore da vida ficaria desembaraçada da colheita, mais pesada e pior que as maçãs de Sodoma, aquele fardo insuportável de miríades de simulacros humanos, peso infinito de mentiras letais.
- Com que, então, você deseja o aniquilamento da espécie humana? - perguntou Úrsula.
- Exatamente.
- E quer um mundo vazio?
- Sim. Você mesma não acha uma ideia deliciosa imaginar a Terra desprovida de gente? Tudo não passar de uma grande extensão de erva e uma lebre sentada em cima?
A sinceridade divertida daquela voz obrigou a professora a considerar sua própria situação. Não havia dúvida de que era uma perspectiva tentadora: um mundo limpo, encantador, deserto de seres humanos. O coração dela hesitava e exultava. Birkin, no entanto, não a satisfizera inteiramente com as suas teorias.
- Mas - objetou Úrsula - visto que você também teria morrido, que vantagem lhe adviria disto?
- Morreria contente, ao saber que a Terra ia ser depurada de todos os seus habitantes. Belo pensamento, verdadeiramente libertador! E depois, seria preciso não criar outra humanidade ignóbil para corromper o universo outra vez.
- Não - resumiu Úrsula. - Não haveria mais nada.
- Como? Mais nada? Apenas porque a humanidade foi destruída? Não tenha tal presunção. Ainda haveria muita coisa.
- Como, se morreriam todos?
- Supõe que a criação depende do homem? Não é verdade. E os pássaros? E as árvores? Prefiro imaginar um nascer do dia, na Terra, sem qualquer ente humano. O homem foi um equívoco, é preciso que desapareça. Existem as lebres, as serpentes, os seres invisíveis, anjos presentes em todos os lugares, quando a abjeta humanidade os não impede, e os demônios bons e puros. É admirável!
Aquilo que ele dizia encantava Úrsula, encantava-a como uma fantasia deliciosa. Apenas uma fantasia, é claro. Ela própria sabia o que era a humanidade, a odiosa humanidade de agora; não seria fácil vê-la desaparecer de repente. Havia ainda um longo caminho a percorrer, longo e doloroso. Conhecia tudo isso muito bem, no seu espírito sutil, inteligente e feminino.
- Se ao menos se expulsasse o homem da Terra, a criação recomeçaria maravilhosamente, de um ponto de partida não humano. O homem foi um dos erros da criação, assim como o ictiossauro. Se desaparecesse também, como seriam agradáveis os dias deste mundo! Puros como se viessem diretamente das mãos de Deus.
- Contudo - objetou ela -o homem nunca desaparecerá. - Falava com absoluta certeza dos horrores daquela permanência. - E o mundo acabar-se-ia com ele.
- Ah, não - acudiu Birkin. - Não é assim. Creio nos anjos orgulhosos e nos demônios que são os nossos predecessores. Também os ictiossauros não o eram: rastejavam como nós. Veja, agora, as flores dos sabugueiros e as campânulas: provam a existência da criação pura; e a borboleta? Mas a humanidade nunca ultrapassou o estágio de lagarta; apodrece na crisálida e jamais adquire as asas. É uma anticriação, como os macacos.
Enquanto Birkin falava, Úrsula não tirava os olhos dele, em que pareceu vibrar uma espécie de furor impaciente, embora parecesse divertido com as próprias teorias, tolerante, até. Mas era daquela tolerância que Úrsula desconfiava. Notara bem, que, apesar de tudo, Rupert tentava salvar o mundo. Isso trouxe-lhe um certo conforto à alma e contudo, encheu-a de ódio e de desdém pelo homem. Queria-o só para si, detestava o papel de Salvador Mundi que se arrogava. Era esse aspecto difuso e generalizador o que Úrsula mais abominava. Birkin teria procedido da mesma maneira, dito as mesmas palavras, ter-se-ia aberto completamente a quem quer que fosse, a este ou aquele que o tomasse por confidente. Achava aquela atitude intolerável, considerando como que uma forma insidiosa de prostituição. De maneira que lhe disse:
- Crê, ao menos, no amor individual, já que não acredita no amor universal?
- Não creio em amor algum, quero dizer, não creio tanto quanto creio na dor e no ódio. O amor é uma emoção como outra qualquer e tudo vai bem quando a sentimos. Mas não vejo como pode transformar-se em coisa absoluta. Faz parte apenas das relações humanas, e nada mais. Nunca se encontra fora dessas relações humanas. E por que o haveríamos de sentir mais intensamente do que sentimos tristeza e alegria? Não concebo tal hipótese. O amor não é um desideratum, é uma emoção que se pode ou não experimentar, de acordo com as circunstâncias.
- Então, por que motivo se preocupa com os outros - perguntou ela - se não crê no amor? Que lhe interessa a humanidade?
- Por quê? Porque não consigo evitar.
- E por que ama o seu semelhante? - acrescentou Úrsula.
A insistência irritou-o. Mas replicou:
- Se amo, isso faz parte do meu quadro mórbido.
- É uma doença de que você pão deseja ficar curado - comentou a moça, friamente, com ar zombeteiro.
Rupert calou-se e teve a impressão de que ela queria magoar.
- Se não acredita no amor, então em que é que crê? - prosseguiu a professora, sempre irônica. - Apenas no fim do mundo e na vegetação?
Birkin começava a sentir-se tolo. - Creio nos seres invisíveis.
- E em nada mais? Não confia nas coisas visíveis à exceção das plantas e das aves? O mundo da sua concepção é um espetáculo muito insípido.
- Talvez - respondeu o inspetor, cheio de superioridade e de frieza, agora que se considerava ofendido. Tomara uma atitude afetada, aumentando a distância entre ambos.
Úrsula achou-o antipático, mas sentiu que perdera qualquer coisa. Observou-o sentado na margem da lagoa, e descobriu-lhe um ar de rigidez pretensiosa e dogmática, verdadeiramente detestável. E, no entanto, o aspecto daquele homem era fino e atraente, inspirando uma sensação de autêntica liberdade, que se lhe irradiava das sobrancelhas, do queixo, de todo o físico, algo de muito vivo, em qualquer parte do seu ser, apesar da aparência doentia.
Aquela diversidade de sentimentos que Rupert despertava em Úrsula fazia mover nas entranhas desta uma aversão não destituída de certo encantamento. Era, por um lado, aquela maravilhosa e apreciada exuberância de vida, qualidade primacial de um homem para torná-lo atraente; por outro lado, aquela ridícula e mesquinha pretensão de salvador do mundo e o ar doutoral e pedante de professor do tipo empertigado.
Ele olhou para ela e viu-lhe o rosto estranhamente emocionado, como se de dentro para fora escapasse um fogo de avassaladora ternura. A alma de Birkin impressionou-se, deslumbrada. A jovem deixava-se devorar nas chamas do seu próprio incêndio interior. Levado por aquela sedução, sinceramente atraído, Rupert aproximou-se da companheira que estava sentada como uma rainha lendária, quase sobrenatural na opulência do seu sorriso esplendoroso.
- A verdade - disse ele, integrando-se rapidamente à situação - é que detestamos o amor porque vulgarizamos demasiadamente a palavra. Devia ser proscrita, proibida de ser pronunciada durante muitos anos, ate que descobríssemos outra nova e melhor.
Houve entre os dois uma centelha de entendimento recíproco.
- Mas o significado seria sempre o mesmo - observou ela. Ah, meu Deus! Não! Que signifique mais alguma coisa, e que o velho sentido da palavra desapareça...
- Será sempre amor - insistiu a jovem. Nos seus olhos brilhou um clarão dourado, perverso, singular.
Ele hesitava, confuso, receoso de se aproximar demais. Murmurou:
- Não, nunca mais se exprimirá pela voz. Não há necessidade de pronunciar a palavra.
- Cabe a você extrair, no momento propício, do Tabernáculo. - e calou-se, sorrindo.
Tornaram a fitar-se. Úrsula ergueu-se, de súbito, voltou-lhe as costas e começou a andar. Ele também se levantou, vagarosamente, e foi ate a beira da ilhota, onde, agachando-se, ficou brincando com a água, distraidamente. Colheu uma margarida e fê-la mergulhar; a haste funcionou como quilha e a flor flutuou como uma açucena aquática, desabrochada para o céu. E foi revoluteando, numa lenta dança de derviche, ate desaparecer.
Rupert lançou então outra flor à água, e depois outra e ficou a vê-las, com os olhos brilhantes, debruçado na lagoa. Úrsula voltou-se e olhou também. Apossava-se dela um sentimento estranho, como se estivesse presenciando algo de novo. Uma espécie de autodomínio chamou-a à realidade, sem que pudesse compreender bem o que estava sentindo. Via apenas as corolas cintilantes das margaridas desaparecerem vagarosamente naquela viagem através da água lustrosa e sombria. A flotilha de minúsculos barquinhos desaparecia como pontos brancos e luminosos, perdidos na distância.
- Vamos para a terra a fim de as acompanhar - disse ela, já assustada, sentindo-se uma prisioneira ali na ilha durante tanto tempo.
Entraram no barco. Úrsula sentia-se contente pelo regresso. Seguiu, ao longo da margem, até a comporta do reservatório. As florezinhas haviam-se espalhado por toda a lagoa e eram agora pontinhos radiantes de exaltação, aqui e ali. Por que motivo a comoviam tanto, de uma maneira tão intensa e tão mística?
- Repare - disse o inspetor - o seu barquinho de papel roxo está escoltando as flores; parece um comboio de jangadas.
Algumas margaridas vinham-se aproximando lentamente, hesitantes, simulando uma dança complicada na superfície das águas escuras Quanto mais perto estavam, mais a sua brancura comovia o coração de Úrsula, quase ao ponto de fazê-la chorar.
- Por que serão assim tão adoráveis? Por que as acho amorosas?
- Lindas flores - murmurou ele, sentindo-se tocado pela emoção daquela voz. Pouco depois acrescentou: - Você sabe que a margarida é uma flor composta, dando a impressão de uma só? Os botânicos a colocam no mais alto grau da escala do desenvolvimento, não?
- Sim, é composta - respondeu Úrsula - isto é, acho que sim. - Úrsula tinha o hábito de colocar em dúvida até o que ela sabia muito bem.
- Diga-me: a margarida é como uma democracia em ponto pequeno?
- Não, não. Ela não é democrática.
- Pois bem. É então a turba áurea do proletariado, cercada por uma pomposa guarda de ricaços indolentes.
- Que coisa odiosa! Ordens sociais!
- É verdade. Falávamos de uma flor. Deixemo-la continuar em paz.
- Sim. Deixá-la ser, por esta vez, uma espécie de concorrente ignorado. Se é que, para você, há alguma coisa ignorada... - acrescentou ela com ar sarcástico.
Conservaram-se distantes um do outro, imóveis e esquecidos. Apesar de meio estonteados, não percebiam a tonteira o insignificante conflito surgido entre eles dilacerava-lhes a consciência e deixava-os frente à frente, como duas forças despersonalizadas.
Rupert percebeu a situação e tentou dizer qualquer coisa, propondo outro passeio.
- Sabe que tenho acomodações no moinho? Vamos até lá para conversar mais um pouco?
- Ah, sim? - respondeu ela, fingindo não perceber aquela proposta para estreitarem o conhecimento.
Então, Birkin reconsiderou, e tornou-se imediatamente distante, como era seu costume.
- Se me convencer - prosseguiu - de que posso viver sozinho, renunciarei por completo ao trabalho. Não creio na humanidade para pretender fazer parte dela, pouco me interessam os ideais da sociedade em que vivo, detesto a moral moribunda desses tempos, de modo que trabalhar como educador não passa de uma ilusão. Direi adeus a tudo isso, assim que estiver livre... amanhã talvez... e serei apenas eu.
- Tem o suficiente para viver? - indagou Úrsula.
- Ganho cerca de quatrocentas libras por ano. Isso garante o meu conforto.
Houve um silêncio.
- E quanto a Hermione?
- Tudo acabou, finalmente. Puro fracasso, e claro que nunca poderia ter sido outra coisa.
- Ainda se falam?
- Seria difícil passarmos por estranhos, não lhe parece?
Houve outra pausa, mais demorada.
- Não será um rompimento passageiro? - perguntou Úrsula, finalmente.
- Acho que não. Você terá ocasião de constatar. Ficaram mais algum tempo sem falar Birkin refletia.
- Devemos repelir tudo, tudo, para podermos alcançar aquilo de que mais precisamos - sentenciou ele.
- Aquilo quê? - perguntou a jovem, com ar de desafio.
- Não sei... A própria liberdade.
Úrsula teria preferido que ele respondesse: o amor.
Ouviu-se, mais abaixo, cães ladrando raivosamente. Rupert ficou preocupado. Ela, contudo, nada percebia: apenas reparou que o companheiro parecia confuso.
- Acho - disse Birkin em voz baixa - que é Hermione chegando com Gerald Crich. Ela está interessada em ver os quartos, antes de serem mobiliados.
- Ah! Ela vai mobiliar a sua casa?
- Talvez. Isso tem importância?
- Oh, não! Creio que não. Eu, pessoalmente, não a posso suportar. Acho-a a personificação da mentira se me permite, já que me falou tanto na mentira. - Meditou durante um momento e depois explodiu: - Importo-me, sim. Importo-me que ela se meta nesse assunto da sua mobília. Importo-me bastante. Importo-me que você continue agarrado a ela!
Rupert ficou silencioso, com a testa franzida.
- Não preciso que ela me venha mobiliar a casa nem desejo ficar agarrado nela. Apenas, não vejo necessidade de ser grosseiro. Vamos ao encontro deles!
- Não estou com vontade - respondeu a moça indiferente e indecisa.
- Não está com vontade? Tolice! Venha comigo ver a casa.
Capítulo XII
Decoração
Rupert Birkin seguiu pela margem e Úrsula acompanhou-o, contrariada. Mas, se não fosse com ele, também teria ficado aborrecida.
- Conhecemo-nos muito bem, você e eu - disse Rupert. A moça não respondeu.
Na cozinha escura e ampla do moinho abandonado, a senhoria conversava com Hermione e com Gerald; tanto este, de branco, como a sua companheira, vestida de seda azulada e brilhante, punham manchas luminosas na obscuridade do aposento; ao mesmo tempo, em gaiolas penduradas na parede, uns doze canários cantavam com quanta força tinham. As gaiolas haviam sido colocadas em volta de uma janelinha quadrangular, na parte de trás, através da qual entravam raios de luz filtrados pelas folhas verdes de uma árvore. A voz da Senhora Salmon sobrepunha-se, muito aguda, à chilreada das aves, que se tornava, por sua vez, desenfreada e triunfante. Mas a da mulher redobrava de vigor e os pássaros treplicavam com maior animação.
- Cá está o Rupert! - exclamou Gerald no meio daquela espantosa confusão. Como tinha os ouvidos delicados, sentia-se aflitíssimo.
- Oh, que pássaros! Não deixam ninguém falar - observou a senhoria, irritada. - Vou cobri-los com um pano.
E precipitou-se em busca de qualquer coisa, pano de pó, avental, toalha ou guardanapo, com que os cobrisse.
- Agora, calém-se e deixem cada um dizer o que tem a dizer! - gritou ela, ainda mais esganiçada.
Os outros esperavam. Uma vez cobertas, as gaiolas tomaram um estranho ar funéreo. Mas, por debaixo das toalhas ainda escapavam pios e murmúrios de desafio.
- Vão ficar quietos - explicou a mulherzinha, a fim de reanimar os visitantes. - Não demora muito e adormecem.
- Sim... - disse Hermione com amabilidade.
- Com certeza - corroborou Gerald. - Vão dormir por efeito da noite artificial.
- São fáceis de iludir! - atalhou Úrsula.
- Ora! Não conhece a história de Fabre, que, em pequeno, pegou uma galinha e escondeu-lhe a cabeça debaixo da asa para que ela adormecesse depressa?
- E foi isso, Gerald, que lhe despertou a vocação de naturalista? - perguntou Birkin.
- Provavelmente - respondeu o outro.
No entanto, Úrsula espreitava, levantando uma das toalhas, a gaiola; e descobriu um dos canários, no canto do poleiro, preparando-se para dormir.
- Que ingenuidade! - exclamou ela. - Pensa mesmo que é noite. Que absurdo! Como se pode ter consideração por um bicho que se deixa enganar tão facilmente?
- Não há dúvida - concordou Hermione, com sua voz musical, pondo-se também a observar o pássaro. Colocou a mão no braço de Úrsula e riu entredentes. - Como isso é engraçado! É o mesmo que um marido estúpido! Depois - e ainda segurando o braço da professora - recuou um pouco e disse com a sua entonação de sempre:
- Qual foi o acaso que a trouxe aqui, Úrsula? Também encontramos a Gudrun.
- Vim passear na lagoa e encontrei o Sr. Birkin.
- São os domínios dos Brangwens, não é verdade?
- Assim pensei... Corri para aqui, para refugiar-me, e então os avistei, no lago, navegando...
- Ah, viu-nos?
As pálpebras de Hermione tremeram, num movimento involuntário, embora conservasse o seu ar desembaraçado e voluntarioso.
- Eu ia despedir-me - elucidou Úrsula. - Mas o Sr. Birkin insistiu em mostrar-me os quartos que alugou. Deve ser delicioso viver aqui.
- É verdade - assentiu Hermione, distraidamente. E afastou-se da professora, como se se esquecesse da sua existência. Voltando-se para o inspetor, disse-lhe em tom diferente, quase afetuoso:
- Como se sente agora, Rupert?
- Muito bem.
- Estará confortável aqui? - Hermione olhou-o com êxtase, de maneira penetrante e indiscreta.
- O mais confortavelmente possível - respondeu ele. Houve um demorado silêncio, enquanto ela o contemplava, erguendo as pálpebras pesadas e sonolentas. Por fim, inquiriu:
- Espera ser feliz nesta casa?
- Tenho certeza de que sim.
- Farei por ele tudo o que puder - disse a senhoria. - E meu marido também, de forma que tenho esperança de que este senhor se sinta bem instalado.
Hermione voltou-se para a mulher e examinou-a.
- Agradeço-lhe muito - foi a sua única frase. Depois alheou-se por completo dela. Retomou a atitude do princípio e, levantando o rosto para Birkin, falou exclusivamente com ele:
- Mediu os quartos?
- Não, Hermione. Estive consertando a canoa.
- Vamos medir, então? - propôs, muito tranquila, embora um tanto hesitante.
- Tem uma fita métrica Senhora Salmon? - perguntou ele, voltando-se para a senhoria.
- Sim, senhor, acho que tenho uma - respondeu a mulher, começando logo a procurar dentro de um cesto. - Não tenho outra, mas esta deve servir.
Embora a fita fosse apresentada a Birkin, foi Hermione quem a recebeu, dizendo:
- Muito obrigada. Vai servir muito bem. Obrigada, Senhora Salmon. - Dirigindo-se a Birkin, sugeriu-lhe, satisfeita: - Vamos lá, Rupert?
- E os outros? Vão-se aborrecer - disse o inspetor, com alguma relutância.
- Vocês se aborrecem? - perguntou Hermione vagamente a Úrsula e Gerald.
- De modo algum - foi a esperada resposta.
- Que quarto veremos primeiro? - perguntou Hermione, voltando-se novamente para Birkin, com a mesma expressão alegre, agora que o ia levar na sua companhia.
- Qualquer um - respondeu Rupert.
- Querem que prepare o chá? - perguntou a senhoria, desejosa de prestar algum serviço.
- Seria ótimo - respondeu Hermione, chegando-se para ela em um movimento de intimidade que parecia envolvê-la e atraí-la, deixando os outros completamente à margem. - Onde poderemos tomá-lo?
- Aqui mesmo, ou lá fora, no relvado.
- Onde tomaremos o chá? - cantou a voz musical de Hermione, dirigindo-se às pessoas que a cercavam.
Birkin deu a sua opinião:
-Na margem da lagoa. Nós carregaremos tudo, Senhora Salmon. Basta que a senhora nos faça o favor de preparar as coisas.
- Pois não - respondeu a mulher, satisfeita.
Todos se encaminharam para o corredor e entraram no quarto fronteiro, que estava vazio, mas limpo e batido de sol. Havia uma janela dando para o jardim, jardim esse bastante emaranhado.
- Aqui é a sala de jantar - explicou Hermione. - Vamos medi-la. Abaixe-se, Rupert.
- Posso ajudar? - perguntou Gerald, segurando a outra extremidade da fita métrica.
- Não é preciso, obrigada - respondeu Hermione, inclinando-se para o chão, mesmo vestida de seda cintilante. A verdade é que sentia prazer em se encarregar daqueles trabalhos e em tomar a direção dos mesmos, na companhia de Birkin, que lhe obedecia, submisso. Úrsula e Gerald ficaram observando. Constituía uma das peculiaridades de Hermione essa de, em cada ocasião, destacar uma pessoa com a sua familiaridade, obrigando os outros ao papel de espectadores. Isso sempre lhe dava uma pequena sensação de triunfo.
Mediram a sala de jantar, discutiram, e Hermione decidiu quais deviam ser os tapetes. Ser contrariada, em tais ocasiões, punha a sempre fora de si. Birkin resolveu deixá-la fazer o que quisesse.
Atravessando o corredor, foram para o quarto da frente, um pouco menor do que o outro.
- Este é o escritório - decretou Hermione. - Rupert, tenho um tapete que gostaria que viesse para cá.
- Como é ele? - perguntou Birkin.
- Você ainda não o viu. É, na maior parte, de um tom rosa avermelhado, depois azul, azul mais forte, azul-metálico e ainda azul-escuro. Tenho a impressão de que vai gostar.
- Deve ser bonito. De que estilo é? Oriental? Felpudo?
- É persa. Feito de lã de camelo, muito sedosa. Creio que é em estilo Bérgamo. Tem quatro por dois. Acha que serve?
- Sem dúvida. Mas por que me oferece um tapete tão valioso? Posso arranjar-me perfeitamente com o que tenho há tanto tempo, o turco, de Oxford.
- Aceita?
- Quanto lhe custou?
Hermione fitou-o e declarou:
- Não me lembro. Não foi caro.
Rupert olhou para ela sem mudar de expressão.
- Não posso aceitar, Hermione.
- Deixe-me presentear os seus aposentos - insistiu Hermione, aproximando-se do inspetor e colocando-lhe de leve a mão no braço, suplicante. - Não me faça essa desfeita.
- Bem sabe que não gosto de receber presentes - disse Birkin, sem muita convicção.
- Não pretendo oferecer-lhe presentes - respondeu ela, irritada - Mas, quanto ao tapete está combinado, não?
- Está bem - anuiu Rupert, dando-se por vencido. Era o triunfo de Hermione.
Subiram para o andar superior. Havia aí dois quartos correspondentes ao piso inferior. Um deles estava semimobiliado, notando-se que Birkin, evidentemente, dormira lá. Hermione inspecionou-o com a maior atenção, detendo-se em cada pormenor, sorvendo o testemunho da presença masculina em todas aquelas coisas inanimadas. Tateou a cama e examinou a roupa.
- Está bem instalado? - perguntou ela, apalpando os travesseiros.
- Muitíssimo bem - respondeu Birkin com ar indiferente.
- Não sente frio? Não estou vendo cobertores. É preciso arranjar um.
- Já fiz uma encomenda. Deve estar chegando.
Mediram os quartos, demorando-se em considerações variadas. Úrsula fora para a janela, de onde via a mulher da casa nos preparativos para o chá, à margem da lagoa. Como detestava aquele palavreado de Hermione! O seu desejo seria fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, para se esquivar àquelas cenas e àquelas conversas.
Finalmente, vieram todos para fora, dando início ao piquenique. Hermione serviu o chá; Úrsula, para ela, já não existia; e a professora, refeita do acesso de mau humor, voltou-se para Gerald, dizendo-lhe:
- Oh, Sr. Crich! Outro dia, cheguei a sentir raiva do senhor.
- E por quê? - perguntou Gerald, retraindo-se ligeiramente.
- Por haver tratado aquele animal de forma tão bárbara. Cheguei a odiá-lo!
- Que foi que ele fez? - perguntou Hermione com aquela voz cantante.
- Obrigou aquela linda égua árabe, nervosa como é, a permanecer na cancela da estrada de ferro, enquanto desfilavam aqueles horríveis vagões; o animal, coitado, estava impacientíssimo, e deve ter sofrido muito. Não se pode imaginar espetáculo mais revoltante.
- Para que isso, Gerald? - perguntou Hermione, muito calma.
- A égua precisa aprender a conservar-se quieta; de que me servirá ela se for tão tímida que desate a fugir todas as vezes que ouvir um trem apitar?
- Mas não seria preciso infligir-lhe tamanha tortura... - argumentou Úrsula. - Para que, durante todo aquele tempo em que o comboio passou? O senhor poderia ter dado uma volta na estrada e poupar a égua ao martírio. Tinha as ancas sangrando, por causa das esporas! Simplesmente horrível.
Gerald empertigou-se.
- Devo treiná-la - replicou. - E se eu quiser confiar no animal, tenho de acostumá-lo a ouvir ruídos e permanecer impassível.
- Com que direito - tornou Úrsula acaloradamente. - Trata-se de um ser vivo. Por que submetê-lo despoticamente à sua vontade? Tem tanto direito à vida como o senhor.
- É nisso que eu discordo - atalhou Gerald. - Considero aquela égua uma coisa de meu uso, não pelo fato de a ter comprado, mas porque assim é na ordem natural. É mais legítimo que o homem tenha uma égua para o seu serviço do que para ajoelhar-se à frente dela, suplicando-lhe que faça o que lhe agrada, acomodando-se às suas fantasias.
Úrsula ia abrir a boca para discordar, quando Hermione ergueu o rosto e começou, na cantilena do costume:
- Parece-me... parece-me realmente... que devemos ter a coragem de utilizar os animais para a satisfação das nossas necessidades. Julgo ser um erro atribuir a todos os seres vivos sentimentos iguais aos nossos, considerando-os como semelhantes. É um lapso de observação da nossa parte, uma falta de espírito crítico.
- Muito bem - interveio Rupert, bruscamente. - Nada mais detestável do que o costume piegas de conceder aos animais sentimentos humanos e consciência humana.
- Sim, - continuou Hermione, com ar cansado - devemos, na verdade, tomar uma posição definida. Ou nos servimos dos animais ou então eles é que se servirão de nós.
- O fato é este: os cavalos são suscetíveis de tanta vontade como o homem - explicou Gerald - embora, em sentido rigoroso, não possuam inteligência. Se a nossa vontade não for a dominante, o cavalo é que se torna, então, dono de nós. Ora, eu não posso eximir-me de ser o dono da minha égua.
- Se ao menos - disse Hermione - soubéssemos empregar a nossa vontade, poderíamos conseguir tudo. A vontade pode até curar e transformar todas as coisas, uma vez que a utilizemos de uma forma inteligente e capaz.
- Que quer dizer isso? - indagou Birkin.
- Foi um grande médico quem me disse - elucidou ela, dirigindo-se a Úrsula e a Gerald, de modo vago. - Disse-me, por exemplo, que a melhor coisa para obrigar uma pessoa a deixar um mau hábito é forçá-la a fazê-lo em ocasião que não o queira fazer. O hábito acaba por desaparecer.
- Como assim? - perguntou Gerald.
- Você, suponhamos, rói as unhas. Nesse caso, espero um momento em que não lhe agrade fazer tal, e intimo-o a roê-las. Acaba por se curar.
- Acha que sim?
- Acho. Eu própria, em muitos casos, tirei a prova. Eu fui moça muito nervosa, muito esquisita. E só pelo esforço da vontade, simplesmente, fiquei boa por completo.
Enquanto Hermione falava, com aquela voz lenta, desapaixonada, singular, Úrsula não tirava os olhos dela e sentia um calafrio percorrer-lhe o corpo. Aquela mulher possuía um estranho e sombrio poder, repulsivo e fascinante ao mesmo tempo.
- Não é bom empregar a vontade dessa maneira - exclamou vivamente Birkin. - Indigna-me. A vontade, assim, me parece obscena.
Hermione contemplou-o por muito tempo, com aquele seu olhar pesado e sombrio. Tinha as faces caídas, pálidas, translucidas, fosforescentes, quase.
- Sou capaz de jurar que não - disse ela, por fim. Havia sempre um intervalo, uma estranha separação entre o que denotava sentir e o que, na realidade, dizia e pensava. Dir-se-ia agarrar as suas ideias quando elas passavam à superfície de um turbilhão de emoções e reações negras e caóticas. Birkin sempre experimentava repulsa, pois aquilo era infalível, nunca deixava de suceder. A voz tomava inflexões calmas, iguais, denunciando a maior confiança em si mesma, embora estremecesse com uma espécie de náusea, que ameaçava submergi-lo; mas, apesar disso, o espírito conservava-se intacto, a vontade permanecia inatingida. Tudo isto punha Birkin fora de si. Contudo, jamais se atrevia a ir de encontro à vontade dela, ou livrá-la do redemoinho dos pensamentos, ou descobrir-lhe a última extravagância. Mas não deixava de a fulminar com meia dúzia de frases.
- Já se sabe - disse Rupert a Gerald - que os cavalos não dispõem de completa vontade, como os homens. Isto é, nenhum cavalo tem vontade, de forma genérica; tem duas vontades. Com uma delas, procura submeter-se completamente ao dono e com a outra, deseja libertar-se. As duas, às vezes, unem-se; deve tê-lo notado quando, ao conduzir um cavalo, o bicho morde o freio...
- Senti um, certa vez, tomar o freio nos dentes - volveu Gerald - mas não fiquei com a impressão de que a vontade dele fosse dupla. O que percebi é que o animal se tinha assustado.
Hermione deixara de ouvir. Tornava-se abstrata, sempre que discutiam assuntos de que não participava.
- Como é que um cavalo se submete voluntariamente ao domínio do homem? - indagou Úrsula. - Para mim é incompreensível. Não creio que jamais um animal tenha semelhante desejo.
- Contudo, deve ser verdade. É o derradeiro, e talvez o mais elevado dos impulsos amorosos, depor a sua vontade nas mãos dos superiores - declarou Birkin.
- Você - retorquiu a professora - tem uma noção de amor bastante curiosa.
- Nisso a mulher é semelhante aos cavalos: tem duas vontades opostas; com a primeira, está apta a sujeitar-se inteiramente e, com a outra, procura fugir e lançar o cavaleiro de pernas para o ar.
- Sou, nesse caso, da segunda espécie, uma rebelde - exclamou Úrsula, dando uma gargalhada.
- Se é perigoso domar cavalos, quanto mais as mulheres - observou Birkin. - A regra tem sempre exceções.
- Ainda bem - assentiu Úrsula.
E Gerald, com um sorriso fugidio, interveio:
- Isso é verdade. E torna tudo mais interessante. Hermione já não podia mais suportar a conversa. Levantou-se e expôs, na sua vagarosa cadência:
- Que linda tarde! Às vezes invade-me tal sensação de beleza que me chega a fazer mal.
Úrsula, a quem a outra se dirigia, ergueu-se também, comovida ate o mais íntimo do ser. Birkin afigurava-se-lhe quase um monstro de arrogância, que se devia odiar. Seguiu com Hermione ao longo da margem, conversando sobre coisas belas e reconfortantes e colhendo prímulas graciosas.
- Gostaria de ter um vestido de algodão assim amarelo, com botões cor de laranja?
- Gostaria - disse Hermione. Parou para admirar a flor, deixando que a ideia penetrasse o seu espírito e a acalmasse. - Seria bem bonito, adorável! - E voltou-se para Úrsula, num movimento de genuína simpatia.
Gerald ficara com o inspetor; tencionava aprofundar-lhe o pensamento acerca da sua opinião sobre a dupla vontade dos cavalos. No rosto de Gerald notava-se a agitação que o dominava.
Hermione e Úrsula continuaram juntas, unidas por um súbito laço de profunda afeição e intimidade.
- Na verdade - disse a primeira, detendo-se defronte da professora, com os punhos fechados para o chão - em verdade não quero andar envolvida em toda esta crítica e análise da vida. O que desejo é ver as coisas na sua integridade, mantida a beleza e o seu aspecto natural e sagrado. Não sente assim? Não sente que é demais torturarem-nos com novos conhecimentos?
- Tem razão - respondeu Úrsula. - Sinto o mesmo. E essas indiscrições e curiosidades tornam-me doente.
- Ainda bem que está de acordo. Muitas vezes - continuou Hermione, parando de novo no passeio e fitando a companheira - pergunto a mim própria se tenho de submeter-me a estas discussões, se não será fraqueza esquivar-me a elas. Mas não posso, acho que não posso! Parece-me que aniquila tudo, tudo quanto há de verdadeiramente belo e sagrado; e, sem isto, não posso viver.
- E seria, de fato, insensatez viver sem isso - confirmou Úrsula. - É irreverência supor que a inteligência resolve tudo.
Precisamos excluir a parte que pertence a Deus; foi e será sempre assim.
- Diz bem - tornou Hermione, apaziguando-se como uma criança. - Tem de ser assim, não é verdade? E Rupert - aqui ela levantou o rosto, como que extática - porfia em tudo querer dilacerar. Parece um menino desmanchando os brinquedos para ver como são feitos. Não posso admitir que ele tenha razão. É irreverência, como você diz.
- Tal como se destruíssemos o botão de uma flor para examinar como seria a própria flor - sugeriu Úrsula.
- Exatamente. E assim mata-se tudo, não é verdade? Não se deixa à planta nenhuma possibilidade de florir.
- Claro que não. É a destruição pura e simples.
- Sim, sim! Não há dúvida!
Hermione olhou demoradamente para Úrsula, mostrando apreciar aquela concordância com os seus pensamentos. Depois ficaram ambas silenciosas. Tão depressa estavam de acordo, quanto passavam a experimentar uma recíproca desconfiança. Úrsula, contra sua vontade, sentia que se afastava de Hermione. Era tudo o que podia fazer para moderar a aversão.
Voltaram para junto dos homens, como conspiradoras que se houvessem retirado a fim de concluir algum pacto. Birkin ergueu os olhos para elas e Úrsula antipatizou com a frieza do seu olhar.
- Vamo-nos embora? - propôs Hermione. - Rupert, você vem jantar em Shortlands? Não hesite, venha conosco, sim?
- Não estou devidamente trajado - respondeu Birkin. - Bem sabe que Gerald, neste ponto, é muito formal.
- Nem tanto - atalhou Gerald Crich. - Mas, se sentisse como eu a desordem que reina nas casas, preferiria que todos fossem respeitadores e convencionais, pelo menos durante as refeições.
- Muito bem explicado - exclamou Rupert Birkin.
- Não poderíamos esperar que se vestisse? - insistiu Hermione.
- Como quiser.
Levantou-se e entrou na casa. Úrsula declarou também que se ia embora.
- Mas antes - disse ela voltando-se para Gerald - devo informá-lo de uma coisa: ainda que o homem seja dono dos animais domésticos, continuo a achar que não tem nenhum direito de violentar os sentimentos dos seres que lhe são inferiores. Persisto em acreditar que seria muito mais sensato e muito mais nobre se o senhor se tivesse afastado para a estrada durante a passagem do trem.
- Aceito a lição - respondeu Gerald, com um sorriso amarelo. - Oxalá não me esqueça, a próxima vez.
Pelo caminho, Úrsula dizia com os seus botões: "Tomam-me todos por uma mulher que se intromete onde não é chamada".
Apressou o passo, absorta em seus pensamentos. Chegara a sentir-se impressionada com Hermione. Consolidara mesmo certa intimidade com ela, e assim se estabelecera entre as duas mulheres uma espécie de aliança. E, todavia, não a podia suportar, fato esse que procurava combater. "É boa criatura" dizia consigo mesma; "deseja realmente o bem e a justiça". E esforçou-se, em espírito, por tomar o partido de Hermione e negar razão a Birkin. Era decididamente hostil a Rupert Birkin. Mas sentia-se ligada a ele por qualquer causa mais séria, o que a irritava e alegrava simultaneamente.
Vez por outra percorriam-na calafrios, originados pelo seu subconsciente; e isso provinha do fato, bem o sabia, de ter desafiado Birkin e ele ter, convencido ou não, aceito o repto. Seria, entre ambos, uma luta de morte, ou então o início de uma vida nova. É, contudo, ninguém poderia dizer em que consistiria aquele conflito.
Capítulo XIII
"Mino"
Os dias passavam, sem que recebesse quaisquer notícias dele. Continuaria assim a desconhecer a sua existência e não fazer caso do segredo que os ligava? A ansiedade pungia-a, envolvendo-a de amargura. E, todavia, Úrsula tinha o pressentimento de que se enganava no seu pessimismo: ele a procuraria, com certeza. Contudo, não fazia confidências a ninguém.
E, de fato, chegou uma carta em que Rupert lhe pedia que fosse, com a irmã, tomar chá em sua casa.
- "Por que será que também convida Gudrun?", foi a primeira pergunta que fez a si mesma. "Será para se proteger, ou pensa que eu não seria capaz de ir só?"
A primeira hipótese preocupava-a um pouco. Mas acabou por dizer com os seus botões:
"Não me convém levar Gudrun, pois preciso que ele me diga qualquer coisa além de simples frases feitas. Não contarei nada a minha irmã e irei sozinha. E ficarei sabendo o que se passa".
Assim foi. Resolveu ir sozinha até a casa em que ele vivia. Parecia atravessar um país de sonho, espiando as ruas sórdidas que tinham ficado para trás, como se fosse também alheia ao universo material. Que relação havia entre ela e aquilo que a rodeava? Era um corpo palpitante, mas irreal, em meio a um cenário fantástico. Pouco lhe importava o que os outros dissessem ou pensassem a seu respeito. O resto da humanidade não fazia parte do seu mundo; Úrsula sentia-se desintegrada, arrancada, de maneira estranha e confusa, fora do invólucro da existência física, como uma semente que se despregasse do fruto para cair em meio desconhecido e hostil.
Birkin esperava de pé na sala, quando Úrsula foi introduzida pela senhoria. Estava comovido, e a emoção manifestava-se extedormente. A professora notou-lhe a agitação e observou-lhe o corpo magro e trêmulo.
- Veio sozinha? -perguntou à recém-chegada
- Vim. Gudrun não pôde acompanhar-me.
Rupert percebeu que ela agira intencionalmente.
Sentaram-se ambos em silêncio, sentindo â tensão do ambiente.
Úrsula percebeu que a sala era agradável, clara, repousante em seus detalhes e que havia um vaso de fúcsias, de onde pendiam flores escarlates e roxas.
- Lindas fúcsias! - exclamou ela, para dizer alguma coisa.
- Acha? Pensei que se tivesse esquecido do que eu disse.
A professora perturbou-se.
- Não precisa lembrar-me, se não o deseja fazer - conseguiu responder.
Tornaram a ficar calados.
- Não - tornou ele. - Não é isso: se queremos conhecermos melhor, precisamos tornar a nossa amizade definitiva e infalível...
A voz traía-lhe a desconfiança. Parecia aborrecido. Úrsula não disse nada; sentia o coração oprimido, sentia-se incapaz de falar.
Percebendo que ela não respondia, Rupert prosseguiu, com certa amargura:
- Não saberei dizer se é amor o que lhe ofereço. Parece-me, antes, uma coisa mais impessoal, mais difícil e mais rara.
Estabeleceu-se uma pausa, depois do que ela interrogou:
- Está dizendo que não me tem amor? Ela sofria à simples ideia.
- Sim, já que pretende colocar a questão nesses termos. Na verdade, não sei. Não sinto por você aquela perturbação do amor, e não desejo senti-la, porque o amor acaba por se extinguir.
- Como? - perguntou ela com os lábios quase cerrados.
- Sim, extingue-se. No fim, ficamos sozinhos, livres da influência do amor. Há um eu impessoal, que ultrapassa o amor e qualquer outra ligação de ordem emotiva. Assim aconteceria conosco. Mas desejamos sempre ter a ilusão de que o amor está na raiz. Puro engano! O amor reside apenas nos ramos. A raiz está além, no perfeito isolamento, um eu isolado, que não encontra ninguém com quem se misture e que seria mesmo incapaz de o fazer.
Úrsula fitava-o com os olhos muito abertos. O rosto dele se iluminava no entusiasmo das suas abstrações.
- Quer dizer que não poderá me amar? - perguntou-lhe a moça.
- Sim, é verdade. Eu amei: mas existe uma vida futura desprovida de amor.
Aquelas teorias não a convenciam. Sentia-se prestes a desmaiar.
- Como sabe se nunca amou verdadeiramente?
- Existe um além, em você, em mim, que é mais distante do que o amor, fora do nosso alcance, como há estrelas fora do alcance da nossa visão.
- Com que, então, não existe amor - concluiu Úrsula.
- Em última análise, não, mas há outra coisa. Afinal, o amor não existe mesmo.
Úrsula sentiu-se esmagada com aquela sentença. Depois, ergueu-se na cadeira e disse, em tom decidido:
- Nesse caso, deixe-me ir embora. Que vim eu fazer aqui?
- Nada a impede de sair - foi a resposta.
Úrsula ficou indecisa em face do dilema. Por momentos não fez movimento algum. Acabou por sentar-se novamente.
- Se não há amor, o que existe então? - perguntou ironicamente.
- Qualquer coisa - declarou o inspetor, olhando para ela e reprimindo corajosamente os ímpetos do próprio coração.
- Que coisa?
Houve um longo silêncio. Birkin não se sentia capaz de continuar.
- Existe - explicou finalmente - um eu poderoso, impessoal, além de toda e qualquer responsabilidade. É assim em todas as pessoas. E é aí que eu desejo encontrá-la, nesse campo onde não há palavras nem termos convencionais, em vez de nos encontrarmos no terreno puramente sentimental do amor. Lá, então, seremos dois entes completos é desconhecidos, duas criaturas totalmente estranhas uma à outra; terei desejo de aproximar-me de você, assim como você de mim. Não haverá nenhuma obrigação, porque faltam as normas do domínio, porque nenhuma inteligência foi forçada a tal. Fica acima dos interesses humanos; não se pode recorrer aos livros, seja de que maneira for, pois cada qual está num plano superior ao limite das coisas convencionadas, e não pode ser atingido pelas regras estabelecidas. Somente nos é dado seguir o nosso impulso, aceitar o que é, sem nenhuma responsabilidade, sem que ninguém preste contas nem tenha de as dar. Apenas o desejo primitivo servirá de guia.
Úrsula ouvia-lhe as palavras, mas o seu espírito permanecia inerte, quase insensível; era tão inesperado, tão perverso o que ele dizia!
- É o que se pode chamar o mais puro egoísmo - foi a explicação que deu.
- Concordo com o puro, mas não é egoísmo, porque, afinal, não sei o que pretendo de você. Vindo até você, entrego-me ao desconhecido, sem pensamento definido nem defesa. Penetro no ignoto, com as mãos vazias. O pior é que, entre nós, se torna necessário um pacto, para que possamos, ambos, deixar tudo de lado, esquecermos a nós mesmos, e ate cessar de ser de maneira que se defina o que há de perfeito em nós próprios.
Ela refletia, seguindo o curso daquelas ideias.
- Mas você me deseja porque gosta de mim? - insistiu.
- Não, mas sim porque acredito em você, se é que, efetivamente, devo acreditar em você.
- Então não tem certeza? - exclamou ela, rindo, mas subitamente magoada.
Rupert fitava-a, mas pouca atenção dava ao que a moça dizia.
- Sim, devo acreditar em você, senão não estaria aqui, fazendo essas declarações. Mas é a única prova que possuo. Neste momento especial, minha crença não chega a ser muito forte.
Úrsula ressentiu-se daquela franqueza inesperada, daquela pouca persistência na fé.
- Você nem me acha agradável à vista - tornou ela, ironizando.
Birkin fitou-a mais detidamente para verificar o que pensava a respeito.
- Não sinto que você seja agradável à vista - respondeu.
- Nem atraente - continuou ela, sempre em tom de troça.
Ele ficou carrancudo, exasperando-se.
- Não se trata, absolutamente, de uma questão de apreciação visual. Não preciso vê-la. Tenho admirado dúzias de mulheres, e estou farto e cansado de as admirar. Preciso de uma mulher que eu não veja.
- É pena que eu não lhe possa dar o prazer de me tornar invisível - e ela se riu novamente.
- Mas você é invisível para mim, se não me forçar a tomar conhecimento visual de sua pessoa. Mas não desejo vê-la nem ouvi-la.
- Então por que me convidou para tomar chá?
Birkin não fez caso da pergunta. Continuava monologando:
- Preciso encontrá-la naquilo que não seja a sua própria existência, a parte de sua alma que renega inteiramente. Não necessito de seus belos olhos, de seus sentimentos femininos. Não desejo seus pensamentos, opiniões ou ideias para mim isso não vale nada.
- É muito convencido, cavalheiro - comentou a professora, divertida. - Se não conhece meus sentimentos femininos, meus pensamentos, minhas ideias... - Nem sequer sabe o que eu penso de você neste momento...
- E nem quero saber, por favor.
- Pois acho-o um tolo. Dá a impressão de que tenciona declarar-me o seu amor, mas que fabrica mil atalhos para chegar ate lá.
- Muito bem - exclamou ele, agora excitado. - Vá-se embora e deixe-me em paz. Não quero continuar a ouvir suas zombarias humilhantes.
- Serão realmente zombarias? - Úrsula tinha um ar irônico e não conseguiu conter uma gargalhada. Interpretava as palavras dele como genuína declaração de amor. Mas que palavras absurdas tivera o homem de empregar!
Ficaram silenciosos por alguns instantes. Úrsula sentia-se contente, satisfeita como uma criança. Rupert saiu de seu estado de concentração e começou a olhar para ela com mais simplicidade e naturalidade.
- O que desejo é uma união muito singular - principiou a dizer, com voz tranquila. - Nem simples encontros, nem mistura... você tem absoluta razão, mas o equilíbrio, puro equilíbrio de dois seres... como as estrelas se equilibram umas com as outras...
Úrsula observou. Rupert tornara-se muito solene, e a solenidade sempre lhe parecera ridícula e vulgar. Isso fê-la sentir-se pouco à vontade, desconfortável. E, contudo, gostava tanto dele! Mas a que propósito vinham as estrelas?
- Isso me parece um pouco disparatado - retrucou, rindo-se. Birkin riu também e aconselhou:
- É melhor reler os termos do contrato, antes de o assinar. Um gato cinzento estava dormindo no sofá. De repente, saltou para o chão, espreguiçando-se, arqueou a espinha e colocou-se na ponta dos pés. Ficou uns instantes imóvel e majestoso, mirando qualquer coisa. Por fim, como uma flecha, saltou para fora da sala através da janela aberta e alcançou o jardim dos fundos da casa.
- Que terá visto ele? - exclamou Birkin, levantando-se.
O gato caminhava agora com ar solene, pelo caminho calçado do jardim, balançando a cauda. Era um gato vulgar, de patas brancas. Perto do muro achava-se uma gata de pêlo pardo, agachada, pronta para saltar. Mino dirigiu-se com imponência para ela, com lentidão viril. A fêmea encolheu-se diante dele, apertando-se contra a terra, cheia de humildade, pobre pária de pêlos sedosos - mirou com olhos agressivos, verdes e desafiadores como enormes gemas cintilantes. O gato apenas avistou-a de relance. Então a bichana deu mais uns passos à frente, a caminho do portão dos fundos, arrastando-se quase de maneira a não ser pressentida. Movia-se habilmente, como uma dama.
Ele, porém, seguia com passadas ágeis, logo atrás; e, de súbito, tocou-lhe velozmente com a pata no canto do focinho. A gata afastou-se um pouco como uma folha soprada pelo vento e encolheu-se, submissa, medrosa. Mino fingia não vê-la, piscando os olhos, soberbo, à paisagem que o rodeava. Daí a pouco, ela tornou a dar um passo à frente, suavemente. Mais alguns passos daqueles e teria desaparecido, como num sonho, mas o bicho, cinzento e imponente, saltou-lhe adiante e deu-lhe uma pancadinha rápida e graciosa, o que a fez deter-se de novo, sempre obediente.
- É uma gata sem dono - explicou Birkin. - Apareceu aqui, vinda do bosque.
Os olhos desvairados da gatinha relancearam em torno e fixaram-se em Birkin, como grandes fachos de luz verde. Com um salto ágil, encontrou-se, de repente, no meio do jardim, de onde olhou vagarosamente para todos os lados. Mino voltou a cabeça para o dono, com ar superior, fechou os olhos devagar e sentou-se sobre as patas traseiras, numa atitude de estátua. A gata continuava a observar com suas pupilas dilatadas, misteriosos fogos esverdeados. Depois, como uma sombra, deslizou de novo em direção à cozinha.
Num pulo elástico, veloz como o vento, Mino alcançou-a e lançou-lhe duas patadas enérgicas. A outra recuou, silenciosa, sem insistir, enquanto o macho a perseguia, arranhando-a mais vezes, cheio de confiança, lançando-lhe, em movimentos bruscos, as unhas afiadas e mágicas. Úrsula estava indignada.
- Por que está fazendo isso? - perguntou zangada.
- Isso é um sinal de intimidade - respondeu Birkin.
- O fato de lhe bater?
- Sim, creio que ele pretende provar-lhe essa intimidade de maneira insofismável - explicou Birkin, rindo.
- É horrível! - declarou Úrsula. E saindo para o jardim começou a chamar por Mino.
- Chega! Não seja perverso! Acabe com isso!
A gatinha desaparecera como uma sombra invisível. Mino fitou a professora, e, a seguir, desdenhosamente, levantou os olhos para o dono.
- És muito mau? - perguntou-lhe este.
O esperto bichano mirou-o, cerrando vagarosamente as pupilas. Depois contemplou a paisagem, detendo-se na admiração do horizonte, como se aqueles dois seres humanos já não existissem para ele.
- Não gosto de ti, Mino - falou Úrsula. - És cruel como todos os machos.
- Não - atalhou Rupert. - Ele tem justificação. Não é cruel. Insiste com aquela pobre gatinha perdida, para que ela se convença de que ele é o seu próprio destino. Você bem viu, aquele animalzinho sem dono é arisco e incerto como o vento. Estou inteiramente do lado de Mino. Queremos estabilidade nas coisas.
- Sim, bem sei - volveu Úrsula. - Não quer fazer senão o que lhe apetece. Compreendo o sentido das suas palavras: mandar, ser o patrão...
O gato olhou outra vez para Birkin, como quem confirma o seu desdém por aquela mulher inquieta.
- Concordo totalmente contigo - disse Birkin. - Conserva a tua dignidade masculina e a tua inteligência superior.
De novo Mino contraiu as pupilas como se estivesse a fixar o sol. E, por fim, fazendo de conta que não tinha relação alguma com aqueles dois, afastou-se apressado, com fingida alegria e afetada espontaneidade, de cauda ereta e as patinhas brancas muito ligeiras.
- Vai encontrar-se de novo com a gatinha do bosque e demonstrar-lhe a sua alta sabedoria... - explicou Rupert, jovialmente.
Aquele homem de cabelos ao vento e de olhos sorridentes e irônicos espicaçava Úrsula. Por isso, gritou-lhe:
- Como me irrita essa suposta superioridade masculina! Não passa de uma mentira. Se ainda houvesse, ao menos, alguma justificativa...
- A gatinha não se importa: encontra justificativa.
- Acha? Conte essa história a quem quiser...
- A eles também.
- É exatamente como no caso de Gerald Crich e da égua: a luxúria da brutalidade, autêntica Wille zur Macht - Vontade de dominar - nota da tradutora) mas tão baixa, tão mesquinha!
- Concordo em que a Wille zur Macht seja uma coisa baixa e mesquinha. Mas com Mino verifica-se o desejo de trazer aquela fêmea ao estado puro de equilíbrio, relação transcendente e durável com o macho que vive só. Ao passo que, sem ele, a outra não passaria (você bem viu) de mera partícula perdida e esporádica do caos. Seja volonté de pouvoir se assim o quer, vontade de poder, tomando pouvoir como verbo.
- Ora, sofismas, velhos como Adão!
- Pois sim. Mas Adão conservou Eva num paraíso indestrutível, quando a tomou para si, espécie de estrela na sua órbita.
- Isso, isso! - exclamou Úrsula, apontando para ele com o dedo erguido. - Aí está: uma estrela na sua órbita. Satélite de Marte, eis o que é a mulher para você. Você acaba de confessar precisa de um satélite, Marte e o seu satélite! Você o disse, você o disse, desmascarou-se!
Birkin sorria, mesmo apanhado em falso, ao mesmo tempo irritado e divertido, cheio de admiração e de amor. Vacilante e viva como uma chama sagaz, e tão vingativa, essa jovem era uma grande sensibilidade, ardente e perigosa.
- Não foi bem isso o que eu disse - replicou ele. - Deixe me explicar, ao menos...
- Não, não! Não o deixo falar! Empregou o termo satélite, não vá agora torcer a frase. Disse-o e está dito!
- Bem, ninguém mais a convencerá de que eu não disse tal coisa, mas não tive a intenção, não mencionei, não afirmei, não concluí nada que se pareça com satélite...
- Seu prevaricador! - gritou ela, sinceramente escandalizada.
- O chá está pronto, Sr. Birkin - veio anunciar à porta a dona da casa.
Olharam ambos para a mulher, da mesma forma que os gatos haviam olhado para eles, momentos antes.
- Está bem, obrigado, Senhora Daykin.
Houve um instante de silenciosa expectativa.
- Vamos tomar chá - convidou Rupert.
- Está bem, boa ideia - concordou ela, recuperando as forças.
Sentaram-se diante um do outro.
- Não quis comparar as mulheres a satélites. Aludia apenas a dois astros solitários, equilibrados, em conjunção...
- Você se traiu, deixou perceber completamente o seu jogo - interrompeu a professora, começando a tomar o chá. Rupert compreendeu que ela não faria atenção alguma às suas explicações e então se resolveu a tomar o chá.
- Quantas coisas bonitas vejo aqui na mesa! - comentou Úrsula.
- Sirva-se de açúcar - disse ele, passando-lhe o açucareiro.
A louça era fina: belas xícaras e pires guarnecidos de vermelho e verde, elegantes tigelas e pratos de vidro, tudo sobre uma toalha bordada em cinza pálido, preto e púrpura. Tudo demonstrava riqueza e bom gosto, e Úrsula suspeitou da influência de Hermione.
- Seu serviço é encantador - comentou ela, quase com ironia.
- Gosto dele assim. É para mim um verdadeiro prazer usar objetos que sejam atraentes e agradáveis. A Senhora Daykin é simpática. Gosto de tudo que me pertence e me diz respeito.
- Realmente... - assentiu a professora. - Hoje em dia, as senhorias valém mais do que as esposas. Têm mais gosto e interesse, ao que parece. Isto aqui está muito mais bonito e organizado do que se você fosse casado.
- Pense, porém, no vácuo deste aposento - pediu ele, sorrindo.
- Não - replicou Úrsula - Dá-me pena ver homens como você com tão boa dona de casa e tanto conforto: não precisa desejar mais nada.
- No que se refere a arranjos domésticos, é verdade que não desejo. Mas é triste alguém casar só para ter um lar.
- Pois hoje em dia - observou Úrsula - os homens têm muito pouca necessidade de se casar.
- É possível no que se refere às coisas externas à sua alma, exceto no que respeita a dormir na mesma cama e procriar os filhos. Mas, quanto à sua própria essência, a necessidade é a mesma de sempre. O pior é que ninguém se dá ao trabalho de ser essencial.
- Como assim? - indagou ela.
- Quero dizer que o mundo se mantém apenas por uma associação mística, pelo acordo final entre as pessoas, o que constitui um laço. E o primeiro de todos os laços é entre o homem e a mulher.
- Isso é uma velha cantiga. Por que há de ser o amor um laço? Para mim não serve.
- Se marchar no sentido do oeste, irá perdendo os seus direitos, ao norte, ao sul e ao leste. Se admitir o acordo, renuncia a todas as possibilidades de caos.
- Mas o amor é liberdade! - declarou a professora.
Não me venha com essas histórias. O amor é uma direção que exclui quaisquer outras. É liberdade para dois, se me permite a expressão.
- O amor, para mim, compreende tudo.
- Hipocrisia sentimental. O que você deseja é o estado caótico. Puro niilismo, isso de liberdade no amor, essa liberdade que é amor e esse amor que é liberdade. E, de fato, se nos colocamos um uníssono, a coisa se torna irrevogável, e só assim será pura. Só há um caminho, como daqui para uma estrela.
- Ah, meu Deus! Velha e defunta moralidade...
- Não, Úrsula. É a lei da criação. Devemo-nos unir ao semelhante, para sempre. Não se trata de abandonar o nosso eu, mas sim conservá-lo em um equilíbrio místico e íntegro, como um astro em conjunção com outro astro.
- Não confio muito nas suas comparações com o firmamento. Se estivesse seguro do que diz, não precisaria ir tão longe.
- Se é assim, não precisa confiar. Basta que eu tenha confiança em mim mesmo.
- Outro erro, afinal. Você não está convencido de si mesmo, nem em uma única palavra do que diz. Na verdade, pouco ou nada deseja tais uniões, senão, em vez de falar tanto, lançar-se-ia antes ao domínio dos fatos.
Rupert ficou perplexo por alguns instantes.
- Como assim? - falou, afinal.
- Entregar-se-ia ao amor - declarou ela, em tom de desafio. Ele tornou a ficar calado, remoendo a raiva. Mas retrucou:
- É como lhe digo, não acredito nesse gênero de amor Repito-lhe: não quero acrescentá-lo ao seu egoísmo, para seu único proveito. Para você, o amor é um processo de subserviência; para muita gente, aliás. Detesto-o!
- Não - exclamou ela, recuando a cabeça como uma cobra os olhos fuzilando. - É um processo de orgulho. Convém-me ser orgulhosa.
- Orgulho e subserviência, conheço isso muito bem! Orgulho e submissão, ou submissão ao orgulho. Conheço você e essa espécie de amor. É um tique-taque, tique-taque, dança de antagonistas.
- Parece-lhe? - disse-lhe ela com ar perverso. - O meu amor é assim?
- Tenho a certeza.
- Grande certeza! Ninguém pode ter razão, com uma segurança dessas. Só prova que você se engana.
Rupert calou-se, melindrado. Tinham discutido tanto que ambos já estavam exaustos.
- Fale-me agora de você e dos seus - sugeriu ele.
Úrsula falou-lhe então dos Brangwens, da mãe, de Skrebensky, seu primeiro amor - e das suas derradeiras aventuras. Birkin continuava silencioso, sem tirar os olhos dela; dir-se-ia ouvi-la por deferência. O rosto da professora mostrava-se belo, cheio de estranha claridade, enquanto contava todas essas histórias que a haviam desiludido e magoado tão profundamente. E ele parecia aquecer e reconfortar a alma ao doce calor daquela natureza.
"Se ela, realmente, fosse capaz de um compromisso...", pensava Rupert com apaixonada insistência, se bem que pouco esperançado. Todavia, em seu coração, surgiu um lampejo de contentamento.
- Nós todos temos sofrido muito - comentou, ironicamente.
Úrsula mirou-o, e logo um clarão de alegria se lhe espalhou na face, curiosa luz dourada que lhe provinha do olhar.
- Não é verdade? - exclamou, numa voz alta e estouvada. - Quase absurdo, hein?
- Inteiramente absurdo. O sofrimento aborrece-me, nada mais.
- A mim também.
Rupert chegava a ter medo do riso inconsiderado que lhe via nos lábios. Ali estava uma mulher que iria ate as profundezas do céu ou do inferno, qualquer que fosse o seu destino; desconfiava dela, sentia medo de uma criatura assim suscetível de tanto abandono, de tão perigosa consciência na destruição. Contudo, ele, também, ria-se por dentro.
Úrsula levantou-se, pôs-lhe a mão no ombro e fitou-o com os seus olhos estranhos, de um brilho dourado, muito terno, sob os quais se escondia uma curiosa intenção diabólica.
- Diga que me ama; diga: meu amor! - implorou ela.
Birkin fixou-a bem e leu-lhe no rosto o significado daquela expressão sardônica.
- Amo-a bastante - confirmou, de mau modo. - Mas necessita de muito mais que isso.
- E por quê? E por quê? - insistiu a jovem, inclinando para ele o rosto luminoso. - Por que não é o bastante?
- Porque podemos fazer coisa melhor - respondeu ele, passando os braços em torno do pescoço da companheira.
- Não, não podemos fazer nada melhor - volveu Úrsula, com voz forte e voluptuosa entregando-se, todavia. - O mais que podemos fazer é amar-nos um ao outro. Diga meu amor, vamos, vamos!
Apertou-o também em seus braços. Rupert enlaçou-a, beijou-a devagar, murmurou-lhe em tom apaixonado e submisso, mas irônico.
- Sim, meu amor... Sim, meu amor... Que o amor seja o bastante para nós. Amo-te, amo-te! Não quero saber de mais nada.
- Que assim seja - respondeu ela, aninhando-se suavemente de encontro a ele.
Capítulo XIV
Festa aquática
Todos os anos, os Criches ofereciam no lago uma festa mais ou menos popular. Em Willey Water havia uma barca a motor e várias canoas com remos; os convidados podiam tomar chá em uma barraca erguida no gramado em frente da casa ou organizar um piquenique à sombra da enorme nogueira junto do cais, à beira do lago. Nesse ano, o pessoal do Instituto de Educação havia sido convidado; da mesma maneira os funcionários mais graduados da empresa das minas. Gerald e os irmãos não se interessavam por aquela festa, que se tornara tradicional e proporcionava tanto prazer ao pai: era a única ocasião que lhe permitia reunir e obsequiar algumas pessoas. Gostava de ser atencioso para com os que dependiam dele ou eram mais pobres, mas os filhos preferiam a companhia de seus iguais em bens e situação social; detestavam tanto a humildade dos inferiores como sua gratidão ou grosseria.
Contudo, condescendiam em assistir à festa, o que faziam desde muito tempo; além disso, sentiam-se agora um pouco culpados e não desejavam contrariar mais o pai, doente como estava. Por isso, Laura se preparou cuidadosamente para receber os convivas, em lugar da mãe, e Gerald assumiu a responsabilidade dos divertimentos aquáticos.
Birkin escrevera a Úrsula, dizendo que esperava encontrá-la naquela oportunidade, com a irmã; embora ela escarnecesse do patrocínio dos Criches, não deixava de acompanhar o pai e a mãe, quando o tempo estava bom.
Chegou finalmente o dia, com um céu azul e cheio de sol, se bem que levemente ventoso. As duas irmãs vestiram-se de crepe branco e chapéus de palha fina. Gudrun, porém, destacava-se por uma faixa preta, rosa e amarela, brilhante, largamente enrolada na cintura, e meias de seda cor-de-rosa, além de guarnições róseas e douradas no chapéu. No braço levava um casaco de seda amarela, o que lhe emprestava um ar distinto, como se ela fosse um quadro do Salão não obstante a impressão desagradável que produziu no pai.
- Não acha - disse ele zangado - que você podia também vestir-se de "Christmas cracker", e deixar-nos em paz?
Mas Gudrun estava realmente bela e vistosa e exibia aquele traje em sinal de desafio. Quando mostravam espanto à sua passagem, soltando indiretas, não deixava ela de comentar em voz alta para a irmã:
- Regarde, regarde ces gens-là! Ne sont-ils des hiboux incroyables? - e, com essas palavras ditas em francês, olhava por cima do ombro para as pessoas que a fitavam curiosas.
- Não, realmente, é impossível! - replicava Úrsula de forma a ser bem ouvida. E as duas moças afrontavam daquela maneira o inimigo comum. O pai, porém, ficava cada vez mais indignado.
Úrsula também estava vestida de branco, mas seu chapéu cor-de-rosa não levava qualquer enfeite. Os sapatos eram vermelhos, simples, e o casaco, alaranjado. Dessa maneira, partiram os quatro a pé, a caminho de Shortlands: o pai e a mãe iam à frente.
Riam-se as duas da mãe, que trajava um vestido de tecido leve de listras pretas e roxas e um chapéu de palha também roxo; ela estava mais trêmula e tímida que uma jovem, como nunca as filhas haviam sido; andava com fingida modéstia ao lado do marido, que parecia, conforme o costume, amarrotado em sua roupa dominical, como se fosse um jovem papai que houvesse tomado ao colo seus bebês enquanto a esposa se vestia.
- Repare no casalzinho que vai ali adiante - disse Gudrun muito séria. Úrsula olhou para os pais e teve um súbito ataque de riso impossível de controlar. As duas irmãs se detiveram no caminho e riram tanto que até lágrimas lhes vieram aos olhos, tudo por causa do tímido par tão pouco mundano que as precedia.
- Estamos nos divertindo à sua custa, mãe - disse Úrsula, apertando mais o passo em direção aos pais.
A Senhora Brangwen voltou-se, com um olhar entre admirado e colérico.
- Essa não! - exclamou. - Que tenho eu de tão divertido? Não se convencia facilmente de que havia qualquer coisa fora do lugar em sua aparência. Mantinha perfeita calma e ouvia com a maior indiferença todas as apreciações críticas, considerando-se superior á elas. Os vestidos que usava eram sempre esquisitos e sempre caíam mal, embora os exibisse com desembaraço e ate com satisfação. Fosse qual fosse o traje que envergasse, uma vez limpo, sentia-se confiante e acima de qualquer censura tão aristocrático era o instinto daquela mulher.
- A senhora tem um ar majestoso e parece ate uma fidalga de aldeia - declarou Úrsula, rindo, mas com certa ternura que lhe suscitava a expressão ingênua e surpresa da mãe.
- Exatamente como uma fidalga de aldeia - confirmou Gudrun. Mas a arrogância natural da Senhora Brangwen impôs-se novamente e as jovens zombaram outra vez.
- Voltem para casa, suas tolas, com essas risadas idiotas! - gritou o pai no auge da irritação.
Úrsula começou a fazer caretas para o velho mal-humorado. Nos olhos deste chispavam clarões amarelos de uma raiva autêntica que o levavam para frente.
- Não dê atenção a essas duas tolas - aconselhou a mulher, continuando a andar.
- Ate quando continuarei a ser seguido por essa dupla de palermas que não sabem senão guinchar? - volveu ele, furioso.
As filhas continuavam a rir ao longo do caminho que seguia junto da sebe.
- Você é tão tolo quanto elas se continuar se aborrecendo dessa maneira - disse a Senhora Bragwen, irritando-se, por sua vez, ao ver a contrariedade do marido.
- Vem gente aí, pai! - avisou Úrsula, em tom irônico. O homem olhou em torno e, sempre colérico, prosseguiu ao lado da mulher. As filhas os acompanharam, já cansadas de tanto rir.
Depois que as pessoas se afastaram, Brangwen declarou em voz alta:
- Se isto continuar, volto para casas. Macacos me mordam se vou dar espetáculo em público!
Estava realmente fora de si. Ao ouvirem-lhe a voz surda, anunciadora de tempestade, as duas irmãs cessaram de repente as brincadeiras, com o coração penalizado. Mas detestaram a expressão "em público". Que se importavam elas com as pessoas da rua? Gudrun, no entanto, tornou-se mais conciliadora.
- Não estávamos rindo para aborrecê-los - explicou com meiguice, mas sem jeito, o que contribuiu para deixar os pais ainda menos à vontade. - Fazíamos aquilo porque gostamos muito de vocês.
- Vamos então à frente, já que são suscetíveis a tal ponto - propôs Úrsula, melindrada.
E foi daquela maneira que chegaram a Willey Water. O lago estava azul e resplandecente; de um lado, as colinas em suave declive, à luz do sol; do outro, as matas sombrias e espessas terminavam abruptamente na água. A barca a motor afastava-se da margem, barulhenta com sua música estridente e cheia de convidados; a água espadanava sob as rodas propulsoras. Perto do cais havia muita gente vestida de cores alegres e os vultos pareciam pequenos à distância. Na estrada, espreitando por cima da sebe, viam-se curiosos, que contemplavam invejosos, como almas recusadas ao Paraíso.
- Meu Deus! - exclamou Gudrun, sotto você, olhando para a multidão lá em baixo. - Quanta gente! Imagine, nós no meio daquilo tudo, Úrsula!
O horror de Gudrun pelos outros comunicou-se à irmã:
- Vai ser bem desagradável - comentou ela com alguma ansiedade.
- Imagine o que virá depois! - retrucou a primeira ainda em voz baixa e nervosa. Contudo, foi avançando com passo decidido.
- Tenho esperança de que possamos nos livrar - sugeriu a segunda, sempre ansiosa.
- Será bonito se não conseguirmos - continuou Gudrun. Aquela repugnância e aquela apreensão, ambas cheias de ironia, afligiam bastante a irmã.
- Não temos obrigação de ficar - lembrou ela.
- Pois não ficarei mais de cinco minutos no meio dessa gente - asseverou a outra. Aproximaram-se mais e descobriram no portão guardas fardados.
- Guardas para nos prenderem lá dentro! - exclamou Gudrun. - Palavra, o caso está complicado.
- Será melhor esperarmos papai e mamãe - lembrou Úrsula, receosa.
- Mamãe é bem capaz de se arrumar sozinha - esclareceu a outra, vagamente despeitada.
Mas Úrsula sabia que o pai se sentiria constrangido, mal-humorado e infeliz, e isso tirava-lhe o sossego de espírito. Alto e franzino, dentro da roupa amarfanhada, lá vinha ele, rabugento e nervoso como uma criança, sentindo-se deslocado naquele meio festivo. Não se considerava pessoa distinta e nada mais sentia do que pura irritação.
Úrsula colocou-se ao lado do pai, apresentaram ao guarda o convite e entraram os quatro: Brangwen, alto e avermelhado, carrancudo como um menino acanhado; a mulher, muito à vontade, com a sua pele fresca, o mais calma possível, se bem que o penteado tivesse escorregado para um lado da cabeça; depois Gudrun, de olhos redondos, fixos, sombrios, rosto macio e cheio, impassível, semizangada, parecendo pouco predisposta à festa; e, por fim, Úrsula, os olhos espantados, estranhos e brilhantes, o que sempre sucedia quando se encontrava em situação falsa.
Birkin foi o anjo salvador. Dirigiu-se para os recém-chegados, sorridente, com aquela graça afetada das ocasiões elegantes, quase sempre fora de propósito. Dessa vez, tirou o chapéu, exibiu um sorriso simpático, e logo Brangwen, aliviado, gritou-lhe com a maior sinceridade:
- Como vai? Está melhor, não é verdade?
- Estou melhor, obrigado. E a Senhora Brangwen? Quanto a Gudrun e Úrsula, vejo que estão bem.
Os olhos cintilavam-lhe, com aquele ardor que lhe era peculiar. Falava sempre delicadamente com as senhoras, particularmente com aquelas que já não eram novas. A Senhora Brangwen respondeu satisfeita, embora com frieza:
- Minhas filhas têm feito muitas referências ao senhor.
Birkin riu. Gudrun olhou em torno, sentindo-se humilhada. Os convidados permaneciam de pé, formando grupos: muitas senhoras haviam-se sentado à sombra da nogueira, com as xícaras de chá nas mãos. Em volta circulava um criado de casaca. Algumas jovens, de ar pretensioso, empunhando sombrinhas, descansavam sobre a relva, assim como os rapazes, que acabavam de regressar do passeio de barco. Estavam em mangas de camisa, com os punhos arregaçados e tinham-se sentado de pernas cruzadas, com as mãos descansadas sobre as calças de flanela branca. Voavam-lhes em torno do pescoço gravatas de cores alegres, e eles riam e experimentavam mostrar espírito em presença das moças.
"Por que será - pensou Gudrun, mal impressionada - que não têm educação suficiente para conservar o paletó vestido, em vez de tomarem essa atitude excessivamente familiar?"
Horrorizavam-na aqueles rapazes vulgares, com os cabelos bem penteados para trás, e uma intimidade grosseira em demasia.
A certa altura surgiu Hermione Roddice; ostentava um lindo vestido de renda branca coberto por um enorme xale de seda semeado de flores bordadas. Na cabeça, balançava um chapéu descomunal, sem enfeites. Chamava a atenção, impressionava, quase parecia macabra, tão alta que era, com as franjas do imenso xale roçando o solo, atrás de si, a cabeleira muito espessa tombada sobre os olhos e o rosto estranho, comprido e pálido - e as flores bordadas cintilando em volta.
- Parece sobrenatural... - ouviu Gudrun cochicharem ao seu lado. Eram as jovens na grama, sufocando o riso a custo.
- Como têm passado? - exclamou Hermione, musicalmente, aproximando-se, cheia de amabilidade e observando com rigor papai e mamãe Brangwen. Momento terrível que exasperou Gudrun. Hermione estava tão fortemente convencida da superioridade de sua condição social que seria muito capaz de querer conhecer os outros por simples curiosidade, como se se tratasse de animais de exposição. Gudrun, todavia, teria feito o mesmo, mas aborrecia-se por se encontrar em situação de examinada.
Hermione, atenciosa, querendo ser agradável aos recém-chegados, conduziu-os ao lugar onde Laura Crich recebia os convivas.
- Aqui está a Senhora Brangwen - anunciou ela, em voz cantante. E Laura, que envergava um vestido de linho com bordados, apertou a mão da senhora e manifestou-lhe o prazer que tinha em a cumprimentar. Apareceu então, Gerald. Trajava calças brancas e um casaco de golfe, com listras pretas e castanhas; era, realmente, um belo rapaz. Foi também apresentado aos pais Brangwen; falou com a Senhora Brangwen como a uma grande dama, e ao marido, como se não o tivesse na conta de um cavalheiro. Na maneira de tratar os outros Gerald não disfarçava suas impressões. Naquele momento, só estendia a mão esquerda, porque a outra estava machucada e a conservava oculta no bolso. Gudrun ficou satisfeita porque ninguém na família perguntou o que ele tinha na mão.
A barca de passeio fazia grande barulho, com sua música e as pessoas gritando, excitadas, para os que estavam em terra Gerald foi assistir ao desembarque, enquanto Birkin trazia chá para a Senhora Brangwen. O marido unira-se ao grupo dos professores do Instituto, Hermione continuara ao lado daquela e as filhas aproximaram-se do cais para ver a barca atracar.
O apito era estrondoso, mas, de súbito, as rodas pararam, foram lançados cabos para a margem e a embarcação veio, impelida, provocando um leve choque. Os passageiros precipitaram-se imediatamente, na pressa de vir para terra.
- Esperem um instante, um instante só! - gritou Gerald em tom de comando.
Era preciso esperar que a barca estivesse completamente amarrada e que se lançasse uma prancha. Então desembarcaram todos como se chegassem à América.
- Que belo passeio! - diziam as moças. - Foi delicioso! Os criados vieram de bordo com os cestos de provisões. O capitão descansava na pontezinha. Vendo que tudo correra bem, Gerald foi ao encontro de Úrsula e de Gudrun.
- Não querem embarcar na próxima viagem e tomar chá no meio do lago? perguntou ele.
- Não, obrigada - respondeu Gudrun friamente.
- Tem medo da água?
- Não, pelo contrário.
Gerald fitou-a como se procurasse ler-lhe o pensamento.
- Não gosta da barca?
Gudrun custou a responder.
- Não posso dizer que gosto - respondeu finalmente, muito ruborizada e aborrecida sem saber por quê.
- É gente demais - interveio Úrsula, apaziguadora.
- Sim, muita gente - concordou ele, com um riso breve. - Vê? Já está cheia.
Gudrun fitou-o com os olhos brilhantes.
- Já viajou alguma vez da ponte de Westminster para Richmonde nos barcos do Tâmisa? - perguntou.
- Não - respondeu Gerald. - Acho que não.
- Pois ouça. Foi uma das minhas piores aventuras. - Ela falava rapidamente, faces afogueadas. - Não havia um único lugar para sentar; um homem, perto de mim, cantou Embalado no Berço do Abismo durante todo o trajeto; era cego e tinha conseguido um realejo, desses portáteis; além disso, pedia esmolas. Pode imaginar o que era aquilo? Da cozinha vinha constantemente cheiro de comida e da casa de máquinas vinham baforadas quentes de óleo; a viagem durou horas e horas e, durante milhas, na margem, garotos corriam, hediondos, na lama repugnante do Tâmisa, enterrando-se às vezes ate a barriga. Tinham calças vestidas pelo avesso, chafurdando naquele lodo incrível, sempre olhando para nós e gritando, como pedaços de carne deteriorada: Aqui estamos, senhores, aqui estamos. Que cena repugnante e indecente! Os chefes de família, a bordo, riam quando os garotos se atolavam na lama e de vez em quando atiravam-lhes moedas. Ah! Aquele olhar ávido dos pequenos e a maneira como se precipitavam no chão em busca do dinheiro. Na verdade, nenhum abutre, nenhum chacal, se igualaria a eles em matéria de podridão. Nunca mais pretendo andar nesses barcos de excursão. Nunca mais!
Enquanto ela falou, Gerald não desviou os olhos, brilhantes e animados, de cima da jovem. Não pelo que estava ouvindo, mas porque Gudrun o excitava, o espicaçava com alfinetadas breves e incisivas.
- É natural! - disse ele - que as pessoas tenham em si um lado abjeto.
- Por quê? - perguntou Úrsula. - Eu não tenho.
- Mas não era só isso, era também a qualidade do conjunto: chefes de família que riam, achando a coisa engraçada, atirando moedas... Mães com seus joelhos adiposos que comiam sem parar... - acrescentou Gudrun.
Úrsula interveio:
- Parece que há um verdadeiro lado mau nessas pessoas de que o senhor fala.
Gerald desatou a rir.
- Não faz mal. Desiste-se do passeio na barca. Gudrun corou ao ouvir aquela censura disfarçada.
Houve um instante de silêncio. Gerald, arvorado em sentinela, vigiava os convivas que desembarcavam. Sem dúvida ele era elegante e distinto, mas aquela atitude marcial não deixava de ser um pouquinho irritante.
- Preferem tomar chá aqui, ou mais perto de casa, na relva? - indagou ele.
- Não se poderia arranjar um barquinho a remos? - sugeriu Úrsula, que não fazia rodeios quando desejava alguma coisa.
- Querem fugir?
- Bem - interveio Gudrun, aflita com a sem-cerimônia da irmã -, nós não conhecemos ninguém aqui, somos quase completamente desconhecidas.
-Ora - volveu Gerald -, farei algumas apresentações.
Gudrun procurou observar se ele dizia aquilo com más intenções. Mas logo lhe concedeu um sorriso.
- Ah! Sabe o que queremos dizer. Não poderíamos subir aquela encosta e fazer algumas explorações? - Apontou para um bosquezinho da colina, do lado dos prados, próximo ao lago. - Deve ser um lugar adorável. Poderíamos ate nos banhar. Que lindo parece, a esta luz! Na verdade, assemelha-se às margens do Nilo, isto é, como as imaginamos.
Gerald sorriu daquele entusiasmo por um lugar afastado.
- Têm a certeza de que é bastante longe? - perguntou ironicamente. E acrescentou a seguir: - Sim, podem ir até lá se conseguirmos um barco. Mas creio que estão todos ocupados.
Percorreu com a vista e contou os barcos a remo que por ali andavam.
- Devia ser agradável! - repetiu Úrsula, pensativa.
- E não querem chá?
- Não seria má ideia tomarmos uma chávena e escapulirmos depois - lembrou Gudrun.
Gerald olhava risonho, ora para uma, ora para outra. Sentia-se um pouco melindrado, mas levava o caso na brincadeira...
- Sabem remar? - perguntou.
- Sabemos - respondeu Gudrun secamente.
- Sim - corroborou Úrsula. - Sabemos remar, como duas aranhas de água.
- Bem... Tenho uma canoa muito leve, que não trouxe para cá com medo que houvesse algum acidente. Seriam capazes de se aguentar nela?
- Sem dúvida - afirmou Gudrun.
- O senhor é um anjo! - exclamou Úrsula.
- Evitem, pelo amor de Deus, qualquer acidente; sou responsável por tudo o que acontecer no lago.
- Fique descansado - disse Gudrun.
- Bem, nesse caso, vou arranjar um cesto e as senhoras farão o piquenique sozinhas. Boa ideia, hein?
- Estupenda! Mal posso acreditar - gritou Gudrun, ruborizando-se outra vez. E o sangue dele também se aqueceu nas veias, quando a viu olhar de forma tão carinhosa, fazendo penetrar no corpo do rapaz a gratidão que sentia.
- Por onde anda Birkin? - perguntou Gerald, com os olhos brilhando. - Poderia ajudar-me a trazer o barco para fora.
- Mas o que tem na mão? Está machucado? - perguntou Gudrun de maneira um tanto indiferente, como se desejasse evitar familiaridade. Era a primeira vez que se fazia alusão ao ferimento. Os subterfúgios sutis de que se servia a moça trouxeram a Gerald uma nova carícia; tirou a mão direita do bolso: estava envolta numa atadura. Olhou para ela e tornou a colocá-la no bolso. Gudrun estremeceu ao ver o curativo.
- Eu me arranjarei com a outra mão. A canoa é leve como uma pena. Lá vem Rupert. Rupert!
Birkin abandonara suas obrigações sociais e vinha ao encontro deles.
- O que foi que lhe aconteceu, finalmente? - perguntou Úrsula, que há mais de meia hora mal continha a pergunta.
- Minha mão? Foi apanhada por uma das máquinas - respondeu Gerald.
- Que horror! - exclamou Úrsula. - E machucou-se muito?
- Sim, mas está melhorando. Tive os dedos esmagados.
- Oh! - exclamou ela novamente, como se também estivesse sentindo dor. - Sofro tanto como se fosse comigo. - E sacudiu a mão.
- Que desejam? - perguntou Birkin.
Ele e Gerald lançaram à água a canoa, muito pequena e estreita.
- Estão certas de não correr perigo? - perguntou Gerald.
- Sim, estamos - afirmou Gudrun. - Não seria tão estouvada que me metesse a fazer o que não sei. Já tive um barco desses em Arundel e garanto-lhe que sei lidar com ele.
Tendo feito essa afirmação, ela e a irmã entraram na frágil embarcação e conduziram-na cuidadosamente para o lago. Os dois rapazes ficaram a observá-las. Gudrun remava. Sabia que estava sendo observada e isso a tornava desajeitada e morosa. O rubor subiu-lhe ao rosto como um estandarte vermelho.
- Muito obrigada - disse ela, já de longe, enquanto o barco se ia afastando. - É uma sensação deliciosa, como se estivéssemos em cima de uma folha...
Gerald riu-se da comparação. Vinda da distância, a voz chegava-lhe aos ouvidos estranha e penetrante. Contemplou-a a remar. Havia naquela jovem alguma coisa quase infantil; era confiante e educada como uma criança. Enquanto pôde, ficou a admirá-la. E, para Gudrun, havia real encanto, como que um pretexto em ser criança, em se acolher à proteção daquele homem que permanecia no cais, belo e altivo em seu traje de verão, e que era, além disso, o homem mais importante que ela conhecera ate então. Quanto a Birkin, que estava ao lado dele, Gudrun não dava a menor atenção, era um vulto incerto, indeciso e oscilante... Apenas um vulto ocupara, naquele momento, o espaço em que pousavam seus olhos.
O barco deslizava suavemente. Passaram pelos banhistas, cujas barracas listradas se espalhavam entre os salgueiros, no limite dos prados, e foram, ao longo da margem descoberta, contornando as pastagens que desciam oblíquas sob a luz de ouro dá tarde já avançada. Na margem oposta, cheia de árvores, havia barcos, semiocultos, de onde vinham ruídos de risos e de conversa. Mas Gudrun prosseguiu na direção do tufo de plantas que se balançava ao longe, douradas de sol.
As duas irmãs descobriram um lugar onde um arroio desaguava no lago, entre juncos, formando um pau florido de flores cor-de-rosa, tendo ao lado uma prainha de areia. Ali atracaram, cautelosas, a canoa frágil, e, descalçando os sapatos e as meias, prepararam-se para atingir a margem. As ondas do lago, pequeninas, corriam tépidas e claras. Úrsula e Gudrun conduziram o barco para terra e olharam em volta, satisfeitas Estavam perfeitamente a sós naquela enseada esquecida; no outeiro, protegendo-as, erguia-se o grupo de arbustos.
- Vamos tomar um banho rápido? - propôs Úrsula. - Depois tomamos o chá.
Olharam em volta. Ninguém poderia vê-las, nem apanhá-las de surpresa. Em menos de um minuto, Úrsula despiu-se, e, completamente nua, mergulhou na água, nadando logo para fora. Logo Gudrun a alcançou. Assim nadaram durante alguns minutos, silenciosas, felizes, na água da enseada. Depois voltaram para a margem e embrenharam-se no bosquezinho, como ninfas.
- Como é bom ser livre - exclamou Úrsula, correndo ligeira por entre os troncos das árvores, inteiramente nua e com os cabelos flutuantes. A mata compunha-se de faias, esplêndidas e frondosas, verdadeiro entrelaçado de ramos cor de aço e folhas e brotos verdes, mais tenros; do lado norte havia uma abertura, espécie de janela, através da qual se distinguia o horizonte.
Quando os corpos já estavam enxutos, as moças vestiram-se depressa e sentaram-se para tomar o chá. Instalaram-se no lado setentrional do bosque, sob os clarões dourados do sol, olhando para a colina, sozinhas naquele mundo selvagem para elas reservado. O chá estava quente e perfumado e havia deliciosos sanduíches de pepino e de caviar, além de bolos em que havia sabor de vinho.
- Sente-se bem, Prune? - inquiriu Úrsula, extasiada.
- Sinto-me perfeitamente feliz - replicou a outra, com ar grave, dirigindo os olhos para o sol poente.
- Eu também!
Sempre que faziam o que lhes agradava, Úrsula e Gudrun consideravam-se satisfeitas, no seu universo particular e completo. E este agora constituía um dos momentos perfeitos de liberdade e bem-estar, como só as crianças conhecem, quando tudo lhes parece decorrer como uma deliciosa aventura.
Uma vez tomado o chá, continuaram elas como estavam, silenciosas e tranquilas. Depois, Úrsula, que possuía bela voz, começou a entoar para si mesma, docemente, Annchen von Tharau. Gudrun ouvia, ali sentada debaixo das árvores, e o seu coração encheu-se de melancolia. A irmã parecia tão sossegada, sem ambições, limitando-se a trautear a canção, confiante e livre dentro do seu pequeno mundo! Quanto a ela, Gudrun, sentia-se fora daquele ambiente: era perturbador aquele sentimento de desolação que a invadia; sentia-se à margem da vida, como espectadora, enquanto a outra tomava parte nela. Isso causava-lhe sofrimento, dava-lhe a sensação do nada e obrigava-a a pedir à irmã que lhe prestasse atenção, que não se esquecesse dela.
- Você se importa que eu dance, Úrsula? - perguntou baixinho, quase sem mover os lábios?
- O quê? - perguntou Úrsula, olhando surpreendida para a irmã.
- Quer cantar para que eu dance? - repetiu a primeira, irritada por ter de repetir o pedido.
- Você quer...
- Quero dançar Dalcroze - explicou a mais nova, envergonhada, apesar de estar falando com a irmã.
- Ah! Dalcroze? Eu não estava entendendo. Está bem. Gosto de vê-la dançar. Que devo cantar?
- O que quiser. Vou tentar pegar o ritmo.
Úrsula, porém, não atinava com o que devia cantar. Todavia, começou em voz risonha:
Meu amor é bem nascido...
Gudrun, como se uma cadeia invisível lhe pesasse nas mãos e nos pés, principiou lentamente a dançar, fazendo movimentos rítmicos, batendo e agitando os pés no compasso, e formando, com os braços e as mãos, gestos lentos e regulares, ora abrindo-os e levantando-os acima da cabeça, ora deixando-os afastados um do outro, com o rosto levantado e os pés sempre a bater, correndo para acompanhar a canção, como se se tratasse de um estranho encantamento. A forma branca e extasiada do corpo elevava-se aqui e ali em um arrebatamento singular e impulsivo, como se levada na aragem mágica, estremecendo em passinhos leves e delicados. Úrsula estava sentada na relva, cantando, enquanto os olhos riam-se como se achasse aquilo tudo muito engraçado, mas ao mesmo tempo sujeita a uma espécie de influência hipnótica.
Meu amor é bem nascido,
Mais triste que ciumento...
CONTINUA
Parecia refluir para longe dele, espécie de maré a desaparecer irremediavelmente. Aquele olhar de ser primitivo, de escrava violada, cujo papel consiste em deixar-se vencer continuamente, fazia-lhe vibrar os nervos num desejo agudo e desesperado. Em última análise, esta é que era a vontade de Gerald, e Miss Darrington representava a substância passiva daquela vontade. Sensação mordente e sutil, que lhe punha os ouvidos a zumbir! Então compreendeu que se devia afastar, que era forçoso estabelecer entre ambos a separação.
Seguiu-se um almoço sem incidentes; os quatro homens tinham o aspecto asseado de quem acabou de tomar banho. Gerald e o russo estavam corretíssimos e comme il faut tanto na aparência quanto nas maneiras; Birkin, descarnado e com ar cansado, denunciava o fracasso que experimentara ao querer apresentar-se elegante como os primeiros. Halliday usava uma roupa de quadradinhos, camisa de flanela verde e um projeto de gravata que lhe ia muito bem. O hindu trouxe torradas; apresentava a mesma figura da véspera, exatamente igual.
Bichana apareceu no final da refeição; vestia o robe de seda vermelha ajustado por uma faixa mal apertada. Refizera-se um pouco com o sono mas continuava silenciosa, sem vida. Era-lhe um martírio ter de responder a alguém. O rosto dela assemelhava-se a uma máscara, bela mas funesta, reveladora de uma vontade sofredora. Pouco faltava para o meio-dia. Gerald levantou-se e saiu para tratar dos seus negócios, contente por escapar. Mas não de vez: precisava voltar ainda à noite, para jantarem todos juntos e levá-los a um music-hall - exceção feita de Birkin.
Regressaram à casa de madrugada, de novo aquecidos pelo álcool. Mais uma vez o criado oriental - que desaparecia invariavelmente entre as dez e a meia-noite - veio, silencioso e impenetrável, com a bandeja do chá, curvando-se, lento e estranho como um leopardo, para a abandonar suavemente sobre a mesa. Continuava com aquela expressão hermética, com seu quê de aristocrático sobre a pigmentação pardacenta. Era novo e tinha boa aparência. Birkin, porém, ao observá-lo, sentia um vago mal-estar: a cor daquele homem fazia-lhe lembrar cinza ou substâncias em deterioração; e, na elegante impassibilidade dos seus modos, transparecia uma estupidez bestial e antipática.
Falaram, como na noite anterior, com animação e cordialidade. Mas já um pouco de frieza descia sobre os presentes: Birkin tomava-se de irritação insensata, Halliday começava a detestar Gerald, Bichana mantinha-se dura e fria como uma faca de pedra, enquanto o dono da casa renovava as suas familiaridades com ela. No fundo, o que a mulher queria era apoderar-se dele, dominá-lo por completo.
Na manhã seguinte, erraram, ociosos, pelos quartos. Gerald, contudo, percebeu que havia na atmosfera uma estranha hostilidade contra ele. Teimoso como era, preferiu em não abandonar o campo. Teimou mais uns dois dias. O resultado foi, na quarta noite, uma cena desagradável e injustificada com Halliday. Este, ao café, com absurda animosidade contra o seu hóspede, chamou-o de parte. Houve luta. Gerald estava prestes a derrotar o outro, enchendo-lhe a cara de socos, mas invadiu-o uma súbita repugnância e abandonou o terreno com indiferença, deixando Halliday convencido do seu triunfo. Miss Darrington foi reposta no seu trono e Maxim ficou livre de preocupações. Birkin estava ausente, tinha ido outra vez à cidade.
Gerald sentia-se aborrecido por não ter deixado dinheiro à Bichana. Na verdade, não sabia se ela o desejava ou não. Mas com dez libras, a moça alegrar-se-ia e ele ficaria satisfeito em ter-lhe dado aquela importância. Agora, sentia-se constrangido. Ao afastar-se, mordia os lábios. Compreendia que ela estava feliz por ter-se livrado do importuno. Recuperava o seu Halliday e satisfaria a sua vontade. Tinha-o de novo em seu poder. Talvez se casasse com ele. Era o seu mais ardente desejo. Não pensava noutra coisa. Nunca mais queria saber de Gerald, a menos talvez, que se visse em apuros, pois, no fim de contas, Crich era o que se chama um homem e todos os outros. Halliday, Libidnikov, Birkin, a boêmia inteira, não o chegavam a ser. Mas, enfim, era gente com quem ela se podia entender. No meio deles, considerava-se segura. Os homens autênticos, como Gerald Crich, pô-la-iam em seu verdadeiro lugar.
Todavia respeitava Gerald, e seriamente. Tomara a precaução de anotar o endereço dele, para poder procurá-lo em alguma possível necessidade. Sabia que ele estaria disposto a lhe dar dinheiro. Talvez ate escrevesse a ele, quando o horizonte estivesse negro.
Capítulo VIII
Breadalby
Breadalby era uma casa do período georgiano, de colunas da ordem coríntia, construída em meio dos outeiros mais verdes e mais suaves do Derbyshire, não muito longe de Cromford. A fachada dava para um relvado, mais adiante havia meia dúzia de árvores e entre elas encontravam-se os estábulos e a horta; ao fundo ficava a floresta.
Lugar verdadeiramente tranquilo, a poucas milhas da estrada real, na retaguarda do Derwent Valley, constituía um cenário maravilhoso. Silenciosa, abandonada, aquela moradia deixava ver, através do arvoredo, o seu estuque dourado; diante dela, o parque jamais mudara de aspecto.
Nos últimos tempos, contudo, Hermione permanecia ali com mais frequência. Fugia de Londres, fugia de Oxford e vinha refugiar-se no sossego do campo. O pai estava a maior parte das vezes ausente no estrangeiro; e ele entretinha-se só com os seus convidados, que eram sempre vários, ou com o irmão solteiro, deputado liberal. Este chegava quando não havia sessões parlamentares, embora se tivesse a impressão de que estava sempre presente em Breadalby; mas era perfeito cumpridor de seus deveres legislativos.
Começara já o verão quando Úrsula e Gudrun aceitaram, pela segunda vez, um convite para se instalarem ali. Logo que o carro em que viajavam entrou no parque, olharam além do declive, no vale em que as lagoas repousavam, e viram as colunas da mansão cobertas de sol, pequeninas como um desenho inglês da velha escola, na aba da colina verde, entre as árvores. Viam-se figuras humanas sobre o relvado, senhoras de vestidos azuis e amarelos movendo-se à sombra oscilante do belo cedro majestoso.
- Não parece um quadro? - perguntou Gudrun. - É perfeito. - Notava-se um certo ressentimento em sua voz, como se aquilo a cativasse involuntariamente, como se fosse obrigada a admirar contra a sua vontade.
- Gosta? - perguntou Úrsula.
- Não gosto, mas parece-me o melhor dentro desse gênero.
O automóvel desceu um outeiro e subiu outro e, fazendo uma curva, parou junto à porta lateral da casa. Surgiu uma criada; e depois Hermione, de rosto pálido e erguido; com as mãos estendidas, dirigiu-se às recém-vindas, murmurando em sua voz cantante:
- Aqui estão as minhas amigas! Muito prazer em recebê-las. (Beijou Gudrun). Imenso prazer! (Beijou Úrsula e ficou a abraçá-la). Estão cansadas?
- Nem um pouco - declarou Úrsula.
- E você, Gudrun?
- Também não, obrigada.
- Não? - repetiu Hermione vagarosamente. Continuou imóvel, a olhar para as duas irmãs, que se sentiam embaraçadas pelo fato de não serem convidadas a entrar enquanto a dona da casa insistia naquela cena de boas-vindas ali mesmo à porta. As criadas esperavam.
- Venham - disse por fim, depois de as ter contemplado longamente. Decidiu que era Gudrun a mais bonita e sedutora, Úrsula a mais escultural e feminina. Admirou o vestido de Gudrun, de popelina verde, com uma capa por cima, muito larga, listrada de verde-escuro e castanho. O chapéu era esverdeado, cor de feno novo e tinha uma fita franzida, em preto e laranja; as meias verdes e os sapatos pretos. Ambas formavam um belo conjunto, ao mesmo tempo pessoal e moderno. Úrsula, de vestido azul escuro, parecia mais vulgar, embora estivesse bem vestida.
Hermione trajava seda cor de ameixa: tinha ao pescoço contas de coral. As meias eram do mesmo tom. O vestido, porém, parecia muito usado e sujo, dir-se-ia ate que tinha manchas.
- Querem ver seus quartos, naturalmente... Vamos subir.
Úrsula ficou satisfeita ao se ver sozinha no quarto. Hermione demorava-se tanto em tudo, complicava de tal maneira as coisas! Punha-se tão perto das pessoas, asfixiava, comprometia! Estorvava a liberdade de cada um.
Serviram o almoço no campo relvado, sob uma árvore enorme, cujos ramos desciam quase ate o chão. Lá estavam também uma italiana, esbelta e elegante, uma jovem de ar atlético, Miss Bradley, um baronete erudito e seco, dos seus cinquenta anos, que dizia graças constantemente e ria a propósito delas um riso áspero como um relincho; e estavam ainda Rupert Birkin e uma senhora nova, bonita, magra, que era secretária de qualquer coisa: Fraulein Marz.
Os pratos eram de primeira ordem, o que significava bastante. Gudrun, que costumava ser exigente em tudo, deu-lhes inteira aprovação. Úrsula apreciou o lugar, a mesa resplandecente debaixo do cedro, o perfume da manhã, o cenário do parque frondoso e os veados, ao longe pastando sossegadamente. Era como se tivessem traçado, em volta daquele lugar, um círculo mágico, de onde o presente fora excluído, para guardar apenas o passado delicioso, as árvores, as corças, o silêncio, tudo como um sonho.
Mas no fundo ela se sentia infeliz. A conversa prosseguia, espécie de ribombar de guerra em pequena escala, sempre um pouco sentenciosa: e esse caráter acentuava-se ainda pelo espoucar contínuo dos ditos espirituosos, salpicos permanentes de ironias, destinados a dar um tom de leveza aos diálogos que abordavam assuntos de ordem crítica e geral. Mas a conversa, em vez de se alastrar como uma corrente, seguia, por assim dizer, canalizada.
O tom era intelectual e fatigante. Apenas o velho sociólogo cuja fibra mental excessivamente dura o tornava insensível, só esse parecia inteiramente feliz. Birkin mantinha-se cabisbaixo. Hermione procurava, com surpreendente insistência, ridicularizá-lo e fazê-lo antipático aos olhos de todos. E era curioso verificar como conseguia o seu propósito, tão desamparado se sentia o inspetor em face dela! Deviam achá-lo mais do que insignificante. Úrsula e Gudrun, nada habituadas ao meio, conservavam-se caladas, limitando-se a ouvir a voz lenta e cantante de Hermione, os ditos espirituosos de Sir Joshua, a tagarelice da alémã ou as respostas das duas outras senhoras.
Terminado o almoço, serviu-se o café e mais adiante, sentando-se os convivas em cadeiras confortáveis, sobre a relva, à sombra uns e outros ao sol, conforme as predileções. A Fraulein entrou em casa, Hermione pegou no bordado, a italiana em um livro, Miss Bradley pôs-se a trançar tirinhas de erva - e assim aproveitaram aquela tarde de verão trabalhando ou conversando acerca de coisas mais ou menos intelectuais.
Ouviu-se, de súbito, o ranger de freios e o ruído de um carro que parava.
- É Salsie! - exclamou Hermione, sempre na sua voz cantante e arrastada. E, largando o trabalho, levantou-se vagarosamente, atravessou o campo relvado, contornou as sebes e desapareceu.
- Quem é? - perguntou Gudrun.
- Roddice, o irmão dela. Pelo menos, parece que é - respondeu Sir Joshua.
- Salsie? Sim, é o irmão - confirmou a condessinha italiana, erguendo por momentos os olhos de cima do livro e falando como quem dá uma simples informação, no seu inglês gutural e um tanto exagerado.
Ficaram na expectativa. Por trás dos arbustos surgiu a figura alta de Alexander Roddice; vinha em largas passadas, como um herói romântico de Meredith fiel à recordação de Disraeli. Cordial para com todos, tornou-se imediatamente o anfitrião habituado a dispensar a mais afável hospitalidade aos amigos de Hermione. Chegava precisamente de Londres, da Câmara dos Deputados, cuja atmosfera se espalhou logo em volta dele; o ministro dissera isto e aquilo; e ele, Roddice, por outro lado, pensava assim e assado e não se esquivara a declará-lo ao Presidente do Conselho.
Hermione surgia agora na companhia de Gerald Crich, que tinha vindo com Alexander. Gerald foi apresentado às outras pessoas; depois esteve uns momentos ali guardado por Hermione, junto de quem acabou por se sentar. Era, evidentemente, o hóspede de honra.
Havia qualquer dissidência no Ministério; o titular da pasta da Instrução demitira-se em face de certas críticas dos adversários. Aquilo originou, entre os convidados dos Roddices, uma conversa a respeito de instrução pública.
- Sabe-se - disse Hermione, esticando o rosto, como de costume - que não há razão nem desculpa para se ministrar conhecimentos senão invocando a própria alegria e beleza do saber. - Pareceu estar, durante um minuto, a imaginar pensamentos profundos, e depois observou: - O ensino obrigatório não é instrução; é ate uma forma de a destruir.
Gerald, alheio à discussão, respirava o ar do campo com delícia, preparando-se para intervir.
- Necessariamente, não é - disse ele. - Mas a instrução não será como a ginástica? O fim da primeira é produzir espíritos vigorosos, aptos, enérgicos.
- Assim como os desportos atléticos produzem corpos saudáveis, prontos para o que der e vier - atalhou Miss Bradley, em reforço daquela opinião.
Gudrun observou-a em silêncio, horrorizada.
- Enfim... - tornou Hermione, divagando. - Não sei. Para mim o prazer do conhecimento é tão grande, tão extraordinário! Nada significa tanto na minha vida como o conhecimento. Nada, tenho a certeza.
- Que espécie de conhecimento? - perguntou o irmão.
Hermione levantou o rosto e continuou a divagar:
- Não sei... Mas como eu compreendi as estrelas, quando soube alguma coisa sobre elas! Sentimo-nos elevar tanto, tão sem limites.
Birkin olhava para ela, lívido de cólera.
- Por que deseja ser ilimitada? - perguntou, sarcástico. - Tenho a impressão de que não precisa disso.
Hermione recuou na cadeira, ofendida.
Gerald interveio:
- Não há dúvida, tem-se essa sensação de ilimitado, como quem subisse ao alto de uma montanhas divisasse o Pacífico.
- Silencioso, sobre uma rocha no Dariayn - Verso final de um soneto de Keats - nota da tradutora) - disse a italiana, erguendo, por um momento, os olhos de cima do livro.
- Não é necessariamente no Darien - notou Gerald, enquanto Úrsula começava a rir.
Hermione deixou passar alguns segundos e depois retomou a palavra, firme no seu ponto de vista:
- Saber é o mais importante da vida. Significa ser feliz, ser livre.
- A ciência, já se sabe, é a liberdade - corroborou Malleson.
- Em comprimidos - concluiu Birkin, fixando os olhos no corpo seco e pequenino do baronete. Gudrun, imediatamente, viu o famoso sociólogo transformado em frasquinho achatado, cheio de comprimidos de Liberdade.
A ideia fê-la sorrir. Sir Joshua ficava definido e catalogado no seu espírito para sempre.
- Que quer dizer com isso, Rupert? - indagou a dona da casa, em um tom de repreensão amigável.
- Em sentido estrito, não se pode ter conhecimento senão do passado - replicou Birkin. - É como quem engarrafasse a liberdade do ano passado em frascos de conservas.
- Não se pode ter conhecimento senão do passado? - perguntou o baronete, já com certo azedume.
- O que sabemos das leis da gravidade está incluído nessa categoria?
- Está - respondeu Birkin.
- Neste livro há uma coisa mais engraçada - exclamou de repente a italiana. - Diz que o homem chegou à porta e atirou os olhos para a rua.
Houve uma gargalhada geral. Miss Bradley aproximou-se e olhou por cima dos ombros da contessa.
- Vejam - disse esta. E leu: - "Bezarov abriu a porta e atirou apressadamente os olhos para a rua".
Seguiu-se outra gargalhada estrondosa. O mais divertido era o baronete, cujo riso dava a impressão de um desmoronar de pedras.
- Que livro é esse? - perguntou Alexander, muito interessado.
- Pais e Filhos, de Turguenev - respondeu a estrangeira, pronunciando distintamente cada sílaba. Ela mesma examinou a capa, para se certificar.
- É uma velha edição americana - elucidou Birkin.
- Ah! Nota-se que é traduzida do francês - disse Alexander com a sua entonação declamatória. "Bazarov ouvrit la porte et jeta les yeux dans la rue". Circunvagou depois o olhar brilhante pela roda dos amigos.
- Gostaria de saber o que seria o apressadamente - observou Úrsula.
Fizeram conjecturas.
Naquele momento, com surpresa para todos, a criada chegou com a bandeja do chá. A tarde passara rapidamente!
Em seguida ao chá, os hóspedes foram convocados para um passeio.
- Quer vir passear? - perguntou Hermione a cada um deles, um por um. Todos disseram que sim, sentindo-se um pouco como os prisioneiros enfileirados para a marcha Birkin foi o único a recusar.
- Venha, Rupert.
- Não, Hermione.
- De verdade?
- De verdade.
Houve um instante de hesitação.
- E qual o motivo? - perguntou ela. A mais leve contrariedade punha-lhe o sangue em ebulição. Ela pretendia levá-los através do parque.
- Não gosto de andar em bando.
Percebeu-se que Hermione sufocava a voz na garganta; mas respondeu, com uma calma inesperada:
- Vamos deixar o menino sozinho, já que ele está rabugento. Depois desta sátira, Hermione mostrou-se muito alegre. Ele, porém, ficou ainda mais casmurro.
A dona da casa dirigiu-se lentamente ao encontro dos outros, limitando-se a acenar, de longe, a Birkin, gritando-lhe em tom de brincadeira:
- Adeus, menino, adeus.
"Adeus, bruxa feia", dizia ele consigo mesmo.
Os convidados seguiram pelo parque. Hermione desejava mostrar-lhes narcisos silvestres em um talude. - Por aqui, por aqui - ouvia-se indicar, de vez em quando, a sua voz musical. Todos acorriam à chamada. Os narcisos deviam ser lindos, mas não era fácil contemplá-los. Úrsula mantinha-se contrariada, cheia de hostilidade contra tudo o que a cercava. Gudrun, mais objetiva e irônica, observava as coisas e tomava nota mentalmente.
Viram as corças tímidas; Hermione falava com o veado como se fosse uma pessoa que ela quisesse mimar e lisonjear. É possível que - visto tratar-se de um macho - conseguisse exercer um certo domínio sobre o animal. Contornaram os lagos e Hermione descreveu-lhes o combate de dois cisnes que haviam brigado por ciúmes. Tinha um risinho abafado ao descrever como o amoroso vencido se deitou na areia, com a cabeça escondida debaixo da asa.
Estavam em casa outra vez. Hermione parou no relvado e chamou em voz alta, estranha e sempre cantante:
- Rupert! Rupert! - A primeira sílaba era dita alto e de forma prolongada; a outra enfraquecida: - Ru-u-u-u-pert!
Nenhuma resposta. Surgiu uma criada.
- Onde está o Sr. Birkin, Alice? - perguntou a patroa, com entonação meiga e distraída, que ocultava, no íntimo, uma vontade persistente e quase insana.
- Acho que está no quarto, minha senhora.
- Está?
Subiu a escada, atravessou o corredor, chamando sempre:
- Ru-u-u-pert!
Chegando à porta do aposento, bateu e gritou ainda:
- Ruu-u-u-pert!
- Que é? - respondeu uma voz, lá dentro.
- Que está fazendo?
A pergunta era carinhosa, mas indiscreta.
Não ouviu nada, a princípio. Depois sentiu-o abrir a porta. - Já voltamos - explicou ela - os narcisos são lindos.
- Eu sei; já os vi.
Ela o fitou com um olhar demorado, impassível, que lhe caía lentamente pelas faces.
- Já os viu? - repetiu como um eco. E ficou olhando para ele. Estimulava-a, mais do que tudo, aquele estado do conflito com Rupert quando este se portava como um rapazinho teimoso, ali à sua mercê, em Breadalby. Mas, no fundo, reconhecia não ter motivos de queixa e que a sua indignação era inconsciente, mas intensa.
- Que estava fazendo? - tornou a perguntar, em tom calmo e indiferente. Birkin não respondeu e Hermione foi entrando pelo quarto adentro. Viu então que ele trouxera de outro aposento um desenho chinês que representava gansos e o copiara com muita perícia e arte.
- Copiava isto? - perguntou ela, parando junto da mesa e examinando o trabalho.
- Sim, senhor, muito belo! Gosta tanto assim deste trabalho, Rupert?
- Acho-o uma maravilha.
- Verdade? Estimo saber, porque eu também sempre o adorei. Foi o embaixador da China que me ofereceu, como presente.
- Eu já sabia.
- Mas por que razão o copia - indagou ela, distraidamente. - Por que não faz qualquer obra original?
- Desejo conhecê-lo bem. Copiando-se isto, aprende-se mais quanto à China do que na leitura de todos os livros.
- E o que é que aprende?
Ela animou-se por fim, pousou sobre ele as mãos, em um gesto violento, como para lhe arrancar o segredo. Era preciso saber. Para ela constituía uma força tirânica e terrível, uma obsessão, estar a par de todos os pensamentos dele. Rupert ficou uns momentos calado, relutando em responder. Depois, forçado a isso, começou:
- Aprendo a conhecer de que centros se desenvolve a vida destes animais, a sua percepção, a sua maneira de sentir, a violência, a precisão dos fenômenos de centralidade de um ganso no remoinho das águas frias e lodosas, o calor penetrante e estranho do sangue a circular, como que uma inoculação de fogo corrupto... fogo do limo a um tempo frio e escaldante , o mistério do lodaçal.
Hermione olhou para ele, descendo lentamente a vista ao longo das faces pálidas. Singulares, aqueles olhos! Dir-se-ia que tomara algum narcótico. As pálpebras pesavam, tombando. Os seios magros arfavam convulsivamente. Rupert voltou-se para ela e ficou impassível, com ar diabólico, Numa nova convulsão, sentindo-se doente, Hermione afastou-se: era como se o corpo estivesse se dissolvendo todo. O espírito ficara incapaz de compreender as palavras daquele homem; ele a tinha em suas garras, indefesa, e destruía-a com um poder oculto, insidioso.
- Compreendo - murmurou ela, sem saber o que dizia. - Compreendo... - E endireitou-se, procurando recuperar a serenidade. Mas não conseguiu, a inteligência recusava-se, sentia-se desequilibrada. Toda a sua vontade lutava, mas não conseguia o domínio de si mesma. Sofria os horrores da dissolução que a torturava e destruía. Ele continuava implacável, sem despregar os olhos da mulher; e Hermione dirigiu-se para fora, pálida e consumida como um espectro, como que atingida pelas influências perseguidoras de além-túmulo. Desfazia-se como um cadáver, sem realidade, sem nexo. O homem mantinha-se duro e vingativo.
Quando desceu para jantar, Hermione apresentava estranho aspecto, sepulcral; os olhos, cansados, estavam repletos de densas trevas. Vestira-se de brocado verde, rígido, muito justo, o que a fazia parecer mais alta, assustadora, semelhante a um fantasma. À luz alegre do salão o seu vulto parecia sobrenatural e opressivo. Mas, sentada na penumbra da sala de jantar, hirta em frente às velas que projetavam sombras, era já uma força, uma presença. Escutava e respondia como se estivesse sob a ação de algum estimulante.
Os convidados mostravam-se alegres e divertidos; todos, menos Birkin e Joshua Malleson, tinham envergado traje a rigor. A italianinha, a confessa, usava um vestido de veludo, com largos babados em tons de laranja, preto e ouro; Gudrun estava de verde-esmeralda com aplicações de ráfia; Úrsula de amarelo com uma faixa de prata fosca; Miss Bradley de cinza e vermelho, Fraulein Marz, de azul-claro. A dona da casa sentiu uma súbita sensação de prazer ao contemplar aquelas cores vivas à claridade das velas. Percebeu que a conversa continuava, incessante, dominada pela voz de Joshua; que os risos argentinos das mulheres e as suas respostas vivas prosseguiam sem descanso; que o colorido era brilhante, a toalha muito branca e que havia sombras no teto e no assoalho; e tudo isso a fazia quase desmaiar de satisfação, dava-lhe arrepios de prazer, que não a impediam de se sentir doente, de se considerar um revenant. Mal intervinha na palestra, embora não deixasse de ser toda ouvidos.
Terminado o jantar, todos se dirigiram para o salão, como se formassem uma só família, muito à vontade, sem cerimônias. Fraulein serviu o café, fumaram-se cigarros ou cachimbos, de que havia grande quantidade.
- Fuma? Cigarro ou cachimbo? - perguntava a alemã, muito solícita. Era como numa assembleia: Sir Joshua com o seu ar século XVIII; Gerald, belo tipo de rapaz inglês que se diverte; Alexander, político elegante e categorizado, liberal e inteligente; Hermione, estranha como uma Cassandra aborrecida; e as outras mulheres, de cores agradáveis, todos a fumar com gravidade os seus longos cachimbos de gesso, sentados em semicírculo na sala confortável e suavemente iluminada, em torno da lenha que ardia na lareira de mármore.
A conversa girava em torno dos assuntos políticos e sociais, cheia de interesse, de sabor curiosamente anarquista. Na sala acumulava-se uma poderosa atmosfera destruidora. Parecia que tudo fora lançado no crisol; para Úrsula aquelas criaturas assemelhavam-se a feiticeiras, ocupadas em pôr a panela ferver. Em tudo aquilo havia orgulho e satisfação, porém, ao espírito dos novatos, tornava-se cruelmente exaustivo, exigindo implacável tensão intelectual; o poder que emanava de Joshua, de Hermione e de Birkin consumia as inteligências, dominava imperiosamente o restante dos convidados.
- Salsie, você é capaz de tocar alguma coisa? - perguntou a irmã, suspendendo por completo a conversa geral. - Quem quer dançar? Você dança não é verdade, Gudrun? Eu gostava tanto de vê-la dançar. Anche tu, Palestra, ballerai? Si, per piacere - Você também dançará, Palestra? Sim, faça o favor - nota da tradutora) - Você também, Úrsula.
Assim dizendo, levantou-se, puxou o cordão de borla dourada que pendia junto da lareira, segurando-o durante um momento; depois, de súbito, largou-o. Parecia uma sacerdotisa inconsciente, imersa em uma espécie de transe.
Surgiu à porta uma criada que, dali a instantes, voltava, com um carregamento de camisolas, xales, lenços, quase tudo gosto oriental, guarda-roupa que Hermione, com o seu amor pelos adornos belos e extravagantes, havia colecionado pouco a pouco.
- Vocês três, meninas, vão dançar em conjunto - declarou ela.
- Que devo tocar? - perguntou Alexander, levantando-se bruscamente.
- Vergini delle Rocchette - exclamou logo a confessa.
- É tão lento... - observou Úrsula.
- As três bruxas de Macbeth - propôs a Fraulein, como coisa mais prática. Finalmente decidiram representar Noemi, Ruth e Orfa. Úrsula seria a primeira. Gudrun faria de Ruth e a contessa de Orfa. Tratava-se de um bailado no estilo russo, como os da Pavlova e Nijinsky. A italiana preparou-se antes das outras; Alexander sentou-se ao piano, e os espectadores deixaram um espaço livre. Orfa, maravilhosamente vestida à oriental, começou a dançar, indolentemente, o tema da morte do marido. Então Ruth aproximou-se e ambas choraram, lamentando-se, ate que Noemi chegou para as consolar. Tudo isto numa cena muda, bailando elas de forma a expressarem por gestos a sua emoção. O drama levou cerca de um quarto de hora.
Úrsula ficava linda no papel de Noemi. Tendo-lhe morrido os homens, só lhe restava manter-se numa rigorosa defensiva, sem nada reclamar: Ruth dedicava-lhe o seu amor Orfa, viúva ardente, sensual, sutil, queria voltar ao passado, recomeçar a vida. O desempenho das três jovens era bastante real, chegava a impressionar. Era curioso ver Gudrun perseguir Úrsula com paixão violenta e desesperada, se bem que sorrisse com ligeira malícia, observando a outra no momento de condescender, silenciosa, incapaz de tomar uma decisão por si própria - ou com a ajuda de outrem - mas perigosa, indomável, recalcando a dor.
Hermione adorou o espetáculo, apreciando a contessa, ligeira como uma doninha, entregue às manifestações das suas sensações; Gudrun unindo-se por fim, traiçoeiramente, à mulher encarnada por sua irmã; e Úrsula, na sua temerosa incapacidade, insatisfeita, irremediavelmente perdida.
- Foi admirável - disseram todos em coro. Mas Hermione tinha a alma torturada, na impossibilidade de ultrapassar o próprio conhecimento. Reclamou outro bailado, exigindo que a contessa e Birkin fizessem uma dança burlesca a Malbrouk.
Gerald ficara perturbado com o episódio de Gudrun unindo-se desesperadamente a Noemi. A essência daquela mulher, a sua oculta temeridade, um tanto irônica, escaldavam-lhe o sangue. Não conseguia esquecer-se de Gudrun, erguida, ofertante, cheia de ousadia no seu apelo e, ainda por cima, escarninha. E Birkin, espiando como um Bernardo eremita lá do seu esconderijo, tinha assistido à derrota espetacular e desamparada de Úrsula. Sentia-a dominadora, repleta de energia terrível. Dir-se-ia um gérmen estranho e inconsciente do poder feminino. Atraía-o, sem ele querer. Divisava nela o seu futuro.
Alexander tocou peças húngaras e todos dançaram, arrebatados pelo espírito da música. Gerald surpreendeu-se a si próprio, quando reparou que se dirigia a Gudrun para lhe pedir que dançasse com ele; os pés não fugiam à tentação da valsa e do two-step, ele agitava-se cheio de força, todo o organismo ansiava por sair do cativeiro. Não sabia como dançar naqueles passos convulsionados, mas sentia facilidade em começar. Birkin, quando conseguiu livrar-se da obsessão das pessoas presentes que ele detestava, pôde então dançar com agilidade, verdadeiramente à vontade. Hermione, agora, não lhe perdoava esse à vontade irresponsável.
- Estou percebendo - disse a italiana, muito excitada, observando-lhe a alegria dos movimentos, alegria que ele parecia guardar apenas para si. - Estou percebendo que o Sr. Birkin muda constantemente.
Hermione olhou para ele e estremeceu, pensando que somente uma estrangeira seria capaz de ter reparado naquilo e o manifestado sem rodeios.
- Cosa vuol'dire, Palestra? - Que é que você quer dizer, Palestra? - nota da tradutora) - indagou a dona da casa na sua voz cantante.
- Repare - respondeu a outra em italiano. - Não é um homem, é um camaleão; todo ele é metamorfose.
"Homem não, e sim um traidor; não é dos nossos", disse Hermione com os seus botões. E a alma afligia-se por ser sua escrava, pelo poder que tinha Rupert de escapar e existir sozinho, ao contrário dela; não possuía consistência, não era um homem era menos do que isso. Odiava-o e o desespero a dilacerava de alto a baixo. Era como se suportasse a completa dissolução do organismo, como se fosse um cadáver; sentia-se alheia a tudo, menos àquela horrível moléstia da decomposição que lavrava em toda ela, tanto no corpo como na alma.
A casa estava inteiramente ocupada; Gerald ficara no quarto menor, que era, na realidade, saleta de vestir e se comunicava com o quarto de dormir de Birkin. Quando todos se retiraram para os seus aposentos, de castiçal na mão, onde as velas ardiam docilmente, Hermione chamou Úrsula e levou-a consigo, para lhe falar em particular. Naquele quarto desconhecido e amplo, Úrsula experimentou certo constrangimento. Hermione parecia descer sobre ela, terrível e ameaçadora, atraindo-a para si. Admiraram umas camisolas de seda indiana, vistosas e sensuais, de forma e esplendor quase escandalosos. Hermione aproximou-se da moça, com o peito palpitante, e esta empalideceu de medo. Naquele momento, os olhos esgazeados de Hermione descobriram o terror na face da outra e mais uma vez se sentiu derrotada. Úrsula pegou numa das camisolas de seda - vermelha e azul - feita para alguma princesa de catorze anos e exclamou maquinalmente:
- Que maravilha! Ninguém se atreveria a juntar essas duas cores berrantes...
A criada entrou, silenciosamente, e Úrsula, morta de susto, fugiu, cedendo à força irresistível que a dominava.
Birkin foi direto para a cama. Sentia-se feliz e tinha sono. Estava bem disposto desde que dançara. Mas Gerald queria falar com ele. Usava ainda o traje do jantar. Sentando-se à beira da cama de Rupert - onde este já se deitara - principiou:
- Quem são estas duas irmãs Brangwens?
- Elas moram em Beldover.
- Beldover? O que fazem?
- São professoras primárias.
Houve uma pausa.
- Engraçado! Tinha a impressão de já tê-las visto.
- Desiludido?
- Eu? Não. Mas como é que Hermione as convidou?
- Conheceu Gudrun em Londres. É a mais nova, a de cabelos escuros. É artista, dedica-se à escultura.
- Então não é professora. É só a outra?
- Ambas. Gudrun leciona desenho, Úrsula é de conhecimentos gerais.
- E o pai?
- É mestre de artes aplicadas.
- Curioso!
- Entre as classes sociais já não existem barreiras.
Gerald estava um tanto encabulado com o tom gracejador de Birkin.
- Que nos importa que o pai seja isso?!
Rupert ria-se, ao falar assim, e Gerald olhava para ele, ali deitado, com a cabeça na almofada, indiferente e brincalhão. Faltou-lhe coragem para ir-se embora.
- Não creio que você tenha possibilidade de ver Gudrun durante muito tempo. É um pássaro que não se demora no poleiro. Dentro de uma semana ou duas, põe-se a caminho - disse Birkin.
- Para onde?
- Londres, Paris, Roma... Deus o sabe. Estou sempre à espera de que ela levante voo para Damasco ou San Francisco. É uma ave do paraíso. Não se sabe o que veio fazer em Beldover! Incompreensível como nos sonhos.
Gerald refletiu alguns momentos.
- Como é que a conhece tão bem?
- Conheci-a em Londres, no grupo Algernon Strange. Ela deve ter ouvido falar da Bichana, do Libidnikov, dos outros, mesmo que não sejam das suas relações pessoais. Nunca pertenceu, propriamente, ao grupo; é, de certa maneira, dada a convenções. Conheço-a faz dois anos, se não estou enganado.
- E ganha dinheiro, além das lições?
- Um pouco, mas não é coisa regular. Vende os seus trabalhos. Trazem-lhe publicidade.
- E quanto pode custar cada trabalho?
- Um guinéu, dez guinéus.
- São bons? Que representam?
- São extraordinariamente bons, na minha opinião. São dela as duas alvéolas do escritório de Hermione. Você já as viu. Escultura de madeira pintada.
- Julguei que ainda se tratasse daquela escultura de selvagens...
- Não. O que Gudrun executa é isto: animais, principalmente aves. Às vezes figurinhas de pessoas vestidas como nós, realmente belas quando bem feitas. Possuem certo humor, inconsciente e sutil.
- Será artista famosa, algum dia? perguntou Gerald, pensativo.
- É possível. Mas não creio que chegue a tanto. Costuma colocar a arte de lado sempre que outra coisa lhe sorri. O seu espírito contraditório impede-a de se tomar a sério, a si própria. Ela tem medo de se abandonar inteiramente. É isso que me desagrada com esse tipo de mulheres. A propósito, o que aconteceu a Bichana depois que eu parti?
- Tolices, banalidades. Halliday portou-se de forma censurável; estive quase dando a ele uma boa lição.
Birkin ouvia em silêncio.
- É verdade - disse, finalmente. - Julius não tem lá muito juízo. Por um lado, possui a mania religiosa; por outro, fascina-o a sensualidade. Ou é puro crente, ajoelhado, ou então representa Cristo em desenhos de uma liberdade excessiva (ação e reação) e entre os dois limites, não chega a haver meio termo. É, na verdade, doido varrido. Às vezes, um lírio impoluto, jovem de rosto a Botticelli; outras, só se satisfaz com Bichana, para se profanar juntamente com ela.
- É isso que eu não compreendo - notou Gerald. - Gostara ou não da Bichana?
- Não gosta nem desgosta. Ela é a meretriz de que Julius necessita. Precisa absolutamente de se conspurcar no contato com essa criatura. Depois reage, suspira pelo lírio da pureza e, de uma ou de outra maneira, ele se distrai. Eterna história: ação e reação, sem transição nenhuma.
- Não sei - tornou Gerald, depois de um intervalo na conversa - se a Bichana se considera muito ofendida. Fiquei admirado com o seu jeito tão depravado.
- Todavia, acho que você tem interesse nela - exclamou Birkin. - Eu sempre a apreciei. É certo que, quanto a esse aspecto, nunca houve nada entre nós.
- Interessou-me durante dois dias, não o nego - disse Gerald. - Mas uma semana com ela ter-me-ia dado volta ao estômago. Essas mulheres têm um cheiro estranho na pele que, por fim, nos faz enjoar, inexplicavelmente, ainda que a princípio estejamos apaixonados.
- Bem sei - replicou Birkin. Depois acrescentou, um tanto rabugento: - Vá-se deitar, Gerald. Já deve ser muito tarde.
Gerald consultou o relógio, levantou-se e dirigiu-se para o quarto que lhe fora destinado. Mas daí a pouco voltava, em camisa:
- Uma coisa - apressou-se a dizer, tornando a sentar-se na cama de Rupert. - Rompemos, eu e ela, tempestuosamente e não tive tempo de lhe dar nada.
- Dinheiro? - insinuou Birkin. - A Bichana vai buscar o que precisa no bolso de Halliday ou de qualquer outro da turma.
- Nesse caso, eu devia ter-lhe pago o que era devido, regularizando assim as contas.
- Ela pouco se importa.
- Talvez. Mas fico com a impressão de estar em dívida e preferia liquidar o débito.
- Acha que sim? - E Rupert olhava para as pernas brancas de Gerald Crich, sentado ali, em camisa, na beira do seu leito. Eram grossas, musculosas, rijas, vigorosas. E, contudo, impressionavam Birkin e enterneciam-no, como se fossem pernas frágeis de criança.
- Parece-me que seria preferível saldar a conta - disse Gerald como se falasse consigo mesmo.
- De uma forma ou de outra, o caso não tem importância - asseverou Birkin.
- Nada tem importância para você - comentou Gerald, um tanto admirado e fixando afetuosamente o seu interlocutor.
- É a pura verdade.
- Aliás, ela porta-se muito bem.
- Dá a Cesarina o que é de Cesarina - concluiu Rupert, virando-se de lado. Achava que o outro estava falando só pelo vício de falar. - Vá-se embora, Gerald. Estou cansado. E já é tão tarde!
- Gostaria que me dissesse qualquer coisa que tivesse importância - disse Gerald, sem desviar os olhos do inspetor, como quem espera uma resposta definitiva. Mas Birkin voltou o rosto para o outro lado. Crich pôs-se de pé.
- Nesse caso, boa noite e durma bem - acrescentou, pousando a mão no ombro de Rupert, em gesto carinhoso.
Na manhã seguinte, logo que Gerald acordou e ouviu o vizinho mexer-se no quarto contíguo, gritou-lhe:
- Penso ainda que devo dar à Bichana algum dinheiro, umas dez libras.
- Deus do Céu! - exclamou Birkin. - Não seja tão positivo. Liquide a conta na consciência, é o único lugar onde o pode fazer.
- Que quer dizer com isso?
- Conheço-a bem - foi a resposta lacônica de Rupert.
Gerald ficou um momento pensativo.
- Sou de opinião que o melhor que temos a fazer com mulheres como a Bichana é pagar-lhes sempre.
- E com as amantes é conservá-las. E com as esposas: viver debaixo do mesmo teto. Integer vitae scelerisque purus... Integro e livre da vida criminosa - nota da tradutora) - sentenciou Birkin.
- Não vale dizer coisas esquisitas.
- Mas é que isso me enfastia. Não quero saber dos seus pecadilhos.
- Queira ou não queira saber, o caso é que a mim interessam - concluiu Gerald.
A manhã, como a anterior, resplandecia de sol. A criada trouxera água e afastara as cortinas. Birkin sentado na cama, olhava preguiçosamente para o parque muito verde e tão deserto àquela hora, com o seu ar romântico, perdido no passado. "Como as coisas pretéritas", pensava ele, "são adoráveis, seguras, completas, definitivas - esse passado delicioso, tão perfeito! - e como esta casa é silenciosa e dourada, com o jardim adormecido nos seus séculos de paz... E todavia, nesta beleza imóvel de tudo, quantas armadilhas e quantas desilusões, e que horrível e monótona prisão significa realmente Breadalby, com esta intolerável clausura da sua tranquilidade! Sempre é melhor, afinal, do que a torpe confusão do presente. Se, ao menos, se pudesse criar o futuro de acordo com a nossa vontade! Um pouco de verdade, sincera e pura - um pouco dessa verdade tão simples, aplicada à vida, eis o que a alma não cessa de exigir."
- Não compreendo, no fim de contas, em que é que você me deixa ter interesse - ouviu-se exclamar, do quarto ao lado, a voz de Crich. - Nem Bichanas, nem minas, nem nada absolutamente.
- Interesse-se pelo que quiser, Gerald. A mim é que essas coisas não interessam, compreende? - respondeu Birkin.
- Que devo fazer então?
- O que quiser. E eu, o que é que eu preciso fazer? Houve um silêncio durante o qual Birkin sentiu que Gerald estava pensando no caso.
- Macacos me mordam se percebo patavina - tornou ele lá de dentro, em tom de bom humor.
- Ora veja - respondeu Birkin - uma parte de você reclama Miss Darrington, e só esta mulher; a outra parte ocupa-se das minas, de negócios e nada senão isso: ei-lo partido em dois pedaços.
- E uma parte de mim deseja ainda outra coisa - atalhou Gerald, com voz sincera, calma, singular.
- O quê? - perguntou Rupert um tanto surpreendido.
- Isso é o que eu queria que você dissesse.
Calaram-se durante algum tempo.
- Não me é possível satisfazê-lo. Eu próprio ainda não encontrei o meu caminho, como vou saber qual é o seu? Experimente casar.
- Com quem? Com a Bichana?
- Talvez. - Birkin levantou-se e foi até a janela.
- É esse o seu remédio? - perguntou Gerald. - Mas ainda não aplicou o tratamento a si próprio, embora esteja necessitado dele.
- Acredito. No entanto, espero curar-me.
- Por meio do casamento?
- Sim... - respondeu Birkin.
- Não, digo eu. Não e não, meu caro Rupert!
Ficaram outra vez silenciosos, envoltos numa vaga hostilidade. Procuravam sempre abrir, entre eles, como que um fosso; queriam manter-se a distância, para conservarem inteira liberdade. E, no entanto, atraía-os uma curiosa corrente de simpatia.
- Salvator femininus - Salvador feminino - nota da tradutora) - disse Gerald, rindo-se.
- E por que não?
- Realmente, se dá bom resultado... Mas com quem se casaria você, Rupert?
- Com uma mulher.
- Muito bem! - concluiu Crich.
Os dois foram os últimos que se apresentaram para o almoço. Hermione gostava que todos comparecessem pontualmente. Se o dia lhe parecia menor, sofria e tinha a impressão de estar atraiçoando sua vida. Parecia agarrar as horas com ambas as mãos e extrair-lhes todo o poder vital. Tinha um ar pálido e espectral, pela manhã, como um objeto abandonado. E, contudo, mantinha-se enérgica, sua vontade continuava extraordinariamente persuasiva. Com a entrada dos dois homens, surgiu um repentino mal-estar.
A dona da casa levantou o rosto e pronunciou, na sua voz cantada:
- Bom dia! Dormiram bem? Sinto-me felicíssima. - E baixou o rosto, não lhes dando mais atenção. Birkin, que a conhecia, percebeu que a intenção dela era ignorar sua existência.
- Tire o que quiser aí do bufê - disse Alexander, em tom de censura. - Espero que não esteja completamente gelado. Importa-se de apagar o esquentador, Rupert?
Quando Hermione se mostrava fria, Alexander tomava um tom autoritário Afinava-se pelo diapasão da irmã; isso era coisa sabida. Birkin sentou-se e circunvagou o olhar pela mesa. Estava habituadíssimo àquela casa, à sala de jantar, à atmosfera que nela reinava. A sua intimidade vinha de longe; mas agora rebelava-se com tudo aquilo: não tinha mais nada que fazer ali. Conhecia bem Hermione, à sua frente, ereta e silenciosa, um pouco abstrata e, no entanto, dominadora consciente do seu poder! Conhecia-a completamente, de maneira torturante. E era difícil não se sentir desnorteado - quase que se julgava na galeria de um túmulo de faraós, com os mortos sentados à volta, eternos e imponentes! Sabia já de cor o que dizia. Joshua Malleson, que falava em voz áspera, afetadamente, interminavelmente, sempre com grande esforço mental, mas sempre interessante embora tratasse de coisas sabidas; tudo o que dizia já estava previsto, por mais inteligente e original que fosse. E Alexander, homem da moda, com o seu sangue-frio, sempre à vontade; a Fraulein, cuja pronúncia lembrava um repicar alegre de sinos; a italianinha, essa confessa que dava atenção a todos, ocupada no seu papel, objetiva e fria como uma doninha à espreita, divertindo-se, mas sem se revelar por completo; por fim, Miss Bradley, pesada e subserviente, tratada por Hermione com indiferença irônica, e olhada, por consequência, com igual desprezo pelos outros. Birkin conhecia-os a todos muito bem, como pedras de um jogo manejado há muito tempo a rainha, os cavalos, os peões, sempre as mesmas figuras, movendo-se em fases intermináveis... Mas o jogo era tão repetido, desenrolava-se em tal fantasmagoria que agora já não despertava o menor interesse.
Via também a seu lado Gerald Crich, com muito boa disposição: aquilo parecia diverti-lo; Gudrun, observando com os olhos muito abertos, imensos, hostis; os problemas daquele xadrez fascinavam-na e horrorizavam-na ao mesmo tempo; Úrsula, de expressão um pouco admiradas como se alguém a tivesse ferido e a dor a atingisse fora da consciência.
De repente, Birkin levantou-se e saiu, dizendo para si mesmo:
"Estou farto disto."
Hermione viu-lhe o gesto, como num sonho. Ergueu os olhos modorrentos, sentindo-se arrastada de súbito por uma onda ignota que rolava sobre ela. Apenas a vontade indomável lhe permanecia estática, maquinal; sentada à mesa, continuava embebida nos seus pensamentos. Mas as trevas haviam-na envolvido, qual navio soçobrado. Mas o mecanismo persistente daquela vontade prosseguiu sem descanso: era a sua única força.
- Vamos nadar? - sugeriu ela, dirigindo-se de chofre aos convidados.
- Esplêndida ideia! - disse Joshua. - O tempo está ótimo.
- Delicioso! - corroborou a Fraulein.
- Combinado. Vamos ao banho - concordou a italiana.
Mas Gerald declarou:
- Não tenho roupa de banho.
- Eu lhe empresto o meu - ofereceu Alexander. - Preciso ir à igreja e ler a Bíblia. Estão esperando por mim.
- É protestante? - perguntou a condessa, tomada de súbito interesse.
- Não - elucidou ele. - Não sou. Mas acho de meu dever seguir as tradições.
- Que são tão belas! - observou galantemente a alémã.
- Não há dúvida! - exclamou Miss Bradley. Dirigiram-se para o gramado. Era uma daquelas manhãs doces e claras do princípio do verão, em que a vida circula sutilmente, como se fosse uma reminiscência. Os sinos da igreja badalavam ao longe; não havia uma nuvem no céu, os cisnes lembravam açucenas pousadas na água, os pavões desdobravam a cauda, passeando majestosamente sobre a erva, ora na sombra, ora expostos aos raios de sol. Era tudo tão belo que dava vontade de ali ficar, esquecido.
- Até logo! - gritou Alexander, acenando, muito contente, desaparecendo atrás dos arbustos, a caminho da igreja.
- E agora, - disse Hermione - vamos ao banho?
- Eu não - informou Úrsula.
- Não nos acompanha - e Hermione contemplou-a demoradamente.
- Não estou com vontade.
- Nem eu - acrescentou Gudrun.
- E a minha roupa? - inquiriu Gerald.
- Não sei - disse Hermione, rindo, com entonação estranha, divertida. - Quer um lenço, um lenço bem grande?
- Aceito.
- Venha, então.
A primeira que atravessou o jardim, a correr, foi a italiana, pequenina como uma gata; as pernas brancas cintilavam-lhe na corrida e a cabeça pendia-lhe para a frente, amarrada em um lenço de seda amarela. Passou o portão, pisando o campo gramado, e parou, imóvel como uma estátua de marfim e bronze, à borda da piscina, olhando para os cisnes que se aproximavam surpreendidos. Depois foi a vez de Miss Bradley, que veio também correndo, semelhante a uma grossa ameixa carnuda em sua roupa escura. A seguir apareceu Gerald, com um lenço de cabeça amarrado em torno dos rins e com a toalha no braço. Gostava de se pavonear assim ao sol, demorando-se e brincando, muito à vontade, branco, mas natural em sua nudez. Veio também Sir Joshua, metido dentro de um roupão e, por fim, Hermione, dando largas passadas, elegante e inflexível com uma capa enorme de seda vermelha e com a cabeça oculta por um lenço roxo e dourado. Tinha beleza aquele corpo firme e alto, aquelas pernas alvas e direitas. Havia em toda ela uma magnificência rígida, com o manto a flutuar livremente atrás de si. Atravessou o jardim e aproximou-se da água, lenta e majestosa, evocando aos olhos dos outros qualquer coisa de muito estranho.
Eram três piscinas, em sucessivos planos, descendo para o vale, grandes, belas e cheias. Sobre elas dardejava o sol. A água corria por cima de um pequeno muro, atravessava algumas pedras e caía nos reservatórios ate chegar ao de nível inferior. Os cisnes haviam-se retirado para a margem oposta. Havia o cheiro agradável dos juncos e uma ligeira brisa acariciava a pele.
Gerald mergulhara, depois de Sir Joshua, e fora nadando ate o outro extremo. Ali, subiu no muro e sentou-se. Ouviu-se outro mergulho e a condessinha nadou como um rato, a fim de o alcançar. Ficaram ambos descansando ao sol, rindo, com os braços cruzados sobre o peito. Sir Joshua alcançou-os e fez parte do grupo, de pé, com a água ate os ombros. Depois Hermione e Miss Bradley atravessaram a piscina e sentaram-se também na margem, lado a lado.
- Não acha que são assustadores? - perguntou Gudrun à irmã. - Não parecem sáurios? Lembram-me lagartos grandes. Já viu alguém parecido com Sir Joshua? Sinto, Úrsula, que aquele homem pertence ao mundo primitivo, quando sobre a terra andavam enormes lagartos rastejantes...
Gudrun olhava consternada para o sociólogo, que se conservava de pé dentro do tanque, com água pelo peito e com os cabelos, compridos e grisalhos, empastados sobre os olhos; o pescoço escondia-se no meio dos ombros fortes e espessos. Estava conversando com Miss Bradley, que, sentada em cima do muro, rechonchuda, bem feita, toda molhada, parecia prestes a resvalar e mergulhar como se fosse uma foca do Jardim Zoológico.
Úrsula admirava em silêncio. Gerald, entre Hermione e a italiana ria, cheio de satisfação. Parecia-se com Dionísio, com aqueles cabelos louros e o rosto cheio e jovial. Hermione, na sua elegância opulenta, rígida, perigosa, inclinava-se para ele, espantada, como quem dissesse que não tinha culpa do que pudesse vir a fazer. Gerald reconhecia naquela mulher a presença de uma ameaça qualquer como uma loucura involuntária. Mas não parou de rir, e, cada vez mais, voltava-se para a condessinha, que o fitava com os olhos brilhando.
Mergulharam todos na piscina, nadando juntos como um bando de lobos-marinhos. Hermione, dentro d'água, era um ser poderoso e inconsciente, vasto, lento, forte; a condessa, rápida e silenciosa como uma ratazana da água; Gerald flutuava e virava-se oscilante, formando uma sombra clara e agradável. Um após outro foram saindo da piscina e regressaram a casa.
Gerald demorou-se, contudo, um instante para falar a Gudrun.
- Não gosta de nadar?
A moça fitou-o com um olhar demorado, indecifrável, en quanto ele permanecia à sua frente com a pele toda cintilante de gotas de água.
O outro não se mexeu, à espera de mais algum comentário.
- Sabe nadar?
- Sei.
Ele não queria perguntar, é claro, qual o motivo por que, sendo assim, não fora também tomar banho. Notava naquela jovem qualquer coisa de irônico. Afastou-se, despeitado pela primeira vez na sua vida.
- Por que não quis nadar? - tornou-lhe a perguntar mais tarde, já vestido de novo como um elegante jovem inglês.
Ela hesitou um momento, antes de dar a resposta, resistindo assim à insistência do seu interlocutor.
- Porque não gosto de promiscuidade - foi a resposta.
Gerald riu-se, a frase ecoou e tornou a ecoar na sua consciência. O sabor daquela linguagem abria-lhe o apetite. Quer quisesse quer não, aquela menina significava para ele o mundo real. Desejaria elevar-se ate àquele padrão e satisfazer-lhe os sonhos de mulher. Compreendeu que o critério da artista era o único verdadeiro. Os outros eram simples com opiniões instintivas, por mais bem situados que fossem socialmente. Gerald não podia escapar àquela sedução; procuraria adaptar-se às aspirações dela, encarnar a sua ideia do homem e do ente humano.
Depois do lanche, quando alguns já se haviam retirado, Hermione, Gerald e Birkin continuaram na sala conversando. Houvera discussão - muito intelectual e pretensiosa no seu conjunto - acerca da nova ordem social, da posição do indivíduo no mundo de amanhã. Supondo que as velhas instituições se destruíam e perdiam, o que renasceria, por fim, do caos?
A grande ideia social, dissera Sir Joshua, era a igualdade de todas as pessoas. Não, respondera Gerald, o melhor seria que cada um pudesse desempenhar o seu papel, por menor que fosse; deixassem-no fazer isso, permitissem-lhe a felicidade à sua maneira. O principal nivelador das classes devia ser o trabalho garantido a cada um. Somente o trabalho e a produção uniriam a humanidade. Simples coisa mecânica, decerto; mas que era a sociedade senão um mecanismo? Fora do trabalho ficariam livres, podendo agir como bem lhes parecesse. A conversa continuara.
- Ah, só teríamos nomes profissionais, seríamos como os alémães, apenas Herr Obermeister e Herr Untermeister - Respectivamente, mestre e oficial, nas corporações - nota da tradutora). Posso fazer uma ideia: sou a Senhora Diretora das Minas Crich, ou a Senhora Deputada Roddice, ou a Senhora Professora de Arte Brangwen. Linda coisa! - exclamou Gudrun.
- Tudo correria melhor assim, Senhora Professora de Arte Brangwen - disse Gerald.
- Tudo o quê? Explique-me, Sr. Diretor das Minas de Carvão Crich. As relações entre nós dois, par exemple?
- Isso, por exemplo - interveio a italiana. - As relações entre homens e mulheres...
- Não é do âmbito social - observou Birkin, em tom sarcástico.
- Muito bem. Entre mim e uma mulher a questão social nada tem que ver. O caso é comigo - disse Gerald.
- Ganhou dez libras! - volveu Birkin.
- O senhor não admite que a mulher seja um ente social? - perguntou Úrsula a Gerald.
- Sim e não. Sim, no que respeita à sociedade. Mas, na sua própria vida privada, pode agir livremente; isso é problema dela, nada temos a censurar.
- E não seria um tanto difícil conciliar as duas metades? - continuou Úrsula.
- Não - replicou Gerald. - Que se arranjem sozinhas. Vê-se isso agora por toda parte.
Mas Birkin atalhou:
- Não se ria antes do tempo.
- Eu estava rindo?
- Se ao menos - disse, por fim Hermione - pudéssemos ser iguais em espírito, se nisso, formássemos uma irmandade, o resto não teria importância; nunca mais se ouviria falar de críticas, invejas, lutas pelo poder, que são coisas destrutivas e nada mais.
Este comentário foi recebido em silêncio e quase a seguir todos se levantaram da mesa. Mas, quando os outros já tinham desaparecido, Birkin voltou-se para os que haviam ficado e declarou com amargura:
- É precisamente o oposto, precisamente o contrário, Hermione. Somos todos, em espírito, diferentes, desiguais. Mas nas coisas da vida material é que, teórica e matematicamente, pode haver igualdade; como, na prática, não há, resultam daí as chamadas diferenças sociais. Qualquer pessoa sente fome e sede, tem dois olhos, um nariz, duas pernas. Numericamente somos todos os mesmos; porém, na ordem espiritual, existem diferenças; nem a igualdade nem a desigualdade são termos que sirvam. É sobre este mínimo de conhecimentos que devem ser baseadas as instituições. A sua democracia é uma refinada mentira, a sua fraternidade humana pura falsidade, se a fizer sair dos domínios da abstração. Todos começamos por beber leite, depois comemos pão e carne, todos queremos andar de automóvel; eis o começo e o fim da fraternidade entre os homens. A igualdade não existe.
"Mas eu, que sou eu e mais ninguém - continuou Birkin - que tenho a ver com a igualdade, com outro homem, com outra mulher? Em espírito, estou tão longe como uma estrela o está de outra estrela, muito diferente em qualidade e em quantidade. Veja se é capaz de organizar um Estado com isto. Nenhum homem é melhor do que outro, não porque sejam iguais, mas porque são intrinsecamente diversos e não pode haver, entre eles, termo de comparação. Logo que se começa a fazer comparações, vê-se quanto um indivíduo difere de outro; toda desigualdade que se possa imaginar, ei-la demonstrada por natureza. Desejo que cada um tenha o seu quinhão nos bens deste mundo, de maneira que eu possa desembaraçar-me de mais um importuno. E então dir-lhe-ia: agora você tem o que pretendia, possui uma fatia dos benefícios terrenos; vá, louco, saboreia-a, não existe senão uma boca, sacie-se e não me aborreça."
Hermione olhava-o de esguelha e Rupert sentia que, a despeito de tudo quanto ele dizia, ondas de ódio e de enfado emanavam daquela mulher: ódio e enfado dinâmicos, provindos fortes e sombrios do subconsciente de Hermione. Ouvira-lhe as palavras inconscientemente, mas conscientemente se fazia surda para não lhes dar atenção.
- Isso cheira a megalomania - disse Gerald, jovial, dirigindo-se a Birkin.
Hermione emitiu uma espécie de grunhido. Rupert deu um passo para trás.
- Mudemos de assunto - exclamou de súbito. A voz, que pesara sobre os outros dois com tão dominadora insistência, apagara-se por completo. E ele foi-se embora.
Mais tarde, porém, sentiu-se arrependido. Fora violento, cruel para com a infeliz Hermione. Desejaria recompensá-la, desfazer a má impressão. Ferira-a, tinha sido vingativo. A sua vontade, agora, era de fazer as pazes.
Hermione estava no seu escritório, quarto afastado, repleto de almofadas. Sentara-se à mesa e escrevia cartas quando Rupert apareceu. Levantou o rosto, distraída, viu-o aproximar-se do sofá e sentar-se ali; recomeçou a tarefa interrompida.
Birkin pegou um livro volumoso que já lera uma vez e embrenhou-se de novo na leitura. Tinha as costas voltadas para Hermione, que não conseguia mais escrever. Todo o seu espírito era um caos; mergulhava nas trevas, e procurava readquirir o domínio de si própria, tal como o nadador a se debater dentro de uma ressaca. Todavia, apesar dos esforços, tinha a impressão de que o coração ia saltar. A terrível tensão ia aumentando mais e mais, era uma agonia pavorosa, como a de alguém que estivesse sendo emparedado.
A parede era Birkin - eis o que ela compreendeu; a presença daquele homem sufocava-a. Se não conseguisse demoli-lo, morreria de morte horrível, asfixiada. Sim, ele era a parede. Era preciso abatê-lo; tinha de afastá-lo da sua frente, detestável obstáculo que lhe dificultaria a vida ate ao fim.
Seu corpo tremia como se choques elétricos de uma corrente de muitos volts a traspassassem. A presença dele, sentado a poucos passos impunha-se-lhe sempre; era um incrível espetáculo maléfico. Tanto bastava para lhe aniquilar o espírito, para o sufocar, aquele homem de costas para ela, curvado sobre o livro.
Sentiu ao longo dos braços um arrepio voluptuoso. Ia conhecer o prazer sensual de provocar a morte. Tremiam-lhe as mãos. Que delírio sentir a força que possuía. Experimentaria dar a morte, enfim, com os sentidos em êxtase! Não demoraria muito. No cúmulo do terror e da angústia, compreendeu que o momento chegara, num máximo de bem-aventurança. Tinha a mão colocada sobre uma linda bola de lazulite, que servia de peso para papéis, na secretária. Brincava com ela, fazendo-a rolar, e, silenciosamente, levantou-se da cadeira. O coração ardia-lhe no peito, em labaredas, mas o seu arrebatamento deixava-a sem consciência. Dirigiu-se para Rupert e ficou estática uns instantes, de pé atrás dele - que, mergulhado na magia da leitura, continuava sem movimento, alheio a tudo.
Então, subitamente, num ímpeto que lhe percorreu todo o ser, espécie de fluido luminoso que lhe proporcionava uma satisfação perfeita, inexprimível, da vontade, bateu com toda força na cabeça dele, com a bola, aquela jóia de pedra tão preciosa. Os dedos, porém, que apertavam a estranha arma, fizeram amortecer a pancada. Contudo, Birkin bateu com a testa de encontro à mesa, onde repousava o livro; a bola escorregou de lado, pela orelha abaixo. Hermione sentiu uma excitação de prazer, aumentada pela dor que experimentava nos dedos Mas ainda não era bastante. Ergueu o braço mais alto para vibrar novo golpe, justamente sobre aquele crânio apoiado ali à mesa. Precisava parti-lo, era preciso que assim fosse para que o seu espasmo atingisse o auge. Mil vidas ou mil mortes não teriam agora nenhuma importância: o que lhe interessava era a realização completa do seu desejo.
No entanto, faltava-lhe vivacidade, não podia agir senão com lentidão. Rupert, num esforço supremo, reagiu, levantou a cabeça e fitou-a. O braço de Hermione estava outra vez no ar e a mão segurava a bola de lazulite. Era a mão esquerda; mais uma vez verificou ele, com horror, que Hermione se ajeitava melhor com esta. Imediatamente, em movimento instintivo, Birkin protegeu a cabeça com o volume de Tucídides. O golpe desferido foi atingi-lo no pescoço, fazendo-lhe o coração pulsar com violência.
Magoado, mas ainda com sangue-frio, deu uma volta e empurrou a mesa de maneira a colocar um obstáculo entre ambos. Sentia-se como um frasco reduzido a estilhaços; tinha a impressão de que todo ele era composto de fragmentos, de pedacinhos. Mas os movimentos continuavam coerentes e ágeis; a alma conservava-se íntegra e sossegada.
- Não, Hermione disse em voz baixa - não consentirei.
Via-a defronte dele, alta, lívida, expectante, com a pedra fortemente apertada na mão. Aproximou-se dela e ordenou:
- Afaste-se. Deixe-me sair.
Como se a mão de Rupert a empurrasse, Hermione recuou, fitando-o sempre, como um anjo derrotado que ainda o afrontasse.
- Não vale a pena - continuou ele, depois de se haver desvencilhado. - Não seria eu o assassinado. Percebeu?
Não deixou de olhá-la enquanto não saiu do quarto, com receio de que ela ainda tentasse alguma coisa. Agora que o homem recuperara o domínio, Hermione não se atrevia sequer a mexer-se. Estava salvo e ela recaíra na impotência. Finalmente, Rupert desapareceu. A mulher manteve-se de pé.
E assim ficou, grande espaço de tempo, absolutamente rígida. Depois dirigiu-se cambaleando para o sofá, onde se deixou cair, adormecendo profundamente. Quando acordou, lembrou-se do que fizera, mas com a impressão de que lhe havia batido - como qualquer outra mulher poderia ter feito pelo fato de que ele a torturara. Achava-se cheia de razão; pelo menos sentia que, em teoria, assim devia ser. Fizera o que fora do seu direito, consoante a sua justiça infalível. Era justiceira; estava inocente. E, no rosto, percebia-se uma expressão permanente de quase sinistro misticismo, um pouco entorpecido.
Birkin, vagamente cônscio do que se passara, mas andando perfeitamente, deixou a casa e atravessou o parque em direção às colinas, para se encontrar em pleno campo. O dia, que estivera tão claro, tornara sombrio; começavam a cair gotas grossas de chuva. Errou por ali, ate alcançar um canto agreste do vale, onde havia aveleiras em quantidade, imensas flores, montes de urzes e pinheirinhos novos cheios de rebentos tenros. Já estava tudo molhado. Ao fundo do vale, que parecia escuro, corria um riacho. Birkin admirava-se de não recuperar a perfeita consciência da situação; andava como que num sonho.
Sentia-se feliz naquele pedaço da colina coberto de plantas, sombrio por entre as ramadas floridas. Quisera poder tocar-lhes, saciar-se do contato daquele mundo vegetal. Despiu a roupa e sentou-se, nú, no meio das primaveras, agitando-as docemente com os pés, com as pernas, os joelhos, os braços, quase até aos ombros; depois estendeu-se no chão, roçando-as com a barriga, com o peito. Saturava-se daquele contato brando, fresco, sutil. Tudo aquilo era, porém, suave demais. Através do prado extenso procurou um grupo de pinheiros que não tinham mais altura do que um homem.
Os ramos macios e compridos batiam-lhe nas pernas, magoavam-no quando ele os afastava ao passar, vertiam-lhe no ventre frias gotas de água e espetavam-lhe os quadris com as folhas aguçadas. Sentiu-se ferido por um cardo, não muito fundo, porque os movimentos que fazia eram disciplinados e brandos. Estender-se no chão, revolver-se no meio dos jacintos úmidos e pegajosos, jazer de barriga para baixo e cobrir o corpo com punhados de erva tenra e molhada, suave como a brisa, mais leve, mais delicada, mais bela do que uma carícia de mulher; e depois roçar as coxas nas folhas dos pinheiros sombrios e viciosos; receber nos ombros a chicotada rápida dos ramos das aveleiras, que o espicaçavam ao mesmo tempo, abraçar o tronco prateado dos vidoeiros, sentindo-lhes a casca lisa ou rugosa, e os nós e os sulcos, tudo isso era bom, tudo isso era realmente bom e consolador. Mas de nada serviria, mais nada poderia satisfazê-lo. Somente aquela frescura e aquela sutileza da vegetação insinuando-se-lhe nas veias. Que felicidade para ele haver uma floresta tão deliciosa, perturbadora, tão igual à sua alma, esperando por ele! Como lhe matava a sede e a fome! Como Rupert se considerava venturoso!
Enquanto se enxugava com o lenço, Rupert lembrou-se de Hermione e do incidente. Sentia dores em um lado da cabeça. No fim de contas, que importância tinha isso? Que lhe interessava Hermione e todos os outros juntos? Bastava-lhe aquela solidão fresca, aprazível, inexplorada. Na verdade, cometera um erro quando pensou que lhe importava tal gente, ao supor que precisava de uma mulher. Não precisava de nenhuma, de nenhuma absolutamente. As folhas das plantas, as prímulas, as árvores, eis o que era adorável, apetecível, consolador; eis o que lhe penetrava no sangue e se misturava com ele. Sentia-se agora incomensuravelmente enriquecido e tão feliz!
Que Hermione houvesse pretendido matá-lo, achava ate natural. Que tinha de comum com aquela criatura? Que tinha que fazer com os outros seres humanos? Aqui é que estava o seu mundo, não queria nada mais senão a encantadora, sutilíssima vegetação irmã da sua alma; contentar-se-ia consigo, com o seu próprio ser.
Mas era preciso regressar ao seio dos homens. Não podia fugir a isso. Daí em diante já se conhecia bem. Sabia a quem devia pertencer. Sabia para onde fugir: sob as árvores, entre a folhagem deliciosa e fresca das plantas. Era ali o seu refúgio, o lugar do seu idílio. O mundo ficar-lhe-ia como estranho.
Subiu a colina, perguntando a si próprio se teria enlouquecido. Mas, caso assim fosse, preferia essa loucura a uma perfeita saúde de espírito. Rejubilava-se com tal insensatez, pois era livre. Não ambicionava o juízo decrépito da sociedade, que se lhe tornara odioso. Regozijava-se com a descoberta da sua nova demência. Considerava-se livre, puro, satisfeito.
Quanto a certo pesar que, ao mesmo tempo sentia na alma, isso não era mais, afinal, do que a reminiscência de uma velha ética que incitava os seres humanos a aderirem à humanidade. Mas estava cansado dessa moral já gasta, dos homens e de toda a coletividade. O que venerava agora era o reino vegetal, excelente, calmo, perfeito. Passaria sobre as dores antigas, poria de lado a velha ética, seria livre na nova ordem que fundava.
De minuto a minuto acentuava-se a dor que experimentara no crânio. Foi seguindo através da estrada, para alcançar a estação mais próxima. Chovia, e Birkin não trouxera chapéu. Mas quantos excêntricos não andam hoje na chuva, de cabeça descoberta!
Pensava também se não seria devido à ideia de que alguém o houvesse visto nu, estirado na terra, aquela preocupação que o acompanhava, certa depressão moral de que não conseguia livrar-se. A humanidade... os outros... ah, como odiava tudo aquilo! Este pensamento conduzia-o quase ao terror, uma espécie de pânico - ter sido observado por qualquer pessoa! Se estivesse em outra ilha, como Alexandre Silkirk - Marinheiro escocês desembarcado sozinho na ilha de João Fernandes, no Pacífico. A notícia das suas aventuras inspirou a Defoe o seu Robinson - nota da tradutora) só com os animais e as plantas, seria livre e contente, sem grandes apreensões, sem receios de qualquer espécie. Amaria à vontade os vegetais, seria feliz, livre dos importunos, a sós consigo mesmo.
Talvez fosse melhor escrever um bilhete a Hermione; ela poderia inquietar-se a seu respeito, coisa que Birkin não queria que sucedesse. Uma vez na estação, redigiu um bilhete:
"Parto para a cidade. Não desejo voltar por enquanto a Breadalby. Tudo vai bem. Não julgue, de maneira nenhuma, que me magoou. Diga aos outros que se trata de mais um dos meus caprichos. Teve muita razão em me agredir: bem sabia eu que era essa a sua vontade. E assim, tudo acabou".
No trem, entretanto, Rupert Birkin sentiu-se mal. Cada solavanco era uma dor que lhe causava; não estava bem de saúde. Da estação onde saltou seguiu à procura de um carro, andando devagar, como um cego, sustentado apenas pelo esforço obscuro da vontade.
Esteve doente durante uma ou duas semanas, mas nada comunicou a Hermione, que o julgava quando muito, zangado. Estabeleceu-se indiferença entre ambos. Ela absorvia-se no sentimento de que estava cheia de razão. Vivia na estima de si própria, persuadida da justeza do seu espírito.
Capítulo IX
Pó de carvão
De regresso à casa, de tardinha, depois da aula, as irmãs Brangwens desceram a colina, entre as pitorescas residências de Willey Green, ate atingirem a passagem de nível. Encontraram a cancela fechada, pois aproximava-se o trem da empresa de mineração. Ouviram a locomotiva ofegante avançar com precaução. O sinaleiro coxo, na guarita junto da linha, via-a chegar, em segurança, como um caranguejo escondido no seu buraco.
Enquanto as moças esperavam, apareceu Gerald Crich montado em uma égua baia de sangue árabe. Montava bem, com aprumo, contente por sentir entre os joelhos o estremecimento nervoso do animal. Tinha um ar pitoresco, pelo menos aos olhos de Gudrun, seguro e elegante sobre a esbelta égua, cuja cauda comprida flutuava ao vento. Gerald cumprimentou as duas irmãs e esperou que abrissem a cancela, olhando para a linha férrea para ver surgir o trem. Apesar do sorriso irônico que o seu aspecto despertava em Gudrun, a moça não se cansava de contemplá-lo. Gerald mantinha-se firme, à vontade; as cores quentes do rosto queimado faziam sobressair o bigode claro e áspero e os olhos azuis, na distância, cintilavam de uma luz muito viva.
A locomotiva arfava vagarosa, escondida ainda no meio dos taludes. A égua impacientava-se, começando a recuar, como se aquele barulho desconhecido a tivesse assustado. Mas o cavaleiro dominou-a, obrigando-a a enfrentar a cancela. As explosões repetidas da máquina chegavam cada vez com mais força, e aquele inimigo oculto, que produzia um ruído tão terrível, infundia pavor na égua, que saltou, como uma mola arrebentada. Gerald esboçou outro sorriso, e trouxe-a, como da primeira vez, ao seu lugar, sem que ela pudesse deixar de obedecer.
O barulho aumentou e a pequenina locomotiva, com a sua biela de aço rangente, surgiu na via férrea, matraqueando. O animal pulou como uma gota d'água sobre ferro em brasa. Úrsula e Gudrun, aterrorizadas, foram-se refugiar na sebe. Mas Gerald mantinha-se seguro e conseguiu conter a montaria. Parecia subjugá-la magneticamente e impôs mais uma vez a sua vontade.
- Que louco! - exclamou Úrsula em voz alta. - Por que não se afasta, ate que o comboio passe?
Gudrun admirava-o com os olhos dilatados, como que fascinada. Ele, porém, continuava teimoso, com o olhar brilhante, forçando a égua, que revoluteava, resistindo e desviando-se, sem poder, contudo, esquivar-se ao império do cavaleiro nem escapar ao estrépido enlouquecedor que a assustava, à medida que os vagões deslizavam pesados, vagarosos, amedrontadores, um após outro, como que perseguindo-se, sobre os trilhos da passagem de nível.
A locomotiva - dir-se-ia consciente das próprias manobras pôs um freio no seu entusiasmo, e os vagões percutiram-se nas molas de ferro, entrechocando-se como horríveis pratos de música, com um estrondo cada vez mais próximo e em pancadas medonhamente estridentes. A égua abriu a boca, erguendo-se, mas devagar, como se fosse levantada por uma rajada de pavor. Depois, de repente, as patas dianteiras agitaram-se, e o animal foi totalmente dominado pelo medo; as duas jovens agarraram-se uma à outra, certas de que cavalgadura e cavaleiro cairiam ambos por terra. Mas Gerald inclinou-se para frente, com o rosto a brilhar de prazer e obrigou o animal a abaixar as patas e regressar ao lugar de onde pretendera fugir. Tão forte como a pressão exercida pelo cavaleiro era a repulsa oposta pela égua, que a levava a evitar a proximidade da linha e, assim, ela volteou, apoiando-se nas pernas traseiras, sempre em roda, como se fosse o centro de um redemoinho. O espetáculo produziu em Gudrun vertigens e aflições,
- Não! Não! Deixe o animal! Que imprudência! - gritou Úrsula com voz alterada, completamente fora de si. A irmã deplorou aquela falta de classe, principalmente o tom de voz que Úrsula empregara, metálica e penetrante.
O olhar de Gerald parecia morder a égua como um gume afiado, obrigando-o a dar meia volta. O animal relinchava, abria desmesuradamente as narinas, como se fossem fornalhas ardentes, escancarava a boca, arregalava os olhos. Era um espetáculo impressionante. Mas Gerald mantinha-o obediente, com uma inexorabilidade quase animal, rija como se uma espada o atravessasse. Tanto o homem como o animal estavam cobertos de suor. Gerald, entretanto, mantinha-se perfeitamente controlado.
Os vagões desfilavam muito lentamente, dando trancos uns nos outros, numa espécie de pesadelo sem fim. As correntes que os uniam gemiam e chiavam em variados tons; a égua escarvava, recuava de vez em quando, cheia de terror, agora que o cavaleiro a dominava inteiramente; dava patadas às cegas, de modo impressionante, e Gerald apertava-lhe os flancos, prendendo-a, como se ela fizesse parte do seu próprio corpo.
- Está sangrando! - exclamou Úrsula, furiosa com o homem e aborrecida com a cena. Só ela compreendia tudo, dado o contraste de temperamentos.
Gudrun viu as gotas de sangue na barriga do animal e empalideceu. Naquele momento, sobre as próprias feridas, as esporas faiscantes fizeram nova pressão. Gudrun sentiu a cabeça rodar, tudo desapareceu da sua vida.
Quando voltou a si, tinha o espírito tranquilo e indiferente; não conseguia pensar. Os vagões continuavam a deslizar e o homem e a égua lutavam sem descanso. Mas Gudrun estava alheia e serena, já não sentia: ficara completamente fria e insensível.
O ruído da máquina diminuía; breve cessaria o intolerável entre chocar de ferros. A égua, meio aturdida, arfava pesadamente. Gerald parecia confiante: sua vontade corajosa triunfara. Um empregado observava a cena. E, através dos olhos do homem, Gudrun pôde reconstituir todo o espetáculo, fixando-o para a eternidade.
Adorável, grato silêncio sucedia à balbúrdia do comboio: delicioso silêncio! Úrsula lançou um olhar raivoso às ferragens do último vagão, que já sumia na distância o guarda estava à porta da sua casinhola, pronto para abrir a canela. Mas Gudrun, subitamente, colocou-se à frente do animal rebelde, levantou a tranca e separou os dois batentes da portinhola, empurrando um para cima do guarda e correndo através do outro que escancarou sobre a linha. Gerald deixou a égua seguir. Foi então que Gudrun bradou-lhe em voz aguda e estranha, qual bruxa que gritasse à passagem do viajante:
- O senhor é um vaidoso!
As palavras foram pronunciadas clara e nitidamente. Gerald, torcendo o corpo sobre a montada, que ia cabriolando, olhou, surpreso e interessado. Depois, o animal, tendo batido por três vezes com os cascos nos trilhos da via férrea, batidas que ressoavam como tambores, saltou com agilidade e alcançou a estrada.
As jovens ficaram observando montaria e cavaleiro desaparecerem. O guarda-cancela veio coxeando, fazendo retinir nos barrotes da via as pancadas da sua perna de pau. Fechou a portinhola e, voltando-se para as duas irmãs, disse:
- Estupendo cavaleiro! Faz o que quer com a montaria.
- É verdade- concordou Úrsula com a sua voz quente e dominadora - Mas por que não conservou a montaria afastada ate que o comboio passasse? É louco. É um déspota. Não vê que não é humano tratar assim um animal? É um ser vivo, não pode ser tratado com tamanha brutalidade.
Houve uma pausa. O guarda inclinou a cabeça e tornou a falar:
- É isso mesmo. E a égua é esplêndida. Linda estampa. Mas, o pai dele não trataria assim um animal daqueles. Nunca vi duas pessoas tão diferentes, o Sr. Gerald e o pai.
Seguiu-se novo silêncio.
- Por que será que ele procede assim? - exclamou Úrsula. - Supõe ser sinal de valentia brutalizar um animal tão sensível, dez vezes mais sensível que ele?
Ficaram de novo calados. Depois o homem abanou a cabeça, como se não fosse dizer mais nada, embora continuasse pensativo. Falou, finalmente:
- Acho que ele está acostumando a égua a não ter medo de nada. É um puro-sangue árabe; não estamos acostumados a ver disso por aqui. Completamente diferente dos nossos cavalos. Dizem que foi comprado em Constantinopla.
- Ah, sim? - retorquiu Úrsula. - Mais valia que o tivessem deixado com os turcos, que o tratariam, estou certa, com mais humanidade.
O homem entrou em casa, para tomar o seu chá e as moças seguiram pelo atalho, coberto de uma camada de poeira negra e mole. Gudrun parecia entorpecida pela impressão causada pela presença imponente e desembaraçada daquele homem a cavalo: louro, as pernas fortes e implacáveis dominando o corpo fremente do animal, certo de que não seria desobedecido; espécie de império instintivo e magnético mantido pelos quadris, pelas coxas e pela barriga das pernas, com que fechava e envolvia pesadamente a égua, obrigando-a a uma incompreensível subordinação, sujeição, para o animal, inevitável.
Enquanto as jovens iam andando, percebiam surgir, à esquerda, enormes montes de hulha e depósitos de carvão, a estrada de ferro, enegrecida com as carretas paradas, tudo aquilo dando a impressão de um porto submerso de uma vasta baía onde tivessem ancorado vagões.
Perto da segunda passagem de nível, que atravessava inúmeros trilhos luzidios, havia uma herdade pertencente à empresa; no campo ao lado da estrada repousava silencioso um enorme globo de ferro, antiga caldeira enferrujada, em torno da qual ciscavam galinhas com seus pintinhos.
Do outro lado da passagem, a um canto da estrada, elas notaram um amontoado de pedras de tom cinza-claro, destinadas à reparação da estrada, e uma carroça parada. Curvado sobre a pá estava um homem de meia idade, a conversar com um rapaz de polainas, em pé junto ao cavalo. Tanto um como o outro olhavam para a passagem de nível.
Viram as duas se aproximar, figuras pequeninas e luminosas, no esplendor da tarde. Ambas usavam trajes claros e alegres: Úrsula, um casaco de malha alaranjada; Gudrun, um vestido amarelo-pálido. As meias da primeira eram cor de canário, as da segunda, em tom rosa brilhante; seus vultos pareciam cintilar à medida que se aproximavam do vasto espaço da encruzilhada: o branco e o amarelo, o cor-de-rosa e o alaranjado faiscavam ao mover-se naquele mundo ardente, obstruído pelo pó de carvão.
Os dois homens, imóveis e silenciosos, ficaram observando as duas, sob um sol tórrido. O mais velho deles era baixo, de rosto duro e enérgico; o mais moço, um operário, devia ter uns vinte e três anos. Viram as duas passar e viram-nas desaparecer na estrada poeirenta ladeada de casas e de campos de trigo tenro.
Foi o mais velho quem disse ao outro, em tom malicioso:
- Quanto deve valer aquilo? Confesso que me calhava às mil maravilhas.
- Qual delas? - perguntou o rapaz, cheio de curiosidade.
- A das meias cor-de-rosa. Eu daria o meu salário de uma semana, só por cinco minutos. Palavra, só cinco minutos...
O rapaz tornou a rir, replicando:
- A sua patroa haveria de gostar muito...
Gudrun voltou-se e deparou com os dois homens. Pareceram-lhe criaturas sinistras, ali paradas perto do monte de escórias. Achava-os detestáveis, principalmente o velho.
- É da alta, não é? - gritou, quase.
- Acha que ela vale uma semana de salário? - tornou o rapaz, pensativo.
- Eu não pensaria duas vezes!
O rapaz examinou Gudrun e Úrsula com ar sério, como se tentasse calcular o que valiam, certificar-se de que pudessem merecer uma semana de salário. E abanou a cabeça com ceticismo.
- Não - declarou. - Eu não pagaria tanto.
- Pois para mim - disse o mais velho - garanto-lhe que vale.
E continuou a remexer as pedras com a pá.
As moças desceram a estrada entre as casas de telhado de ardósia e paredes de tijolo enegrecido. O sol começava a declinar na sua opulência dourada, iluminando toda a região mineira; a fealdade que a beleza da tarde punha a descoberto era como que um narcótico para os sentidos. Nos caminhos cobertos de pó preto, a luz tombava com mais calor, mais pesadamente; e, por cima daquela sordidez amorfa, fundia-se uma espécie de esplendor mágico lançado pelo crepúsculo.
- Este lugar é, ao mesmo tempo, encantador e asqueroso - comentou Gudrun, impressionada, evidentemente, com tudo aquilo. - Não se encontra aqui um certo estímulo sensual? Acontece isso comigo e é uma coisa que eu não consigo entender.
Passaram pelo aglomerado de casas dos mineiros. Em alguns pátios, situados nos fundos, podiam-se descobrir operários que se lavavam ao ar livre, nus ate a cintura, com as largas calças escorregando-lhes pelas pernas abaixo. Outros, já prontos, estavam de cócoras, costas apoiadas à parede, conversando, ou calados, aproveitando o seu bem-estar físico, o descanso após um dia de trabalho. Vozes ressoavam com acentos fortes, e o dialeto rude que empregavam estremecia os ouvidos de quem os escutasse. Esse quadro envolvia Gudrun numa cariciosa atmosfera mineira; errava no espaço o vigor físico dos homens, uma camada espessa de vida operária e de virilidade. Era assim em toda a região e os habitantes nem percebiam mais.
Para Gudrun, contudo, o ambiente era forte em demasia. Nunca pudera explicar por que motivo Beldover se mostrava tão completamente diverso de Londres e do Sul, por que razão os sentimentos se diferenciavam tanto, a ponto de se julgar viver em outro hemisfério. Agora, porém, compreendia que isso resultara da presença dos homens enérgicos que trabalhavam debaixo da terra, que passavam nas trevas a maior parte do tempo. Na linguagem deles havia a ressonância da escuridão, daquele mundo subterrâneo e poderoso, temível, descuidado e subumano. As vozes soavam como sons de máquinas estranhas, pesadas, cheias de óleo. Possuíam a volúpia semelhante à das máquinas, fria, dura como o ferro.
Era o mesmo todas as tardes, ao voltar para casa; tinha a impressão de que se debatia numa onda de força dissolvente, impressão que lhe vinha da presença de milhares de mineiros vigorosos, habituados à vida subterrânea e semitransformados em autômatos; aquela força lhe penetrava no cérebro e no coração, acordava-lhe desejos fatais e uma fatal insensibilidade. No entanto, sentia sempre saudade daquele lugar. Detestava-o, sabia que significava desterro, sabia que tudo era odioso, inerme, nauseabundo. Então, batia as asas como uma nova Dafne, transformada não em árvore, mas em máquina... A nostalgia, no entanto a atormentava. Procurava adaptar-se ao ambiente, procurando encontrar um pouco de alegria.
Às tardes, sentia-se atraída para a rua principal da cidade, tão inexpressiva e feia quanto repleta da mesma atmosfera fria e insensível. Havia sempre mineiros. Chegavam a impressionar com a sua dignidade não destituída de beleza, certa tranquilidade no porte e o ar abstrato e resignado dos rostos magros e pálidos. Pertenciam a um outro mundo, mas transmitiam um encanto singular.
Ela habituara-se a ir, com as outras mulheres do povo, à feira das sextas, à noite. A sexta-feira era o dia do pagamento dos operários, e, ao escurecer, abria-se o mercado.
Não havia mulher que não viesse para a rua, não havia homem que não Saísse, ou para fazer compras com a mulher ou para se juntar aos camaradas. Os caminhos léguas distantes, ficavam apinhados pela gente que os enchia, e a feira no alto da colina e a rua principal de Beldover enchiam-se também de compacta multidão.
Já estava escuro, o mercado exibia seus bicos de petróleo que projetavam clarões avermelhados nas faces graves dos compradores e no rosto pálido e absorto dos maridos. O ar vibrava com as conversas, e ondas compactas de gente avançavam pelas calçadas em direção às barracas. A rua pululava de homens, mineiros novos e velhos. O dinheiro corria com pródiga liberalidade.
As carroças que vinham já não podiam prosseguir. Seus condutores precisavam gesticular e esbravejar para que a multidão se afastasse. Por toda a parte se viam rapazes e moças. As portas dos bares estavam abertas e as lojas iluminadas, os homens entravam e saíam num fluxo e refluxo contínuo aqui e ali chamavam uns pelos outros ou corriam ao encontro dos conhecidos; às vezes ficavam de pé, em grupinhos, discutindo, discutindo sem cessar. O rumor das conversas, o zumbido confuso das discussões e das confidências, as intermináveis questões acerca de minas e política vibravam no ar como um mecanismo dissonante. Eram as vozes o que mais afetava Gudrun. Despertavam-lhe um desejo nostálgico e doentio, qualquer coisa de demoníaco, impossível de satisfazer.
Como todas as moças do povo que viviam no distrito, Gudrun ia e vinha ao longo da calçada, comprida uns duzentos passos, bem iluminada, muito perto da feira. Sabia que era um prazer popular e que a mãe e o pai não haveriam de entender; mas a nostalgia havia-se apoderado dela, precisava estar entre o povo. Uma vez por outra sentava-se no cinema, no meio de pessoas rudes. Era gente de aspecto libertino, que não inspirava simpatia. Mas Gudrun não conseguia dispensar a companhia dos outros.
E, como todas as moças da terra, acabou por encontrar o seu rapaz. Era um eletricista, recentemente contratado por Gerald Crich. Vivo, inteligente, dedicado às ciências, com decidida paixão pela sociologia, morava só, em uma casa que alugara em Willey Green. Era distinto, educado e ganhava o suficiente. A senhoria contava histórias a seu respeito: que exigia, no quarto, uma grande tina de madeira e que, ao voltar do trabalho, entornava baldes e mais baldes a fim de se banhar todos os dias. Envergava camisas, roupa de baixo e meias de seda escrupulosamente lavadas; sob esse aspecto, era enfadonho e meticuloso, mas, quanto ao resto, não se diferenciava dos outros e, acrescentava a velhota, não incomodava ninguém.
Gudrun estava a par de tudo isto. À residência dos Brangwens iam ter, natural e inevitavelmente, todos os falatórios das comadres. Palmer, a princípio, tornara-se amigo de Úrsula. Mas, naquele rosto pálido, delicado e sério, exprimia-se a mesma ansiedade que sentia Gudrun. Tinha também, como os outros, de cruzar a rua sexta-feira à noite; assim, começou a passear com a mais nova das irmãs, estabelecendo-se uma amizade mais estreita. Ele, no entanto, não estava apaixonado por Gudrun; desejava, na verdade, a outra, mas, por qualquer razão estranha, nada aconteceu entre os dois. Gostava de conversar com Gudrun devido às afinidades de espírito que notava nela somente por isso. A moça, por sua vez, não nutria por ele nenhum sentimento especial. Era um cientista, precisava de uma mulher que o ajudasse; mas faltava-lhe personalidade, dir-se-ia apenas possuir a delicadeza de uma peça bem trabalhada: frio em demasia, excessivamente egoísta para se ocupar verdadeiramente de uma mulher. Estava influenciado pelos homens, que individualmente lhe desagradavam e a quem ele desprezava, mas, que, em conjunto, o fascinavam, como o fascinava a mecânica. Constituíam, para ele, uma nova espécie de maquinismo - incalculável, incalculável...
Dessa maneira, Palmer e Gudrun passeavam pelas ruas ou se instalavam no cinema. A face dele, pálida e delicada, estremecia durante as observações sarcásticas que ela costumava fazer-lhe. Ei-los, pois, reunidos: eram dois elegantes, duas unidades que não pertenciam ao conjunto do povo, mas sentiam necessidade de irmanar-se àqueles mineiros rudes. O mesmo segredo parecia existir na alma dessas criaturas - de Palmer, de Gudrun, dos rapazolas de sangue na guelra, dos homens ativos e dos velhos. Todos possuíam um sentimento secreto de poder, da força inexprimível e destruidora, mas de fatal escassez de ânimo, uma espécie de podridão da vontade.
Às vezes Gudrun afastava-se, compreendia-se e se sentia naufragar. Então invadiam-na, furiosamente, a cólera e o desprezo. Tinha a sensação de afundar no anonimato junto com os outros, unida a eles, confundida, numa agonia sufocante... Era horrível. Preparou-se para fugir, começou a trabalhar de maneira febril. Mas não tardou muito que desistisse. Voltou à terra - aquela sua terra sombria e feiticeira, cuja magia novamente a dominou.
Capítulo X
Álbum de desenhos
Certa manhã estavam as duas irmãs desenhando, à beira de Willey Green, em um dos recantos mais afastados do lago. Gudrun atravessara a vau ate atingir um banco de areia e ali se sentara, como um monge budista, olhando fixamente para as plantas aquáticas que se elevavam opulentas acima das margens lodosas. Tudo o que os seus olhos viam era a terra lamacenta, mole, vertendo água, e dessa fria podridão erguiam-se as plantas, espessas, carnudas, frescas, muito rígidas e túrgidas, com as folhas saindo em ângulo reto. As cores eram sombrias, verde-escuro, com manchas de púrpura quase negras ou bronzeadas. Sentia-lhe a estrutura infiltrada dos tecidos, como uma coisa sensual, compreendia como elas se desenvolviam no lodo, fugindo a si mesmas, impondo-se vigorosamente, suculentamente, no espaço aéreo.
Úrsula admirava as borboletas, de que havia grande quantidade voando perto da água, umas pequeninas, azuis, nascidas subitamente do nada para a sua vida fulgurante; uma grande, verde e vermelha, pousara sobre uma flor e absorvia, com as asas sedosas, o ar puro e a claridade etérea, que a perturbavam; duas outras, brancas, que roçavam quase pelo chão, deixando um halo em volta; ah, quando passaram mais próximo, que tons de laranja lhes descobrira no rebordo das asas! Daí o reflexo que haviam deixado no ar. Úrsula pôs-se de pé e afastou-se, inconsciente como as próprias borboletas.
Gudrun, absorta na contemplação das plantas aquáticas, fascinada de as ver surgir assim, descansava na restinga do lago e continuava a desenhar, quase sem levantar a cabeça; mas, quando o fazia, extasiava-se à vista dos caules rígidos, suculentos e uns que emergiam do fundo. Ele se descalçara e atirara o chapéu para a margem fronteira.
Sobressaltou-a o chapinhar de remos na água. Olhou em volta e viu um barco com um toldo vistoso, conduzido por um homem vestido de branco. Era Gerald. Vinha com ele uma mulher: Hermione. Gudrun reconheceu-os instantaneamente e instantaneamente experimentou um arrepio agudo de antecipação, espécie de vibração elétrica nas veias, tão ou mais intensa do que aquela que zumbia pesadamente na atmosfera de Beldover.
Gerald seria, para ela, um meio de fugir ao turvo lamaçal do mundo de mineiros pálidos e automáticos. Elevava-se acima do limo impuro; era o patrão. Gudrun via-o de costas, admirava-lhe o movimento dos músculos brancos - ou melhor, ele é que envolvia a brancura quando remava, inclinado para a frente. Parecia curvar-se para abranger o mundo. Os cabelos muito claros e luminosos davam a impressão de recolher a eletricidade atmosférica.
- Lá está Gudrun! - ouviu-se a voz de Hermione, flutuando distintamente sobre a água. - Quer ir falar-lhe? Não se importa?
Gerald voltou a cabeça e descobriu a jovem à beira do lago, olhando para ele. Dirigiu o barco para lá, como se tivesse sido atraído, sem ao menos pensar no que fazia. No seu mundo consciente, Gudrun ainda não existia, mas era do jeito de Hermione desfazer as diferenças sociais, pelo menos na aparência.
- Como está, Gudrun? - disse Hermione em sua voz modulada e tratando-a pelo nome de batismo, o que julgava mais elegante. - O que está fazendo aí?
- Como vai, Hermione? Estou desenhando.
- Ah! - o barco continuava a aproximar-se ate tocar na margem. - Posso ver? Sempre gostei dos seus trabalhos.
Não valeria a pena opor-se a um desejo de Hermione.
- Pois não... - respondeu a artista um pouco constrangida. Sempre detestara mostrar trabalhos incompletos. - É coisa de pouco interesse...
- Acha? Deixe-me ver, por favor.
Gudrun levantou o álbum dos desenhos e Gerald estendeu o braço para o receber. Ao fazer isso lembrou-se das últimas palavras que ela lhe dissera e do rosto da jovem levantado para ele, quando estava montado a cavalo. Sentiu um estremecimento de orgulho, sentia que atraía aquela mulher. Havia entre os dois uma permuta de sentimentos bastante forte, embora, por enquanto, alheia à consciência de ambos.
Como num encantamento, Gudrun via surgir o corpo de Gerald, qual labareda dó pântano, dirigindo-se para ela, com o braço estendido qual a haste de uma flor. A percepção aguda e voluptuosa que sentiu fez com que o sangue arrefecesse nas veias e o espírito se tornasse obscuro e inconsciente. Gerald balançava-se naturalmente na água como o tremular de uma chama. Voltando-se para observar o barco, notou que este sé afastara um pouco. Tomou o remo para o trazer de novo à terra. E a visão daquele homem remando lentamente, sobre a água parada e leve, dava-lhe a perturbação deliciosa de uma vertigem.
- Foram aquelas que desenhou? -perguntou Hermione, examinando atentamente as plantas da margem e comparando-as com o esboço de Gudrun. Ela olhou na direção apontada e confirmou:
- Aquelas mesmas - respondeu distraidamente, sem prestar a menor atenção à pergunta.
- Deixe-me ver - acudiu Gerald, inclinando-se para segurar o caderno. Mas Hermione não fez caso do pedido; que tinha o rapaz de se intrometer, antes que ela o apreciasse à vontade? Ele, porém, cuja vontade era tão persistente quanto a dela, continuou de braço estendido ate conseguir tocar no álbum. Hermione sobressaltou-se com aquela teimosia; largou o álbum antes de Gerald o ter segurado e o resultado é que ele caiu na borda do barco e escorregou para o lago.
- Ora! Que desastrado! - exclamou Hermione em tom de triunfo maldoso. - Veja se o pode salvar, Gerald!
As últimas palavras foram pronunciadas com ansiedade zombeteira, o que encheu o outro de raiva contra ela. Inclinou-se para a água, demasiadamente estendido fora do barco - posição ridícula de que ele próprio se compenetrou.
- Não vale a pena - dizia Gudrun, em voz alta. Gerald estirou-se ainda mais, e o barquinho adernou bruscamente. Hermione ficou imperturbável. O rapaz alcançou, finalmente, o álbum, e levantou-o. gotejante.
- Sinto! Sinto muito! - repetia Hermione. - Acho que a culpa foi minha.
- Não tem importância, palavra de honra. Não faz mal nenhum - respondia Gudrun, com o rosto vermelho. Depois, estendeu a mão, impaciente, para recuperar o livro molhado e pôr fim àquela cena. Gerald atendeu-a, um pouco desconcertado.
- Sinto muito - tornou a dizer Hermione. Gudrun e Gerald já estavam desesperados. - Acha que tem remédio?
- Remédio, como? - repetiu a outra, ironicamente.
- Os desenhos podem ser salvos?
Houve um momento de silêncio, durante o qual a artista deu claramente a entender que não apreciava a insistência de Hermione.
- Os desenhos estão tão bons como antes - respondeu Gudrun. - Preciso deles apenas como documentação.
- Permite que lhe ofereça um álbum novo? Dê-me esse prazer. Isso aborreceu-me tanto. Sinto-me a única culpada.
- Pelo que pude observar - assegurou Gudrun - a culpa não foi sua. Se alguém a teve, foi o Sr. Crich. Mas isso não tem importância, é tolice falarmos mais no assunto.
Enquanto ela recusava a oferta de Hermione, Gerald observava-a atentamente. Havia nela uma vontade fria. Examinava-a com tal profundidade que chegava quase à clarividência. Via naquela criatura um espírito perigoso, hostil, incapaz de se deixar abater ou diminuir. E, além disso, era perfeita e completa nas suas atitudes.
- Ainda bem que o prejuízo não foi maior - disse ele.
Gudrun mirou-o com os seus belos olhos azuis e achou-se inteiramente integrada naquela alma; e assim respondeu - agora que se dirigia a ele - com uma voz que soou cheia de intimidade, como se fosse uma carícia:
- É verdade, afinal de contas, não houve prejuízo. Estabelecia-se um laço entre os dois, e o olhar e o tom das palavras estreitaram ainda mais. Ele sentia o quanto tinham de iguais, como se entre um e outro se houvesse estabelecido uma espécie de maçonaria. Daí por diante - Gudrun bem o sabia - teria domínio sobre aquele homem. Em qualquer lugar em que se encontrassem, estariam secretamente associados. No par, seria ele o mais fraco. A alma dela exultava.
- Adeus! Ainda bem que me perdoou. Ade-e-e-eus!
Hermione despedia-se num grito cantado, acenando com a mão. Gerald, automaticamente, pegou o remo e fez-se ao largo. Mas continuou a olhar para Gudrun, com uma admiração que lhe fazia sorrir e cintilar os olhos. A moça, na margem, agitou por momentos o álbum molhado. Depois, voltou-se, esquecida do barco que se afastava. Gerald, porém, não cessava de olhar para ela enquanto remava, indiferente a tudo o mais que fazia.
- Não estamos nos afastando muito para a esquerda? - perguntou Hermione que se sentara, distraída, debaixo do toldo colorido.
Gerald olhou, sem responder, para os remos que mergulhavam na água e espelhavam ao sol.
- Creio que estamos indo bem - respondeu ele, por fim, de bom humor, recomeçando a remar sem perceber. Hermione odiou-o pelo seu ar de felicidade e pelo pouco caso que fazia dela. Sentia-se aniquilada, incapaz de recuperar a sua importância.
Capítulo XI
Uma ilhota
Entretanto, Úrsula desviara-se de Willey Water, seguindo o curso do riacho cintilante. Cantos de calhandras enchiam o ar naquela tarde. Pela encosta brilhante da colina ardia um fogo rasteiro, sem chamas. À beira da água os miosótis floriam, em tudo se notava o esplendor e a alegria da vida.
Abstrata, errava por ali, contemplando os arroios. O seu desejo era atingir a lagoa do moinho, cuja casa estava deserta: viviam na casa apenas um trabalhador e a mulher deste. Úrsula atravessou o pátio vazio e um jardim abandonado e subiu a encosta pelo lado da comporta. Quando chegou em cima e pôde descobrir a superfície da água imóvel, percebeu que, à beira da água, havia um homem consertando um barco de fundo chato, serrando e martelando. Era Birkin.
Úrsula deteve-se a observá-lo. Ignorante da presença de mais alguém, ele aferrava-se ao trabalho, ativamente, esforçadamente, como um operário. A jovem sentiu que deveria afastar-se. Rupert não desejaria falar-lhe, ocupado como estava. Mas na verdade ela não sentia vontade de partir, de modo que foi caminhando pela margem ate que ele a visse.
O que, aliás, não demorou muito. Quando a avistou, Rupert largou as ferramentas e veio ao encontro da professora, dizendo:
- Como vai? Estou vedando melhor o barquinho. Será que vai ficar bom? Acho que você poderia dar-me uma opinião autorizada.
Ela inclinou-se e examinou os remendos.
- Bem na verdade, não entendo nada de carpintaria. Tenho a impressão de que está bem assim.
- Espero que ele não afunde. Quer ajudar-me a lançá-lo à água?
Ajudando-se mutuamente, eles conseguiram virar a canoa, que era pesada, e pô-la a flutuar.
- Agora - disse ele - vou experimentar e você observa o que vai acontecer. Se der bom resultado, virei buscá-la para irmos à ilhota.
- Combinado - concordou Úrsula, observando a manobra com a maior atenção.
- A lagoa era extensa; perfeitamente imóvel e com o tom sombrio das águas profundas. Havia duas ilhotas no meio com arbustos e árvores. Birkin afastou-se e fez uma volta bastante desajeitada. Felizmente a canoa descaiu de modo que ele pôde agarrar um galho de salgueiro e desse modo aproximar-se da ilha.
- A mata está cerrada - declarou, olhando para o interior. - Mas é muito bonita. Vou buscá-la. O barco está fazendo um pouquinho de água. - Pouco tempo depois ele voltou para junto de Úrsula, que entrou na canoa molhada.
- Vai conduzir-nos direitinho - disse ele. E manobrou de novo em direção à ilha.
Desembarcaram debaixo de um salgueiro. A moça atemorizou-se com a vegetação inóspita que se lhe deparou. Cheirava à plantas deterioradas. Birkin, porém, tomou a dianteira.
- Vou ceifar tudo isto - explicou. - E ficará uma coisa romântica, do gênero Paulo e Virgínia.
- Poderemos fazer adoráveis piqueniques à Watteau - exclamou Úrsula, entusiasmada.
Birkin tomou uma expressão melancólica.
- Não, aqui não quero piqueniques à Watteau.
- Só quer a sua Virgínia. Sorriu com amargura e acrescentou: - Não, nem sequer a desejo.
Úrsula reparou melhor no amigo, que não via desde a estada em Breadalby. Ele mostrava-se mais magro, com as faces cavadas e um ar espectral.
- Esteve doente, não é verdade? - perguntou-lhe, um tanto penalizada.
- Estive - confirmou Birkin, secamente.
Haviam-se sentado debaixo do salgueiro, e daquele refúgio da ilhota contemplavam a lagoa.
- Ficou preocupado? - indagou a companheira.
- Com quê? - perguntou ele, voltando-se para Úrsula. Havia naquele homem algo de inumano e de imoderado que a perturbava e a punha, às vezes, fora de si.
- De estar doente. De estar muito doente.
- Não é muito agradável. Mas ter ou não ter medo da morte, não sei... Tudo depende da disposição de cada um.
- Mas, pelo menos, não sente vergonha, não é? Sempre achei que o fato de estarmos doentes nos deveria envergonhar; doença é coisa tão humilhante!
Rupert refletiu durante alguns instantes.
- É possível - disse - embora saibamos que a vida, na sua origem, não é realmente honesta. É nisso que está a humilhação. Não me parece, no fim de contas, que doença seja coisa muito importante. Adoecemos porque não vivemos como deveríamos viver. É o fracasso da vida que produz a doença e a humilhação.
- Considera-se fracassado? - inquiriu a moça em tom de brincadeira.
- Claro que sim. Nunca fui um vitorioso durante toda a minha existência. Sempre tive a impressão de bater com o nariz na porta.
Úrsula pôs-se a rir. Estava um pouco assustada e, quando isso acontecia, costumava rir e fingir-se muito à vontade.
- Pobre nariz! - exclamou, olhando-o bem no rosto.
- Não admira que seja feio - retrucou Birkin.
Úrsula calou-se durante algum tempo, lutando contra a sua própria decepção. Era instintivo o costume que tinha de enganar a si mesma.
- Quanto a mim, sou feliz. Acho a vida agradabilíssima.
- Talvez - atalhou ele, com relativa indiferença.
Ao colocar a mão no bolso do casaco, Úrsula encontrou um pedaço de papel desses de embrulhar chocolate. Retirou-o e começou a fazer um barquinho. Rupert observava-a distraidamente. Havia algo de estranho nos movimentos que ela fazia com as pontas dos dedos, inconscientemente. Ele se sentiu comovido.
- Divirto-me com as coisas. E você?
- Eu fico furioso por não poder atingir o ângulo de mim mesmo. Sei que me confundo, que não triunfo em coisa alguma. Não sei nunca o que devo fazer... se é que devo fazer alguma coisa.
- Para que trabalhar? Isso é tão plebeu! Acho melhor ser-se exclusivamente nobre e nada fazer senão existir; ser como uma flor que se movesse...
- Concordo plenamente - tornou ele - se a flor desabrochar. Quanto a mim, jamais conseguirei que desabroche. Ou se estiola ainda em botão, ou apodrece ou morre de sede. Maldita flor, que não chega sequer a despontar! Há sempre uma dificuldade qualquer pelo caminho.
Úrsula tornou a rir. Ele estava tão nervoso, tão exasperado! Ela, por sua vez, ansiosa e preocupada. Que resolução tomar? Teria de fazer alguma coisa.
Calaram-se por momentos, durante os quais ela sentiu vontade de chorar. Pegando outro pedacinho de papel, fez um novo barco. Por fim, exclamou:
- Como é possível não haver floração nem dignidade na vida humana?
- Atualmente ate as ideias desapareceram. A própria humanidade seca ou apodrece. Há miríades de seres pendentes dos ramos, com aparência rósea e tentadora, como as moças saudáveis que vemos por aí. Mas são maçãs de Sodoma, na realidade; frutos do Mar Morto, frutos da amargura. Não é possível que signifiquem outra coisa. O interior está cheio de cinza ácida e corrompida.
- No entanto, há gente capaz... - insistiu Úrsula.
- É possível. Mas a humanidade não passa de uma árvore que secou, coberta de belas e brilhantes frutas secas, que somos nós...
Úrsula não pôde deixar de se insurgir contra aquele discurso, ao mesmo tempo categórico e pitoresco. Desejava, contudo, ouvir o resto.
- Mas se assim é, como se explica? - perguntou com ar hostil. Excitavam-se um ao outra no entusiasmo da contradição.
- Por que é que os homens são invólucros de poeira amarga? É porque não tombam da árvore quando estão maduros. Ficam dependurados e aquela posição já não é mais adequada. Finalmente, os vermes o invadem e eles apodrecem.
Houve um grande silêncio. A voz de Birkin tornara-se ardente e bastante sarcástica. Úrsula estava perturbada, desnorteada. De tudo ambos se esqueciam, exceto da própria paixão.
- Admitindo que todos procedem mal... você é, por acaso, exceção à regra? - perguntou ela. - Em que você é melhor do que os outros?
- Eu? Eu não sou melhor - declarou Rupert.
- Mas reconheço os fatos e é nisso que repousa a única superioridade que possuo. Detesto o que sou exteriormente. Odeio-me como ser humano. A humanidade é um imenso agregado de mentiras, mas uma grande mentira vale menos do que uma pequena verdade. A humanidade vale menos, muito menos do que o indivíduo, pois este, às vezes, é suscetível de verdade e aquela é um poço de convenções. E ainda dizem que o amor é coisa sublime! Persistem em afirmá-lo, os mentirosos, e veja o que fazem! Observe os milhões de pessoas que repetem constantemente que o amor é a maior coisa do mundo, a caridade também... e reparem como procedem. Pelos seus atos os conhecemos, cambada de intrujões e de covardes, que não se atrevem a tomar a responsabilidade das suas ações, e muito menos das palavras que proferem.
- Mas - interrompeu a professora com ar de tristeza - isso não desmente a tese de ser o amor a coisa mais importante da vida. O que eles fazem não altera ia verdade do que apregoam.
- Altera, sim, pois se o que dissessem fosse verdadeiro, não poderiam agir de maneira contrária. Mas conservam-se na mentira e, por fim, tudo fracassa. É errônea a afirmação de que o amor seja tudo para a humanidade. Poderíamos dizer, por exemplo, que o ódio também é tudo na vida, visto que o oposto de qualquer coisa equilibra a sua afirmação. As pessoas precisam é de ódio, ódio e nada mais. E em nome da justiça e do amor, não fazem senão espalhá-lo! Todas elas destilam nitroglicerina tudo por causa do amor. E a mentira mata. Se é de ódio que nós necessitamos, deixem-nos tê-lo, mais a morte, o crime, a tortura, a destruição violenta; deem-nos tudo isto, mas não em nome do amor! Detesto a humanidade, gostaria que fosse toda destruída. Não haveria grande prejuízo se a humanidade inteira perecesse amanhã. A realidade permaneceria intacta. Seria ate melhor. A verdadeira árvore da vida ficaria desembaraçada da colheita, mais pesada e pior que as maçãs de Sodoma, aquele fardo insuportável de miríades de simulacros humanos, peso infinito de mentiras letais.
- Com que, então, você deseja o aniquilamento da espécie humana? - perguntou Úrsula.
- Exatamente.
- E quer um mundo vazio?
- Sim. Você mesma não acha uma ideia deliciosa imaginar a Terra desprovida de gente? Tudo não passar de uma grande extensão de erva e uma lebre sentada em cima?
A sinceridade divertida daquela voz obrigou a professora a considerar sua própria situação. Não havia dúvida de que era uma perspectiva tentadora: um mundo limpo, encantador, deserto de seres humanos. O coração dela hesitava e exultava. Birkin, no entanto, não a satisfizera inteiramente com as suas teorias.
- Mas - objetou Úrsula - visto que você também teria morrido, que vantagem lhe adviria disto?
- Morreria contente, ao saber que a Terra ia ser depurada de todos os seus habitantes. Belo pensamento, verdadeiramente libertador! E depois, seria preciso não criar outra humanidade ignóbil para corromper o universo outra vez.
- Não - resumiu Úrsula. - Não haveria mais nada.
- Como? Mais nada? Apenas porque a humanidade foi destruída? Não tenha tal presunção. Ainda haveria muita coisa.
- Como, se morreriam todos?
- Supõe que a criação depende do homem? Não é verdade. E os pássaros? E as árvores? Prefiro imaginar um nascer do dia, na Terra, sem qualquer ente humano. O homem foi um equívoco, é preciso que desapareça. Existem as lebres, as serpentes, os seres invisíveis, anjos presentes em todos os lugares, quando a abjeta humanidade os não impede, e os demônios bons e puros. É admirável!
Aquilo que ele dizia encantava Úrsula, encantava-a como uma fantasia deliciosa. Apenas uma fantasia, é claro. Ela própria sabia o que era a humanidade, a odiosa humanidade de agora; não seria fácil vê-la desaparecer de repente. Havia ainda um longo caminho a percorrer, longo e doloroso. Conhecia tudo isso muito bem, no seu espírito sutil, inteligente e feminino.
- Se ao menos se expulsasse o homem da Terra, a criação recomeçaria maravilhosamente, de um ponto de partida não humano. O homem foi um dos erros da criação, assim como o ictiossauro. Se desaparecesse também, como seriam agradáveis os dias deste mundo! Puros como se viessem diretamente das mãos de Deus.
- Contudo - objetou ela -o homem nunca desaparecerá. - Falava com absoluta certeza dos horrores daquela permanência. - E o mundo acabar-se-ia com ele.
- Ah, não - acudiu Birkin. - Não é assim. Creio nos anjos orgulhosos e nos demônios que são os nossos predecessores. Também os ictiossauros não o eram: rastejavam como nós. Veja, agora, as flores dos sabugueiros e as campânulas: provam a existência da criação pura; e a borboleta? Mas a humanidade nunca ultrapassou o estágio de lagarta; apodrece na crisálida e jamais adquire as asas. É uma anticriação, como os macacos.
Enquanto Birkin falava, Úrsula não tirava os olhos dele, em que pareceu vibrar uma espécie de furor impaciente, embora parecesse divertido com as próprias teorias, tolerante, até. Mas era daquela tolerância que Úrsula desconfiava. Notara bem, que, apesar de tudo, Rupert tentava salvar o mundo. Isso trouxe-lhe um certo conforto à alma e contudo, encheu-a de ódio e de desdém pelo homem. Queria-o só para si, detestava o papel de Salvador Mundi que se arrogava. Era esse aspecto difuso e generalizador o que Úrsula mais abominava. Birkin teria procedido da mesma maneira, dito as mesmas palavras, ter-se-ia aberto completamente a quem quer que fosse, a este ou aquele que o tomasse por confidente. Achava aquela atitude intolerável, considerando como que uma forma insidiosa de prostituição. De maneira que lhe disse:
- Crê, ao menos, no amor individual, já que não acredita no amor universal?
- Não creio em amor algum, quero dizer, não creio tanto quanto creio na dor e no ódio. O amor é uma emoção como outra qualquer e tudo vai bem quando a sentimos. Mas não vejo como pode transformar-se em coisa absoluta. Faz parte apenas das relações humanas, e nada mais. Nunca se encontra fora dessas relações humanas. E por que o haveríamos de sentir mais intensamente do que sentimos tristeza e alegria? Não concebo tal hipótese. O amor não é um desideratum, é uma emoção que se pode ou não experimentar, de acordo com as circunstâncias.
- Então, por que motivo se preocupa com os outros - perguntou ela - se não crê no amor? Que lhe interessa a humanidade?
- Por quê? Porque não consigo evitar.
- E por que ama o seu semelhante? - acrescentou Úrsula.
A insistência irritou-o. Mas replicou:
- Se amo, isso faz parte do meu quadro mórbido.
- É uma doença de que você pão deseja ficar curado - comentou a moça, friamente, com ar zombeteiro.
Rupert calou-se e teve a impressão de que ela queria magoar.
- Se não acredita no amor, então em que é que crê? - prosseguiu a professora, sempre irônica. - Apenas no fim do mundo e na vegetação?
Birkin começava a sentir-se tolo. - Creio nos seres invisíveis.
- E em nada mais? Não confia nas coisas visíveis à exceção das plantas e das aves? O mundo da sua concepção é um espetáculo muito insípido.
- Talvez - respondeu o inspetor, cheio de superioridade e de frieza, agora que se considerava ofendido. Tomara uma atitude afetada, aumentando a distância entre ambos.
Úrsula achou-o antipático, mas sentiu que perdera qualquer coisa. Observou-o sentado na margem da lagoa, e descobriu-lhe um ar de rigidez pretensiosa e dogmática, verdadeiramente detestável. E, no entanto, o aspecto daquele homem era fino e atraente, inspirando uma sensação de autêntica liberdade, que se lhe irradiava das sobrancelhas, do queixo, de todo o físico, algo de muito vivo, em qualquer parte do seu ser, apesar da aparência doentia.
Aquela diversidade de sentimentos que Rupert despertava em Úrsula fazia mover nas entranhas desta uma aversão não destituída de certo encantamento. Era, por um lado, aquela maravilhosa e apreciada exuberância de vida, qualidade primacial de um homem para torná-lo atraente; por outro lado, aquela ridícula e mesquinha pretensão de salvador do mundo e o ar doutoral e pedante de professor do tipo empertigado.
Ele olhou para ela e viu-lhe o rosto estranhamente emocionado, como se de dentro para fora escapasse um fogo de avassaladora ternura. A alma de Birkin impressionou-se, deslumbrada. A jovem deixava-se devorar nas chamas do seu próprio incêndio interior. Levado por aquela sedução, sinceramente atraído, Rupert aproximou-se da companheira que estava sentada como uma rainha lendária, quase sobrenatural na opulência do seu sorriso esplendoroso.
- A verdade - disse ele, integrando-se rapidamente à situação - é que detestamos o amor porque vulgarizamos demasiadamente a palavra. Devia ser proscrita, proibida de ser pronunciada durante muitos anos, ate que descobríssemos outra nova e melhor.
Houve entre os dois uma centelha de entendimento recíproco.
- Mas o significado seria sempre o mesmo - observou ela. Ah, meu Deus! Não! Que signifique mais alguma coisa, e que o velho sentido da palavra desapareça...
- Será sempre amor - insistiu a jovem. Nos seus olhos brilhou um clarão dourado, perverso, singular.
Ele hesitava, confuso, receoso de se aproximar demais. Murmurou:
- Não, nunca mais se exprimirá pela voz. Não há necessidade de pronunciar a palavra.
- Cabe a você extrair, no momento propício, do Tabernáculo. - e calou-se, sorrindo.
Tornaram a fitar-se. Úrsula ergueu-se, de súbito, voltou-lhe as costas e começou a andar. Ele também se levantou, vagarosamente, e foi ate a beira da ilhota, onde, agachando-se, ficou brincando com a água, distraidamente. Colheu uma margarida e fê-la mergulhar; a haste funcionou como quilha e a flor flutuou como uma açucena aquática, desabrochada para o céu. E foi revoluteando, numa lenta dança de derviche, ate desaparecer.
Rupert lançou então outra flor à água, e depois outra e ficou a vê-las, com os olhos brilhantes, debruçado na lagoa. Úrsula voltou-se e olhou também. Apossava-se dela um sentimento estranho, como se estivesse presenciando algo de novo. Uma espécie de autodomínio chamou-a à realidade, sem que pudesse compreender bem o que estava sentindo. Via apenas as corolas cintilantes das margaridas desaparecerem vagarosamente naquela viagem através da água lustrosa e sombria. A flotilha de minúsculos barquinhos desaparecia como pontos brancos e luminosos, perdidos na distância.
- Vamos para a terra a fim de as acompanhar - disse ela, já assustada, sentindo-se uma prisioneira ali na ilha durante tanto tempo.
Entraram no barco. Úrsula sentia-se contente pelo regresso. Seguiu, ao longo da margem, até a comporta do reservatório. As florezinhas haviam-se espalhado por toda a lagoa e eram agora pontinhos radiantes de exaltação, aqui e ali. Por que motivo a comoviam tanto, de uma maneira tão intensa e tão mística?
- Repare - disse o inspetor - o seu barquinho de papel roxo está escoltando as flores; parece um comboio de jangadas.
Algumas margaridas vinham-se aproximando lentamente, hesitantes, simulando uma dança complicada na superfície das águas escuras Quanto mais perto estavam, mais a sua brancura comovia o coração de Úrsula, quase ao ponto de fazê-la chorar.
- Por que serão assim tão adoráveis? Por que as acho amorosas?
- Lindas flores - murmurou ele, sentindo-se tocado pela emoção daquela voz. Pouco depois acrescentou: - Você sabe que a margarida é uma flor composta, dando a impressão de uma só? Os botânicos a colocam no mais alto grau da escala do desenvolvimento, não?
- Sim, é composta - respondeu Úrsula - isto é, acho que sim. - Úrsula tinha o hábito de colocar em dúvida até o que ela sabia muito bem.
- Diga-me: a margarida é como uma democracia em ponto pequeno?
- Não, não. Ela não é democrática.
- Pois bem. É então a turba áurea do proletariado, cercada por uma pomposa guarda de ricaços indolentes.
- Que coisa odiosa! Ordens sociais!
- É verdade. Falávamos de uma flor. Deixemo-la continuar em paz.
- Sim. Deixá-la ser, por esta vez, uma espécie de concorrente ignorado. Se é que, para você, há alguma coisa ignorada... - acrescentou ela com ar sarcástico.
Conservaram-se distantes um do outro, imóveis e esquecidos. Apesar de meio estonteados, não percebiam a tonteira o insignificante conflito surgido entre eles dilacerava-lhes a consciência e deixava-os frente à frente, como duas forças despersonalizadas.
Rupert percebeu a situação e tentou dizer qualquer coisa, propondo outro passeio.
- Sabe que tenho acomodações no moinho? Vamos até lá para conversar mais um pouco?
- Ah, sim? - respondeu ela, fingindo não perceber aquela proposta para estreitarem o conhecimento.
Então, Birkin reconsiderou, e tornou-se imediatamente distante, como era seu costume.
- Se me convencer - prosseguiu - de que posso viver sozinho, renunciarei por completo ao trabalho. Não creio na humanidade para pretender fazer parte dela, pouco me interessam os ideais da sociedade em que vivo, detesto a moral moribunda desses tempos, de modo que trabalhar como educador não passa de uma ilusão. Direi adeus a tudo isso, assim que estiver livre... amanhã talvez... e serei apenas eu.
- Tem o suficiente para viver? - indagou Úrsula.
- Ganho cerca de quatrocentas libras por ano. Isso garante o meu conforto.
Houve um silêncio.
- E quanto a Hermione?
- Tudo acabou, finalmente. Puro fracasso, e claro que nunca poderia ter sido outra coisa.
- Ainda se falam?
- Seria difícil passarmos por estranhos, não lhe parece?
Houve outra pausa, mais demorada.
- Não será um rompimento passageiro? - perguntou Úrsula, finalmente.
- Acho que não. Você terá ocasião de constatar. Ficaram mais algum tempo sem falar Birkin refletia.
- Devemos repelir tudo, tudo, para podermos alcançar aquilo de que mais precisamos - sentenciou ele.
- Aquilo quê? - perguntou a jovem, com ar de desafio.
- Não sei... A própria liberdade.
Úrsula teria preferido que ele respondesse: o amor.
Ouviu-se, mais abaixo, cães ladrando raivosamente. Rupert ficou preocupado. Ela, contudo, nada percebia: apenas reparou que o companheiro parecia confuso.
- Acho - disse Birkin em voz baixa - que é Hermione chegando com Gerald Crich. Ela está interessada em ver os quartos, antes de serem mobiliados.
- Ah! Ela vai mobiliar a sua casa?
- Talvez. Isso tem importância?
- Oh, não! Creio que não. Eu, pessoalmente, não a posso suportar. Acho-a a personificação da mentira se me permite, já que me falou tanto na mentira. - Meditou durante um momento e depois explodiu: - Importo-me, sim. Importo-me que ela se meta nesse assunto da sua mobília. Importo-me bastante. Importo-me que você continue agarrado a ela!
Rupert ficou silencioso, com a testa franzida.
- Não preciso que ela me venha mobiliar a casa nem desejo ficar agarrado nela. Apenas, não vejo necessidade de ser grosseiro. Vamos ao encontro deles!
- Não estou com vontade - respondeu a moça indiferente e indecisa.
- Não está com vontade? Tolice! Venha comigo ver a casa.
Capítulo XII
Decoração
Rupert Birkin seguiu pela margem e Úrsula acompanhou-o, contrariada. Mas, se não fosse com ele, também teria ficado aborrecida.
- Conhecemo-nos muito bem, você e eu - disse Rupert. A moça não respondeu.
Na cozinha escura e ampla do moinho abandonado, a senhoria conversava com Hermione e com Gerald; tanto este, de branco, como a sua companheira, vestida de seda azulada e brilhante, punham manchas luminosas na obscuridade do aposento; ao mesmo tempo, em gaiolas penduradas na parede, uns doze canários cantavam com quanta força tinham. As gaiolas haviam sido colocadas em volta de uma janelinha quadrangular, na parte de trás, através da qual entravam raios de luz filtrados pelas folhas verdes de uma árvore. A voz da Senhora Salmon sobrepunha-se, muito aguda, à chilreada das aves, que se tornava, por sua vez, desenfreada e triunfante. Mas a da mulher redobrava de vigor e os pássaros treplicavam com maior animação.
- Cá está o Rupert! - exclamou Gerald no meio daquela espantosa confusão. Como tinha os ouvidos delicados, sentia-se aflitíssimo.
- Oh, que pássaros! Não deixam ninguém falar - observou a senhoria, irritada. - Vou cobri-los com um pano.
E precipitou-se em busca de qualquer coisa, pano de pó, avental, toalha ou guardanapo, com que os cobrisse.
- Agora, calém-se e deixem cada um dizer o que tem a dizer! - gritou ela, ainda mais esganiçada.
Os outros esperavam. Uma vez cobertas, as gaiolas tomaram um estranho ar funéreo. Mas, por debaixo das toalhas ainda escapavam pios e murmúrios de desafio.
- Vão ficar quietos - explicou a mulherzinha, a fim de reanimar os visitantes. - Não demora muito e adormecem.
- Sim... - disse Hermione com amabilidade.
- Com certeza - corroborou Gerald. - Vão dormir por efeito da noite artificial.
- São fáceis de iludir! - atalhou Úrsula.
- Ora! Não conhece a história de Fabre, que, em pequeno, pegou uma galinha e escondeu-lhe a cabeça debaixo da asa para que ela adormecesse depressa?
- E foi isso, Gerald, que lhe despertou a vocação de naturalista? - perguntou Birkin.
- Provavelmente - respondeu o outro.
No entanto, Úrsula espreitava, levantando uma das toalhas, a gaiola; e descobriu um dos canários, no canto do poleiro, preparando-se para dormir.
- Que ingenuidade! - exclamou ela. - Pensa mesmo que é noite. Que absurdo! Como se pode ter consideração por um bicho que se deixa enganar tão facilmente?
- Não há dúvida - concordou Hermione, com sua voz musical, pondo-se também a observar o pássaro. Colocou a mão no braço de Úrsula e riu entredentes. - Como isso é engraçado! É o mesmo que um marido estúpido! Depois - e ainda segurando o braço da professora - recuou um pouco e disse com a sua entonação de sempre:
- Qual foi o acaso que a trouxe aqui, Úrsula? Também encontramos a Gudrun.
- Vim passear na lagoa e encontrei o Sr. Birkin.
- São os domínios dos Brangwens, não é verdade?
- Assim pensei... Corri para aqui, para refugiar-me, e então os avistei, no lago, navegando...
- Ah, viu-nos?
As pálpebras de Hermione tremeram, num movimento involuntário, embora conservasse o seu ar desembaraçado e voluntarioso.
- Eu ia despedir-me - elucidou Úrsula. - Mas o Sr. Birkin insistiu em mostrar-me os quartos que alugou. Deve ser delicioso viver aqui.
- É verdade - assentiu Hermione, distraidamente. E afastou-se da professora, como se se esquecesse da sua existência. Voltando-se para o inspetor, disse-lhe em tom diferente, quase afetuoso:
- Como se sente agora, Rupert?
- Muito bem.
- Estará confortável aqui? - Hermione olhou-o com êxtase, de maneira penetrante e indiscreta.
- O mais confortavelmente possível - respondeu ele. Houve um demorado silêncio, enquanto ela o contemplava, erguendo as pálpebras pesadas e sonolentas. Por fim, inquiriu:
- Espera ser feliz nesta casa?
- Tenho certeza de que sim.
- Farei por ele tudo o que puder - disse a senhoria. - E meu marido também, de forma que tenho esperança de que este senhor se sinta bem instalado.
Hermione voltou-se para a mulher e examinou-a.
- Agradeço-lhe muito - foi a sua única frase. Depois alheou-se por completo dela. Retomou a atitude do princípio e, levantando o rosto para Birkin, falou exclusivamente com ele:
- Mediu os quartos?
- Não, Hermione. Estive consertando a canoa.
- Vamos medir, então? - propôs, muito tranquila, embora um tanto hesitante.
- Tem uma fita métrica Senhora Salmon? - perguntou ele, voltando-se para a senhoria.
- Sim, senhor, acho que tenho uma - respondeu a mulher, começando logo a procurar dentro de um cesto. - Não tenho outra, mas esta deve servir.
Embora a fita fosse apresentada a Birkin, foi Hermione quem a recebeu, dizendo:
- Muito obrigada. Vai servir muito bem. Obrigada, Senhora Salmon. - Dirigindo-se a Birkin, sugeriu-lhe, satisfeita: - Vamos lá, Rupert?
- E os outros? Vão-se aborrecer - disse o inspetor, com alguma relutância.
- Vocês se aborrecem? - perguntou Hermione vagamente a Úrsula e Gerald.
- De modo algum - foi a esperada resposta.
- Que quarto veremos primeiro? - perguntou Hermione, voltando-se novamente para Birkin, com a mesma expressão alegre, agora que o ia levar na sua companhia.
- Qualquer um - respondeu Rupert.
- Querem que prepare o chá? - perguntou a senhoria, desejosa de prestar algum serviço.
- Seria ótimo - respondeu Hermione, chegando-se para ela em um movimento de intimidade que parecia envolvê-la e atraí-la, deixando os outros completamente à margem. - Onde poderemos tomá-lo?
- Aqui mesmo, ou lá fora, no relvado.
- Onde tomaremos o chá? - cantou a voz musical de Hermione, dirigindo-se às pessoas que a cercavam.
Birkin deu a sua opinião:
-Na margem da lagoa. Nós carregaremos tudo, Senhora Salmon. Basta que a senhora nos faça o favor de preparar as coisas.
- Pois não - respondeu a mulher, satisfeita.
Todos se encaminharam para o corredor e entraram no quarto fronteiro, que estava vazio, mas limpo e batido de sol. Havia uma janela dando para o jardim, jardim esse bastante emaranhado.
- Aqui é a sala de jantar - explicou Hermione. - Vamos medi-la. Abaixe-se, Rupert.
- Posso ajudar? - perguntou Gerald, segurando a outra extremidade da fita métrica.
- Não é preciso, obrigada - respondeu Hermione, inclinando-se para o chão, mesmo vestida de seda cintilante. A verdade é que sentia prazer em se encarregar daqueles trabalhos e em tomar a direção dos mesmos, na companhia de Birkin, que lhe obedecia, submisso. Úrsula e Gerald ficaram observando. Constituía uma das peculiaridades de Hermione essa de, em cada ocasião, destacar uma pessoa com a sua familiaridade, obrigando os outros ao papel de espectadores. Isso sempre lhe dava uma pequena sensação de triunfo.
Mediram a sala de jantar, discutiram, e Hermione decidiu quais deviam ser os tapetes. Ser contrariada, em tais ocasiões, punha a sempre fora de si. Birkin resolveu deixá-la fazer o que quisesse.
Atravessando o corredor, foram para o quarto da frente, um pouco menor do que o outro.
- Este é o escritório - decretou Hermione. - Rupert, tenho um tapete que gostaria que viesse para cá.
- Como é ele? - perguntou Birkin.
- Você ainda não o viu. É, na maior parte, de um tom rosa avermelhado, depois azul, azul mais forte, azul-metálico e ainda azul-escuro. Tenho a impressão de que vai gostar.
- Deve ser bonito. De que estilo é? Oriental? Felpudo?
- É persa. Feito de lã de camelo, muito sedosa. Creio que é em estilo Bérgamo. Tem quatro por dois. Acha que serve?
- Sem dúvida. Mas por que me oferece um tapete tão valioso? Posso arranjar-me perfeitamente com o que tenho há tanto tempo, o turco, de Oxford.
- Aceita?
- Quanto lhe custou?
Hermione fitou-o e declarou:
- Não me lembro. Não foi caro.
Rupert olhou para ela sem mudar de expressão.
- Não posso aceitar, Hermione.
- Deixe-me presentear os seus aposentos - insistiu Hermione, aproximando-se do inspetor e colocando-lhe de leve a mão no braço, suplicante. - Não me faça essa desfeita.
- Bem sabe que não gosto de receber presentes - disse Birkin, sem muita convicção.
- Não pretendo oferecer-lhe presentes - respondeu ela, irritada - Mas, quanto ao tapete está combinado, não?
- Está bem - anuiu Rupert, dando-se por vencido. Era o triunfo de Hermione.
Subiram para o andar superior. Havia aí dois quartos correspondentes ao piso inferior. Um deles estava semimobiliado, notando-se que Birkin, evidentemente, dormira lá. Hermione inspecionou-o com a maior atenção, detendo-se em cada pormenor, sorvendo o testemunho da presença masculina em todas aquelas coisas inanimadas. Tateou a cama e examinou a roupa.
- Está bem instalado? - perguntou ela, apalpando os travesseiros.
- Muitíssimo bem - respondeu Birkin com ar indiferente.
- Não sente frio? Não estou vendo cobertores. É preciso arranjar um.
- Já fiz uma encomenda. Deve estar chegando.
Mediram os quartos, demorando-se em considerações variadas. Úrsula fora para a janela, de onde via a mulher da casa nos preparativos para o chá, à margem da lagoa. Como detestava aquele palavreado de Hermione! O seu desejo seria fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, para se esquivar àquelas cenas e àquelas conversas.
Finalmente, vieram todos para fora, dando início ao piquenique. Hermione serviu o chá; Úrsula, para ela, já não existia; e a professora, refeita do acesso de mau humor, voltou-se para Gerald, dizendo-lhe:
- Oh, Sr. Crich! Outro dia, cheguei a sentir raiva do senhor.
- E por quê? - perguntou Gerald, retraindo-se ligeiramente.
- Por haver tratado aquele animal de forma tão bárbara. Cheguei a odiá-lo!
- Que foi que ele fez? - perguntou Hermione com aquela voz cantante.
- Obrigou aquela linda égua árabe, nervosa como é, a permanecer na cancela da estrada de ferro, enquanto desfilavam aqueles horríveis vagões; o animal, coitado, estava impacientíssimo, e deve ter sofrido muito. Não se pode imaginar espetáculo mais revoltante.
- Para que isso, Gerald? - perguntou Hermione, muito calma.
- A égua precisa aprender a conservar-se quieta; de que me servirá ela se for tão tímida que desate a fugir todas as vezes que ouvir um trem apitar?
- Mas não seria preciso infligir-lhe tamanha tortura... - argumentou Úrsula. - Para que, durante todo aquele tempo em que o comboio passou? O senhor poderia ter dado uma volta na estrada e poupar a égua ao martírio. Tinha as ancas sangrando, por causa das esporas! Simplesmente horrível.
Gerald empertigou-se.
- Devo treiná-la - replicou. - E se eu quiser confiar no animal, tenho de acostumá-lo a ouvir ruídos e permanecer impassível.
- Com que direito - tornou Úrsula acaloradamente. - Trata-se de um ser vivo. Por que submetê-lo despoticamente à sua vontade? Tem tanto direito à vida como o senhor.
- É nisso que eu discordo - atalhou Gerald. - Considero aquela égua uma coisa de meu uso, não pelo fato de a ter comprado, mas porque assim é na ordem natural. É mais legítimo que o homem tenha uma égua para o seu serviço do que para ajoelhar-se à frente dela, suplicando-lhe que faça o que lhe agrada, acomodando-se às suas fantasias.
Úrsula ia abrir a boca para discordar, quando Hermione ergueu o rosto e começou, na cantilena do costume:
- Parece-me... parece-me realmente... que devemos ter a coragem de utilizar os animais para a satisfação das nossas necessidades. Julgo ser um erro atribuir a todos os seres vivos sentimentos iguais aos nossos, considerando-os como semelhantes. É um lapso de observação da nossa parte, uma falta de espírito crítico.
- Muito bem - interveio Rupert, bruscamente. - Nada mais detestável do que o costume piegas de conceder aos animais sentimentos humanos e consciência humana.
- Sim, - continuou Hermione, com ar cansado - devemos, na verdade, tomar uma posição definida. Ou nos servimos dos animais ou então eles é que se servirão de nós.
- O fato é este: os cavalos são suscetíveis de tanta vontade como o homem - explicou Gerald - embora, em sentido rigoroso, não possuam inteligência. Se a nossa vontade não for a dominante, o cavalo é que se torna, então, dono de nós. Ora, eu não posso eximir-me de ser o dono da minha égua.
- Se ao menos - disse Hermione - soubéssemos empregar a nossa vontade, poderíamos conseguir tudo. A vontade pode até curar e transformar todas as coisas, uma vez que a utilizemos de uma forma inteligente e capaz.
- Que quer dizer isso? - indagou Birkin.
- Foi um grande médico quem me disse - elucidou ela, dirigindo-se a Úrsula e a Gerald, de modo vago. - Disse-me, por exemplo, que a melhor coisa para obrigar uma pessoa a deixar um mau hábito é forçá-la a fazê-lo em ocasião que não o queira fazer. O hábito acaba por desaparecer.
- Como assim? - perguntou Gerald.
- Você, suponhamos, rói as unhas. Nesse caso, espero um momento em que não lhe agrade fazer tal, e intimo-o a roê-las. Acaba por se curar.
- Acha que sim?
- Acho. Eu própria, em muitos casos, tirei a prova. Eu fui moça muito nervosa, muito esquisita. E só pelo esforço da vontade, simplesmente, fiquei boa por completo.
Enquanto Hermione falava, com aquela voz lenta, desapaixonada, singular, Úrsula não tirava os olhos dela e sentia um calafrio percorrer-lhe o corpo. Aquela mulher possuía um estranho e sombrio poder, repulsivo e fascinante ao mesmo tempo.
- Não é bom empregar a vontade dessa maneira - exclamou vivamente Birkin. - Indigna-me. A vontade, assim, me parece obscena.
Hermione contemplou-o por muito tempo, com aquele seu olhar pesado e sombrio. Tinha as faces caídas, pálidas, translucidas, fosforescentes, quase.
- Sou capaz de jurar que não - disse ela, por fim. Havia sempre um intervalo, uma estranha separação entre o que denotava sentir e o que, na realidade, dizia e pensava. Dir-se-ia agarrar as suas ideias quando elas passavam à superfície de um turbilhão de emoções e reações negras e caóticas. Birkin sempre experimentava repulsa, pois aquilo era infalível, nunca deixava de suceder. A voz tomava inflexões calmas, iguais, denunciando a maior confiança em si mesma, embora estremecesse com uma espécie de náusea, que ameaçava submergi-lo; mas, apesar disso, o espírito conservava-se intacto, a vontade permanecia inatingida. Tudo isto punha Birkin fora de si. Contudo, jamais se atrevia a ir de encontro à vontade dela, ou livrá-la do redemoinho dos pensamentos, ou descobrir-lhe a última extravagância. Mas não deixava de a fulminar com meia dúzia de frases.
- Já se sabe - disse Rupert a Gerald - que os cavalos não dispõem de completa vontade, como os homens. Isto é, nenhum cavalo tem vontade, de forma genérica; tem duas vontades. Com uma delas, procura submeter-se completamente ao dono e com a outra, deseja libertar-se. As duas, às vezes, unem-se; deve tê-lo notado quando, ao conduzir um cavalo, o bicho morde o freio...
- Senti um, certa vez, tomar o freio nos dentes - volveu Gerald - mas não fiquei com a impressão de que a vontade dele fosse dupla. O que percebi é que o animal se tinha assustado.
Hermione deixara de ouvir. Tornava-se abstrata, sempre que discutiam assuntos de que não participava.
- Como é que um cavalo se submete voluntariamente ao domínio do homem? - indagou Úrsula. - Para mim é incompreensível. Não creio que jamais um animal tenha semelhante desejo.
- Contudo, deve ser verdade. É o derradeiro, e talvez o mais elevado dos impulsos amorosos, depor a sua vontade nas mãos dos superiores - declarou Birkin.
- Você - retorquiu a professora - tem uma noção de amor bastante curiosa.
- Nisso a mulher é semelhante aos cavalos: tem duas vontades opostas; com a primeira, está apta a sujeitar-se inteiramente e, com a outra, procura fugir e lançar o cavaleiro de pernas para o ar.
- Sou, nesse caso, da segunda espécie, uma rebelde - exclamou Úrsula, dando uma gargalhada.
- Se é perigoso domar cavalos, quanto mais as mulheres - observou Birkin. - A regra tem sempre exceções.
- Ainda bem - assentiu Úrsula.
E Gerald, com um sorriso fugidio, interveio:
- Isso é verdade. E torna tudo mais interessante. Hermione já não podia mais suportar a conversa. Levantou-se e expôs, na sua vagarosa cadência:
- Que linda tarde! Às vezes invade-me tal sensação de beleza que me chega a fazer mal.
Úrsula, a quem a outra se dirigia, ergueu-se também, comovida ate o mais íntimo do ser. Birkin afigurava-se-lhe quase um monstro de arrogância, que se devia odiar. Seguiu com Hermione ao longo da margem, conversando sobre coisas belas e reconfortantes e colhendo prímulas graciosas.
- Gostaria de ter um vestido de algodão assim amarelo, com botões cor de laranja?
- Gostaria - disse Hermione. Parou para admirar a flor, deixando que a ideia penetrasse o seu espírito e a acalmasse. - Seria bem bonito, adorável! - E voltou-se para Úrsula, num movimento de genuína simpatia.
Gerald ficara com o inspetor; tencionava aprofundar-lhe o pensamento acerca da sua opinião sobre a dupla vontade dos cavalos. No rosto de Gerald notava-se a agitação que o dominava.
Hermione e Úrsula continuaram juntas, unidas por um súbito laço de profunda afeição e intimidade.
- Na verdade - disse a primeira, detendo-se defronte da professora, com os punhos fechados para o chão - em verdade não quero andar envolvida em toda esta crítica e análise da vida. O que desejo é ver as coisas na sua integridade, mantida a beleza e o seu aspecto natural e sagrado. Não sente assim? Não sente que é demais torturarem-nos com novos conhecimentos?
- Tem razão - respondeu Úrsula. - Sinto o mesmo. E essas indiscrições e curiosidades tornam-me doente.
- Ainda bem que está de acordo. Muitas vezes - continuou Hermione, parando de novo no passeio e fitando a companheira - pergunto a mim própria se tenho de submeter-me a estas discussões, se não será fraqueza esquivar-me a elas. Mas não posso, acho que não posso! Parece-me que aniquila tudo, tudo quanto há de verdadeiramente belo e sagrado; e, sem isto, não posso viver.
- E seria, de fato, insensatez viver sem isso - confirmou Úrsula. - É irreverência supor que a inteligência resolve tudo.
Precisamos excluir a parte que pertence a Deus; foi e será sempre assim.
- Diz bem - tornou Hermione, apaziguando-se como uma criança. - Tem de ser assim, não é verdade? E Rupert - aqui ela levantou o rosto, como que extática - porfia em tudo querer dilacerar. Parece um menino desmanchando os brinquedos para ver como são feitos. Não posso admitir que ele tenha razão. É irreverência, como você diz.
- Tal como se destruíssemos o botão de uma flor para examinar como seria a própria flor - sugeriu Úrsula.
- Exatamente. E assim mata-se tudo, não é verdade? Não se deixa à planta nenhuma possibilidade de florir.
- Claro que não. É a destruição pura e simples.
- Sim, sim! Não há dúvida!
Hermione olhou demoradamente para Úrsula, mostrando apreciar aquela concordância com os seus pensamentos. Depois ficaram ambas silenciosas. Tão depressa estavam de acordo, quanto passavam a experimentar uma recíproca desconfiança. Úrsula, contra sua vontade, sentia que se afastava de Hermione. Era tudo o que podia fazer para moderar a aversão.
Voltaram para junto dos homens, como conspiradoras que se houvessem retirado a fim de concluir algum pacto. Birkin ergueu os olhos para elas e Úrsula antipatizou com a frieza do seu olhar.
- Vamo-nos embora? - propôs Hermione. - Rupert, você vem jantar em Shortlands? Não hesite, venha conosco, sim?
- Não estou devidamente trajado - respondeu Birkin. - Bem sabe que Gerald, neste ponto, é muito formal.
- Nem tanto - atalhou Gerald Crich. - Mas, se sentisse como eu a desordem que reina nas casas, preferiria que todos fossem respeitadores e convencionais, pelo menos durante as refeições.
- Muito bem explicado - exclamou Rupert Birkin.
- Não poderíamos esperar que se vestisse? - insistiu Hermione.
- Como quiser.
Levantou-se e entrou na casa. Úrsula declarou também que se ia embora.
- Mas antes - disse ela voltando-se para Gerald - devo informá-lo de uma coisa: ainda que o homem seja dono dos animais domésticos, continuo a achar que não tem nenhum direito de violentar os sentimentos dos seres que lhe são inferiores. Persisto em acreditar que seria muito mais sensato e muito mais nobre se o senhor se tivesse afastado para a estrada durante a passagem do trem.
- Aceito a lição - respondeu Gerald, com um sorriso amarelo. - Oxalá não me esqueça, a próxima vez.
Pelo caminho, Úrsula dizia com os seus botões: "Tomam-me todos por uma mulher que se intromete onde não é chamada".
Apressou o passo, absorta em seus pensamentos. Chegara a sentir-se impressionada com Hermione. Consolidara mesmo certa intimidade com ela, e assim se estabelecera entre as duas mulheres uma espécie de aliança. E, todavia, não a podia suportar, fato esse que procurava combater. "É boa criatura" dizia consigo mesma; "deseja realmente o bem e a justiça". E esforçou-se, em espírito, por tomar o partido de Hermione e negar razão a Birkin. Era decididamente hostil a Rupert Birkin. Mas sentia-se ligada a ele por qualquer causa mais séria, o que a irritava e alegrava simultaneamente.
Vez por outra percorriam-na calafrios, originados pelo seu subconsciente; e isso provinha do fato, bem o sabia, de ter desafiado Birkin e ele ter, convencido ou não, aceito o repto. Seria, entre ambos, uma luta de morte, ou então o início de uma vida nova. É, contudo, ninguém poderia dizer em que consistiria aquele conflito.
Capítulo XIII
"Mino"
Os dias passavam, sem que recebesse quaisquer notícias dele. Continuaria assim a desconhecer a sua existência e não fazer caso do segredo que os ligava? A ansiedade pungia-a, envolvendo-a de amargura. E, todavia, Úrsula tinha o pressentimento de que se enganava no seu pessimismo: ele a procuraria, com certeza. Contudo, não fazia confidências a ninguém.
E, de fato, chegou uma carta em que Rupert lhe pedia que fosse, com a irmã, tomar chá em sua casa.
- "Por que será que também convida Gudrun?", foi a primeira pergunta que fez a si mesma. "Será para se proteger, ou pensa que eu não seria capaz de ir só?"
A primeira hipótese preocupava-a um pouco. Mas acabou por dizer com os seus botões:
"Não me convém levar Gudrun, pois preciso que ele me diga qualquer coisa além de simples frases feitas. Não contarei nada a minha irmã e irei sozinha. E ficarei sabendo o que se passa".
Assim foi. Resolveu ir sozinha até a casa em que ele vivia. Parecia atravessar um país de sonho, espiando as ruas sórdidas que tinham ficado para trás, como se fosse também alheia ao universo material. Que relação havia entre ela e aquilo que a rodeava? Era um corpo palpitante, mas irreal, em meio a um cenário fantástico. Pouco lhe importava o que os outros dissessem ou pensassem a seu respeito. O resto da humanidade não fazia parte do seu mundo; Úrsula sentia-se desintegrada, arrancada, de maneira estranha e confusa, fora do invólucro da existência física, como uma semente que se despregasse do fruto para cair em meio desconhecido e hostil.
Birkin esperava de pé na sala, quando Úrsula foi introduzida pela senhoria. Estava comovido, e a emoção manifestava-se extedormente. A professora notou-lhe a agitação e observou-lhe o corpo magro e trêmulo.
- Veio sozinha? -perguntou à recém-chegada
- Vim. Gudrun não pôde acompanhar-me.
Rupert percebeu que ela agira intencionalmente.
Sentaram-se ambos em silêncio, sentindo â tensão do ambiente.
Úrsula percebeu que a sala era agradável, clara, repousante em seus detalhes e que havia um vaso de fúcsias, de onde pendiam flores escarlates e roxas.
- Lindas fúcsias! - exclamou ela, para dizer alguma coisa.
- Acha? Pensei que se tivesse esquecido do que eu disse.
A professora perturbou-se.
- Não precisa lembrar-me, se não o deseja fazer - conseguiu responder.
Tornaram a ficar calados.
- Não - tornou ele. - Não é isso: se queremos conhecermos melhor, precisamos tornar a nossa amizade definitiva e infalível...
A voz traía-lhe a desconfiança. Parecia aborrecido. Úrsula não disse nada; sentia o coração oprimido, sentia-se incapaz de falar.
Percebendo que ela não respondia, Rupert prosseguiu, com certa amargura:
- Não saberei dizer se é amor o que lhe ofereço. Parece-me, antes, uma coisa mais impessoal, mais difícil e mais rara.
Estabeleceu-se uma pausa, depois do que ela interrogou:
- Está dizendo que não me tem amor? Ela sofria à simples ideia.
- Sim, já que pretende colocar a questão nesses termos. Na verdade, não sei. Não sinto por você aquela perturbação do amor, e não desejo senti-la, porque o amor acaba por se extinguir.
- Como? - perguntou ela com os lábios quase cerrados.
- Sim, extingue-se. No fim, ficamos sozinhos, livres da influência do amor. Há um eu impessoal, que ultrapassa o amor e qualquer outra ligação de ordem emotiva. Assim aconteceria conosco. Mas desejamos sempre ter a ilusão de que o amor está na raiz. Puro engano! O amor reside apenas nos ramos. A raiz está além, no perfeito isolamento, um eu isolado, que não encontra ninguém com quem se misture e que seria mesmo incapaz de o fazer.
Úrsula fitava-o com os olhos muito abertos. O rosto dele se iluminava no entusiasmo das suas abstrações.
- Quer dizer que não poderá me amar? - perguntou-lhe a moça.
- Sim, é verdade. Eu amei: mas existe uma vida futura desprovida de amor.
Aquelas teorias não a convenciam. Sentia-se prestes a desmaiar.
- Como sabe se nunca amou verdadeiramente?
- Existe um além, em você, em mim, que é mais distante do que o amor, fora do nosso alcance, como há estrelas fora do alcance da nossa visão.
- Com que, então, não existe amor - concluiu Úrsula.
- Em última análise, não, mas há outra coisa. Afinal, o amor não existe mesmo.
Úrsula sentiu-se esmagada com aquela sentença. Depois, ergueu-se na cadeira e disse, em tom decidido:
- Nesse caso, deixe-me ir embora. Que vim eu fazer aqui?
- Nada a impede de sair - foi a resposta.
Úrsula ficou indecisa em face do dilema. Por momentos não fez movimento algum. Acabou por sentar-se novamente.
- Se não há amor, o que existe então? - perguntou ironicamente.
- Qualquer coisa - declarou o inspetor, olhando para ela e reprimindo corajosamente os ímpetos do próprio coração.
- Que coisa?
Houve um longo silêncio. Birkin não se sentia capaz de continuar.
- Existe - explicou finalmente - um eu poderoso, impessoal, além de toda e qualquer responsabilidade. É assim em todas as pessoas. E é aí que eu desejo encontrá-la, nesse campo onde não há palavras nem termos convencionais, em vez de nos encontrarmos no terreno puramente sentimental do amor. Lá, então, seremos dois entes completos é desconhecidos, duas criaturas totalmente estranhas uma à outra; terei desejo de aproximar-me de você, assim como você de mim. Não haverá nenhuma obrigação, porque faltam as normas do domínio, porque nenhuma inteligência foi forçada a tal. Fica acima dos interesses humanos; não se pode recorrer aos livros, seja de que maneira for, pois cada qual está num plano superior ao limite das coisas convencionadas, e não pode ser atingido pelas regras estabelecidas. Somente nos é dado seguir o nosso impulso, aceitar o que é, sem nenhuma responsabilidade, sem que ninguém preste contas nem tenha de as dar. Apenas o desejo primitivo servirá de guia.
Úrsula ouvia-lhe as palavras, mas o seu espírito permanecia inerte, quase insensível; era tão inesperado, tão perverso o que ele dizia!
- É o que se pode chamar o mais puro egoísmo - foi a explicação que deu.
- Concordo com o puro, mas não é egoísmo, porque, afinal, não sei o que pretendo de você. Vindo até você, entrego-me ao desconhecido, sem pensamento definido nem defesa. Penetro no ignoto, com as mãos vazias. O pior é que, entre nós, se torna necessário um pacto, para que possamos, ambos, deixar tudo de lado, esquecermos a nós mesmos, e ate cessar de ser de maneira que se defina o que há de perfeito em nós próprios.
Ela refletia, seguindo o curso daquelas ideias.
- Mas você me deseja porque gosta de mim? - insistiu.
- Não, mas sim porque acredito em você, se é que, efetivamente, devo acreditar em você.
- Então não tem certeza? - exclamou ela, rindo, mas subitamente magoada.
Rupert fitava-a, mas pouca atenção dava ao que a moça dizia.
- Sim, devo acreditar em você, senão não estaria aqui, fazendo essas declarações. Mas é a única prova que possuo. Neste momento especial, minha crença não chega a ser muito forte.
Úrsula ressentiu-se daquela franqueza inesperada, daquela pouca persistência na fé.
- Você nem me acha agradável à vista - tornou ela, ironizando.
Birkin fitou-a mais detidamente para verificar o que pensava a respeito.
- Não sinto que você seja agradável à vista - respondeu.
- Nem atraente - continuou ela, sempre em tom de troça.
Ele ficou carrancudo, exasperando-se.
- Não se trata, absolutamente, de uma questão de apreciação visual. Não preciso vê-la. Tenho admirado dúzias de mulheres, e estou farto e cansado de as admirar. Preciso de uma mulher que eu não veja.
- É pena que eu não lhe possa dar o prazer de me tornar invisível - e ela se riu novamente.
- Mas você é invisível para mim, se não me forçar a tomar conhecimento visual de sua pessoa. Mas não desejo vê-la nem ouvi-la.
- Então por que me convidou para tomar chá?
Birkin não fez caso da pergunta. Continuava monologando:
- Preciso encontrá-la naquilo que não seja a sua própria existência, a parte de sua alma que renega inteiramente. Não necessito de seus belos olhos, de seus sentimentos femininos. Não desejo seus pensamentos, opiniões ou ideias para mim isso não vale nada.
- É muito convencido, cavalheiro - comentou a professora, divertida. - Se não conhece meus sentimentos femininos, meus pensamentos, minhas ideias... - Nem sequer sabe o que eu penso de você neste momento...
- E nem quero saber, por favor.
- Pois acho-o um tolo. Dá a impressão de que tenciona declarar-me o seu amor, mas que fabrica mil atalhos para chegar ate lá.
- Muito bem - exclamou ele, agora excitado. - Vá-se embora e deixe-me em paz. Não quero continuar a ouvir suas zombarias humilhantes.
- Serão realmente zombarias? - Úrsula tinha um ar irônico e não conseguiu conter uma gargalhada. Interpretava as palavras dele como genuína declaração de amor. Mas que palavras absurdas tivera o homem de empregar!
Ficaram silenciosos por alguns instantes. Úrsula sentia-se contente, satisfeita como uma criança. Rupert saiu de seu estado de concentração e começou a olhar para ela com mais simplicidade e naturalidade.
- O que desejo é uma união muito singular - principiou a dizer, com voz tranquila. - Nem simples encontros, nem mistura... você tem absoluta razão, mas o equilíbrio, puro equilíbrio de dois seres... como as estrelas se equilibram umas com as outras...
Úrsula observou. Rupert tornara-se muito solene, e a solenidade sempre lhe parecera ridícula e vulgar. Isso fê-la sentir-se pouco à vontade, desconfortável. E, contudo, gostava tanto dele! Mas a que propósito vinham as estrelas?
- Isso me parece um pouco disparatado - retrucou, rindo-se. Birkin riu também e aconselhou:
- É melhor reler os termos do contrato, antes de o assinar. Um gato cinzento estava dormindo no sofá. De repente, saltou para o chão, espreguiçando-se, arqueou a espinha e colocou-se na ponta dos pés. Ficou uns instantes imóvel e majestoso, mirando qualquer coisa. Por fim, como uma flecha, saltou para fora da sala através da janela aberta e alcançou o jardim dos fundos da casa.
- Que terá visto ele? - exclamou Birkin, levantando-se.
O gato caminhava agora com ar solene, pelo caminho calçado do jardim, balançando a cauda. Era um gato vulgar, de patas brancas. Perto do muro achava-se uma gata de pêlo pardo, agachada, pronta para saltar. Mino dirigiu-se com imponência para ela, com lentidão viril. A fêmea encolheu-se diante dele, apertando-se contra a terra, cheia de humildade, pobre pária de pêlos sedosos - mirou com olhos agressivos, verdes e desafiadores como enormes gemas cintilantes. O gato apenas avistou-a de relance. Então a bichana deu mais uns passos à frente, a caminho do portão dos fundos, arrastando-se quase de maneira a não ser pressentida. Movia-se habilmente, como uma dama.
Ele, porém, seguia com passadas ágeis, logo atrás; e, de súbito, tocou-lhe velozmente com a pata no canto do focinho. A gata afastou-se um pouco como uma folha soprada pelo vento e encolheu-se, submissa, medrosa. Mino fingia não vê-la, piscando os olhos, soberbo, à paisagem que o rodeava. Daí a pouco, ela tornou a dar um passo à frente, suavemente. Mais alguns passos daqueles e teria desaparecido, como num sonho, mas o bicho, cinzento e imponente, saltou-lhe adiante e deu-lhe uma pancadinha rápida e graciosa, o que a fez deter-se de novo, sempre obediente.
- É uma gata sem dono - explicou Birkin. - Apareceu aqui, vinda do bosque.
Os olhos desvairados da gatinha relancearam em torno e fixaram-se em Birkin, como grandes fachos de luz verde. Com um salto ágil, encontrou-se, de repente, no meio do jardim, de onde olhou vagarosamente para todos os lados. Mino voltou a cabeça para o dono, com ar superior, fechou os olhos devagar e sentou-se sobre as patas traseiras, numa atitude de estátua. A gata continuava a observar com suas pupilas dilatadas, misteriosos fogos esverdeados. Depois, como uma sombra, deslizou de novo em direção à cozinha.
Num pulo elástico, veloz como o vento, Mino alcançou-a e lançou-lhe duas patadas enérgicas. A outra recuou, silenciosa, sem insistir, enquanto o macho a perseguia, arranhando-a mais vezes, cheio de confiança, lançando-lhe, em movimentos bruscos, as unhas afiadas e mágicas. Úrsula estava indignada.
- Por que está fazendo isso? - perguntou zangada.
- Isso é um sinal de intimidade - respondeu Birkin.
- O fato de lhe bater?
- Sim, creio que ele pretende provar-lhe essa intimidade de maneira insofismável - explicou Birkin, rindo.
- É horrível! - declarou Úrsula. E saindo para o jardim começou a chamar por Mino.
- Chega! Não seja perverso! Acabe com isso!
A gatinha desaparecera como uma sombra invisível. Mino fitou a professora, e, a seguir, desdenhosamente, levantou os olhos para o dono.
- És muito mau? - perguntou-lhe este.
O esperto bichano mirou-o, cerrando vagarosamente as pupilas. Depois contemplou a paisagem, detendo-se na admiração do horizonte, como se aqueles dois seres humanos já não existissem para ele.
- Não gosto de ti, Mino - falou Úrsula. - És cruel como todos os machos.
- Não - atalhou Rupert. - Ele tem justificação. Não é cruel. Insiste com aquela pobre gatinha perdida, para que ela se convença de que ele é o seu próprio destino. Você bem viu, aquele animalzinho sem dono é arisco e incerto como o vento. Estou inteiramente do lado de Mino. Queremos estabilidade nas coisas.
- Sim, bem sei - volveu Úrsula. - Não quer fazer senão o que lhe apetece. Compreendo o sentido das suas palavras: mandar, ser o patrão...
O gato olhou outra vez para Birkin, como quem confirma o seu desdém por aquela mulher inquieta.
- Concordo totalmente contigo - disse Birkin. - Conserva a tua dignidade masculina e a tua inteligência superior.
De novo Mino contraiu as pupilas como se estivesse a fixar o sol. E, por fim, fazendo de conta que não tinha relação alguma com aqueles dois, afastou-se apressado, com fingida alegria e afetada espontaneidade, de cauda ereta e as patinhas brancas muito ligeiras.
- Vai encontrar-se de novo com a gatinha do bosque e demonstrar-lhe a sua alta sabedoria... - explicou Rupert, jovialmente.
Aquele homem de cabelos ao vento e de olhos sorridentes e irônicos espicaçava Úrsula. Por isso, gritou-lhe:
- Como me irrita essa suposta superioridade masculina! Não passa de uma mentira. Se ainda houvesse, ao menos, alguma justificativa...
- A gatinha não se importa: encontra justificativa.
- Acha? Conte essa história a quem quiser...
- A eles também.
- É exatamente como no caso de Gerald Crich e da égua: a luxúria da brutalidade, autêntica Wille zur Macht - Vontade de dominar - nota da tradutora) mas tão baixa, tão mesquinha!
- Concordo em que a Wille zur Macht seja uma coisa baixa e mesquinha. Mas com Mino verifica-se o desejo de trazer aquela fêmea ao estado puro de equilíbrio, relação transcendente e durável com o macho que vive só. Ao passo que, sem ele, a outra não passaria (você bem viu) de mera partícula perdida e esporádica do caos. Seja volonté de pouvoir se assim o quer, vontade de poder, tomando pouvoir como verbo.
- Ora, sofismas, velhos como Adão!
- Pois sim. Mas Adão conservou Eva num paraíso indestrutível, quando a tomou para si, espécie de estrela na sua órbita.
- Isso, isso! - exclamou Úrsula, apontando para ele com o dedo erguido. - Aí está: uma estrela na sua órbita. Satélite de Marte, eis o que é a mulher para você. Você acaba de confessar precisa de um satélite, Marte e o seu satélite! Você o disse, você o disse, desmascarou-se!
Birkin sorria, mesmo apanhado em falso, ao mesmo tempo irritado e divertido, cheio de admiração e de amor. Vacilante e viva como uma chama sagaz, e tão vingativa, essa jovem era uma grande sensibilidade, ardente e perigosa.
- Não foi bem isso o que eu disse - replicou ele. - Deixe me explicar, ao menos...
- Não, não! Não o deixo falar! Empregou o termo satélite, não vá agora torcer a frase. Disse-o e está dito!
- Bem, ninguém mais a convencerá de que eu não disse tal coisa, mas não tive a intenção, não mencionei, não afirmei, não concluí nada que se pareça com satélite...
- Seu prevaricador! - gritou ela, sinceramente escandalizada.
- O chá está pronto, Sr. Birkin - veio anunciar à porta a dona da casa.
Olharam ambos para a mulher, da mesma forma que os gatos haviam olhado para eles, momentos antes.
- Está bem, obrigado, Senhora Daykin.
Houve um instante de silenciosa expectativa.
- Vamos tomar chá - convidou Rupert.
- Está bem, boa ideia - concordou ela, recuperando as forças.
Sentaram-se diante um do outro.
- Não quis comparar as mulheres a satélites. Aludia apenas a dois astros solitários, equilibrados, em conjunção...
- Você se traiu, deixou perceber completamente o seu jogo - interrompeu a professora, começando a tomar o chá. Rupert compreendeu que ela não faria atenção alguma às suas explicações e então se resolveu a tomar o chá.
- Quantas coisas bonitas vejo aqui na mesa! - comentou Úrsula.
- Sirva-se de açúcar - disse ele, passando-lhe o açucareiro.
A louça era fina: belas xícaras e pires guarnecidos de vermelho e verde, elegantes tigelas e pratos de vidro, tudo sobre uma toalha bordada em cinza pálido, preto e púrpura. Tudo demonstrava riqueza e bom gosto, e Úrsula suspeitou da influência de Hermione.
- Seu serviço é encantador - comentou ela, quase com ironia.
- Gosto dele assim. É para mim um verdadeiro prazer usar objetos que sejam atraentes e agradáveis. A Senhora Daykin é simpática. Gosto de tudo que me pertence e me diz respeito.
- Realmente... - assentiu a professora. - Hoje em dia, as senhorias valém mais do que as esposas. Têm mais gosto e interesse, ao que parece. Isto aqui está muito mais bonito e organizado do que se você fosse casado.
- Pense, porém, no vácuo deste aposento - pediu ele, sorrindo.
- Não - replicou Úrsula - Dá-me pena ver homens como você com tão boa dona de casa e tanto conforto: não precisa desejar mais nada.
- No que se refere a arranjos domésticos, é verdade que não desejo. Mas é triste alguém casar só para ter um lar.
- Pois hoje em dia - observou Úrsula - os homens têm muito pouca necessidade de se casar.
- É possível no que se refere às coisas externas à sua alma, exceto no que respeita a dormir na mesma cama e procriar os filhos. Mas, quanto à sua própria essência, a necessidade é a mesma de sempre. O pior é que ninguém se dá ao trabalho de ser essencial.
- Como assim? - indagou ela.
- Quero dizer que o mundo se mantém apenas por uma associação mística, pelo acordo final entre as pessoas, o que constitui um laço. E o primeiro de todos os laços é entre o homem e a mulher.
- Isso é uma velha cantiga. Por que há de ser o amor um laço? Para mim não serve.
- Se marchar no sentido do oeste, irá perdendo os seus direitos, ao norte, ao sul e ao leste. Se admitir o acordo, renuncia a todas as possibilidades de caos.
- Mas o amor é liberdade! - declarou a professora.
Não me venha com essas histórias. O amor é uma direção que exclui quaisquer outras. É liberdade para dois, se me permite a expressão.
- O amor, para mim, compreende tudo.
- Hipocrisia sentimental. O que você deseja é o estado caótico. Puro niilismo, isso de liberdade no amor, essa liberdade que é amor e esse amor que é liberdade. E, de fato, se nos colocamos um uníssono, a coisa se torna irrevogável, e só assim será pura. Só há um caminho, como daqui para uma estrela.
- Ah, meu Deus! Velha e defunta moralidade...
- Não, Úrsula. É a lei da criação. Devemo-nos unir ao semelhante, para sempre. Não se trata de abandonar o nosso eu, mas sim conservá-lo em um equilíbrio místico e íntegro, como um astro em conjunção com outro astro.
- Não confio muito nas suas comparações com o firmamento. Se estivesse seguro do que diz, não precisaria ir tão longe.
- Se é assim, não precisa confiar. Basta que eu tenha confiança em mim mesmo.
- Outro erro, afinal. Você não está convencido de si mesmo, nem em uma única palavra do que diz. Na verdade, pouco ou nada deseja tais uniões, senão, em vez de falar tanto, lançar-se-ia antes ao domínio dos fatos.
Rupert ficou perplexo por alguns instantes.
- Como assim? - falou, afinal.
- Entregar-se-ia ao amor - declarou ela, em tom de desafio. Ele tornou a ficar calado, remoendo a raiva. Mas retrucou:
- É como lhe digo, não acredito nesse gênero de amor Repito-lhe: não quero acrescentá-lo ao seu egoísmo, para seu único proveito. Para você, o amor é um processo de subserviência; para muita gente, aliás. Detesto-o!
- Não - exclamou ela, recuando a cabeça como uma cobra os olhos fuzilando. - É um processo de orgulho. Convém-me ser orgulhosa.
- Orgulho e subserviência, conheço isso muito bem! Orgulho e submissão, ou submissão ao orgulho. Conheço você e essa espécie de amor. É um tique-taque, tique-taque, dança de antagonistas.
- Parece-lhe? - disse-lhe ela com ar perverso. - O meu amor é assim?
- Tenho a certeza.
- Grande certeza! Ninguém pode ter razão, com uma segurança dessas. Só prova que você se engana.
Rupert calou-se, melindrado. Tinham discutido tanto que ambos já estavam exaustos.
- Fale-me agora de você e dos seus - sugeriu ele.
Úrsula falou-lhe então dos Brangwens, da mãe, de Skrebensky, seu primeiro amor - e das suas derradeiras aventuras. Birkin continuava silencioso, sem tirar os olhos dela; dir-se-ia ouvi-la por deferência. O rosto da professora mostrava-se belo, cheio de estranha claridade, enquanto contava todas essas histórias que a haviam desiludido e magoado tão profundamente. E ele parecia aquecer e reconfortar a alma ao doce calor daquela natureza.
"Se ela, realmente, fosse capaz de um compromisso...", pensava Rupert com apaixonada insistência, se bem que pouco esperançado. Todavia, em seu coração, surgiu um lampejo de contentamento.
- Nós todos temos sofrido muito - comentou, ironicamente.
Úrsula mirou-o, e logo um clarão de alegria se lhe espalhou na face, curiosa luz dourada que lhe provinha do olhar.
- Não é verdade? - exclamou, numa voz alta e estouvada. - Quase absurdo, hein?
- Inteiramente absurdo. O sofrimento aborrece-me, nada mais.
- A mim também.
Rupert chegava a ter medo do riso inconsiderado que lhe via nos lábios. Ali estava uma mulher que iria ate as profundezas do céu ou do inferno, qualquer que fosse o seu destino; desconfiava dela, sentia medo de uma criatura assim suscetível de tanto abandono, de tão perigosa consciência na destruição. Contudo, ele, também, ria-se por dentro.
Úrsula levantou-se, pôs-lhe a mão no ombro e fitou-o com os seus olhos estranhos, de um brilho dourado, muito terno, sob os quais se escondia uma curiosa intenção diabólica.
- Diga que me ama; diga: meu amor! - implorou ela.
Birkin fixou-a bem e leu-lhe no rosto o significado daquela expressão sardônica.
- Amo-a bastante - confirmou, de mau modo. - Mas necessita de muito mais que isso.
- E por quê? E por quê? - insistiu a jovem, inclinando para ele o rosto luminoso. - Por que não é o bastante?
- Porque podemos fazer coisa melhor - respondeu ele, passando os braços em torno do pescoço da companheira.
- Não, não podemos fazer nada melhor - volveu Úrsula, com voz forte e voluptuosa entregando-se, todavia. - O mais que podemos fazer é amar-nos um ao outro. Diga meu amor, vamos, vamos!
Apertou-o também em seus braços. Rupert enlaçou-a, beijou-a devagar, murmurou-lhe em tom apaixonado e submisso, mas irônico.
- Sim, meu amor... Sim, meu amor... Que o amor seja o bastante para nós. Amo-te, amo-te! Não quero saber de mais nada.
- Que assim seja - respondeu ela, aninhando-se suavemente de encontro a ele.
Capítulo XIV
Festa aquática
Todos os anos, os Criches ofereciam no lago uma festa mais ou menos popular. Em Willey Water havia uma barca a motor e várias canoas com remos; os convidados podiam tomar chá em uma barraca erguida no gramado em frente da casa ou organizar um piquenique à sombra da enorme nogueira junto do cais, à beira do lago. Nesse ano, o pessoal do Instituto de Educação havia sido convidado; da mesma maneira os funcionários mais graduados da empresa das minas. Gerald e os irmãos não se interessavam por aquela festa, que se tornara tradicional e proporcionava tanto prazer ao pai: era a única ocasião que lhe permitia reunir e obsequiar algumas pessoas. Gostava de ser atencioso para com os que dependiam dele ou eram mais pobres, mas os filhos preferiam a companhia de seus iguais em bens e situação social; detestavam tanto a humildade dos inferiores como sua gratidão ou grosseria.
Contudo, condescendiam em assistir à festa, o que faziam desde muito tempo; além disso, sentiam-se agora um pouco culpados e não desejavam contrariar mais o pai, doente como estava. Por isso, Laura se preparou cuidadosamente para receber os convivas, em lugar da mãe, e Gerald assumiu a responsabilidade dos divertimentos aquáticos.
Birkin escrevera a Úrsula, dizendo que esperava encontrá-la naquela oportunidade, com a irmã; embora ela escarnecesse do patrocínio dos Criches, não deixava de acompanhar o pai e a mãe, quando o tempo estava bom.
Chegou finalmente o dia, com um céu azul e cheio de sol, se bem que levemente ventoso. As duas irmãs vestiram-se de crepe branco e chapéus de palha fina. Gudrun, porém, destacava-se por uma faixa preta, rosa e amarela, brilhante, largamente enrolada na cintura, e meias de seda cor-de-rosa, além de guarnições róseas e douradas no chapéu. No braço levava um casaco de seda amarela, o que lhe emprestava um ar distinto, como se ela fosse um quadro do Salão não obstante a impressão desagradável que produziu no pai.
- Não acha - disse ele zangado - que você podia também vestir-se de "Christmas cracker", e deixar-nos em paz?
Mas Gudrun estava realmente bela e vistosa e exibia aquele traje em sinal de desafio. Quando mostravam espanto à sua passagem, soltando indiretas, não deixava ela de comentar em voz alta para a irmã:
- Regarde, regarde ces gens-là! Ne sont-ils des hiboux incroyables? - e, com essas palavras ditas em francês, olhava por cima do ombro para as pessoas que a fitavam curiosas.
- Não, realmente, é impossível! - replicava Úrsula de forma a ser bem ouvida. E as duas moças afrontavam daquela maneira o inimigo comum. O pai, porém, ficava cada vez mais indignado.
Úrsula também estava vestida de branco, mas seu chapéu cor-de-rosa não levava qualquer enfeite. Os sapatos eram vermelhos, simples, e o casaco, alaranjado. Dessa maneira, partiram os quatro a pé, a caminho de Shortlands: o pai e a mãe iam à frente.
Riam-se as duas da mãe, que trajava um vestido de tecido leve de listras pretas e roxas e um chapéu de palha também roxo; ela estava mais trêmula e tímida que uma jovem, como nunca as filhas haviam sido; andava com fingida modéstia ao lado do marido, que parecia, conforme o costume, amarrotado em sua roupa dominical, como se fosse um jovem papai que houvesse tomado ao colo seus bebês enquanto a esposa se vestia.
- Repare no casalzinho que vai ali adiante - disse Gudrun muito séria. Úrsula olhou para os pais e teve um súbito ataque de riso impossível de controlar. As duas irmãs se detiveram no caminho e riram tanto que até lágrimas lhes vieram aos olhos, tudo por causa do tímido par tão pouco mundano que as precedia.
- Estamos nos divertindo à sua custa, mãe - disse Úrsula, apertando mais o passo em direção aos pais.
A Senhora Brangwen voltou-se, com um olhar entre admirado e colérico.
- Essa não! - exclamou. - Que tenho eu de tão divertido? Não se convencia facilmente de que havia qualquer coisa fora do lugar em sua aparência. Mantinha perfeita calma e ouvia com a maior indiferença todas as apreciações críticas, considerando-se superior á elas. Os vestidos que usava eram sempre esquisitos e sempre caíam mal, embora os exibisse com desembaraço e ate com satisfação. Fosse qual fosse o traje que envergasse, uma vez limpo, sentia-se confiante e acima de qualquer censura tão aristocrático era o instinto daquela mulher.
- A senhora tem um ar majestoso e parece ate uma fidalga de aldeia - declarou Úrsula, rindo, mas com certa ternura que lhe suscitava a expressão ingênua e surpresa da mãe.
- Exatamente como uma fidalga de aldeia - confirmou Gudrun. Mas a arrogância natural da Senhora Brangwen impôs-se novamente e as jovens zombaram outra vez.
- Voltem para casa, suas tolas, com essas risadas idiotas! - gritou o pai no auge da irritação.
Úrsula começou a fazer caretas para o velho mal-humorado. Nos olhos deste chispavam clarões amarelos de uma raiva autêntica que o levavam para frente.
- Não dê atenção a essas duas tolas - aconselhou a mulher, continuando a andar.
- Ate quando continuarei a ser seguido por essa dupla de palermas que não sabem senão guinchar? - volveu ele, furioso.
As filhas continuavam a rir ao longo do caminho que seguia junto da sebe.
- Você é tão tolo quanto elas se continuar se aborrecendo dessa maneira - disse a Senhora Bragwen, irritando-se, por sua vez, ao ver a contrariedade do marido.
- Vem gente aí, pai! - avisou Úrsula, em tom irônico. O homem olhou em torno e, sempre colérico, prosseguiu ao lado da mulher. As filhas os acompanharam, já cansadas de tanto rir.
Depois que as pessoas se afastaram, Brangwen declarou em voz alta:
- Se isto continuar, volto para casas. Macacos me mordam se vou dar espetáculo em público!
Estava realmente fora de si. Ao ouvirem-lhe a voz surda, anunciadora de tempestade, as duas irmãs cessaram de repente as brincadeiras, com o coração penalizado. Mas detestaram a expressão "em público". Que se importavam elas com as pessoas da rua? Gudrun, no entanto, tornou-se mais conciliadora.
- Não estávamos rindo para aborrecê-los - explicou com meiguice, mas sem jeito, o que contribuiu para deixar os pais ainda menos à vontade. - Fazíamos aquilo porque gostamos muito de vocês.
- Vamos então à frente, já que são suscetíveis a tal ponto - propôs Úrsula, melindrada.
E foi daquela maneira que chegaram a Willey Water. O lago estava azul e resplandecente; de um lado, as colinas em suave declive, à luz do sol; do outro, as matas sombrias e espessas terminavam abruptamente na água. A barca a motor afastava-se da margem, barulhenta com sua música estridente e cheia de convidados; a água espadanava sob as rodas propulsoras. Perto do cais havia muita gente vestida de cores alegres e os vultos pareciam pequenos à distância. Na estrada, espreitando por cima da sebe, viam-se curiosos, que contemplavam invejosos, como almas recusadas ao Paraíso.
- Meu Deus! - exclamou Gudrun, sotto você, olhando para a multidão lá em baixo. - Quanta gente! Imagine, nós no meio daquilo tudo, Úrsula!
O horror de Gudrun pelos outros comunicou-se à irmã:
- Vai ser bem desagradável - comentou ela com alguma ansiedade.
- Imagine o que virá depois! - retrucou a primeira ainda em voz baixa e nervosa. Contudo, foi avançando com passo decidido.
- Tenho esperança de que possamos nos livrar - sugeriu a segunda, sempre ansiosa.
- Será bonito se não conseguirmos - continuou Gudrun. Aquela repugnância e aquela apreensão, ambas cheias de ironia, afligiam bastante a irmã.
- Não temos obrigação de ficar - lembrou ela.
- Pois não ficarei mais de cinco minutos no meio dessa gente - asseverou a outra. Aproximaram-se mais e descobriram no portão guardas fardados.
- Guardas para nos prenderem lá dentro! - exclamou Gudrun. - Palavra, o caso está complicado.
- Será melhor esperarmos papai e mamãe - lembrou Úrsula, receosa.
- Mamãe é bem capaz de se arrumar sozinha - esclareceu a outra, vagamente despeitada.
Mas Úrsula sabia que o pai se sentiria constrangido, mal-humorado e infeliz, e isso tirava-lhe o sossego de espírito. Alto e franzino, dentro da roupa amarfanhada, lá vinha ele, rabugento e nervoso como uma criança, sentindo-se deslocado naquele meio festivo. Não se considerava pessoa distinta e nada mais sentia do que pura irritação.
Úrsula colocou-se ao lado do pai, apresentaram ao guarda o convite e entraram os quatro: Brangwen, alto e avermelhado, carrancudo como um menino acanhado; a mulher, muito à vontade, com a sua pele fresca, o mais calma possível, se bem que o penteado tivesse escorregado para um lado da cabeça; depois Gudrun, de olhos redondos, fixos, sombrios, rosto macio e cheio, impassível, semizangada, parecendo pouco predisposta à festa; e, por fim, Úrsula, os olhos espantados, estranhos e brilhantes, o que sempre sucedia quando se encontrava em situação falsa.
Birkin foi o anjo salvador. Dirigiu-se para os recém-chegados, sorridente, com aquela graça afetada das ocasiões elegantes, quase sempre fora de propósito. Dessa vez, tirou o chapéu, exibiu um sorriso simpático, e logo Brangwen, aliviado, gritou-lhe com a maior sinceridade:
- Como vai? Está melhor, não é verdade?
- Estou melhor, obrigado. E a Senhora Brangwen? Quanto a Gudrun e Úrsula, vejo que estão bem.
Os olhos cintilavam-lhe, com aquele ardor que lhe era peculiar. Falava sempre delicadamente com as senhoras, particularmente com aquelas que já não eram novas. A Senhora Brangwen respondeu satisfeita, embora com frieza:
- Minhas filhas têm feito muitas referências ao senhor.
Birkin riu. Gudrun olhou em torno, sentindo-se humilhada. Os convidados permaneciam de pé, formando grupos: muitas senhoras haviam-se sentado à sombra da nogueira, com as xícaras de chá nas mãos. Em volta circulava um criado de casaca. Algumas jovens, de ar pretensioso, empunhando sombrinhas, descansavam sobre a relva, assim como os rapazes, que acabavam de regressar do passeio de barco. Estavam em mangas de camisa, com os punhos arregaçados e tinham-se sentado de pernas cruzadas, com as mãos descansadas sobre as calças de flanela branca. Voavam-lhes em torno do pescoço gravatas de cores alegres, e eles riam e experimentavam mostrar espírito em presença das moças.
"Por que será - pensou Gudrun, mal impressionada - que não têm educação suficiente para conservar o paletó vestido, em vez de tomarem essa atitude excessivamente familiar?"
Horrorizavam-na aqueles rapazes vulgares, com os cabelos bem penteados para trás, e uma intimidade grosseira em demasia.
A certa altura surgiu Hermione Roddice; ostentava um lindo vestido de renda branca coberto por um enorme xale de seda semeado de flores bordadas. Na cabeça, balançava um chapéu descomunal, sem enfeites. Chamava a atenção, impressionava, quase parecia macabra, tão alta que era, com as franjas do imenso xale roçando o solo, atrás de si, a cabeleira muito espessa tombada sobre os olhos e o rosto estranho, comprido e pálido - e as flores bordadas cintilando em volta.
- Parece sobrenatural... - ouviu Gudrun cochicharem ao seu lado. Eram as jovens na grama, sufocando o riso a custo.
- Como têm passado? - exclamou Hermione, musicalmente, aproximando-se, cheia de amabilidade e observando com rigor papai e mamãe Brangwen. Momento terrível que exasperou Gudrun. Hermione estava tão fortemente convencida da superioridade de sua condição social que seria muito capaz de querer conhecer os outros por simples curiosidade, como se se tratasse de animais de exposição. Gudrun, todavia, teria feito o mesmo, mas aborrecia-se por se encontrar em situação de examinada.
Hermione, atenciosa, querendo ser agradável aos recém-chegados, conduziu-os ao lugar onde Laura Crich recebia os convivas.
- Aqui está a Senhora Brangwen - anunciou ela, em voz cantante. E Laura, que envergava um vestido de linho com bordados, apertou a mão da senhora e manifestou-lhe o prazer que tinha em a cumprimentar. Apareceu então, Gerald. Trajava calças brancas e um casaco de golfe, com listras pretas e castanhas; era, realmente, um belo rapaz. Foi também apresentado aos pais Brangwen; falou com a Senhora Brangwen como a uma grande dama, e ao marido, como se não o tivesse na conta de um cavalheiro. Na maneira de tratar os outros Gerald não disfarçava suas impressões. Naquele momento, só estendia a mão esquerda, porque a outra estava machucada e a conservava oculta no bolso. Gudrun ficou satisfeita porque ninguém na família perguntou o que ele tinha na mão.
A barca de passeio fazia grande barulho, com sua música e as pessoas gritando, excitadas, para os que estavam em terra Gerald foi assistir ao desembarque, enquanto Birkin trazia chá para a Senhora Brangwen. O marido unira-se ao grupo dos professores do Instituto, Hermione continuara ao lado daquela e as filhas aproximaram-se do cais para ver a barca atracar.
O apito era estrondoso, mas, de súbito, as rodas pararam, foram lançados cabos para a margem e a embarcação veio, impelida, provocando um leve choque. Os passageiros precipitaram-se imediatamente, na pressa de vir para terra.
- Esperem um instante, um instante só! - gritou Gerald em tom de comando.
Era preciso esperar que a barca estivesse completamente amarrada e que se lançasse uma prancha. Então desembarcaram todos como se chegassem à América.
- Que belo passeio! - diziam as moças. - Foi delicioso! Os criados vieram de bordo com os cestos de provisões. O capitão descansava na pontezinha. Vendo que tudo correra bem, Gerald foi ao encontro de Úrsula e de Gudrun.
- Não querem embarcar na próxima viagem e tomar chá no meio do lago? perguntou ele.
- Não, obrigada - respondeu Gudrun friamente.
- Tem medo da água?
- Não, pelo contrário.
Gerald fitou-a como se procurasse ler-lhe o pensamento.
- Não gosta da barca?
Gudrun custou a responder.
- Não posso dizer que gosto - respondeu finalmente, muito ruborizada e aborrecida sem saber por quê.
- É gente demais - interveio Úrsula, apaziguadora.
- Sim, muita gente - concordou ele, com um riso breve. - Vê? Já está cheia.
Gudrun fitou-o com os olhos brilhantes.
- Já viajou alguma vez da ponte de Westminster para Richmonde nos barcos do Tâmisa? - perguntou.
- Não - respondeu Gerald. - Acho que não.
- Pois ouça. Foi uma das minhas piores aventuras. - Ela falava rapidamente, faces afogueadas. - Não havia um único lugar para sentar; um homem, perto de mim, cantou Embalado no Berço do Abismo durante todo o trajeto; era cego e tinha conseguido um realejo, desses portáteis; além disso, pedia esmolas. Pode imaginar o que era aquilo? Da cozinha vinha constantemente cheiro de comida e da casa de máquinas vinham baforadas quentes de óleo; a viagem durou horas e horas e, durante milhas, na margem, garotos corriam, hediondos, na lama repugnante do Tâmisa, enterrando-se às vezes ate a barriga. Tinham calças vestidas pelo avesso, chafurdando naquele lodo incrível, sempre olhando para nós e gritando, como pedaços de carne deteriorada: Aqui estamos, senhores, aqui estamos. Que cena repugnante e indecente! Os chefes de família, a bordo, riam quando os garotos se atolavam na lama e de vez em quando atiravam-lhes moedas. Ah! Aquele olhar ávido dos pequenos e a maneira como se precipitavam no chão em busca do dinheiro. Na verdade, nenhum abutre, nenhum chacal, se igualaria a eles em matéria de podridão. Nunca mais pretendo andar nesses barcos de excursão. Nunca mais!
Enquanto ela falou, Gerald não desviou os olhos, brilhantes e animados, de cima da jovem. Não pelo que estava ouvindo, mas porque Gudrun o excitava, o espicaçava com alfinetadas breves e incisivas.
- É natural! - disse ele - que as pessoas tenham em si um lado abjeto.
- Por quê? - perguntou Úrsula. - Eu não tenho.
- Mas não era só isso, era também a qualidade do conjunto: chefes de família que riam, achando a coisa engraçada, atirando moedas... Mães com seus joelhos adiposos que comiam sem parar... - acrescentou Gudrun.
Úrsula interveio:
- Parece que há um verdadeiro lado mau nessas pessoas de que o senhor fala.
Gerald desatou a rir.
- Não faz mal. Desiste-se do passeio na barca. Gudrun corou ao ouvir aquela censura disfarçada.
Houve um instante de silêncio. Gerald, arvorado em sentinela, vigiava os convivas que desembarcavam. Sem dúvida ele era elegante e distinto, mas aquela atitude marcial não deixava de ser um pouquinho irritante.
- Preferem tomar chá aqui, ou mais perto de casa, na relva? - indagou ele.
- Não se poderia arranjar um barquinho a remos? - sugeriu Úrsula, que não fazia rodeios quando desejava alguma coisa.
- Querem fugir?
- Bem - interveio Gudrun, aflita com a sem-cerimônia da irmã -, nós não conhecemos ninguém aqui, somos quase completamente desconhecidas.
-Ora - volveu Gerald -, farei algumas apresentações.
Gudrun procurou observar se ele dizia aquilo com más intenções. Mas logo lhe concedeu um sorriso.
- Ah! Sabe o que queremos dizer. Não poderíamos subir aquela encosta e fazer algumas explorações? - Apontou para um bosquezinho da colina, do lado dos prados, próximo ao lago. - Deve ser um lugar adorável. Poderíamos ate nos banhar. Que lindo parece, a esta luz! Na verdade, assemelha-se às margens do Nilo, isto é, como as imaginamos.
Gerald sorriu daquele entusiasmo por um lugar afastado.
- Têm a certeza de que é bastante longe? - perguntou ironicamente. E acrescentou a seguir: - Sim, podem ir até lá se conseguirmos um barco. Mas creio que estão todos ocupados.
Percorreu com a vista e contou os barcos a remo que por ali andavam.
- Devia ser agradável! - repetiu Úrsula, pensativa.
- E não querem chá?
- Não seria má ideia tomarmos uma chávena e escapulirmos depois - lembrou Gudrun.
Gerald olhava risonho, ora para uma, ora para outra. Sentia-se um pouco melindrado, mas levava o caso na brincadeira...
- Sabem remar? - perguntou.
- Sabemos - respondeu Gudrun secamente.
- Sim - corroborou Úrsula. - Sabemos remar, como duas aranhas de água.
- Bem... Tenho uma canoa muito leve, que não trouxe para cá com medo que houvesse algum acidente. Seriam capazes de se aguentar nela?
- Sem dúvida - afirmou Gudrun.
- O senhor é um anjo! - exclamou Úrsula.
- Evitem, pelo amor de Deus, qualquer acidente; sou responsável por tudo o que acontecer no lago.
- Fique descansado - disse Gudrun.
- Bem, nesse caso, vou arranjar um cesto e as senhoras farão o piquenique sozinhas. Boa ideia, hein?
- Estupenda! Mal posso acreditar - gritou Gudrun, ruborizando-se outra vez. E o sangue dele também se aqueceu nas veias, quando a viu olhar de forma tão carinhosa, fazendo penetrar no corpo do rapaz a gratidão que sentia.
- Por onde anda Birkin? - perguntou Gerald, com os olhos brilhando. - Poderia ajudar-me a trazer o barco para fora.
- Mas o que tem na mão? Está machucado? - perguntou Gudrun de maneira um tanto indiferente, como se desejasse evitar familiaridade. Era a primeira vez que se fazia alusão ao ferimento. Os subterfúgios sutis de que se servia a moça trouxeram a Gerald uma nova carícia; tirou a mão direita do bolso: estava envolta numa atadura. Olhou para ela e tornou a colocá-la no bolso. Gudrun estremeceu ao ver o curativo.
- Eu me arranjarei com a outra mão. A canoa é leve como uma pena. Lá vem Rupert. Rupert!
Birkin abandonara suas obrigações sociais e vinha ao encontro deles.
- O que foi que lhe aconteceu, finalmente? - perguntou Úrsula, que há mais de meia hora mal continha a pergunta.
- Minha mão? Foi apanhada por uma das máquinas - respondeu Gerald.
- Que horror! - exclamou Úrsula. - E machucou-se muito?
- Sim, mas está melhorando. Tive os dedos esmagados.
- Oh! - exclamou ela novamente, como se também estivesse sentindo dor. - Sofro tanto como se fosse comigo. - E sacudiu a mão.
- Que desejam? - perguntou Birkin.
Ele e Gerald lançaram à água a canoa, muito pequena e estreita.
- Estão certas de não correr perigo? - perguntou Gerald.
- Sim, estamos - afirmou Gudrun. - Não seria tão estouvada que me metesse a fazer o que não sei. Já tive um barco desses em Arundel e garanto-lhe que sei lidar com ele.
Tendo feito essa afirmação, ela e a irmã entraram na frágil embarcação e conduziram-na cuidadosamente para o lago. Os dois rapazes ficaram a observá-las. Gudrun remava. Sabia que estava sendo observada e isso a tornava desajeitada e morosa. O rubor subiu-lhe ao rosto como um estandarte vermelho.
- Muito obrigada - disse ela, já de longe, enquanto o barco se ia afastando. - É uma sensação deliciosa, como se estivéssemos em cima de uma folha...
Gerald riu-se da comparação. Vinda da distância, a voz chegava-lhe aos ouvidos estranha e penetrante. Contemplou-a a remar. Havia naquela jovem alguma coisa quase infantil; era confiante e educada como uma criança. Enquanto pôde, ficou a admirá-la. E, para Gudrun, havia real encanto, como que um pretexto em ser criança, em se acolher à proteção daquele homem que permanecia no cais, belo e altivo em seu traje de verão, e que era, além disso, o homem mais importante que ela conhecera ate então. Quanto a Birkin, que estava ao lado dele, Gudrun não dava a menor atenção, era um vulto incerto, indeciso e oscilante... Apenas um vulto ocupara, naquele momento, o espaço em que pousavam seus olhos.
O barco deslizava suavemente. Passaram pelos banhistas, cujas barracas listradas se espalhavam entre os salgueiros, no limite dos prados, e foram, ao longo da margem descoberta, contornando as pastagens que desciam oblíquas sob a luz de ouro dá tarde já avançada. Na margem oposta, cheia de árvores, havia barcos, semiocultos, de onde vinham ruídos de risos e de conversa. Mas Gudrun prosseguiu na direção do tufo de plantas que se balançava ao longe, douradas de sol.
As duas irmãs descobriram um lugar onde um arroio desaguava no lago, entre juncos, formando um pau florido de flores cor-de-rosa, tendo ao lado uma prainha de areia. Ali atracaram, cautelosas, a canoa frágil, e, descalçando os sapatos e as meias, prepararam-se para atingir a margem. As ondas do lago, pequeninas, corriam tépidas e claras. Úrsula e Gudrun conduziram o barco para terra e olharam em volta, satisfeitas Estavam perfeitamente a sós naquela enseada esquecida; no outeiro, protegendo-as, erguia-se o grupo de arbustos.
- Vamos tomar um banho rápido? - propôs Úrsula. - Depois tomamos o chá.
Olharam em volta. Ninguém poderia vê-las, nem apanhá-las de surpresa. Em menos de um minuto, Úrsula despiu-se, e, completamente nua, mergulhou na água, nadando logo para fora. Logo Gudrun a alcançou. Assim nadaram durante alguns minutos, silenciosas, felizes, na água da enseada. Depois voltaram para a margem e embrenharam-se no bosquezinho, como ninfas.
- Como é bom ser livre - exclamou Úrsula, correndo ligeira por entre os troncos das árvores, inteiramente nua e com os cabelos flutuantes. A mata compunha-se de faias, esplêndidas e frondosas, verdadeiro entrelaçado de ramos cor de aço e folhas e brotos verdes, mais tenros; do lado norte havia uma abertura, espécie de janela, através da qual se distinguia o horizonte.
Quando os corpos já estavam enxutos, as moças vestiram-se depressa e sentaram-se para tomar o chá. Instalaram-se no lado setentrional do bosque, sob os clarões dourados do sol, olhando para a colina, sozinhas naquele mundo selvagem para elas reservado. O chá estava quente e perfumado e havia deliciosos sanduíches de pepino e de caviar, além de bolos em que havia sabor de vinho.
- Sente-se bem, Prune? - inquiriu Úrsula, extasiada.
- Sinto-me perfeitamente feliz - replicou a outra, com ar grave, dirigindo os olhos para o sol poente.
- Eu também!
Sempre que faziam o que lhes agradava, Úrsula e Gudrun consideravam-se satisfeitas, no seu universo particular e completo. E este agora constituía um dos momentos perfeitos de liberdade e bem-estar, como só as crianças conhecem, quando tudo lhes parece decorrer como uma deliciosa aventura.
Uma vez tomado o chá, continuaram elas como estavam, silenciosas e tranquilas. Depois, Úrsula, que possuía bela voz, começou a entoar para si mesma, docemente, Annchen von Tharau. Gudrun ouvia, ali sentada debaixo das árvores, e o seu coração encheu-se de melancolia. A irmã parecia tão sossegada, sem ambições, limitando-se a trautear a canção, confiante e livre dentro do seu pequeno mundo! Quanto a ela, Gudrun, sentia-se fora daquele ambiente: era perturbador aquele sentimento de desolação que a invadia; sentia-se à margem da vida, como espectadora, enquanto a outra tomava parte nela. Isso causava-lhe sofrimento, dava-lhe a sensação do nada e obrigava-a a pedir à irmã que lhe prestasse atenção, que não se esquecesse dela.
- Você se importa que eu dance, Úrsula? - perguntou baixinho, quase sem mover os lábios?
- O quê? - perguntou Úrsula, olhando surpreendida para a irmã.
- Quer cantar para que eu dance? - repetiu a primeira, irritada por ter de repetir o pedido.
- Você quer...
- Quero dançar Dalcroze - explicou a mais nova, envergonhada, apesar de estar falando com a irmã.
- Ah! Dalcroze? Eu não estava entendendo. Está bem. Gosto de vê-la dançar. Que devo cantar?
- O que quiser. Vou tentar pegar o ritmo.
Úrsula, porém, não atinava com o que devia cantar. Todavia, começou em voz risonha:
Meu amor é bem nascido...
Gudrun, como se uma cadeia invisível lhe pesasse nas mãos e nos pés, principiou lentamente a dançar, fazendo movimentos rítmicos, batendo e agitando os pés no compasso, e formando, com os braços e as mãos, gestos lentos e regulares, ora abrindo-os e levantando-os acima da cabeça, ora deixando-os afastados um do outro, com o rosto levantado e os pés sempre a bater, correndo para acompanhar a canção, como se se tratasse de um estranho encantamento. A forma branca e extasiada do corpo elevava-se aqui e ali em um arrebatamento singular e impulsivo, como se levada na aragem mágica, estremecendo em passinhos leves e delicados. Úrsula estava sentada na relva, cantando, enquanto os olhos riam-se como se achasse aquilo tudo muito engraçado, mas ao mesmo tempo sujeita a uma espécie de influência hipnótica.
Meu amor é bem nascido,
Mais triste que ciumento...