Birkin entrou, sentou-se e pôs-se a analisar o rosto do outro, luzidio e avermelhado, de testa curta, olhos brilhantes e lábios sensuais, grossos e movediços, sob o bigode bem aparado. Achava tanta graça em ver que aquilo era um ser humano! E como havia diferença entre o que Brangwen pensava ser e o que era na realidade! Birkin não vislumbrara nele senão um estranho e inexplicável mostruário de paixões e desejos reprimidos, de tradições e ideias maquinais, tudo mal misturado e ao acaso no rosto débil e lustroso de um homem que orçaria pelos cinquenta anos, tão irresoluto e indeciso agora como o fora na mocidade. Como podia ser pai de Úrsula, se ele mesmo não parecia um indivíduo definitivamente criado? Não era bem um pai. Através da sua carne transmitira-se um germe de vida, mas o espírito da jovem não poderia ter tido origem ali. Nem mesmo viera de nenhum antepassado, mas surgira, sim, do desconhecido. A criança é filha do mistério, ou então não foi verdadeiramente gerada.
- O tempo não está tão mau agora - começou Brangwen, depois de um momento de espera. Não havia entre os dois o menor interesse comum.
- É verdade - confirmou Birkin. - Anteontem foi lua cheia.
- Acha que a lua tem influência sobre o tempo?
- Suponho que não. Não tenho ideias seguras a esse respeito.
-Sabe o que diz o povo? A lua e o tempo podem mudar na mesma ocasião, mas as fases da primeira não afetam o segundo.
- Ah, sim? Nunca tinha ouvido isso - replicou o visitante.
Houve uma pausa. Então, Birkin observou:
- Talvez eu esteja sendo importuno. Vim para falar com Úrsula. Ela está?
- Penso que não. Deve ter ido à Biblioteca. Vou ver. Birkin ouviu-o falar na sala de jantar.
- Não, não está - esclareceu ao regressar. - Mas não deve demorar. Precisa falar com ela?
Rupert mirou-o com olhos curiosos e tranquilos.
- A verdade - explicou - é que desejava pedir-lhe que me aceitasse como marido.
No olhar castanho-dourado do velhote perpassou um clarão.
- Que diz? - E, fitando Birkin (mas desviando os olhos diante da imobilidade do outro), acrescentou: - Ela o esperava?
- Não, senhor.
- Não? Ignorava por completo que houvesse tais projetos... - Sorriu com ar constrangido.
Birkin relanceou os olhos no semblante do velho e pensou consigo mesmo: "Por que haveriam de ser projetos?" A seguir, em voz alta, esclareceu:
- Na verdade, é uma coisa inesperada. - Lembrou-se dos seus colóquios com Úrsula e acrescentou: - Mas não sei...
- Resolução súbita - atalhou Brangwen, bastante confuso.
- De certo modo - respondeu Rupert. - Porém, creio que... por outro lado...
Seguiu-se um silêncio, após o qual se ouviu a sugestão do pai:
- Bem, ela decidirá...
- Claro - respondeu Birkin calmamente.
- Mas acho que não devem fazer as coisas precipitadamente. Podem arrepender-se e talvez seja tarde demais...
- Nunca é tarde demais, - contradisse Birkin - por mais longe que se tenha ido.
- Que quer dizer?
- Se houver arrependimento, dissolve-se o casamento.
- Pensa assim?
- Decerto.
- Bem, é uma maneira de encarar as coisas.
Birkin não respondeu, mas pensou: "Assim é que é. Quanto à sua forma de ver, William Brangwen, talvez fosse necessário explicar".
- Imagino - prosseguiu o pai - que sabe quem nós somos, que espécie de educação minha filha recebeu?
O inspetor Birkin dizia com os seus botões, lembrando-se dos seus exercícios escolares: Ela é a mãe do gato, etc. E, em voz alta, inquiriu:
- Se eu sei que espécie de educação recebeu? Parecia ter intenção de irritar Brangwen.
- Teve - tornou este - tudo quanto é próprio de uma moça, dentro das nossas possibilidades.
- Também me parece - atalhou o outro, colocando um audacioso ponto final naquele assunto. O pai exasperava-se. Sentia qualquer coisa de impertinente na simples presença de Birkin.
- E não gostaria de a ver renegar o que aprendeu - declarou o dono da casa, em tom peremptório.
- Por quê? - indagou o pretendente.
Esta interrogação rebentou como um tiro os miolos de Brangwen.
- Por quê?! Não concordo com as maneiras modernas nem as ideias avançadas. Não gosto de novidades.
Birkin observava-o com olhos calmos, sem a menor emoção. Entre os dois homens havia um completo antagonismo.
- Com que então - disse o mais novo - as minhas ideias lhe parecem muito modernas?
_Quer saber a minha opinião? - Brangwen empertigou-se. - Não falava do senhor em especial. O que digo é que as minhas filhas foram educadas de acordo com a religião em que eu próprio me criei e não quero vê-las afastar-se desses princípios.
Houve um silêncio perigoso.
- E então? - inquiriu Birkin.
Brangwen hesitou. Sentia-se constrangido.
- Hein? Que quer dizer? Tudo o que desejo é que minha filha... - Depois, refugiou-se no silêncio, convencido da futilidade da discussão. Naquele terreno faltava-lhe confiança em si próprio. - Por mim, já se sabe, não pretendo contrariar nem influenciar ninguém. Úrsula fará o que quiser.
Ficaram então calados, pela impossibilidade absoluta de chegarem a um acordo. Birkin aborrecia-se. Não achava o outro uni homem coerente: parecia-lhe mais um repositório de ecos de antigas teorias... Observou os olhos daquele possível sogro. Brangwen percebeu e o rosto cobriu-se de um rancor concentrado, de humilhação, do sentimento, enfim, da sua própria inferioridade.
- Deixemos as crenças - disse. - Mas antes preferiria ver minhas filhas mortas do que à disposição do primeiro homem que se resolvesse a conquistá-las.
Perpassou nos olhos de Birkin uma sombra dolorosa.
- Quanto a isso - explicou o pretendente - sou mais escravo da mulher do que ela de mim.
Novo silêncio. O velhote parecia desorientado.
- Compreendo - acudiu ele. - A moça fará o que entender. Tenho dado tudo pelas minhas filhas, e elas não me agradecem sequer. Só querem fazer o que lhes agrada, e tratam somente de si mesmas. Úrsula, no entanto, precisará pedir a opinião da mãe, e a minha, naturalmente.
Brangwen tentava conciliar as ideias.
- E declaro-lhe, meu caro senhor, - continuou - que prefiro acompanhá-las ao cemitério a vê-las no mau caminho, como se encontram tantas hoje em dia. Preferiria enterrá-las...
- Está bem - replicou Birkin lentamente, cansado e desgostoso com o rumo da conversa. - Espero que elas não deem nem ao senhor nem a mim pretexto para tal...
Brangwen enfrentou-o e explicou numa cólera súbita e impotente:
- Sabe que mais, Sr. Birkin? Não percebo a razão que o trouxe aqui, nem o que deseja de nós. Minhas filhas são minhas filhas, e eu tenho o dever de olhar por elas enquanto me for possível.
Birkin franziu imediatamente a testa e os olhos tomaram uma expressão sarcástica. No entanto, continuou imóvel e calmo. Seguiu-se uma pausa.
- Nada tenho a dizer quanto ao seu casamento com Úrsula recomeçou o pai. - Não me diz respeito, ela que faça o que quiser, com ou sem o meu consentimento.
Birkin desviou os olhos e, através da janela, olhou para a rua. Parecia refletir. Afinal de contas, pensava, o que poderia esperar mais? Não havia a menor vantagem em prolongar tal tipo de conversa! Aguardaria o regresso de Úrsula, falaria com ela e iria embora. Não queria se aborrecer por causa do pai. Nem havia necessidade de tal coisa. Não deveria tê-lo provocado. Assim, os dois homens permaneceram silenciosos, e Birkin quase inconsciente da situação. Viera pedir a Úrsula que se casasse com ele; portanto, esperaria para lhe fazer a proposta. Quanto à decisão desta, quer negativa quer favorável, Birkin nem sequer a discutia. Tencionava dizer o que pretendia e era só isso que o preocupava. Admitia a completa insignificância dessa família. O destino, agora, estava traçado. Via um passo à frente e nada mais. Quanto ao resto, o tempo resolveria. Deixava à sorte a resolução dos outros problemas.
Finalmente, o portão rangeu e viram Úrsula subir os degraus com alguns livros debaixo do braço. Tinha, como de costume, aquele ar estático e abstrato, que a tornava sempre ausente, alheia às coisas do mundo e que tanto irritava o pai. Possuía a insensata faculdade de se envolver numa atmosfera própria, que excluía a realidade e dentro da qual parecia resplandecer como se a banhassem os raios de sol.
Sentiram que havia entrado na sala de jantar e que colocava os livros sobre a mesa.
- Trouxe a Revista das Moças? - perguntou Rosalind.
- Trouxe, mas esqueci-me do número que você queria.
- Ah! - replicou a irmã, zangada. - Muito me espantaria se você não esquecesse.
Depois perceberam que as duas cochichavam.
- Onde? - perguntou Úrsula.
A outra respondeu em voz baixa.
Brangwen então abriu a porta e chamou, em tom desabrido e inconveniente:
- Úrsula!
A jovem apareceu, ainda de chapéu.
- Como vai? - perguntou ela avistando Birkin, parecendo perturbada com o encontro, que parecia surpreendê-la. O inspetor estranhou aquilo, tanto mais que estava convencido de que a sua presença ali não constituiria nenhuma novidade. Úrsula tinha aquele ar estranho, desligado, como se o mundo real a impressionasse em demasia, tão impróprio que era, a ela que circulava numa esfera muito sua!
- Interrompo a conversa? - perguntou.
- Não, o que interrompeu foi um silencio total - corrigiu Birkin.
- Ah! - fez Úrsula, sem consciência das coisas. A presença daqueles homens não significava nada para ela; continuava fechada, sem se compenetrar da existência dos outros, forma sutil de insultar, que nunca deixava de exasperar o pai.
- E que explicou - o Sr. Birkin deseja falar com você e não comigo.
- Ah, sim? - disse ela distraidamente, como se nada tivesse a ver com aquilo. Depois, compenetrando-se, de súbito, voltou-se radiante para a visita e indagou, ainda em tom de indiferença: É assunto particular?
- Acho que sim - respondeu ele, irônico.
- Um pedido de casamento, ora bolas... - atalhou o pai
- Ah! - murmurou a moça.
- Ah! - imitou-a o pai. - É só o que tem a dizer?
Úrsula estremeceu como se a tivessem ferido.
- Veio, realmente, pedir-me em casamento? - perguntou a Birkin, como se se tratasse de uma brincadeira.
- Vim - confirmou o outro. - Acho que é isso. - Estas últimas palavras foram pronunciadas um tanto a medo.
- Sério? - insistiu ela, vagamente deslumbrada. Birkin podia agora responder o que quisesse. Úrsula parecia satisfeita.
- Sério - confirmou o pretendente. - Gostaria... gostaria que me aceitasse por marido.
A moça observou-o. Rupert tinha os olhos sulcados de inquietos clarões: esperava dela qualquer coisa, sem, no entanto demonstrar grande empenho. Úrsula retrocedeu um pouco como se exposta aos olhares do homem, a sua pessoa corresse algum perigo. Sentiu-se triste, a alma perturbou-se e achou melhor desviar a vista. Fora expulsa do seu mundo solitário e maravilhoso. Receava qualquer contato que, naquela ocasião, se lhe afiguraria quase antinatural.
- O quê? - disse ela, distraída, absorta, em voz indecisa.
Nesse momento, o coração de Birkin se confrangeu, tomado de repentina amargura. Via que, para a jovem, nada daquilo tivera importância. Mais uma vez o homem fora iludido. Úrsula sentia-se satisfeita no universo que ela mesma criara. Ele e as suas esperanças eram coisas acidentais para ela, ofensivas até. Brangwen sentia-se enraivecido com semelhante atitude. Toda a vida lhe havia suportado aquelas maneiras.
- O que responde, Úrsula?
A filha sobressaltou-se, e, um tanto assustada, relanceou os olhos pelo pai e murmurou:
- Eu disse... alguma coisa? - Mostrava-se aflita por qualquer falta não cometida.
- Não - confirmou o pai, irritado. - Mas não precisa tomar esse ar idiota. Parece fora de si...
Úrsula refugiou-se em um silêncio hostil.
- Estou em mim - declarou finalmente, tomando uma posição de adversária.
- Ouviu o que o Sr. Birkin pediu, não é verdade? - insistiu o pai, de mau humor.
- Ouvi, sim senhor.
- Então, que resposta dá a ele? - A voz de Brangwen denotava a sua irritação.
- Preciso responder?
Ante a impertinência da frase, o velho perdeu o jeito. Mas não disse nada.
Birkin, para facilitar a situação, interveio:
- Não há necessidade de responder agora. Responda quando quiser.
Os olhos da moça luziam intensamente.
- Por que hei de responder? - exclamou ela. - Não é o senhor quem manda? Para que me forçam?
- Forçar? Forçar? - repetiu o pai, cheio de ira e de desgosto - É uma pena que não possamos, com ameaças, incutir em você um pouco de bom senso e de decência! Forçar! Teimosa assim, de pouco serviria!
Úrsula ficara imóvel no meio da sala, com olhares chamejantes e terríveis, numa espécie de desafio. Birkin fitou-a. Também ele se mostrava colérico.
- Ninguém lhe quer mal - acabou por dizer, esforçando-se por ser amável e atencioso.
- Percebo muito bem - contrariou ela - que ambos pretendem obrigar-me a qualquer coisa.
- Isso é uma suposição da sua parte - observou Rupert com ironia.
- Suposição?! - atalhou o pai. - Uma estouvada que não admite senão as suas próprias opiniões!
Birkin levantou-se, dizendo:
- Seja o que for, deixemos isso por agora. - E saiu sem pronunciar mais uma só palavra.
- Tola! Tola! - bradou Brangwen, profundamente consternado. Úrsula retirou-se também e subiu ao outro andar, cantarolando. Contudo, experimentava uma terrível emoção, como se tivesse tomado parte em um medonho combate. Da janela, viu Rupert subindo a ladeira. Parecia tão furioso que a moça ficou preocupada com o que poderia acontecer. O homem era ridículo, decerto, mas inspirava receio. Úrsula considerava-se alguém que se tivesse livrado de um verdadeiro perigo.
Embaixo, o pai ficara sentado, impotente na sua humilhação e infelicidade. Julgava-se possesso de todos os demônios depois daqueles frequentes conflitos com a filha. Detestava-a como se essa aversão fosse o único pretexto que lhe restasse para viver. O inferno todo cabia-lhe no peito. Sentia-se desesperado, rendido, e perdido pelo próprio desespero. Para escapar àquele ódio resolveu sair.
O rosto de Úrsula tornou-se duro, dispondo-se a enfrentar todos os seus inimigos. Refugiando-se em si mesma, tomou um ar rígido e fechado, como um diamante; fria e invulnerável, inteiramente livre e até feliz, isenta na perfeição e na plena posse da sua individualidade. O pai teria de fazer as coisas de maneira a não reparar naquela faculdade de esquecimento tão útil, ou então enlouqueceria de indignação. Radiante de alegria, no entanto, estava Úrsula, encerrada em seu declarado antagonismo.
Continuaria assim durante dias, naquele puro estado de espontaneidade aparente, ignorando a existência de tudo que não fosse ela mesma, pronta e atenta apenas aos seus interesses. E, para um homem, seria coisa desagradável aproximar-se; que o dissesse Brangwen, que amaldiçoava a sua paternidade! Havia de habituar-se a não ver sequer, a não tomar conhecimento daquela filha.
Em tais disposições de espírito, Úrsula mostrava-se firme e resoluta, brilhante e atraente na completa hostilidade sem fingimento de espécie alguma; e, todavia, todos desconfiavam dela e ninguém sentia estima por ela. Era a voz, de claro timbre, que fazia com que a pusessem de lado e a repelissem. Somente Gudrun se entendia com a irmã. Nestes momentos a intimidade delas tornava-se mais completa, como se as duas inteligências não formassem senão uma. Sentiam-se unidas por um laço sólido de mútua compreensão, superior a todas as outras coisas. E, durante este período de cego arrebatamento e simpatia entre as irmãs, o pai respirava num ambiente de morte, como se a própria vida dele estivesse para ser destruída. Andava desesperado, quase louco, não parava um instante; parecia que as filhas o matavam, pouco a pouco. Mas não tinha força para se opor a elas e não dizia palavra. Era forçado a viver na atmosfera que o aniquilava. Amaldiçoava-as e o seu maior desejo seria que elas se afastassem para longe.
Úrsula e Gudrun continuavam felizes na sua superioridade feminina e fácil e pareciam fisicamente bem. Trocavam confidências, faziam revelações íntimas, contavam uma à outra os mais recônditos segredos. Não ocultavam nada, tudo diziam, chegando ate os limites do inconveniente. E, assim, armavam-se de conhecimentos recíprocos e extraíam os mais sutis aromas do fruto da ciência. Curioso era ver como o saber de uma completava as noções da outra.
Úrsula considerava os homens como uma mãe considera os filhos, com piedade dos desejos deles e admiração pela coragem viril, admirando-os como qualquer mulher admiraria os entes que dera à luz, um pouco deliciada com a novidade. Mas, para Gudrun, faziam parte das hostes inimigas. Temia-os e desdenhava-os e, no entanto, respeitava a atividade das iniciativas masculinas.
- Com certeza - obtemperou ela, muito desembaraçada há um excesso de vida em Birkin que não deixa de ser notável. Possui-a extraordinariamente rica, na verdade espantosa, capaz de transmitir às coisas. Mas há tantos fatores na nossa existência que ele desconhece por completo, quer por ignorar em absoluto, quer por os desprezar como sem importância! Elementos tão necessários às outras pessoas! De certa maneira, não é homem deveras inteligente; agarra-se em demais aos pormenores.
- Sem dúvida - concordou Úrsula. - Lembra muito um pregador. É isso: um pregador!
- Exatamente! É incapaz de ouvir o que outra pessoa diz. Não sabe ouvir, eis a verdade pura e simples. A voz dele basta para o entreter.
- Você diz bem: ensurdece-nos.
- Ensurdece-nos - repetiu Gudrun. - E pela simples violência com que fala! É exasperante. Mas ninguém se convence pela violência. Conversar com ele torna-se coisa impossível, e mais impossível ainda será viver na companhia dele.
- Não acha fácil viver com Rupert? - perguntou Úrsula.
- Deve ser fatigante, exaustivo. Você estaria constantemente atordoada pela voz e obrigada a concordar, sem direito a uma opinião. Fiscalizaria todos os seus atos, pois não admite que haja uma maneira diferente de pensar. E o pior daquele espírito é a sua falta de autocrítica. Olhe: parece-me um homem totalmente intolerável.
- Sim... - assentiu a irmã, um tanto hesitante. Não estava em absoluto acordo com a outra. - O pior é que todos se tornam intoleráveis ao fim de quinze dias.
- Coisa horrível! - exclamou Gudrun. - Birkin é dogmático em demasia Não concebe que mais ninguém possa ter individualidade. É assim, sem tirar nem pôr.
- Talvez - concordou Úrsula. - O que mais lhe agrada é captar as almas.
- Nem mais nem menos! E pode imaginar maior horror Era uma verdade o que a irmã dizia, e a própria Úrsula se sentiu abalada ate o mais íntimo do ser, profundamente desgostosa.
Mas ficou como estava, embora o desacordo com a outra se houvesse estabelecido e ela experimentasse o mais triste desengano.
De repente, porém, indignou-se com a maneira como Gudrun enfrentava as circunstâncias. Apresentava-as de forma tão desagradável, tão decisiva! Quanto ao que se relacionava com Birkin havia outras observações verdadeiras a fazer, além das de Gudrun. Esta, então, delineava um retrato com dois traços e o considerava pronto. A personagem ficava marcada, catalogada definitiva. E acabou-se! Contudo, resultava falso, às vezes. Essa maneira que tinha Gudrun de anunciar sentenças acerca de tudo e de todos podia encerrar muitos enganos. Úrsula começava a revoltar-se contra a irmã.
Certo dia, estavam passeando, quando descobriram, no ramo mais alto de uma árvore, um pintarroxo cantando estridentemente. Pararam para o admirar. E, na face de Gudrun, estampou-se logo um sorriso irônico.
- Parece que se julga importante - observou ela.
- É mesmo! - Um Lloyd Georginho com asas!
- O próprio! - exclamou Gudrun extasiada. Daí por diante, Úrsula conservou na memória a ideia daqueles passarinhos tenazes e barulhentos sob o disfarce de políticos atarracados e fortes, entoando anãs na tribuna e pretendendo ser ouvidos à viva força.
Este simples incidente afastou-a ainda mais da irmã. À frente dela, no caminho, surgiram de repente alguns verdelhões. Pareceram-lhe tão sobrenaturais e inumanos, qual flechas coloridas atiradas pelos ares para levarem qualquer mensagem fantástica transmitindo de viva voz, que a rapariga disse com os seus botões: No fim de contas, que disparate chamá-los Lloyds Georges! Desconhecemo-los totalmente, são forças ignoradas. Não passa de atrevimento compará-los a seres humanos. Pertencem a um mundo diferente. Que estúpido é o antropomorfismo! Gudrun, na realidade, tornou-se atrevida e insolente, pretendendo interpretar tudo à sua maneira, medindo tudo de acordo com os seus pontos de vista. Rupert tem muita razão, as pessoas são insuportáveis com a mania de pintar o universo à sua imagem e semelhança. O universo nada tem de humano, graças a Deus! "Parecia-lhe irreverência, destruidora da verdadeira vida, essa comparação de Lloyd George com os passarinhos. Era difamar estes últimos e cometer um erro dos maiores. Ela própria tivera culpa no caso, mas fizera-o sob a influência de Gudrun. Poderia considerar-se desculpada.
Assim, afastou-se da irmã e das suas teorias, voltando novamente o espírito para Birkin. Não o tornara a ver depois do fiasco do pedido de casamento, nem mesmo o desejava, com receio de ser obrigada a dar-lhe uma resposta. Sabia o que Birkin queria dizer quando se propôs como marido; sabia-o vagamente, sem poder, no entanto formular a ideia com palavras. Calculava a espécie de amor e a espécie de rendição exigida, e não estava muito compenetrada de que fosse aquele o gênero de amor que ela preferia: não lhe ser aquela "unissonância na separação" coisa bastante do seu agrado. Gostaria, antes, de uma intimidade difícil de explicar; quereria tê-lo inteiramente, definitivamente, só para si - o inexprimível anseio - numa intimidade verdadeira. Bebê-lo, ah, como um filtro da vida... Fazia a si mesma grandes declarações, dizia-se pronta a aquecer-lhe os pés no próprio seio, à imitação do repugnante poema de Meredith. Tudo, porém, com a condição de que ele, o seu amante, a amaria sobre todas as coisas, no mais completo dos abandonos. E, suficientemente sutil como era, Úrsula não acreditava na renúncia perfeita de Birkin. Aquele homem seria o primeiro a não crer em tal possibilidade. Dissera-o abertamente. Era o seu processo de desafio. Úrsula preparava-se para o combate. Para ela, o amor devia estar acima dos indivíduos, ao passo que, na frase de Rupert, o indivíduo é que se sobrepunha ao amor e ao próprio parentesco. Segundo ele, a alma radiante e solitária aceitava o amor só com a condição do seu justo equilíbrio; mas, para a jovem, amar era tudo. O homem devia entregar-se a ele por completo. Fosse Rupert o seu homem, inteiramente, e Úrsula, por seu lado, tornar-se-ia sua humilde escrava, quer ele quisesse, quer não.
Capítulo XX
Judô
Depois do fracasso daquele pedido de casamento, Birkin saiu as cegas de Beldover, num ímpeto de fúria. Sentia o quanto fora insensato e como a cena podia ter parecido uma farsa de primeira ordem. Mas isso não tinha importância. O que o aborrecia - e de uma forma insuportável - era a maneira como Úrsula persistira naquela estúpida pergunta: "Estou sendo forçada?" e o ar abstrato com que o fizera.
Dirigiu-se a Shortlands. Encontrou Gerald na biblioteca da casa, de costas voltadas para o fogão, tão imóvel como pode ficar um individuo de cérebro vazio, em verdadeiro estado de choque. Acabara o trabalho que se havia proposto realizar, e não tinha mais nada com que se distrair. Podia, é claro, pegar o carro e ir até a cidade. Mas não desejava nem uma coisa nem outra, nem experimentava desejo de visitar a família Thirby. Permanecia ali sem se mexer, na angústia da sua inércia, qual máquina extenuada. Para Gerald, aquilo era triste, pois jamais soubera o que fosse um aborrecimento; sempre passara de uma atividade a outra, sem nunca descansar. Agora, pouco a pouco, ele sentia que estava mudando. Não sentia vontade de ocupar-se de coisa alguma. Era como se tivesse morrido uma parte do seu ser, a qual não reagia nem a mais forte sugestão. Investigava no próprio espírito o que devia fazer para fugir a tamanha depressão, libertando-se do incomodo que lhe causava aquele vácuo. Só havia três coisas suscetíveis de o despertar, de o reconduzir à vida: uma era beber ou fumar haxixe, outra o convívio de Birkin e a última a companhia das mulheres. Na ocasião, entretanto não havia ninguém com quem beber, nenhuma mulher estava próxima e, quanto a Birkin, julgava-o muito longe dali. De maneira que o único remédio seria suportar a pressão daquele vazio.
Quando, porém, viu surgir Rupert Birkin à sua frente, Gerald desvaneceu-se num sorriso de prazer.
- Imagine, Rupert - disse ele - que eu acabava mesmo de chegar a conclusão de que nada no mundo tem tanto valor como a presença de alguém que possa consolar-nos na nossa solidão.
Confesso que estava à espera desse alguém.
Enquanto falava com o amigo, brilhava-lhe nos olhos uma expressão de risonha surpresa. Era o reflexo do alívio que sentia na alma. O rosto estava pálido e cansado.
- Ou alguma mulher - concretizou o recém-chegado, um pouco despeitado.
- De preferência, é claro. Mas, na sua falta, um homem espirituoso.
E ria ao dizer isto. Birkin sentou-se perto do fogo.
- Que estava fazendo? - perguntou.
- Eu? Nada. Atravesso atualmente uma fase difícil, não consigo trabalhar nem distrair-me. Não sei se é sinal de velhice; desconfio que sim.
- Quer dizer que se aborrece?
- Aborrecer-me? Talvez. Sou incapaz de fixar a atenção seja no que for. Ou o diabo tomou conta de mim, ou então morreu.
Birkin fitou-o nos olhos.
- Atire-se a qualquer coisa de corpo e alma - aconselhou.
- Sim - volveu o outro sorrindo. - Mas que coisa será essa?
- Ora! - replicou Birkin com sua voz ciciante. Houve uma extensa pausa, e, durante ela, cada qual sentiu a presença do outro.
- Então espere - insistiu Birkin.
- Meu Deus! Esperar? Por que se espera?
- Dizem que há três maneiras de curar o tédio: o sono, a bebida e as viagens.
- Histórias! Se dormimos, sonhamos; se bebemos, blasfemamos; se fazemos uma viagem, amaldiçoamos os carregadores. Não. O trabalho e o amor são os dois únicos remédios. Quando não estamos no primeiro, temos de cair no segundo.
- Siga a receita.
- Dê-me o objeto - replicou Gerald. - As possibilidades de amor vão-se esgotando.
- É mesmo? E depois? - Depois, morremos.
- É o que você devia fazer.
- Não creio. - Gerald tirou as mãos do bolso das calças e acendeu um cigarro, inclinando-se para frente e puxando grandes fumaças. Sentia-se nervoso, excitado. Embora estivesse só, vestira-se como de costume, para jantar.
- Há ainda um terceiro remédio para juntar aos outros dois - disse Birkin. - Amor, trabalho e combate. Você estava esquecido da luta.
- É verdade. Já praticou alguma vez o pugilismo?
- Não. Acho que não.
- Ora, aí está! - Gerald ergueu a cabeça e lançou para o ar, lentamente, a fumaça do cigarro.
- Por quê? interrogou Birkin.
- Nada. Pensei que poderíamos experimentar agora. Tem razão, preciso bater em alguém ou em qualquer coisa. Tenho uma ideia.
- Sim. Amigavelmente, é claro...
- É claro... - sublinhou o outro.
Gerald encostou a cabeça à lareira. Olhou para Birkin, e cintilou-lhe nos olhos uma espécie de terror, como se fosse um cavalo assustado; com os olhos inquietos e injetados de sangue, desviou-os em seguida do amigo, como que tomado de autêntico pavor, declarando:
- Pressinto que, se não me dominar, farei qualquer disparate.
- Por que não? - volveu o outro, friamente.
Gerald ouviu com verdadeira impaciência. Tornou a fixar Rupert, como se esperasse alguma coisa.
- Sei um pouco de luta japonesa - disse Birkin. - Em Heideiberg vivi na mesma casa com um japonês, que me deu lições. Mas nunca fui muito forte naquilo.
- Que ideia brilhante! É coisa que jamais vi na minha vida; refere-se ao judô, não é verdade?
- Sim; mas como disse, não sou forte em coisas dessa natureza. Não me interessam.
- Pois a mim interessam. Como é que se começa?
- Vou mostrar-lhe do que sou capaz, se quiser - explicou Birkin.
- Gostaria muito! - E, por momentos, o rosto de Gerald abriu-se num sorriso.
- Vamos, então. O pior é que, com estas camisas engomadas, não se pode fazer nada.
- Vamos colocar-nos à vontade. Espere um minuto. - Tocou a campainha e apareceu o mordomo.
- Traga-nos sanduíches e sifão e depois deixe-nos sozinhos. Não estou em casa para ninguém.
O criado afastou-se. Gerald, de olhos brilhantes, voltou-se para Birkin.
- Costumava lutar com o japonês? - perguntou. - Costumava despir-se?
- Às vezes.
- Que tal era ele como lutador?
- Acho que era bom. Não tenho grande competência para avaliar. O que sei é que era muito rápido, ágil, parecia cheio de eletricidade. Coisa curiosa, essa espécie de força elétrica que se diriam possuírem em si mesmos... Não apertam como entes humanos, mas como pólipos.
Gerald inclinou a cabeça.
- Só de olhar para eles faço uma ideia - comentou o dono da casa. - Mas acho-os repelentes.
- São repelentes, mas ao mesmo tempo, atraentes. Na primeira hipótese, pela sua frieza e lividez; mas, quando se excitam e entusiasmam, causam verdadeira atração. Genuíno fluido elétrico, como o das enguias.
- Sim... acho que sim... Provavelmente...
O criado voltou com a bandeja, depondo-a sobre a mesa.
- Agora não apareça mais aqui - disse-lhe Gerald. O homem fechou a porta.
- Vá - continuou Gerald - tire a roupa para começarmos a luta. Quer tomar primeiro alguma coisa?
- Não, não quero nada.
- Eu também não.
Gerald deu volta à chave da porta e afastou os móveis, encostando-os às paredes. A sala era ampla, portanto, o espaço era suficiente. O tapete era espesso. Começou então a tirar a roupa esperando por Birkin, que avançou para o combate, delgado, com o corpo muito branco. Julgar-se-ia mais uma simples presença do que um ser visível. Gerald tinha a impressão de que o amigo estava lá, mas não o sentia concretamente. Quanto a Crich, era sólido e não passaria despercebido: era feito de pura substância carnal!
- Agora - anunciou Birkin - vou-lhe mostrar o que aprendi, e de que ainda me lembro. Deixe-me segurá-lo - com as mãos, cingiu o tronco nu de Gerald. Num instante, Gerald estava de cabeça para baixo, de encontro aos seus joelhos. Depois largou-o, e o outro recuperou a posição normal. Gerald tinha o olhar brilhante de admiração.
- É extraordinário! - exclamou. - Vamos repetir. Voltaram a lutar. Entre os dois havia grande diferença física.
Birkin, alto e magro, de constituição franzina; Gerald, muito mais pesado, com melhor plástica, ossos largos e fortes, membros bem modelados, cheios e belos no seu conjunto. Parecia fincar-se no solo com toda a segurança, ao passo que Birkin procurava, com incerteza, o centro de gravidade. Gerald possuía força elástica, um pouco instintiva, mas pronta a afirmar-se invencível, enquanto Birkin era quase intangível e aéreo. Debatia-se contra o adversário como se fosse invisível; julgar-se-ia que mal lhe punha as mãos, lembrando antes o roçar de simples peças de roupa, e, de súbito, apertava o outro nervosamente num amplexo tão vivo que parecia penetrar em todo o corpo de Gerald.
Pararam uns momentos, discutiram métodos, experimentaram golpes e torceduras, habituando-se um ao outro, ao ritmo de cada qual, chegando a uma espécie de mútua compreensão física. Depois recomeçaram com mais ardor, como se a carne de cada um mergulhasse profundamente na do outro, formando uma única pessoa. Birkin dispunha de muita energia, tão sutil que dava a impressão de força sobrenatural, dominando o adversário como em golpe de magia. A seguir, dava-lhe liberdade, e o outro recompunha-se com movimentos pesados, em que a pele clara luzia palpitante.
Assim os dois homens se enlaçaram é lutaram, aperfeiçoando cada vez mais o estilo. Ambos eram claros, mas Gerald ficava vermelho nos pontos onde recebia pressão dos dedos, enquanto Birkin mantinha-se igual e rosado. Notava-se que absorvia cada vez mais a substância corpórea e difusa de Gerald, misturando ao seu o corpo dele como para ò submeter com sutileza, prevendo tudo sempre com a velocíssima percepção de quem adivinha os lances, evitando-os, desviando-os e incidindo sobre os membros e o tronco de Gerald como um vento devastador, como se toda a inteligência física de Birkin invadisse o corpo de Gerald, como se aquela energia sublimada entrasse na carne compacta do antagonista por meio de um poder sobrenatural, envolvendo-o numa rede tênue, aprisionando-o até atingir as profundezas do ser material de Gerald.
Continuaram no combate, com ligeireza e arrebatamento, sem pensarem noutra coisa, figuras pálidas entregues apenas ao trabalho de se estreitarem mais e mais, enrolados como polvos, e lançando, a brancura dos corpos, reflexos claros em torno da sala - nó vivo e humano, muito apertado e muito branco, entre as paredes forradas de livros velhos e amarelecidos. Ouvia-se de tempos a tempos o som da respiração, como suspiros abafados, depois o baque dos corpos sobre a forração espessa e o estranho rumor da pele deslizando junto à pele. Às vezes, no violento entrelaçamento desses seres que se digladiavam em silêncio, não se descortinavam as cabeças, mas apenas braços e pernas rápidos e esticados, e sólidos dorsos claros, junção física de dois corpos que chegavam a formar um só. Depois surgia a fronte luzidia e desgrenhada de Gerald, ao acaso da luta, ou então, por momentos, da confusão envolvente emergia a do outro, mais sombria. Com os olhos muito abertos, espantados, parecia nada ver.
Por fim, Gerald caiu de costas, inerte, no tapete, com o peito arquejante, em lentas palpitações, enquanto Birkin, quase inconsciente, se conservava com o joelho em cima dele. Era Birkin, porém, o mais fatigado. O pulso batia-lhe apressado e custava-lhe respirar. Sentia o chão inclinar-se e oscilar, e, no espírito, a escuridão completa. Não poderia dizer o que tinha acontecido. Deslizou, sem sentidos, sobre o corpo de Gerald, que nem se apercebeu disso. Depois retomou um pouco de consciência, mas apenas para notar que tudo se mexia e rodopiava de maneira estranha. O mundo resvalava, e tudo com ele, nas trevas. E Birkin escorregava também, sempre, sem cessar.
Recuperou os sentidos, finalmente, ao ouvir, ao longe, fortes e vigorosos estampidos. Que sucedera? Que seria aquele ruído estrondoso que ressoava por toda a casa? Não podia saber Pareceu-lhe depois que era o palpitar do próprio coração. Mas não era possível. O barulho vinha de fora. Não, era dentro dele mesmo, no peito. E doía, obrigava-o a um esforço excessivo. Gerald estaria ouvindo? Mas não sabia se se encontrava de pé, deitado ou prestes a cair.
Quando percebeu que havia tombado inerte sobre Gerald, sua admiração não foi menor. Conseguiu levantar-se, apoiando-se com o braço e esperou que o pulso sossegasse mais e se tornasse menos dolorido. A dor era grande e isso é que o fazia perder a consciência da situação.
Mas Gerald tinha percebido menos ainda. E os dois aguardaram, numa compreensão confusa das coisas, numa espécie de não ser, durante incalculáveis, longos minutos.
- Não há dúvida - dizia Gerald, ofegante - não devia ter sido tão violento com você... tenho de moderar... a minha força.
Aos ouvidos de Birkin chegavam estes sons como se o seu próprio espírito se encontrasse atrás de si, fora do corpo e ele assim o ouvisse. O corpo, em verdade, mergulhara numa fase de esgotamento, de que o espírito mal se apercebia. O primeiro já não entendia ao segundo; notava apenas que o coração principiava a acalmar-se. Birkin estava dividido entre as faculdades espirituais, que residiam agora no exterior, sensíveis, todavia, e o corpo reduzido a um movimento de sangue precipitado e inconsciente.
- Eu poderia tê-lo derrubado... se usasse de violência - continuava a voz arfante de Gerald. - Mas você venceu-me antes disso...
- Sim - respondeu Rupert, robustecendo a garganta de maneira a produzir palavras, que saíam com dificuldade - Você é muito mais forte do que eu... Podia ter-me dominado facilmente.
Disse a última frase e sentiu-se outra vez envolvido pela agitação do coração e do sangue.
- Fiquei surpreendido com a força que empregou - disse Gerald. - Quase sobrenatural...
- Mas dura pouco tempo - explicou o outro. Continuava a ouvir a própria voz como se a mente houvesse libertado da matéria e existisse agora à distância, longe dele. Contudo, conseguia aproximar o espírito, o que lhe era permitido pela gradual normalização do pulso. Compreendeu também que estava com todo o peso do corpo sobre Gerald, e admirou-se, porque já se julgava de pé. Endireitou-se, sentando-se. Entretanto, ainda permaneciam nele o vago e o indeciso. Para se apoiar, colocou a mão no chão e tocou na do companheiro, que ali estava estendida. Esta fechou-se quente, de maneira brusca, apertando a sua, e ficaram os dois assim, exaustos e anelantes, de mãos firmemente unidas. A de Birkin deteve-se num aperto mais demorado, vigoroso, como que a dar uma resposta. A pressão da de Gerald foi súbita e momentânea.
Pouco a pouco iam, porém, retomando o conhecimento das coisas. Birkin respirava quase normalmente. A mão de Gerald desviou-se devagar, e o outro, também, conseguindo pôr-se de pé e dirigir-se para junto da mesa. Ali, colocou uísque e soda em um copo. Gerald veio beber com ele.
- Belo treino, hein? - comentou Birkin, encarando o amigo com o seu olhar sombrio.
- Sem dúvida. - E, reparando no esqueleto débil do adversário, ajuntou: - Não teria sido violento com você?
- Não. É bom lutar, desenvolver as energias físicas. Faz bem à saúde.
- Acha?
- Sim. E você?
- Também acho.
Essas palavras foram espaçadas por longos intervalos. O combate representava para eles algo muito profundo, indefinido.
- Mentalmente, espiritualmente, já nos conhecíamos. Daqui por diante alcançaremos também a intimidade física para tudo se tornar perfeito.
- É verdade - disse Gerald. Riu-se, muito contente, e acrescentou: - Estou espantado! - Espreguiçou-se, estendendo os braços num gesto não destituído de beleza.
- Nem há outra razão para nos justificarmos - observou Birkin.
- É, não há.
Começaram a vestir-se.
- Você tem uma bela figura, Gerald, e é agradável admirá-lo. Todos os belos espetáculos nos reconfortam.
- Acha-me digno de admiração... fisicamente? - indagou Gerald, com os olhos brilhantes.
- Sim, você representa o gênero de beleza nórdica, como se fosse uma luz refletida pela neve, com formas plásticas belas. É uma fonte de alegria para os olhos, e nós devemos procurar a alegria em qualquer lugar.
Gerald teve um risinho seco e respondeu:
- São modos de ver. O que posso dizer é que me sinto melhor. Isto fez-me bem, com toda a certeza. Será esta a Brüderschaft - Fraternidade - nota da tradutora) que você preconiza?
- Talvez. Parece-lhe que implica algum compromisso?
- Não sei.
E Gerald tornou a rir.
- De qualquer maneira, sentimo-nos agora mais livres e mais à vontade, e é o que importa.
- De acordo, Rupert.
Acomodaram-se perto do fogão com as garrafas, copos e sanduíches.
- Como sempre alguma coisa antes de me deitar - explicou o dono da casa. - Assim durmo melhor.
- Eu, se o fizesse, não dormiria bem - observou Birkin.
- Está vendo? Não somos muito parecidos. Vou vestir um roupão.
Birkin ficou só, contemplando o fogo. O pensamento detinha-se em Úrsula, que se diria penetrar-lhe de novo na consciência. Gerald voltou com um roupão de listras largas, verdes e pretas, de seda espessa e brilhante.
- Está muito bem assim! - disse o outro, examinando-o.
- É um cafta de Bucara. Gosto muito dele.
- Eu também.
Disse estas palavras e calou-se, pensando quanto Gerald era exigente com a própria roupa, com a qual gastava tanto dinheiro. Usava cuecas de seda, os botões da camisa tinham o mais fino lavor, toda a roupa branca era igualmente de seda. Era mais uma diferença entre os dois homens. Birkin, sob aquele aspecto, descuidava-se e não mostrava ter nenhuma imaginação.
- Não há dúvida - disse Gerald, exteriorizando o seu pensamento. - Há em você algo de muito curioso. Você é singularmente forte. Não parece à primeira vista e é isso que surpreende.
Birkin riu-se. Estava observando a figura desempenada do amigo, tão louro, tão elegante no seu belo roupão e pensava na diferença que havia entre ambos, tão profunda! Tão grande como a que pode existir entre um homem e uma mulher, embora sob outro aspecto. Na realidade era Úrsula a mulher que, naquele momento, ganhava ascendência sobre ele. Gerald apagava-se outra vez, desaparecia da vida de Birkin.
- Sabe - disse este, repentinamente - que fui propor casamento a Úrsula Brangwen esta noite?
A expressão do outro denunciou a maior admiração.
- O quê?
- É isso mesmo. Com todas as formalidades; falei primeiro com o pai, como é costume, embora o fizesse por acaso... e desastradamente.
Gerald continuava a olhar, espantado, como se nada compreendesse.
- Não me diga que foi, seriamente, pedi-la em casamento!
- Sim, é essa a verdade.
- Tinha falado antes com ela?
- Não. Tive a ideia repentina de fazer esse pedido, e ela não estava em casa. Como o pai estivesse, resolvi falar com ele.
- Fez então o pedido.
- Fiz.
- E não disse nada a ela?
- Disse. Ela chegou mais tarde e eu repeti a minha proposta.
- E o que respondeu ela? Estão noivos, então?
- Não. Ela declarou-me apenas que não queria que a forçassem.
- Como?
- Que não queria que a obrigassem a responder.
Gerald repetiu automaticamente a frase que o outro pronunciara e acrescentou: - Que quereria dizer com isso?
Birkin encolheu os ombros. - Sei lá! Não queria que a aborrecessem, suponho.
- Francamente! E o que você fez?
- Saí e vim para cá.
- Veio direto para aqui?
- Sim.
Gerald olhava-o, entre pasmado e divertido. Custava-lhe acreditar.
- Mas tudo assim como me contou?
- Textualmente.
- Palavra?
Reclinou-se na poltrona, gozando a surpresa.
- É admirável! - exclamou. - E veio então a minha casa lutar com o seu anjo bom, não é isso?
- O quê?
- Pelo menos, é assim que entendo. Não tenho razão? Era a vez de Birkin não entender o amigo.
- E o que vai acontecer agora? - continuou Gerald. - Você mantém a proposta?
- Sim. A minha vontade era mandá-los todos às favas, mas parece-me melhor repetir o pedido daqui a algum tempo.
Gerald fitava-o, com insistência.
- Gosta dela, realmente?
- Sim, penso que a amo - volveu Birkin com o rosto inexpressivo e olhar parado.
Geraldo sorriu de prazer, como se tudo aquilo houvesse sucedido expressamente para o divertir. Depois a expressão se lhe tornou grave, conforme convinha, e inclinou a cabeça para frente, devagar.
- Você bem sabe - começou ele - que eu sempre acreditei no amor, no verdadeiro amor. Mas onde encontrá-lo nos nossos dias?
- Sei lá!
- Muito raramente - prosseguiu o dono da casa. E após uma curta pausa, acrescentou: - Eu próprio nunca o senti, isso a que se chama amor... Andei embrulhado com mulheres, e algumas, vamos admitir, me prenderam um pouco... Mas nunca senti amor. Não creio que tivesse por alguma delas mais estima do que tenho por você... Isso não é amor, bem entendido. Percebe o que quero dizer?
- Percebo. Também me parece que nunca lhes teve amor.
- Acredita, então! E pensa que teria algum dia? Compreende o meu pensamento? - Pôs a mão sobre o peito, fechando o punho, como se quisesse agarrar qualquer coisa. - Quero dizer... Não consigo exprimir-me, mas sei o que é.
- Que é, afinal? - perguntou Birkin.
- Não encontro as palavras. Quero dizer, em resumo... que alguma coisa de permanente, alguma coisa que não muda...
Tinha os olhos brilhantes, como que embaraçado.
- Diga-me, Rupert: acha que nunca experimentarei tal sentimento por uma mulher? - perguntou, com ar ansioso.
Birkin abanou a cabeça.
- Não sei. Não posso saber.
Gerald estivera de sobreaviso, aguardando a sentença. Encostou-se à cadeira e murmurou:
- Também não sei... Também não sei...
- Somos diferentes - disse Birkin. - Não serei capaz de lhe predizer o destino.
- Nem eu o sou. Mas o que lhe digo é que começo a duvidar.
- De que ame um dia uma mulher?
- Sim... sim... O que se chama, verdadeiramente, amor.
- Está em dúvida?
- Sim, começo a duvidar... Houve uma pausa demorada.
- Há na vida toda a espécie de acontecimentos - observou Birkin. - São vários os caminhos.
- Sim, também julgo assim. Aliás, creio firmemente. Mas não me importo com o que a vida me possa reservar. Não me preocupo! Pouco me importo, enquanto não sentir... - Calou-se, e a expressão dele foi-se tornando vaga, desligada, como que para definir melhor a sua ideia: - Basta-me saber que vivi, de qualquer maneira... não me interessa como... Mas quero, ao menos, sentir...
- Que preencheu a sua vida... - atalhou Birkin.
- Sim, deve ser isso... sentir que realmente vivi... Mas não estou empregando exatamente as suas palavras...
- Mas vem a dar no mesmo.
Capítulo XXI
No limiar
Gudrun estava em Londres, onde expunha alguns trabalhos juntamente com os de uma colega, e preparava-se para regressar a Beldover. Acontecesse o que acontecesse, os seus propósitos eram os de partir muito em breve. De Winifred Crich recebeu, entretanto, uma carta, ilustrada com desenhos da mesma. Dizia assim:
"Meu pai foi também a Londres, consultar médicos, e isso fatigou-o bastante. Foram de opinião de que devia repousar muito, de maneira que passa a maior parte do tempo na cama. Trouxe-me um adorável papagaio de porcelana de Dresden e também um homem lavrando e dois ratos subindo por um tronco, tudo de faiança, estes últimos de uma fábrica de Copenhague. Para mim foi o melhor presente, mas os ratos têm brilho demais, embora sejam muito bonitos, com a cauda delgada e comprida. Brilham quase tanto como se fossem de cristal. É vidrado, naturalmente, mas preferia que brilhasse menos. Gerald gostou muito do homem lavrando a terra; tem as calças rasgadas e está ao lado do boi; suponho que é um camponês alemão. As cores são cinza e branco, a camisa branca e as calças cinzentas, mas tudo muito brilhante e muito puro. O Sr. Birkin prefere a moça sentada debaixo de um espinheiro florido, com um cordeiro e com narcisos pintados na saia (está na sala de visitas). Mas é uma coisa estúpida, o cordeiro não se parece em nada com um cordeiro e a moça também tem um ar estúpido.
"Quando volta, querida senhorita Brangwen? Tem feito muita falta aqui. Estou enviando um retrato que fiz de meu pai sentado na cama. Diz ele que espera não nos tenha esquecido. Querida senhorita, estou convencida de que não. Venha depressa para desenharmos furões, que são os bichinhos mais adoráveis deste mundo. Poderíamos esculpi-los também em madeira do azevinho, brincando em um campo coberto de folhas. Combinado? São tão encantadores!
"Meu pai disse que nós podíamos construir um estúdio; Gerald acha que fica bem por cima das cocheiras; bastava abrir janelas no telhado, o que é coisa simples. A senhorita ficaria aqui o dia inteiro e nós viveríamos no estúdio como duas artistas de verdade (assim como aquele homem que está no quadro do vestíbulo) e com lareira e muitos desenhos nas paredes. Gostaria de ser livre e viver livre como uma artista. O próprio Gerald disse ao papai que só um artista é que é independente, porque vive no mundo que ele próprio cria..."
Gudrun percebeu por esta carta quais eram as intenções da família Crich. Gerald queria prendê-la ao ramerrão doméstico de Shortlands, e a irmã servia-lhe de biombo. O pai, que não via outra coisa senão a sua Winnie, tinha muita confiança em Gudrun para salvar a sua menina; e Gudrun admirava-o pela sua perspicácia. A aluna, além disso, era realmente uma promessa. Gudrun estava satisfeita com ela, e ate disposta - se lhe dessem o estúdio - a viver em Shortlands. Detestava a escola, queria ser independente. Se lhe proporcionassem os meios, trabalharia livremente, esperando os acontecimentos com perfeita serenidade. Interessava-se, de fato, por Winifred e teria imenso prazer em compreender melhor a menina.
Assim, no dia em que Gudrun voltou a Shortlands, os Criches autorizaram Winifred a preparar uma pequenina festa.
- Você devia arranjar um ramo de flores para oferecer à senhorita Brangwen - sugeriu Gerald à irmã, todo sorridente com a ideia que tivera.
- Não! - protestou Winifred. - Isso é bobagem.
- De forma nenhuma. É uma delicadeza muito comum e muito simpática.
- Bobagens! - exclamou a pequena com toda a mauvaise honte natural da idade. Contudo, o alvitre agradou-lhe e desejou pô-lo em execução. Deu uma volta pelos jardins e pela estufa, examinando cuidadosamente as flores eretas nas suas hastes. E quanto mais olhou, mais desejou formar com elas um ramalhete; mas, se a visão antecipada da cerimônia a fascinava, a verdade é que a timidez e o orgulho lhe tolhiam a iniciativa, ate quase rejeitá-la. A ideia, porém, não lhe saía do pensamento. Era como se um desafio obcecante a perseguisse e ela não tivesse coragem de o expulsar. Voltava então ao jardim, admirava as belíssimas rosas que estavam nos vasos, os clames virginais e a brancura mística de certas trepadeiras. A beleza dessas flores denunciava a felicidade paradisíaca! Havia de fazer um lindo' ramo e oferecê-lo no dia seguinte à professora. O desejo ardente e a indecisão extrema em que se encontrava faziam-na ate sentir-se mal.
Dirigiu-se, então, ao pai.
- Papai!
- Que é, filhinha?
Ela parou, com os olhos já molhados das lágrimas derramadas por causa dos sentimentos contraditórios que experimentava. O pai contemplou-a, e o coração abriu-se numa ternura imensa, num amor que chegava a ser angustiante.
- Que tem para me dizer, querida Winnie?
- Papai! - Os olhos sorriram fugidiamente. - Acha que é tolice oferecer flores à senhorita Brangwen no dia da chegada dela?
O enfermo surpreendeu o olhar brilhante e inteligente da menina e sentiu-se ainda mais enternecido.
- Não, minha filha, não é. É o que se faz às rainhas.
A resposta não era tranquilizadora para Winifred, porque ela achava que as rainhas também não passavam de uma tolice. Mas, em todo o caso, gostaria de aproveitar a ocasião para fazer algo de romanesco.
- Faço, então, o ramo?
- Para a senhorita Brangwen? Sim, minha querida. Diga ao Wilson para colher as que você quiser.
A menina teve um sorrisinho sutil, inconsciente, antegozando a surpresa.
- Amanhã, é melhor.
- Sim, amanhã - concordou o pai. - Agora, dê-me um beijo.
Winifred beijou-o em silêncio e saiu do quarto. Deu ainda uma volta pelo jardim e pela estufa, informou o jardineiro do seu projeto, de forma senhorial, simples e peremptória, e mostrou-lhe quais as flores que queria.
- Para quem são? - perguntou Wilson.
- Preciso delas - foi a resposta da menina. Entendia que criados não devem fazer perguntas.
- Sim, menina, entendi. Mas é para enfeitar qualquer coisa ou para mandar para longe?
- Quero oferecer um ramalhete.
- Oferecer? Quem vai chegar? A Duquesa de Portland?
- Não.
- Não? Pois bem: vou arranjar um lindo ramalhete.
- É isso mesmo que eu quero: um lindo ramalhete.
- Sim, senhora.
No dia seguinte, Winifred vestida de veludo prateado e com um majestoso apanhado de flores na mão, esperava no quarto de estudo, impaciente, o regresso da professora. A manhã estava úmida. As flores rescendiam-lhe bem debaixo do nariz, ramos de flores de estufa que lhe davam a impressão de um archote: e Winnie julgava ter também um incêndio no coração, feito de um fogo novo e singular. O sabor da aventura perturbava-a como um tóxico.
Finalmente viu aproximar-se Gudrun e correu a prevenir o pai e o irmão, que, rindo da ansiedade e da seriedade da menina, acompanharam-na ao vestíbulo. O criado foi logo abrir a porta e desembaraçou a recém-chegada do guarda-chuva e da capa impermeável. Os de casa esperavam, dentro, o ingresso da visitante.
Gudrun vinha corada pela ação da chuva e do vento; os cabelos estavam soltos em caracóis desobedientes, era como que uma flor desabrochada pelo temporal, rosa aberta naquele instante a emitir ainda o brilho e o calor do sol. Gerald estremeceu ao vê-la tão bela, como se não a conhecesse ainda. Usava ela um vestido azul, de tom suave, e meias vermelhas, escuras.
Winifred avançou com solenidade, ao mesmo tempo digna e espalhafatosa.
- Muito prazer em tornar a vê-la! - declarou. - Aqui estão estas flores para a senhora. - E ofereceu o ramo.
- Para mim? - exclamou Gudrun. Ficou uns instantes perplexa, depois corou mais ainda e pareceu então deslumbrada por uma onda de alegria. Os olhos, de brilho estranho, ergueram-se para o velho Crich, depois para Gerald. E este, mais uma vez experimentou uma perturbação, como se aquilo fosse muito forte para ele, como se o calor daquele olhar o inflamasse. Havia nele demasiadas intenções. Gerald não suportava tamanho resplendor. Desviou o rosto, sentindo, porém, que não teria forças para fugir à tentação. Estava prisioneiro, e essa perspectiva torturava-o.
Gudrun escondeu o rosto nas flores.
- São lindas! - disse ela, com voz embargada. E logo, num ímpeto de entusiasmo, curvou-se e beijou Winifred.
Crich estendeu-lhe a mão.
- Tive medo de que nos abandonasse - observou muito risonho.
Gudrun mirou-o, e a sua expressão, luminosa e travessa, foi para ele uma revelação.
- Sim? Mas eu nunca pensei em ficar em Londres!
A voz parecia querer demonstrar o quanto estava satisfeita por ter regressado a Shortlands: tinha um tom quente, sutil, acariciador.
- Ainda bem - volveu, sorrindo, o industrial. - Verá como é estimada entre nós.
Gudrun limitou-se a responder-lhe com os olhos - tímidos, azuis-escuro e ardentes. A sua simpatia impunha-a mesmo sem ela querer.
- Ei-la que volta triunfante - comentou Crich, continuando a apertar-lhe a mão.
- Não - retorquiu ela, muito animada. - O primeiro triunfo que obtenho é este
- Ora, ora! Não seja modesta. Não é verdade, Gerald, que lemos as notícias nos jornais?
- Saiu-se brilhantemente - concordou o rapaz, cumprimentando-a, por seu turno. - Vendeu muita coisa?
- Nem tanto.
- Ótimo! - foi o comentário dele.
Gudrun ficou imaginando o que é que Gerald pretendia dizer com aquilo. Mas o acolhimento fora tão caloroso que ela se sentia lisonjeada com a recepção em sua honra!
- Winifred - disse o pai - você teria um par de sapatos que chegassem na senhorita Brangwen? Ela não pode ficar com esses que está.
Gudrun afastou-se com o ramo de flores na mão.
- É uma moça encantadora - declarou o velho Crich assim que ela desapareceu.
- É - repetiu o filho, laconicamente, como se a observação não o tivesse tocado.
Crich gostava da companhia de Gudrun. Estava quase sempre aborrecido, muito pálido, atormentado. Mas logo que se sentia melhor, gostava de mostrar que era o mesmo de outros tempos, feliz, no apogeu da existência - e não no mundo das trevas para que tendia. E para esta crença, Gudrun contribuía muito. Com ela, Crich criava estímulos e por isso apreciava tanto aqueles breves períodos de exaltação e liberdade, durante os quais parecia viver mais do que nunca tinha vivido.
A artista ia visitá-lo na biblioteca da casa, onde Crich jazia estendido, com as faces cor de cera e os olhos obscurecidos, como se nada visse. A barba negra, muito estriada agora de fios brancos, dava a impressão de ter nascido no rosto lívido de um cadáver. Contudo, à sua volta, a ambiente denotava energia e conforto, para o que bastante contribuía Gudrun. Na imaginação dela, aquele homem era um indivíduo normal, apenas o terrível aspecto de enfermo se lhe fotografava na alma, sob a sua consciência de realidade. Bem sabia a jovem que, apesar de toda a sua boa disposição, os olhos de Crich permaneceriam vazios e obscuros, como os de um morto.
- Ainda bem que veio, senhorita Brangwen! - disse ele, vendo-a entrar, depois de anunciada pelo criado. - Thomas, traga uma cadeira para cá. - Admirava, cheio de prazer, aquela fisionomia suave e juvenil, que lhe trazia a ilusão da vida. - Thomas, traga um cálice de xerez e uma fatia de bolo...
- Não, obrigada. - Ao pronunciar estas palavras, percebeu que o doente, ante a recusa, pareceu piorar. Gudrun sentiu que nunca o devia contrariar. Sorriu, pois, logo a seguir, um sorriso cheio de malícia.
- Não gosto muito de xerez - explicou ela - mas tomaria outra bebida, talvez... disse Gudrun, olhando confiada- Não lhe agrada xerez? Outra coisa? Que temos aí, Thomas?
- Porto, curaçau...
- Prefiro curaçau... menta para Crich.
- Então, Thomas, curaçau... Alguns biscoitos?
- Aceito.
Não estava com vontade mas percebeu que devia aceitar.
- Muito bem.
Esperou que ela se instalasse na poltrona, com o cálice e os biscoitos, parecendo muito satisfeito.
- Falaram-lhe no projeto - começou ele com certa excitação - do estúdio para Winifred em cima da estrebaria?
- Não - respondeu Gudrun, fingindo-se admirada, e com ar um tanto zombeteiro.
- Ah! Pensei que Winnie lhe tivesse dito isso, na carta que lhe escreveu...
- Escreveu, sim. Mas julguei que se tratasse apenas de ideia dela... - Gudrun sorriu com malícia e indulgência. O doente também sorriu, envaidecido.
- Ora essa! É um projeto sério! Há um quarto muito razoável sobre o teto da cocheira e pensamos em convertê-lo em estúdio.
- Foi uma excelente lembrança! - exclamou a artista, cheia de entusiasmo. A ideia daquela água-furtada, transformada em estúdio, parecia-lhe encantadora.
- Gosta, então? Então vou mandar iniciar os trabalhos - declarou o industrial.
- Acho magnífico para Winifred. É, com certeza o que ela precisa, se quiser trabalhar a fundo. É preciso haver um estúdio, senão, nunca se passa de um amador.
- A senhorita acha? Sim, é claro! Mas espero que o partilhe com Winifred...
- Agradeço-lhe a amabilidade.
Gudrun já estava ao corrente de tudo isto, mas era preciso mostrar-se grata, modesta, como que vencida...
- Já se sabe, o que mais me agradava era que deixasse a escola e aproveitasse o estúdio para trabalhar, muito ou pouco, segundo a sua vontade.
Olhava para Gudrun com os seus olhos sombrios e vagos. Ela retribuiu com expressão agradecida. Aquelas palavras, vindas de um moribundo, eram tão sinceras, tão naturais, que pareciam ecos através daquela boca quase fria!
- Quanto ao ordenado, posso pagar-lhe o mesmo que recebe na escola? Não quero vê-la prejudicada com a troca.
- Oh! - exclamou Gudrun. - Posso fazer muitas coisas na nova instalação e ganhar assim muito dinheiro, acredite!
- Muito bem - continuou ele, contente por se sentir um benfeitor - veremos tudo isso mais tarde. Não se importa de passar os dias aqui?
- Com um lugar para trabalhar, não - disse Gudrun. - Nada pode ser melhor do que isso.
- Fala sinceramente?
Crich estava realmente satisfeito. Mas sentia-se cansado. Gudrun pressentiu que a semiconsciência sombria e terrível da dor e da destruição final se apoderava outra vez daquele corpo envelhecido, e que a tortura reaparecia em seus olhos vagos e sem luz. Levantou-se discretamente e murmurou:
- Talvez deva dormir um pouco. Vou procurar Winifred.
E saiu, prevenindo a enfermeira de que o deixara só. Dia após dia, a energia vital do enfermo ia decrescendo mais e mais e a morte aproximava-se inevitável, para desfazer o último laço que o prendia à terra. Mas o laço estava ainda apertado, não cedia facilmente, a vontade do moribundo não fraquejava. Podiam perecer nove décimos daquele corpo, contudo, o décimo restante continuava intacto, enquanto não chegasse a hora. Por um esforço de vontade, o doente mantinha a unidade física, mas o círculo dessa vontade cada vez se apertava mais, ate que chegasse ao derradeiro momento.
Para se agarrar à vida, necessitava conservar as relações com os outros, e fazia-o sem perder uma única oportunidade. Winifred, o mordomo, a enfermeira, Gudrun, eram as pessoas que, para ele, representavam os seus últimos recursos. Gerald, em presença do pai, tornava-se rígido pelo sofrimento, e o mesmo sucedia, em menor grau, com todos os outros filhos, exceto Winifred. Quando olhavam para o pai não distinguiam mais nada senão a morte; dir-se-ia que uma antipatia oculta se apoderava deles. Não conseguiam ouvir-lhe a voz familiar nem distinguir as feições tão conhecidas: estavam dominados pelo pavor da morte que sentiam nos olhos e nos ouvidos. Em frente do pai, Gerald nem respirava. Tinha de sair depressa. E, da mesma maneira, Crich não tolerava a presença do filho, que irritava fortemente a alma do moribundo.
O estúdio ficou concluído e Gudrun e Winifred mudaram-se para lá. Mobiliar, distribuir as coisas, foi para elas uma festa. Agora não tinham mais necessidade de ir à casa. Passavam lá a maior parte do tempo, e as próprias refeições eram saboreadas ali. A casa, em verdade, tornara-se lúgubre, com as duas enfermeiras de branco deslizando silenciosas, como arautos da morte. O pai não saía mais do leito e havia um vaivém de irmãs, irmãos e famílias, todos falando sotto você.
Winifred vinha visitar regularmente o pai. Todas as manhãs, depois do café, entrava no quarto do doente, quando este já estava lavado e bem instalado na cama e demorava-se meia hora fazendo-lhe companhia.
- Está melhor, papai? - era a pergunta invariável.
E a resposta vinha, invariavelmente.
- Um pouquinho melhor, filha.
Ela conservava entre as suas a mão do pai, com ternura protetora, o que o sensibilizava bastante.
Depois da segunda refeição, voltava ainda para lhe contar o que havia acontecido; e, à noite, fechadas as janelas e envolto o quarto num ambiente de conforto, Winifred vinha pela terceira vez demorando-se então bastante tempo. Gudrun, a essas horas, já tinha ido para casa, e Winifred ficava só, de maneira que preferia conservar-se ao lado do pai. Conversavam, tagarelando ao acaso sempre como se ele estivesse bom, como na época em que circulava por toda a parte. E assim, com o instinto sutil de uma criança que sabe evitar os assuntos dolorosos, a filha comportava-se como se nada houvesse de grave na vida deles. Negava-se a dar atenção às tristezas, e era feliz. Contudo, bem no fundo do coração sabia tanto como as pessoas crescidas, ou talvez mais.
Com ela, o pai sentia-se bem nessa perfeita ilusão. Todavia, ao ficar só, recairia no desânimo da destruição iminente. Aqueles momentos, entretanto, eram deliciosos, embora as faculdades mentais diminuíssem com o esgotamento das forças; e a enfermeira, então, levava Winifred para fora do quarto, a fim de que ele não se cansasse mais.
Custava-lhe admitir que teria de morrer. Sabia, porém, que seria assim, que a hora final se aproximava, e, apesar de tudo, quanta relutância em aceitar o fato! Odiava ferozmente semelhante perspectiva. Tinha uma vontade inflexível. Não suportava a ideia de ser vencido pela morte. Para ele, a morte não devia existir. E, no entanto, às vezes, experimentava desejos de gritar, de gemer e de se lamentar. Gostaria de chorar em voz alta defronte de Gerald para que o filho se enternecesse no meio da sua rígida compostura. O caso é que este o pressentia e se afastava para evitar uma coisa destas. A sordidez da morte repugnava ao jovem Crich. Seria melhor como os romanos, morrer depressa, ser-se senhor do nosso destino tanto na morte como na vida. A agonia do pai exasperava-o e sentia-se estrangulado como nos anéis da serpente de Laoconte: ela apoderara-se do pai, e o filho via-se arrastado como ele no horrível abraço que levava à inanição. Procurava resistir, e, de certa e estranha maneira, Gerald era para o moribundo como a torre de uma fortaleza.
A última vez que o velho Crich mostrou desejo de ver Gudrun, já a morte lhe havia posto um tom de cera na fisionomia. Mas era preciso que alguém estivesse perto dele; precisava, nos intervalos lúcidos, não perder contato com os vivos, com medo de ser obrigado a aceitar a sua verdadeira situação. Felizmente passava a maior parte do tempo como que aturdido e meio morto. Ficava horas e horas a rever o passado, de forma confusa, e os acontecimentos da vida voltavam-lhe à memória. E até o fim houve sempre ocasiões em que tinha a noção nítida do presente e do desfecho que o aguardava: nesses momentos pedia o auxílio de qualquer pessoa, pois a compreensão da morte era uma morte ainda mais terrível, e muito mais intolerável. Nunca se sujeitaria a tamanha provação.
Gudrun impressionava-se com o aspecto dele, com aqueles olhos dilatados e envoltos nas trevas, porém ainda dominadores e conscientes.
- Então - disse Crich a certa altura, em voz enfraquecida - como vai o trabalho? Como vai Winifred?
- Vai tudo muito bem - respondeu Gudrun.
Havia, na conversa, vácuos tremendos, como se as ideias evocadas não fossem mais do que pedacinhos de palha voando no deserto sombrio em que o moribundo se internava.
- E o estúdio está dando resultado?
- Excelente resultado. Não se poderia desejar coisa melhor. Esperou ainda pelo que ele pudesse dizer.
- Acha que Winifred tem queda para a escultura?
Era doloroso sentir a inutilidade e a melancolia daquelas palavras.
- Estou certa que sim. Ela ainda fará coisas muito boas um dia.
- Ah! Ao menos não terá desperdiçado a vida. Gudrun mostrou-se surpreendida.
- Certamente... - respondeu carinhosamente.
- Ainda bem.
Gudrun esperou algum tempo pela nova frase.
- Acha a vida agradável... que é bom viver? - perguntou ele com um sorriso doloroso que a interlocutora suportou a custo.
- Acho - disse, tentando parecer alegre. - Acho que o tempo transcorre satisfatoriamente para mim.
- Ótimo. Uma natureza feliz conta bastante no ativo. Gudrun sorriu, ainda que seu espírito estivesse povoado de apreensões. Então, era assim que se morria, com a vida arrancada à força, enquanto os outros fingiam dar esperanças e conversavam? Não haveria outro processo de deixar este mundo? Devia-se sofrer o horror desta vitória passageira sobre a morte triunfo da vontade integral que só esmorecia no último momento? Sim, forçoso era passar por isso. E Gudrun admirava o autodomínio, o império de si próprio, de que o moribundo dava tão grandes provas. Mas aquele expirar lento perturbava-a. Ao menos a vida quotidiana decorria-lhe normal, não havia necessidade de pensar em outras coisas.
- Sente-se inteiramente bem aqui? - perguntou o velho. - Há qualquer coisa que possamos fazer por você? Não está descontente com a sua situação?
- Não, o senhor é bom demais para mim.
- Nesse caso, a culpa é sua. - O fato de haver conseguido manter este diálogo foi motivo de regozijo para o doente. Julgava-se ainda tão vigoroso, tão cheio de energias vitais! Mas a náusea da morte recomeçou, como uma espécie de reação.
Gudrun deixou-o e foi em busca de Winifred. Mademoiselle já não estava em Shortlands; era agora a mais nova das Brangwens que passava ali grande parte do tempo, além de um professor encarregado dos estudos da menina. Este, porém, não residia na casa, pois fazia parte do corpo docente da escola.
Certo dia, Gudrun, sua aluna, Gerald e Birkin prepararam-se para ir à cidade. O dia estava sombrio e chuvoso. Winifred e Gudrun esperavam na porta. Winifred mantinha-se calada e apreensiva, mas a artista, não. De repente, a pequena perguntou em tom de indiferença:
- Acha que meu pai está para morrer, senhorita Brangwen?
Gudrun sobressaltou-se.
- Não sei - respondeu.
- Sinceramente?
- São coisas que ninguém sabe. Pode morrer, é um fato natural...
A menina refletiu uns instantes e tornou a perguntar:
- Mas qual é a sua opinião?
Fazia este interrogatório da mesma forma que pediria esclarecimentos quanto a geografia ou ciências naturais ou como se quisesse obrigar a outra a admitir o fato. Muito atenta, levemente triunfante, a garota era mesmo diabólica.
- Quer a minha opinião? - repetiu Gudrun. - Pois bem: parece-me que sim.
Os olhos imensos de Winifred continuavam a fixar a professora. Conservava-se imóvel.
- Está bastante doente - prosseguiu Gudrun.
Nos lábios de Winifred perpassou um sorriso breve, sutil e cético.
- Eu, por mim, não acredito - asseverou a menina, com ar irônico; e começou a andar. Gudrun observou aquela figura destacando-se, e o coração se confrangeu. Winifred distraía-se agora junto a um regato, absorta, como se nada tivesse dito nem ouvido.
- Fiz uma represa de primeira ordem - declarou, lá de longe.
Gerald chegara à porta, vindo do vestíbulo.
- É melhor não querer acreditar - disse ele.
Gudrun fitou-o, e os olhares dos dois encontraram-se, em mútua compreensão.
- Sim, é melhor - confirmou ela.
Olharam-se novamente, e, nele, brilhou uma chama trêmula. Acrescentou, então:
- Uma vez que Roma tem de arder, dancemos ao menos durante o incêndio.
Gudrun ficou um tanto embaraçada, mas recuperou inteiramente a presença de espírito, replicando:
- Sim, sempre é melhor dançar do que chorar.
- Também me parece.
E ambos experimentaram o desejo secreto de deixar as coisas correrem e pôr os instintos à solta, desenfreadamente, de maneira brutal e licenciosa. Apoderou-se de Gudrun uma sombria e estranha paixão. Considerou-se forte, de mãos tão rijas que seria capaz de, com elas, rasgar o mundo em pedaços. Lembrou-se das liberdades impuras dos romanos e o sangue principiou a escaldar em suas veias. Desejava isso, sabia-o bem, isso ou qualquer coisa semelhante. Ah, se tudo o que havia nela de ignorado ou oculto viesse alguma vez à superfície, que resultado orgíaco! Que satisfação para os seus sentidos! Ansiava por tal, estremecia sempre que se aproximava daquele homem que estava agora ao seu lado e lhe recordava a tenebrosa devassidão que a devorava por dentro. Ambicionava entregar-se com ele àquele misterioso frenesi. Por momentos, Gudrun teve a clara percepção do seu anelo, distinguia-o verdadeiramente com o mais puro realismo. Mas varreu tais ideias do pensamento, dizendo:
- Podemos ir andando até a casa do porteiro, ao encontro de Winifred. Tomaremos o carro lá.
- Vamos - concordou o rapaz.
Encontraram Winifred admirando uma ninhada de cachorrinhos brancos. Ergueu a cabeça e exibiu uma expressão de contrariedade ao encarar Gerald e Gudrun. Não estava com vontade de vê-los.
- Olhem! - exclamou. - Três cãezinhos recém-nascidos. Marshall diz que este lhe parece perfeito. Não acham encantador? Mas a mãe é mais bonita. - Voltou-se e acariciou a cadela, linda bull-terrier branca, que se mostrava pouco à vontade junto da dona.
- Queridíssima Lady Crich, - disse a pequena - você é bonita como um anjo caído do céu. Anjo... anjo... não se acha suficientemente boa e bonita para subir ao céu, Gudrun? Sim, todos vão para o céu... especialmente a minha querida Lady Crich Venha aqui, Senhora Marshall!
- Chamou menina? - perguntou uma mulher, surgindo à porta.
- Chamaremos a esta Lady Winifred, não fica bem? Diga a seu marido para chamá-la Lady Winifred.
- Mas acho que não podemos; é um macho.
- Que pena! - ouviu-se o ruído do automóvel que se aproximava. - Lá está Rupert! - E assim exclamando correu ate à porta.
Birkin vinha guiando o carro e parou defronte deles.
- Estamos prontos! - disse-lhe Winifred. - Vou sentar na frente, perto do senhor. Posso?
- Não vai mexer-se muito e cair lá fora?
- Não, ficarei quietinha. Prefiro sentar-me ao seu lado. Rupert. O motor vai aquecer os meus pés!
Birkin ajudou-a a entrar. Achava interessante deixar Gudrun e Gerald sozinhos no banco de trás.
- Quais são as novidades? - inquiriu Gerald, enquanto o carro rodava.
- Novidades? - repetiu Birkin.
- Sim. - Gerald olhou para Gudrun, sentada ao lado dele e acrescentou, com um sorriso malicioso: - Gostaria de saber se já o posso felicitar, mas não consigo que ele responda nada definitivo.
Gudrun corou profundamente.
- Felicitá-lo por quê?
- Falou-me em casamento... foi, pelo menos, o que deu a entender.
A jovem estava cada vez mais ruborizada.
- Refere-se a Úrsula? - indagou em tom de desafio.
- Sim. É verdade, não é?
- Acho que não há nada resolvido - respondeu ela friamente.
- Continua tudo na mesma, Rupert?
- A respeito de quê? Do casamento?
- Sim.
- Qual é o problema? - perguntou Gudrun.
Birkin relanceou o olhar para o banco de trás, cheio de irritação.
- Qual é? O que quer dizer com isso, Gudrun?
- Oh! - fez a moça, decidida a intrometer-se, já que os outros tinham começado. - Não me parece que ela queira aceitar qualquer compromisso. É um pássaro que aprecia a sua liberdade. - A voz de Gudrun ressoava clara como um tambor. Lembrou a Rupert a voz do velho Brangwen, tão forte e vibrante lhe pareceu.
- E eu - retorquiu Birkin, risonho, mas categórico - quero um contrato; não me contento com o amor, principalmente o amor livre.
Esta saída fê-los rir. Por que motivo tal declaração em público? Gerald ficou um momento pensativo, satisfeito com o episódio.
- Não se contenta com o amor? - perguntou a Rupert.
- Não! - gritou o outro.
- Ora! Isso é requinte excessivo - tornou Gerald. O automóvel rolava agora sobre um terreno enlameado. - Mas o que se passa realmente? - perguntou, voltando-se para Gudrun.
Isto foi dito numa espécie de intimidade que indignou Gudrun. Considerou-se ofendida, deliberadamente insultada. Ele não devia intrometer-se com a vida particular dos outros.
- Que se passa? - repetiu ela descontente. - Não me pergunte. Nada sei a respeito de casamentos consumados, nem por consumar.
- Dispenso a intervenção do Estado... Pouco entendo de casamentos nem de graus de consumação. Tudo isto é como uma abelha a zumbir nos ouvidos de Rupert.
- Tem razão. Aí é que está o inconveniente. Em vez de querer uma mulher como mulher, o que ele pretende é pôr as suas ideias em prática. E quando se chega a esse ponto, coitada da noiva.
- É claro! Procure-se o que há de feminino na mulher e atire-se a gente de cabeça! - Ficou um momento saboreando a pilhéria e acrescentou: - Acha que o amor seja uma garantia?
- Naturalmente, enquanto dura; mas não se deve insistir na sua duração... - Gudrun falava alto, por causa do barulho do motor.
- É melhor aceitar o amor onde ele se encontrar, com casamento ou sem ele, legalizado ou clandestino, ou etc... etc...
- Etc... Etc... - replicou ela. - O casamento é um arranjo de ordem social e nada tem a ver com o problema do amor.
O olhar de Gerald não deixava de adejar sobre ela, de forma quase ostensiva, e Gudrun tinha a impressão de ser beijada livremente, brutalmente. Suas faces se tornaram rubras. O coração, porém, mantinha-se firme e sereno.
- Acha Rupert um pouco amalucado? - perguntou o rapaz. Os olhos dela flamejaram.
- Pela maneira com que ele vê a mulher, suponho que sim. Pode acontecer que duas criaturas se amem por toda a vida. É possível. Mas o casamento, nesse caso, não é coisa indispensável. Se se amam, nada mais é preciso. Qual seria a vantagem do casamento?
- Realmente... Tenho a mesma opinião. Mas... Rupert?
- Não sei decifrar enigmas, nem os dele nem os de ninguém. Rupert parece convencido de que o casamento lhe trará mil e uma delícias, ou sei mais o que é tudo tão vago...
- Perfeitamente! O que não percebo é a necessidade que tem de tais delícias... O mais provável é que Rupert pretenda uma tábua de salvação. Agarra-se a qualquer uma.
- Diz bem. Mas nesse ponto o homem está enganado. Pensa que marido e mulher podem ir mais além do que quaisquer outros dois seres, mas até onde ele não explica. Conhecerão um ao outro no céu ou no inferno (mais provável neste último) e tão bem que, além do inferno e do céu, irão cair no vácuo... e aí, tudo deixa de existir.
- Não - atalhou Gerald, rindo-se -, a palavra que ele usa é paraíso.
Gudrun encolheu os ombros.
- Je m'en fiche - Pouco se me dá - nota da tradutora) de paraísos desse tipo - declarou.
- Quando não se é maometano - observou Gerald. Birkin continuava a guiar, muito sério, alheio ao que os outros diziam. E Gudrun, sentada atrás, experimentava diabólico prazer em expor seus pensamentos sobre ele.
- Ele costuma dizer - prosseguiu Gudrun, com ironia - que no casamento se encontra um equilíbrio permanente, aceitando-se a união, mas continuando cada um a viver separadamente, sem tentar a fusão das almas.
- Isso não me seduz - notou Gerald.
- Nem a mim - asseverou Gudrun.
- Creio no amor, na confiança plena, quando somos capazes de tal...
- Eu também.
- E Rupert igualmente, embora esbraveje...
- Não; ele não - acudiu Gudrun. - É incapaz de se abandonar a outra pessoa. Não podemos nunca estar certos de um homem assim; na minha opinião, é esse o seu maior defeito.
- No entanto, quer casar, Casar... et puis?
- Le paradis! - concluiu Gudrun, divertida.
Birkin, conduzindo o carro, sentia um arrepio percorrer-lhe a espinha, como se alguém o ameaçasse pelas costas. Contudo, esboçou um gesto de indiferença e não se aborreceu. Parou o automóvel e desceu para levantar a capota.
Capítulo XXII
De mulher para mulher
Chegaram à cidade e deixaram Gerald na estação da estrada de ferro. Gudrun e Winifred deviam tomar chá em casa de Birkin; Úrsula também fora convidada. De tarde, porém, quem primeiro apareceu foi Hermione. Birkin ainda não tinha voltado, de modo que a visitante se instalou na sala, examinou os livros e os papéis e, por fim, tocou piano. Foi então que Úrsula chegou. Ficou desagradavelmente surpreendida com o encontro. Nunca mais tivera notícias de Hermione.
- Não esperava encontrá-la...
- Eu estive fora - respondeu Hermione. - Estive em Aix...
- Por motivo de saúde?
- Sim.
As duas encararam-se. Úrsula embirrou com o rosto da outra, grave e comprido, sempre de nariz no chão. Possuía qualquer coisa da estupidez e do orgulho inconsciente de um cavalo. "Tem uma cara cavalar", pensou a moça. "Anda de antolhos." Lembrava-lhe também a face da Lua. Não tinha reverso. Fixava constantemente o mundo exíguo, mas para ela completo, da consciência visível. Nas trevas não existia, como a Lua, que tem uma parte privada de vida. Todo o ser se lhe resumia na cabeça; não sabia o que era correr e mover-se espontaneamente como um peixe dentro da água ou uma doninha na terra. A sua função era só conhecer.
Mas o que impressionava Úrsula era a face única de Hermione. Aquela fria presença parecia aniquilá-la. Meditava e refletia ate ficar exausta, dolorida pelo esforço da clarividência, cansada de corpo e pálida de feições, na ânsia de alcançar, lenta e custosamente, as conclusões finais e estéreis do conhecimento; e na presença de outras mulheres, que ela considerava simples fêmeas, exibia o seu amargo saber como uma jóia que lhe conferisse indiscutível distinção e a elevasse à categoria dos entes superiores. Era capaz de condescender com pessoas como Úrsula que ela julgava apenas criaturas sentimentais. Pobre Hermione, isso constituía o seu único bem, essa certeza dolorosa servia-lhe de inteira justificação. Se era tão confiante nesse ponto (Deus sabe como), nos outros confessava-se, todavia, deficiente e inferior! Na esfera do pensamento, do espírito, Hermione podia classificar-se eleita. Desejava ser universal. Mas bem no fundo lavrava um cinismo devastador: não acreditava na sua própria universalidade, que lhe parecia impostura. Não acreditava no mundo espiritual, que denominava afetação. Em última análise acreditava no dinheiro, na carne, no diabo: isso não era simulado. Sacerdotisa sem fé, sem convicção, alimentada por um credo gasto, via-se condenada a repetir os mistérios que para ela nada continham de divino. Contudo, não havia possibilidade de fugir. Assemelhava-se a uma folha no ramo de uma árvore moribunda. Que auxílio podia esperar? Só lhe restava continuar o combate por aquelas verdades cediças e mirras, morrer pela fé consumida e extinta, permanecer inviolada e solene no sacerdócio de profanados ritos. As velhas verdades de outrora haviam-se conservado verdadeiras. Hermione seria a folha da antiga árvore da ciência, agora já exausta. A essas derradeiras verdades de outro tempo manter-se-ia fiel, ainda que o ceticismo e a zombaria invadissem o âmago da sua alma.
- Muito me alegra tornar a vê-la - disse ela a Úrsula, com a sua voz velada, como se falasse numa cerimônia de feitiçaria. - Você e Rupert são íntimos, agora?
- Ah... sim... Partilhamos sempre da mesma paisagem.
Hermione deteve-se antes de falar. Adivinhara muito bem o que a outra pretendia dizer e achou-a perfeitamente vulgar.
- É curioso... - E, espaçando as palavras, com a maior serenidade: - Espera que ele se case com você?
A pergunta foi tão calma e feita de maneira tão suave, simples e natural, tão sem paixão, que a professora sentiu-se desconcertada e chegou a ter pena daquela mulher. Hermione dispunha de uma ironia ingênua e deliciosa.
- Rupert deseja ardentemente - declarou Úrsula. - Eu, porém, ainda não resolvi.
Hermione observava-a muito sossegada, reparando na incipiente importância de Úrsula. Como lhe invejava tanta segurança e, até mesmo, a vulgaridade!
- Por que não se resolve, então? - inquiriu no seu metal de voz cantante. Estava inteiramente à vontade, talvez mesmo satisfeita com o diálogo. - Não o ama bastante?
Úrsula ruborizou-se um pouco ao ouvir tais impertinências embora brandas, e com as quais não podia ficar ofendida. Hermione mostrava-se tranquila e cândida. Realmente, não era de todo mau ser-se capaz de tanta naturalidade.
- Ele diz que não é o amor que deseja.
- Nesse caso, que será? - volveu Hermione, sempre lenta e igual no seu interrogatório.
- Pretende apenas que eu o aceite por marido.
A Senhorita Roddice ficou calada por alguns momentos, examinando a professora com um olhar pensativo e lânguido.
- Pretende? - disse por fim, sem grande convicção. Depois, animando-se: - E por que não aceita? Não se quer casar?
- Não... não é bem isso. O que não quero é consentir na espécie de sujeição que ele exige. Insiste para que eu me submeta de olhos fechados; não me sinto disposta a semelhante coisa.
Houve novo silêncio, ate que Hermione o quebrou:
- Não se case, se não quiser. - Seguiu-se mais uma pausa. Hermione tremia estranhamente. Ah, se ele ao menos lhe pedisse para o servir, para ser sua escrava! Sentia arrepios de desejo.
- Bem vê que não posso...
- Mas, que espécie...
Estavam ambas falando ao mesmo tempo e se detiveram. A Senhorita Roddice, arrogando-se o direito de ser a primeira, repetiu com ar cansado:
- Mas, na verdade, que espécie de submissão é essa?
- Ele diz que devo aceitá-lo sem sentimentalismos e para sempre. Não sei bem o que pretende. Explicou-me que precisava casar a parte demoníaca do seu ser... fisicamente... não a parte humana. Bem vê como ele expõe uma coisa em um dia e no outro, coisa totalmente diferente, contradizendo-se sem cessar...
- Pensa sempre em si próprio e na sua insatisfação - comentou Hermione com solenidade.
- É isso! - exclamou Úrsula. - Como se o casamento só dissesse respeito a ele! Assim é impossível.
Mas logo depois começou a retratar-se.
- Insiste em que eu reconheça nele uma parcela de Deus. Deus! Quer que o aceite... como absoluto. Mas parece que, em troca, não me concede nada. Desdenha de toda e qualquer intimidade verdadeira. Não admite nenhuma, renega-a, até. Não me deixa sequer pensar, nem sentir, detesta os sentimentos das pessoas.
Reinou outra vez o silêncio, bem amargo para Hermione. Ah, se ao menos Birkin lhe houvesse feito esse simples pedido! Ele sempre conduzia os pensamentos dela, impunha-lhe inexoravelmente suas próprias ideias! E, no fim de tudo, acabava por execrá-la!
- Exige que eu renuncie a mim mesma - continuou Úrsula. - Que eu não tenha nada de original.
- Então é melhor casar com uma odalisca - sugeriu a outra, sempre na sua voz musical e suave. - Se é isso que ele deseja.
Aquele rosto comprido tinha um ar sardônico; o assunto começava a diverti-la.
- Mais vale... - assentiu Úrsula, vagamente. - Afinal, o pior de tudo é que ele não exigia uma odalisca, jamais reclamará escravas. Hermione teria sido uma delas; possuía uma vontade tremenda de se prostrar ante um homem, mas um homem que a adorasse e a considerasse superior a todas. Birkin dispensava odaliscas: desejava uma mulher que recebesse qualquer coisa dele. que renunciasse a si própria a ponto de aceitar a realidade maior, as autênticas e intolerantes necessidades físicas.
E se ela condescendesse, ficaria ao menos reconhecido? Reconhecido, mau grado tudo e todos? Ou iria usá-la como instrumento para sua própria satisfação individual, sem admitir a existência da alma da mulher? Outros homens haviam feito o mesmo. Tinham-se preocupado com o seu ponto de vista pessoal, sem atender ao dela, reduzindo-a mesmo ao nada. Exatamente como Hermione, que atraiçoava agora a sua feminilidade. Hermione era como um homem; as suas crenças denunciavam caráter masculino; traíra a mulher em si própria. Birkin aceitá-la-ia ou a repudiaria?
Voltaram a si do êxtase em que se haviam embrenhado.
- Sim - disse Hermione -, seria um erro... Parece-me que seria um erro.
- Casar com ele?
- Casar com ele... Acho que você merece um homem de verdade... - Falava lentamente, como de costume. - Cheio de vontade, forte como um soldado... - Estendeu o braço, fechando o punho num gesto enfático. - Precisa de um homem do gênero dos heróis antigos... Ficar ao lado dele, vendo-o combater... admirar-lhe a força, ouvir-lhe os brados... Um homem fisicamente vigoroso, dotado de vontade viril e não um sensitivo... - Interrompeu-se de súbito, como se a pitonisa houvesse terminado de proferir um oráculo; era agora simplesmente a mulher quem prosseguia numa voz fatigada, mas sempre cantante. - E você bem vê, Rupert não é nada disso, nada mesmo. Fraco de saúde e de corpo, necessita de muitos, muitos cuidados. E é tão inconstante, tão cético. Exige muita paciência, excessiva compreensão para o tratar. Não me parece que você seja muito paciente. Teria de se preparar para sofrer, e sofrer terrivelmente. Nem sei dizer-lhe quanto sofrimento é preciso para torná-lo feliz! Envolve-se, por vezes, numa vida intensamente espiritual, que chega a ser maravilhosa. Depois começa a reação. Não lhe vou contar quanto o aturei! Estivemos tanto tempo juntos, que o conheço muito bem por dentro e por fora. Acho que devo preveni-la. Tenho a impressão de que seria um verdadeiro desastre para você aceitá-lo como marido. Muito mais para você, aliás, do que para Rupert. - Ao dizer isso, recaiu em melancólicas recordações: - É tão incerto, tão volúvel. Cansa-se, reage: neste último estado nem posso descrevê-lo! Seria impossível fazê-la compreender esse tormento. O que afirma e ama em um dia, renega no outro, numa autêntica fúria destruidora. Nunca é igual sempre com aquelas horríveis e pavorosas transformações! Sempre essa rápida mudança do bem para o mal e do mal para o bem. Nada cansa mais do que isso, acredite...
- Compreendo - comentou Úrsula, com humildade. - Deve ter sofrido muito por causa dele.
No rosto de Hermione resplandeceu uma claridade sobrenatural. Cerrou de novo os punhos, como que inspirada.
- Devemos aceitar os nossos padecimentos, os padecimentos que ele nos causa, todos os dias, a toda hora, se o queremos proteger, para que Rupert se mantenha absolutamente fiel a qualquer coisa.
- Quanto a mim, não estou disposta a sofrer todos os dias e a todas as horas - declarou Úrsula. - Não, teria até vergonha. Considero degradante renunciar à felicidade.
Hermione deteve-se a observá-la por um grande espaço de tempo.
- Considera? - disse por fim. E esta pergunta parecia sublinhar toda a distância que ia de uma à outra. Para Hermione o sofrimento era a maior realidade, acontecesse o que acontecesse. Todavia, não deixava de ter também a sua doutrina sobre a felicidade.
- Sim, deveríamos ser felizes... - repetiu Úrsula. - Tratava-se, porém, de um ato de vontade.
- Admitamos - continuou a outra, com indiferença. - Mas pressinto que um casamento assim seria desastroso... e desastroso, principalmente, se for feito às pressas. Não poderiam viver juntos, sem se casar? Não poderiam partir para qualquer lugar e ficar longe, juntos? Acho que o casamento seria fatal para ambos, e ainda mais para você do que para ele... Sem falar na saúde de Rupert...
- Quanto a mim - atalhou Úrsula - pouco me interessa casar. Ele é que quer.
- No momento é a ideia fixa dele - sentenciou a outra com ar cansado mas em tom decisivo. - É uma espécie de infalibilidade si jeunesse savait.
Seguiu-se um intervalo na conversa, ao qual Úrsula pôs fim com esta frase desafiadora:
- Toma-me por uma mulher apenas com funções físicas?
- Não, claro que não. Mas vejo-a cheia de vida e sei que é jovem. Não é bem uma questão de idade ou de experiência, é quase um problema de raça. Rupert pertence a uma raça antiga, muito velha e você me parece tão nova e inexperiente!
- Pareço-lhe? Quanto a ele, julgo-o terrivelmente imaturo, sob certo aspecto.
- Sim, talvez... Infantil, até, de alguma forma... Contudo...
Ambas se calaram. Úrsula estava mergulhada em profundo ressentimento, prestes a desesperar-se. "Não é verdade", dizia para si mesma, como se se dirigisse à rival. "Não é verdade. Você é quem deseja um homem fisicamente vigoroso, brutal, e não eu. Você é que pretende um que não tenha sensibilidade e não eu. Você não sabe nada sobre Rupert, realmente nada, apesar dos anos em que viveram juntos. Não sabe conceder-lhe amor de mulher, mas sim amor idealizado, e é por isso que ele se afasta de você. Não o conhece! Você só entende de coisas mortas. Qualquer cozinheira o compreenderia melhor do que você. Que ciência é a sua, senão uma ciência fracassada, sem a menor significação? Você é falsa, insincera, o que pode saber? Que utilidade tem a sua conversa sobre o amor, espectro ilusório de mulher? Como entender, se não acredita em nada? Não crê em si mesma, nem na sua feminilidade; para que essa clarividência superficial e presumida?"
Estavam ambas sentadas, imóveis, em silêncio hostil. Hermione sentia-se ofendida ao ver que todas as suas boas intenções, todos os seus sacrifícios não encontravam da parte da outra mulher senão uma vulgaríssima resistência, prova de que Úrsula não compreendera nem poderia jamais compreender, e que seria sempre a fêmea insensata e ciumenta, capaz apenas de pequena emoção feminina inerente à inteligência do seu sexo, mas sem alma. Hermione notara, desde muito tempo, que era inútil solicitar a razão quando a alma não predominava. Mais valia, simplesmente, não fazer caso dos ignorantes. Rupert reagira agora em favor da mulher forte, saudável, egoísta: reação momentânea, que não tinha remédio senão deixar passar. Estúpido movimento de vaivém, de oscilação violenta que seria, com a duração, mais violenta ainda e que terminaria no desespero e na morte. Assim, não achava um meio de salvação. Esse antagonismo, essas reações entre a animalidade e o espírito manter-se-iam nele ate que o partissem em dois, vencido por direções opostas, tirando-lhe a vida antes que pudesse apreender-lhe o sentido verdadeiro. De nada servia isso. Era homem sem unidade, sem ânimo nesse último estágio da existência; incapaz, em suma, de conduzir uma mulher ao seu destino.
Continuaram em silêncio ate a chegada de Birkin. Vendo-as juntas, percebeu logo a hostilidade ambiente. Mordeu os lábios, mas fingiu não perceber nada.
- Olá, Hermione. De volta? Como vai?
- Melhor. E você? Não está com muito boa aparência...
- Talvez. Acho que Gudrun e Winnie Crich vêm tomar chá conosco. Pelo menos, assim prometeram. Será uma bela reunião. Em que trem chegou, Úrsula?
Era confrangedor vê-lo tentar aplacar as duas mulheres ao mesmo tempo. Ambas o observavam: Hermione cheia de ressentimento, mas também de piedade e Úrsula remexendo-se de impaciência. Birkin, embora nervoso, fingia-se de excelente humor, distribuindo banalidades convencionais. Úrsula admirava-se e indignava-se de o surpreender nesse jogo de futilidades, em que se saía tão bem como o mais consumado tolo da cristandade. E ela empertigava-se mais, chegando a não lhe dar resposta. Achava-o tão artificial e tudo aquilo tão deprimente! E Gudrun sem aparecer!
- Espero ir neste inverno a Florença - disse, por fim, Hermione.
- Sim? - foi o comentário dele - Deve fazer muito frio lá!
- É verdade. Mas ficarei numa casa muito confortável.
- O que a atrai em Florença?
- Não sei bem - volveu Hermione, lentamente. Olhou para Rupert com expressão lânguida e pesada. - Barnes deve abrir a Escola de Estética e Holandês tenciona fazer uma série de conferências a respeito da política interna italiana.
- Belo programa...
- Não caçoe. Confio nesse programa.
- Qual dos dois admira mais?
- Admiro a ambos. Barnes é um precursor. E, além disso, interesso-me pela Itália, pelo despertar da sua consciência nacional.
- Preferia que despertasse outra coisa nela em vez de consciência nacional - retorquiu Birkin. - Especialmente porque isso significa apenas uma espécie de consciência comercial e industrial. Detesto a Itália e os seus declamadores. E Barnes, para mim, não passa de um curioso.
A Senhorita Roddice ficou calada por alguns instantes, num estado de contradição latente. Todavia, conseguira apostar de Birkin, reconduzindo-o à sua esfera de interesses. Com sutil influência, soubera dirigir aquela atenção irritada para a sua pessoa, exclusivamente, e tudo em menos de um minuto. Era seu e muito seu!
- Não - contrapôs ela. - Está enganado. - Tomou-a logo um frenesi, ergueu a face como uma pitonisa inspirada pelos oráculos e prosseguiu, numa dissertação arrebatada: "Sandro mi scrive che ha accolto il piu grande entusiasmo, tutti i giovani e fanciulle e ragazzi, sono tutti..." - Sandro me escreve que se encheu de entusiasmo, todos os jovens e meninas e meninos, todos são... - nota da tradutora). Falava italiano como se, pelo fato de se ocupar da Itália, fosse obrigada a servir-se daquele idioma.
Birkin escutava a lenga-lenga sem grande satisfação. A certa altura declarou:
- Apesar de tudo, não gosto dos italianos. O nacionalismo deles não é senão industrialismo... Isso, e uma rivalidade superficial, que eu particularmente abomino.
- Não tem razão... Não tem razão - protestou Hermione. A mim afigura-se bela e puramente espontânea a moderna paixão dos italianos (porque é paixão) pela Itália.
- Conhece bem o país? - perguntou Úrsula. Hermione detestava ser interrompida dessa maneira. Entretanto respondeu com doçura:
- Conheço admiravelmente. Passei lá vários anos da minha meninice. Foi lá que morreu minha mãe, em Florença.
- Ah!
Houve um silêncio, desagradável para Úrsula e para Birkin. A Senhorita Roddice, contudo, parecia calma e absorta. Rupert estava pálido; os olhos brilhavam-lhe, como se tivesse febre, tão excitado se sentia. A professora ansiava naquela atmosfera de tensão. Julgava ter a cabeça apertada por círculos de ferro.
O dono da casa tocou a campainha para que servissem o chá. Já não poderiam esperar mais por Gudrun. Ao abrir-se a porta o gato entrou.
- Micio! Micio! - chamou Hermione com a sua voz musical, numa cadência calculada. O bicho voltou-se para ela, para ver quem lhe falava, e, lento e majestoso, dirigiu-se para ela.
- Vieni, vieni quà - disse Hermione em tom estranhamente carinhoso e protetor, como se nunca deixasse de ser a mais velha a dominadora. - Vieni dire Buon Giorno alia zia. Mi ricordi, mi ncordi hene, non è vero, piccolo? È vero che mi ricordi? E vero? - Venha, venha cá. Venha dizer bom dia à tia. Você se lembra de mim. Você se lembra bem de mim, não é mesmo, pequeno? É verdade que lembra de mim? É verdade? - nota da tradutora) - acariciou-lhe indolentemente a cabeça, com uma indiferença um tanto irônica.
- Ele entende italiano? - indagou Úrsula, que nada entendia daquela língua.
- Sim, ele entende - tornou Hermione, depois de algum tempo. - A mãe deste gato era italiana, nascida na minha cesta de papeis, em Florença, no dia do aniversário de Rupert. Foi o meu presente para ele.
Trouxeram o chá, que Birkin serviu. Era extraordinário ver como se tornara inviolável a intimidade entre ele e Hermione. Úrsula sentia-se como que intrusa. As próprias xícaras e as colheres de prata constituíam um elo entre Birkin e a Senhorita Roddice. Dir-se-ia serem coisas do passado, reminiscências de um mundo que eles dois habitaram e no qual Úrsula jamais havia penetrado: fazia o papel de parvenue naquele milieu de velha cultura. As convenções dela não eram as mesmas dos outros, nem as respectivas normas tinham qualquer semelhança entre si. As deles pareciam definitivas, desfrutavam da sanção e das vantagens da precedência. Hermione e Rupert, juntos, comungavam das mesmas tradições, de igual elegância emurchecida e decrépita. Ela, Úrsula, era demais ali e isso eles faziam sentir constantemente.
Hermione pôs um pouco de leite no pires. O ar natural com que assumia os seus direitos no lar de Birkin desconcertava a professora ao mesmo tempo em que a enfurecia. Era uma coisa fatal, a que não podia fugir. Hermione pegou o gato e colocou-o à frente do pires. O animal pousou as patinhas na borda da mesa e para beber, inclinou graciosamente o focinho.
- Siccuro che capisce italiano - murmurou ela, sempre em voz cantante - Non l'avrà dimenticato, la língua della Mamma - Não há dúvida que entende italiano. / Não terá esquecido a língua da mamãe - nota da tradutora).
Levantou-lhe a cabeça e, com os dedos longos, brancos, indolentes, impediu-o de continuar a lamber o leite, conservando-o assim sob o seu domínio. Mostrava sempre satisfação em dispor do poder e da vontade, particularmente quando os exercia contra um indivíduo do sexo masculino. O gato piscou os olhos com indulgência e lambeu os bigodes numa atitude máscula e enfadada. Hermione soltou risadas curtas, quase grunhidos.
- Eco, il bravo ragazzo, come è superbo, questo!- Aí está, o bravo rapaz, como é soberbo isto! - nota da tradutora)
Com o gato, formava Hermione um par curioso, pitoresco e tranquilo. Dava a impressão de verdadeiro equilíbrio; sob certos aspectos, era bem uma artista do mundo elegante.
Mino recusava-se a olhar para ela, evitava-lhe, com indiferença, a pressão dos dedos; depois recomeçou a beber, com o focinho enterrado no leite, compenetrado da função e dando estalos com a língua enquanto lambia o pires.
- Não convém habituá-lo a comer à mesa - observou Birkin.
- Tem razão - assentiu Hermione, sem querer contrariá-lo. E então, mirando o animal, recomeçou na lamúria cantante, vagamente zombeteira:
- Ti imparano fare brutte cose, brutte cose... ensinam-te a fazer coisas más, coisas más... - nota da tradutora).
Ergueu o focinho branco de Mino com a ponta do dedo, muito devagar. O gato lançou em volta um olhar repleto de condescendência, e principiou a lavar-se esfregando a patinha. Hermione teve novo riso tipo grunhido, exclamando:
- Bel giovanotto...
Mino, mais uma vez, avançou para o leite, apoiando-se a borda da mesa. A Senhorita Roddice, cuidadosamente, afastou o pires para longe. Este movimento prudente e delicado, lembrou a Úrsula sua irmã Gudrun.
- Non è permesso di mettere il zampino nel tondinetto. Non piace ao babbo. Un signor gatto cosi selvático! - não é permitido por a patinha no pires. Papai não gosta. Um senhor gato tão selvagem! - nota da tradutora).
Conservou a mão sobre a pata macia do bichano; e a voz continuou no mesmo tom de ameaça branda e carinhosa.
Úrsula não podia mais. Ansiava por sair. Não valia a pena ficar. Hermione estabelecera-se ali para sempre: Úrsula é que era efêmera, talvez nem tivesse chegado a mostrar a sua presença.
- Tenho de ir embora - declarou de repente.
Birkin fitou-a quase assustado. Temia-lhe tanto a cólera.
- Não há necessidade de tanta pressa!,- disse.
- Não. Tenho de ir. - Dirigiu-se a Hermione, antes que houvesse tempo de novos protestos, estendeu-lhe a mão e despediu-se.
- Adeus.
- Adeus - repetiu a outra, apertando-lhe a mão. - Precisa mesmo ir?
- Sim, não posso me demorar mais. - A atitude era decidida. Desviou o olhar de Hermione.
- Se não pode...
Mas a professora já se havia esquivado com a mão, e, tendo-se voltado para o lado de Rupert, lançou-lhe também um adeus muito rápido. Antes que ele tivesse tempo de ir abrir-lhe a porta já havia saído.
Quando se viu fora de casa, seguiu pela estrada numa pressa furiosa, agitadíssima. Era esquisito verificar como Hermione, com a sua simples presença, lhe despertava tanta violência e tanta raiva. Úrsula sabia que dava razões à outra, que parecera malcriada, estranha, inconveniente. Mas não se importou. Corria pelos caminhos fugindo à tentação de voltar e dizer coisas desagradáveis na cara daqueles dois que iam ficando já distantes. Porque, afinal, ambos a tinham ofendido.
Capítulo XXIII
Excursão
No dia seguinte, Birkin foi procurar Úrsula. Era meio feriado na escola. O inspetor chegou ao finalizar o turno da manhã e perguntou-lhe se queria dar uma volta com ele, de automóvel, à tarde. Úrsula aceitou, mas via-se em seu rosto que estava fria e ressentida. Birkin sofreu com aquilo.
O tempo apresentava-se bom, embora um tanto escuro. Ia ele ao volante, e ela sentada a seu lado, indiferente e silenciosa. O coração do homem confrangia-se.
A vida agora lhe parecia tão estéril, que Birkin, às vezes, se tornava alheio a tudo e a todos. Úrsula e Hermione existiriam, realmente, para Rupert? Por que havia de se preocupar? Por que lutar por uma vida coerente e sossegada? Mais valia deixar que os incidentes se sucedessem, como nos romances movimentados. Por que não? Para que tamanhas aflições só por causa das outras pessoas? Não devia tomá-las a sério, quer se tratasse de homens ou mulheres. De que serviria relacionar-se demais? Antes simples conhecimentos ao acaso e o resto, que decorresse por si mesmo, dando-se-lhe apenas o devido valor.
Sentia-se, contudo, obrigado e condenado ao velho esforço por uma existência ponderada.
- Olhe - disse Birkin - o que eu comprei.
- O carro deslizava por uma larga estrada branca, entre as árvores douradas pelo outono.
Estendeu-lhe um embrulhinho de papel. Úrsula recebeu-o e abriu-o.
- Que lindos! - exclamou.
E ficou a examinar o presente.
- São realmente adoráveis! - continuou. - Mas por que esse presente? - A pergunta era feita em tom magoado.
Birkin manifestou, pelo encolher dos ombros, quanto a atitude dela lhe desagradava.
- Precisa haver um motivo? - perguntou.
- Sim. Por quê?
Houve uma pausa. Úrsula admirava os anéis que retirara do estojo.
- São magníficos que é uma maravilha.
Tinha uma opala redonda, de tons quentes cheia de fogo encastoada num círculo de pequeninos rubis.
- Gosta mais desse? - inquiriu ele.
- Creio que sim.
- E eu do de safira.
- Este?
Era uma esplêndida safira com brilhantezinhos, formando uma rosa.
- Sim, é admirável - confirmou a moça. Colocou-o contra a luz. - Sim, talvez seja o mais bonito.
- O azul?
- Sim, é um encanto!
Birkin deu uma volta brusca no carro, para se desviar de uma carroça o automóvel roçou no talude da estrada. Birkin guiava sem muito cuidado, mas com muita agilidade. Úrsula assustou-se Aquela distração constante de Rupert mantinha-a sobre brasas. Meteu-se logo na cabeça dela que podiam morrer. Ficou, por instantes, amedrontada.
- Não é perigosa a maneira como dirige? - perguntou
- Não há perigo - foi a resposta de Birkin. E acrescentou, pouco depois: - quanto ao outro anel, o de pedra amarela, não gosta?
Era um topázio quadrado, engastado em aço, ou outro metal semelhante, finamente lavrado.
- Também gosto. Mas para que tantos anéis?
- Tive vontade de comprar.
- Comprou para você?
- Claro que não.
- Então, para quem?
- Para você.
- Mas devia oferecê-los a Hermione. Você pertence a ela Birkin não respondeu. Úrsula conservou as jóias na mão. Gostava de experimentar os anéis, mas receava que não coubessem em seus dedos. E, pelos caminhos desertos seguiram os dois em sua viagem silenciosa.
Andar de automóvel sempre a excitava a ponto de se esquecer da presença do companheiro.
- Onde estamos? - perguntou-lhe de repente.
- Não muito longe de Workslop.
- E aonde vai?
- A qualquer lugar.
Era a resposta que agradaria a ela.
Abriu a mão para ver os anéis. Davam-lhe tanto prazer ali onde jaziam aquelas três argolinhas escondidas no côncavo da mão, com as pedras encastoadas! Devia experimentá-los e assim o fez, em segredo, desejosa de que ele não percebesse, nem ficasse sabendo que seus dedos não eram muito finos. Rupert, porém, descobriu o gesto. Via tudo, sempre, e precisamente quando ela não queria ser observada: mais uma de suas características, aquela odiosa vigilância...
Somente a opala, no seu aro delicado, lhe ficava bem no dedo anular. Úrsula era supersticiosa. Não, aquilo não daria sorte. Devia recusar o presente do seu amado.
- Veja - murmurou, estendendo-lhe a mão que se contraía, indecisa. - Os outros não ficam bem.
Birkin relanceou o olhar pela pedra preciosa, tão suave, que resplandecia agora sobre a pele delicada.
- Muito bem - comentou.
- As opalas são de mau presságio, não é verdade? - perguntou a moça um tanto apreensiva.
- Não. Aliás, prefiro as pedras que não dão sorte. A sorte e uma coisa vulgar. Quem é que deseja o que depende do acaso? Eu não.
- Mas por quê? - inquiriu ela, rindo.
Depois, ansiosa por saber como lhe ficariam os outros anéis enfiou-os no dedo mínimo.
- Podemos mandar alargar um pouco - disse Rupert.
- Talvez - respondeu ela com ar duvidoso, suspirando. Sabia que, aceitando os anéis, tomava compromisso com aquele homem. Mas o destino parecia impor-se a ela. Olhou outra vez para as joias. Eram lindas aos seus olhos, não como ornato, nem pelo seu valor intrínseco, mas como pequeninos fragmentos da beleza universal.
- Agrada-me que os tenha comprado - murmurou, pondo a mão no braço dele, docemente, levada por um impulso irresistível.
Birkin teve um sorriso breve. Gostaria que ela se fizesse dócil, mas estava, no fundo, zangada e indiferente. Percebia que a moça o amava, na realidade, porém, o fato, afinal, não tinha interesse. Há paixões profundas que, todavia, tornam as pessoas desinteressadas, isentas de emoção. Úrsula, entretanto, ainda estava na fase emotiva, sempre tão abominavelmente pessoal! Birkin apoderara-se dela de uma maneira que ele próprio jamais experimentara. Fora buscá-la nas raízes da sua obscuridade e do seu pudor, qual um demônio, subornando-a de modo misterioso no mais íntimo do ser, rindo, encolhendo os ombros, aceitando as coisas tais como elas eram. Quanto à mulher, em que ponto se excederia a si própria, a fim de o aceitar e sacrificar-se por ele?
No momento, sentia-se perfeitamente feliz. O carro seguia sempre, a tarde continuava branda e brumosa. Úrsula falava com animação, discutindo as pessoas e as ações de cada qual, ocupando-se de Gerald e de Gudrun. Rupert dava-lhe respostas vagas. Não lhe interessava muito a personalidade dos outros os indivíduos eram todos diferentes, dizia, mas confinavam-se em estreitos limites. Só restavam duas grandes ideias, dois grandes fulcros de atividade, com as variadas formas de reação que daí se derivavam. Essas reações podiam ser diferentes consoante as criaturas, mas obedeciam sempre a certas leis principais, de forma que, no intimo, a dessemelhança não seria grande. Atuavam e reagiam involuntariamente, conforme as tais normas especiais e, uma vez conhecidas estas, estabelecidos os princípios orientadores, os outros deixavam de ter interesse, perdiam o mistério. Na sua essência todos são iguais, as diferenças não passam de variações sobre o mesmo tema. Ninguém transcende os termos propostos.
Úrsula não era desta opinião. As pessoas constituíam ainda, para ela, uma incógnita, mas talvez não tanto como imaginava. Havia decerto algo de maquinal no entusiasmo que demonstrava. Quem sabe ate, se aquela curiosidade teria efeito destruidor se a sua análise reduziria os outros a simples fragmentos? Mas dentro de si guardava uma plataforma onde a gente, com a sua idiossincrasia, não tinha lugar, nem mesmo para a destruir. Por instantes, Úrsula pareceu atingir esse espaço silencioso e oculto e durante tais segundos, só se ocupou de Birkin e de mais ninguém.
- Seria delicioso regressarmos só à noite... - sugeriu ela - Poderíamos tomar chá mais tarde, não acha? Um chá reconfortante... Seria tão bom!
- Prometi estar em Shortlands à hora do jantar.
- Por que não vai amanhã?
- Hermione está lá - disse ele, já pouco à vontade. - Ela vai viajar e tenho obrigação de me despedir... Não tornarei a vê-la.
Úrsula afastou-se, fechando-se num silêncio terrível Rupert franziu a testa; os olhos brilhavam-lhe de cólera, outra vez.
- Não fique zangada, sim? - pediu, com voz irritada.
- Não, não me importo. E por que haveria de me importar - A entonação era sarcástica, contundente.
- É o que eu penso. Por que se haveria de importar No entanto, da essa impressão... - Suas rugas estavam vincadas pela preocupação.
Garanto-lhe que não estou absolutamente zangada. Volte para o meio a que pertence.
- Deixe de tolices. Entre mim e Hermione está tudo acabado. Você da mais importância a ela do que eu. Você não sabe revoltar-se senão para se opor a Hermione. Ser adversária dela é fazer-lhe um favor.
- Adversária! Conheço as manhas dela. Nunca me iludi com palavras. Você pertence a Hermione e a toda aquela presunção. Não o censuro. Mas não tente mais nada comigo.
Birkin, indignado, no auge da exasperação, freou o carro e os dois ficaram ali parados, no meio do campo, a darem-se mútuas explicações. Fora declarada a guerra e eles nem percebiam o ridículo da situação.
- Se você não fosse tão tola - gritava ele cheio de amargo desespero - veria que se pode ser decente mesmo quando se tem errado. Eu errei por haver convivido todos estes anos com Hermione Roddice, mas a aventura terminou para sempre. No fim de contas, pode-se ter um pouco de humana decência. Mas não; você, com esses ciúmes, rasga-me o coração, só de mencionar o nome daquela mulher!
- Ciumenta, eu? Eu, ciumenta? Está muito enganado! Não tenho ciúmes de Hermione, que para mim não representa nada! Você está mentindo, Rupert. Você é que se vê obrigado a voltar para ela. O que eu detesto é a espécie de gente que Hermione representa. Odeio-a. Não é senão mentira, falsidade, vacuidade. Mas para você essas coisas são necessárias, não as pode dispensar. Pertence a essa concepção da vida, tão antiquada; vá, pois, para lá! Mas não volte; não tenho nada a ver com isso.
Em meio à violenta agitação, Úrsula desceu do carro e pôs-se inconscientemente, a colher na sebe do caminho de bagas rosadas de zaragatoa, algumas das quais, semiabertas, deixavam ver, no interior, sementes cor de laranja.
- Ah! Quanta tolice! - gritava-lhe Birkin, perturbado, com uma pontinha de desdém.
- Sim, sou uma tola. Não há dúvida. E graças a Deus, sabe? Sou estúpida demais para apreciar toda a sua inteligência. Deus seja louvado! Vá com as suas mulheres, vá, elas são da sua espécie. Sempre andou agarrado às saias delas, e há de andar sempre. Arranje-se com essas noivas espirituais, mas não volte para mim. Não está satisfeito ainda? Elas não lhe dão o que deseja nem são bastante carne e osso para lhe agradar? É por isso que se dirige a mim, tendo o cuidado de mantê-las de reserva? Quer casar comigo para ter uma esposa de uso cotidiano e guardar a sua coleção de mulheres superiores? Percebo muito bem o seu jogo. - Estava possuída de uma autêntica raiva e começou a bater como louca com o pé no chão. Birkin recuou com medo de que ela o agredisse. - Não sou suficientemente intelectual não tenho o espírito de Hermione! - Enrugava a testa e os olhos faiscavam-lhe como os de um tigre. - Vá, vá para junto dela, vá! Chamar espiritual aquela mulher! Ela não passa de uma sórdida materialista. Espiritualista, aquilo? De que se ocupa ela, com toda a sua espiritualidade? De quê? - No ardor da fúria, parecia lançar chamas e queimar o rosto de Birkin, que se afastou alguns passos. - Digo-lhe e repito que é sórdida, que é lama. E é disso que você gosta, para se atolar. Intelectual! Que há de intelectual naquela petulância, naquele orgulho, naquele materialismo ignóbil? Materialista em tudo. E tão torpe! E o que consegue ela com a sua paixão social, como vocês dizem? Paixão social... O que vem a ser isso? Mostre-me onde esta. O que ela pretende é exercer domínio, por menor quê seja quer fingir-se mulher importante, e pronto! No fundo não e senão diabolicamente cética, vulgar o quanto for possível Eis o que ela e, no fundo. O resto não passa de simulação; mas você gosta disso. Gosta da falsa espiritualidade com que se alimenta. E por quê? Por causa da imundície que se oculta por baixo disso. Julga que não estou bem a par da torpeza da sua vida sexual. Conheço-a muito bem. Essa torpeza é que o satisfaz. Mentiroso. Pois então, vá! Farsantes!
Deu-lhe as costas e voltou a arrancar, nervosamente, os raminhos da sebe, enfiando-os depois, com dedos trêmulos, na lapela do casaco.
Birkin olhava-a, calado. Ao ver-lhe aqueles dedos vibráteis tão sensíveis, invadiu-o uma onda de ternura; mas estava, ao mesmo tempo, colérico e aborrecido com aquela cena.
- Indecoroso espetáculo! - declarou ele, friamente.
- Sim, é indecoroso. Mais para mim do que para você.
- Já que lhe agrada perder o decoro - replicou Birkin o rosto de Úrsula animou-se outra vez, e em seus olhos luziram relâmpagos dourados.
- Você! - exclamou. - Você, amigo da verdade! Traficante da pureza! Cheiram mal, essa pureza, e essa verdade! Cheiram as escorias de que se alimenta, cão que remexe o lixo e devora cadáveres! Você é asqueroso, imundo, convém que o saiba. A sua pureza, a sua candura, a sua bondade... muito obrigada, já as conhecemos. O que o senhor é... é ignóbil, putrefato obsceno sim, obsceno e também perverso! Você e o amor que preconiza. Faz muito bem em declarar que não quer o amor De quem gosta é de si mesmo, da corrupção e do aniquilamento. Eis os seus desejos! Perverso é que é! Autêntico abutre! Além disso...
- Vem aí uma bicicleta - preveniu ele, ofegante sob o peso de toda aquela acusação.
- Que me importa? - gritou ela.
Contudo, suspendeu o sermão. O ciclista, que tinha ouvido a altercação das vozes, deitou de passagem um olhar curioso ao homem, depois à mulher, e por fim ao automóvel parado.
- Boa tarde - disse ele, alegremente.
- Boa tarde - respondeu Birkin, muito seco.
Conservaram-se em silêncio até que o desconhecido estivesse longe.
O olhar de Birkin enterneceu-se, reconhecendo que ela, de forma geral, tinha razão. Considerava-se, em verdade, perverso, fazendo, por um lado, vida espiritual, e, por outro, uma existência estranhamente degradante. E ela seria melhor? Haveria alguém superior a ele, no aspecto moral?
- Pode ser tudo verdadeiro - começou Birkin. - Mentiras, imundícies e o resto. Mas o espírito de Hermione, com tudo isso, não fica abaixo do seu, com essa exaltação ciumenta. Podem-se guardar as aparências mesmo em relação aos inimigos, ao menos pelo respeito que devemos a nós próprios. Hermione é minha inimiga, até o derradeiro alento. Por isso devo despedir-me como manda a etiqueta.
- Você! Você e as suas inimigas e as suas etiquetas! Que linda imagem faz de si mesmo! Ciumenta, eu? O que estou dizendo - e a voz jorrava-lhe inflamada - é a pura verdade, sabe disso muito bem; sabe que é uma pessoa abjeta e falsa, embora dissimule isso muito bem! E é por isso que falo alto, para que me ouça!
- Fico-lhe muito grato - replicou ele, com ar irônico.
- Sim, se lhe resta um pouco de decência, é justo que me fique reconhecido.
- Mas como não me resta nem um pouco...
- Sim, não resta mesmo. Então é melhor seguir o seu caminho e eu seguirei o meu. E agora, não se incomode. Deixe-me onde estou. Não quero dar mais um passo ao seu lado. Deixe-me aqui...
- Você nem sabe onde está! - observou Rupert.
- Ah! Não se preocupe com isso! Garanto-lhe que não me perderei. Tenho comigo dez xelins e com eles posso voltar de qualquer lugar a que você me tenha arrastado. - Hesitou, no entanto. Os anéis estavam ainda nos dedos, dois no dedo mínimo e o terceiro no anular. Sentia-se indecisa.
- Muito bem - disse ele. - Não há nada pior no mundo do que os imbecis.
- Tem razão.
Continuava hesitante. Depois teve um gesto deselegante e mau: arrancou os anéis dos dedos e atirou-os no rosto do companheiro. Um o atingiu, os outros roçaram-lhe pela roupa e os três acabaram enterrados na lama.
- Aí estão! - gritou ela. - Vá comprar outra mulher! Você não terá dificuldades em encontrar uma. Qualquer uma ficará contente de compartilhar da sua razão espiritual ou física, se é que a primeira está apenas reservada para Hermione.
Com isto, partiu ela pela estrada, ora devagar, ora correndo.
Birkin ficou imóvel, vendo-a caminhar cansada e deselegante. Ao passar junto das sebes, ia arrancando um ou outro galho em movimentos bruscos. Sua figura foi diminuindo pouco a pouco quase a perder-se de vista. A alma de Birkin mergulhou em trevas; sobre ele flutuava apenas um vago resquício de consciência. Sentia-se fatigado e fraco, mas, ao mesmo tempo, experimentava certo alívio. Abandonou o lugar em que estava e foi sentar-se no talude. Não havia duvida de que Úrsula tinha razão. Era verdadeiro tudo quanto dissera. Reconhecia que a sua espiritualidade se aliava a um sistema de depravação, uma espécie de autodestruição de que tirava prazer. De fato, naquele degradar-se a si próprio havia algum encanto, para ele, pelo menos, em especial que se traduzia numa recriação espiritual. Percebia isso muito bem, mas que fazer? E não seriam igualmente perigosas as relações de ordem sentimental e física mantidas com a professora, tanto como as que, abstrata e espiritualmente, o ligavam a Hermione? Fusão, fusão, aquela horrível fusão de dois seres que todas as mulheres exigiam e a maior parte dos homens desejava, não era coisa repugnante e detestável, quer se tratasse de união do espírito, quer do corpo? Hermione apresentava-se com a ideia perfeita, a que todos os homens deviam recorrer e Úrsula significava o perfeito ventre, gerador da vida, ao qual também os mesmos eram obrigados a sacrificar. Ambas pareciam horríveis Por que não ficavam elas simples criaturas, dentro dos seus próprios limites? Por que motivo essa compreensão universal, essa odiosa tirania? Por que não deixavam os homens livres, sem os absorver, sem se fundir neles, e com eles se misturarem? Cada um poderia abandonar-se a si mesmo, em certos momentos, mas não as mãos de outra pessoa.
Birkin não podia suportar o espetáculo dos anéis caídos ali na lama lívida da estrada. Apanhou-os e experimentou-os, distraidamente Simbolizavam em ponto pequeno a realidade da beleza e da felicidade no ardor da criação; tinha, porém, sujado as mãos com a terra e com a areia do caminho.
Sentia a mente obscurecida. O terrível nó da consciência que persistia como uma obsessão, desfazia-se agora e a vida ficava-lhe liquefeita nas trevas que sobre o corpo se espalhavam No coração surgia-lhe uma nova ansiedade; o seu desejo era que ela voltasse. Rupert, como uma criança, respirava a medo inocentemente num hausto curto e regular, sem sequer admitir a sua responsabilidade.
Úrsula, efetivamente, regressava. Ele a avistou arrastando os passos incertos ao longo da sebe, avançando pesadamente ao seu encontro. Rupert não se mexeu. Parecia não vê-la. Estava como que adormecido pacificado, na frouxidão completa de um repouso.
Ela chegou e parou diante dele, baixando a cabeça.
- Veja as flores que lhe trago - disse, exibindo ansiosa um ramo de urze florido, de um vermelho purpúreo. Birkin contemplou aquele raminho delicioso, e ao mesmo tempo as mãos da moça, de pele fina e sensível.
- Linda! - declarou, olhando-a sorridente e recebendo as flores. Tudo se tornara de novo fácil, perfeitamente simples, desaparecera a complexidade de há pouco. Birkin, porém, sentia vontade de chorar; a emoção, porém, não o permitia, tão forte era.
O coração abriu-se então numa ternura quente e apaixonada por aquela mulher. Levantou-se e examinou-lhe o rosto de perto. Pareceu-lhe desconhecido, e tão delicado na sua luminosa expressão de surpresa e de medo! Passou-lhe os braços em volta do corpo e ela escondeu-lhe o rosto no peito.
Birkin, ao apertá-la de encontro a si, no meio do caminho, experimentava uma paz tão suave, tão verdadeira! Era a tranquilidade que voltava. O velho e aborrecido estado de guerra tinha passado para sempre; a alma fortalecia-se e descansava.
Úrsula fitou-o nos olhos. O extraordinário clarão dourado dos dela parecia agora brando e confiante; tanto ele como a jovem estavam calmos. Birkin beijou-a devagar, muitas, muitas vezes. O olhar de Úrsula tornara-se risonho.
- Fui muito má?
O outro sorriu e tomou-lhe a mão, que se oferecia docemente.
- Não importa - prosseguiu ela. - Foi tudo para o seu bem. - Rupert beijou-a de novo, carinhoso, repetidas vezes.
- Não é verdade? - continuou a moça.
- Claro - respondeu ele. - Espere. Vou-me vingar.
Ela riu-se, um riso nervoso e arisco, e atirou os braços em torno do pescoço dele.
- Você é meu, não é, meu amor? - E apertava-o com força.
- Sou - confirmou Birkin em voz suave.
Tão suave, tão carinhosa, tão prometedora, que a moça permaneceu calada, como se estivesse sob a influência de um encantamento. Sim, condescendia, mas tudo isso era sem o seu consentimento expresso. O homem beijava-a delicadamente, sem cessar, embriagado de felicidade, e o coração dela quase deixara de bater.
- Meu amor! - tornou a dizer, erguendo a face, olhando com uma expressão de felicidade, assustada e ao mesmo tempo terna e curiosa. Tudo aquilo seria real? Mas os olhos dele eram belos e apaziguadores, isentos de excitação, destituídos de violência; eram belos e sorriam meigamente. Úrsula descansara a cabeça no peito do amado, para que este não lhe descobrisse todos os pensamentos. Tinha a certeza de que a amava e sentia receio, como se a rodeasse um novo elemento, como se um novo céu a cobrisse. Desejava que aquele homem estivesse apaixonado, por que era na paixão que ele se movia mais à vontade. Mas tudo parecia calmo e frágil; a força apavora menos do que a serenidade.
Mais uma vez, num gesto rápido, ela ergueu a cabeça.
- Você me ama? - perguntou impetuosa e impaciente.
- Amo - respondeu Birkin, não reparando na excitação dela, mas apenas na aparência de tranquilidade.
Úrsula acreditou na resposta. Afastou-se dos braços de Rupert.
- É o seu dever - afirmou, voltando-se para observar a estrada. - Encontrou os anéis?
- Encontrei.
- Onde estão?
- No bolso.
Colocou a mão no bolso e tirou-os. Depois sugeriu:
- Vamos embora?
- Vamos - concordou ela. Subiram para o carro e abandonaram aquele memorável campo de batalha.
Numa corrida alegre, quase transcendente, atravessaram o campo deserto sob a luz encantada do entardecer. O espírito de Rupert desanuviara-se, era todo suavidade; a vida circulava nele como se brotasse de uma nova fonte, manava, como se viesse das entranhas de alguém.
- Sente-se feliz? - inquiriu Úrsula de modo estranho, deliciada.
- Sinto-me - respondeu.
- Eu também - Dominava-a um êxtase inesperado; passava o braço em torno dele, apertando-o fortemente contra si, enquanto Birkin segurava o volante.
- Pare um instante, não quero que esteja ocupado. - Não. Acabaremos o passeio e depois seremos livres.
- Sim, livres, meu amor - repetiu ela, maravilhada. Birkin voltou-se e Úrsula deu-lhe um beijo.
Conduzia o automóvel com muita atenção. As preocupações haviam desaparecido. Parecia agora consciente de tudo; todo ele estava alerta, como se tivesse acordado naquele instante, despertando definitivamente: era um recém-nascido, pássaro que sai do ovo e penetra pela primeira vez no universo.
Desceram, ao crepúsculo, uma extensa colina, e Úrsula reconheceu, de repente, à direita, acima deles, a arquitetura da catedral de Southwell.
- Cá estamos! - exclamou ela, cheia de contentamento.
A igreja, de formas rígidas, feia e sombria, erguia-se no escuro daquela noite que se alastrava, na ocasião em que entraram na cidade acanhada. Nas vitrines das lojas brilhavam luzes amarelas, revelando coisas as mais várias.
- Papai veio aqui com a mamãe - disse ela - quando se conheceram. Papai gosta muito da catedral. E você?
- Gosto. Assemelha-se a cristais de quartzo dentro de uma cova escura. Vamos tomar um chá no Saracen's Head.
Enquanto se apeavam, ouviram os sinos da igreja badalar um hino, logo depois de o relógio ter dado seis horas.
Glória a Ti, esta noite, meu Deus,
Pela bênção da luz que nos deste...
Úrsula ouvia caírem aqueles sons, um por um, como gota por gota, do céu invisível sobre a cidade em trevas. Era igual à voz confusa dos séculos passados. Tudo aquilo parecia tão remoto! Estavam agora no velho pátio da estalagem, que cheirava a palha, a estrebaria e a gasolina. No alto, distinguiam-se as primeiras estrelas. Que significava tudo isso? Não um mundo real, mas de sonho, das saudades da infância, imensa reminiscência evocada. A terra tornara-se irreal. Ela própria, Úrsula, não passava de uma realidade estranha e transcendente.
Sentaram-se numa saleta, perto do fogo.
- É verdade - disse a moça, deslumbrada.
- O quê?
- Tudo... Tudo isto é verdadeiro?
- E bom - respondeu ele sorrindo.
- Tem certeza? - replicou ela, rindo também, sem parecer muito convencida.
Fitou-o depois: parecia ainda tão distante! Na alma de Úrsula abriam-se novas perspectivas. Via naquele homem uma criatura singular, emanada de um mundo diferente, e ela própria se julgava vítima de um sortilégio, pois tudo à sua volta sofrera metamorfoses. Recordou-se da velha magia do Gênesis, quando os filhos de Deus descobrem as filhas dos homens e as reconhecem belas. Birkin era um desses, ente estranho do além, que a contemplava e lhe descobria a beleza.
Estava de pé, sobre o tapete e junto ao fogão, admirando-a e o rosto da moça procurava-o, exatamente como uma flor, fresca e luminosa, que brilhasse num clarão levemente dourado sob o orvalho da manhã. Birkin sorria desvanecido como se no mundo não houvesse palavras para dizer, mas apenas o silêncio das flores permutando-se maravilhadas - sorrindo um para o outro, felizes com a pura presença, sem poderem refletir, quase sem se conhecerem. Mas nos olhos dele havia uma imperceptível contração irônica.
Como se estivesse enfeitiçada, Úrsula sentia-se atraída para Rupert. Ajoelhando-se no tapete em frente dele, enlaçou-o com os braços, encostando-se em suas pernas. Sentia-se inundada de bens do céu que tombavam sobre ela.
- Amamo-nos! - exclamou, deliciada.
- Mais do que isso - volveu ele, contemplando-a, enquanto a face resplandecia de felicidade.
Inconscientemente, com a ponta dos dedos, a jovem tateava-lhe as costas, como quem segue um percurso misterioso da vida. Descobrira algo mais belo que a própria existência: o exprimível mistério do fluxo vital ao longo do corpo do seu amado. Era a estranha realidade daquele ser, a verdadeira substância que corria naquele corpo estuante de força. Assim percebeu que ele seria realmente um dos filhos de Deus tais como estes foram no princípio do mundo, não um homem, mas qualquer coisa superior. Isso trazia-lhe grande alívio. Úrsula tivera adoradores e conhecera a paixão. Mas agora não era paixão nem amor, antes o regresso das filhas dos homens aos braços dos filhos de Deus, esses raros indivíduos inumanos que existiram no princípio da humanidade.
O rosto dela cintilava com uma luz livre e dourada. Rupert fitava-a a seus pés, e as pestanas franjadas do homem luziam como um diadema coroando-lhe os olhos. A moça estava linda como uma flor maravilhosa que tivesse desabrochado em frente dele, flor paradisíaca, feita já não de carne mas somente de luz. Contudo, em Birkin havia ainda um pouco de timidez e embaraço: não gostava daquela adoração, daquele esplendor, pelo menos de maneira tão impudente.
Para Úrsula tudo está completo. Encontrara um dos filhos de Deus, do início da criação; Rupert descobrira por sua vez uma das mais deslumbrantes filhas dos homens.
Tateando-lhe a linha dos quadris, nela despertava um fogo violento que a ultrapassava toda, vindo tenebrosamente do íntimo desse homem. Fluxo obscuro de paixão elétrica que a rapariga libertava do corpo masculino e dele se transmitia diretamente ao seu. Estabelecera assim um novo circuito, opulento de vida, nova corrente de energia passional entre os dois seres, indo de um pólo a outro - os mais obscuros do corpo - e formando perfeita ligação. Sombrio fogo elétrico vinha dele para ela e inundava-os a ambos de paz generosa e satisfação abundante.
- Meu amor - disse a moça, erguendo o rosto, levantando os olhos e abrindo a boca em verdadeiro transporte.
- Meu amor - respondeu ele, inclinando-se e beijando-a inúmeras vezes.
Úrsula continuava a apertar, com os dois braços, aquele corpo que se debruçava sobre ela e assim julgava atingir o âmago do tenebroso mistério que se fechava ali. Um supunha desfalecer e o outro, curvando-se, imaginava desfalecer também. Foi para ambos como que uma morte transitória e ao mesmo tempo a mais intolerável confusão dos dois seres, admirável plenitude de satisfação imediata, avassaladora que provinha de oculta fonte de vida, a mais íntima e sombria e estranha do corpo humano, localizada na base dos rins.
Depois de um curto silêncio, após as correntes do fluido enigmático, torvo e opulento haverem passado sobre ela, submergindo-a e arrebatando-lhe o espírito, seguindo ao longo da medula e chegando aos joelhos e aos pés, fluxo misterioso que tudo arrastava, deixando-lhe uma personalidade nova e essencial, Úrsula sentiu-se absolutamente livre, inteira no seu eu, dentro de um perfeito bem-estar. Ergueu-se, então, tranquila e feliz, sorrindo para Rupert, que permanecia em frente, luminoso, tão terrivelmente real que o coração dela quase cessou de palpitar. Ali estava, sim, íntegro de corpo, onde residiam as fontes maravilhosas como, no começo do mundo, o corpo dos filhos de Deus. Eram, de fato, estranhos, os mananciais que ele possuía, mais perturbadores e fortes do que todos quantos ela imaginara ou conhecera, mais consoladores, definitivos, proporcionando satisfações físicas e morais. Havia suposto que nenhuma fonte mais profunda existiria do que a nascente fálica. E agora verificava que, percutindo o rochedo que era o corpo do homem vinham, daqueles flancos estranhos e maravilhosos, mais cheios de mistério que a natureza fálica, dilúvios sombrios de uma inefável abundância.
Ambos estavam contentes, capazes de tudo esquecer por completo. Riram-se e ocuparam-se da refeição já preparada. Havia caça (de que tinham feito um pastel), e muitas iguarias, como presunto, ovos, agrião, beterraba, nêsperas, torta de maçã e chá.
- Que belas coisas! - exclamou ela, deliciada - Que lindo aspecto tem tudo isto! Posso servir o chá?
Os deveres sociais, como esse de servir o chá, punham-na quase sempre nervosa e desajeitada. Mas, ali, estava esquecida de suas inibições, pelo contrário, mostrava-se o mais à vontade possível. O chá correu apetitoso do bico arrogante do bule. Passando a xícara a Rupert, acompanhou o gesto com um sorriso perturbador. Aprendera finalmente a ser calma e correta.
- É tudo para nós? - indagou.
- Tudo - asseverou ele.
Ela soltou um gritinho de triunfo e acrescentou:
- Sinto-me tão contente!
- Eu também. Mas penso que seria melhor nos alijarmos das responsabilidades o mais cedo que pudéssemos.
- Que responsabilidades? - perguntou a moça perplexa.
- Devemos deixar os nossos empregos, sem perda de tempo. O rosto de Úrsula mostrou uma expressão compreensiva.
- Sem dúvida. Você tem razão.
- Temos de partir.
Ela o observou, sem grande convicção.
- Mas para onde?
- Não sei - respondeu Birkin. - Para começar, vaguearemos ao acaso...
Ela olhou para ele com um pouco de sarcasmo.
- Poderei ser perfeitamente feliz na sua casa
- Lembra muito o passado. Devemos errar um pouco aqui e ali...
A voz de Rupert, doce e descuidada, corria pelas veias dela qual seiva vivificante. Contudo, Úrsula sonhava com um valezinho sossegado, jardinzinhos agrestes... Tinha também desejos de pompa, de esplendor aristocrático e extravagante. Vagabundear significava falta de estabilidade, insatisfação.
- Para onde gostaria de ir? - foi a sua pergunta.
- Ainda não sei. Gostaria de marcar um ponto qualquer e partirmos juntos para longe.
- Mas aonde poderíamos ir? - repetiu ansiosamente. - Não há senão um mundo, e esse não tem grandes distâncias.
- Ainda assim - volveu ele - gostaria de ir com você sem destino. Andaríamos ao sabor da fantasia. O melhor lugar é esse: o desconhecido. Fugiríamos dos lugares afamados para nos refugiarmos no nosso país ignorado.
Ela, contudo, meditava.
- Você deve compreender, meu amor, que por não sermos talvez, pessoas iguais às outras, não aceitamos o mundo tal qual é, mas, afinal, o mundo é só este.
- Há outro, sim. Há lugares em que podemos ser independentes, onde não é necessário usar muita roupa e onde se encontra gente que viveu como nós e não se importa com os seus semelhantes, onde podemos guardar a nossa individualidade, sem nenhuma preocupação. Há isso em qualquer parte, e há, também uma ou duas pessoas...
- Mas em que terra? - suspirou Úrsula.
- Em qualquer parte... não importa. Procuremo-la. É o que temos de fazer... partir!
- Sim - condescendeu ela, estremecendo à ideia da viagem. Mas, para ele, apenas a viagem seduzia.
- Ser independente - prosseguiu ele -, ser livre, em um lugar livre, só com meia dúzia de pessoas!
- Talvez - disse a jovem, pensativa. Aquela meia dúzia de pessoas a deixava desanimada.
- Não se trata, por assim dizer, de um lugar definido. O que conta e a perfeita harmonia entre mim e você, e os outros. Perfeita comunhão... de maneira a sermos inteiramente livres.
- É isso, meu amor, é isso. Você e eu. Eu e você, não é verdade? Estreitou-o nos braços. Ele avançou o rosto e beijou o dela. O abraço de Úrsula repetiu-se, as mãos pousaram nos ombros dele, acariciando-o lentamente, deslizando-lhe pelas costas, num movimento rítmico de vaivém, tateando-lhe langorosamente o corpo. A sensação dos tremendos encantos, jamais enfraquecidos, que ali jaziam, apossou-se do cérebro dela, quase a fazendo desmaiar, morte em meio da mais extraordinária das posses, misteriosa e segura. Tinha-o em seu poder de uma forma tão integral e tão perturbadora, que julgava sucumbir. E, todavia, estava apenas sentada na cadeira, percorrendo o corpo dele com as mãos, desorientada.
Rupert beijou-a mais uma vez.
- Não nos tornaremos a separar - murmurou baixinho. Ela não respondeu, mas limitou-se a apertar com mais força aquele fulcro do mistério que emanava dele.
Quando voltaram a si do puro êxtase em que estiveram mergulhados, decidiram imediatamente redigir, os dois, o seu pedido de demissão. Úrsula assim o quis.
Birkin tocou a campainha e pediu papel que não fosse timbrado. O criado limpou a mesa.
- Comece você - disse o inspetor. - Coloque endereço e data, e a seguir: Exmo. Sr. Diretor da Educação. Conselho Municipal. Espere... Não sei ao certo como dizer... Acho que se pode abandonar o emprego antes de um mês... Enfim, de qualquer modo, escreva: Tenho a honra de pedir a Vossa Excelência se digne aceitar minha exoneração do cargo de professora no lnstituto de Willey Green. Ficaria muito grata a Vossa Excelência se a concedesse o mais depressa possível, sem aguardar o prazo legal. Basta. Deixe-me ver. Úrsula Brangwen. Magnífico! Agora vou escrever o meu ofício. Tenho de lhes dar uma antecipação de três meses, mas posso alegar motivos de saúde. Vou fazer tudo da melhor maneira.
Birkin sentou-se e redigiu o seu pedido de demissão.
- Uma vez prontos os sobrescritos e fechados - disse ele - vamos pô-los no correio ao mesmo tempo. Sim, já sei que Jackie vai exclamar: "Olhe que coincidência!" quando receber os dois ofícios e se inteirar do seu conteúdo. Que lhe parece? Vamos deixar que pense assim?
- Não faz diferença - respondeu ela.
- E então? - volveu ele, refletindo.
- Que importância pode ter isso?
- Tem - replicou Birkin. - Vão começar a ligar os fatos. O melhor é você colocar a carta primeiro, e eu colocarei a minha mais tarde. Não quero que façam suposições.
Olhou para ela com ar preocupado, cheio de sinceridade.
- Sim, tem razão - observou Úrsula.
Levantou o rosto para o homem, rosto resplandecente e confiante. Birkin podia penetrar inteiramente no âmago daquele encantamento juvenil. Mas a sua expressão tornou-se vagamente apreensiva.
- Vamos? - propôs.
- Quando você quiser - retorquiu ela.
Daí a instantes deixaram a cidade e atravessaram as azinhagas tortuosas dos campos. Úrsula aninhara-se junto dele, cujo calor constante a envolvia e espiava a pálida revelação de luz que ia correndo a sua frente - a noite em toda a sua evidência. Desembocavam às vezes numa velha estrada larga, coberta de erva de um lado e de outro e que parecia mágica e sobrenatural no seu colorido verde; noutras ocasiões eram árvores que lhes assomavam sobre a cabeça ou ramos de espinheiro; ou ainda as paredes de algum pátio ou de uma granja que lhes surgiam de improviso.
- Vai jantar em Shortlands? - perguntou Úrsula, de repente. Birkin sobressaltou-se.
- Meu Deus! - exclamou ele. - Shortlands! Nunca mais. Tudo, menos isso. Aliás, já não daria tempo.
- Aonde vamos então? Para o moinho?
- Se você quer. É pena que seja necessário ir a qualquer lugar numa noite tão deliciosamente escura como esta. É pena realmente, que isto acabe. Se ao menos pudéssemos deter-nos aqui nas trevas! Será muito melhor que tudo, esta bela escuridão que nos rodeia.
Úrsula estava encantada. O carro dava guinadas e balanços. Bem sabia ela que não seria possível separarem-se outra vez; a noite prendia-os a ambos e detinha-os; não era fácil desuni-los. A moça, além disso, tinha perfeita e misteriosa consciência do corpo dele, na sombra envolvente; e, em tal conhecimento, havia um pouco da beleza inevitável do destino, que sempre reclamamos e que aceitamos plenamente.
Birkin, conduzindo o automóvel, mostrava serenidade, a calma própria de um faraó. Dir-se-ia que se julgava instalado em qualquer coisa portentosa de tempos imemoriais, como as estátuas talhadas no velho Egito, tão real como elas, dotado de força sutil, e exibindo nos lábios um sorriso de esfinge. Sabia o que era possuir nas costas, nos rins, nas pernas, uma corrente de energia estranha, fantástica, força tão perfeita que o mantinha imóvel, deixando-lhe na face um ar de beatitude. Compreendia o que era ser vigilante e poderoso naquela outra vontade básica, de ordem física e tão profunda! E, dessa fonte, extraía uma verdadeira noção de vigilância mágica, misteriosa, obscura, força semelhante à eletricidade.
Tornava-se difícil falar; mais valia ficar assim imóvel naquele sossego cheio de vida, impalpável, repleto de ciência e de poder incrível, mantido indefinidamente num vigor intemporal, como os egípcios, supremamente fortes e inamovíveis, voltados para a eternidade no seu silêncio tênue e fremente.
- Não temos necessidade de ir para casa - disse Rupert. - Este carro possui assentos que se podem abaixar e transformar em cama e, além disso, é fácil levantar a capota.
Úrsula estava contente e assustada. Aconchegou-se mais ao lado dele.
- Que pensará a minha família?
- Você passa um telegrama.
Não disseram mais nada. Seguiam ambos calados. Mas, com uma espécie de subconsciência, Birkin guiava o carro para determinado destino. A inteligência ficava-lhe livre para dirigir os seus próprios objetivos. Os braços, o peito, a cabeça eram ágeis e vivos como os dos gregos; não tinha os braços rígidos e dormentes nem a cabeça hirta e sonolenta dos egípcios; acima da pura concentração mental, que se poderia julgar parecida com a destes, Rupert exercitava simultaneamente, na treva ao redor, a sua inteligência sutil.
Chegaram a uma aldeia situada à beira da estrada. O automóvel deslizou ainda suavemente ate que Birkin descobriu a estação do correio. Aí, parou.
- Vou redigir um telegrama para o seu pai - explicou. - Direi apenas: "Passo noite fora". Que tal?
- Está bem - concordou a moça. Não queria se dar ao trabalho sequer de pensar.
Viu-o entrar no correio, que não era senão uma simples loja. Birkin pareceu-lhe irreal; mesmo ao penetrar naquele estabelecimento público e iluminado, continuava envolto em sombras e em mistério, e o silêncio ativo dir-se-ia, nele, o invólucro da realidade, leve, poderoso e impalpável. Ali estava Rupert! Em um esquisito ímpeto de exaltação, ela adivinhava esse ser nunca revelado, temível na sua força e no seu segredo, mas sempre verdadeiro. Aquela existência tenebrosa e penetrante, jamais suscetível de se exprimir, tornava perfeita a própria alma da mulher. Úrsula permanecia também compenetrada daquele ambiente de trevas e de paz.
Birkin voltou e atirou vários embrulhos para dentro do carro.
- Aqui está: pão, queijo, passas, maçãs e chocolate - declarou. A voz era risonha, nascida da tranquilidade imaculada e da energia de que efetivamente dispunha. Úrsula sentiu necessidade de tocar nele. Falar, ver, não era bastante. Vê-lo e ouvi-lo seria apenas coisa ilusória. A sombra e o silêncio deviam banhá-la por completo; e, só então, por um contato ritual, poderia ter dele um conhecimento místico. Tornava-se forçoso que se unisse a ele, delicadamente, sem reservas, numa compreensão que é a morte do entendimento, numa certeza de equilíbrio superior a todas as certezas.
Depressa se embrenharam outra vez no escuro. Úrsula não o interrogava sobre o itinerário nem se importava com isso. Estava aí sentada em plenitude e segurança quase apáticas, intelectual e imóvel. Junto dele, como que suspensa num repouso absoluto era igual a uma estrela no firmamento, mantida de forma inconcebível. E, todavia, experimentava ainda uma leve e indefinida impaciência. Devia tocá-lo com a ponta dos dedos, sentir o que existia de real naquele homem. Sim, senti-lo na realidade pura e suave e inexplicável do mais secreto do seu corpo. Tocá-lo sem pensar, clandestinamente; entrar em genuíno contato com ele nos quadris, nas coxas eis o desejo que antecipadamente a seduzia!
Birkin, por seu lado, esperava, como que encantado, mas incerto, que ela o sentisse como ele mesmo a sentira. Conhecia-a de forma obscura, mas inteiramente dentro dessa obscuridade Agora seria ela a sofrer a revelação, e Birkin considerar-se-ia libertado e livre na atmosfera noturna, firme no equilíbrio estável no autentico mistério da sua pessoa física. Permutariam esse equino estelar, garantia única da sua liberdade.
Úrsula percebeu que seguiam agora sob uma abóbada de árvores enormes e antigas, a cuja sombra se estiolavam fetos. Os troncos delas, lívidos e nodosos, assemelhavam-se a espectros e corno sacerdotes, na confusão da distância, as outras plantas tinham um ar fantástico, sobrenatural. A noite estava totalmente negra com as nuvens pairando baixo. O automóvel andava com lentidão.
- Onde estamos? - murmurou ela.
- Na floresta de Sherwood.
Era evidente que ele conhecia o lugar, mas guiava devagar, vigilante sempre. Alcançaram um caminho cheio de capim baixo rodeado também de árvores. Voltaram cautelosamente e avançaram no meio dos carvalhos do bosque, ao longo de uma senda verdejante. Essa vereda alargava-se e depressa se transformou em um terreno atapetado de grama, onde corria um fio de água a no fundo de uma escarpada vertente. O carro parou.
- Fiquemos aqui - propôs Birkin - e apaguemos os faróis. Desligou as luzes, imediatamente, e ficou só a noite com as sombras das árvores como presenças de outros seres noturnos. Birkin estendeu a manta de viagem no chão e os dois sentaram-se no meio do silêncio, sem pensar em coisa alguma. Da mata chegavam agora leves rumores, mas nem o homem nem a moça davam por isso. Nada os perturbava; o mundo fugira de seu pensamento de maneira singular, e um novo mistério surgira. Despiram-se. Birkin atraiu-a para si, e sentiu-a, sentiu a pura realidade da sua carne, que lhe pareceu invisível. Apaziguados, sobre-humanos, os dedos dele correndo sobre a nudez irrevelada da mulher, eram como dedos do silêncio sobre o silêncio; e o corpo da misteriosa noite debruçava-se sobre o corpo da noite misteriosa, noite masculina e noite feminina, que os olhos jamais poderão descortinar, nem o espírito pode conhecer. Somente aparecia como a revelação palpável de outra misteriosa realidade.
O desejo que Úrsula tinha dele, de tocá-lo, foi satisfeito ao máximo; inexprimível contato, sombrio, sutil, genuinamente silencioso! Foi um dom magnífico que ela recebeu, por mais de uma vez, aceitado e retribuído, num ritual cujas cerimônias não são conhecidas, pura verdade sensual que jamais o espírito conseguirá apreender, que transcende os limites, alma fremente do escuro, sem voz e sem volume, misteriosa essência da realidade! Corporizara os seus anelos. Era agora para ele o que era para si mesma, a magnificência imemorial da verdade mística apalpável.
Dormiram naquela úmida noite sob a capota do carro, um sono tranquilo e delicioso. Era já dia claro quando despertaram. Olharam um para o outro e riram, depois desviaram a vista repleta de sombra e de segredo. A seguir beijaram-se e recordaram o encanto da noite anterior. Fora tão suntuosa, tal como uma herança vinda de um universo de realidades turvas! Recordarem-se disso provocava-lhes medo - e esconderam no fundo da memória recordação do que havia sucedido.