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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHERES APAIXONADAS
MULHERES APAIXONADAS

 

 

 

Vibrava a canção de Úrsula, satírica, risonha; e Gudrun, cada vez mais viva e impetuosa, continuava a dança, batendo com o pé no chão como que para se desembaraçar de alguma cadeia, lançando de súbito as mãos ao ar e batendo novamente com os pés; depois, jogava a cabeça para trás, fechava os olhos e nada via... o sol baixava, muito amarelo, prestes a esconder-se, e no céu flutuava uma lua translúcida, quase apagada.
Úrsula absorvera-se completamente na música; foi então que sua irmã parou, subitamente, e lhe disse com ironia, mas com ternura:
- Úrsula!
- Que é? - perguntou a outra, abrindo os olhos e saindo do êxtase em que estivera mergulhada.
Gudrun, de pé, apontava qualquer coisa na direção da irmã.
- Ui! - exclamou esta, tomada de pânico, levantando-se depressa.
- São pacíficos! - disse calmamente Gudrun, em voz irônica.
Pela esquerda vinha chegando uma pequena manada de bois do planalto, o pelo vivamente colorido pela luz do crepúsculo, com os cornos erguidos no ar e esticados para frente, como que a indagar o que havia, o focinho perscrutador. Os olhos cintilavam-lhes através da penugem lanosa e as narinas abertas enchiam-se de sombras.
- São perigosos? - indagou Úrsula, receosa.
Gudrun, que geralmente tinha medo de bois, abanou a cabeça com um movimento esquisito, entre duvidoso e sarcástico, sempre com um leve sorriso nos lábios.
- Não são adoráveis, Úrsula? - perguntou ela em voz alta e estridente, qual o grito de uma gaivota.
- Adoráveis! - confirmou Úrsula, ainda inquieta. - Mas serão perigosos?
Gudrun olhou mais uma vez para a irmã e, com um sorriso cético, abanou a cabeça.
- Tenho certeza de que não são - respondeu, como se tentasse convencer a si mesma e, ao mesmo tempo, como se fosse detentora de um segredo que logo seria posto à prova. - Sente-se e recomece a cantar - ordenou.
- Tenho medo - declarou Úrsula, olhando para a manada. Os animais eram vigorosos, de pernas curtas e firmes; miravam com olhares sombrios e maus através das franjas emaranhadas do pêlo. Apesar de tudo, a moça sentou-se na primitiva posição.
- São completamente inofensivos - gritou Gudrun. - Cante qualquer coisa; é melhor cantar.
A outra entoou em voz forçada e trêmula:
"It's a long, long way to Tipperary..."

Aquilo soava de maneira desconexa. Entretanto, Gudrun, de braços estendidos e rosto levantado, avançou numa estranha dança palpitante ao encontro dos bois, mostrando-lhes o corpo como que para os enfeitiçar e batendo com os pés em frenesi, numa sensação inconsciente. Os braços, os pulsos, as mãos erguiam-se e tombavam, uma vez e outras mais, os seios eretos sacudindo-se na direção dos animais, a garganta oferecendo-se num êxtase voluptuoso; aproximava-se sempre, imperceptivelmente, figura branca e sobrenatural, levada num arrebatamento, flutuando defronte do gado, que esperava abaixando a cabeça numa irresistível contração, olhos fixos e como que hipnotizados; os chifres lisos destacavam-se num reflexo claro, enquanto o vulto da mulher girava e avançava em lentas e impressionantes contorções de ritmo. Ela sentia os animais à sua frente, como se do peito deles emanassem correntes elétricas. Iria tocá-los dentro em pouco... um arrepio de prazer e de terror tomou-a toda. E durante todo aquele tempo Úrsula, vítima do feitiço, cantava a sua insólita canção, que vibrava na tarde moribunda como uma espécie de magia.
Gudrun podia ouvir a respiração pesada dos bois e sentia-se desamparada e fascinada. Ah! Que animaizinhos simpáticos, aqueles touros da Escócia, bravios e lanudos! De repente, um deles baixou a cabeça, resfolegando, e recuou.
- Fora! Fora! - foram as exclamações que chegaram aos ouvidos das moças, vindas da orla do bosque. O rebanho dispersou-se e desapareceu espontaneamente, subindo a colina; o pelo dos animais, na corrida, cintilava como fogo. Gudrun ficou imóvel sobre a relva e Úrsula levantou-se.
Eram Gerald e Birkin que as vinham buscar; fora o primeiro quem soltara aquele grito para afugentar o gado.
- Que estão fazendo aí? - perguntou-lhes entre admirado e aborrecido.
- Por que vieram? - foi a resposta de Gudrun.
- Que é que estavam fazendo - repetiu maquinalmente Gerald.
- Danças rítmicas - informou Úrsula, rindo, mas com certa perturbação.
Gudrun, mais afastada, mirava-os com os seus grandes olhos sombrios, ressentida. Depois começou a subir a colina atrás da manada, que se tornara a reunir mais acima.
- Aonde vai? - gritou-lhe Gerald. E correu em seu encalço. Seguiu-a por algum tempo. O sol desaparecera por detrás do outeiro, as sombras alastravam-se sobre a terra e o céu enchia-se de uma luz transitória.
- Fraca música para dançar - disse Birkin a Úrsula, de frente para ela e exibindo nos lábios um riso meio indeciso. E logo ele se punha a cantar baixinho, fazendo grotescos passos de dança, sacudindo o corpo e as pernas, como um boneco desengonçado. Como de costume, o rosto conservava-se pálido; os pés batiam rápidos no chão, alternadamente, e todo ele dava a impressão de suspenso e trêmulo, como uma sombra.
- Tenho a impressão de que estamos todos loucos! - exclamou a moça, rindo-se, mas um tanto amedrontada.
- Que pena não sermos ainda mais doidos! - tornou Rupert, recomeçando a dança dos saracoteios. Então, sem mais nem menos, inclinou-se para ela, beijou-lhe de leve a ponta dos dedos, uniu o rosto ao rosto de Úrsula e fitou-a nos olhos, arreganhando os dentes. A vítima recuou, espantada.
- Ofendeu-se? - perguntou ele, irônico, retomando imediatamente o ar circunspecto. - Pensei que você apreciasse o gênero fantástico.
- Tanto assim, não - replicou Úrsula, confusa, desnorteada, quase ofendida, realmente. No entanto, bem no fundo do seu ser, sentia-se fascinada pelo aspecto daquele corpo descuidado e vibrátil, abandonado a movimentos espontâneos, sempre com um ar engraçado no rosto pálido. Mas, sem saber por que, repelia-o, fazendo-lhe compreender sua reprovação. Achava aquela atitude grotesca, ainda mais por se tratar de um homem que era, reconhecidamente, uma pessoa circunspecta.
- E por quê? - perguntou ele novamente. E outra vez, sem transição, recomeçou a dançar de forma abominável, meneando-se todo, sem tirar de cima dela os olhos cheios de perversidade. E, assim bailando, ia-se aproximando, mais e mais, afivelando no rosto aquele ritus sarcástico, que os olhos refletiam; e tê-la-ia beijado e a moça não desse um salto para trás.
- Não! Não - exclamou, verdadeiramente assustada.
- É Cordélia, afinal de contas! - disse Birkin. Úrsula retesou-se como se tivesse acabado de receber um insulto. Bem sabia o que ele pretendia dizer e isso a enchia de confusão.
- E você - gritou-lhe como resposta - por que vem sempre com a alma à boca ate enchê-la de uma maneira horrorosa?
- Para poder cuspi-la mais facilmente - foi a resposta de Birkin, parecendo muito satisfeito com o que dissera.
Gerald Crich, com um propósito estampado no rosto, subia a colina, em grandes passadas, ao encalço de Gudrun. Os bois haviam-se reunido, unindo os focinhos, lá no alto da vertente e contemplavam a cena que se passava embaixo; homens de branco girando em torno de vultos de mulheres. Observavam Gudrun, que avançava lentamente para eles e que parou um momento lançando olhares ao seu perseguidor.
Finalmente, num movimento inesperado, a jovem levantou os braços e atirou-se sobre a manada, toda trêmula; parou uns segundos, deu-se conta do que fizera e pôs novamente os braços no ar, repetindo a corrida, veloz como um relâmpago, ate que os bichos, que estavam a escavar a terra, fugiram, mugindo de pavor, de cabeça esticada. Assim galoparam na tarde que morria, diminuindo na distância, sem se deterem nunca.
Gudrun ficou a olhar a debandada, com ar de desafio, rosto impassível.
- Por que insiste em os assustar? - perguntou Gerald, chegando junto dela.
Não houve resposta. Gudrun voltou o rosto para o outro lado.
- Não é brincadeira que se faça. São perigosos.
- Mas eles fugiram - tornou Gudrun com uma gargalhada.
- Às vezes não fogem. Voltam-se contra quem os assustou.
- Contra mim? - Ela continuava rindo. Gerald não conseguia compreendê-la.
- Ainda outro dia eles mataram uma vaca, com os chifres.
- Que tenho eu com isso?
- Tenho eu. Os animais me pertencem.
- Ah, sim? Então presenteie-me com um deles - disse ela estendendo-lhe a mão.
- Sabe onde se encontram - replicou o rapaz, apontando para a colina. - Dar-lhe-ei um se me permitir que o envie mais tarde.
Gudrun fitou-o de modo enigmático.
- Pensa que tenho medo do senhor e de sua manada?
Ao que Gerald retrucou:
- Que ideia supor tal coisa!
Gudrun continuava a fitá-lo com os olhos sombrios, que começavam a dilatar-se. Inclinou-se para ele e, oscilando o braço, bateu-lhe com as costas da mão no rosto.
- Pronto! - declarou.
E sentiu na alma a volúpia irresistível de ser brutal com Gerald. Reprimiu o medo de que o seu espírito estava cheio para poder proceder da maneira que desejava.
Gerald recuara ao receber a pancada no rosto. Tornou-se mortalmente pálido e uma chama perversa lhe dardejou nos olhos. Não conseguiu falar durante alguns segundos, o coração batendo ate quase rebentar, sob a emoção violenta de uma cólera incontrolável.
- Foi você quem deu o primeiro golpe! - conseguiu dizer finalmente, em voz meiga e baixa, forcejando por arrancar as palavras, que soaram dentro dela como num sonho.
- E hei de dar o último - retorquiu Gudrun involuntariamente, segura e confiante. Gerald ficou silencioso. Não a contradisse.
Gudrun permanecia indiferente, afastada, olhando para longe. No seu íntimo formulava maquinalmente esta pergunta:
"Por que nos conduzimos desta maneira impossível e ridícula?" Mas sentia-se irritada e tentava pôr de lado o problema. Era difícil, no entanto, repudiá-lo por completo.
Gerald, muito pálido, observava-a com atenção. As pupilas cintilavam-lhe de forma intensa; absorvia-se em meditações. De repente, voltou-se e disse, em tom bastante sugestivo:
- A culpa é sua, não acha?
- Minha? Como assim?
Gudrun pôs-se a andar em direção ao lago. Lá embaixo, na água, acendiam-se lanternas, que lembravam fantasmas luminosos flutuando à palidez daquele crepúsculo. A terra cobria-se de escuridão, como se esta fosse uma espécie de laca; lá em cima, o céu leitoso. Longe, no cais, havia pequeninos pontos coloridos. A barca estava iluminada. A sombra acumulava-se em derredor das árvores.
Gerald, branco como um fantasma em seu traje leve, descia a encosta atapetada de grama. Gudrun esperou que ele se aproximasse, depois estendeu-lhe docemente a mão e tocou na dele, dizendo-lhe com meiguice.
- Não fique zangado comigo.
Aquilo envolveu-o como uma labareda. Mal conseguiu balbuciar:
- Não estou zangado! Eu a amo!
Já não podia mais se dominar. Gudrun deu uma risada cristalina, ainda que insuportavelmente carinhosa.
- São modos de encarar os fatos - disse ela.
Tudo aquilo era excessivo para ele: o peso terrível que lhe abafava o espírito, o desfalecimento que o ameaçava, a perda do seu próprio controle.
Agarrou-lhe então o braço, tão fortemente como garras de ferro:
- Estamos entendidos? - perguntou, conservando-a bem presa.
Ela olhou-o fixamente, frente à frente, e sentiu o sangue gelar-se nas veias.
- Sim, estamos - respondeu com mansidão. Parecia narcotizada, a voz saía-lhe monótona, dir-se-ia que era vítima de um encanto qualquer.
Gerald continuou a andar, lado a lado com ela, semi-inconsciente. Mas ao andar, ia recuperando a serenidade. Sofria bastante. Em pequeno, tirara a vida do irmão e fora posto à parte, como Caim.
Encontraram Birkin e Úrsula sentados juntos, conversando e rindo.
- Não sente o cheiro deste pântano? - perguntava ele.
- Não é desagradável - respondeu ela.
- É alarmante.
- Alarmante por quê?
- Ferve e referve, como um rio de trevas e gera constantemente lírios, cobras e fogos-fátuos e progride sempre, sem parar. E nós nunca reparamos nesse rolar contínuo infinito.
- De quê?
- Desse rio de águas negras. Apenas nos interessamos pelo rio prateado da vida, que turbilhona e apressa o mundo para o esplendor e para o céu, desaguando num mar puro e eterno, um céu apinhado de anjos... Mas o primeiro é que é o da realidade.
- Não consigo vê-lo.
- No entanto, é a sua realidade: o rio negro da dissolução. Bem vê que ele rola dentro de nós, como o das águas claras. Rio negro da dissolução! É daí que brotam todas as nossas flores, é daí que nasce a nossa Afrodite, que nascem todas as flores fosforescentes da perfeição sensual, da nossa realidade, do nosso tempo.
- Então a Afrodite é mortal?
- Quero dizer que é o mistério que floresce da própria morte. Quando se suspende a corrente da criação sintética, nós fazemos então parte do processo inverso, o sangue da criação destruidora. Afrodite nasceu do primeiro espasmo da dissolução universal, depois vieram as serpentes, os cisnes, as flores de lodo, que vivem nos pântanos e Gudrun e Gerald... - Nasceram todos pelo processo da criação destrutiva.
- E você? E eu?
- Provavelmente também. Pelo menos, em parte. Que o sejamos na totalidade, não o sei ainda.
- Pretende insinuar que nós somos flores da dissolução, fleurs du mal? Pois não me situo nesta categoria - protestou Úrsula.
Reinou silêncio por algum tempo.
- Não me parece que o sejamos de maneira completa - explicou ele. - Algumas pessoas são flores de corrupção sóbria, como os lírios. Mas deve haver uma ou outra rosa, quente e inflamada. Sabe que Heráclito dizia: "Mais vale uma alma seca..." Percebo muito bem o que isso significa. E você?
- Não tenho a certeza. Mas, se as pessoas são todas flores da decomposição, sem deixarem de ser flores, que diferença pode existir?
- Nenhuma... e toda ao mesmo tempo. A decomposição segue o seu curso, como a criação. É um processo evolutivo e termina no vácuo universal, o fim do mundo, se prefere. E por que esse final não há de ser tão bom como o começo?
- Suponho que não é - observou Úrsula, um tanto formalizada.
- Mas, no fim de contas, é! Implica um novo ciclo da criação, mas não para nós. Se é o fim, então fazemos parte do fim, fleurs du mal, como diz. E, sendo flores do mal, não somos rosas de felicidade. É isto.
- Entretanto, acho que som... uma rosa da felicidade.
- Artificial? - perguntou ele, irônico.
- Não, verdadeira - afirmou ela, ofendida.
- Se somos o fim, não somos o princípio.
- Somos, sim. O começo dimana do fim.
- Sucede-lhe, mas não procede dele. Vem depois de nós mas não se origina de nós.
- Você é mesmo um demônio. Quer destruir todas as esperanças. Quer que sejamos mortais.
- Não. Apenas desejo que saibamos o que somos.
_ Ah! - exclamou Úrsula, indignada. - O que pretende é que conheçamos a morte.
- Tem toda a razão - disse uma voz vinda do escuro. Era Gerald.
Birkin levantou-se. Gerald e Gudrun acabavam de chegar. Acenderam todos os seus cigarros e ficaram calados. Birkin riscara fósforos, que brilharam na escuridão da noite. Tranquilos, à beira do lago, fumavam silenciosamente. As águas pareciam turvas sob a luz que vinha morrer nelas. O ar estava imóvel e ouvia-se um som irreal de banjo ou instrumento semelhante.
Enquanto a claridade dourada ia flutuando e morrendo, a lua ganhava esplendor e parecia sorrir ao longo da sua ascensão. O arvoredo sombrio da outra margem confundia-se na generalidade das trevas. E, no meio daquele negrume universal distinguiam-se luzes disseminadas, que pareciam intrusas. À distância, na superfície do lago, havia riscos pálidos e fantásticos, reflexos descorados de fogo, verdes, vermelhos, amarelos. Sentiu-se uma aragem musical quando a barca, toda iluminada, entrou na sombra imensa, agitando clarões que pareciam seres vivos e exalando sopros de música em haustos breves.
Agora havia luzes por toda a parte: aqui e ali, junto da água, quase imperceptíveis, ou no extremo do lago onde ela jazia leitosa sob a última claridade do céu e onde não havia sombra. Em barcos invisíveis oscilavam lanternas frágeis e solitárias. Ouviu-se um mover de remos e viu-se passar um barco, que transitou da claridade lívida para a escuridão do lado da floresta; as pequeninas luzes pareciam abafar-se, suspensas em globos rubros e graciosos; depois a esteira encarnada ficou sobre as águas, pairando e esmorecendo; constantemente cruzavam o lago aqueles vultos vermelhos e silenciosos, de que mal se percebiam os reflexos raros e fugidios.
Birkin foi buscar lanternas de papel em um dos barcos grandes; mas aquelas quatro sombras brancas reuniram-se para acendê-las. Úrsula pegou na primeira; Birkin protegia o fósforo na concha rosada e brilhante das mãos, introduzindo-o dentro da lanterna, que cintilou, e todos recuaram para admirar aquela lua azul e redonda que pendia do braço de Úrsula, projetando-lhe nas faces uma estranha palidez. A luz vacilou, e Rupert inclinou-se para o foco, o rosto iluminado como o de uma aparição, tendo algo de diabólico e assustador. A moça ficava na penumbra, velada, alongando-se como sombra acima dele.
- Está bem - declarou o homem em voz suave.
A outra levantou a lanterna; um voo de cegonhas riscou o céu turquesa sobre a terra enegrecida.
- É lindo! - exclamou ela.
- Encantador - confirmou Gudrun, que também queria segurar uma das lanternas e erguê-la acesa e esplendorosa.
- Acenda uma para mim - pediu a Birkin, que lhe aproximou um fósforo. Gerald conservava-se ao lado da moça, incapaz de a ajudar. O coração dela pulsava de impaciência, ansiosa por ver a beleza do facho. Era amarelo-esverdeado e projetava flores longas, saindo sombriamente das folhas negras. As cabeças dos quatro destacavam-se na claridade esverdeada, enquanto em torno deles giravam borboletas, enamoradas da luz.
Gudrun soltou um gritinho de entusiasmo, transfigurada de prazer.
- Que beleza! Que beleza!
A beleza penetrava-lhe realmente na alma, e a alegria transbordava. Gerald aproximou-se dela para ver melhor e ficou compreendido na zona luminosa. Ficaram assim muito perto um do outro, ambos admirando o globo cintilante. Gudrun voltou o rosto na direção de Gerald, e os dois apareceram unidos naquele laço de claridade, unidos, envoltos pelo fulgor da lanterna e separados do resto da humanidade.
Birkin foi acender outra lanterna, que Úrsula segurou mais uma vez. Era vermelha, em tom desmaiado, e mostrava caranguejos pretos e algas dispersas num mar transparente que se tornava, para o alto, cor de fogo.
- Aí estão o céu e as águas - disse Birkin.
- Só não tem a terra - comentou ela, a rir, observando-lhe as mãos ativas, que rondavam em volta da luz.
- Estou curiosa de saber como será minha segunda lanterna - exclamou Gudrun em voz vibrante, como se estivesse sozinha e repelisse os outros.
Rupert aproximou-se para acendê-la. Era de bela cor azul escura, com base vermelha; em volta, dentro de ondas brancas, estendia-se um polvo, branco também, cuja cabeça coincidia com o foco da luz. Parecia olhar de modo fixo, friamente.
- É horripilante! - disse Gudrun, com pavor. Gerald soltou uma gargalhada.
- Mas não é de assustar? - insistiu a moça. O outro tornou a rir e lembrou-lhe:
- Troque com a de Úrsula, a dos caranguejos.
Gudrun calou-se por alguns instantes. E depois:
-Você é capaz de suportar essa coisa medonha, Úrsula?
- A cor é linda! - respondeu a irmã.
- Também acho. Mas você suportaria isso pendurado no barco? Não dá vontade de destruí-la agora mesmo?
- Ah! Não. Não tenho vontade nenhuma de destruí-la.
- Então não se importa de trocar com a minha? Gudrun adiantou-se para fazer a troca de lanternas.
- Não me importo nem um pouco - respondeu Úrsula, entregando a sua e recebendo a do molusco assustador.
Mas não conseguiu evitar um certo ressentimento pela maneira com que Gerald e Gudrun se outorgavam aquele direito de escolha.
-Vamos então - disse Birkin. - Vou pendura-las para enfeitar o barco.
Ele e Úrsula dirigiram-se para o barco maior.
- Você vai remar por mim, Rupert - disse Gerald, saindo da sombra pálida da noite.
- Não quer ir na canoa com a Gudrun? - perguntou Birkin. - Seria mais interessante.
Houve silêncio durante alguns segundos. Birkin e Úrsula estavam no escuro e faziam oscilar as lanternas acesas, à superfície da água. Tudo era ilusório no mundo.
- Está bem, então? - perguntou Gudrun.
- Eu gostaria imenso - volveu Gerald. - Mas não posso remar.
- Deixe que eu remo - respondeu Gudrun.
Ele compreendeu que ela desejava tê-lo na canoa sozinho com ela e que se sentia contente de que ele estivesse em seu poder.
Gerald condescendeu, entregando-se numa estranha e hipnótica submissão.
Gudrun entregou-lhe as lanternas, enquanto fixava um remo a popa do barco. O homem acompanhou-a e ficou ao lado dela, com as lanternas balançando de encontro às calças de flanela branca, exagerando a sombra em derredor.
- Dê-me um beijo antes de partirmos - disse a voz masculina emanando da escuridão ambiente.
- Mas por quê? - perguntou a jovem, muito surpresa.
- Por quê? - repetiu ele como num eco.
Gudrun fitou-o durante alguns instantes; depois, chegou-se mais para perto e beijou-o, lentamente, voluptuosamente. A seguir, pegou nas lanternas que ele segurava, enquanto o rapaz parecia desfalecer com o fogo que lhe queimava o corpo.
Puxaram a canoa e lançaram-na ao lago. Gudrun tomou o seu lugar e Gerald deu o impulso.
- Não machucou a mão? - perguntou ela, solícita. - Eu podia ter-me encarregado disso.
- Não, não - replicou Gerald em voz baixa que soava como carícia de beleza inexprimível.
Gudrun observava-o enquanto ele, sentado muito perto, à popa, lhe tocava os joelhos e roçava-lhe os pés. Ia remando muito devagar, desejosa de que Gerald dissesse qualquer coisa significativa. Mas o rapaz mantinha-se calado.
- Sente-se bem? - perguntou ela, amável e carinhosa. Gerald teve um riso brusco.
- Há um espaço entre nós - disse, na mesma voz baixa, inconscientemente, como se não fosse ele quem estivesse falando.
- Não estou bastante perto de você? - tornou a moça, terna e alegre.
- Mas está distante, muito distante - respondeu Gerald. Gudrun ficou silenciosa. E quando voltou a falar, foi com voz vibrante, quase aguda:
- Não poderemos nos aproximar enquanto estivermos sobre as águas. - Ela o acariciava de forma sutil, estranha, e tinha-o em seu completo poder.
No lago, uns doze barcos balouçavam suas lanternas, róseas, semelhantes a luas, que se refletiam como que incendiadas. E, ao longe, a barca a motor arranhava, marulhava, espargia água com as rodas e mostrava sua fileira de luzes coloridas. De tempos em tempos iluminava-se ainda mais o alegre espetáculo com uma profusão de foguetes, girândolas de lacrimas e outros fogos de artifício, que faziam clarear a superfície da água e punham em relevo os barquinhos ao sabor das ondas. Depois voltava a escuridão deliciosa, as lanternas ficavam a brilhar frouxamente e ouvia-se o baque surdo dos remos e trechos soltos de música.
Gudrun remava quase sem sentir. Gerald contemplava, não muito distante, e à frente, o globo azul e o cor-de-rosa que Úrsula segurava e que batiam suavemente um contra o outro enquanto
Birkin lançava os remos, pondo na esteira do barco reflexos irisados e evanescentes. E aquilo fazia-o meditar nas luzes delicadamente coloridas que o barquinho deles deixaria também atrás de si.
Parando de remar, Gudrun olhou em volta. A canoa agitava-se ao mais leve movimento da água. Os joelhos de Gerald estavam muito próximo dos dela.
- Como tudo isto é lindo! - murmurou a moça, encantada. E via-o, a ele, inclinado para trás, de encontro ao vidro do farol. Distinguia-lhe o rosto, embora este não passasse de uma sombra. Dir-se-ia um fragmento de crepúsculo. Parecia tão belo na sua quietude máscula e misteriosa, que o peito de Gudrun arfou de sincera paixão. Era como que uma emanação de força viril, como o aroma das formas harmoniosas e firmes, nítido testemunho da sua presença, que mergulhava em êxtase, fazendo-a estremecer de genuína embriaguez. Gostava de admirá-lo. Naquele momento não pretendia tocá-lo, conhecê-lo mais a fundo na verdadeira substância daquele corpo cheio de vida. Estava tão perto e, no entanto, era intangível! As mãos dela pegavam o remo, como que adormecidas; o seu único desejo era vê-lo, qual sombra através de um cristal, para sentir a essência de sua presença.
- É lindo, sim! - concordou ele, distraidamente.
Ouvia vagos sons à sua volta, as gotas de água pingando da pá do remo, o tamborilar das lanternas chocando-se umas contra as outras, e, de quando em quando, o roçar da saia de Gudrun, como um ruído distante. O espírito quase se lhe submergia, parecia transmudado, confuso, pela primeira vez na vida, com as coisas que o cercavam, ele, que sempre se mantinha atento concentrado e inflexível consigo mesmo. Agora, porém, deixava-se levar, e imperceptivelmente se difundia no universo. Era como que um sono profundo, o mais puro e perfeito de toda a sua existência. Sempre fora tão exigente, tão cauteloso! Mas o sono chegara e a paz, completo abandono de todo o seu ser.
- Devo remar para o cais? - inquiriu Gudrun, preocupada.
- Não reme para lugar nenhum. Reme ao acaso - foi a resposta de Gerald.
- Então avise-me se formos de encontro a qualquer obstáculo - pediu a moça em voz calma, íntima.
- Guie-se pelas luzes - advertiu Gerald.
Deixaram-se ir assim, quase imóveis, silenciosos. E era silêncio o que ele desejava. Mas Gudrun parecia querer uma palavra de garantia.
- Não há ninguém à sua procura? - perguntou, ansiosa por confidências.
- Não. Por quê? - quis saber ele.
- Foi um pensamento que tive.
- Por que me haveriam de procurar? - retomou suas maneiras habituais e acrescentou: - Será que você prefere voltar?
- Não, não quero voltar, juro.
- Está feliz?
- Demais!
Calaram-se ambos. A barca apitava; lá dentro cantavam. De repente, como se a noite se rompesse, ouviu-se um grito espantoso, seguido de uma confusão de gritos, de dentro do lago, e logo após o barulho insuportável da pá das rodas fazendo marcha à ré e agitando a água violentamente.
Gerald ficou atento e Gudrun olhou-o assustada.
- Caiu alguém no lago - disse o rapaz, tentando vislumbrar qualquer coisa dentro da escuridão. - Continue a remar.
- Para a barca? - perguntou ela, angustiada.
- Sim.
- Ajude-me no rumo, sim?
- Continue em frente - disse Gerald. - O rumo está certo. Os gritos continuavam e a confusão que se seguira a eles ecoava horrivelmente nas trevas percorrendo a superfície da água.
- Era só o que faltava acontecer - observou Gudrun, em tom de ironia e de indignação. Ele, porém, mal a ouvia. O lago, quase todo negro, cintilava de bolhas luminosas, no reflexo das luzes, e a barca a motor não parecia estar muito afastada: percebiam-na com o oscilar das lanternas no negrume da noite. Gudrun remava tão rapidamente quanto podia, mas agora, que havia um problema, parecia indecisa em sua tarefa e achava difícil remar assim. Olhou para o companheiro, que investigava as trevas, alheio a tudo o mais, como se só a situação presente lhe interessasse. O coração de Gudrun desfalecia; sentia-se apavorada.
- Não deve ser nada grave - comentou. - Ninguém vai morrer. Seria excessivamente extraordinário e sensacional. - Mas confrangia-se ao notar a face crispada do companheiro, como se fizesse parte da catástrofe e do ambiente de terror.
Ouviu-se então uma voz infantil, os gritos agudos e penetrantes de uma menina:
- Di... Di... Di... Di... Ó Di... Ó Di...
- Diana... - murmurou. - Aquela louquinha não podia deixar de fazer das suas.
Gerald relanceou os olhos pelo barco, achando que não iam suficientemente depressa. Gudrun sentia-se desanimada, sem forças pelo enorme esforço despendido. Mas continuava, ofegante. Distinguiam-se vozes de pessoas que se interrogavam:
- Onde? Onde? Aqui? Não! - Os barcos corriam em todas as direções. As lanternas coloridas quase roçavam a água, seguidas pelos reflexos, em movimentos desiguais. A barca tornou a apitar, por qualquer motivo desconhecido. A canoa de Gudrun cortava velozmente o lago e as lanternas saracoteavam atrás de Gerald.
Ouviram-se novamente gritos infantis, em tom de impaciência e desespero:
- Di... Oh! Di... Di!
Era um som terrível varando a escuridão da noite.
"Seria melhor que você fosse dormir, Winnie", murmurou Gerald consigo mesmo.
Agachara-se e desamarrara os sapatos, arrancando-os dos pés. Depois atirou o chapéu para o fundo do barco.
- Você não pode nadar com essa mão machucada - disse Gudrun, trêmula de emoção.
- Não tem importância!
Já havia despido o paletó, que deixara cair aos pés. De cabeça descoberta, todo de branco, segurava agora o cinto que lhe prendia as calças. Estavam junto à barca, parada, enorme, quase em cima deles, cheia de luzes que lançavam chispas luminosas, serpentinas, línguas de fogo vermelho, verde, amarelo, sobre a água sombria e brilhante, no domínio das sombras.
- Salve-a! Diana querida! Tirem-na daí! Papai! Papai - ouvia-se sempre aquela voz desvairada de criança soluçando. Alguém nadava, com uma bóia. Muito perto singravam dois barcos, com as lanternas erguidas, perscrutando inutilmente em torno.
- Aqui, Rockeley!
- Sr. Gerald - disse o capitão, com voz apavorada. - A menina Diana caiu no lago.
- Quem se atirou para ir buscá-la? - perguntou Gerald bruscamente.
-O Dr. Brindell.
- Onde está ele?
- Não consigo distinguir nada. Todos procuram, mas até agora não se descobriu onde ela está.
Houve um silêncio sinistro.
- Onde foi que ela caiu?
- Acho que foi ali, onde está aquele barco - respondeu o capitão com ar indeciso. - Aquele de luzes vermelhas e verdes.
- Reme ate lá - disse Gerald, calmamente, a Gudrun.
- Salve-a, Gerald! - gritou a voz infantil, sempre ansiosa. O jovem não lhe deu atenção.
- Incline-se para o outro lado - ordenou à moça. Estava de pé, no meio da canoa.
Logo atirou-se à água, perpendicularmente, com a maior agilidade. Gudrun sentiu-se sacudida com violência; apenas compreendia que ele partira e que a lua brilhava frouxamente. Seria possível que Gerald não estivesse mais ali? O terrível sentimento da fatalidade não lhe permitia mais raciocinar. Só sabia que ele desaparecera do seu mundo e que nada mais lhe restava do que a ausência daquele homem. A noite parecia imensa e vazia. As lanternas oscilavam aqui e ali. Na barca falava-se a meia voz. Gudrun ainda ouvia Winifred a soluçar: "Procure, Gerald, procure!" e alguém que tentava consolá-la. Começou a remar de um lado para outro, sem o menor propósito. A superfície da água, terrível, fria, compacta, atemorizava-a de maneira indescritível. Também ele não voltaria nunca mais? Gudrun experimentava a tentação de mergulhar também, para compartilhar com ele daquela situação terrível.
De repente, uma voz a sobressaltou: "Ele está aqui", pensou, e ouviu o ruído de alguém nadando. Dirigiu a canoa para lá; ele, porém, estava perto de outra embarcação, maior. Continuou a remar. Avistou-o: Gerald parecia uma foca ao agarrar-se ao barco. Os cabelos louros tombavam-lhe pelo rosto resplandecente de água. Gudrun percebia-lhe a respiração ofegante.
Gerald içou-se para o barco. Vendo-lhe o corpo claro e esbelto, a moça sentiu vontade de morrer. Oh, a beleza daquele corpo cintilando na sombra, ao erguer-se da água, ágil, forte, constituía um espetáculo demasiadamente impressionante para ela, como que uma visão definitiva. Era fatal, ela o sabia. Terrível desesperança do destino e da beleza, de uma beleza como aquela!
Para Gudrun não era um homem. Era uma fantasia, a maior da sua vida. Admirou-o a sacudir a água do rosto, observou-lhe a atadura da mão e percebeu que nada sobraria dele para ela, que aquele homem estava além do seu alcance: era o fim da sua vida de mulher que se aproximava.
- Apaguem as luzes. Assim se pode ver melhor - ordenou Gerald, de súbito, em voz imperiosa. "Ele pertencia ao mundo dos homens", pensava ela. Inclinou-se e apagou a lanterna. Todas as outras se apagaram, restando apenas dois focos luminosos a bombordo e a estibordo da barca. A noite era de um azul acinzentado. A lua subia no céu e aqui e ali notavam-se perfis dos barcos.
Houve novo mergulho. Gerald entrava de novo na água, enquanto Gudrun permanecia sentada, com o coração opresso; estava sozinha, não em simples isolamento, mas dentro de uma separação horrível e fria.
Pelo ruído das vozes ela percebeu que ele voltara para a barca.
- Levem a barca. Nada tem a fazer aqui. Tragam redes de arrastão. - A voz de Gerald era sonora e decisiva, cheia de ressonâncias.
A barca pôs-se em movimento, imediatamente.
- Gerald! Gerald! - gritou Winifred em voz aflita. O irmão não respondeu. A barca deu uma volta impressionante e deslizou para terra, desaparecendo nas trevas. O ruído das rodas foi diminuindo. Gudrun oscilou levemente na canoa e colocou o remo na água para restabelecer o equilíbrio.
- Gudrun! - Era a voz de Úrsula.
- Úrsula!
As embarcações das duas irmãs ficaram lado a lado.
- Onde está Gerald? - perguntou Úrsula.
- Mergulhou novamente - explicou a outra, tristemente. - E com a mão machucada...
- Preciso levá-lo - disse Birkin
Os barcos balançavam ainda com o remoinho deixado pela barca. As irmãs procuraram avistar Gerald.
- Está ali! - exclamou Úrsula.
Rupert remou ao encontro dele e Gudrun seguiu-o na sua canoa. O rapaz nadava devagar e agarrou-se ao barco com a mão ferida, que não o susteve, escorregando e caindo novamente.
-Por que não o ajuda? - perguntou Úrsula, asperamente, a Birkin.
Gerald reapareceu e Birkin inclinou-se para ajuda-lo. Gudrun observou novamente o nadador surgindo da água; seus movimentos eram pesados e lentos como os de um anfíbio desajeitado. A lua brilhava ainda, incidindo sobre a figura branca e molhada do rapaz. Subiu no barco e tombou para dentro frouxamente. Estava ofegante como um animal que sofre. Sentou-se quase inerte. Dir-se-ia atordoado e trôpego como uma foca; sua aparência era inumana e inconsciente. Gudrun sentiu um arrepio e, maquinalmente, foi seguindo o outro barco. Birkin, sempre calado, rumava na direção do cais.
- Para onde está indo? - perguntou de repente Gerald, como se despertasse.
- Para casa - respondeu Birkin.
- Para casa, não! - exclamou o outro com energia. - Não podemos voltar para casa sem cuidar primeiro do esvaziamento da água. Vamos ver se a encontramos. - As moças estavam assustadas, tão imperativa era a voz dele; não admitia que o contradissesse.
- Não, senhor - discordou Birkin - Você não aguenta mais. - Notava-se na entonação do inspetor o desejo de persuasão. Gerald lutava contra a própria vontade. Birkin continuava a remar, sem o menor desvio, inexoravelmente.
- Por que me obriga? - perguntou Gerald irritado.
Rupert não respondeu. Continuava a remar para terra. Gerald não tornou a falar, tombado como um animal sem voz, arfando, rangendo os dentes, com os braços descaídos em desalento.
Chegaram ao cais. Gerald, molhado, parecia nu ao subir os degraus. Dirigiu-se ao pai, oculto na noite.
- Meu pai! - exclamou.
- Vá para a casa e mude de roupa.
- Não conseguiremos salvá-la, meu pai.
- Ainda há esperanças.
- Receio que não. Não será fácil encontrá-la.
- Vou mandar esvaziar o lago. Vá para casa e cuide de você. Rupert, ajude-o, sim? - acrescentou em voz calma.
- A culpa foi minha. Mas, o que poderia fazer? Deveria ter mergulhado mais vezes...
E afastou-se, descalço, atravessando a pontezinha do cais. Depois começou a caminhar pelas pedras.
- Esqueceu-se dos sapatos - observou Birkin.
- Estão aqui! - gritou Gudrun, que amarrava a canoa. Gerald esperou que os trouxessem. A própria Gudrun veio trazê-los e ele começou a calçar-se.
- No fundo deste lago há lugar para milhares de pessoas...
- Uma já é o bastante - contradisse ela.
Conseguiu a custo enfiar-lhe os sapatos. Ele tremia e batia o queixo enquanto falava.
- Sim, mas há ali um verdadeiro mundo - continuou Gerald. - Frio como o inferno. - Cada vez falava com maior dificuldade, tanto que tremia. - Há qualquer coisa com a minha família... que não está certo... Sempre notei isso.
Dirigiam-se para casa, pela estrada.
- Como é que posso estar aqui? Lá no fundo é diferente... Vão-se embora? Espero tornar a vê-las... Boa noite e muito obrigado. Agradeço-lhes de coração.
As duas moças ainda esperaram um pouco para ver se surgia qualquer esperança. A lua brilhava com uma claridade quase desafiadora; os barquinhos, no escuro, agrupavam-se todos; ouviam-se vozes, gritos abafados, ordens. Gudrun resolveu atirar-se à água. Foi quando Birkin reapareceu.
Fora encarregado de abrir a comporta pela qual se esvaziava o lago.
- Venha comigo - disse ele a Úrsula. - Depois irei com você quando terminar o trabalho.
Passaram pela residência do guarda, onde Birkin recebeu a chave da, comporta e atravessaram uma cancela que separava a estrada do nível superior das águas; havia ali um enorme tanque de pedra que recebia o excesso de água e uma escada, também de pedra, que levava até o fundo do lago. No alto dos degraus ficava o controle da represa.
A noite, puríssima, tinha tons de prata fosca; o reflexo cinzento do luar estendia-se sobre a água, onde os barcos se entrechocavam, balouçantes. Mas o espírito de Úrsula deixava de apreender os fatos, tudo perdera para ela a importância e a realidade.
Birkin segurou a manivela do dique e deu-lhe uma volta, com grande esforço. Os dentes das rodas começaram a abrir-se vagarosamente. Ele continuou a trabalhar, e Úrsula voltou o rosto. Não suportava vê-lo naquela tarefa penosa, abaixando-se e levantando-se agarrado à manivela, como um sentenciado.
Houve então um estrépito de catarata, vindo das trevas, do côncavo sombrio e arborizado, cada vez mais atroador, cada vez mais intenso, ate se tornar em estrondo terrível de massas d'água caindo compactas, simultâneas. Aquele imenso ruído apoderou-se da noite e nele tudo se confundia, tudo se perdia. Úrsula colocou as mãos nos ouvidos e ergueu os olhos para o céu.
- Podemos ir embora? - gritou para Birkin, que observava o lago verificando se baixava de nível. Ele fez que sim com a cabeça. Aquilo parecia fasciná-lo.
Os barquinhos haviam-se aproximado; e a multidão de curiosos comprimia-se ao longo da sebe da estrada, na ânsia de descobrir qualquer coisa. Rupert e Úrsula voltaram à casa do guarda, onde entregaram a chave e afastaram-se depressa daquele lugar. Era quase insuportável o pavoroso ruído da água que se escoava.
- Acha que morreram? - perguntou a jovem em voz alta para poder ser ouvida.
- Acho - respondeu ele.
- É horrível!
Birkin calou-se. Subiram a colina, fugindo mais e mais daquele barulho infernal.
- Isso o amargura, não?
- Nunca lamento os mortos, uma vez que estão mortos. O pior é que se agarram aos vivos e nunca mais os largam.
Úrsula refletiu.
- É certo - concordou. - A morte, em si, não parece ter grande importância.
- Que importa que Diana Crich esteja viva ou morta? - foi o comentário de Birkin.
- Que importa? - repetiu a jovem, espantada.
- Por que importaria? É melhor que esteja morta. Assume maior realidade. Sua lembrança será mais positiva. Viva, não passava de uma criaturinha irritante, negativa.
- Suas teorias são horríveis.
- Não. É preferível que Diana Crich tenha morrido. A vida corria-lhe sempre mal. A morte é esplêndida. Não há nada melhor.
- Mas você não gostaria de morrer - insinuou ela em tom de desafio.
Rupert calou-se por algum tempo. Depois, numa voz que assustou Úrsula, replicou:
- Preferia ter acabado; gostaria de ter experimentado a morte.
- Nunca a experimentou? - inquiriu a moça nervosamente. Andaram um pouco em silêncio, sob as árvores. Finalmente ele disse, vagarosamente, como que receoso:
- Há uma vida que pertence à morte e há outra que não é mortal. Fatigamo-nos da primeira, que é a nossa. Mas quando ela acabar, só Deus o sabe. Desejo o amor, que é semelhante ao sono, como um novo nascimento, vulnerável como uma criança que acaba de vir ao mundo.
Úrsula ouvia, semi-atenta, procurando não ouvir mais. Julgava ter percebido o significado daquelas palavras e ansiava por fugir. Ouvir talvez não lhe importasse: mas não queria partilhar daquelas opiniões. Recusava-se a condescender naquilo que ele pretendia, como se a própria personalidade estivesse em jogo.
- Por que o amor é semelhante ao sono? - perguntou-lhe tristemente.
- Não sei. Mas a verdade é que o amor lembra a morte; é preciso morrer. E, contudo, representa ainda mais do que a vida. Liberta-nos qual criança nua que sai do ventre materno; todas as proteções antigas desaparecem, o velho corpo se despoja. Somos banhados por uma atmosfera diferente, que ainda não havíamos respirado...
Ela continuava a ouvir, forcejando por compreender. Sabia, tão bem como ele, que as palavras por si mesmas nada significam, que não passam de um gesto, mímica como outra qualquer. Eram esses gestos que Úrsula julgava sentir em seu sangue e recuou, ainda que desejasse estar bem perto de Birkin.
- Mas - retorquiu a moça - você não disse que precisava de alguma coisa que não fosse o amor, que ultrapassasse o amor?
Rupert perturbou-se. As suas dissertações acabavam sempre por se tornar confusas Mas era preciso prosseguir. Seja qual for o caminho que tomemos, se quisermos ir para diante, forçoso se torno continuar imperturbavelmente. E é preciso saber exprimir-se, escalar os muros da prisão como os recém-nascidos franqueiam as paredes da cela maternal. Nenhum movimento novo será possível se não se destruir o corpo antigo, deliberadamente, em plena consciência, em luta pela evasão.
- Não tenho necessidade do amor - declarou ele. - Não preciso nem conhecer você. O que é preciso é sair de mim mesmo, assim como você necessita se perder, para que nos encontremos diferentes do que somos. Não se devia falar quando se está cansado ou infeliz. Representa-se o Hamlet e isso tem um ar de falsidade. Não creia em mim senão quando eu mostrar um pouco de orgulho sadio e de indiferença. Detesto meu aspecto quando estou sério.
- Por que não pode ser sério? - perguntou ela.
Birkin meditou alguns instantes e depois replicou, um pouco rabugento.
- Não sei. - Deram alguns passos em silêncio, discordando, intimamente, um do outro. Rupert parecia indeciso, como que desorientado.
- É singular - disse a jovem, pousando-lhe bruscamente a mão no braço, num impulso de simpatia. - É singular que voltemos sempre a este assunto. Creio que nos amamos, porém, à nossa maneira.
- É verdade - confirmou Birkin. - E muito!
Úrsula riu-se de contentamento.
- Você tinha de seguir o seu próprio destino - observou apenas para o irritar. - Não confia em mais nada.
Rupert riu-se também, brandamente, e abraçou-a.
- Tem razão - disse ele cheio de ternura.
Depois beijou-lhe a face, a testa, lentamente, meigamente, numa espécie de felicidade circunspecta, que a surpreendeu e para a qual não encontrava resposta. Eram beijos doces e insensatos, mas perfeitos na sua tranquilidade. Úrsula, porém, esquivava-se. Eram como estranhas borboletas, suaves e silenciosas, pousando sobre ela e vindas das trevas da sua alma. Achava-se pouco à vontade. Recuou.
- Parece que vem alguém...
Inspecionaram a escuridão e puseram-se de novo a caminho de Beldover. Depois, subitamente, para provar que não era uma mulher fútil afetando recato, a moça parou e abraçou-o com força, apertando-o contra si e cobrindo-lhe o rosto de beijos, beijos ardentes de paixão. Apesar da sua maneira original de ver as coisas, Birkin sentiu as veias latejarem, como qualquer mortal.
- Não, isso não... - murmurava ele baixinho, no primeiro sentimento de encanto embalador, que sucedeu à violência de paixão alastrada por todo o corpo, depois que ela o atraíra. Mas, daí a pouco, Rupert não era mais que uma chama ardente de inextinguíveis desejos, embora no íntimo dessa mesma chama ainda cintilasse uma angustiosa ansiedade de outra coisa qualquer. Esta, entretanto, desvaneceu-se e o homem nada mais quis senão a ela, com uma necessidade que parecia inevitável como a morte, superior a todos os raciocínios.
Finalmente, satisfeito e cansado, repleto e destruído, despediu-se e foi para casa, vagueando através do negrume da noite, devolvido ao antigo fogo da paixão devoradora. Ao longe, muito ao longe, ouviam-se lamentos na sombra. Que importância tinham eles? Que poderia importar agora, depois daquela aventura triunfante e recente do amor físico, que vinha iluminá-lo como um clarão mágico da sua vida? "Ia-me tornando um morto-vivo, nada mais do que um orador ambulante", pensou ele, contente, já desdenhoso do seu outro eu. No entanto, distante, em qualquer lugar, aquele outro "eu" estava à espreita.
Os homens ainda dragavam o lago quando Birkin passou. Ouviu a voz de Gerald em uma das margens. A água sussurrava, o luar continuava belo, as colinas, além, pareciam ilusórias. O lago esvaziava-se. Pairava um cheiro úmido, enchendo o ar da noite.
Lá em cima, na casa de Shortlands, viam-se luzes acesas, como se estivessem todos de pé. No cais, um médico, pai do jovem doutor que também se afogara ao tentar salvar Diana. Estava calado, à espera. Birkin parou e ficou observando tudo. Gerald vinha chegando num barco:
- Ainda está aqui, Rupert? - perguntou. - Não conseguimos encontrá-los. O fundo, como você sabe, é escarpado, a água acumula-se entre duas vertentes quase a pique, onde se ramificam em pequenos vales e só Deus sabe para onde eles podem ter sido atirados. Se o fundo fosse plano seria mais fácil. Pode-se dragar, mas de que adianta?
- É necessário que você permaneça aqui? - perguntou Birkin. - Não seria melhor ir-se deitar?
- Deitar? E acha que eu poderia dormir? Temos de encontrá-los.
- Os homens fazem esse serviço, sem a sua presença. Por que insiste, Gerald?
Gerald olhou para Rupert, e pôs-lhe a mão, afetuosamente, no ombro, dizendo:
- Não se preocupe comigo. Preocupe-se com a sua saúde. Como se sente?
- Bem. Você é que está exausto.
Gerald ficou calado por alguns instantes. Depois, retorquiu:
- Que tenho de melhor a fazer senão isso?
- Deixe essa tarefa. Você impõe-se esses horrores e amarra ao pescoço uma pedra de terríveis recordações. Venha comigo.
- Uma pedra de recordações! - repetiu Gerald. Tornou a descansar a mão no ombro do amigo e continuou: - Você tem uma maneira de dizer as coisas, Rupert!
O coração de Birkin oprimiu-se. Estava irritado consigo mesmo pela mania de falar daquela maneira.
- Venha descansar, venha - insistiu, procurando trazer o outro como quem conduz um homem embriagado.
- Não - respondeu Gerald tranquilamente, continuando a abraçar Birkin. - Agradeço-lhe muito, Rupert. De qualquer modo, eu voltaria... Compreende? Quero ver ó fim de tudo isto. Viria depois, esteja certo. Sim, seria preferível ir com você, conversar... a permanecer aqui, não há dúvida. Você é muito mais valioso do que imagina, Rupert.
- Em que valho mais do que imagino? - perguntou o outro, irritado. A mão de Gerald pesava-lhe sobre o ombro. Ele não queria explicações; só queria que o amigo se desviasse daquele quadro desolador.
- Um dia eu lhe digo - respondeu Gerald com afabilidade.
- Então venha comigo. É preciso vir.
Houve uma pausa intensa, dramática. Birkin admirava-se de que o coração lhe palpitasse tão fortemente. Os dedos de Gerald, comunicativos e nervosos, iam apertando as costas de Rupert, enquanto ele dizia:
- Não vou, quero ver o fim dos trabalhos. Obrigado. Compreendo a sua intenção. Mas ambos temos razão, eu e você.
- Devo ter. Quanto a você, duvido.
E Birkin foi-se embora.
Só pela madrugada foram encontrados os corpos dos dois afogados. Diana tinha os braços apertados em volta do pescoço do rapaz; assim o estrangulara.
- Matou-o - comentou Gerald.
A lua acabara de descer no céu, desaparecendo. O lago estava três quartos vazio; viam-se as margens lamacentas e feias, cheirando a água estagnada. A manhã vinha clareando frouxamente, por trás da colina do nascente. Através do açude, a toalha líquida ainda escapava.
Cantavam os pássaros no despertar do dia e os outeiros além do lago triste brilhavam entre a névoa quando se pôs a caminho de Shortlands a fúnebre procissão. Os homens conduziam os cadáveres numa padiola. Gerald atrás e os dois velhos de barbas grisalhas, pais das vítimas, seguiam em silêncio. Dentro da casa, toda a família, em vigília. Foi preciso alguém ir prevenir a mãe, que estava no quarto. O médico, às ocultas do público, esforçou-se na tentativa de reanimar o filho, até que, exausto, teve que desistir.
Em todo o distrito reinava, no domingo seguinte, um silêncio impressionante. A população mineira sentiu a catástrofe como se ela a tivesse atingido diretamente: mostravam-se tão penalizados como se tivesse morrido alguém de suas famílias. Uma tragédia assim em Shortlands, a casa mais ilustre da região! Uma das meninas teimando em dançar no convés da barca, muito senhora de si, caíra ao lago, em plena festa, com o par, aquele doutor tão moço ainda! Por toda a parte, naquele domingo, os mineiros erravam, discutindo a tragédia. Durante as refeições, em suas casas, tinham com eles uma presença estranha. Era como se o anjo da morte por ali vagasse: flutuava no ar uma sensação de sobrenatural. Os homens andavam excitados; as mulheres, com ares solenes, algumas chorosas. As crianças, a princípio, divertiram-se com a novidade. Havia na atmosfera qualquer coisa de intenso, de fantástico. As crianças apreciaram-na e saborearam a emoção geral.
Gudrun tivera a ideia disparatada de ir consolar Gerald. Pensou muito no que lhe poderia dizer a fim de reconfortá-lo. Estava aflita, consternada, mas pôs de lado seus sentimentos para imaginar como se comportaria frente ao rapaz, como representaria o seu papel. Como o desempenharia? Isso era mais importante do que tudo.
Úrsula sentia-se profundamente enamorada de Birkin, e incapaz de pensar em qualquer outra coisa, insensível ao trágico acidente; porém, o aspecto estranho da sua fisionomia era a máscara da perturbação. Sempre que podia, refugiava-se, sozinha, e só desejava ver outra vez aquele homem. Gostaria que ele viesse a sua casa - não admitia outra hipótese senão a de que ele viesse imediatamente. Esperou-o e naquele dia não saiu à rua; a todo momento julgava ouvir baterem à porta. De minuto a minuto, automaticamente, corria à janela. Era forçoso que ele viesse a caminho.


Capítulo XV
Noite de domingo
O dia foi passando, a esperança de Úrsula fenecendo, e naquele vazio começou a penetrar o desespero. A paixão parecia esgotá-la, nada acontecia. Ficou sentada, em estado de completa prostração, mais difícil de tolerar do que a própria agonia.
"Se não acontecer o que espero - pensou ela, perfeitamente lúcida em meio ao sofrimento - nada mais me resta senão morrer. Minha vida atingiu o seu limite."
Continuou triste e aniquilada, envolta nas trevas que pressagiavam o fim. Verificava agora quanto a sua existência se aproximara pouco a pouco daquela extremidade sem futuro de onde era preciso saltar, como Safo, para o desconhecido. A certeza do fim iminente perturbava-a como um ópio. Sombria, com os pensamentos já esgotados, ela só não ignorava uma coisa: a proximidade da morte. Percorrera todo o caminho que conduz a ela. Sabia o que devia saber, experimentara o que devia experimentar, atingira uma espécie de amarga maturidade; só lhe faltava tombar da árvore, no abismo. É mister que cumpramos o nosso destino, ate a derradeira hora, que prossigamos na nossa aventura ate o seu termo. O último passo estava prestes a ser dado. Era essa a situação de Úrsula. A certeza de tudo trazia-lhe à alma uma certa paz. Afinal, quando preenchemos a nossa existência, o melhor é morrer, exatamente como um fruto maduro que se desprende do ramo. A morte é a consumação total, o término da aventura terrena. É uma consequência da vida. Sabemo-lo bem enquanto estamos vivos; que necessidade temos de pensar no além? Nada se pode saber quanto ao que vem depois disso. Já é bastante que a morte seja uma grande experiência definitiva. Por que indagar o que há a seguir? Mais vale morrer, pois a única provação que podemos experimentar é a morte, a cujo limiar sempre chegamos. Se hesitarmos, se contornarmos o obstáculo, nada mais fazemos do que rondar a porta, numa ansiedade sem mérito. Diante de nós, como diante de Safo, estende-se o espaço ilimitado. É lá o fim da viagem. Teremos coragem de prosseguir? Declararemos a nossa falta de ousadia? Em frente, a destruição; sigamos sempre, seja qual for o seu significado. Se há necessidade de se dar o derradeiro passo, por que nos determos no penúltimo? Para que discutir sobre este? Só temos certeza do último: o da morte.
"Morrerei, morrerei dentro em pouco", dizia Úrsula a si mesma, lúcida no seu êxtase, lúcida, calma e segura. Mas em algum lugar do seu íntimo havia um lamento amargo e desesperado. Era melhor não dar-lhe atenção. Era forçoso seguir o espírito infalível, não cerceá-lo com o medo, não evitar a saída nem ouvir as vozes dos covardes. Se o desejo mais profundo é o de penetrar na obscuridade da morte, como atraiçoar a maior verdade em holocausto a uma ilusão?
"Deixemos vir o fim", continuava Úrsula a pensar. A decisão estava tomada. Não se tratava de destruir a própria vida: jamais se suicidaria, achava aquele processo indigno e violento. O problema era saber qual o passo a dar. Esse seria o caminho para a morte. Seria mesmo assim? Ou então?
O turbilhão de pensamentos levou-a à inconsciência, e ela ficou sentada perto de fogo, como que adormecida. Depois a ideia tornou a despertar. Oh, o reino da morte! Seria ela capaz de o atingir? Certamente! Era como no sono. Ela já estava acostumada. Durante algum tempo lutara, resistira. Agora era chegada a hora de se abandonar, de não se opor de modo algum.
Como em um arrebatamento espiritual, Úrsula rendeu-se, cedeu, e tudo se tornou escuro. Pôde sentir, nessas trevas que a envolviam, a presença terrível do corpo, a angústia inexprimível da decomposição - a única coisa insuportável - a pavorosa náusea de dissolver-se dentro de si própria.
"O corpo terá ligação íntima com a alma?", perguntava-se. Então compreendeu, na clarividência final, que a carne é somente uma exteriorização do espírito; a transmutação do espírito integral pode ser perfeitamente a do corpo físico, salvo se quisermos nos libertar do ritmo da existência, se nos imobilizarmos e ficarmos estáticos, deslocados da vida, separados da nossa própria vontade. Antes morrer do que suportar uma vida mecânica, apenas uma série de repetições. Morrer é marchar sobre o invisível. Morrer é também alegria - alegria de submeter-se ao que ultrapassa o conhecido, entrar no desconhecido absoluto. É uma festa! Mas existir-se automaticamente, sujeito apenas aos movimentos da vontade, permanecer à margem do desconhecido, é vergonha e ignomínia. Não é assim na morte e sim na vida não vivida. A vida pode ser, na verdade, ignominiosa e vergonhosa para a alma; mas a morte, nunca. A morte, como o espaço sem limites, está acima da nossa conspurcação.
O dia seguinte seria segunda-feira. Segunda-feira, começo de outra semana de escola! Mais uma semana estéril de pura rotina, de atividade automática. Não seria a aventura da morte infinitamente preferível? Não seria infinitamente mais desejável e mais nobre do que semelhante existência? Vida de árida rotina sem significação interior nem realidade. Quanto era sórdida e vergonhosa para a alma! Muito mais decente e digno seria morrer. Não poderia suportar por mais tempo a infâmia daquela rotina idiota, daquela nulidade existencial. Mesmo na morte se colhia o fruto maduro. Úrsula estava farta de esperar. Onde seria possível descobrir a vida? As flores não se abrem sobre a mecanização enferrujada, o céu não se torna azul sobre uma atmosfera rotineira, a banalidade do dia-a-dia sufoca-nos por falta de ar. E a existência era sempre um mecanismo sem novidade, à margem das realidades possíveis. Não havia o que descobrir na vida, sempre a mesma em todos os países, em todos os povos. A única saída era a morte. Então daquela abertura, podia-se avistar o firmamento vasto e misterioso do não ser, com exaltação, como se uma criança olhasse pela janela, invejando a completa liberdade do lá fora! Mas Úrsula já não era criança, sabia que a sua alma estava prisioneira no edifício sórdido da vida e que o único meio de se evadir residia na morte.
Como seria bom! Que alegria pensar que a humanidade, fizesse o que fizesse, não poderia apropriar-se do reino da morte para o aniquilar! Já haviam transformado o mar em uma estrada de sangue, conspurcada pelo comércio, disputado palmo a palmo, como o chão enlameado de uma cidade. Tinham reivindicado o ar, partilhado a sua posse, dividindo-o entre vários donos que nele se digladiavam impelidos pela cobiça. Tudo agora era emparedado, fechado, e nas muralhas intransponíveis é que teríamos de cruzar o labirinto da vida.
Todavia, no reino imenso, ilimitado e sombrio da morte, a humanidade seria destinada ao desprezo. Na terra, podiam fazer tudo quanto quisessem - multidão de deuses insignificantes. Mas, no país das trevas, eles só mereciam desdém, retornando à sua própria e vulgar imbecilidade.
Que bela era, pois, a morte, grande e perfeita! Como era bom contemplá-la! Lá a gente se despojaria de todas as mentiras, afrontas e misérias de que regurgita a vida, puro banho de pureza em que se entrava ignorado, sem precisar responder a perguntas humilhantes. Alguma coisa a esperar!... Então, o caráter puro e inumano da morte não seria uma felicidade total?
Fosse qual fosse a vida, ela jamais poderia suprimir a morte inumana e transcendente. Oh! Deixemo-nos de perguntas sobre o ser e o não ser! O saber é pecha da humanidade, e da morte nada sabemos, deixamos de ser homens. A satisfação que essa ideia nos proporciona compensa toda a amargura do conhecimento e toda a sordidez do nosso gênero. No além não somos humanos e não temos percepções. Esta esperança constitui o nosso patrimônio, encaramo-la como herdeiros que estivessem para atingir a maioridade.
Úrsula estava muito calma, inteiramente esquecida, sentada sozinha junto à lareira da sala de visitas. Os adultos tinham ido para a igreja; as crianças brincavam na cozinha. E a professora estava recolhida no mais íntimo do seu ser.
Bateram à porta e ela sobressaltou-se. As crianças vieram da cozinha, correndo, com a notícia.
- Chegou alguém!
- Eu ouvi - respondeu ela. Parecia surpresa e quase assustada. Não se atrevia a ir ver quem era.
Birkin estava no umbral da porta e usava uma capa impermeável que o cobria ate quase as orelhas. Chegara finalmente, agora que ela se considerava fora deste mundo. Percebeu então que atrás dele se estendia uma noite chuvosa.
- Ah! É você?
- Ainda bem que a encontro em casa - disse Birkin em voz baixa, enquanto entrava.
- Foram todos à igreja.
O recém-chegado tirou a capa e pendurou-a. As crianças espiavam-no, curiosas.
- Vão para o quarto, Billy e Dora - ordenou Úrsula. - Mamãe não deve tardar e se não os vir deitados é capaz de se zangar.
As crianças, tomando súbitos ares angelicais, retiraram-se sem abrir a boca. Birkin e Úrsula foram para a sala. O fogo estava apagado. O inspetor olhou para a moça e admirou sua beleza, o brilho dos olhos grandes; seu coração regozijou-se. Achava-a diferente sob a luz daquele interior.
- Que foi que você fez o dia todo?
- Fiquei aqui, sentada, sem me mexer.
Ele fitou-a. Sim, parecia diferente. Sentia-a longe dele. Estava isolada, como se um halo a envolvesse. Ambos conservaram-se silenciosos, ao clarão do candeeiro. Birkin conjecturava se devia partir, achava que não deveria ter vindo. Mas não se resolvia a ir-se embora, embora sentisse ser demais ali e que ela continuava ausente em seu isolamento.
Ouviram-se as vozes dos dois pequenos chamar baixinho, do outro lado da porta, tímidos e excitados.
- Úrsula! Úrsula!
Ela levantou-se e foi abrir a porta. As crianças surgiram, de camisola de dormir, com os olhinhos muito abertos e as carinhas de anjo. Naquele momento representavam à perfeição o papel de meninos obedientes.
- Você vai por-nos na cama? - perguntou Billy, baixinho.
- Portaram-se bem? - perguntou Úrsula com meiguice. - Venham dar boa noite ao Sr. Birkin.
As crianças, descalças, tímidas, penetraram na sala. O rosto de Billy era redondo e risonho, mas via-se em seus olhos azuis a decisão de ser ajuizado; Dora, que olhava de esguelha por baixo da farta cabeleira loura, ficara um pouco atrás como uma Dríade pequenina a quem faltasse a coragem.
- Querem dar-me boa noite? - perguntou Birkin, em voz repentinamente branda e carinhosa. Dora recuou como folha levada pelo vento; mas Billy adiantou-se, de boa vontade, sem pressa, estendendo o rosto para receber um beijo. Úrsula viu os lábios grossos de Rupert tocarem de leve o rosto do menino e a mão dele acariciar-lhe as faces coradas, num gesto de ternura. Ninguém falou. Billy parecia um querubim: Birkin era o anjo maior, a contemplá-lo, protetor.
- E você, não vem dizer boa noite? - perguntou Úrsula à menina. Dora recuou mais ainda, como se não desejasse o menor contato.
- Por que não vem falar com o Sr. Birkin? Ele está esperando. - Mas a menina continuava a se afastar.
- Você é uma tolinha!
Birkin sentia na menina uma antipatia e uma desconfiança que se lhe afiguravam incompreensíveis.
- Venha - insistiu Úrsula. - Venha antes que mamãe chegue.
- Quem é que vai ouvir as nossas orações? - perguntou Billy.
- Quem você quiser.
- Você vem?
- Sim, posso ir.
- Úrsula!
- Que é, Billy?
- Você disse quem você quiser?
- Disse.
- O que é quem?
- É um pronome relativo.
Ele teve um instante de silêncio, para refletir, e depois confirmou:
- Ah, sim!
Birkin, sentado junto à lareira, sorria sozinho. Quando Úrsula voltou, encontrou-o na mesma posição, imóvel, com os cotovelos apoiados nos joelhos. Notou que parecia tranquilo, sem idade, espécie de ídolo de uma religião qualquer. Ele olhou-a por sua vez, e o rosto, pálido e irreal, parecia cintilar de uma brancura quase fosforescente.
- Sente-se bem? - perguntou a jovem, tomada de um receio indefinível.
- Não pensei nisso.
- Mas não sabe se está bem ou mal?
Birkin fitou-a com os seus olhos sombrios e vivos e percebeu a excitação em que ela se encontrava. Mas não respondeu à pergunta.
- É preciso pensar para se saber uma coisa tão simples? - insistiu a professora.
- Nem sempre - foi a resposta.
- Isso não é mau?
- Mau?
- Sim, é um pecado ter tão pouca percepção do corpo que seja preciso pensar para saber se ele está bem ou doente.
Birkin fitou-a inexpressivamente.
- Talvez - concordou.
- Por que não vai para a cama? Tem o aspecto de um fantasma.
- Causo tão má impressão assim? - inquiriu ele com ironia.
- Sim, desagradável e assustadora.
- Ah! Que pena.
- E está chovendo! Que noite horrível! É imperdoável expor-se dessa maneira. Tem muito pouco cuidado com a sua saúde.
- ... Pouco cuidado com a saúde - repetiu ele, inconscientemente, como um eco.
Úrsula calou-se e o outro também.
Os restantes membros da família chegaram da igreja, e Rupert teve de enfrentar as moças, primeiro, depois a mãe, Gudrun e o pai.
- Boa noite - disse Brangwen um tanto surpreendido. - Veio visitar-me?
- Não - respondeu Birkin. - Nada de especial, quero dizer. O dia foi terrível e pensei que não se importariam se eu aparecesse.
- Foi um dia terrível - confirmou a Senhora Brangwen. Naquele momento ouviram-se as crianças chamando do andar superior: - Mamãe! Mamãe! - Ela ergueu o rosto e falou alto: - Já vou, Daysie. - Depois, dirigindo-se a Birkin: - Não há nada de novo em Shortlands, suponho... Ah! - suspirou, acrescentando ainda: - Coitados, nem quero pensar nisso.
- Passou lá o dia, calculo - observou o pai.
- Gerald foi tomar chá comigo, e depois acompanhei-o a casa. Estão todos agitados, é claro...
- Pensei que nunca se conformassem... - observou Gudrun. Pelo contrário - foi a resposta de Birkin.
- Oh, bem sei: ou tudo ou nada - atalhou Gudrun com um pouco de desprezo.
- Eles se julgam obrigados a adotar uma atitude antinatural - explicou Birkin. - Quando sofremos um desgosto, o melhor seria cobrir o rosto e escondermo-nos, como se fazia antigamente.
- Também acho - disse Gudrun, vermelha e excitada. - Que pode haver de pior que essa dor em público? Haverá coisa mais horrível, mais falsa? Se a dor não for recatada e oculta, que dor poderá ser?
- Exatamente - asseverou Rupert. - Cheguei a ter vergonha de vê-los falar de forma lúgubre e convencional, certos de que não poderiam ser simples nem naturais.
- É - disse a Senhora Brangwen, aborrecida com aquelas observações críticas. - Mas não é fácil suportar um desgosto dessa natureza.
E subiu as escadas para ir ver as crianças.
Birkin ainda ficou alguns minutos, e, depois, despediu-se. Após a saída dele, Úrsula sentiu que o odiava, que o cérebro se enrijecia de raiva. Sua natureza inteira revoltava-se, e aumentava sua aversão por aquele homem. Não compreendia bem o que sentia. O aborrecimento apoderava-se dela de maneira angustiosa, mas nítida e pura, impondo-se sem que ela pudesse resistir, ultrapassando-a até. Era um domínio absoluto contra sua vontade. Durante dias continuou possuída daquele ódio estranho. Ofuscava tudo o que sentira até então, parecia arrancá-la do mundo, levando-a para uma região terrível onda nada subsistisse da sua vida anterior. Estava inteiramente perdida e perturbada, como que morta na sua própria existência.
Na verdade, era incompreensível e ate irracional! Não sabia por que motivo o odiava tanto: a aversão era como que uma coisa abstrata. Percebia apenas, sob intensa emoção, que estava subjugada por aquele sentimento. Birkin era o inimigo, valioso como uma jóia, duro como um diamante, símbolo da rivalidade.
Pensava no rosto dele, pálido e finamente modelado, naqueles olhos onde havia uma vontade de se defender, constante e sombria; e apertava a fronte com as mãos, pensando se não estaria louca - tão perdida se sentia, ardendo numa chama ardente de pura abominação.
Esse ódio não era concreto: não o detestava, a Rupert, por motivo determinado; não queria mais vê-lo nem manter qualquer espécie de relacionamento. Tratava-se de um ódio verdadeiro, definitivo, inexprimível por palavras, como um raio de autêntica hostilidade, muito luminoso, que não somente a destruísse, mas a renegasse inteiramente, revogando-a por completo ao universo. E via Birkin como uma estranha pedra cintilante cuja existência definisse a não existência dela. Ao saber que estava novamente enfermo, ficou ainda mais zangada, se é que isso era possível. Sentiu-se atordoada, aniquilada, mas não pôde subtrair-se àquele sentimento de ódio. Não conseguia esquivar-se a essa transfiguração de rancor que se apossara dela completa e irremediavelmente.


Capítulo XVI
De homem para homem
Birkin jazia inerte, contrariando a tudo e a todos. Sabia como estava perto de quebrar-se o vaso que continha a sua vida - embora ele parecesse tão forte e tão eterno. Mas não se importou. Antes mil vezes desafiar a morte a ter de aceitar uma existência que não o atraía. Apesar disso, era preciso persistir, persistir, persistir sempre, até se sentir repleto.
Tinha a certeza de que Úrsula se submeteria a ele. Compreendia que sua felicidade dependia dela, mas preferia morrer a aceitar-lhe o amor assim oferecido. Aquele velho processo de amar afigurava-se-lhe terrível escravidão, uma espécie de recrutamento militar obrigatório. O que o amor representava para ele, não o compreendia bem, mas a ideia que fazia do casamento, das crianças, da promiscuidade familiar, da horrível intimidade das satisfações domésticas e conjugais, sempre lhe causara grande repugnância. Precisava de algo mais puro, mais livre, mais fresco. Aborrecia-o o convívio ardente e estreito entre marido e mulher e não o seduzia a maneira como a gente casada se fechava na cela de sua aliança exclusiva, ainda que justificada pelo amor. Não via senão uma comunidade de casais desconfiados, isolados em suas moradias ou em seus quartos, sempre dois a dois, sem nenhum futuro, sem nenhum propósito, desinteressante calidoscópio de pares, no fundo desunidos, egoístas, sem o menor significado real. Na verdade, detestava ainda mais a mancebia do que o matrimônio, pois nesse tipo de relações não via senão a união de dois seres que reagiam à lei. E ele considerava a reação ainda pior do que a ação.
De modo geral, abominava os sexos, que lhe pareciam constituir uma limitação. Era o sexo que transformava o homem na metade fracionada do par, e a mulher na outra metade. Desejaria ser um ente completo e que a mulher, por sua vez, o fosse também; pretendia que a sexualidade descesse ao nível dos outros apetites, encarada como um processo funcional e não um fim em si mesma. Admitia a união dos sexos. Mas, além disso, preconizava uma conjunção mais alta, na qual o homem tivesse personalidade completa, bem como a mulher; seriam dois seres autônomos, constituindo cada qual a liberdade do outro e equilibrando-se como os braços de uma balança, como dois anjos ou dois demônios.
Desejava, enfim, ser livre, não sob o constrangimento de qualquer necessidade física, de nenhum desejo a satisfazer, pois o desejo e a aspiração encontrariam o seu objeto sem essa tortura, tal como num país abundante de águas não se sente a sede, pois a saciamos sem o perceber. Queria estar ao lado de Úrsula perfeitamente livre, tanto como consigo próprio, isento, puro, indiferente, mas equilibrado, cada um deles em seu pólo magnético. Abominável - até a loucura - o amor que submerge, que lança as garras, que confunde tudo.
Considerava ainda a mulher como um ser voraz, cobiçoso de posse, egoísta no amor! Dominava, dirigia, pretendia exclusividade total. O homem via-se obrigado a conceder-lhe tudo, à Mulher com maiúscula à Mãe Universal, da qual todas as coisas procedem e a quem tudo deve ser afinal restituído.
Esta ideia enchia-o de uma fúria insana, a calma assunção da Magna Mater, aquele desejo de ser senhora de tudo pela razão de haver concebido a vida no seu seio. O homem pertencia-lhe pelo fato de a mulher ter dado à luz. Como Mater Dolorosa, trouxera-o ao mundo, mas como Magna Mater, reclamava-o de novo para si - alma, corpo, sexo, pensamento e o resto. Birkin tinha horror à Magna Mater, achava-a detestável.
A mulher, nessas condições, tomava atitudes arrogantes. Eis, por exemplo, Hermione. Hermione humilde, submissa, o que fora sempre senão uma Mater Dolorosa, na sua subserviência, reclamando com horrível, insidioso orgulho, com tirania feminina, os seus direitos ao homem que havia concebido debaixo de sofrimento? Em nome desse mesmo sofrimento e humildade, prendia-o, acorrentava-o, fazia-o cativo para sempre.
E Úrsula? Seria a mesma coisa, ou o inverso? Apresentava-se como rainha perigosa e arrogante, qual a abelha-mestra de quem toda a colônia descendesse. Rupert recordava-se do fulgor dourado daqueles olhos, da sua atitude superior, se bem que inconsciente. Estava preparada para se render ao domínio de um homem, mas apenas se se sentisse segura desse homem, de o poder adorar como a mãe adora o filho, no culto da posse incontestada.
Intolerável essa posse nas mãos de uma mulher! Nós nos devíamos considerar sempre como fragmentos esfacelados da mulher, o sexo era a cicatriz ainda dolorida da laceração. O homem precisava se unir à mulher, antes de ter o seu verdadeiro lugar no mundo, antes de garantir a sua integridade. E por quê? Por que nos haveríamos de intitular fragmentos separados de um todo, nós, homens e mulheres? A verdade não pode ser essa. Não somos fragmentos separados de um todo; somos pedaços de coisas que estiveram unidas e que, isoladas, se tornaram mais claras e mais puras. O sexo é o que resta em nós dessa mistura, dessa confusão. A paixão indica a separação ulterior dessa mistura, que deu ao homem a parte viril e à mulher a parte feminina, ate que um e outro se tornem puros e perfeitos como anjos, que a união dos sexos, no seu sentido mais nobre, seja ultrapassada, deixando dois seres autônomos juntos numa constelação, como se fossem estrelas.
Outrora, antes da existência dos sexos, estávamos misturados, todos os entes eram mistos. O processo de individualização teve como resultado a polarização sexual: o feminino foi para um lado, o masculino para outro. Mas a divisão ficou imperfeita. E assim evolui o nosso ciclo universal. Virá, contudo, a hora em que nos mostremos homens e mulheres completos, apesar das diferenças. O homem será unicamente um homem e a mulher meramente uma mulher: polarização impecável. Acabará o terrível amálgama, este confuso auto-sacrifício do amor, ficando apenas a dualidade dos pólos, cada qual isento de ser influenciado pelo outro. Em cada um o indivíduo será da maior importância e o sexo subordinado, perfeitamente equilibrado. Cada qual representará um ente simples e destacado, regido por leis próprias. O homem com a sua liberdade e a mulher com a que lhe compete. Um e outro reconhecerão como é perfeito o circuito em que o respectivo sexo se limita e admitirão as diferenças de natureza que em si ocorrem.
Assim meditava Birkin durante sua doença. Não sé aborrecia por estar doente, de tempos em tempos, para ficar de cama. Logo recuperava a saúde e os pensamentos se tornavam nítidos e calmos.
Enquanto estava acamado, Gerald veio visitá-lo. Os dois sentiam profunda afeição um pelo outro, embora eivada de algum constrangimento. Os olhos de Gerald eram vivos, inquietos; vigia sempre impaciente, como se necessitasse de permanente atividade. Vestia luto, conforme a praxe, e mostrava-se impecável como sempre. O cabelo, de tão louro, quase parecia branco; o rosto, ardente e corado; o corpo, enérgico como o dos homens do Norte.
Gerald tinha real estima por Birkin, embora não acreditasse muito em suas teorias. Birkin era demasiadamente irreal: inteligente, caprichoso, admirável, mas sem o verdadeiro senso prático. Gerald compreendia que tinha uma visão mais sadia e maior discernimento do que o amigo. Birkin era interessante, de espírito surpreendente, mas era melhor não levá-lo muito a sério nem considerá-lo como um homem igual aos outros.
- Está doente outra vez? - perguntou-lhe em tom amável, estendendo a mão ao doente. Gerald sempre representava o papel de protetor, oferecendo o amparo reconfortante da sua força física.
- Infelizmente - respondeu o outro, sorrindo. - Por mal dos meus pecados.
- Dos seus pecados? Sim, deve ser isso. Peque menos e conserve mais a saúde.
- Diga-me como se faz.
Ao dizer isto, o amigo tinha um ar de zombaria. Depois acrescentou:
- E você, como vai?
- Eu? - Gerald percebeu que ele falava a sério e em seus olhos surgiu um clarão de simpatia.
- Nada de novo. Em mim, tudo é sempre igual.
- Creio que você dirige os seus negócios com êxito procurando sempre ignorar as exigências espirituais.
- É isso mesmo - asseverou Gerald. - Pelo menos no que diz respeito aos negócios. Quanto à alma, não estou bem certo...
- Não?
- Isso o espanta?
- Não. Mas como vão os outros assuntos, além do trabalho?
- Os outros? Quais? A que se refere você?
- Ora, você sabe perfeitamente - tornou Birkin. - Com sorte ou sem sorte. O que me diz de Gudrun Brangwen?
- Gudrun? - O olhar de Gerald perturbou-se. - Pois bem, não sei dela - acrescentou. - Só posso dizer-lhe que da última vez que nos encontramos, ela me deu uma bofetada.
- Uma bofetada? Por quê?
- Não sei.
- É extraordinário. Quando foi isso?
- Na noite da festa, antes de Diana ter-se afogado. Gudrun ia afugentar o gado para a colina e eu corri atrás dela, não se lembra?
- Recordo-me perfeitamente. Mas por que motivo ela agiu assim? Você não lhe teria pedido nada, creio eu...
- Não, claro que não. Eu apenas lhe disse que era perigoso mexer com aqueles touros, o que é verdade. Gudrun voltou-se e perguntou-me: "Você acha que eu tenho medo de você e dos seus bois?" Limitei-me a indagar a razão de tal pergunta, e ela, como resposta, esbofeteou-me.
Birkin desatou a rir, bastante divertido. Gerald olhou para ele, um pouco admirado, e riu também, dizendo:
- Naquela ocasião eu não ri, palavra de honra. Nunca em minha vida me senti tão perplexo.
- Ela estava realmente zangada?
- Como não? Parecia capaz de me matar.
- Hum! - fez Birkin. - Coitada da Gudrun! Deve estar muito arrependida do gesto que teve. - O caso continuava a diverti-lo.
- Acha que se arrependeu? - perguntou Gerald, que também acabara por achar graça no incidente.
Ambos sorriram maliciosamente.
- Deve ter horríveis remorsos, aposto. Tem-se em conta de moça muito ponderada!
- É mesmo? Então, por que faria aquilo? Não foi um ato irrefletido, inesperado?
- Sim, foi uma coisa repentina.
- Como explicar tal impulso? Não foi dito nada que justificasse...
Birkin abanou a cabeça.
- Surgiu nela, de repente, algo semelhante às amazonas, eis a minha opinião.
- De acordo - tornou Gerald. - Mas eu teria preferido que fosse o Orenoco - Não se pode traduzir o trocadilho. Em inglês o nome do rio e o substantivo comum são ambos Amazon - nota da tradutora).
Os dois riram do fraco trocadilho. Gerald recordou-se de que a jovem se dissera disposta a dar sempre o último golpe. Mas não o revelou a Birkin.
- E você ficou ressentido, Gerald?
- Qual! Não me aborreci, absolutamente. - Calou-se, por um momento e ajuntou, satisfeito: - Não. Fui muito compreensivo. E ela mostrou-se desolada.
- Sim? E depois daquela noite não a tornou a ver? Gerald ficou muito sério.
- Não... Quero dizer, estivemos... Imagine você, depois veio aquela desgraça...
- É verdade. Mas não há remédio senão a resignação.
- Foi um grande desgosto. Mas minha mãe está calma. O curioso é que ela só se preocupava com as meninas, nada mais a interessava; só as meninas. E agora, parece afligir-se pouco, como se fosse um dos criados que tivesse morrido...
- E você? Ficou muito transtornado?
- Demais. Mas, no fundo, não sinto tanto assim. Minha vida não se modificou. Todos temos de morrer e no final isso não faz grande diferença. Não sou pessoa para desgostos profundos, você bem sabe. Permaneço frio; não sei bem o motivo por que sou assim.
- Não se importaria de morrer? - perguntou Birkin. Gerald observou o amigo, com aqueles seus olhos azulados como o aço de uma lâmina. Mostrava-se indiferente, mas, no fundo, sentia-se pouco à vontade. E, na realidade, o problema preocupava-o de verdade e assustava-o deveras.
- Ora - disse ele - ninguém deseja morrer. Mas isso não me preocupa muito. Nunca me lembro de considerar esse assunto. Deve ser porque não estou interessado nisso.
- Timor mortis conturbai me - O temor da morte me perturba - nota da tradutora) - proferiu Birkin, acrescentando: - A morte não parece ser realmente mais grave do que qualquer outra coisa. E, repare, isso não interessa à maioria das pessoas. É como um amanhã, igual aos outros.
Gerald prestava a maior atenção ao amigo. Os olhares dos dois se encontraram e compreenderam-se sem dizer mais nada.
O primeiro ficou sério, de expressão fria, sem disfarce, enquanto mirava Birkin de maneira impessoal, penetrante e ao mesmo tempo abstrata, como se o olhar se perdesse em algum ponto vago do espaço.
- Se a morte não é o principal, - disse ele, com voz indiferente, sossegada, nítida, - se não o é, o que será então? - Dava a impressão de uma pessoa cujo segredo acabasse de ser desvendado.
- O que será, então? - ecoou Birkin. Seguiu-se um silêncio carregado de ironia.
- Há uma distância a percorrer - acrescentou - desde o momento da morte intrínseca ate que desapareçamos.
- Mas que espécie de caminho é esse? - inquiriu Gerald. Dir-se-ia incitar o outro a lhe ensinar coisas que ele estava farto de conhecer.
- Segue os declives da degeneração... mística, universal. Há muitos degraus a descer: uma eternidade. Continuamos a viver depois da nossa morte, numa decadência progressiva.
Gerald ouvia-o falar, e, durante toda a exposição do amigo, manteve um leve sorriso nos lábios, como se estivesse, muito mais do que Birkin, ao corrente do assunto e o seu conhecimento fosse direto e pessoal, ao passo que o de Birkin resultava de observações e suspeitas, sem atingir o âmago da questão, embora não andasse muito longe. Contudo, não faria revelações. Se o outro conseguisse desvendar-lhe os pensamentos ocultos, muito bem. Mas Gerald não lhe facilitaria a tarefa; deixá-lo-ia na ignorância das suas possibilidades.
- É claro - replicou, mudando, de repente, o rumo da conversa. - É meu pai quem sofre mais. Isso dará cabo dele. O mundo já não lhe reserva mais nada. Todo o seu cuidado agora será com Winnie. Winnie precisa ser salva. Ele diz que vai enviá-la para um colégio, mas a pequena não quer ouvir falar disso e o pai nunca se resolverá. É esquisita a situação desta minha irmã. Nós todos, caso curioso, temos pouca sorte neste mundo. Fazemos várias coisas, mas não nos desempenhamos bem neste mundo. É, de fato, curioso; trata-se de uma deficiência de família.
- Acho que não convém mandá-la para o colégio - observou Birkin, detendo-se neste pormenor.
- Por quê?
- Essa criança é estranha, de natureza especial, ainda mais do que você. Na minha opinião, as crianças em tais condições não deveriam frequentar escolas. Somente as que são perfeitamente normais devem fazê-lo. Este é o meu modo de pensar.
- Sou de opinião diferente. Parece-me que, deixando a casa, convivendo com as outras crianças...
- Não haveria tal convivência. Você, por exemplo, nunca se deu muito bem com os outros, não é verdade? Ela não o conseguirá, mesmo que o pretenda, orgulhosa, solitária, naturalmente retraída como é. Se a natureza a impele à solidão, para que lhe incutir o espírito gregário?
- Não tenciono obrigá-la a transformar-se. Julgo apenas que o colégio lhe faria bem.
- E o que fez o colégio por você?
Gerald tornou-se ainda mais carrancudo. O colégio fora uma das suas torturas; mas jamais refletia sobre a necessidade ou não daquele martírio. Parecia acreditar na educação conseguida à custa da obediência e do tormento.
- No meu tempo eu detestava o colégio, mas agora compreendo as suas vantagens. Colocou-me um pouco nos eixos. E é preciso fazer um esforço de adaptação.
- Pois eu - discordou Birkin - começo a crer que só se vive saindo inteiramente dos eixos. Não vale a pena tentar seguir dentro das medidas, se alguma coisa nos impele a saltar por cima delas. Winnie é uma natureza especial, e às naturezas especiais devemos proporcionar um mundo também especial.
- De acordo. Diga-me, porém, onde se encontra ele?
- Fabriquemo-lo. Em vez de nos transformarmos para que nos adaptemos ao mundo, mais vale transformar o mundo para que ele se adapte a nós. Na realidade, bastam dois caracteres excepcionais para criar um mundo excepcional. Você e eu formamos um universo à parte, muito diferente do comum. Não poderemos pretender que o nosso mundo seja igual, por exemplo, ao dos seus cunhados... As qualidades especiais são aquelas que você aprecia. Por acaso deseja ser normal e vulgar? Não. O que deseja é ser livre e diferente num mundo extremamente livre.
Gerald observava Birkin com olhar sutil, compreensivo. Mas nunca seria capaz de confessar, assim abertamente, semelhantes teorias. De certa maneira sabia mais do que Birkin, muito mais. Isso enchia-o de ternura pelo amigo, como se este fosse um jovem inocente, quase uma criança deveras inteligente, mas de uma inocência incurável.
- E você é tão banal que é capaz de me considerar um ente caprichoso - disse Rupert literalmente.
- Caprichoso! - repetiu o outro, admirado. O rosto desanuviou-se-lhe e tornou-se claro e luminoso. - Não, não o considero tal coisa. - Olhava com estranhos olhos que Birkin não compreendia. - Sinto - continuou - que em você existe sempre um elemento de incerteza; talvez não esteja muito certo de si mesmo. Eu, por exemplo, nunca o levei muito a sério. Você muda tão facilmente como se não tivesse alma.
Ao dizer isso olhava para Birkin de forma perscrutadora. Rupert estava surpreendido. Julgava possuir mais espírito do que qualquer pessoa no mundo. O amigo deixava-o assombrado. E Gerald, olhando para ele, percebeu-lhe a perplexidade e notou que o outro tinha uma alma juvenil e espontânea que o atraía irresistivelmente, embora o amargurasse e entristecesse pela desconfiança que lhe inspirava. Sabia que Birkin podia agir sem ele, Gerald; podia esquecer e não sofrer mais. Isso representava-se-lhe nitidamente na consciência, envolvendo-a de amarga descrença, espontânea e jovem, prestes a escapar, como a de um animal. Pareciam-lhe quase hipocrisia e falsidade, oh, quantas vezes, aqueles discursos que pretendiam ser profundos e importantes!
Eram muito diferentes os pensamentos que atravessavam a mente de Birkin. Outro problema lhe ocorria, de súbito, ao espírito: a estima e os laços de amizade entre dois homens. Era, sem dúvida, necessário - sempre o sentira - estimar alguém de forma pura e completa. Sempre dedicara amizade a Gerald, mas sempre negara semelhante fato.
Deitado na cama, Rupert meditava, enquanto o amigo, a seu lado numa cadeira, se perdia num mundo de reflexões. Cada um deles seguia o curso dos seus pensamentos.
- Não sei se sabe que os antigos cavaleiros germânicos costumavam jurar a Blutbrüderschaft - Fraternidade do sangue - nota da tradutora) - disse o primeiro, com os olhos a luzirem com uma ideia nova e feliz.
- Faziam uma incisão no braço e assim os dois amigos uniam o seu sangue, não é assim? - perguntou Gerald.
- Exatamente. E depois prestavam juramento de fidelidade, de comunhão de sangue para toda a vida. É isso que devíamos fazer. Sem sofrimento, é claro, isso é coisa obsoleta. Mas deveríamos jurar amizade recíproca, nós dois, implícita, perfeita, definitiva, sem nenhuma possibilidade de arrependimento.
Olhou para Gerald com uma expressão límpida, satisfeito com a sua descoberta. Gerald fitou-o também, encantado, profundamente atraído por aquela lembrança fascinante, mas ao mesmo tempo desconfiado e ressentido contra tal escravidão, detestando a simpatia que inspirara.
- Um dia prestaremos juramento, Gerald, não é verdade? Afirmaremos conceder auxílio mútuo, ser sinceros, de forma definitiva e infalível, devotarmo-nos um ao outro, visceralmente... sem ser possível voltar atrás.
Birkin exprimia a custo a sina ideia e Gerald mal o ouvia; tinha o rosto luminoso de satisfação. Estava contente. Mas conteve-se. Não manifestou a alegria que o animava. Birkin prosseguiu, estendendo a mão ao amigo:
- Faremos o juramento, está bem?
Gerald mal tocou naquela mão bela e nervosa, como se qualquer coisa o assustasse e repelisse.
- Deixemos isso até que eu compreenda melhor - proferiu como desculpa.
Birkin observava-o. Penetrou-lhe na alma uma sensação de esperança frustrada, um pouco de desprezo, talvez.
- Está bem; Mais tarde me dirá o que pensa. Entendeu a minha proposta? Nada de pieguices, mas uma aliança que nos deixe a ambos livres.
Calaram-se os dois. Birkin não tirava os olhos de Gerald. Parecia-lhe agora descobrir, não o homem físico, animal, que sempre julgara ver no amigo e que chegara a admirar, mas o homem completo, com o seu destino marcado, circunscrito. Esta impressão tão singular de fatalismo que limitava Gerald a uma atividade só, insuficiência inevitável que poderia sugerir totalidade, produzia em Birkin, depois dos momentos de confidência e intimidade, um estado de aborrecimento vizinho do desdém. Era aquela limitação insistente de Gerald o que mais enfadava Rupert Birkin. Gerald nunca seria capaz de evadir-se de si mesmo, alegre e verdadeiramente indiferente. Via nele um ser aprisionado, escravo de uma monomania qualquer.
Reinou silêncio durante algum tempo. Depois Birkin perguntou, com leve entonação, dando margem a que o outro se apaziguasse:
- Se conseguisse arranjar uma professora para Winnie? Alguma criatura excepcional?
- Hermione Roddice sugeriu que convidássemos Gudrun para ensinar-lhe desenho e modelagem. Como você sabe, Winnie é extraordinariamente habilidosa nesse particular. Hermione considera-a verdadeira artista. - Gerald falava como de costume, animado, loquaz, como se nada se houvesse passado. Mas a atitude de Birkin indicava que ele não se tinha esquecido.
- Ah, sim? Eu não sabia. Pois então, se Gudrun aceitasse dar-lhe aulas, seria esplêndido. Winnie é artista, Gudrun o é, com certeza. E poderia dar-lhe grande incentivo.
- Penso que os artistas são, em regra, criaturas antissociais.
- Talvez. Mas só eles criam o mundo em que circulam. Acho que isso seria ótimo para Winifred.
- Será que ela vai aceitar?
- Não sei. Gudrun faz excelente conceito de si própria. Talvez não seja fácil convencê-la. Pode ser ate que aceite por pouco tempo, pois não sei se pretende continuar aqui, em Beldover. Winifred possui um temperamento especial; se vocês lhe derem os meios de o desenvolver, não poderão realizar coisa melhor. Ela é uma pessoa que jamais se sujeitaria a uma vida vulgar. Você vê como é difícil adaptar-se... imagine ela, que tem maior sensibilidade. Entristece-me pensar o que será a existência daquela menina se não conseguir algo a exprimir, algo que lhe desperte o interesse pela vida. Veja o exemplo de sua mãe.
- Acha que minha mãe não é normal?
- Não é isso, mas pressinto que ela desejaria ser diferente viver de modo diferente. Não o tendo conseguido, ela acha que fracassou.
- Depois de ter dado à luz uma série de filhos anormais - rematou Gerald melancolicamente.
- Tão anormais como nós todos - replicou Birkin. - As pessoas aparentemente sensatas são por dentro muito estranhas; examine-as uma por uma.
- Chego a acreditar que viver é uma maldição - declarou Gerald, tomado de súbita cólera impotente.
- Talvez - foi a resposta de Birkin. - E por que não? Às vezes a vida é realmente maldita. Outras, é o contrário: mas a verdade é que tem bastante sabor!
- Menos do que você supõe! - tornou Gerald, revelando no olhar grande pobreza de imaginação.
Houve uma pausa durante a qual cada um seguiu o rumo dos seus pensamentos.
- Não percebo a diferença que ela possa fazer entre dar aulas no Instituto e lições particulares a Win - observou Gerald.
- A diferença que existe entre um empregado do Estado e um empregado particular. O único nobre, hoje em dia, o único rei, o único aristocrata é a nação; consentimos em servi-la, mas, quanto a ser preceptor em casa alheia.
- Quanto a mim, não quero servir nem a uns nem a outros.
- Sei disso. E Gudrun deve pensar da mesma forma. Gerald refletiu por alguns instantes. Depois, disse:
- Em todo caso, meu pai não a faria sentir-se em posição subalterna. Pelo contrário, ele lhe daria as maiores atenções e se sentiria muito grato.
- E assim é que deve ser. E todos vocês seguirão o exemplo dele. Mas julga que se pode "alugar" uma mulher como Gudrun Brangwen? É igual a nós em tudo, provavelmente até superior.
- Você acha, Rupert?
- Acho. E se vocês não tiverem olhos para perceber isso, Gudrun virará as costas e voltará para casa.
- Contudo, se é igual a mim, não quero que seja preceptora, pois em regra, não considero as preceptoras como minhas iguais.
- Eu também não, que diabo! Mas pode-se ensinar sem ser preceptor e pode-se pregar sem ser padre...
Gerald riu-se. Nunca se sentia muito à vontade em discussões daquele tipo. Não queria reivindicar superioridade social, mas recusava-se a reconhecer a superioridade pessoal de quem quer que fosse, pela razão de que nunca assentava sua escala de valores em função do indivíduo. Desse modo, via-se obrigado a dar a maior importância à hierarquia social. Birkin vinha agora forçá-lo a admitir as diferenças intrínsecas existentes entre os seres humanos, coisa que tanto lhe repugnava. Isso contornava o seu conceito de sociedade, abalava-lhe os princípios fundamentais. Levantou-se para se despedir.
- Ia-me esquecendo dos meus negócios - disse ao enfermo, sorrindo.
- Eu devia ter-me lembrado - replicou Birkin, sorrindo.
- Tive um palpite de que você me diria isso. Gerald sorria, mas estava inquieto.
- É mesmo?
- Sim, Rupert. Olhe, não haveria vantagem em pensarmos todos como você. Iríamos por água abaixo. Quando estiver no outro mundo, então, pouco me importarão os negócios.
- Sim, mas vocês ainda não tiveram dificuldades - atalhou Birkin com ar sarcástico.
- Não estamos tão bem como pensa. Em todo caso, temos o suficiente para comer e beber.
- E para andarem satisfeitos - acrescentou Birkin.
Gerald aproximou-se da cama e ficou a contemplar o amigo.
Este tinha o pescoço descoberto, os cabelos esparsos sobre a testa, numa desordem que não deixava de ser bela. Os olhos, imóveis e tranquilos, na sua expressão de ironia. Gerald, de esplêndida saúde, com toda a sua energia, sentia-se preso ali, sem vontade de ir embora, retido pela presença de Birkin. Não tinha coragem de o abandonar.
- Bem, adeus - disse o doente. Retirou a mão de dentro dos lençóis e estendeu-a; sorria alegremente.
- Adeus! - repetiu Gerald, apertando a mão febril do amigo, calorosamente. - Voltarei outra vez. Sinto sua falta lá no moinho.
- Voltarei dentro de poucos dias - prometeu Birkin.
Os olhares dos dois homens se encontraram mais uma vez. O de Gerald, penetrante como o de um falcão, enchera-se de um brilho ardente, de simpatia inesperada; o de Birkin vinha das trevas insondáveis e misteriosas e, contudo, irradiava uma espécie de valor que parecia envolver o cérebro de Gerald de maneira fértil e repousante.
- Adeus, então. Precisa de alguma coisa?
- Não, obrigado.
Birkin acompanhou com os olhos a figura de luto que desaparecia no limiar da porta; a cabeça loura afastou-se e o doente voltou-se na cama para dormir.


Capítulo XVII
Magnata da indústria
Houve, em Beldover, um intervalo, tanto para Úrsula como para Gudrun. A primeira tinha a impressão de que Birkin se afastara, que perdera o significado para ela, que mal avultava no mundo em que a moça organizara a sua vida. Havia os seus amigos, a sua atividade de professorara sua existência própria. Chegou a sentir prazer em regressar à vida normal, longe daquele homem.
Gudrun, depois de ter a todos os instantes, sentido seus nervos quando em presença de Gerald Crich, como se lhe estivesse ligada fisicamente, andava agora quase alheada de tal ideia. Esboçava novos planos para ir-se embora e tentar um modo de vida diferente. Surgia nela qualquer coisa que a fazia constantemente evitar maior relacionamento com Gerald. Achava melhor e mais sensato limitar-se a um conhecimento acidental.
Um de seus projetos era ir ter com uma amiga, também escultora, que vivia em S. Petersburgo, com um russo endinheirado e que se dedicava à fabricação de jóias. Atraía-a a maneira de ser dos russos, sentimental, desprendida. Paris não lhe interessava, por causa do seu ambiente frio e importuno. Preferia Roma, Munique, Viena, S. Petersburgo ou Moscou. Tinha conhecimentos em todas estas cidades e escreveu pedindo conselhos.
Gudrun possuía economias. Voltara para casa dos pais por causa disso; vendera vários trabalhos, fora premiada em mais de uma exposição. Sabia que seria bem sucedida em Londres. Mas já conhecia Londres e preferia um ambiente desconhecido. Possuía setenta libras, sem que ninguém soubesse. Assim que as amigas respondessem à sua carta, Gudrun estaria pronta para partir. A despeito da calma aparente, ela era profundamente inquieta.
Certo dia as duas irmãs foram comprar mel em uma casa de Willey Green. Entraram na cozinha - confortável e bem arrumada - a convite de Senhora Kirk, mulher forte, de nariz proeminente, dissimulada e melíflua, além de hipócrita. Havia em toda a parte extrema limpeza e um bem-estar que convidava à preguiça.
- Com que então - dizia ela a Gudrun, com sua voz insinuante - com que então não está satisfeita por ter voltado à terra, não é verdade?
A jovem detestou-a imediatamente.
- Isso não importa - replicou de modo brusco.
- Não? Pois não é muito diferente de Londres? Sei que você gosta dos grandes centros, da vida movimentada. Nós contentamo-nos com Willey Green e Beldover, já que não há outro remédio. E o que acha do nosso colégio?
- Que é que eu acho? - Gudrun mirou-a dos pés à cabeça. - Quer saber se acho bom?
- Sim. Que opinião tem a esse respeito?
- Acho uma ótima escola.
Gudrun mantinha-se fria e reservada. Sabia que as pessoas do povo detestavam o Instituto.
- Ah, muito bem! Tenho ouvido tantas coisas... É bom saber o que pensam os que trabalham lá. Mas as opiniões variam tanto... O Sr. Crich faz grandes elogios. Coitado! Anda tão triste. Acho que não vai durar muito.
- Ele está pior? - perguntou Úrsula.
- Sim, desde a morte da menina Diana. Não é mais que uma sombra do que foi. Coitado, tem sofrido demais.
- Tem? - perguntou Gudrun levemente irônica.
- Sim. Infinitos desgostos. E é tão boa pessoa, tão encantador! Os filhos não saíram ao pai.
- Talvez tivessem saído à mãe - observou Úrsula.
- Em muitos aspectos. - A Senhora Kirk baixou um pouco a voz. - Era, quando chegou aqui, uma senhora altiva, orgulhosa. Meu Deus, se era! Nem todos eram dignos de vê-la e falar-lhe constituía uma honra. - A mulherzinha tomou uma expressão áspera e maliciosa.
- Conheceu-a nos primeiros tempos do casamento?
- Sim, conheci-a. Criei três dos filhos, três diabinhos. Gerald era mesmo um demônio, como nunca houve outro, aos seis meses de idade. - A voz da mulher adquiria um tom estranhar mente malicioso.
- Que graça! - exclamou Gudrun.
- Muito senhor da sua vontade, orgulhoso. Já com essa idade dominava a ama por completo. Eram pontapés, gritos. Muitas vezes lhe dei beliscões, quando o tinha no colo. Devia ter dado mais, talvez o tivesse tornado melhor. Mas a mãe não queria que o castigasse. Ainda me lembro das desavenças com o patrão! Quando já estava farto, fechava-se no escritório e dava-lhe chicotadas. Mas a senhora punha-se a andar para lá e para cá defronte à porta, como uma leoa de olhos frailantes. Quando a porta se abria, a senhora precipitava-se lá dentro, gritando: "Que foi que fez aos meus filhos, seu covarde?" Nós pensávamos que ela era um pouco maluca. Acho que o patrão tinha medo dela. Imagine a vida que os criados levavam! Dávamos graças quando algum dos meninos apanhava uma sova!
- Que coisa! - exclamou Gudrun.
- Se a gente não os deixava quebrar a louça na mesa, se não consentia que arrastassem o gatinho preso pelo pescoço com um barbante, se não dava tudo quanto queriam, tudo que lhes vinha à cabeça, faziam um escarcéu e a mãe vinha logo perguntar: "O que foi que aconteceu? Que foi que vocês fizeram a eles? Que foi, meu anjinho?". Depois, voltava-se contra as empregadas. Mas comigo ela não se metia muito. Eu era a única que podia fazer qualquer coisa daqueles diabretes, tanto mais que ela, afinal, não gostava de ser importunada. Ah, a senhora não se incomodava muito. Mas não queria se incomodar. O menino Gerald era a beleza da casa. Tinha um ano e meio quando eu me despedi. Não podia aguentar mais. Mas muitos beliscões eu lhe dei no traseirinho quando ficava com ele no colo, pois não havia outra forma de o manter na linha. E não me arrependo!
Gudrun saiu dali furiosa e indignada. A frase belisquei o traseirinho tornava-a lívida de cólera. Seu desejo fora agarrar a mulher e estrangular. E, no entanto, aquela expressão ficara-lhe gravada na memória para sempre, sem que a pudesse apagar. Tinha o pressentimento de que, mais dia menos dia, a repetiria para ele; e esta ideia horrorizava-a.
Em Shortlands, a prolongada luta de Crich chegava ao seu termo. O velho estava muito doente, às portas da morte. Sofria intensas dores pelo corpo, que lhe ofuscavam a recordação dos sofrimentos passados, deixando-lhe um vago vestígio de consciência. O silêncio descia, mais e mais, diminuindo-lhe a percepção de tudo quanto o rodeava. A dor parecia absorver-lhe as energias. O moribundo sabia-a presente, sabia que ela devia voltar; era como qualquer coisa que se ocultasse no escuro, dentro dele, que não tinha poder ou vontade de ir procurar e desmascarar. Assim, ficava nas trevas daquela dor monstruosa, martirizado, silencioso. Crich submetia-se calado, quando a dor chegava; depois, procurava ignorá-la. Não a queria reconhecer, relegando-a para o cantinho onde se aninhavam os seus receios inconfessados e os segredos nunca ditos. Quanto ao resto, era uma dor como as outras, ia e vinha, não fazia diferença. Até o estimulava e excitava!
Absorvia-lhe, porém, gradualmente, a vida. Arrancava-lhe pouco a pouco todas as forças, sangrava-o na sombra, desligava-o da vida e atraía-o para além. No crepúsculo da existência, quase nada lhe restava que fosse visível. Os negócios, trabalho, tudo isso se eclipsara totalmente, e era agora como se nunca tivesse sido realidade. A própria família se lhe tornara estranha; mal se lembrava, em qualquer parte recuada da memória, que Pedro, Paulo ou Martinho eram seus filhos. Eram como que fatos históricos, despidos do mais simples realismo. Precisava esforçar-se para se compenetrar do parentesco. A própria mulher também quase não existia: dir-se-ia igual à sombra, à dor que se revelava e escondia. Por uma estranha confusão, o escuro em que o sofrimento se encontrava e as trevas em que a mulher se diluía eram precisamente iguais. Todos os pensamentos se embaralhavam e se faziam turvos e assim, aquele homem e a dor que o consumia, formavam uma só força tenebrosa que o atacava e com quem ele não podia defrontar-se. Jamais conseguia expulsar o horror para fora do seu covil: sabia apenas que havia dentro de si um recanto obscuro, onde habitava qualquer coisa que, de tempos a tempos, saía para o devorar. Mas não ousava pentear ali nem trazer o inimigo à claridade. Preferia ignorar-lhe a existência. Simplesmente, no vago em que o espírito discorria, o terror personificava-se na mulher, que era o ente destruidor, e o martírio, a própria destruição, concretizavam-se naquelas trevas em que tudo se confundia.
Raras vezes a via. A Senhora Crich ficava só no seu quarto, e, uma vez por outra, vinha encostar a cabeça na do enfermo, perguntando em voz baixa, mas firme, como é que ele se sentia. E o marido replicava, conforme o costume de mais de trinta anos: "Creio que não pode ser pior"... Mas, apesar do longo hábito, tinha medo dela, agora que estava quase a dois passos da morte.
Durante toda a vida, Crich confiara nos seus princípios jamais atraiçoados. Morria sem transigir naquele ponto, sem jamais alterar os sentimentos que nutria pela esposa. Dissera sempre: "Coitada da Christiana, que tem tão mau gênio!" A vontade não desfalecera. Conservou a mesma atitude para com ela, substituindo apenas certa hostilidade pela primitiva piedade, piedade que era o seu escudo, sem deixar de ser a arma de ataque. E presentemente, no fundo da consciência, ainda tinha dó da mulher, daquela natureza tão impaciente e violenta.
Contudo, a pena que sentia gastava-se lentamente com a vida, enquanto os receios aumentavam, transformando-se em pavor. Antes, porém, que escudo da piedade se quebrasse de todo, devia ele morrer, como um artrópode cuja casca se tivesse amassado. Eis último recurso. Outros continuariam a viver e conheceriam a morte quando ela se aproximasse, naquela forma progressiva do caos irremediável. Ele, não. Recusava à morte tamanha vitória. Mostrara-se sempre fiel à verdade, à caridade, ao amor do próximo. Talvez até amasse o próximo mais ainda do que a si mesmo, o que ia além do mandamento. Constantemente lhe ardera no peito essa chama, o bem-estar do povo, e em todas as circunstâncias e manteve. Tinha muita gente trabalhando por sua conta, grande proprietário de minas que era. Nunca se esquecera de que, perante Cristo, ele e os seus operários não faziam a menor diferença. Pelo contrário, sentia-se inferior a eles, visto que a pobreza e o trabalho os aproximavam mais de Deus. Acreditara sempre, sem o confessar, que os seus trabalhadores, os mineiros, é que tinham nas mãos os meios de salvação. Para alcançar Deus, devia estar perto deles; a sua vida devia gravitar em torno daquelas vidas. Eram, sem o saberem, os ídolos desse homem, a manifestação terrena da divindade. Neles, Crich adorava a mais alta, a maior divinização da humanidade simpática e descuidosa.
Durante toda a vida a mulher opusera-se-lhe como um autentico demônio. Estranha, semelhante a uma ave de rapina, com a beleza fascinante e altiva de um falcão, debatera-se contra as grades da filantropia do marido; e, como um falcão prisioneiro, condenara-se ao silêncio. Pela força das circunstâncias, e porque toda a gente contribuísse para que sua gaiola fosse indestrutível. Crich mostrara-se forte e conservara-a no cativeiro. Por esse motivo, amor que lhe consagrava permanecia vivo como demônio; sempre a amara com a mesma intensidade. Dentro da prisão dourada, não lhe faltava nada e ela gozava de inteira liberdade.
Christiana, porém, tornara-se extravagante. De temperamento rebelde e dominador, não suportava a bondade, a ternura que o marido dispensava aos outros. Em todo caso, homem não se deixava iludir pelos pobres; sabia que viriam lamentar-se, que viveriam à sua custa, os da pior espécie; a maioria, contudo, felizmente para ele, mantinha-se orgulhosa demais para pedir fosse o que fosse e era independente em demasia para vir bater à sua porta. Mas, em Beldover, como em toda a parte, havia criaturas lamurientas, importunas, imundas, que forçavam a filantropia e que sugavam a sociedade como genuínos parasitas. A cabeça de Christiana Crich ardia de raiva quando via mulheres lívidas, vestidas de andrajos negros, rastejando e subindo lugubremente ate a sua porta. Dava-lhe vontade de soltar os cães, incitando-os: "Vá, Rip, vá Ring! Ranger! Fora com todas elas!". Entretanto, o mordomo Crowther era, como todos os criados, afeiçoado ao patrão; mas, se este não estava em casa, Christiana atirava-se como uma loba contra as pedintes: "Que é que vocês querem? Não há nada aqui para vocês; não quero ninguém na porta. Simpson, ponha-as fora e não as deixe passar do portão." Os criados tinham de obedecer à senhora, que ficava vigiando com o seu olhar de águia, enquanto o serviçal, constrangido expulsava da calçada aquela gente importuna, qual galinhas trôpegas fugindo desordenadamente.
Informavam-se então com o porteiro sobre os dias em que o industrial estava presente e regularizavam suas visitas. Quantas vezes vinha Crowther bater à porta do quarto dele, timidamente, para o prevenir: "Estão lá fora umas pessoas que lhe querem falar."
- Como se chamam?
- Fulano, fulano...
- E o que desejam? - Havia, naquela pergunta, gratidão e impaciência ao mesmo tempo. Gostava de ouvir os apelos à sua alma caridosa.
- É por causa de uma criança...
- Mande para a biblioteca e avise-lhes que não devem vir aqui depois das onze da manhã.
- Não interrompa o almoço! Mande-os embora - dizia-lhe a mulher, bruscamente.
- Não posso fazer isso. Vou só saber do que se trata...
- Quantos já vieram hoje? É melhor franquear-lhes a casa. Logo nos expulsariam, a mim e às crianças.
- Bem sabe, minha querida, que não custa ouvir o que têm a dizer. E se precisam de alguma coisa, o meu dever é atendê-los.
- Então é seu dever convidar todas as ratazanas do mundo para nos roerem os ossos?
- Calma, Christiana, não se trata disso. Não seja cruel.
Ela, porém, levantava-se de súbito e deixava a sala de jantar, a caminho do escritório. Lá estavam os famélicos suplicantes, em atitude de quem espera na antecâmara real.
- O Sr. Crich não pode atender. Não recebe ninguém a esta hora. Pensam que ele é um criado, que deve aparecer sempre que o chamam? Vão-se embora, não têm nada que fazer aqui.
Os desgraçados saíam de tropel. Mas Crich, pálido no meio das barbas pretas, vinha, muito aflito, atrás da mulher, dizendo:
- Sim, senhores, não gosto que me procurem a esta hora. Posso atendê-los de manhã, mas agora, realmente, não posso. Que aconteceu, Gittens? Como está a sua mulher?
- Ora, patrão, muito mal. Acho que não tem salvação...
Às vezes, parecia à Senhora Crich que o marido era uma espécie de ave agourenta, refestelando-se nas misérias do povo. Nunca se fartava de ouvir histórias tristes, que saboreava deleitado, para regalo da sua fibra sensível. Não haveria nenhuma raison d'être se não acontecessem desgraças por este mundo, assim como um proprietário de agência funerária não poderia existir se não houvesse enterros...
A Senhora Crich refugiava-se em si mesma, fugindo à onda avassaladora da democracia. Envolvia o coração numa espessa armadura isoladora; o seu afastamento era duro e altivo, o antagonismo de uma passividade terrível em sua pureza, como a do falcão dentro da gaiola. Com o decorrer dos anos, ia perdendo, cada vez mais, o contato com o mundo; parecia extasiada em alguma abstração fascinante, de que não tinha consciência. Errava pela casa e pelo campo em redor, fixando tudo e, no entanto, sem nada ver. Falava raras vezes, quase não tinha relações com os habitantes da terra; nem era pessoa para meditar: consumia-se numa orgulhosa tensão de hostilidade, como o polo negativo de um magneto.
Foi mãe de vários filhos; conforme o tempo passava, deixou de se opor ao marido, quer em palavras quer em atos, mas também não fazia nenhum caso dele. Submetia-se a ele, deixava-o proceder como quisesse, qual ave presa, transigia em tudo, mas sempre de má vontade. Suas relações de marido e mulher estabeleciam-se em silêncio, ambos desconhecendo-se; mas a ligação destruidora de um com o outro era profunda e tremenda. Ele que triunfara na vida, sentia sua vitalidade diminuir, como se estivesse sendo sangrado. A hemorragia vital era constante; e ela estava gasta como o abutre cativo, mas de coração altivo e intato embora seu espírito estivesse consumido.
Assim, até os últimos dias, Crich aproximava-se da mulher e tomava-a nos braços, antes que as forças lhe faltassem de todo. A assustadora luz branca e mortal que brilhava nos olhos dela ainda o excitava e estimulava, ate que fosse sangrado letalmente, ate que temesse como a ninguém temera na vida. E repetia consigo mesmo, sem cessar, como tinha sido feliz, como a havia amado com o mais puro amor, desde que a conhecera! Lembrava-se de Christiana virginal e casta; a chama clara que só ele sentira, a chama do sexo, jazia na sua memória como uma flor de neve. Fora bem uma alva flor, e tanto a desejara! Ei-lo agora moribundo, com todas as suas ideias nunca violadas. Não tombariam em colapso senão quando lhe fugisse o último sopro de vida. Até então, manter-se-iam como puras verdades para ele mesmo. Somente a morte faria surgir a perfeição da mentira. Até lá, Christiana era a sua flor de neve. Tinha-a submetido, e essa submissão parecia-lhe revelar, na mulher, uma castidade infinita, virgindade que ele jamais perturbaria e que o dominava como um sortilégio.
Christiana renunciara ao mundo externo, mas, dentro de si mesma, continuava intacta e ilesa. Ficava sozinha em seu quarto como uma águia esmorecida e depenada, sem se mexer sem pensar. Os filhos, por quem fora tão orgulhosa na sua mocidade, pouco ou nada representavam agora para ela. Perdera tudo, considerava-se abandonada. Apenas a vivacidade de Gerald lhe chamava a atenção; mas, naqueles últimos anos, depois que ele tomara a direção dos negócios, começava também a ficar esquecido. O pai, agora moribundo, procurava no filho um pouco de compaixão. Houvera sempre entre os dois uma certa hostilidade. Gerald receava o pai e ao mesmo tempo desdenhava-o; durante toda a sua infância, e mesmo na idade viril, sempre fizera por evitá-lo. Crich sentira muitas vezes verdadeira antipatia pelo filho mais velho que, esquivando-se à submissão, quase não era reconhecido pelo pai. Procurava sempre ignorar a existência do primogênito, deixando-o entregue a si mesmo.
Desde, porém, que Gerald se aproximará mais do lar, e assumira a responsabilidade da firma, mostrando-se digno gerente, o pai, cansado de lidar com aqueles trabalhos, depositara toda a confiança no herdeiro, quanto à chefia da indústria; entregara-lhe a administração de tudo, pondo-se ele próprio na dependência, assaz comovente, desse "inimigo" jovem. O fato despertou, no coração de Gerald, uma gratidão imediata, ofuscada sempre, no entanto, pelo desdém e pela rivalidade inconfessada. Gerald reagia contra a caridade e ela, todavia, dominava-o, exercendo grande importância em sua vida interior; sentia-se incapaz de a repelir. Assim, estava de acordo com o que o pai fazia, embora tentasse opor-se. Agora já não podia fugir aos seus sentimentos: invadia-o a piedade, a ternura, o remorso, a despeito do antagonismo profundo e tenaz que reinava entre os dois.
Crich conquistara Gerald através da compaixão; mas, pelo amor, alcançara o coração de Winifred. Era a mais nova, aquela que ele sempre distinguira mais. À jovem concedia a ele todo o grande amor, cheio de proteção e de vaidade, da sua alma de moribundo. Desejaria protegê-la indefinida e infinitamente, envolvê-la no seu calor, na força do seu amparo e de sua paixão. Se a pudesse salvar de futuros desgostos, de mágoas e de ofensas Crich fora tão justo durante a sua existência, tão constante na ternura e na bondade! Aquela estima apaixonada pela pequena Winifred era o último amor a que ele tinha direito. Muitas coisas ainda o preocupavam. O mundo fugia-lhe das mãos, a força decaía. Já não havia pobres, nem humilhados, nem oprimidos para abrigar e socorrer. Tudo desaparecia: nem filhos, nem filhas com que se importasse ou o fizesse sentir responsabilidades. Tudo se desvanecia da realidade. Tudo escapava ao seu poder, deixando-o inteiramente livre.
Restava-lhe apenas o terror secreto, o medo da mulher, quer estivesse imóvel, estranha e sem ideias, em seu próprio quarto, quer viesse ao dele, em passos lentos e cautelosos para o espreitar. Procurava afugentar tal ideia, mas a retidão de toda a sua longa vida não conseguia isentá-lo desse íntimo receio. Contudo, ia sempre conjurando o perigo. Nunca ela se atreveria a mostrar-se abertamente. A morte chegaria em primeiro lugar.
E, então, recordava-se de Winifred. Se ao menos estivesse tranquilo a seu respeito. Desde a morte de Diana e do agravamento da doença dele, a preocupação pelo futuro de Winnie aumentara cada vez mais, ate à obsessão. Era como se, mesmo moribundo, devesse suportar a ansiedade, a responsabilidade do amor e dos cuidados, naquele pobre coração doente.
Tão singular, tão sensível e inflamável aquela criança! Tinha herdado do pai os cabelos negros e a aparência calma, mas, no fundo, era rebelde e impulsiva. Mudava constantemente, como se os sentimentos, para ela, não tivessem nenhuma importância. Parecia, às vezes, divertir-se e brincar como a mais alegre das crianças, cheia de afeição, repleta de carinho para com os entes preferidos, o pai e os animais de estimação. Mas se viessem dizer-lhe que a gatinha Leo, sua predileta, ficara debaixo de um automóvel, Winnie olhava, voltava a cabeça e replicava com leve contração do rosto, numa espécie de ressentimento. "Ah, sim?" E nunca mais pensava no assunto. Detestava os criados que lhe traziam más notícias e a queriam forçar assim a ter desgostos. Preferia sempre ignorar as coisas más. Evitava a mãe e a maior parte dos membros da família. Adorava o pai, porque este só pretendia torná-la feliz e porque, na presença dela, parecia tornar-se moço e irresponsável outra vez. Também gostava de Gerald, pela razão de sentir que ele se basta a si próprio, como também gostava de todas as pessoas que lhe tornassem a vida uma constante brincadeira. Possuía espantosas faculdades críticas instintivas; era uma pura anarquista e ao mesmo tempo aristocrata. Acolhia bem os seus iguais, onde quer que os encontrasse, e desconhecia, com jovial indiferença, a existência dos que lhe eram inferiores em espírito, quer se tratasse de irmãos ou irmãs, convidados ricos ou criados e gente do povo. Vivia só consigo mesma, solitariamente, independente de todos - como se não tivesse preocupações, nem ideia de continuidade, e gozasse apenas a hora presente.
O pai, por uma estranha e última ilusão, pressentia que o seu próprio destino dependia da felicidade que assegurasse a Winifred, que devia ser objeto da suprema solicitude paterna, e por várias razões, porque era incapaz de sofrer, porque não sabia estabelecer elos de simpatia, porque lhe seria fácil esquecer as pessoas que amava, e cuja recordação deliberadamente repelia; por ter uma vontade livre em excesso, anarquista, niilista quase, semelhante à ave que voa a seu bel-prazer sem se fixar em nenhum ponto, e, enfim, porque, sem a menor responsabilidade, quebrava, em seus movimentos, os fios de qualquer afeição, sempre alegre, verdadeiramente livre, sem que nada a detivesse!
Quando Crich soube que Gudrun Grangwen podia ensinar a Winnie modelação e desenho, entreviu logo para a filha uma esperança de salvação. Acreditava no talento de Winifred e, como conhecia Gudrun, sabia quanto esta era especial. Podia-lhe confiar a filha com a certeza de que ficaria em boas mãos. Antevia, para a pequena, direção e valor positivo; já não a deixaria sem rumo e sem defesa. Se, antes de morrer, pudesse enxertar a menina numa árvore de confiança, considerar-se-ia livre de maiores responsabilidades. A ocasião surgira e Crich não hesitou em fazer um apelo a Gudrun.
Entretanto, à medida que o pai se afastava lentamente da vida, Gerald experimentava cada vez mais a sensação de estar exposto ao perigo. Crich, afinal de contas, soubera enfrentar as dificuldades terrenas; enquanto o pai estava vivo, Gerald não tinha de se preocupar grandemente com a existência. Agora, porém, o velho desaparecia, e o filho teria de encarar, sem preparação, as tempestades do mundo, como o imediato de um navio cujos tripulantes, já revoltados, houvessem assassinado o capitão; não via diante de si senão um horrível caos. Não herdava a noção da ordem estabelecida nem das ideias seguras. O pensamento unificador da humanidade morria com o pai; a força centralizadora que mantinha todo aquele conjunto parecia cair em colapso ao mesmo tempo em que o velho Crich; tudo estava preparado para entrar em medonha desagregação. Gerald sentia-se abandonado num barco, que afundava pouco a pouco. Comandava um navio cuja armação se desfazia em pedaços.
Sabia que, durante anos, se agarrara à vida para o destruir. E agora, com o remorso de uma criança travessa, via-se prestes a herdar a destruição que fizera. Nos últimos meses, sob a influência da morte dos discursos de Birkin, e do desejo penetrante de Gudrun, perdera por completo aquela certeza maquinal que fora até então o seu triunfo. Por vezes vinham-lhe ímpetos de furor contra Birkin e contra Gudrun e todo o resto da sociedade. Queria regressar ao mais estreito conservantismo, para o meio da gente mais estupidamente convencional. Gostaria de fechar-se no mais estrito "torysmo" - Doutrina política dos "tories", como são conhecidos os membros do Partido Conservador da Inglaterra - nota da tradutora). Mas esta reação não durou tempo suficiente para o levar a agir naquele sentido.
Durante a infância e a adolescência, Gerald sentira desejos de barbárie. A época de Homero definia o seu ideal, quando qualquer homem se podia tornar chefe de um grupo de heróis ou permanecer anos a fio numa odisséia maravilhosa. Detestava, sem o menor pesar, as circunstâncias em que lhe decorria a vida, de modo tal que nunca chegara realmente a conhecer Beldover nem o vale das jazidas de hulha. Voltava as costas, inteiramente, à negra região carbonífera que ficava à direita de Shortlands e enfrentava o campo e as florestas de além de Willey Water. É certo que o arfar e o estridor das minas se podia ouvir mesmo em Shortlands. Mas, desde a mais tenra infância, Gerald nenhuma atenção lhe prestara. Porfiava em ignorar todo aquele oceano da indústria, cujas ondas sombrias lhe vinham banhar os próprios passeios pelo jardim. O mundo era, na verdade, um lugar selvagem onde se andava a cavalo, se caçava e nadava: não existia autoridade, Gerald era um revoltado contra ela. A vida transcorria, pois, em plena liberdade.
Fora enviado para o colégio, o que se lhe afigurou lúgubre como a morte. Recusou-se a ir para Oxford e preferiu uma universidade alemã. Passou algum tempo em Bonn, em Berlim, em Frankfurt. Desejou ver e conhecer tudo, em curiosa objetividade, como se aquilo fosse o maior dos divertimentos. Em seguida, quis experimentar as artes da guerra. Viajou pelas regiões bravias, que tantos atrativos tinham para ele. O resultado disso foi ter achado a humanidade semelhante em toda a parte, e, para um espírito como o seu, curioso e frio, o selvagem pareceu-lhe mais insípido, menos interessante do que o europeu. Assim, apoderou-se de toda a espécie de ideias sociológicas, de sistemas de reforma, que permaneceram à superfície sem nunca passar de um simples divertimento mental. O seu principal valor residia no fato de ser uma reação contra a ordem estabelecida, reação demolidora.
Por fim encontrou nas minas de carvão de pedra a sua verdadeira aventura. O pai convidara-o a participar da empresa. Gerald havia estudado ciências relacionadas com a indústria extrativa, que não lhe tinham despertado grande entusiasmo. Mas agora - e de repente, com exaltação até - ei-lo a tomar contato com a vida.
O fomento das riquezas tinha-o impresso fotograficamente na consciência, De súbito, tornava-se coisa real e Gerald fazia parte da engrenagem. Ao fundo do vale estendia-se a linha férrea que ligava as minas de carvão umas às outras. Sobre os trilhos corriam os comboios, pequenos, de carretas abarrotadas ou de vagões vazios, exibindo cada um, em caracteres grandes e brancos, as iniciais da firma:
["C. B. & Cia."]
Desde muito criança, Gerald habituara-se com aquelas letras, mas era como se nunca as tivesse visto: quanto mais familiares, mais ignoradas Pela primeira vez descobria também o seu próprio nome escrito nas paredes. E chegava-lhe, enfim, a visão do poder de que dispunha.
Tantos vagões, com as iniciais do nome dos Criches, a correr por todo o país! Via-as quando chegava a Londres, quando ia a Dover! Como se espalhava, até tão longe, o seu domínio! Contemplava Beldover, Selby, Whatmore, Lethley Bank, todas aldeias de mineiros que dependiam inteiramente das minas de seu pai. Eram horríveis e sórdidas, tinham sido o pesadelo da sua infância. Agora, porém, admirava-as com orgulho; quatro vilas recentes, ainda em construção, e vários centros industriais, igualmente feios, agrupavam-se sempre subordinados à administração das minas. Gerald distinguia a multidão dos mineiros saindo do trabalho e espalhando-se pelos caminhos, ao entardecer, milhares de seres humanos carrancudos, vagamente disformes, a boca vermelha se destacando em seus rostos sujos, todos submetidos à vontade do potentado! Às sextas-feiras, de noite, conduzia o automóvel, vagarosamente, até Beldover, ao mercado, através de compacta massa de seres humanos que faziam as suas compras, despendendo o dinheiro da semana. Eram todos seus empregados; feios e grosseiros, mas instrumentos do seu poder. Ele era o deus daquele universo de autômatos. Os homens e as mulheres, maquinalmente, afastavam-se para deixá-lo passar.
Não lhe importava que abrissem caminho de boa vontade ou resmungando. Pouco se lhe dava que pensassem isto ou aquilo da sua pessoa. A visão cristalizava-se-lhe de súbito e a humanidade aparecia-lhe como um utensílio dos seus interesses. Falassem-lhe outra vez de humanitarismo, de sofrimentos e de sentimentos! Coisas ridículas, na verdade! As dores e o sentimento dos indivíduos nada tinham a ver com ele. Meras circunstâncias, como os fenômenos meteorológicos. O que importava era o caráter de instrumento daqueles trabalhadores. Podia-se dizer de um operário, como de uma faca: está cortando bem? O resto não contava.
Tudo no mundo tem a sua função e o bom ou mau desempenho dela é que interessava, em última análise. Um mineiro é um bom mineiro? Isso basta. O próprio Gerald, que tinha sobre os ombros a responsabilidade da empresa, era capaz como diretor? Em caso afirmativo, satisfazia o desiderato. E o resto seriam histórias...
As minas lá estavam. Tão antigas! Esgotavam-se e não valia mais a pena atingir o filão. Falava-se ate em fechar duas delas. Foi nesse momento que Gerald fez a sua entrada em cena.
Olhou em volta. Sim, as jazidas lá estavam. Velhas, obsoletas, semelhantes a leões decrépitos e inúteis. Observou melhor. Ora! O que representava aquilo senão o esforço desajeitado de espíritos sem brilho? Permaneciam ali como obra abstrata de cérebros imperfeitos. Deixá-las dormir sossegadas! Era melhor não pensar nelas, mas sim no carvão que jazia sepultado. Seria em grande quantidade?
De fato, muito grande. As escavações feitas não tinham conseguido atingi-lo, eis a verdade. Portanto, restava voltar as costas à obra já realizada. A hulha existia nos filões, ainda que fossem muito delgados. Existia ali matéria inerte, desde sempre, desde o começo do mundo, à espera do trabalho do homem. A vontade do indivíduo seria o fator primordial. O homem é o senhor da terra: o espírito está às ordens da sua vontade, e esta é absoluta, o único absoluto, afinal.
O desejo do homem é submeter a matéria aos seus próprios interesses. Essa submissão representa o principal; o combate é o fim supremo; os frutos da vitória, mero resultado. Não era por amor ao dinheiro que Gerald se ocupava das minas. A riqueza não se lhe antepunha como princípio e fundamento. Não ambicionava a ostentação nem o luxo, nem pretendia atingir a mais alta condição social. O que o impelia era a satisfação das próprias vontades na luta contra as condições naturais. Manifestava-se esta no propósito de extrair carvão da terra com o máximo proveito. O proveito seria quando muito o preço da vitória, mas o triunfo em si mesmo consistia na realização da obra. Vibrava de prazer em face do desafio. Todos os dias lá estava no local, examinando, experimentando, ouvindo o parecer dos peritos, e fazendo pouco a pouco uma ideia geral da situação, da mesma forma que um chefe militar esboça seus planos de campanha.
Depois foi necessário empregar métodos novos. A exploração fizera-se até ali por processos antiquados, segundo o processo de obter da terra a maior soma de dinheiro a fim de enriquecer e dar conforto aos proprietários, de assegurar aos trabalhadores salários convenientes e boas condições de existência, e espalhar a riqueza por toda a região. O pai de Gerald, que representava a segunda geração dos donos, herdara a indústria em excelentes bases e só se preocupara com a situação dos operários. As minas, para ele, eram antes de tudo vastos terrenos destinados a fornecer pão e bem-estar às centenas de criaturas agrupadas à sua volta. Toda a vida lutou para que os seus homens se beneficiassem com o trabalho, interessando os sócios naquela cruzada humanitária. E, de certo modo, acabou por consegui-lo. Poucos havia que fossem pobres demais ou que passassem grandes dificuldades. Tudo nadava em abundância, porque as jazidas eram ricas e a extração se fazia facilmente. Os mineiros, naquela época, achando-se mais ricos do que podiam esperar, consideravam-se felizes e triunfantes. Julgavam-se abastados, congratulavam-se com a sorte auspiciosa, lembrando-se de quanto os pais haviam sofrido e sentiam que os melhores dias haviam chegado. Mostravam-se reconhecidos para com os proprietários, pioneiros que haviam aberto os poços e feito jorrar a fonte da abundância.
O homem, porém, nunca está satisfeito, e assim, aquela gente passou da gratidão para com os patrões, à murmuração e à desconfiança. O salário pareceu-lhes insuficiente e começaram a reclamar um aumento. Por que motivo havia de ser o patrão muito mais rico do que os operários?
A crise estalou durante a minoridade de Gerald, quando o sindicato dos proprietários fechou as minas porque os trabalhadores não queriam aceitar o salário proposto. Este lock-out forçara Thomas Crich a impor as novas condições. Como pertencia ao sindicato, vira-se obrigado a fechar as jazidas, contra a vontade dos trabalhadores. Ele, o pai, o patriarca, estava compelido a negar os meios de vida aos filhos, ao povo; ele, o ricaço a quem os bens a custo permitiam que entrasse no céu, devia agora voltar-se para os pobres e dizer-lhes assim: "Vocês não trabalharão nem terão com que comer".
Partia-se-lhe o coração ao reconhecer a realidade do estado de guerra. Teria preferido que a sua indústria decorresse no meio do amor. Sim, o amor é que devia ser a força propulsora das suas máquinas! E, pelo contrário, via sair da bainha, cinicamente, a espada da necessidade!
Partia-se-lhe de fato o coração. Precisava de iludir-se e a ilusão acabava de ser destruída. Os homens, é claro, não eram contra ele, mas estavam contra os patrões. Era a guerra, e de boa ou má vontade, Crich sentia que o pior lado era aquele, que ele ocupava, isto em sua consciência. Grandes grupos de mineiros exaltados faziam reuniões diárias, levados por um novo entusiasmo místico. Entre estes, difundia-se o princípio de que "todos os homens são iguais na terra", e pretendiam conduzir a ideia à sua realização efetiva. Não seria, afinal de contas, a doutrina de Cristo? E o que é uma ideia senão o germe da ação no mundo material? "Todos os homens são iguais em espírito, são todos filhos de Deus." De onde vinha então aquela desigualdade tão evidente? Tratava-se de um credo religioso precipitado às suas conclusões terrenas. Só tinha de admitir, de acordo com a sinceridade dos seus dogmas, que a desigualdade era um mal. Mas não podia ceder os seus haveres, que eram a causa dessa mesma desigualdade. Assim os mineiros combateram pelos direitos que lhes assistiam. Inspirava-os a paixão da igualdade, último ímpeto do verdadeiro fanatismo religioso existente sobre a terra.
A turba amotinada punha-se em marcha; viam-se os rostos iluminados de fé, como numa guerra santa, envoltos numa fumaça de cobiça. Como seria possível separar a paixão pela igualdade do instinto, da cupidez, naquele início de luta pela distribuição de riquezas? Mas o Deus era a máquina. Cada homem proclamava a igualdade perante a divindade da grande máquina produtora. Cada um deles era parte igual dessa divindade. Entretanto, Thomas Crich sabia que semelhante raciocínio era falso. Se a máquina fosse divina e a produção e o trabalho formas do culto, então o mais maquinal dos espíritos seria o mais puro e o mais nobre representante de Deus na terra. E o resto ficar-lhe-ia subordinado, cada qual conforme a sua categoria.
Houve desordens. Houve um incêndio à entrada da mina de Whatmore. Era a mais afastada da região, já na orla da floresta. A tropa acudiu. Das janelas da casa de Shortlands, naquele dia fatal, podiam-se ver as chamas, a pouca distância, elevando-se para o céu; e o comboio da empresa, que costumava transportar mineiros para Whatmore, atravessou o vale, repleto de soldados com os seus dólmãs vermelhos. Ouviu-se ao longe o ruído das descargas, e chegou a notícia de que os amotinados tinham sido dispersados. Morrera um homem e o fogo fora extinto.
Gerald, que era ainda pequeno, estava maravilhado e excitadíssimo. Desejaria ir com os soldados atirar nos arruaceiros. Mas não lhe permitiram transpor os portões do jardim onde estacionavam as sentinelas armadas. Gerald aproximava-se delas, encantado, enquanto grupos de mineiros vagueavam pelos caminhos, gritando e insultando:
- Mostrem como sabem atirar bem, seus bonecos fardados!
Durante esse tempo, Thomas Crich, de coração opresso, distribuía, por caridade, centenas de libras. Por toda a parte se fornecia comida em abundância. Bastava pedir o pão, o chá era gratuito; as crianças jamais tinham visto semelhante festim. Nas sextas-feiras, à tarde, levavam para as escolas enormes cestas de bolos e doces e grandes latas de leite, para que as crianças se fortalecessem.
Por fim, tudo acabou; os homens retomaram o trabalho. Mas já não era como antes. Criara-se uma nova situação, reinavam novos princípios. Mesmo na máquina havia igualdade. Acabava-se a subordinação de uns para com outros: todos seriam iguais. O instinto do caos entrara ali. A igualdade mística é uma abstração, não no possuir e no agir, simples processos. Em realidade, na função, um homem, parte do conjunto, deve ser subordinado às outras partes. É uma condição da existência. Contudo, o espírito de desordem havia surgido, e a ideia da igualdade mecânica servia de arma para executar a vontade do homem, a sua ânsia de caos!
Gerald, pequeno como era naquela época dos motins, só ambicionava ser homem para combater os mineiros. O pai, no entanto, via-se apertado entre duas meias verdades, que o esmagavam. Precisava ser genuíno cristão e formar ao lado dos operários, seus iguais; desejaria ate distribuir com os pobres tudo quanto possuía. Mas, por outro lado, grande industrial, sabia perfeitamente que devia guardar os bens e preservar a autoridade. Constituía para ele uma obrigação de ordem divina, tão divina quanto a necessidade de distribuir os seus haveres, talvez até mais, o que o obrigava a agir como agia. Todavia, como suas ações não se conformavam com o seu ideal, este obcecava-o, e ele morreria de desgosto por traí-lo. De que adiantara ser pai amoroso, terno e bom, capaz de sacrificar-se! Os mineiros murmuravam sobre os milhares de libras que o magnata entesourava por ano. Não se deixavam iludir!
Crescendo, e tomando melhor conhecimento do mundo, Gerald renegou esse ideal paterno. Para ele pouco importava a igualdade. A moral cristã de amor e de sacrifício era a coisa antiquada. Para ele a posição social e a autoridade constituíam coisas sérias e justas neste mundo e seria tolice desconhecê-las. Eram justas pela razão de serem necessárias ao funcionamento da sociedade, embora não representassem um fim supre moo. Assemelhavam-se às partes componentes de um maquinismo. Ele próprio formava a parte central desse todo, no seu lugar de chefe, e o conjunto dos operários era a parte sujeita à sua fiscalização. Assim mesmo acontecia: nem mais nem menos. Irritar-se alguém pelo fato de um eixo central pôr em movimento centenas de rodas seria o mesmo que acusar o sol de fazer girar os astros. Afinal de contas, que tolice seria, por exemplo, a Terra, a Lua, Saturno, Júpiter ou Vênus reivindicarem o direito de serem o centro do Universo! Tal asserção só teria por fim a vontade de provocar desordens.
Sem se afligir por chegar a uma conclusão especulativa, Gerald agarrou-a, antes, pelos cabelos. O problema da igualdade democrática foi posto de lado como absurdo. O que importava era a grande máquina social da produção. Deixá-la funcionar com acerto; deixá-la produzir tudo em quantidade suficiente; que receba cada homem a sua porção racional, maior ou menor consoante o grau de trabalho ou o lugar ocupado, e então, realizada a obra, o diabo intervenha e cada um procura os seus prazeres e apetites, uma vez não cause prejuízo a ninguém.
Assim se lançou Gerald na sua tarefa e restabeleceu a ordem na indústria. Tanto nas viagens que fiz erra como nos livros que lera, adquirira a convicção de que o segredo essencial da vida repousa na harmonia. Em que consistia, porém, essa harmonia, não lhe fora fácil dizê-lo com nitidez. A palavra agradava-lhe, e Gerald tinha a impressão de haver atingindo o seu próprio desiderato. Empreendeu, pois, o encargo de pôr a sua filosofia em prática, obrigando o mundo a aceitar os princípios de ordem e traduzindo a expressão um tanto mística de harmonia pelo nome mais prático de organização.
Viu, com clareza, o que a empresa era e o que lhe convinha fazer. Forçoso seria travar luta com a matéria, com a terra e com a hulha nela contida. Esta foi a única ideia: voltar-se para a matéria inanimada do subsolo, e submetê-la pela sua vontade. Para este combate fazia-se mister possuir instrumentos e ferramentas, tudo bem organizado, mecanismo tão perfeito e harmonioso nos seus pormenores que representasse o pensamento dirigente do homem, que esse mecanismo, pela repetição constante dos movimentos que lhe eram dados, realizasse os fins em vista, de forma irresistível, inumana. Este princípio inumano das máquinas, que Gerald sonhava pôr em funcionamento, inspirava-lhe ardor religioso. Ele, homem, podia fazer intervir um agente perfeito, imutável, quase divino, entre ele próprio e a matéria a dominar. Havia dois antagonistas, a sua vontade e a resistência da terra. E, entre ambos, Gerald estabeleceria a expressão do seu querer, a encarnação do seu poderio, a máquina enorme e infalível, sistema e atividade de pura ordem, repetição meramente mecânica, até ao infinito, por isso mesmo eterna e infinita. Achava assim o eterno e o infinito no puro princípio da máquina, princípio de completa coordenação num perfeito e complexo movimento sempre igual, como o manobrar de uma roda, mas rotação produtiva, produtiva repetição eterna e infinita! Seria assim um deus movimentando essa contínua rotação sem limites. Gerald tomaria as proporções de um deus das máquinas. E toda a intenção produtora do homem revelar-se-ia divina.
Tinha ele, agora, o seu plano de vida: desenvolver sobre a terra um sistema denso e perfeito, no qual a vontade humana deslizaria suavemente, sem obstáculos, alheia ao tempo, como uma divindade em moimento. Começaria pelas minas. As premissas estavam estabelecias: primeiro, a resistência da matéria no subsolo; depois, os processos de submissão, instrumentos pessoais e metálicos; e, finalmente a sua própria vontade, a sua inteligência. Seria preciso combinar maravilhosamente miríades de instrumentos humanos, animais e metálicos como dínamos e motores, extraordinária fuso de milhares de pequeninas coisas num todo maior e mais perfeito. E então, neste caso, a exatidão seria atingida, a vontade superior completamente realizada e a da humanidade inteiramente compreendida, pois a vontade humana não se opunha de maneira mística à matéria inanimada; não seria a história da primeira nem mais nem menos do que o relato do seu triunfo sobre a segunda?
Os mineiros haviam sido ultrapassados. Enquanto se embaraçavam ainda nas redes da divina igualdade dos homens, Gerald passara-lhes à free, resolvera-lhes o problema e empreendera, na sua qualidade de ser humano, a execução da vontade dos seus semelhantes considerada em conjunto. Não fazia mais do que representar os mineiros, no melhor sentido, considerando que a única maneira de efetivar totalmente o desejo do homem consiste em construir a máquina perfeita e inumana. Não os representava, porém, senão em essência: estavam muito longe dele, antiquados, ainda a questionar sobre a igualdade material. A vontade transmudara-se em novo e maior desejo, que era a atenção de um mecanismo infalível entre o homem e a matéria, transformando assim a divindade em mecanismo também.
Logo que Gerald fez parte da empresa, todo o velho sistema em que esta girava começou a experimentar as convulsões da morte. Toda a vida sentira o rapaz que um demônio poderoso e destruidor se apossava dele, às vezes como uma espécie de loucura. Este temperamento entrou assim para a firma como um vírus e produziu cruéis erupções. Terrível e desumano, Gerald examinava as coisas uma por uma, com minúcia; não poupava situações particulares, não se detinha em razão de nenhum sentimento. Observava os velhos gerentes de cabelos brancos, os empregados antigos, os reformados assustadiços, e removia-os como trastes inúteis. A empresa parecia então um asilo de inválidos. Gerald não tinha escrúpulos sentimentais. Estabeleceu as aposentadorias necessárias, tratou de procurar substitutos idôneos e, quando os conseguia obter, fazia logo as modificações do pessoal.
- Recebi uma carta comovente de Letherington - dizia-lhe o pai em tom suplicante. - Você não acha que poderíamos conservar esse infeliz por mais algum tempo? Sempre apreciei o trabalho dele.
- Já arranjei quem o substituísse, pai. Ele será mais feliz fora daqui, pode crer. Não lhe parece suficiente a pensão que lhe damos?
- Não é bem o que ele deseja, coitado. O que sente é ser afastado do serviço. Diz que se sente em condições de trabalhar por mais vinte anos.
- Mas não no gênero de trabalho que eu preciso. O homem não entende nada disso.
O pai suspirava e não queria saber de mais nada. Tinha a impressão de que, se quisessem continuar a trabalhar realmente, tudo teria de ser reformulado. E, afinal de contas, não seria pior para todos se tivessem de fechar as minas? Assim, o velho Crich limitava-se a responder aos requerimentos dos seus antigos e fiéis empregados: - "É Gerald quem resolve!"
Desta maneira, o pai foi entrando, pouco a pouco, na sombra. Toda a energia vital se lhe esvaíra. Mantivera-se de acordo com os seus princípios, que eram os da religião, mas que, no entanto, se tinham tornado ultrapassados, postos de lado pela sociedade atual. Já não compreendia nada. Restava-lhe apenas ir esconder-se no quarto, com suas velhas doutrinas, e ficar silencioso. Os belos círios da crença, que já não iluminavam o mundo, continuariam a arder, docemente, suficientemente, na câmara triste da sua alma, na paz do isolamento.
Gerald começou a reforma pelo escritório da firma. Precisava fazer economias severas para que tivessem eficácia as alterações introduzidas.
- Que é isso de carvão para as viúvas? - perguntou
Temos sempre concedido às viúvas dos homens que trabalharam na empresa certa quantidade de carvão, de três em três meses.
- Pois vamos suspender o fornecimento. Isto aqui não é instituição de caridade, como muita gente imagina.
Sentia aversão em pensar naquelas estúpidas imagens do humanitarismo sentimental. Pareciam-lhe quase repelentes aquelas viúvas. Não teria sido preferível havê-las imolado, a cada uma, na fogueira do marido defunto, como na Índia? Que pagassem, ao menos, o preço do carvão.
De mil maneiras foi restringindo as despesas, e com tanta habilidade que os outros mal davam por isso. Os mineiros deviam pagar o transporte do carvão que lhes era fornecido, o que não deixava de pesar nas despesas; pagavam, igualmente pelos utensílios do trabalho, pela conservação, pelo gasto da iluminação e mil outras coisas insignificantes que, todavia, importava, no fim da semana, em cerca de um xelim por cabeça. Embora tudo isto os aborrecesse, não se acautelavam suficientemente. Para a firma resultava numa economia de centenas de libras semanais.
A tudo estendeu Gerald, gradualmente, a sua fiscalização, ate que começou a reforma propriamente dita. Em cada serviço entraram engenheiros peritos. Procedeu-se a uma poderosa instalação elétrica, tanto para obter luz, como para tração subterrânea e força motriz em geral. Cada mina recebeu, pois, eletricidade. Compraram-se maquinismos novos na América, maquinaria que os operários jamais haviam visto. Gigantes de ferro, assim chamavam eles aos engenhos de perfuração e outros mais, ate ali desconhecidos. O trabalho nos poços mudou por completo, a vigilância deixou de ser exercida pelos mineiros e o sistema de contramestres foi abolido. Tudo funcionava pelo mais rigoroso e aperfeiçoado método científico; por todos os cantos havia pessoas vigilantes, fiscalizando, e os mineiros restringiam-se ao papel de meras ferramentas da profissão. Tinham de trabalhar de verdade, muito mais do que antes, numa tarefa desmoralizadora, pelo aspecto que apresentava, de maquinal.
A tudo, porém, se submeteram. A alegria abandonou-os, a esperança esmoreceu à medida que se tornavam simples autômatos. E, contudo, aceitaram as novas condições, chegaram mesmo a descobrir-lhes sabor. No começo detestaram Gerald Crich, prometeram contrariá-lo, assassiná-lo, até. Mas, com o decorrer do tempo, aceitaram tudo com uma resignação um tanto fatalista. Gerald era o sacerdote máximo, representava a religião que eles na realidade professavam. O pai foi depressa esquecido. Havia agora um mundo diferente, uma ordem nova, terrível, desumana, mas que satisfazia pelo seu próprio espírito revolucionário. Aos operários não desagradava pertencerem a essa máquina imensa e maravilhosa, ainda mesmo que ela os destruísse. Era isso que desejavam; parecia-lhes o mais elevado que o homem ate então concebera, o mais extraordinário e sobre-humano. Exaltava-os a ideia de fazerem parte desse sistema superior e fenomenal, que ultrapassava o sentimento e a razão, qualquer coisa, na verdade, divina. Os corações sucumbiam, mas as almas orgulhavam-se. De outra maneira Gerald não teria conseguido o seu fim. Ia de encontro à vontade do grupo, proporcionando o que a turba operaria desejava, essa participação no vasto sistema admirável que sujeitava a vida aos puros princípios matemáticos. Originava uma espécie de liberdade, a que eles ambicionavam realmente. Fora dado o primeiro grande passo na demolição, a primeira e avassaladora fase do caos, destruição do organismo, dos intentos e da unidade orgânica pelos axiomas da mecânica; subordinação de todos os elementos individuais e sociais a um propósito exclusivamente abstrato. Pura desorganização, por um lado, mas pura integração, por outro. Eis o primeiro e mais perturbador estágio da desordem.
Gerald andava satisfeito. Sabia que os mineiros o tinham odiado. Ele, por seu lado, já deixara de lhes sentir aversão. Quando, ao entardecer, vinham em bandos, arrastando as pesadas botas com que sujavam o chão, os ombros levemente descaídos, aqueles homens não o cumprimentavam, nem sequer olhavam para ele; passavam como uma corrente negra e cinza, insensível e resignada.
Para ele, é claro, não tinham a menor importância, a não ser como instrumentos; nem Gerald a possuía, para os homens, que apenas o consideravam a peça suprema de toda a máquina. Uns existiam como mineiros, outro como diretor. Admirava-lhes a qualidade do trabalho, porém como pessoas, não eram mais do que simples acessórios, pequenos fenômenos esporádicos, sem importância. Os homens, tacitamente, concordavam com isto, já que Gerald era o primeiro a aprovar.
Obtiveram bom êxito. Convertera a indústria em algo puro, novo e terrível. Extraía-se mais carvão do que nunca, portanto, o sistema funcionava às mil maravilhas. Havia um punhado de técnicos inteligentes, tanto para as minas como para o sistema elétrico e a despesa com eles não era muito grande. Um homem instruído e diplomado não custa muito mais do que um operário. Os gerentes, todos indivíduos capazes, não obrigavam também a maiores dispêndios do que aqueles atabalhoados dirigentes do tempo do velho Crich, que não passavam de antigos mineiros promovidos. O diretor principal, que recebia mil e duzentas libras por ano, fazia a empresa poupar, pelo menos, cinco mil. Tudo aquilo girava tão bem que o próprio Gerald podia quase ser dispensado.
Era tudo, na verdade, tão perfeito, que um medo estranho muitas vezes o assaltava. Viveu durante anos num delírio de atividade. O que fazia sempre lhe parecia bom demais; Gerald tomava proporções de divindade. Personificava o dinamismo puro e exaltado.
Mas agora, fora bem sucedido, atingira a finalidade proposta. Por mais de uma vez, quando se encontrava, à noite, sem nada para fazer, invadia-o subitamente o terror, não sabendo já o que ele próprio era. Ia até diante do espelho e mirava-se demoradamente, examinando o rosto, os olhos, procurando qualquer coisa. Tinha medo: um medo mortal, mais ignorava de quê. Contemplava-se de novo. Ali estava, bem constituído e saudável, o mesmo de sempre; contudo, não se sentia real, julgava-se uma máscara. Não se atrevia a tocar na face, com receio de verificar o que realmente era. Os olhos continuavam azuis e brilhantes, o olhar permanecia firme. Todavia, não tinha a certeza de que não fossem bolhas da mesma cor, que rebentariam de uma hora para outra, deixando-o aniquilado. No fundo delas descobriu uma sombra, como se fossem bolas, de fato, cheias de treva. E temia que ele mesmo, um dia qualquer, se tornasse um inútil e não significasse mais nada, na escuridão envolvente, do que um balão apagado.
Mas a vontade não declinara. Gerald estava sempre apto a agir, ler, pensar. Gostava dos livros que tratavam do homem primitivo, consultava volumes de antologia e de filosofia especulativa. Tinha o espírito ativo. Assemelhava-se, porém, a uma esfera flutuando nas trevas. A todo o momento poderia rebentar, atirando-o no caos. Morrer, não morreria; isso sabia-o bem. Continuaria a viver, mas uma vida sem objetivo, vazia da divina razão. Sentia medo, medo estéril e singular, sem poder, contudo, reagir àquele pavor. Era como se os centros nervosos se lhe secassem. E mesmo quando pressagiava o enfraquecimento do espírito - que devia desaparecer em uma daquelas crises - Gerald conservava a tranquilidade, calculada e sã, livremente pensada e meditada.
Mas a tensão era grande. Pressentia faltar-lhe o equilíbrio. Deveria ir para qualquer lugar, o mais breve possível e procurar repouso. Só Birkin seria capaz de o livrar daquele medo, preservá-lo de tudo, graças àquela mobilidade e versatilidade que o caracterizavam e que parecia conter uma fé profunda e permanente. E, no entanto, Gerald continuava afastado de Birkin, como uma pessoa que sai de uma cerimônia na igreja e reentra no mundo do trabalho e da existência material. Ele lá estava, não era outro, e tais ideias não passavam de fantasias. Fazia-se mister que se conservasse em contato com o mundo, e com a existência material. Eis o que se tornava cada vez mais difícil, tal a pressão que se exercia sobre a sua pessoa, como se, por dentro, se houvesse formado o vácuo e a superfície não tolerasse a pressão atmosférica
O único alívio era dado pelas mulheres. A seguir a uma orgia com qualquer prostituta, Gerald se acalmava e esquecia a obsessão. O pior é que logo perdia o interesse pelas mulheres. Não se importava mais com elas. Bichana, por exemplo, agradava-lhe, mas isso era exceção e, mesmo assim, não o prendia muito. Não, só mulheres, como mulheres, tornavam-se inúteis daí por diante. Compreendia que o espírito precisava ser estimulado com violência, antes que o homem despertasse fisicamente.


Capítulo XVIII
O coelho
Sabia Gudrun o quanto era perigoso ir para Shortlands e como isso equivalia a aceitar o amor de Gerald Crich. E embora hesitasse por não lhe agradar a perspectiva, tinha, contudo a impressão de que viria a aceitar. Procurava esquivar-se à evidência. Dizia consigo mesma: "Afinal de contas, que aconteceu demais? Que é um beijo? Mesmo uma bofetada, que importância tem? Simples momento, que logo se desvanece. Poderei ir a Shortlands, por uns dias, antes de partir, nem que seja só para ver como aquilo é." Gudrun era uma pessoa realmente interessada em ver e conhecer todas as coisas.
Desejava saber também como seria Winifred. Ouvira-a gritar naquela noite, da amurada da barca e sentia-se unida a ela por um laço misterioso.
Falava agora com o velho Crich na biblioteca da casa. Chamaram a filha, que logo apareceu em companhia da governanta.
- Winnie, aqui está a senhorita Brangwen, que condescendeu em ensinar desenho e modelagem a você - disse o pai.
A pequena olhou para Gudrun, com muito interesse, antes de adiantar-se para estender-lhe a mão, o que fez olhando para o lado. Na sua reserva infantil havia um perfeito autocontrole e completa indiferença, talvez uma certa insensibilidade de criança irresponsável.
- Como vai? - foi a frase de Winifred, que nem levantou a cabeça.
- Como vai? - disse Gudrun.
A menina afastou-se, em seguida, e Gudrun foi apresentada à governanta, que observou, amavelmente:
- O dia está lindo, não?
- Lindíssimo - assentiu a artista.
Winifred contemplava-as a distância. Divertia-se, mas ainda não tinha ideia exata do que representaria aquela nova personagem. Aparecia-lhe tanta gente desconhecida, que nem sempre chegava a tomar conhecimento real da sua presença. A própria governanta pouco ou nada representava para ela; Winnie limitava-se a suportá-la, calma ou resignada, aceitando aquela fraca autoridade com vago desprezo e complacência, mostrando sempre a arrogância e a indiferença próprias da sua idade.
- Então, Winifred - perguntou o pai - está contente com a chegada da Senhorita Brangwen? Esta moça faz esculturas de animais, pássaros, principalmente, de madeira e de barro. Tem sido elogiada em Londres e os jornais estão sempre aludindo a ela.
Winifred sorriu ligeiramente.
- Quem lhe contou, papai?
- Quem? Hermione e Rupert Birkin.
- Conhece-os? - perguntou ela a Gudrun, voltando-se para encará-la com ar de desafio.
- Conheço.
Winifred modificou-se um pouco. Preparara-se para receber Gudrun como uma espécie de criada, e agora via que era como pessoa amiga que ela se apresentava naquela casa. Esta constatação alegrou-a. Tinha tantos inferiores, que tolerava, que remédio, com a melhor disposição!
Gudrun permanecia tranquilo. Também não tomava essas coisas muito a sério. Uma ocasião como aquela também lhe parecia um espetáculo. Contudo, percebia que a nova discípula era uma criança indiferente, irônica, incapaz de estreitar uma amizade. Agradava à artista e, ao mesmo tempo, intrigava-a. As primeiras lições deixaram-nas, a ambas, contrafeitas. Nem a aluna nem a professora possuíam dons de sociabilidade.
Depressa, porém, se encontraram numa espécie de mundo imaginário. Winifred não dava atenção a pessoas senão quando elas se parecessem consigo, isto é, fossem travessas e brincalhonas. Não aceitava mais nada além do ambiente fantástico em que se movia, e os únicos entes sérios, para ela, eram os animais de sua predileção. A estes prodigalizava, quase com ironia, o seu afeto e a sua presença. Às criaturas humanas submetia-se com aborrecimento e desdém.
Tinha um cãozinho chinês chamado Ló-Ló, que era o seu encanto.
- Vamos desenhá-lo? - propôs Gudrun. - Talvez consigamos um bom trabalho.
- Meu querido! - exclamou a menina, precipitando-se para o animal, que estava sentado diante do fogão em atitude contemplativa. Beijou-lhe a testa saliente, murmurando: - Quer que façamos o seu retrato? Quer? - Depois, com um sorriso amável, voltou-se para Gudrun, dizendo-lhe: - Vamos, mãos à obra!
Pegaram lápis e papel e dispuseram-se ao trabalho.
- Meu queridinho! - E Winifred apertou o cachorrinho, cheia de ternura. - Fique quietinho enquanto a sua mamãe faz um lindo retrato. - O cão olhou para ela com os olhos esbugalhados cheios de resignação. A pequena tornou a beijá-lo com fervor, dizendo: - Gostaria de saber como vai sair o meu desenho. Acho que vai ficar horrível.
Com o lápis na mão, dava gritinhos de alegria e acalmava, de tempos em tempos, o animal.
- Fique assim, meu lindo!
E, sempre rindo, animava o cão, com ar de penitência, como se tivesse sido má para com ele. Ló-Ló continuava imóvel, com expressão resignada, reveladora de gerações e gerações de uma raça de animais mal-humorados. Winifred desenhava devagar, mostrando nos olhos uma concentração de espírito mais ou menos intensa; a cabeça descaía para o lado. Trabalhava extasiada. De repente, deu o trabalho por terminado. Olhou para o cão, depois para o desenho e bradou, como se tivesse pena da tortura a que submetera o modelo, mas ao mesmo tempo, com perversa satisfação:
- Minha lindeza, o que foi que fizeram com você?
Pegou o papel e meteu-o debaixo do focinho do cão, que desviou a cabeça, triste e mortificado. Num impulso, Winnie beijou novamente a testa aveludada do animal.
- É o Ló-Lozinho, o meu Ló-Lozinho! Veja o seu retrato, amor, veja o seu retrato, que a mamãe fez! - Mirou o desenho e tornou a rir-se. Então, beijando Ló-Ló mais uma vez, ergueu-se e aproximou-se gravemente da professora, apresentando-lhe o papel.
Era o esboço grotesco de um bicho não menos grotesco, tão feio e tão cômico que aos lábios de Gudrun, inconscientemente, aflorou um sorriso. Winifred, ao seu lado, parecia satisfeita.
- Não está parecido? - perguntou. - Ló-Ló será melhor do que isto? É tão bonito, coitadinho! - E foi outra vez acariciar o cãozinho, que estava de má catadura, a observar seus arroubos com ar melancólico, cheio de repreensão. Depois a pequena correu para rever o desenho, sentindo-se mais encantada ainda.
- Não está igualzinho? - perguntou à professora.
- Sim, é ele mesmo - concordou Gudrun.
Winnie levou o desenho, como quem conduz um tesouro, e foi mostrá-lo a todos, fingindo modéstia.
- Olhe! - disse, passando o papel às mãos do pai.
- Claro que é o Ló-Ló - exclamou Crich. E examinou o desenho surpreendido, enquanto a filha, ao lado, sufocava o riso.
Gerald estivera fora de casa no primeiro dia em que Gudrun veio a Shortlands. Mas na manhã do seu regresso, foi logo procurá-la. O tempo estava belo e ensolarado, e o rapaz foi andar pelo jardim, admirando as flores que haviam desabrochado na sua ausência. Barbeara-se e vestira-se cuidadosamente, como de costume, com os cabelos louros bem penteados, brilhantes ao sol, com o bigodinho também louro e bem aparado; os olhos dardejavam aquele brilho amável, talvez enganador. Vestia-se de preto e a roupa ajustava-se bem ao seu corpo robusto. Enquanto se demorava em frente aos canteiros de flores, sentia um certo isolamento, talvez um pouco de receio, uma sensação estranha de que lhe faltava alguma coisa.
Gudrun vinha apressadamente, sem ser vista. Estava de azul, com meias de lã amarela, como os rapazes da Bluecoat - Alunos das Escolas de Chrisfs Hospital (uniforme azul) - nota da tradutora) usavam. Gerald sobressaltou-se quando a avistou. Aquelas meias desconcertavam-no, assim amarelas, dentro de pesados sapatos escuros. Winifred, que brincava no parque acompanhada pela governanta voou ao encontro de Gudrun. A menina usava um vestido de listras pretas e brancas. Os cabelos estavam cortados bem curtos.
- Vamos desenhar Bismarck? - perguntou ela, enfiando a mão no braço da professora.
- Vamos, se você quer.
- Ainda bem! Estou louca para desenhá-lo. Ele está com um ar feroz esta manhã. Parece ate um leão. - Riu-se da própria comparação e acrescentou: - Um autêntico rei, palavra!
- Bonjour, Mademoiselle - saudou a preceptora francesa, fazendo uma daquelas mesuras que Gudrun detestava. - Winifred - continuou, dirigindo-se à professora - veut tant faire le portrait de Bismarck... Oh, mais toute la matinée: Vamos desenhar Bismarck esta manhã! Bismarck, Bismarck toujours Bismarck. C'est un lapin, n'est-ce pas, Mademoiselle? - Bom dia senhorita... Winifred... anseia por fazer o retrato de Bismark... Oh, mas toda a manhã... É um coelho, não é, senhorita? - nota da tradutora).
- Oui, c'est un grand lapin blanc et noir. Vous ne l'avez pas vu? - Sim, é um coelho grande, branco e preto. Não o viu? - nota da tradutora) - perguntou Gudrun no seu francês correto, mas um pouco duro.
- Non, Mademoiselle, Winifred n'a jamais voulu me le faire vair. Tant de fois le lui ai demande: "Qu'est-ce donc que ce Bismarck, Winifred?" Mais elle ria pas voulu me le dite. Son Bismarck, c'etait un mystère - Não, senhorita, Winifred nunca permitiu que eu o visse. Tantas e tantas vezes eu lhe perguntei: "Então, que Bismarck é esse?", porém ela não me quis dizer. Seu Bismarck era um mistério. / Sim, é um mistério, realmente um mistério - nota da tradutora).
- Oui, c'est uri mystère, vraiment um mystère! Senhorita Brangwen, diga que Bismarck é um mistério - interveio Winifred.
- Bismarck é um mistério, Bismarck c'est un mystère, der Bismarck er ist ein Wunder - disse ainda Gudrun, como em fórmula de exorcismo, com voz zombeteira.
- Ja, er ist ein Wunder - tornou Winifred com estranha seriedade, através da qual se percebia um risinho abafado e perverso.
- Ist er auch ein Wunder? - e Mademoiselle sorria com ar vagamente insolente.
- Doch! - disse Winifred, de forma brusca, já indiferente.
- Doch ist er nicht ein König. Bismarck não era rei, como imagina. Era apenas... /' rietait que chancelier.
- Qu'est-ce qu'un chancelier? - indagou Winifred, com desprendimento desdenhoso.
- Chancelier é chanceler, creio que uma espécie de juiz... - explicou Gerald, aproximando-se e apertando a mão de Gudrun. - Vocês estão fazendo muito barulho por uma coisa tão pequena!...
Mademoiselle não disse nada e fez a sua reverência discreta de boas-vindas.
- Então, não a deixaram ver Bismarck? - perguntou Gerald.
- Non, Monsieur.
- Pois fizeram mal. E você, que vai fazer dele? - acrescentou, dirigindo-se a Gudrun. - Preferia que o levassem para a cozinha e o metessem na panela.
- Ah, não! - gritou Winifred.
- Vamos desenhá-lo - propôs Gudrun.
- Desenhem-no cortem-no em pedaços e sirvam-no em um prato - aconselhou Gerald com ênfase proposital.
- Não! - bradou Winifred fingindo-se indignada, mas rindo-se disfarçadamente.
Gudrun notou-lhe o ar brincalhão, olhou para ele e sorriu. O rapaz teve a impressão de que seus nervos estavam sendo acariciados. Os olhares dos dois revelaram seu mútuo entendimento.
- Como se tem dado em Shortlands? - perguntou Gerald.
- Muito bem - respondeu ela tranquilamente.
- Alegra-me saber. Já reparou nestas flores? Conduziu-a ao longo da alameda. Gudrun acompanhou-o muito atenta Winifred caminhava também e a preceptora fechava o cortejo. Pararam defronte de um grupo de Salpigrossis rajadas.
- Extraordinárias, não acha? - exclamou Gudrun, observando-as encantada. Era uma coisa estranha aquela admiração reverente e quase estática pelas flores. Gerald sentiu-se invadido de ternura. A moça abaixou-se e, com as pontas dos dedos, com infinita delicadeza, tocou nas pétalas coloridas. O rapaz gostava de a ver assim. Quando Gudrun se ergueu, seus olhos, deslumbrados pela beleza das flores, encontraram-se com os dele.
- Como se chamam? - indagou a moça.
- É uma espécie de petúnia, julgo eu. Não sei ao certo.
- Nunca tinha visto.
Ficaram junto um do outro, numa intimidade contrafeita, enervados pela excessiva proximidade. Gerald ardia de paixão.
Gudrun não se esquecia de que Mademoiselle estava perto, escaravelhozinho francês a observar e a calcular. Mas logo afastou-se com Winifred, dizendo que iam buscar Bismarck.
Gerald viu-as desaparecer, sem, no entanto retirar os olhos do corpo suave, perfeito e calmo de Gudrun, vestida de fazenda sedosa. Como aquele corpo devia ser macio, saboroso e delicado! O espírito encheu-se-lhe de extrema admiração; achou-a apetecível ao máximo, o cúmulo da beleza! Só queria estar junto dela, nada mais. Gerald era apenas isso: aquele que deseja aproximar-se do ente amado, ser todo seu.
Ao mesmo tempo, não fugia à percepção nítida e penetrante das formas de Mademoiselle, elegantes e frágeis. Lembrava, realmente, um escaravelho estilizado, com os tornozelos delgados sobre saltos altos, o vestido negro e brilhante, muito justo, e os cabelos pretos e luzidios admiravelmente puxados para cima. Chegava a arrepiá-lo aquele aspecto tão bem acabado, tão definido. Detestou-a.
E, contudo, não deixava de a apreciar. Era uma mulher corretíssima e contribuía para que ele se aborrecesse com a forma como Gudrun se apresentara, vestida de cores berrantes, como uma arara, numa ocasião como aquela, em que a família estava de luto. Sim, como uma arara. Gerald observava a lentidão com que ela levantava os pés, para andar, com aqueles tornozelos cobertos de amarelo e aquele vestido azul. E, no entanto, o conjunto não era desagradável. Pelo contrário, agradava-lhe bastante. Na maneira de trajar, percebia-se o espírito de revolta de Gudrun, desafiando a tudo e a todos. Gerald sorriu: era como se estivesse ouvindo o som de um clarim.
Gudrun e a discípula atravessaram a casa e saíram pelos fundos, onde ficavam as cocheiras e demais dependências. Tudo estava silencioso e deserto. Crich fora dar um pequeno passeio de carro; o arrieiro acabava de trazer o cavalo de Gerald. As duas foram ate à coelheira, situada em um canto, e contemplaram Bismarck enorme, branco e preto. - Lindo, não é? Veja como ele sabe escutar! E tem um ar tão estúpido! - exclamou a pequena, achando graça. E acrescentou: - Desenho-o com o aspecto de que está ouvindo alguma coisa, sim? Ele nos ouve muito bem. Não é verdade, queridinho?
- Ele pode sair dali?
- É pesado e tem muita força. - Winifred olhou para Gudrun, com a cabecinha de lado, fingindo-se desconfiada.
- Vamos experimentar.
- Se quiser. Mas ele dá pontapés tremendos! Muniram-se da chave para abrir a porta. O coelho começou a correr lá dentro, parecendo irritado.
- Às vezes ele arranha! - exclamou Winifred muito excitada. - Olhe só: é estupendo! - o bicho, aflito, rodava pela coelheira, vertiginosamente. - Bismarck! - bradou a pequena, mais animada ainda. - Você é insuportável! - E voltou-se para Gudrun, sem saber o que fazer. A outra sorriu de modo enigmático e Winifred lançou um grito estranho, inexplicável. - Agora está sossegado! - observou, vendo o coelho agachado no canto mais distante do recinto. - Talvez o apanhemos! - murmurou excitadíssima, com entonação misteriosa. - Vamos apanhá-lo? - repetia consigo mesma, rindo um tanto malevolamente.
A porta estava aberta. Gudrun meteu o braço pela gaiola e pegou no coelho enorme, de pêlo luzidio, que resistia, fincando fortemente os pés no chão. Ouviu-se o ruído das patadas no chão, enquanto puxavam por ele, é, num instante, estava suspenso no ar, debatendo-se energicamente. Parecia um brinquedo de molas que se abrisse e fechasse, assim pendurado pelas orelhas. Gudrun mantinha aquele furacão branco e negro levantando o braço e desviando o rosto. Mas o coelho era fantasticamente rijo, e a jovem quase que perdia a presença de espírito.
- Que modos são esses, Bismarck? - disse Winifred um tanto assustada. - Ponha-o no chão. Ele pode magoá-la.
Gudrun ficou uns instantes indecisa. Seu rosto coloriu-se e sobre ela passou uma nuvem de raiva. Tremia como uma casa abalada pelo vento. E a fúria desencadeada por aquela luta estúpida e selvagem fazia quase com que seu coração parasse; tinha os pulsos feridos pelas garras do animal e sentia que se tornava cruel.
Gerald chegou no momento em que ela tentava prender o coelho, que teimava em fugir, e surpreendeu, com sutil perspicácia, a zanga que lhe ia por dentro.
- Deviam ter chamado alguém para fazer isso - exclamou ele, precipitando-se ao encontro delas.
- Que bicho terrível! - declarou Winifred, já fora de si. Gerald estendeu o braço nervoso e robusto e prendeu o coelho pelas orelhas, tirando-o da mão de Gudrun.
- É fortíssimo! - exclamou esta, em voz aguda.
O coelho fez-se em bola, no ar, e distendeu-se, depois, como um arco. Parecia endemoniado. Gudrun viu o corpo de Gerald retesando-se, viu como seus olhos se velavam de cólera.
- Sei lidar com estes velhacos - disse ele.
O animal, corpulento como era, escoiceou ainda como um demônio, parecendo voar, suspenso; encolhia-se e esticava-se, sempre com inacreditável força e violência. O corpo de Gerald vibrava todo no esforço que tinha de empregar, até que foi tomado por uma ira silenciosa, súbita e violenta. Rápido como um relâmpago, recuou e, com a mão livre, desfechou uma pancada no pescoço do animal. Simultaneamente, ouviu-se um grito horrível, extraterreno, de criatura ferida de morte. Contorcendo-se irado, o bicho dilacerou as mangas da camisa do seu algoz, e, na convulsão final, mostrou a barriga muito branca a luzir na confusão das patas. Gerald balançou-o por um instante, e colocou-o, quase inanimado, debaixo do braço. O animal diminuíra de volume, parecia esconder-se. O rapaz sorriu.
- Sabia que um coelho tinha tanta força? - perguntou, olhando para Gudrun, em cuja face pálida cintilavam os olhos sombrios como a noite. Tudo lhe parecia fantástico. O guincho do coelho, depois da luta violenta, deixara-a entorpecida. Contemplando-a, Gerald intensificava, no próprio rosto, o clarão que o animava.
- Não gosto tanto dele como pensava - declarou Winifred em tom lamentoso. - Importo-me muito mais com Ló-Ló. Este aqui é detestável.
Gudrun sorria. Voltara a si, sentia-se aliviada.
- O grito que estes bichos soltam é a coisa mais horripilante que se pode imaginar - observou ela, ainda com a voz aguda.
- Abominável - concordou ele.
- Não deveria ter sido tão teimoso quando o quisemos pegar - murmurou Winifred, estendendo a mão e experimentando tocar no coelho, que se escondia, imóvel e como que morto, debaixo do braço de Gerald. - Não morreu? - continuou ela, interrogando o irmão.
- Não, embora o merecesse.
- Sim, merecia! - exclamou a menina, subitamente divertida. Então, com maior confiança, tocou no animal. - O coração está batendo depressa. Que engraçado!
- Onde quer que eu o coloque?
- No pátio.
Gudrun observava Gerald com seus olhos quase suplicantes, como se houvesse estado à mercê daquele homem, infinitamente atormentada, e acabasse por se reconhecer vitoriosa. Gerald não sabia o que dizer; sentia que entre eles havia uma espécie de pacto infernal. Contudo, para disfarçar, convinha dizer qualquer coisa. Gerald possuía um poder magnético e ela era o alvo inocente daquele fogo assustador. Mas ele esquivava-se às confidências, talvez enfraquecido pela luta.
- Machucou-a?
- Não - respondeu Gudrun.
- O animal é insensível - sentenciou o rapaz, desviando os olhos.
Chegaram ao pátio, que era cercado de velhos muros cor de telha, em cujas fendas cresciam parasitas. No chão a relva se alastrava fresca e macia, formando um tapete perfeito. Por cima brilhava o céu azul. Gerald soltou o coelho que se encolheu e ficou imóvel. Gudrun observava, admirada.
- Por que será que não se mexe? - inquiriu ela.
- Quer esconder-se - explicou Gerald.
A moça fitou-o, e um sorriso breve, enigmático, contraiu-lhe o rosto.
- É preciso ser muito estúpido! - declarou. - Chega a ser irritante. - O som daquela voz vingativa e ao mesmo tempo irônica chegou em vibrações ao cérebro do rapaz. Gudrun, relanceando-lhe o olhar, dava-lhe a entender mais uma vez a cumplicidade dos dois. Havia entre ambos um compromisso que os aterrava. Estavam ligados por terríveis mistérios.
- Quantos arranhões lhe fez? - perguntou ele, mostrando o próprio braço, branco e vigoroso, cheio de vergões vermelhos.
- Que vergonha! - disse ela, corando. - O meu não tem quase nada.
Ergueu o braço e exibiu uma escoriação funda e vermelha na brancura da pele acetinada.
- Um verdadeiro demônio! - foi o comentário de Gerald. Era como se a tivesse adivinhado toda através daquele arranhão do antebraço! Não pretendia tocá-la. E, para isso, teve de dominar-se. A ferida parecia estar aberta em seu próprio cérebro, arrancando a superfície da derradeira consciência, deixando fluir para sempre o éter rubro, irrefletido, insensível, do além, do além obsceno...
- Está doendo? - perguntou, solícito.
- Não! - respondeu a moça.
E, de repente, o coelho, que se conservava enrolado como se fosse uma flor, silencioso e quieto, recomeçou a mexer-se. Desatou a correr em volta do pátio, rápido como uma bala, ou um meteoro, num rodopio tão apertado que devia estonteá-lo. Todos ficaram estupefatos, sorrindo. O coelho descrevia círculos e círculos em volta das velhas paredes como se fora um ciclone.
Parou, depois, bruscamente, embaraçado no capim, e sentou-se a meditar, franzindo o focinho de tal forma que todos tiveram de rir. Durante minutos considerou um tufo de ervas tenras, espiando-o com, os olhinhos pretos e vivos - que talvez estivessem mirando os presentes - pulou muito naturalmente e principiou a comer, com aquele movimento vertiginoso próprio da sua natureza.
- É louco - observou Gudrun. - Esse coelho, decididamente, é louco.
Gerald riu-se.
- É preciso saber primeiro o que é loucura. Não o considero louco, considero-o um coelho.
- Ah, sim?
- Claro. Ele age como outro coelho qualquer.
Disse isto e tornou a rir de uma forma singular, quase acintosa. Gudrun compreendeu e viu que ele e ela eram iniciados, o que a contrariou e aborreceu.
- Graças a Deus por não sermos coelhos - disse, então, em voz aguda e penetrante.
O sorriso acentuou-se ainda mais no rosto de Gerald.
- Por quê? - perguntou, fixando-a muito de perto.
O rosto dela acabou por distender-se num sorriso de cumplicidade.
- Ah, Gerald! - comentou lentamente, em tom forte e decidido. - Por isso e muito mais! - E o olhar dela pousava nele demoradamente, perturbadoramente.
O rapaz teve a sensação de que ela o esbofeteara novamente, ou melhor, que lhe rasgava o peito desapiedadamente. E afastou-se.
- Come, come, meu lindo! - instava Winifred, pondo-se de joelhos para acariciar o coelho. Bismarck fugiu aos pulinhos para longe dela. - Deixe a mamãezinha fazer festinhas no teu pêlo, tão macio...


Capítulo XIX
Luar
Depois da doença, Birkin passou algum tempo no sul da França. Não escreveu a ninguém, ninguém ouviu falar dele. Úrsula, abandonada, sentia haver terminado qualquer coisa na sua existência. Parecia-lhe que a esperança desaparecera da face do mundo. Não era senão um simples rochedo em torno do qual a maré do não ser vinha a subir cada vez mais. Só ela tinha realidade, ela somente, como um penhasco em cuja volta a água ia crescendo. O resto não tinha a menor significação. Úrsula estava desinteressada e insensível, isolada em si própria.
Não havia outra coisa, por agora, senão indiferença desdenhosa e perseverante. O mundo inteiro dissolvia-se no vácuo; ela não tinha contato com ninguém, relações em nenhum lugar. Desprezava e detestava a menor exteriorização. Do fundo da alma, do âmago de si mesma, ela sentia aversão pelos outros, principalmente pelos adultos. Apenas estimava as crianças e os animais; amava as primeiras com um afeto calmo. Sentia vontade de abraçá-las, de protegê-las, de lhes comunicar a vida. Mas este mesmo sentimento, baseado na piedade e na desesperança, resultava para ela em escravidão e sofrimento. Quanto aos animais, adorava-os; achava-os solitários, antissociais do mesmo modo que ela. Gostava imenso de ver os cavalos e as vacas em liberdade. Cada um era um ser isolado, encantador; não se atinham a princípios sociais; tão odiosos! Eram incapazes de paixão e de tragédia, coisas que Úrsula tão profundamente abominava.
Podia mostrar-se agradável e simpática, quase subserviente, para com as pessoas que encontrava. Mas ninguém ficava convencido; todos sentiam, instintivamente, aquele desprezo escarninho que se ria dos seus semelhantes Na verdade, Úrsula nutria sincera animosidade pelos seres humanos. Tudo quanto estava envolvido nesta categoria se lhe afigurava vil e repugnante.
Na maior parte do tempo seu coração fechava-se naquele esforço, oculto e talvez inconsciente, de descobrir os ridículos. Pensava amar, pensava transbordar de amor. Esta era a ideia que fazia de si mesma. Mas o brilho singular da sua presença, maravilhosa irradiação de vida espiritual, denunciava exuberantemente o seu instinto de supremo repúdio, e nada mais.
Contudo, em certos momentos, cedia e enternecia-se, desejando o amor puro, apenas o puro amor. Mas seu outro estado de constante desfalecimento e negação impunha-lhe uma tensão nervosa de que lhe resultava uma grande dor. E voltava-se sempre para o desejo do amor puro.
Saiu uma noite, arrastada por aquele sofrimento. Os que marcam o tempo pela destruição estão para morrer. Essa certeza infundia-lhe uma finalidade: Úrsula tinha agora um alvo na vida e a simples ideia lhe trazia alívio. Se o destino conduzia à morte, à catástrofe, se todos estavam sentenciados, por que havia ela de afligir-se, de hesitar nos últimos passos? Era inteiramente livre, tinha o direito de procurar apoio fosse onde fosse.
Dirigiu-se para Willey Green, na direção do moinho. Ao chegar a Willey Water, viu as águas do lago - que estivera vazio - cobrindo-o novamente. Mas prosseguiu, e internou-se no bosque. A noite era profunda e escura. Úrsula nem se lembrou de ter medo, ela que era tão assustadiça. No meio das árvores, longe do convívio dos homens, havia uma espécie de paz mágica. Quanto mais se embrenhasse na pura solidão, sem nenhum vestígio de gente, muito melhor se haveria de sentir. Na realidade temia em extremo, aterrava-a, mesmo, a proximidade de qualquer pessoa.
Sobressaltou-se, notando qualquer coisa à direita, entre os troncos. Parecia uma presença descomunal que estivesse a espiá-la, esquivando-se, entretanto. Assustou-se. Era, porém, a lua que se erguia através das árvores delgadas, tão misteriosa com o seu sorriso branco e mortuário! Não haveria maneira de evitar; de noite ou de dia, ninguém escapava às faces sinistras, triunfantes e radiosas como as dessa lua aberta num sorriso. Começou a correr, curvando a cabeça para fugir ao lívido satélite. Queria somente rever a lagoa do moinho, antes de regressar a casa.
Como não quisesse passar no pátio, por causa dos cães, Úrsula contornou a colina para chegar à lagoa, vindo pelo lado de cima. A lua sobrepunha-se ao espaço nu e vazio e a moça sofria por se encontrar assim tão exposta. No chão, cintilavam os olhos dos coelhos, fugindo de um lado para o outro. A noite tinha uma transparência de cristal e estava tranquila. Ao longe ouvia-se o balido das ovelhas.
Desviou-se do caminho e desceu a encosta íngreme, coberta de árvores, até a lagoa, onde os álamos entrelaçavam as raízes. Sentia-se contente por entrar na sombra, ocultando-se do luar. Deteve-se na margem escarpada, com a mão em um tronco rugoso, e olhou para a água, que estava perfeitamente calma e refletia o esplendor da luz. Mas, por qualquer razão, já não se sentia contente. Aquele lugar não lhe significava nada. Ouvia o som rouco da represa, e pedia à noite alguma coisa mais: gostaria de uma noite diferente, sem o fulgor daquela. A alma lamentava-se, chorando naquela desolação.
Viu uma sombra que se movia perto da água. Devia ser Birkin. Voltara, talvez, sem haver prevenido. Úrsula admitiu o fato com a maior naturalidade; nada para ela tinha maior importância. Sentou-se nas raízes dos álamos, obscura e escondida, escutando; e o ruído do açude era como um orvalho que se destilasse sonoramente do âmago da noite. As ilhotas estavam no escuro, quase invisíveis, e os canaviais, igualmente sombreados, muito a custa refletiam fragílimos raios lunares. Houve um peixe que saltou acima da água, lançando um clarão na lagoa. Magoavam-na esses brilhos súbitos cruzando constantemente a escuridão noturna e fria. Preferiria que as trevas fossem completas, sem nenhum som e sem nenhum movimento. Birkin, pequeno e sombrio também, com os cabelos polvilhados de luar, aproximava-se vagarosamente. Aproximava-se tanto - e não existia, contudo, para ela. Ignorava que a mulher estava ali. Quem sabe se faria algo que não devesse ser visto? Mas que valor teriam seus ínfimos segredos? Como pode haver fatos ocultos, se tudo é conhecido de todos nós?
Birkin tocava inconscientemente nas corolas mortas das flores, quando passava por elas, e vinha falando sozinho numa linguagem desconexa.
"Não pode fugir", dizia ele. "Não há saída a não ser dentro de você mesmo."
Arrancou uma flor seca e arrojou-a para dentro da água.
"É como uma antífona: ou outros mentem, e você responde cantando. Não haveria verdades, se não houvesse mentiras. Ninguém precisa, pois, afirmar seja o que for."
Parou, contemplou a superfície líquida e lançou-lhe mais algumas pétalas secas.
"Cibele! Maldita seja! Maldita Syria Dea. Existirá alguém que a inveje? Que mais haverá...?"
Úrsula sentia uma incontrolável vontade de rir, ao ouvir aquela voz clamando na solidão. Que coisa ridícula!
Birkin ficara olhando para a água. Depois, abaixou-se, pegou uma pedra e arremessou-a com toda força dentro da lagoa.
Úrsula viu a lua, muito brilhante, saltar e oscilar, deformada. Parecia projetar tentáculos brilhantes, como um pólipo luminoso, palpitando agitadamente à sua frente.
A sombra dele, na margem ficou imóvel alguns instantes, depois agachou-se e procurou no chão. Ouviu-se novo estrondo e surgiu nas águas uma luz intensa; a lua explodira lá dentro e de todos os lados voaram estilhaços de luz branca. Rápidos como pássaros de asas níveas, esses reflexos quebrados correram a superfície, fugindo em clamorosa confusão e lutando contra o bando de ondas escuras que tentava subvertê-los. As vagas de luz mais distantes, escapando ruidosamente, pareciam querer subir pela borda além, enquanto a multidão da cor da treva vinha em sentido contrário, avançando para o centro. Mas, aqui, no coração de tudo, via-se ainda tremer, incandescente e viva uma lua branca não destruída por completo, corpo de lume claro que se contorcia e esforçava, talvez jamais ferida, talvez nunca violada. Dir-se-ia reconstituir-se no meio de estranhas e violentas dores, com o ânimo desesperado. Readquiria vigor, reajustava-se, aquela lua inviolável. E os raios, em finas linhas cintilantes, voltavam outra vez ao astro, apressadamente, e este surgia inteiro sobre as águas, numa verdadeira ressurreição. Birkin deixou-se ficar imóvel, observando, ate que a lagoa ficou novamente tranquila e o planeta quase sereno. Então, satisfeito com a experiência, começou a procurar mais pedras. Úrsula pressentia aquela tenacidade invisível. Mais uma vez as lascas de luz lhe saltaram perante os olhos, ofuscando-a. Logo a seguir outro estampido: a lua pulou, muito branca, desfazendo-se no ar. Flechas resplandecentes voaram por toda a parte e no meio da lagoa reinou a escuridão. Já não havia nenhum foco luminoso; ali era apenas um campo de batalha, onde as sombras e os súbitos clarões se degladiavam. As trevas, densas e pesadas, vinham mais e mais se esbater contra o lugar onde fora o centro fulgurante, apagando tudo inteiramente. Os fragmentos lívidos palpitavam abaixo e acima, sem encontrar refúgio, isolados e brilhantes na água como pétalas de uma rosa que o vento houvesse desfolhado e espargido em derredor.
Regressavam, contudo, vacilantes, ao meio da lagoa, como quem acha o caminho, ansiosos e de olhos incendiados. E quando Birkin e Úrsula contemplavam o espetáculo, a ordem restabeleceu-se, tudo se acalmou: as águas cessaram de bater contra a margem. Birkin espiou a lua a reconstituir-se insidiosamente, viu o centro da rosa entrelaçar-se de pétalas, de forma vigorosa, atraindo os restos esparsos, no esforço ansioso de os reunir.
O homem, porém, não estava satisfeito. Impelia-o como que uma loucura para prosseguir na tarefa. Apanhou pedras enormes e atirou-as uma atrás da outra para o ponto luminoso e claro, ate que não houvesse senão um sussurro de águas balouçantes, e uma nova lagoa surgisse do fundo. A lua desaparecera, e só se notavam pedaços dela voando e cruzando a sombra, sem mira nem significação, confuso negrume, espécie de calidoscópio preto e branco sacudido violentamente. O côncavo da noite oscilava em burburinhos, e da represa, além, vinham relâmpagos sonoros e constantes. Aqui e ali riscavam a treva clarões atormentados, e ao longe, em lugares estranhos, na sombra que dos salgueiros escorria sobre a ilhota. Birkin, sossegado, ficou a escutar e parecia satisfeito.
Úrsula estava perplexa, sem atinar com os fatos. Tinha a sensação de que tombara e que, como a água, se espalhara sobre a terra. Continuou oculta, sem se mover, esperando. Mas ainda assim, vinha-lhe à consciência, embora não o percebesse, todo aquele tumulto de luzes, dançantes, agrupadas numa roda viva e avançando juntas e iguais, como irmãs gêmeas, resolutamente. Haviam alcançado outra vez o centro, renasciam para a vida. Gradualmente se foram reunindo esses fragmentos, engrossando, estremecendo, bailando, recuando de medo súbito, mas teimosos em trilhar o caminho da mansão primitiva, se bem que se julgasse quererem fugir ao mesmo tempo em que avançavam, sempre vacilantes, cada vez mais perto, num mais largo, brilhante e misterioso agrupamento; cada raio disperso entrava no conjunto, ate que uma rosa esfrangalhada, torcida, ou uma lua desfigurada estremecesse de novo nas águas, reajustando-se, recompondo-se, experimentando reanimar-se de tantas convulsões que a tinham lacerado e agitado e fazendo o possível por ser única e completa e por viver em paz.
Birkin demorava-se vagueando pelas margens. Úrsula temia que ele quisesse ainda lapidar a lua. Levantou-se de onde estava sentada e dirigiu-se ao homem, dizendo:
- Não vai atirar mais pedras, não é?
- Há quanto tempo está aí?
- Desde o princípio. Não lhe atire mais pedras, por favor...
- Gostaria de retirá-la da lagoa.
- Mas por que é que odeia assim a lua? Que mal ela lhe fez?
- Será mesmo ódio?
Conservaram-se em silêncio por algum tempo.
- Quando voltou? - perguntou a jovem.
- Hoje.
- Por que não escreveu?
- Não tinha o que dizer.
- E por que não tinha o que dizer?
- Não sei. Por que será que não há narcisos agora?
- Não sei.
Calaram-se outra vez. Úrsula contemplou a lua refletida: conseguira refazer-se e tremia levemente.
- Teria preferido ficar só? - indagou ela.
- Talvez, mas não tenho certeza. Sempre obtive alguma coisa. E você, o que fez de notável?
- Nada. Passei em revista a Inglaterra e cheguei à conclusão de que não me interessa mais.
- Por que a Inglaterra? - perguntou ele, surpreendido.
- Ignoro, mas é assim mesmo.
- Não é um problema de nações. A França está muito pior.
- Eu sei. O que sinto é que nada absolutamente me interessa. Deram alguns passos e sentaram-se nas raízes das árvores, no ponto mais escuro. Em silêncio, Birkin ia recordando a beleza dos olhos dela, banhados às vezes de luz. Como um dia de primavera, repassados de promessas maravilhosas. E disse-lhe então, lentamente, a custo:
- Há em você uma luz dourada; desejaria recebê-la de presente. - Parecia não pensar em outra coisa.
Úrsula ficou admirada. Julgou ter-lhe adivinhado o pensamento. Contudo, aquilo não a desgostava.
- Que espécie de luz? - perguntou
Birkin, porém, subitamente acanhado, nada disse. A ocasião fugiu. Pouco a pouco uma sensação de tristeza se apoderou da moça.
- A minha vida ainda não foi preenchida - disse ela.
- Não - respondeu ele rapidamente, desejoso de mudar de assunto.
- E tenho o pressentimento de que ninguém jamais me terá verdadeiro amor.
Birkin não replicou.
- Você supõe - começou Úrsula, falando devagar - que eu procuro apenas satisfações físicas. Mas não é assim. O que eu desejaria é que o seu espírito fosse útil ao meu.
- Bem sei. Bem sei que não pretende satisfações físicas. Entretanto, eu gostaria que me desse... que me desse a sua alma... essa chamazinha dourada que há em você... e que você desconhece... Dê-me!
Houve uma pausa e Úrsula volveu:
- Como posso fazer isso se você não me ama Você só deseja os seus próprios fins. Não quer ser-me útil, no entanto, deseja que eu o sirva. Você é um egoísta!
Birkin tinha que fazer um enorme esforço para sustentar o debate e para obrigá-la a conceder-lhe o que ele pretendia: a rendição da alma.
- É diferente - explicou Rupert. - Essas duas espécies de coisas são diversas. Eu a sirvo de outra maneira. Nós nos deveríamos unir sem nos preocuparmos com as nossas próprias pessoas, unirmo-nos realmente pela razão de o sermos, como se se tratasse de um fenômeno natural, não uma coisa que devêssemos manter à custa de muito trabalho.
- Não - atalhou ela, pensativa. - Você é um egocêntrico. Jamais mostrou entusiasmo, jamais despendeu um átomo do seu interesse por mim. Só se ocupa de si e de seus problemas. E ainda por cima pretende que eu o sirva!
Isto, porém, não fez mais do que afastá-lo ainda mais da moça.
- Ah! - exclamou. - As palavras não valém nada, de modo nenhum. A coisa é entre nós, ou não é.
- Você nem sequer me tem amor!
- Seja! - foi a irritada resposta de Birkin. - Mas a minha vontade é que... - E, de novo, apareceu-lhe aquela adorável claridade primaveril que os olhos dela irradiavam como se vinda através de uma janela mágica; desejou tê-la sua, no meio deste mundo orgulhoso e indiferente. Mas de que adiantava dizer-lhe que a queria junto a si, entre a indiferença e o orgulho? Que vantagem resultaria dessa conversa? Se tinha de acontecer, aconteceria sem a menor necessidade de palavras. Esforçar-se por convencê-la só lhe traria fadiga. Úrsula era uma ave-do-paraíso que não se deixaria capturar: precisaria vir voando livremente ate o coração!
- Penso sempre que vou ser amada; depois, abandonam-me. Você bem sabe que não me tem amor. Não deseja o meu bem, quer apenas o seu.
Ao ouvir a repetição daquela censura, Birkin sentiu o sangue ferver-lhe nas veias. Desfez-se o encanto que o envolvia.
- Não - respondeu de mau humor. - Não desejo o seu bem, porque não há nada para desejar. O que você ambiciona que eu seja não lhe trará benefício algum. Não é você, mas a sua qualidade feminina que se queixa. E eu não ligo a uma simples boneca de trapos...
- Ah! - fez ela, rindo-se e zombando. - É tudo o que pensa a meu respeito? E ainda tem a impudência de insinuar que existe amor em tudo isso?
Levantou-se indignada, disposta a ir-se embora.
- O que você pretende! - continuou, voltando-se para o homem oculto na sombra -, o que pretende é a ignorância paradisíaca. Sei o que isso significa. Muito obrigada. É bom para você considerar-me uma coisa, que nunca lhe faça a menor observação, que não tenha sequer de falar. Uma coisa, simplesmente uma coisa! Não, obrigada. Se é isso que deseja, há dúzias de mulheres que lhe podem satisfazer nessas condições. Há dúzias de mulheres que se deixariam pisar por você; vá procurá-las, se é esse o seu fim. Vá e procure!
- Não - replicou ele, a quem a cólera obrigava a ser franco. - Eu gostaria que você perdesse essa vontade tão dogmática e sua confiança apreensiva e melindrosa. É só isso o que desejo. Seja confiante, mas de modo que possa agir livremente.
- Agir livremente! - repetiu Úrsula em tom irônico. - Já sabe que o faço, sem pedir a ninguém. É muito simples. Você é que não o consegue, porque se agarra a si próprio como se fosse um grande tesouro. Você... professor de catecismo... fazedor de sermões!
Havia tanta verdade naquelas palavras que Birkin se empertigou e desviou os olhos.
- Não lhe peço que se deixe arrastar ate o êxtase dionisíaco - redarguiu ele. - Sei que não seria difícil, mas detesto os arrebatamentos, dionisíacos ou não. Seria como andar sempre em roda, dentro de uma gaiola. Aconselho-a a que não se ocupe tanto de si; seja como é, sem maiores preocupações, sem insistir, alegre, segura, indiferente...
- Quem insiste? - volveu ela, sarcástica. - Quem é que não deixa de insistir? Não sou eu.
Notava-se na voz da moça uma ironia amarga e um pouco de cansaço. Rupert não respondeu logo.
- Compreendo - disse por fim. - Enquanto nós ambos insistirmos, andaremos fora da razão. Aqui estamos e nunca chegamos a um acordo.
Continuavam sobre as raízes das árvores, na escuridão, à beira da água, imóveis. A noite, em volta deles, era branca e os dois ficavam na obscuridade, vagamente conscientes de si próprios.
Gradualmente, sentiram-se tomados de paz e tranquilidade. Ela, hesitante, pôs a mão em cima da mão de Birkin, que a apertou carinhosamente, em silêncio.
- Gosta realmente de mim? - murmurou. O homem riu.
- Chamo a isso o seu pregão de guerra - retorquiu, sorrindo.
- Por quê? - indagou a jovem, rindo-se também, embora surpresa.
- A sua insistência!... O seu grito guerreiro, em outros tempos devia ser: "Por Brangwen!" Mas agora é: "Ama-me? Ou sim, ou morres, vilão!"
- Não - replicou Úrsula, defendendo-se. - Não é isso. Não é bem assim. Mas preciso saber quais são os seus sentimentos, não acha?
- Pois bem, vou dizer, de uma vez para sempre.
- Gosta, então?
- Sim, gosto. Amo-a e tenho a certeza de que é coisa imutável, definitiva... Para que dizer mais?
Ela permaneceu silenciosa por alguns instantes, entre desvanecida e desconfiada.
- Palavra de honra? - perguntou, chegando-se a ele, satisfeita.
- Absoluta. Agora, acabe com isso. Acredite no que eu disse e acabe com isso.
Ela se aconchegou ainda mais.
- Acabar com quê? - interrogou, louca de felicidade.
- Com os seus tormentos.
Estavam muito juntos. Ele a estreitava com força, beijando-a docemente, delicadamente. Sentia uma paz imensa ao abraçá-la e beijá-la com ternura - uma felicidade quase celestial! Não ter pensamentos, nem desejos, nem vontade, e estar sossegadamente ao lado dela, perfeitamente tranquilo e muito próximo, numa paz abençoada. Ele não desejava nem exigia coisa alguma! Era como se estivesse no céu...
Beijou-a durante muito tempo, com serenidade, nos cabelos, no rosto, nas orelhas, meigamente, amorosamente, como um orvalho que caísse. Mas aquele hálito quente, junto a seu ouvido, perturbou-a de novo, reacendendo o antigo fogo destruído. Apertou-o mais, e o homem percebeu que o sangue dela se dilatava e circulava mais depressa.
- Sempre quietinhos, sim? - pediu Rupert.
- Sim - murmurou ela, submissa. Continuou, entretanto, muito chegada a ele. De repente, afastou-o e mirou-o nos olhos.
- Preciso ir-me embora - disse.
- Ir-se embora? Que pena!
Inclinou-se e estendeu-lhe o rosto para que a beijasse na boca.
- Tem pena, realmente? - perguntou, sorrindo.
- Tenho. Gostaria que pudéssemos ficar assim, para sempre.
- Para sempre? Queria? - balbuciou, enquanto ele a beijava. E então, com energia, insistiu: - Mais, mais! - Apertou-o nervosamente. Rupert tornou a beijá-la repetidas vezes; mas sabia o que queria e era senhor da sua vontade. Por agora não desejava senão aquela comunhão deliciosa, mas sem paixão. Dessa maneira, Úrsula separou-se dele, colocou o chapéu e dirigiu-se para casa.
No dia seguinte, porém, Rupert sentiu-se ansioso e cheio de saudades. Pensou que talvez não tivesse procedido bem. Talvez não devesse ter-lhe falado com tanta franqueza. Expusera apenas uma ideia ou a interpretação de um profundo desejo? Nessa última hipótese, como se explicava sua constante alusão a satisfações sexuais? As duas coisas não combinavam entre si.
Foi então que ele se compenetrou da verdadeira situação criada. Era tão simples como a fatalidade: por um lado, sabia não lhe interessar nenhuma experiência sexual, e sim alguma coisa mais profunda, mais sóbria do que a vida quotidiana pode proporcionar. Lembrou-se dos feitiços africanos que vira tantas vezes em casa de Halliday. Recordou-se de uma estatueta de cerca de dois pés de altura, elegante e esbelta, desempenada figura da costa ocidental, talhada em madeira negra, macia e lustrosa. Tratava-se de uma mulher com penteado alto, formando uma cúpula em forma de melão. Tinha-a bem na memória, permanecera familiar à sua alma. Corpo comprido, delicado; rosto achatado e pequeno como escaravelho, fileiras de pesados colares em torno de um pescoço que era uma coluna de enfiar argolas. Ah, ele não se esquecera: que espantosa elegância requintada na face miudinha de inseto, que extraordinário tronco escultural sobre pernas curtas e feias e nádegas protuberantes, tão fortes e inesperadas por baixo da cintura delgada e estreita! Aquela figurinha sabia o que ele, Birkin, ignorava. Tinha milhares de anos de experiência sensual, a seu favor: matéria sem vislumbre de espírito. Deviam ter decorrido milhares de anos desde que aquela raça perecera misteriosamente, isto é, depois que haviam cessado as relações entre os sentidos e a pura alma, ficando-lhe apenas um saber, o da vida sexual. Há milhares de anos que se produzira naqueles africanos o que era agora iminente na sua pessoa: a bondade, a santidade, o desejo de criação e de felicidade reprodutora; tudo isso devera ter sido aniquilado, deixando só o impulso para um único conhecimento, conhecimento progressivamente adquirido, sem intervenção do espírito, mas através dos sentidos, mística ciência da desintegração e da dissolução, semelhante à que possuem os escaravelhos, que vivem unicamente no mundo da corrupção, da fria decomposição das coisas. Por isso aquele rosto tinha semelhança com o inseto, por isso os egípcios adoravam o seu escaravelho, sagrado, contorcido; tudo pela razão de saber o que eram a dissolução e o pecado.
Há um extenso caminho a percorrer depois desse rompimento com o espírito, desde o instante em que a alma, num sofrimento intenso, se destaca do organismo, como uma folha que tomba. Partimos o elo que nos liga à vida e à esperança, abandonamos o nosso ser puro e integral, em que havia criação e liberdade, e, decaídos, seguimos o interminável processo da compreensão puramente sensual, como os africanos iniciados no mistério da dissociação.
Birkin percebia agora como era longo esse desenvolvimento, que necessitava de milhares de anos após a morte do espírito criador. Compreendia que devia haver imensos mistérios não revelados, sensuais, pavorosos, alheios à inteligência, na continuação do culto fálico. Ate onde essa gente, no retrocesso da cultura, teria ultrapassado tal forma religiosa? Ate muito longe, ate o infinito! Birkin tornou a recordar-se da estatueta: corpo alongado, pescoço envolto em colares, rosto de feições minúcias como as do escaravelho e aquelas grossas nádegas, inesperadas e fortes. Tudo isso excedia o culto fálico, eram realidades sensuais e sutis, fora do alcance da investigação daquele sistema idólatra.
Era essa a solução - o espantoso processo africano - que teríamos de aceitar. Mas a evolução seria diferente nas raças brancas. Estas, tendo as regiões árticas atrás de si, a vasta abstração do gelo e da neve, desempenhariam o mistério do poder destruidor, a arte do aniquilamento pelo frio, ao passo que os africanos, dominados pelo êxtase mortal e ardente do fogo, se submeteriam à destruição pelos raios de sol.
Que resultava, pois, de tudo isto? Nada havia a fazer senão desintegrar-se o homem da parte criadora e venturosa do seu ser. Seria a hora? Terminara de vez a nossa fase de criação vital? Não nos restariam mais que os estranhos e horrorosos dias da ciência em seu crepúsculo, a mentalidade africana, embora diferente em nós, que somos louros e temos olhos azuis de setentrionais?
Birkin pensou em Gerald, que era um daqueles estranhos e curiosos demônios brancos do norte, nascido no mistério aniquilador das geadas. Estaria destinado a sucumbir, naquela evolução da sua sabedoria, na morte pelo frio absoluto? Seria um mensageiro, presságio da demolição universal sob a brancura da neve?
E, assim pensando, sentia-se aterrado e fatigado por se ter entregado a tão longa meditação. Mas, de repente, seu espírito vigilante foi cedendo e não lhe foi possível especular mais com tais mistérios. Havia outra saída, a da liberdade, entrada paradisíaca no ser puro e isolado: a alma individual sobrepondo-se ao amor e ao desejo de união, mais forte do que todas as dores emocionais, estado adorável de solidão isenta e orgulhosa, a qual, mesmo aceitando a obrigação das relações permanentes com outros (e com a outra parte do próprio ser) e submetida ao jugo e servidão do amor, jamais atraiçoa, todavia, a sua dignidade na independência, ainda quando ama e quando cede.
Havia, pois, outro caminho, o único para aceitar. Birkin precisava segui-lo com a maior rapidez. Lembrou-se de Úrsula, da sua sensibilidade e delicadeza, daquela pele tão fina que parecia não existir. Era, na verdade, extraordinariamente suave e sensível. Como se tinha esquecido disso? Urgia procurá-la e pedi-la em casamento. Era forçoso que se casassem já, que tomassem compromisso definitivo, que a sua união fosse para sempre. Convinha ir desde já ao seu encontro. Não havia tempo a perder.
Subiu apressadamente até Beldover, um tanto inconsciente do ato que ia praticar. Descobriu a aldeia sob a colina, não desgarrada, antes como se estivesse cingida por uma muralha feita pelas casas extremas dos mineiros; formava um quadrado e a imaginação podia compará-la a Jerusalém. O mundo era, na verdade, transcendente e singular!
Rosalind abriu-lhe a porta. Teve um ligeiro sobressalto, como é próprio das adolescentes, e disse:
- Ah! Vou avisar papai!
Com isto, desapareceu, deixando Birkin no vestíbulo, observando reproduções de Picasso, ali colocadas recentemente por Gudrun. Admirava a compreensão sensual, quase mágica, do artista da terra, quando Will Brangwen surgiu, desenrolando as mangas da camisa.
- Um momento - exclamou. - Vou vestir um casaco. - E eclipsou-se ainda por uns momentos. Ao voltar, abriu a porta da sala e disse ao visitante:
- Desculpe. Eu estava trabalhando no telheiro. Faça o favor de entrar.

 


                                            CONTINUA