Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MUNDO SEM FIM
Parte I
Inglaterra, 1327. Numa floresta do condado de Kingsbridge, quatro crianças testemunham o assassinato de dois homens e fazem um pacto de silêncio: jamais revelarão a ninguém o que se passou naquele dia. Anos depois, as vidas de Caris, Merthin, Gwenda e Ralph se cruzam num mundo de riqueza e miséria, amor e ódio.
É na Kingsbridge medieval, regida pela Igreja e povoada por reis e cavaleiros, servos e senhores, que floresce a paixão da determinada Caris Wooler e do corajoso Merthin Builder. Ela, mulher de personalidade marcante e filha do mais eminente mercador da cidade, stá decidida a fazer o condado prosperar, não sem antes desafiar várias convenções sociais. Merthin, por sua vez, se consagra como construtor de talento, mas sonha com o dia em que Caris estará definitivamente a seu lado.
Gwenda, em meio a uma vida inteira de privações, luta para mudar seu conturbado destino. Irmão mais novo de Merthin, o ambicioso Ralph cresce destinado a fazer parte da nobreza, ainda que para isso tenha de mostrar sua fàce mais cruel e implacável.
Numa atmosfera de conspirações, costumes rígidos e jogos de poder, todos precisam sobreviver ao passado, às intrigas e a um terrível inimigo comum: a peste bubônica. As autoridades do condado de Kingsbridge não têm dúvidas de que se trata de um castigo divino para purgar os pecados da comunidade.
1 de novembro de 1327
Gwenda estava com oito anos, mas não tinha medo do escuro. Quando abriu os olhos não pôde ver nada, mas não foi isso que a assustou. Sabia onde se encontrava. Estava no priorado de Kingsbridge, no prédio de pedra comprido que chamavam de hospital - um lugar para tratar de doentes, mas que também servia como um albergue para os pobres e os ricos - deitada no chão, numa cama de palha. A mãe deitava ao seu lado, e Gwenda compreendeu, pelo cheiro de leite quente, que amamentava o bebê que acabara de nascer, ainda sem nome. Do outro lado da mãe estava o pai e, junto de Gwenda, o irmão mais velho, Philemon, que tinha doze anos. Havia muita gente no hospital. Embora não pudesse ver as outras famílias deitadas no chão, espremidas como ovelhas num cercado, Gwenda podia sentir o cheiro desagradável dos corpos quentes. Quando o dia amanhecesse, seria Todos os Santos, um domingo naquele ano, e por isso mesmo um dia muito especial. A noite anterior fora um momento perigoso, quando os espíritos do mal vagueavam livres por toda parte. Centenas de pessoas haviam ido para Kingsbridge, das aldeias ao redor, como a família de Gwenda, a fim de passar o Dia de Todos os Santos no recinto sagrado do priorado, comparecendo à missa ao amanhecer. Gwenda era cautelosa com os espíritos do mal, como todas as pessoas sensatas; mas sentia-se mais assustada com o que teria de fazer durante o serviço religioso. Ela ficou olhando para o escuro, tentando não pensar no que a deixava apavorada. Sabia que havia uma janela em arco na parede à sua frente. Não tinha vidro - só os prédios mais importantes tinham vidro nas janelas —, mas uma cortina de linho impedia a entrada do ar frio do outono. Mas Gwenda não conseguiu divisar uma mancha cinza no lugar em que deveria estar a janela. E sentiu-se contente por isso. Não queria que a manhã chegasse. Não podia ver nada, mas havia muito para escutar. A palha que cobria o chão sussurrava a todo instante, sempre que as pessoas se mexiam e mudavam de posição no sono. Uma criança gritou, como se tivesse sido acordada por um pesadelo, mas foi logo silenciada por palavras de carinho murmuradas. Alguém falava de vez em quando, enunciando as palavras truncadas de conversa no sono. Em algum lugar havia o som de duas pessoas fazendo a coisa que os pais faziam, mas sobre a qual nunca falavam, a coisa que Gwenda chamava de grunhido, porque não tinha outra palavra para descrevê-la.
Não demorou muito para que surgisse uma luz. No lado leste do vasto salão, um monge passou pela porta, carregando uma única vela. Colocou-a ao pé do altar, usou a chama para acender uma vela fina e comprida. Saiu pelo salão, encostando a chama nos lampiões nas paredes. Sua sombra comprida subia pela parede a cada vez, a vela de verdade se encontrando com a vela de sombra no pavio de cada lampião.
A claridade crescente iluminava as fileiras de pessoas estendidas no chão, envoltas por seus mantos miseráveis ou aconchegadas contra os vizinhos, em busca de calor. As pessoas doentes ocupavam os catres perto do altar, onde podiam obter o máximo de benefício da santidade do lugar. No lado oposto havia uma escada que levava ao andar superior, que tinha quartos para os visitantes aristocráticos: o conde de Shiring estava ali naquele momento, com sua família.
O monge inclinou-se sobre Gwenda para acender o lampião por cima de sua cabeça. Fitou-a e sorriu. Ela estudou o rosto à luz bruxuleante das chamas e reconheceu-o. Era o irmão Godwyn, jovem e bonito. Na noite anterior ele conversara gentilmente com Philemon.
Ao lado de Gwenda havia outra família de sua aldeia: Samuel, um próspero camponês, que cuidava de uma propriedade grande, a esposa e os dois filhos. O caçula, Wulfric, era um irritante menino de seis anos, que achava que jogar bolotas de carvalho nas meninas e correr em seguida era a coisa mais divertida do mundo.
A família de Gwenda não era próspera. O pai não tinha nenhuma terra e trabalhava para qualquer um que quisesse lhe pagar. Havia sempre trabalho no verão, mas, depois da colheita, quando o tempo começava a esfriar, a família muitas vezes passava fome.
Era por isso que Gwenda tinha de roubar.
Ela se imaginava sendo apanhada: a mão forte de alguém agarrando-a pelo braço; uma voz profunda e cruel dizendo ”Ora, ora, uma pequena ladra”; a dor e a humilhação de ser açoitada; e depois, o pior de tudo, a agonia e perda quando sua mão fosse cortada.
O pai sofrera essa punição. Ao final do braço esquerdo tinha um coto horrível, todo enrugado. Ele conseguia fazer as coisas com uma única mão: era capaz de usar uma pá, selar um cavalo, até fazer uma rede para pegar aves. Mesmo assim, era sempre o último trabalhador a ser contratado na primavera e o primeiro a ser dispensado no outono. Nunca poderia deixar a aldeia e procurar trabalho em outros lugares, porque a amputação marcava-o como um ladrão; por isso, as pessoas se recusariam a contratá-lo. Quando viajava, ele amarrava uma luva recheada no coto, para não ser escorraçado por todo estranho que encontrasse; mas isso também não enganava as pessoas por muito tempo.
Gwenda não testemunhara a punição do pai - ocorrera antes de seu nascimento -, mas imaginava-a com freqüência. Agora, não podia deixar de pensar na mesma coisa lhe acontecendo. Em sua mente, via a lâmina do machado descendo para o pulso, cortando pele e ossos, separando a mão do braço, de tal forma que nunca mais seriam religados; e teve de ranger os dentes para não soltar um grito.
As pessoas levantavam e se esticavam, esfregando o rosto. Gwenda também se levantou e ajeitou as roupas. Todos os seus trajes haviam pertencido antes ao irmão mais velho. Ela usava uma bata de lã que descia até os joelhos, com uma túnica por cima, presas na cintura por um cinto feito de corda de cânhamo. Os sapatos outrora tinham cordões, mas os ilhoses haviam rasgado e os cordões desapareceram. Agora, ela prendia os sapatos nos pés com palha trançada. Assim que juntou os cabelos por baixo de uma touca feita de rabos de esquilo, ela terminou de se arrumar.
Olhou para o pai, que indicou furtivamente uma família ali perto, um casal de meia-idade com dois filhos, apenas um pouco maiores do que Gwenda. O homem era baixo e franzino, com uma barba ruiva encrespada. Afivelava uma espada na cintura, o que significava que era um homem de armas ou um cavaleiro, já que os homens comuns não tinham permissão para usar espadas. A esposa era magra, com uma atitude brusca e uma expressão mal-humorada. Enquanto Gwenda os examinava, irmão Godwyn acenou com a cabeça, respeitoso, e disse:
- Bom-dia, Sir Gerald, lady Maud.
Gwenda viu o que atraíra a atenção do pai. Sir Gerald tinha uma bolsa presa ao cinto por uma tira de couro. A bolsa estava estufada. Devia conter várias centenas das pequenas moedas de prata de pennies, halfpennies e farthings, o dinheiro inglês... tanto quanto o pai poderia ganhar em um ano inteiro de trabalho, se conseguisse arrumar emprego. Seria mais do que o suficiente para alimentar a família até o plantio da primavera. A bolsa poderia até conter umas poucas moedas de ouro estrangeiras, como florins de Florença ou ducados de Veneza.
Gwenda tinha uma pequena faca numa bainha de madeira, pendurada por um cordão no pescoço. A lâmina afiada cortaria a tira de couro e faria com que a bolsa estufada caísse em sua mão... a menos que Sir Gerald sentisse alguma coisa estranha e a agarrasse antes que cometesse o furto...
Godwyn elevou a voz por cima do rumor das conversas.
- Pelo amor de Cristo, que nos ensina a caridade, será servida uma refeição depois do serviço de Todos os Santos. Até lá, há água para beber na fonte no pátio. Por favor, não deixem de usar as latrinas lá fora... nada de urinar dentro do prédio!
Os monges e freiras eram rigorosos com a higiene. Ontem à noite, Godwyn surpreendera um menino de seis anos urinando num canto e expulsara toda a família. A menos que tivessem um penny para uma taverna, teriam passado a fria noite de outubro estremecendo no chão de pedra do pórtico norte da catedral. Havia também uma proibição para animais. O cachorro de três pernas de Gwenda, Hop, fora banido. E ela se perguntava onde Hop passara a noite.
Depois que todos os lampiões foram acesos, Godwyn abriu a enorme porta de madeira para o exterior. O ar frio da noite gelou as orelhas e a ponta do nariz de Gwenda. Quando Sir Gerald e a família encaminharam-se para a porta, o pai e a mãe foram atrás. Gwenda e Philemon seguiram o exemplo.
Philemon sempre fora o encarregado de roubar até agora. Mas, no dia anterior, quase fora apanhado, no mercado de Kingsbridge. Palmeara um pequeno pote de óleo caríssimo do estande de um mercador italiano, mas deixara-o cair, à vista de todos.
Por sorte, o pote não quebrara ao bater no chão. E ele fora obrigado a fingir que o derrubara acidentalmente.
Até bem pouco tempo atrás, Philemon era pequeno e apagado, não chamava a atenção de ninguém. Mas, durante o último ano, crescera bastante, adquirira uma voz profunda, tornara-se desajeitado, como se não conseguisse se acostumar ao novo tamanho de seu corpo. Ontem à noite, depois do incidente com o pote de óleo, o pai anunciara que Philemon era agora grande demais para o furto sistemático; dali por diante, essa incumbência seria de Gwenda.
Fora por isso que ela permanecera acordada durante boa parte da noite.
O nome de Philemon na verdade era Holger. Quando tinha dez anos, ele decidira que seria monge; e dissera a todo mundo que mudara o nome para Philemon, que parecia mais religioso. Numa reação surpreendente, a maioria das pessoas atendeu a seu desejo, embora o pai e a mãe continuassem a chamá-lo de Holger.
Eles passaram pela porta e viram duas fileiras de freiras trêmulas, segurando tochas acesas, para iluminar o caminho do hospital até a enorme porta de oeste da catedral de Kingsbridge. As sombras cabriolavam na beira da luz das tochas, como se os duendes e diabinhos da noite anterior estivessem à espreita ali, mantidos à distância apenas pela santidade das freiras.
Gwenda pensava que encontraria Hop esperando lá fora, mas não o avistou. Talvez ele tivesse encontrado algum lugar quente para dormir. Enquanto seguiam para a catedral, o pai deu um jeito de permanecerem próximos de Sir Gerald. Alguém deu um puxão doloroso nos cabelos de Gwenda, por trás. Ela soltou.um grito estridente, pensando que era um duende. Virou-se para descobrir que era Wulfric, seu vizinho de seis anos. Ele se afastou para fora de seu alcance, rindo. Mas o pai de Wulfric berrou ”Comporte-se!”, e deu um cascudo em sua cabeça. O menino começou a chorar.
A vasta catedral era uma massa informe pairando acima da multidão amontoada. Só as partes inferiores eram nítidas, arcadas e janelas iluminadas em laranja e vermelho pela luz bruxuleante das tochas. A procissão passou a andar mais devagar ao se aproximar da entrada da catedral, e Gwenda avistou os moradores da cidade, que vinham da direção oposta. Havia centenas de pessoas, pensou ela, talvez milhares, embora não soubesse quantas pessoas havia em mil, pois não era capaz de contar tão alto.
A multidão avançava lentamente pela entrada. A luz irrequieta das tochas incidia sobre as figuras esculpidas nas paredes, dando a impressão de que se empenhavam numa dança delirante. Havia demônios e monstros no nível mais baixo. Gwenda olhou assustada para dragões e grifos, um urso com cabeça de homem, um cachorro com dois corpos e um único focinho. Alguns dos demônios lutavam contra humanos: um demônio punha um laço no pescoço de um homem, um monstro parecido com uma raposa arrastava uma mulher pelos cabelos, uma águia com mãos espetava com uma lança um homem nu. Por cima dessas cenas, os santos formavam uma fileira, abrigados sob dosséis; mais acima, os apóstolos sentavam em seus tronos; depois, na arcada por cima da porta principal, São Pedro com sua chave e São Paulo com um pergaminho olhavam em adoração para Jesus Cristo lá no alto.
Gwenda sabia que Jesus estava lhe dizendo para não pecar ou seria torturada pelos demônios; mas os humanos assustavam-na mais do que os demônios. Se não conseguisse roubar a bolsa de Sir Gerald, seria açoitada pelo pai. Pior ainda, não haveria nada para a família comer além de sopa feita com bolotas de carvalho. Ela e Philemon passariam fome por semanas a fio. Os seios da mãe secariam e o bebê morreria, como os dois últimos. O pai desapareceria por vários dias e voltaria sem nada para a panela, apenas uma garça magricela ou um par de esquilos. Sentir fome era pior do que ser açoitada... doía por mais tempo.
Ela fora ensinada a cometer pequenos furtos desde que era bem pequena: uma maçã de uma barraca, um ovo retirado de baixo da galinha do vizinho, uma faca que um bêbado descuidado largava na mesa de uma taverna. Mas roubar dinheiro era diferente. Se fosse apanhada ao tirar a bolsa de Sir Gerald, não adiantaria desatar a chorar e torcer para ser tratada como uma criança travessa, como acontecera uma vez, depois que roubara um par de sapatos de couro de uma freira de coração mole. Cortar o cordão de couro da bolsa de um cavaleiro não era um pecadilho infantil, mas um crime de adulto, e seria tratado de acordo.
Ela tentou não pensar a respeito. Era pequena, ágil e rápida. Pegaria a bolsa furtivamente, como um fantasma... desde que conseguisse não tremer.
A vasta catedral já estava lotada. Monges encapuzados seguravam tochas nos corredores laterais, projetando clarões vermelhos irrequietos. As colunas em marcha da nave subiam pela escuridão. Gwenda permaneceu perto de Sir Gerald, enquanto a multidão avançava para o altar. O cavaleiro de barba ruiva e sua esposa magricela não a notaram. Os dois meninos não prestavam mais atenção a ela do que às paredes de pedra da catedral. A família de Gwenda ficou para trás, e ela não viu mais ninguém.
A nave se encheu depressa. Gwenda nunca vira tantas pessoas no mesmo lugar; estava mais movimentada do que a campina verde no dia do mercado. As pessoas se cumprimentavam na maior jovialidade, sentindo-se a salvo dos espírilos do mal naquele lugar sagrado. O som de todas as conversas se juntava num rugido.
Até que o sino repicou e todos calaram.
Sir Gerald estava ao lado de uma família da cidade. Todos usavam mantos de bom tecido, o que indicava que o chefe devia ser negociante de lã. Ao lado do cavaleiro havia uma garota que devia ter dez anos. Gwenda postou-se atrás de Sir Gerald e da garota. Tentou passar despercebida, mas, para sua consternação, a garota olhou para trás e sorriu, tranqüilizadora, como se lhe dissesse que não precisava ficar assustada.
Ao longo das paredes, os monges começaram a apagar as tochas, uma a uma, até que a vasta catedral ficou mergulhada na mais absoluta escuridão.
Gwenda especulou se a garota rica se lembraria dela mais tarde. Não se limitara a lançar um olhar para Gwenda e depois a ignorara, como a maioria das pessoas fazia. Notara-a, pensara nela, previra que poderia ficar assustada, e oferecera um sorriso cordial. Mas havia centenas de crianças na catedral. Ela não poderia ter percebido as feições de Gwenda com bastante nitidez na semi-escuridão da catedral... ou será que poderia? Gwenda tentou remover a preocupação de sua mente.
Invisível no escuro, adiantou-se e esgueirou-se sem fazer barulho entre as duas figuras. Sentiu a lã macia do manto da garota num lado e o tecido mais aspero do manto do cavaleiro no outro. Agora se encontrava em posição de alcançar a bolsa.
Levou a mão ao pescoço e tirou a pequena faca da bainha.
O silêncio foi rompido por um terrível grito. Gwenda já esperava por isso a mãe explicara o que aconteceria durante o serviço religioso -, mas mesmo assim ficou atordoada. Parecia que alguém estava sendo torturado.
Depois, houve um estrondo estridente, como se alguém estivesse batendo numa placa de metal. Mais ruídos se seguiram: gemidos, risadas ensandecidas, uma trompa de caça, barulho de correntes, o repicar de um sino. Na congregação, uma criança começou a chorar, e foi logo seguida por outras. Alguns adultos soltavam risadas nervosas. Sabiam que os ruídos eram feitos por monges, mas ainda assim era uma cacofonia infernal.
Aquele não era o momento para pegar a bolsa, pensou Gwenda, amedrontada. Todos estavam tensos, alertas. O cavaleiro seria sensível a qualquer toque.
O ruído diabólico foi se tornando mais e mais alto, até que um novo som interveio: música. A princípio, era tão baixo que Gwenda não podia ter certeza se ouvira mesmo, mas pouco a pouco foi se tornando mais alto. As freiras cantavam. Gwenda sentiu seu corpo dominado pela tensão. O momento se aproximava. Movendo-se como um espírito, imperceptível como o ar, ela virou-se, a fim de ficar de frente para Sir Gerald.
Sabia exatamente o que ele vestia. Tinha uma grossa túnica comprida de lã, presa na cintura por um cinto largo e tachonado. Por cima da túnica, usava um manto bordado, dispendioso mas velho, com botões de osso amarelados na frente. Fechara alguns botões, mas não todos, provavelmente por causa da indolência do sono ou porque a caminhada do hospital até a catedral era tão curta.
Com um toque tão leve quanto possível, Gwenda encostou a mão no manto. Imaginou a mão como uma aranha, tão desprovida de peso que o homem não poderia sentir. A mão de aranha deslizou pela frente do manto e encontrou a abertura. Enfiou-se por baixo da beira do manto e avançou pelo cinto largo até encontrar a bolsa.
O pandemônio diminuía à medida que a música se tornava mais alta. Da frente da congregação veio um murmúrio de reverência. Gwenda não podia ver nada, mas sabia que um lampião fora aceso no altar para iluminar um relicário, uma caixa elaborada, de ouro e marfim, contendo os ossos de St. Adolphus, que não estavam ali quando as tochas se apagaram. A multidão se adiantou, todos querendo chegar mais perto das relíquias sagradas. Ao sentir que era espremida entre Sir Gerald e o homem na frente, Gwenda ergueu a mão direita e encostou a beira da faca no cordão da bolsa.
O couro era duro e seu primeiro movimento não foi suficiente para cortá-lo. Serrou-o frenética com a faca, torcendo desesperada para que Sir Gerald estivesse tão interessado na cena no altar que não notaria o que acontecia por baixo de seu nariz. Olhou para cima e compreendeu que podia começar a divisar os contornos das pessoas ao redor: os monges e freiras acendiam as velas. A claridade seria maior a cada momento. Quase não lhe restava tempo.
Ela deu um puxão mais forte na faca e sentiu que a tira do couro cedia. Sir Gerald soltou um grunhido baixo: sentira alguma coisa ou reagia ao espetáculo no altar? A bolsa caiu e parou na sua mão; mas era muito grande para que a segurasse com facilidade e começou a escapulir. Por um momento terrível, ela pensou que a deixaria cair e a perderia no chão, entre os pés indiferentes da multidão. Pouco depois conseguiu segurá-la com firmeza.
experimentou um momento de alívio e alegria: estava com a bolsa.
Mas ainda corria um tremendo perigo. O coração batia tão alto que tinha a sensação de que todos ao redor podiam ouvi-la. Virou-se depressa, ficando de costas para o cavaleiro. No mesmo movimento, enfiou a bolsa recheada pela frente da túnica. Podia sentir que formava uma protuberância, pendendo à sua frente, jonto a barriga de um velho. Deslocou-a para o lado, onde ficaria parcialmente oculta pelo braço. Ainda seria visível quando a claridade aumentasse, mas não tinha outro lugar para guardá-la.
Meteu a faca na bainha. Agora, tinha de escapar depressa, antes que Sir Gerald sentisse a perda... mas a pressão dos fiéis, que a ajudara a pegar a bolsa sem ser notada, agora obstruía a fuga. Tentou recuar, na esperança de encontrar uma brecha nos
cantos por trás, mas todos ainda tentavam se adiantar, na esperança de ver os ossos do santo. Ela estava acuada, incapaz de se mover, bem na frente do homem que acabara de roubar. Uma voz murmurou em seu ouvido: Você está bem?
Era a garota rica. Gwenda fez um esforço para conter o pânico. Precisava ser invisível. Uma criança mais velha prestativa era a última coisa que queria naquele momento. Não disse nada.
Tomem cuidado - disse a garota às pessoas ao redor. - Estão espremendo a menina.
Gwenda teve vontade de gritar. A gentileza da garota rica poderia fazer com que sua mão fosse cortada.
Desesperada para escapar, ela estendeu as mãos para o homem da frente e o empurrou, mas não conseguiu afastá-lo. Só conseguiu atrair a atenção de Sir Gerald.
- Não consegue ver nada aí embaixo, não é? - murmurou sua vítima, em tom gentil.
E, para seu horror, Sir Gerald pegou-a por baixo dos braços e levantou-a.
Gwenda estava impotente. A mão enorme do homem estava a poucos centímetros de sua axila, onde escondera a bolsa. Virou-se para a frente, a fim de que ele só pudesse ver a parte posterior de sua cabeça. Olhou por cima da multidão para o altar, onde monges e freiras acendiam mais velas e cantavam para o santo havia muito morto. Além deles, uma tênue claridade brilhava através da janela de rosácea: o dia amanhecia, expulsando os espíritos do mal. O clangor cessara agora, e o canto aumentava de intensidade. Um monge alto e bonito subiu para o altar. Gwenda reconheceu-o como Anthony, o prior de Kingsbridge. Ele ergueu as mãos numa bênção e disse, bem alto:
- E assim, mais uma vez, pela graça de Cristo Jesus, o mal e as trevas deste inundo são banidos pela harmonia e pela luz da santa igreja de Deus.
A congregação deixou escapar um rugido triunfante, para depois começar a relaxar. O clímax da cerimônia passara. Gwenda contorceu-se. Sir Gerald entendeu a mensagem e a pôs no chão. Com o rosto virado para o outro lado, ela afastou-se, seguindo para o fundo da multidão. As pessoas não se sentiam mais ansiosas em ver o altar, e ela pôde esgueirar-se entre os corpos. Quanto mais se distanciava, mais fácil era, até que finalmente avistou a grande porta de oeste e encontrou sua família.
O pai fitava-a em expectativa, pronto para um acesso de fúria, se ela tivesse fracassado. Gwenda tirou a bolsa de baixo da túnica e estendeu-a, contente por se livrar. O pai pegou-a, e virou-a para um olhar furtivo no conteúdo. E deu um sorriso de satisfação. Entregou-a à mãe, que a escondeu nas dobras da manta que agasalhava o bebê. A provação terminara, mas o risco ainda não passara.
- Uma garota rica me notou - avisou Gwenda, notando a estridência do medo na própria voz.
Os olhos pequenos e escuros do pai faiscaram em raiva.
- Ela viu o que você fez?
- Não. Mas disse aos outros para não me espremerem. E depois o cavaleiro me levantou para que eu pudesse ver melhor.
A mãe soltou um gemido baixo. O pai resmungou:
- Então ele viu seu rosto.
- Virei para o outro lado durante todo o tempo.
- Mesmo assim, é melhor ele nunca mais se encontrar com você. Não vamos voltar para o hospital. Comeremos numa taverna.
- Não podemos nos esconder durante o dia inteiro - disse a mãe.
- Tem toda razão. Mas podemos sumir no meio da multidão.
Gwenda começou a se sentir melhor. O pai parecia pensar que não havia um perigo real. De qualquer forma, ficava mais segura porque o pai assumia o comando, tirando a responsabilidade dela.
- Além do mais - acrescentou o pai -, estou com vontade de comer pão e carne, em vez do mingau aguado dos monges. Podemos pagar agora.
Eles deixaram a catedral. O céu era de um cinza aperolado com a claridade do amanhecer. Gwenda queria segurar a mão da mãe, mas o bebê começou a chorar. E atraiu por completo a atenção da mãe. Foi nesse instante que Gwenda avistou um cachorrinho de três pernas, branco, de cara preta, que veio correndo da catedral.
- Hop! - gritou ela, pegando o cachorro nos braços e apertando-o com força.
Merthin tinha onze anos, um ano mais velho do que o irmão Ralph; mas, para sua intensa irritação, Ralph era mais alto e mais forte.
Isso causava problemas com os pais. O pai, Sir Gerald, era um soldado, e não podia esconder seu desapontamento quando Merthin se mostrava incapaz de levamtar a pesada lança, ou ficava exausto antes de terminar de cortar uma árvori, ou voltava para casa chorando depois de perder uma briga. A mãe, lady Maud, agravava ainda mais a situação, embaraçando Merthin por sua atitude superprotetora, quando o que o menino precisava mesmo era que ela fingisse que não notava. Sempre que o pai demonstrava orgulho pela força de Ralph, a mãe tentava t compensar com críticas à estupidez de Ralph. Como era um pouco lento para compreender as coisas, Ralph era escarnecido pelos outros meninos, o que o deixava lurioso e o levava a brigar.
Os pais estavam nervosos na manhã do Dia de Todos os Santos. O pai nem queria ir a Kingsbridge. Mas fora obrigado. Devia dinheiro ao priorado e não tinha como pagar. A mãe dizia que os monges tomariam suas terras: ele era senhor de três aldeias perto de Kingsbridge. O pai lembrava-lhe que era descendente direto do Thomas que se tornara conde de Shiring no ano em que o arcebispo Beckct fora assassinado pelo rei Henry II. Esse conde Thomas era filho de Jack Uuilder, o arquiteto da catedral de Kingsbridge, e de lady Aliena de Shiring... um casal quase legendário, cuja história era contada nas longas noites de inverno, junto com os relatos heróicos de Carlos Magno e Roland. Com tais ancestrais, Sir Gerald não podia ter as terras confiscadas por qualquer monge, ele berrava, muito menos por aquele velho assustado que era o prior Anthony. Quando ele começçou a gritar, uma expressão de resignação cansada se estampava no rosto de Maud, que se virava em seguida. Merthin já a ouvira murmurar:
- Lady Aliena tinha um irmão, Richard, que só sabia lutar, não servia para qualquer outra coisa.
O prior Anthony podia ser uma velha, mas pelo menos fora homem suficient para se queixar das dívidas não pagas de Sir Gerald. Procurara o suserano de Sir Gerald, o atual conde de Shiring, que era também primo em segundo grau de Gerald. O conde Roland convocara Gerald a Kingsbridge hoje, para um encontro com o prior, em que tentariam encontrar uma solução. Era esse o motivo do mau humor do pai.
E,, ainda por cima, o pai fora roubado.
Só descobriu a perda depois do serviço religioso de Todos os Santos. Merthin apreciara o drama: a escuridão, os estranhos ruídos, a música começando suavemente e depois aumentando de intensidade, até que parecia vibrar em toda a vasta catedral, e no final as velas sendo acesas uma a uma, devagar. Também notara, quando a claridade começava a aumentar, que algumas pessoas haviam tirado provveito da escuridão para cometer pequenos pecados, pelos quais podiam agora ser perdoadas: vira dois monges parando de se beijar abruptamente, e um mercador matreiro retirar a mão do seio roliço de uma mulher sorridente, que parecia ser a esposa de outro. Merthin ainda se encontrava num clima de excitamento quando voltaram ao hospital.
Enquanto esperavam que as freiras servissem a refeição, um garoto da cozinha passou por perto e subiu a escada, levando uma bandeja com um jarro de cerveja, a bebida maltada, escura e amarga, e uma travessa com uma carne assada. A mãe comentou, irritada:
- Acho que seu parente, o conde, poderia nos convidar para comer com ele, em seu aposento particular. Afinal, sua avó era irmã do avô dele.
- Se você não quer o mingau, podemos comer na taverna - respondeu o pai. Merthin ficou alerta no mesmo instante. Gostava de comer na taverna, do pão fresco e da manteiga salgada. Mas a mãe disse:
- Não podemos pagar.
- Claro que podemos.
O pai estendeu a mão para a bolsa, e foi nesse instante que descobriu que ela havia desaparecido.
A princípio, ele olhou para o chão ao redor, como se pudesse ter caído naquele momento; e depois notou a ponta cortada da tira de couro e rugiu com indignação. Todos olharam para ele, exceto a mãe, que se virou; e Merthin ouviu-a murmurar:
- Era todo o dinheiro que tínhamos.
O pai lançou olhares acusadores para as pessoas próximas. A cicatriz comprida, que se estendia da têmpora direita ao olho esquerdo, pareceu escurecer com a raiva. Houve um silêncio tenso: um cavaleiro furioso era sempre um perigo, mesmo sendo um cavaleiro que parecia caído em desgraça.
- Você foi roubado na catedral, com toda certeza - comentou a mãe nesse instante.
Merthin refletiu que devia ter sido mesmo isso. No escuro, as pessoas haviam roubado mais do que beijos.
- Sacrilégio ainda por cima! - exclamou o pai.
- Acho que aconteceu quando você suspendeu aquela menina. - A mãe tinha o rosto todo contorcido, como se tivesse acabado de engolir alguma coisa amarga. - O ladrão deve ter se inclinado por trás para alcançar sua cintura.
- Ele deve ser encontrado! - gritou o pai.
O jovem monge chamado Godwyn interveio:
- Lamento muito que isso tenha acontecido, Sir Gerald. Vou comunicar imediatamente a John Constable, o chefe dos guardas. Ele pode procurar por um morador da cidade que se tornou rico de repente.
Merthin refletiu que era um plano pouco promissor. Havia milhares de moradores da cidade e mais centenas de visitantes. O guarda não poderia vigiar todos. Mas o pai se mostrou um pouco apaziguado.
- O patife será enforcado! - bradou ele, a voz um pouco menos alta.
- Enquanto isso, talvez você, lady Maud e seus filhos queiram nos conceder a honra de sentar à mesa que está sendo armada na frente do altar - murmurou Godwyn, deferente.
O pai soltou um grunhido. Sentia-se satisfeito, Merthin sabia, por lhe ser atribuído um reconhecimento acima do da massa dos convidados, que sentariam no lugar onde haviam dormido.
O momento de violência potencial passou. Merthin relaxou um pouco. Enquanto os quatro sentavam à mesa, no entanto, ele especulou sobre o que poderia acontecer agora com a família. O pai era um bravo soldado... todos reconheciam isso. Sir Gerald lutara pelo velho rei em Boroughbridge, onde a espada de Um rebelde do Lancashire abrira a cicatriz em sua testa. Mas era um homem sem sorte. Alguns cavaleiros voltavam da batalha com despojos: apoderavam-se de jóias, tarroças com dispendiosos tecidos flamengos ou sedas italianas ou com o atirado pai de uma família nobre, que podia ser resgatado por mil libras. Sir Gerald, porém, nunca conseguira muitos despojos. Mas ainda tinha de comprar armas, uma armadura e um caríssimo cavalo de guerra, para poder cumprir seu dever e servir ao rei; e, por algum motivo, os rendimentos de suas terras nunca eram suficientes. Por isso, contra a vontade da mãe, ele começara a tomar emprestado.
Empregados da cozinha trouxeram um caldeirão fumegante. A família de Sir Gerald foi servida primeiro. O mingau era feito com cevada e temperado com alecrim e sal. Ralph, que não compreendia a crise da família, começou a falar muito excitado sobre o serviço de Todos os Santos. Mas acabou se calando, por causa do silêncio sombrio com que seus comentários foram recebidos.
Depois de comer o mingau, Merthin foi até o altar. Escondera seu arco e flecha por trás. As pessoas hesitariam em roubar qualquer coisa de um altar. Ainda poderiam superar o medo se a recompensa fosse bastante tentadora, mas não era o caso de um arco tosco e umas poucas flechas, que ainda estavam onde deixara.
Sentia-se orgulhoso de seu arco. Era pequeno, é claro: para dobrar um arco normal, com quase dois metros, era preciso toda a força de um homem adulto. O arco de Merthin tinha pouco mais de um metro de comprimento e era fino, mas, sob outros aspectos, era igual ao arco inglês de combate, que matara tantos homens das montanhas escocesas, rebeldes galeses e cavaleiros franceses de armadura.
O pai não fizera antes qualquer comentário sobre o arco. Agora, deu a impressão de que o via pela primeira vez.
- Onde conseguiu essa madeira curva? - indagou ele. - Custa muito caro.
- Não esta, porque é muito curta. Foi um fabricante de arcos que me deu.
O pai balançou a cabeça. A não ser por isso, é perfeita. Foi cortada da parte interna do teixo, onde o albúrneo se encontra com o cerne.
Ele apontou para as duas cores diferentes. Merthin respondeu com ansiedatle, pois não era sempre que tinha a oportunidade de impressionar o pai:
- Sei disso. O alburno é melhor para a frente do arco, porque o puxa de volta para o formato original; e o cerne mais duro é melhor para a parte interna da curva, porque empurra de volta quando o arco é dobrado para dentro.
- Exatamente. - O pai devolveu o arco. Mas lembre-se de que essa não é a arma de um nobre. Os filhos de cavaleiros não se tornam arqueiros. Dê para o filho de algum camponês.
Merthin ficou desolado.
- Mas ainda nem experimentei! A mãe interveio.
- Deixe os dois brincarem. São apenas meninos.
- Tem razão - murmurou o pai, perdendo o interesse. - Será que esses monges nos trariam um jarro de cerveja?
- Lá vai você de novo - resmungou a mãe. - Merthin, tome conta de seu irmão.
- O inverso é mais provável - resmungou o pai.
Merthin ficou contrariado. O pai não tinha a menor idéia do que acontecia. Ele, Merthin, podia cuidar de si mesmo, mas Ralph sozinho sempre se metia em brigas. Merthin sabia, no entanto, que era melhor não discordar quando o pai estava naquele humor. Por isso, deixou o hospital sem dizer mais nada. Ralph seguiu-o.
Era um dia claro e frio de novembro. O teto do céu era formado por nuvens de um cinza-claro. Deixaram a catedral lado a lado e desceram pela rua principal, passando pela Fish Lane, Leather Yard e Cookshop Street. Na base da colina, atravessaram a ponte de madeira sobre o rio, deixando a cidade para a comunidade suburbana chamada de Newtown. As ruas com casas de madeira passavam entre pastos e hortas. Merthin seguiu na frente até uma campina conhecida como Lovers’ Field, o campo dos namorados. Ali, o constable da cidade e seus ajudantes haviam colocado tocos de árvores... alvos para os arqueiros. A prática de arco-e-flecha depois do serviço religioso era compulsória para todos os homens, por ordem do rei.
Não havia necessidade de impor o cumprimento da determinação real: afinal, não era difícil ou extenuante disparar algumas flechas na manhã de domingo. Por isso, havia uma centena ou mais de jovens da cidade em fila, esperando por sua vez, observados por mulheres, crianças e homens que se consideravam velhos ou distintos demais para serem arqueiros. Alguns tinham suas próprias armas. Para os que eram pobres demais e não tinham condições de comprar um arco, John Constable punha à disposição arcos de treino, baratos, feitos de teixo ou aveleira.
Era como um dia de festival. Dick Brewer vendia canecas de cerveja, de um barril numa carroça. As quatro filhas adolescentes de Betty Baxter circulavam com bandejas de pães temperados para vender. Os habitantes mais ricos estavam bem agasalhados, com gorros de pele e sapatos novos; até mesmo as mulheres mais pobres haviam arrumado os cabelos e enfeitado seus mantos com trançados novos.
Merthin era o único menino com um arco e por isso logo atraiu a atenção das outras crianças. Ele e Ralph foram logo cercados, os meninos fazendo perguntas invejosas, as meninas com olhares de admiração ou desdém, segundo o temperamento de cada uma. Uma das garotas indagou:
- Como soube fazer um arco?
Merthin reconheceu-a: ela ficara perto dele na catedral. Era cerca de um ano mais jovem, calculou ele, usava um vestido e um manto caros, de lã bem fechada. De um modo geral, Merthin achava que as meninas de sua idade eram insuportáveis.
Riam muito e recusavam-sa ai levar qualquer coisa a sério. Mas aquela fitavao e a seu arco com uma curiosidade franca, que não podia deixar de agradar-lhe.
- Acho que adivinhei.
- Isso é muito bom. Funciona direito?
- Ainda não experimentei. Qual é seu nome?
- Caris, da família Wooler. Quem é você?
- Merthin. Meu pai é Sir Gerald.
Merthin empurrou para trás o capuz do manto e pegou lá dentro a corda enrolada do arco.
- Por que guarda a corda no capuz?
- Para não molhar se chover. É o que fazem os arqueiros de verdade.
Ele prendeu a corda nas aberturas nas extremidades do arco, dobrando-o um pouco para que a tensão a mantivesse no lugar.
- Vai atirar nos alvos?
- Vou.
- Não deixarão - interveio outro menino.
Merthin fitou-o. O menino tinha cerca de doze anos, alto e magro, pés e mãos grandes. Merthin vira-o na noite passada no hospital com a família: seu nome era Philemon. Assediara os monges, fazendo perguntas. Ajudara a servir a ceia.
- Claro que deixarão - declarou Merthin. - Por que não deixariam?
- Porque você é jovem demais.
- Isso é estupidez.
Mesmo enquanto falava, Merthin sabia que não deveria se sentir tão seguro: os adultos muitas vezes eram estúpidos. Mas a pressuposição de maior conhecimento de Philemon irritara-o, ainda mais depois que ele demonstrara tanta confiança na frente de Caris.
Ele deixou as crianças e se aproximou de um grupo de homens esperando para usar um alvo. Reconheceu um deles: um homem muito alto, de ombros largos, chamado Mark Webber. Mark olhou para o pequeno arco e perguntou a Merthin:
- Onde conseguiu esse arco?
- Eu fiz - respondeu Merthin, orgulhoso.
- Dê uma olhada, Elfric - disse Mark para o homem ao seu lado. - Ele fez un bom trabalho.
Elfric era musculoso, com uma expressão astuta. Lançou um olhar superficeal para o arco e comentou, desdenhoso:
- É muito pequeno. Nunca vai disparar uma flecha capaz de penetrar n armadura de um cavaleiro francês.
- Talvez não - admitiu Mark, a voz suave. - Mas creio que o rapaz ainda vai esperar um ou dois anos antes de enfrentar os franceses.
John Constable gritou nesse instante:
- Estamos prontos para começar. Mark Webber, você é o primeiro.
O gigante adiantou-se até a linha de tiro. Pegou um arco e testou-o, dobrando a madeira grossa sem o menor esforço. O constable notou a presença de Merthin pela primeira vez.
- Nada de meninos - declarou ele.
- Por que não? - protestou Merthin.
- Não importa por que não. Apenas saia daí para não atrapalhar. Merthin ouviu os risos zombeteiros das outras crianças.
- Não há motivo para me impedir! - insistiu ele, indignado.
- Não tenho de dar explicações para crianças. Muito bem, Mark, pode atirar. Merthin sentia-se mortificado. O untuoso Philemon provara que ele estava errado na frente de todos. Ele voltou para junto das crianças.
- Eu disse que não da conseguir - comentou Philemon.
- Ora, cale a boca e vá embora!
- Não pode me obrigar a ir embora - declarou Philemon, que era quinze centímetros mais alto do que Merthin.
Ralph interveio:
- Mas eu posso.
Merthin suspirou. Ralph era sempre leal, mas não percebia que sua briga com Philemon faria com que Merthin parecesse um fraco, além de idiota.
- Preciso ir embora de qualquer maneira - disse Philemon. - Tenho de ajudar o irmão Godwyn.
Ele afastou-se. As outras crianças se dispersaram, em busca de novas curiosidades. Caris sugeriu a Merthin:
- Você pode experimentar o arco em outro lugar.
Era evidente que ela estava ansiosa por ver o que aconteceria. Merthin olhou ao redor.
-Mas onde?
Se fosse visto a atirar sem supervisão, poderiam lhe tirar o arco.
- Podemos ir para a floresta.
Merthin ficou surpreso. As crianças eram proibidas de entrar na floresta. Malfeitores escondiam-se na floresta, homens e mulheres que viviam do roubo. As crianças podiam ser despojadas de suas roupas ou virar escravas... e havia perigos ainda piores, que os pais apenas insinuavam. E mesmo que escapassem desses perigos, as crianças ainda corriam o risco de ser açoitadas pelos pais, por ter violado as regras.
Mas Caris parecia não ter medo, e Merthin não queria parecer menos corajoso do que ela. Além do mais, a maneira brusca como fora dispensado pelo constable levava-o a ser desafiador.
- Está bem. Mas precisamos ter certeza de que ninguém nos verá. Caris tinha uma solução.
- Conheço um caminho.
Ela seguiu na direção do rio. Merthin e Ralph foram atrás. Um cachorro pequeno, de três pernas, acompanhou-os.
- Qual é o nome do seu cachorro? - perguntou Merthin a Caris.
- Ele não é meu. Mas dei-lhe um pedaço de toucinho mofado e agora não consigo me livrar dele.
Foram andando pela margem lamacenta do rio, passando por armazéns, cais e barcaças. Merthin estudava discretamente a garota que se tornara líder sem qualquer esforço.
Tinha um rosto quadrado e determinado, que não era bonito nem feio. Havia malícia nos olhos, que eram esverdeados, com manchas de um castanho-dourado. Os cabelos castanho-claros estavam presos em duas trancas, como era a moda entre as mulheres das classes mais prósperas. As roupas eram caras, mas as botas, práticas, de couro, em vez dos sapatos de pano bordados que as damas da nobreza preferiam.
Ela afastou-se do rio. Passaram por uma serraria e entraram numa área de mato baixo. Merthin sentiu uma pontada de apreensão. Agora que estavam na floresta, onde poderia haver um bandido à espreita por trás de qualquer carvalho, ele se arrependia de sua bravata; mas ficaria envergonhado se recuasse.
Continuaram a andar, à procura de uma clareira bastante larga para praticar com arco e flecha. Caris disse, em voz baixa, num tom de conspiração:
- Estão vendo aquela moita grande de azevinho?
- Claro.
- Assim que passarmos por ali, agachem-se junto comigo e não façam barulho.
- Por quê?
- Já vai descobrir.
Um momento depois, Merthin, Ralph e Caris agacharam-se por trás da moita. O cachorro de três pernas sentou também, olhando esperançoso para Caris. Ralph começou a fazer uma pergunta, mas Caris fez um gesto para que se calasse.
Um minuto depois, uma menina apareceu. Caris levantou-se de um pulo e segurou-a. A menina gritou.
- Não grite! - ordenou Caris. - Estamos perto da estrada e não queremos ser ouvidos. Por que está nos seguindo?
- Vocês estão com meu cachorro, e ele não quer voltar! - soluçou a menina.
- Conheço você... nos encontramos na catedral esta manhã - disse Caris, com a voz mais suave. - Não precisa gritar. Não vamos lhe fazer nenhum mal. Qual é o seu nome?
- Gwenda.
- E o cachorro?
- Hop.
Gwenda pegou o cachorro, que lambeu suas lágrimas.
- Está com ele agora. É melhor continuar conosco, porque ele pode fugir de novo. Além do mais, não conseguiria encontrar o caminho de volta para a cidade sozinha.
Continuaram a andar. Merthin perguntou:
- O que tem oito braços e onze pernas?
- Eu desisto - disse Ralph no mesmo instante. Ele sempre desistia.
- Eu sei - disse Caris, sorrindo. - Somos nós. Quatro crianças e o cachorro. Ela riu e arrematou:
- Essa é boa.
Merthin ficou satisfeito. As pessoas nem sempre entendiam suas piadas; as garotas quase nunca. Um momento depois, eles ouviram Gwenda explicar a Ralph:
- Dois braços, mais dois braços, mais dois braços, mais dois braços, fazem oito. Duas pernas...
Não viram ninguém, o que era ótimo. As poucas pessoas que tinham atividades legítimas na floresta - lenhadores, queimadores de carvão, aqueles que fundiam ferro - não trabalhariam naquele dia; e seria excepcional encontrar um grupo de aristocratas caçando no domingo. Os que por acaso se reunissem ali, naquele dia, só poderiam ser malfeitores. Mas as chances de encontrá-los eram mínimas. A floresta era grande, estendendo-se por muitos quilômetros. Merthin nunca viajara bastante longe para ver o fim daquela floresta.
Alcançaram uma clareira larga e Merthin disse:
- Aqui está bom.
Havia um carvalho com um tronco largo no outro lado da clareira, a cerca de quinze metros de distância. Merthin ficou de lado para o alvo, como vira os homens fazerem. Pegou uma de suas três flechas e ajustou a ponta com uma reentrância na corda do arco. Tivera tanta dificuldade para fazer as flechas quanto encontrara com o arco. A madeira era freixo e as penas eram de ganso. Não conseguira arrumar ferro para as pontas, por isso se limitara a afiá-las e calciná-las, para que ficassem duras. Mirou o carvalho. Puxou a corda do arco. Precisou fazer o maior esforço. Lançou a flecha.
Caiu no chão antes de atingir o alvo. Hop, o cachorro, correu através da clareira para buscá-la.
Merthin ficou consternado. Esperava que a flecha voasse pelo ar, zunmdo, e a ponta cravasse no tronco. Compreendia agora que não puxara o arco pelo espaço necessário.
Tentou com o arco na mão direita e a flecha na esquerda. Era excepcional sob esse aspecto, porque não era canhoto nem destro, mas uma mistura. Com a segunda flecha, puxou a corda ainda mais, e conseguiu dobrar o arco mais do que antes. Desta vez, a flecha quase tocou no carvalho.
No terceiro disparo, ele apontou para cima, na esperança de que a flecha voasse num arco, e descesse em cima do tronco. Mas exagerou e a flecha passou entre os galhos, caindo no chão com uma chuva de folhas secas amareladas.
Merthin sentiu-se embaraçado. Atirar com um arco era mais difícil do que ele imaginara. O arco provavelmente era bom, ele refletiu; o problema era sua competência... ou melhor, falta de competência. Mais uma vez, Caris pareceu não perceber seu constrangimento.
- Deixe-me tentar - pediu ela.
- Garotas não podem atirar - interveio Ralph.
Ele tirou o arco de Merthin. Ficou de lado para o alvo, como Merthin o fizera, mas não atirou de imediato; em vez disso, puxou o arco várias vezes, para ter uma noção. Como Merthin, descobriu que era mais duro do que previra a pnncípio. Mas, depois de alguns momentos, pareceu pegar o jeito.
Hop largara as três flechas aos pés de Gwenda, que agora as pegou e estendeu para Ralph.
Ele mirou sem puxar a corda, apontando a flecha para o tronco enquanto não havia pressão de seus braços. Merthin compreendeu que deveria ter feito a mesma coisa.
Por que essas coisas eram tão naturais para Ralph, que não era capaz de responder ao enigma mais simples? Ralph puxou a corda, não sem esforçço, mas num movimento fluido, parecendo sustentar a tensão com as coxas. Soltou a flecha e acertou no tronco do carvalho, a ponta penetrando por dois ou três centímetros na casca externa mais mole. Ralph soltou uma risada triunfante.
Hop saiu correndo atrás da flecha. Parou quando alcançou a árvore, aturdido.
Ralph já estava puxando a corda do arco outra vez. Merthin percebeu o que ele tencionava fazer.
- Não...
Mas era tarde demais. Ralph atirou no cachorro. A flecha acertou-o atrás do pescoço e afundou. Hop tombou para a frente e ficou se contorcendo.
Gwenda soltou um grito desesperado. Caris exclamou:
- Oh, não!
As duas saíram correndo na direção do cachorro. Ralph exibiu um sorriso.
- O que acha disso? - indagou ele, orgulhoso.
- Você atirou no cachorro dela! - berrou Merthin, furioso.
- Não tem importância... o bicho só tinha três pernas.
- Mas a menina gostava dele, seu idiota! Olhe só como ela está chorando!
- Você só está com inveja porque não sabe atirar.
Alguma coisa atraiu a atenção de Ralph. Com um movimento ágil, ele prendeu outra flecha na corda, puxou-a, virou o arco, e disparou, sem qualquer pausa. Merthin não viu no que ele atirava, até que a flecha atingiu o alvo, uma gorda lebre saltando pelo ar, ferida nos quartos traseiros.
Merthin não pôde ocultar sua admiração. Mesmo com prática, nem todos conseguiam acertar uma lebre em disparada. Ralph possuía um talento natural. Merthin sentia inveja, embora nunca fosse admitir. Ansiava em ser um cavaleiro, bravo e forte, e lutar pelo rei, como o pai fazia; e sentia-se consternado ao descobrir que era um caso perdido, que nem sabia como atirar com arco e flecha.
Ralph pegou uma pedra e esmagou o crânio da lebre, acabando com seu sofrimento.
Merthin foi se ajoelhar ao lado das duas meninas e de Hop. O cachorro não estava mais respirando. Caris, gentilmente, tirou a flecha de seu pescoço e entregou a Merthin. Não houve fluxo de sangue. Hop estava mesmo morto.
Por um momento, ninguém disse nada. No silêncio, ouviram um homem gritar.
Merthin levantou-se de um pulo, o coração batendo forte. Ouviram outro grito, uma voz diferente: havia mais de uma pessoa. Eram vozes agressivas e furiosas. Havia uma luta ali perto. Merthin ficou apavorado, tanto quanto as outras crianças. Paralisados, escutando, eles ouviram outro som, o barulho de um homem correndo impetuoso pela floresta, pisando em galhos caídos, achatando árvores novas, pisoteando folhas mortas.
E se aproximava da clareira. Caris foi a primeira a falar:
- A moita!
Ela apontou para uma moita grande, formada por várias plantas... provávelmente o lugar em que se abrigava a lebre que Ralph matara, pensou Merthin. Um momento depois, ela estava deitada de barriga para baixo, rastejando pela moita.
Gwenda seguiu-a, com o corpo de Hop nos braços. Ralph pegou a lebre morta e loi se juntar aos outros. Merthin estava de joelhos, vigiando a clareira, quando compreendeu que haviam deixado uma flecha denunciadora espetada no tronco do carvalho. Correu através da clareira, arrancou-a, e voltou para mergulhar por baixo da moita.
Ouviram o homem respirar antes de avistá-lo. Ofegava bastante enquanto corria, aspirando o ar com um esforço que indicava que quase não agüentava mais. Seus perseguidores continuavam a gritar, avisando um ao outro:
- Por aqui... ele seguiu nesta direção!
Merthin recordou que Caris dissera que não estavam longe da estrada. O homem em fuga seria um viajante que fora atacado por salteadores?
Um momento depois, ele apareceu na clareira.
Era um cavaleiro, de vinte e poucos anos, com uma espada e uma adaga comprida presas no cinto. Estava bem vestido, numa túnica de couro para viagem, botas de cano alto, as bordas superiores viradas. Cambaleou e caiu, rolou, levantou-se, encostou no carvalho, ofegante. Sacou suas armas.
Merthin olhou para os outros. Caris estava branca de medo, mordendo o lábio. Gwenda apertava o corpo do cachorro morto como se isso a fizesse se sentir mais segura. Ralph também parecia assustado, mas não tanto que o impedisse de arrancar a flecha da lebre e meter a carcaça por dentro da túnica.
Por um momento, o cavaleiro olhou fixamente para a moita. Merthin sentiu, com um terror total, que ele vira as crianças escondidas ali. Ou talvez notasse os gravetos quebrados e folhas pisoteadas por onde haviam passado. Pelo canto do olho, Merthin viu que Ralph prendia uma flecha no arco.
No instante seguinte, os perseguidores apareceram. Eram dois homens de armas, corpulentos, empunhando suas espadas. Usavam túnicas distintivas, de duas cores, o lado esquerdo amarelo, o lado direito verde. Um deles usava um manto marrom de lã ordinária, o outro, um manto preto encardido. Todos os três ficaram parados, recuperando o fôlego. Merthin tinha certeza de que estava prestes a ver o cavaleiro ser retalhado até a morte, e sentiu um impulso vergonhoso de desatar a chorar. Até que, subitamente, o cavaleiro virou a espada e estendeu-a, o cabo virado para a frente, num gesto de rendição.
O mais velho dos homens de armas, o que usava o manto preto, adiantou-se e estendeu a mão esquerda. Cauteloso, pegou a espada estendida, entregou-a a seu companheiro, e aceitou depois a adaga do cavaleiro, antes de dizer:
- Não são suas armas que eu quero, Thomas Langley.
- Você me conhece, mas eu não o conheço. - Se Thomas sentia algum medo, mantinha-o sob controle. - Pelas túnicas, devem ser homens da rainha.
O homem mais velho encostou a ponta da espada na garganta de Thomas e empurrou-o contra a árvore.
- Você tem uma carta.
- Instruções do conde para o xerife sobre a questão dos impostos. Pode ler à vontade.
Era uma piada. Os homens de armas, quase com certeza, não sabiam ler. Thomas tinha muita coragem e calma, pensou Merthin, para escarnecer de homens que pareciam dispostos a matá-lo.
O segundo homem de armas passou por baixo da espada do primeiro e pegou a carteira presa no cinto de Thomas. Impaciente, cortou o cinto com sua espada. Jogou o cinto para o lado e abriu a carteira. Tirou uma bolsa pequena, que parecia ser feita de lã oleada. Pegou um pergaminho enrolado, lacrado com cera.
Aquela luta poderia ser apenas por causa de uma carta?, especulou Merthin. Se era isso mesmo, então o que estava escrito no pergaminho? Não era provável que fossem instruções rotineiras sobre impostos. Algum terrível segredo devia estar escrito ali.
- Se você me matar - disse o cavaleiro -, o crime será testemunhado por quem se esconde naquela moita.
A cena ficou paralisada por uma fração de segundo. O homem de manto preto manteve a espada encostada na garganta de Thomas, resistindo à tentação de olhar para trás. O homem de verde hesitou, mas acabou olhando para a moita.
Foi nesse instante que Gwenda gritou.
O homem de verde ergueu a espada e deu duas passadas largas através da clareira, na direção da moita. Gwenda levantou-se e saiu correndo, deixando a folhagem. O homem de armas partiu em seu encalço, estendendo a mão para agarrá-la.
Ralph também se levantou. Ergueu o arco e atirou a flecha contra o homem, no mesmo movimento. Acertou-o no olho e afundou na cabeça por vários centímetros. O homem ergueu a mão esquerda, como se quisesse pegar a flecha e arrancá-la, mas depois ficou inerte e caiu como um saco de trigo, batendo no chão com um baque tão forte que Merthin pôde sentir o tremor.
Ralph também saiu correndo da moita e seguiu Gwenda. A beira de seu campo de visão, Merthin percebeu que Caris agora corria atrás deles. Merthin queria fugir também, mas seus pés pareciam enraizados no solo.
Soou um grito no outro lado da clareira. Merthin viu que Thomas derrubara a espada que o ameaçava e sacara, de algum lugar do corpo, uma pequena faca, a lâmina com a extensão da mão de um homem. Mas o homem de armas de manto preto estava alerta, e pulou para trás, fora do alcance da faca. Depois, ergueu a espada e desferiu um golpe, visando a cabeça do cavaleiro.
Thomas esquivou-se, mas não com a rapidez suficiente. A beira da lâmina atingiu seu braço esquerdo, cortando o couro e alcançando a carne. Ele soltou um uivo de dor, mas não caiu. Com um movimento rápido, que pareceu extremamente gracioso, levantou a mão direita e atingiu a garganta do oponente; e com a mão ainda em movimento, descrevendo um arco, puxou a faca para o lado, cortando a maior parte do pescoço.
O sangue esguichou da garganta do homem, como água saindo de uma fonte. O homem de preto tombou, a cabeça pendendo do corpo apenas por uma pequena tira.
Thomas largou a faca e estendeu a mão direita para segurar o braço esquerdo ferido. Sentou no chão, parecendo subitamente fraco.
Merthin estava sozinho com o cavaleiro ferido, dois homens de armas mortos e o cadáver de um cachorro de três pernas. Sabia que deveria correr atrás das outras crianças, mas a curiosidade prevaleceu. Thomas parecia agora inofensivo, ele disse a si mesmo.
O cavaleiro tinha uma boa vista. Pode sair da moita agora - disse ele. - Não sou mais um perigo para você
veja o estado em que me encontro.
Hesitante, Merthin levantou-se e saiu da moita. Atravessou a clareira e foi parar a alguns passos de distância do cavaleiro sentado no chão. Thomas disse:
- Será açoitado se descobrirem que estava brincando na floresta. Merthin acenou com a cabeça em concordância.
- Guardarei seu segredo, se você guardar o meu.
Merthin tornou a acenar com a cabeça. Ao aceitar o acordo, ele não fazia concessões. Nenhuma das crianças contaria o que vira. Haveria problemas incalculáveis se falassem. O que aconteceria com Ralph, que matara um dos homens da rainha?
- Poderia fazer o favor de me ajudar a passar uma atadura neste ferimento? pediu Thomas.
Apesar de tudo o que acontecera, ele falava com extrema cortesia, pensou Merthin. O controle do cavaleiro era extraordinário. Merthin sentiu que queria ser como ele quando crescesse.
Depois de um longo esforço, a garganta apertada de Merthin conseguiu emitir uma palavra.
- Claro.
- Pegue aquele cinto rasgado e enrole no meu braço.
Merthin fez o que ele mandou. A camisa de Thomas estava encharcada de sangue e a carne do braço, aberta, como um pedaço de carne no cepo do açougueiro. Merthin sentiu-se um pouco nauseado, mas forçou-se a passar o cinto em torno do braço de Thomas, para fechar o ferimento e diminuir a hemorragia. Deu um nó, e Thomas usou a mão direita para apertá-lo ao máximo possível.
Depois, com um enorme esforço, Thomas conseguiu se levantar. Olhou para os homens mortos.
- Não podemos enterrá-los. Eu sangraria até a morte antes que as sepulturas acabassem de ser escavadas. - Ele lançou um olhar para Merthin. - Mesmo com você me ajudando.
Thomas pensou por um momento.
- Por outro lado, não quero que sejam encontrados por algum casal de namorados procurando um lugar para... ficar a sós. Vamos arrastar os corpos para aquela moita em que vocês se escondiam. O homem do manto verde primeiro.
Os dois foram até o morto indicado.
- Cada um segura uma perna - disse Thomas.
Com a mão direita, ele pegou o tornozelo esquerdo do homem. Merthin pegou o outro pé, com as duas mãos. Juntos, arrastaram o morto até a moita, ao lado do corpo de Hop.
- Aqui está bom - decidiu Thomas.
Ele tinha o rosto branco de tanta dor. Depois de um momento, abaixou-se e arrancou a flecha do olho do morto.
- É sua? - indagou, alteando uma sobrancelha.
Merthin pegou a flecha e limpou-a na terra, para remover o sangue e o cérebro grudado.
Em seguida, arrastaram o corpo do outro homem através da clareira, da mesma maneira, a cabeça quase solta balançando de um lado para outro. Deixaram-no ao lado do primeiro.
Thomas pegou as espadas dos dois atacantes e jogou-as na moita. Depois, recuperou suas próprias armas.
- Agora, tenho de pedir que me faça um grande favor. - Thomas estendeu a adaga. - Pode cavar um pequeno buraco para mim?
- Está bem. Merthin pegou a adaga.
- Bem aqui, na frente do carvalho.
- De que tamanho?
Thomas pegou a carteira de couro que estava presa em seu cinto.
- Grande o suficiente para esconder isto por cinqüenta anos. Merthin tomou coragem para perguntar:
- Por quê?
- Cave e lhe contarei tudo o que posso contar.
Merthin fez um quadrado no solo com a adaga e usou-a para afofar a terra fria, antes de retirá-la com as mãos. Thomas pegou o pergaminho, o pôs na bolsa de lã e ajeitou-o dentro da carteira.
- Recebi esta carta para entregar ao conde de Shiring. Mas contém um segredo tão perigoso que compreendi que o portador seria morto, para se ter certeza de que não poderia revelá-lo. Por isso, eu precisava desaparecer. Decidi que procuraria santuário num mosteiro, e me tornaria um monge. Estou cansado de lutar e tenho muitos pecados de que me arrepender. Assim que perceberam meu desaparecimento, as pessoas que me deram a carta começaram a me procurar... e tive azar. Fui visto e reconhecido numa taverna em Bristol.
- Por que os homens da rainha o perseguiam?
- Ela também gostaria de impedir a revelação do segredo.
Quando o buraco cavado por Merthin tinha quase meio metro de profundidade, Thomas disse:
- Já é suficiente.
Ele largou a carteira no buraco. Merthin tapou-o com a terra retirada. Thomas cobriu a terra revirada com folhas e gravetos, até que ficou indistinguível da área ao redor.
- Se souber que eu morri, gostaria que abrisse o buraco e entregasse a carta a um padre - pediu Thomas. - Pode fazer isso por mim?
- Claro.
- Até que isso aconteça, não deve contar a ninguém. Enquanto souberem que tenho a carta, mas ignorarem onde está, terão medo de fazer qualquer coisa. Mas, se você revelar o segredo, duas coisas vão acontecer. Primeiro, eles me matarão. Depois, matarão você.
Merthin ficou transtornado. Era injusto que corresse tanto perigo só porque ajudara um homem, cavando um buraco.
- Lamento assustá-lo - acrescentou Thomas. - Mas também a culpa não é toda minha. Afinal, não pedi que viesse até aqui.
- Não, não pediu. Merthin desejou com toda a força do coração ter obedecido à ordem da mãe e se mantido longe da floresta.
- Voltarei para a estrada agora. Por que você não retorna pelo caminho por onde veio? Aposto que encontrará seus amigos esperando em algum lugar perto daqui.
Merthin virou-se para ir embora.
- Qual é o seu nome? - perguntou Thomas, antes que ele se afastasse.
- Merthin, filho de Sir Gerald.
- É mesmo? - disse Thomas, como se conhecesse o pai. - Não conte nada, nem mesmo para ele.
Merthin acenou com a cabeça e partiu.
Vomitou depois de percorrer cinqüenta metros. E sentiu-se um pouco melhor.
Como Thomas previra, os outros esperavam-no à beira da floresta, perto da serraria. Agruparam-se ao seu redor, tocando-o, como se quisessem se certificar de que ele estava mesmo bem. Pareciam aliviados, mas também envergonhados, como se estivessem se sentindo culpados por tê-lo deixado para trás. Estavam todos abalados, até mesmo Ralph, que balbuciou:
- Aquele homem... em quem acertei a flechada... ele ficou muito ferido?
- Ele morreu.
Merthin mostrou a flecha, ainda suja de sangue.
- Arrancou a flecha do olho dele?
Merthin gostaria de dizer que sim, mas decidiu dizer a verdade.
- Foi o cavaleiro quem tirou.
- O que aconteceu com o outro homem de armas?
- O cavaleiro cortou sua garganta. E depois escondemos os corpos na moita.
- E ele deixou você ir embora?
- Deixou.
Merthin não disse nada sobre a carta enterrada.
- Temos de guardar segredo - declarou Caris. - Haverá problemas terríveis se alguém descobrir.
- Nunca contarei a ninguém - disse Ralph.
- Devemos fazer um juramento - insistiu Caris.
Formaram um pequeno círculo. Caris estendeu o braço, para que sua mão ficasse no centro do círculo. Merthin pôs sua mão por cima. A pele de Caris era macia e quente. Ralph estendeu a mão também. Gwenda fez a mesma coisa. Juraram pelo sangue de Jesus.
E voltaram à cidade.
A prática de arco-e-flecha já terminara, e se aproximava o momento da refeição do meio-dia. Ao atravessarem a ponte, Merthin comentou com Ralph:
- Quando eu crescer, quero ser como aquele cavaleiro... sempre cortês, sem nunca sentir medo, mortífero numa luta.
- Eu também - disse Ralph. - Quero ser mortífero.
Na cidade, Merthin experimentou um sentimento irracional de surpresa por descobrir que a vida normal continuava: o som de bebês chorando, o cheiro de carne assando, a visão de homens tomando cerveja fora das tavernas.
Caris parou diante de uma casa enorme, na rua principal, na frente da entrada para o priorado. Estendeu o braço pelos ombros de Gwenda e disse:
Minha cachorra acaba de ter filhotes. Quer ver os filhotes?
Gwenda ainda parecia assustada, à beira das lágrimas, mas acenou com a cabeça, enfática.
- Quero, sim, por favor.
Era uma manobra hábil, além de gentil, pensou Merthin. Os filhotes seriam um conforto para a menina... e também uma distração. Quando voltasse para sua família, contaria sobre os filhotes e era menos provável que falasse da aventura na floresta.
Despediram-se. As meninas entraram na casa. Merthin descobriu-se a pensar em quando veria Caris de novo.
Até que se lembrou dos outros problemas. O que o pai faria em relação às dívidas? Merthin e Ralph chegaram à catedral. Ralph ainda levava o arco e a lebre morta.
O hospital estava vazio, exceto por uns poucos doentes. Uma freira informou:
- O pai de vocês está na catedral, com o conde de Shiring.
Os dois entraram na vasta catedral. Os pais estavam no vestíbulo. A mãe sentava junto de uma coluna, no canto em que a coluna redonda se aproximava do canto quadrado. A luz fria que passava pelas janelas altas, seu rosto era sereno, quase como se esculpido da mesma pedra cinzenta da coluna em que encostava a cabeça. O pai mantinha-se de pé ao seu lado, os ombros largos arriados numa atitude de resignação. O conde Roland se encontrava na frente dos dois. Era mais velho do que o pai, mas parecia mais jovem por causa dos cabelos pretos e dos movimentos vigorosos. O prior Anthony estava ao lado do conde. Os dois meninos recuaram quando viram a cena, mas a mãe fez sinal para que se adiantassem.
- Venham até aqui - disse ela. - O conde Roland ajudou-nos a chegar a um acordo com o prior Anthony que resolve todos os nossos problemas.
O pai soltou um grunhido, como se não se sentisse tão grato quanto a mãe pelo que o conde fizera.
- E o priorado fica com as minhas terras - disse ele. - Vocês dois não terão nada para herdar.
- Passaremos a viver aqui, em Kingsbridge - explicou a mãe, em tom mais animado. - Seremos corrodiários do priorado.
- O que é um corrodiário? - perguntou Merthin.
- Significa que os monges nos darão uma casa para viver e duas refeições por dia, pelo resto de nossas vidas. Não é maravilhoso?
Merthin compreendeu que ela não pensava de fato que era maravilhoso. Apenas fingia estar satisfeita. Já o pai sentia uma vergonha evidente de ter perdido suas terras. Havia mais do que uma insinuação de desgraça nisso, concluiu Merthin. O pai olhou para o conde.
- O que vai acontecer com meus meninos?
O conde Roland virou-se para examiná-los.
- O maior parece promissor - disse ele. - Foi você que matou essa lebre?
- Fui, sim, milorde - respondeu Ralph, orgulhoso. - Acertei-a com uma flecha.
- Ele pode me procurar dentro de poucos anos para ser um pajem, um aprendiz de cavaleiro.
O pai parecia satisfeito.
Merthin sentia-se atordoado. Grandes decisões estavam sendo tomadas muito depressa. Ficou indignado pelo fato de o irmão mais jovem ser privilegiado, enquanto não faziam nenhuma menção a ele.
- Isso não é justo! - protestou Merthin. - Também quero ser um cavaleiro!
- Não! - exclamou a mãe.
- Mas eu fiz o arco!
O pai deixou escapar um suspiro exasperado.
- Foi você quem fez o arco, pequeno? - disse o conde, com uma expressão desdenhosa. - Neste caso, será aprendiz de carpinteiro.
A casa de Caris era um prédio de madeira luxuoso, com chão de pedra e uma chaminé de pedra. Havia três cômodos separados no térreo: a sala com a grande mesa de jantar, a sala pequena em que o pai podia tratar de negócios em particular, e a cozinha. Quando Caris e Gwenda entraram, a casa estava impregnada pelo aroma apetitoso de pernil assando.
Caris levou Gwenda pela sala grande, até a escada interna.
- Onde estão os filhotes? - perguntou Gwenda.
- Quero ver minha mãe primeiro - explicou Caris. - Ela está doente. Entraram no quarto da frente, onde a mãe deitava numa cama de madeira toda esculpida. Era uma mulher pequena e frágil; Caris já tinha a mesma altura da mãe. Ela achou que a mãe parecia mais pálida do que o habitual hoje, vários fios dos cabelos ainda não arrumados grudados no rosto molhado de suor.
- Como se sente, mamãe? - perguntou Caris.
- Um pouco fraca hoje.
O esforço de falar deixou a mãe ofegante. Caris sentiu uma mistura familiar e angustiante de ansiedade e desamparo. A mãe estava doente havia um ano. Começara com dores nas juntas. Logo passara a ter úlceras dentro da boca e equimoses inexplicadas pelo corpo. Sentia-se fraca demais para fazer qualquer coisa. Na semana passada pegara um resfriado. Agora, tinha febre e dificuldade para respirar.
- Precisa de alguma coisa?
- Não, obrigada.
Era a resposta habitual, mas Caris sentia-se enfurecida com a própria impotência cada vez que a ouvia.
- Devo chamar madre Cecilia?
A prioresa de Kingsbridge era a única pessoa capaz de proporcionar algum conforto à mãe. Ela tinha um extrato de papoulas que misturava com mel e vinho quente para atenuar a dor por algum tempo. Caris achava que Cecilia era melhor do que um anjo.
- Não há necessidade, querida. Como foi o serviço de Todos os Santos? Caris notou que os lábios da mãe estavam muito pálidos.
- Assustador.
A mãe fez uma pausa, descansando um pouco, antes de perguntar:
- O que fez esta manhã?
- Fui assistir à prática de arco-e-flecha.
Caris prendeu a respiração, com medo de que a mãe pudesse adivinhar seu segredo culpado, como acontecia com freqüência. Mas a mãe olhou para Gwenda.
- Quem é sua amiguinha?
- Gwenda. Eu a trouxe até aqui para ver os filhotes.
- Isso é ótimo.
A mãe mostrou-se subitamente cansada. Fechou os olhos e virou a cabeça para o lado.
As meninas deixaram o quarto sem fazer barulho. Gwenda estava chocada.
- O que há de errado com ela?
- Ela tem uma doença debilitante.
Caris detestava falar a respeito. A doença da mãe deixava-a com o sentimento enervante de que nada era certo, qualquer coisa poderia acontecer, não havia nenhuma segurança no mundo. Era ainda mais assustadora do que a luta que testemunhara na floresta. Se pensava no que poderia acontecer, na possibilidade da morte da mãe, sofria uma sensação de pânico que deixava o coração palpitando e dava vontade de gritar.
O quarto do meio era usado no verão pelos italianos, compradores de lã de Florença e Prato, que vinham fazer negócios com o pai. Agora, estava vazio. Os filhotes se encontravam no quarto dos fundos, que pertencia a Caris e sua irmã, Alice. Tinham sete semanas de idade, prontos para deixar a mãe, que se mostrava cada vez mais impaciente com as crias. Gwenda soltou um suspiro de alegria, e se abaixou no mesmo instante para ficar no chão com os filhotes.
Caris pegou uma fêmea, a menor da ninhada, mas bastante animada, sempre se aventurando sozinha para explorar o mundo.
- Ficarei com esta - comentou ela. - Seu nome é Scrap.
Segurar a cachorrinha acalmou-a, e ajudou-a a esquecer as outras coisas que a perturbavam.
Os outros quatro animais subiram em Gwenda, farejando-a e mastigando seu vestido. Ela pegou um macho, feio, marrom, o focinho comprido, os olhos muito juntos.
- Gosto deste - murmurou ela.
O filhote enroscou-se em seu colo. Caris disse:
- Gostaria de ficar com ele?
Lágrimas afloraram aos olhos de Gwenda.
- Temos permissão para dar todos os filhotes.
- É mesmo?
- Papai não quer mais cachorros. Se você quiser, pode levar.
- Quero, sim - sussurrou Gwenda. - Muito obrigada.
- Já tem um nome?
- Alguma coisa que me lembre Hop. Talvez eu o chame de Skip.
Era uma referência à expressão bop, skip and a jump, um pulo, outro pulo e um salto, para designar uma distância curta.
- É um bom nome.
Caris percebeu que Skip já adormecera no colo de Gwenda. As duas meninas continuaram sentadas no chão com os filhotes, em silêncio. Caris pensou nos dois meninos que haviam conhecido, o pequeno, de cabelos vermelhos e olhos castanho-dourados, e seu irmão mais jovem, alto e bonito. O que a impelira a levá-los para a floresta? Não era a primeira vez que ela cedia a um impulso estúpido. Tendia a acontecer quando alguém de autoridade ordenava que ela não fizesse alguma coisa. Sua tia Petranilla vivia ditando regras:
- Não dê comida a esse gato ou nunca vamos nos livrar dele. Nada de jogo de bola em casa. Fique longe daquele menino, pois sua família é de camponeses.
Regras que reprimiam seu comportamento pareciam levar Caris à loucura. Mas ela nunca fizera nada tão insensato. E sentiu-se abalada agora ao pensar a respeito. Dois homens haviam morrido. Mas o que poderia acontecer era ainda pior. As quatro crianças poderiam ter sido mortas também.
Ela especulou sobre o motivo da luta, por que os homens de armas perseguiam o cavaleiro. Obviamente, não era um simples assalto. Haviam falado de uma carta. Mas Merthin não dissera mais nada a respeito. Era bem provável que não tivesse sabido de mais nada. Ou seja, era apenas outro mistério da vida adulta.
Caris gostara de Merthin. Seu irmão, insuportável, era como todos os outros meninos de Kingsbridge, fanfarrão e agressivo, além de estúpido. Mas Merthin era diferente. Ela sentira-se atraída desde o início.
Duas novas amizades em um único dia, pensou ela, olhando para Gwenda. A menina não era bonita. Tinha olhos castanho-escuros bem juntos, por cima de um nariz adunco. Escolhera um cachorro que parecia um pouco com ela, compreendeu Caris, divertida. As roupas de Gwenda eram velhas e deviam ter sido usadas por muitas outras crianças antes. Gwenda estava mais calma agora. Não dava mais a impressão de que poderia desatar a chorar a qualquer momento. E ela também sentia-se tranqüilizada pelos filhotes.
Soaram passos familiares na sala lá embaixo. Um momento depois, uma voz berrou:
- Tragam-me um jarro de cerveja, pelo amor dos santos! Estou com mais sede que um cavalo de carroça!
- É meu pai - anunciou Caris. - Venha comigo para conhecê-lo. Ao perceber que Gwenda estava apreensiva, ela acrescentou:
- Não se preocupe. Ele sempre grita assim, mas é um homem bom. As meninas desceram com os filhotes.
- O que aconteceu com todos os meus criados? - esbravejou o pai. - Fugiram para a terra dos duendes?
Ele saiu da cozinha, arrastando a perna direita torta, como sempre, carregando uma enorme caneca de madeira, com a cerveja ameaçando derramar.
- Olá, meu botão-de-ouro!
A voz com que ele se dirigiu a Caris era mais suave. Sentou numa cadeira enorme, à cabeceira da mesa, e tomou um gole prolongado da caneca.
- Assim é melhor. - Ele enxugou a barba irregular com a manga. Notou a presença de Gwenda. - Uma pequena margarida para acompanhar meu botão-deouro? Como é seu nome?
- Gwenda, de Wigleigh, milorde - respondeu ela, apavorada.
- Dei um filhote a ela - explicou Caris.
- Uma ótima idéia! Os filhotes precisam de atenção, e ninguém pode amar mais um filhote do que uma menina.
Caris viu, no banco ao lado da mesa, um manto escarlate. Só podia ser importado, porque os tintureiros ingleses não sabiam como obter aquele vermelho brilhante. Seguindo o olhar da filha, o pai explicou:
- É para sua mãe. Ela sempre quis ter um casaco de vermelho italiano. Espero que isto a encoraje a melhorar logo para vesti-lo.
Caris tocou no casaco. A lã era macia e fechada, como só os italianos sabiam fazer.
- É lindo - murmurou ela.
Tia Petranilla veio da rua. Tinha alguma semelhança com o pai, mas era muito contida, enquanto o irmão era expansivo. Parecia mais com o outro irmão, Anthony, o prior de Kingsbridge: eram ambos altos e imponentes, enquanto o pai era baixo, de peito estufado, e manco.
Caris não gostava de Petranilla. Ela era esperta e mesquinha, uma combinação terrível num adulto: Caris nunca conseguia enganá-la. Gwenda sentiu a aversão de Caris e olhou apreensiva para a recém-chegada. Só que o pai se mostrou satisfeito ao vê-la.
- Entre, irmã - disse ele. - Onde estão todos os meus criados?
- Não sei por que você imagina que eu sei, já que venho de minha própria casa, no outro lado da rua. Mas, se tivesse de adivinhar, Edmund, eu diria que sua cozinheira está no galinheiro, à procura de ovos para fazer um pudim, enquanto a outra criada está lá em cima, ajudando sua esposa a sentar num banco, o que costuma fazer por volta de meio-dia. E espero que seus dois aprendizes estejam de guarda no armazém à beira do rio, cuidando para que nenhum dos festeiros embriagados neste dia de festa resolva acender uma fogueira a distância de um vôo de faísca de sua lã.
Ela costumava falar assim mesmo, fazendo um pequeno sermão em resposta à pergunta mais simples. Seu comportamento era arrogante, mas o pai não se importava... ou fingia não se importar.
- Minha extraordinária irmã - disse ele. - Você é a única que herdou a sabedoria de nosso pai.
Ela virou-se para as meninas.
- Nosso pai descendia de Tom Builder, o padrasto e mentor de Jack Builder, que foi o arquiteto da catedral de Kingsbridge. O pai prometeu que daria seu primogênito a Deus, mas infelizmente fui a primeira criança a nascer. Ele me deu o nome de Santa Petranilla... que era filha de São Pedro, como tenho certeza que sabem... e rezou para que nascesse um menino em seguida. E nasceu um menino, só que era deformado, Como não queria dar a Deus um presente defeituoso, ele criou Edmund para assumir o negócio de lã. Felizmente veio outro menino em seguida, nosso irmão Anthony, bem-comportado e temente a Deus, que ingressou no mosteiro ainda pequeno, para se tornar agora, como todos nos orgulhamos de proclamar, o prior.
Ela teria se tornado sacerdote se fosse homem, mas tivera de se contentar em fazer a melhor coisa seguinte, criando o filho Godwyn para ser um monge no priorado. Como o avô Wooler, Petranilla entregara um filho a Deus. Caris sempre sentira pena de Godwyn, seu primo mais velho, por ser filho de Petranilla.
Petranilla notou o casaco vermelho.
- De quem é isto? - indagou ela. - É o tecido italiano mais caro!
- Comprei para Rose - disse o pai.
Petranilla fitou-o fixamente. Caris podia sentir que ela estava pensando que o irmão era um tolo ao comprar um casaco como aquele para uma mulher que não saía de casa havia um ano. Mas ela limitou-se a fazer um comentário, que podia ser encarado como um elogio... ou não:
- Você é muito bom para ela. O pai não se importou.
- Suba para vê-la exortou ele. - Vai animá-la.
Caris duvidava, mas Petranilla não tinha essas apreensões e tratou de subir. A irmã de Caris, Alice, veio da rua. Tinha onze anos, um a mais do que Caris. Olhou para Gwenda e perguntou:
- Quem é ela?
- Minha nova amiga, Gwenda - respondeu Caris. - Ela vai levar um filhote.
- Mas ela pegou o filhote que eu queria! - protestou Alice. Ela nunca dissera isso antes.
- Ei... você não tinha escolhido nenhum! - exclamou Caris, indignada. - Só está dizendo isso por maldade!
- Por que ela deveria ficar com um dos nossos filhotes? O pai interveio:
- Calma, calma... Temos mais filhotes do que precisamos.
- Caris deveria ter me perguntado primeiro qual deles eu queria!
- Tem razão - disse o pai, embora soubesse muito bem que Alice estava apenas querendo criar problemas. - Não faça isso de novo, Caris.
- Está bem, papai.
A cozinheira veio da cozinha, com jarros e canecas. Quando Caris estava aprendendo a falar, chamava-a de Tutty, ninguém sabia por quê. Mas o nome pegara. O pai disse:
- Obrigado, Tutty. Sentem-se à mesa, meninas.
Gwenda hesitou, sem saber se o convite a incluía. Mas Caris acenou com a cabeça para ela, pois sabia que o pai a incluía... ele costumava convidar para comer todas as pessoas que se encontravam em sua presença no momento da refeição.
Tutty encheu de cerveja a caneca do pai, depois serviu a Alice, Caris e Gwenda um pouco de cerveja misturada com água. Gwenda bebeu tudo imediatamente, com evidente satisfação. Caris compreendeu que ela não bebia cerveja com freqüência: as pessoas pobres tomavam sidra feita com maçã ácida.
Em seguida, Tutty pôs na frente de cada pessoa uma grossa fatia de pão de centeio. Gwenda pegou sua fatia para comer, e Caris adivinhou que ela nunca antes comera a uma mesa.
- Espere um instante - murmurou ela.
Gwenda largou o pão. Tutty trouxe o pernil numa tábua, junto com um prato de repolho. O pai pegou um facão e cortou fatias do pernil, empilhadas em cima de cada pedaço de pão. Gwenda arregalou os olhos pela quantidade de carne que lhe foi servida. Caris usou uma colher para pegar folhas de repolho e pôr sobre as fatias do pernil.
Foi nesse instante que a outra criada, Elaine, desceu correndo a escada.
- A patroa parece pior - disse ela. - A sra. Petranilla diz que devemos chamar madre Cecilia.
- Pois então corra até o priorado e peça a ela para vir - ordenou o pai. A criada saiu.
- Comam, crianças - disse o pai.
Ele espetou uma fatia de pernil quente com a faca; mas Caris podia perceber que o pai não sentia mais qualquer satisfação pela comida. Parecia estar olhando para alguma coisa distante. Gwenda comeu um pouco do repolho e sussurrou:
- Isto é uma comida do céu.
Caris experimentou. O repolho fora cozido com gengibre. Provavelmente Gwenda nunca provara gengibre antes. Só os ricos podiam comprá-lo.
Petranilla desceu, pôs um pouco de pernil num prato de madeira e subiu para oferecer à cunhada. Mas voltou poucos momentos depois com a comida intacta. Sentou à mesa para comer o pernil. A cozinheira trouxe-lhe pão.
- Quando eu era pequena, nossa família era a única em Kingsbridge que tinha carne para comer todos os dias - comentou ela. - Exceto nos dias de jejum... meu pai era muito devoto. Foi o primeiro mercador de lã da cidade a negociar diretamente com os italianos. Todos fazem isso agora... embora meu irmão Edmund ainda seja o mais importante.
Caris perdera o apetite. Tinha de mastigar bastante para poder engolir. Madre Cecilia finalmente chegou, uma mulher pequena e ativa, com uma atitude mandona tranqüilizadora. Era acompanhada por irmã Juliana, uma pessoa simples, com um coração terno. Caris sentiu-se melhor ao observá-las subirem a escada, uma pardoca saltitante e uma galinha balançando de um lado para outro em sua esteira. Lavariam a mãe com água-de-rosas para esfriar a febre, e a fragrância serviria para reanimá-la.
Tutty trouxe maçãs e queijo. O pai descascou uma maçã com sua faca, distraído. Caris recordou que o pai costumava lhe dar os pedaços da maçã descascada quando ela era pequena, e depois ele comia a casca.
Irmã Juliana desceu, com uma expressão preocupada no rosto roliço.
- A prioresa quer que o irmão Joseph venha ver a sra. Rose Vou chamá-lo. Joseph era o médico sênior no mosteiro; estudara com os mestres em Oxford.
Juliana saiu apressada para a rua.
O pai largou a maçã descascada sem comer.
- O que vai acontecer? - perguntou Caris.
- Não sei, botão-de-ouro. Vai chover? Os florentinos precisam de quantos sacos de lã? As ovelhas vão pegar uma morrinha? A criança que vai nascer será uma menina ou um menino com a perna torta? Nunca sabemos, não é mesmo? É isso... - O pai desviou os olhos. - É isso o que torna tudo tão difícil.
Ele estendeu a maçã para Caris, que a deu a Gwenda... que comeu tudo, inclusive os caroços.
Irmão Joseph chegou poucos momentos depois, acompanhado por um jovem assistente, que Caris reconheceu como Saul Whitehead, Cabeça Branca, assim chamado porque os cabelos - o pouco que restava depois do corte monacal eram louro-acinzentados.
Cecilia e Juliana desceram, sem dúvida para dar espaço aos dois homens no pequeno quarto. Cecilia sentou-se à mesa, mas não comeu. Tinha um rosto pequeno, com feições bem acentuadas, o nariz um pouco pontudo, olhos brilhantes, um queixo que parecia a proa de um barco. Olhou curiosa para Gwenda.
- Quem é essa menina? - indagou ela, jovial. - Ela ama Jesus e sua Santa Mãe?
- Sou Gwenda, amiga de Caris.
Ela fitou Caris, ansiosa, como se temesse que fosse muita presunção de sua parte reivindicar essa amizade.
- A Virgem Maria vai fazer minha mãe ficar melhor? - perguntou Caris. Cecilia ergueu as sobrancelhas.
- Uma pergunta direta. É fácil perceber que você é filha de Edmund.
- Todo mundo reza para ela, mas nem todos ficam bons - comentou Caris.
- E sabe por que isso acontece?
- Talvez seja porque ela nunca ajuda ninguém, e acontece apenas que as pessoas fortes ficam boas, mas as fracas, não.
- Não diga bobagem - interveio o pai. - Todo mundo sabe que a Santa Mãe nos ajuda.
- Não se preocupe - disse-lhe Cecilia. - É normal as crianças fazerem perguntas... ainda mais as inteligentes. Caris, os santos são sempre poderosos, mas algumas orações são mais eficazes do que outras. Compreende isso?
Caris acenou com a cabeça, relutante, não se sentindo convencida, mas sem saber o que responder.
- Ela deve ir para a nossa escola - disse Cecilia.
As freiras mantinham uma escola para as filhas da nobreza e os habitantes mais prósperos da cidade. Os monges cuidavam de uma escola separada para os meninos. O pai não concordava com essa idéia.
- Rose já ensinou as letras para as meninas. E Caris conhece os números tão bem quanto eu... até me ajuda nos negócios.
- Ela deve aprender mais do que isso. Não vai querer que ela passe a vida como sua serva, não é?
Petranilla interveio:
- Ela não precisa aprender as coisas dos livros. Vai casar muito bem. Haverá multidões de pretendentes para as duas irmãs. Filhos de mercadores, até mesmo filhos de cavaleiros, se mostrarão ansiosos em casar nesta família. Mas Caris é uma criança voluntariosa; devemos cuidar para que ela não se perca com algum menestrel sem dinheiro.
Caris notou que Petranilla não previa problemas com a obediente Alice, que provavelmente casaria com o homem que a família escolhesse para seu marido.
- Deus pode chamar Caris para seu serviço - sugeriu Cecilia.
- Deus já chamou duas pessoas desta família... meu irmão e meu sobrinho resmungou o pai. - Imagino que Ele já se sente satisfeito a esta altura.
Cecilia olhou para Caris.
- O que você acha? Quer ser uma mercadora de lã, a esposa de um cavaleiro ou uma freira?
A perspectiva de ser freira deixava Caris horrorizada. Teria de obedecer às ordens de outra pessoa em todas as horas do dia. Seria como permanecer uma criança pelo resto da vida... e ter Petranilla como mãe. Ser a esposa de um cavaleiro, ou de qualquer outro homem, parecia quase tão ruim, porque as mulheres tinham de obedecer a seus maridos. Ajudar o pai, talvez assumir o negócio quando ele se tornasse velho demais, era a opção menos desagradável; mas, por outro lado, não era exatamente o seu sonho.
- Não quero ser nenhuma dessas coisas.
- Há alguma outra coisa que você gostaria de fazer? - indagou Cecilia. Havia, sim, embora Caris nunca tivesse dito a ninguém antes; na verdade, nem sequer compreendera direito até aquele momento. Mas agora a ambição parecia plenamente formada e ela compreendeu, sem a menor dúvida, que era seu destino.
- Vou ser uma doutora.
Houve um momento de silêncio, e depois todos riram. Caris corou, sem saber o que era tão engraçado. O pai se compadeceu e explicou:
- Só os homens podem ser doutores. Não sabia disso, botão-de-ouro? Caris ficou espantada. Olhou para Cecilia.
- Mas o que você é?
- Não sou uma médica. As freiras podem cuidar de doentes, é claro, mas seguem as instruções dos homens treinados. Os homens que estudaram com os mestres compreendem os humores do corpo, a maneira como se desequilibram na doença, e como levá-los de volta às proporções corretas, para restabelecer a boa saúde. Sabem que veia sangrar para a enxaqueca, lepra ou falta de ar; onde aplicar uma ventosa e onde cauterizar; se pôr um cataplasma ou dar um banho.
- Uma mulher não poderia aprender essas coisas?
- Talvez, mas Deus determinou o contrário.
Caris sentia-se frustrada com a maneira como os adultos recorriam a esse truísmo todas as vezes que não sabiam como responder.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o irmão Saul desceu com uma bacia com sangue, e atravessou a cozinha para despejá-la no quintal dos fundos. A cena deixou Caris com vontade de chorar. Todos os médicos usavam a sangria como uma cura, e por isso devia ser eficaz; mas mesmo assim ela detestava ver a força vital da mãe numa bacia, prestes a ser jogada fora.
Saul voltou ao quarto da doente. Poucos momentos depois, ele e Joseph desceram.
- Fiz tudo o que posso por ela - declarou Joseph ao pai, solene. - E ela confessou seus pecados.
Confessou seus pecados! Caris sabia o que isso significava. Começou a chorar. O pai tirou seis pennies de prata de sua bolsa e entregou-os ao monge, murmurando, a voz rouca:
- Obrigado, irmão.
Enquanto os monges se retiravam, as duas freiras tornaram a subir.
Alice sentou no colo do pai e comprimiu o rosto contra seu pescoço. Caris chorou e abraçou Scrap. Petranilla ordenou que Tutty tirasse a mesa. Gwenda observava tudo com os olhos arregalados. Todos continuaram sentados à mesa, esperando.
O irmão Godwyn estava com fome. Já comera um ensopado de nabos cortados com peixe salgado, mas não se satisfizera. Os monges quase sempre comiam peixe e tomavam uma cerveja fraca, mesmo quando não era um dia de jejum.
Nem todos os monges, é claro. O prior Anthony tinha uma dieta privilegiada. E teria hoje uma refeição ainda mais especial, pois a prioresa, madre Cecilia, seria sua convidada. Ela estava acostumada a uma boa comida. As freiras, que sempre pareciam ter mais dinheiro do que os monges, matavam um porco ou uma ovelha a intervalos de poucos dias e comiam com vinho da Gasconha.
Era incumbência de Godwyn supervisionar a refeição, uma tarefa difícil, quando seu próprio estômago roncava de fome. Ele conversou com o cozinheiro do mosteiro, verificou o ganso gordo assando no forno, a panela com o molho de maçã borbulhando no fogo. Pediu ao adegueiro que tirasse um jarro de sidra do barril e pegou um pão de centeio na padaria... do dia anterior, já que não se fazia pão aos domingos. Tirou as taças e travessas de prata da arca trancada e as arrumou na mesa da sala da casa do prior.
O prior e a prioresa faziam uma refeição juntos pelo menos uma vez por mês. O mosteiro e o convento eram instituições separadas, com suas próprias instalações e diferentes fontes de receita. O prior e a prioresa eram subordinados de forma independente ao bispo de Kingsbridge. Apesar disso, partilhavam a enorme catedral e vários outros prédios, onde os monges trabalhavam como médicos e as freiras, como enfermeiras. Por isso, havia sempre detalhes para discutir: serviços na catedral, hóspedes e pacientes no hospital, os problemas políticos da cidade. Anthony tentava muitas vezes persuadir Cecilia a pagar custos que, em termos estritos, deveriam ser divididos igualmente - janelas de vidro para a sala do capítulo, colchas para o hospital, a repintura do interior da catedral - e ela quase sempre concordava.
Hoje, porém, a conversa deveria se concentrar na política. Anthony voltara no dia anterior de duas semanas em Gloucester, onde participara das cerimônias de sepultamento do rei Edward II, que perdera o trono em janeiro e a vida em setembro. Madre Cecilia queria saber de tudo, embora simulasse se manter acima de todas as intrigas.
Godwyn tinha outra coisa em mente. Queria conversar com Anthony sobre seu futuro. Estivera aguardando ansioso pelo momento certo desde que o prior voltara. Ensaiara o discurso, mas ainda não encontrara a oportunidade de fazê-lo. Esperava ter a chance naquela tarde.
Anthony entrou na sala no momento em que Godwyn punha um queijo e uma tigela com peras no aparador. O prior parecia uma versão mais velha de Godwyn. Os dois eram altos, com feições regulares e cabelos castanho-claros. Como todos na família, tinham olhos esverdeados com pintas douradas. Anthony parou ao lado do fogo... a sala estava fria e o velho prédio permitia a passagem de aragens geladas. Godwyn serviu uma taça de sidra.
- Padre prior, hoje é meu aniversário. Estou com vinte e um anos.
- Sei disso. Lembro muito bem de seu nascimento. Eu tinha quatorze anos na ocasião. Minha irmã Petranilla berrou como um javali com uma flecha nas entranhas quando trouxe você ao mundo. - Anthony ergueu a taça num brinde, fitando o sobrinho com uma expressão afetuosa. - E agora você é um homem.
Godwyn decidiu que aquele era o momento.
- Estou no priorado há dez anos.
- Tanto tempo assim?
- Isso mesmo... como estudante, noviço e monge.
- É muito tempo.
- Espero ter sido um crédito para minha mãe e para meu tio.
- Sentimos orgulho de você.
- Obrigado. - Godwyn engoliu em seco. - E agora quero ir para Oxford.
A cidade de Oxford era havia muito tempo um centro para mestres de teologia, medicina e direito. Padres e monges iam a Oxford para estudar e debater com mestres e outros discípulos. Ao longo do último século, os mestres haviam se incorporado numa companhia, ou universidade, que recebera a permissão real para aplicar exames e conceder diplomas. O priorado de Kingsbridge mantinha um departamento ou célula na cidade, conhecido como Kingsbridge College, onde oito monges podiam continuar a vida de orações e abnegação enquanto estudavam.
- Oxford! - Uma expressão de ansiedade e desagrado estampou-se no rosto de Anthony. - Para quê?
- Para estudar. É o que os monges devem fazer.
- Nunca estive em Oxford... e sou o prior.
Era verdade, mas Anthony às vezes se encontrava em desvantagem com colegas sêniores em conseqüência. O encarregado da sacristia, o tesoureiro, e várias outras autoridades monásticas, ou obedienciais, eram graduados na universidade, além dos médicos. Todos tinham o pensamento ágil e eram hábeis na argumentação. Anthony parecia às vezes inepto em comparação, especialmente no capítulo, à reunião diária de todos os monges. Godwyn ansiava em adquirir a lógica irrefutável e a superioridade confiante que observava nos homens de Oxford. Não queria ser como o tio.
Mas não podia dizer isso.
- Quero aprender.
- Por que aprender heresia? - indagou Anthony, desdenhoso. - Os estudantes de Oxford questionam os ensinamentos da Igreja!
- A fim de compreendê-los melhor.
- É inútil e perigoso.
Godwyn se perguntou por que Anthony reagia com tanta veemência. O prior nunca parecera preocupado com a heresia antes, e Godwyn não estava nem um pouco interessado em desafiar as doutrinas aceitas. Ele franziu o rosto.
- Pensei que você e minha mãe tinham ambições para mim. Não querem que eu avance, me torne um obediencial, e talvez um dia o prior?
- Claro que queremos. Mas você não precisa deixar Kingsbridge para conseguir isso.
Você não quer que eu avance muito depressa para não os ultrapassar; e não quer que eu deixe a cidade para não perder o controle que tem sobre mim, pensou Godwyn, num relance de percepção. Ele desejou ter previsto essa resistência a seus planos.
- Não quero estudar teologia.
- O que então pretende estudar?
- Medicina. É uma parte importante do nosso trabalho aqui.
Anthony contraiu os lábios. Godwyn vira a mesma expressão desaprovadora na mãe.
- O mosteiro não tem condições de pagar por você. Sabia que apenas um livro custa pelo menos quatorze shillings’?
Godwyn foi tomado de surpresa. Sabia que os estudantes podiam alugar livros por páginas; mas essa não era a questão principal.
- O que me diz dos estudantes que já estão lá? Quem paga por eles?
- Dois são sustentados por suas famílias e outro, pelas freiras. O priorado paga pelos outros três. Mas não temos condições de mandar mais ninguém. Na verdade, temos duas vagas no colégio que não são preenchidas por falta de recursos.
Godwyn sabia que o priorado passava por dificuldades financeiras. Por outro lado, possuía vastos recursos: milhares de acres de terras; moinhos, pesqueiros, florestas; e a enorme receita do mercado de Kingsbridge. Ele não podia acreditar que o tio estivesse recusando o dinheiro de que precisava para estudar em Oxford. Sentia-se traído. Anthony era seu mentor, além de parente. Sempre favorecera Godwyn em relação aos outros jovens monges. Mas agora ele tentava bloquear o progresso do sobrinho.
- Médicos trazem dinheiro para o priorado - argumentou ele. - Se não treinar alguns jovens, os velhos acabarão morrendo e o priorado se tornará mais pobre.
- Deus provera.
Essa platitude irritante era sempre a resposta de Anthony. Havia alguns anos vinha declinando a receita que o priorado conseguia com a realização anual da Feira do Velocino. Os habitantes da cidade exortavam Anthony a investir em melhores instalações para os negociantes de lã - tendas, estandes, latrinas, até mesmo um prédio para as transações - mas ele sempre recusava, alegando pobreza. E, quando o irmão Edmund dizia que a feira definharia até acabar, ele respondia:
- Deus provera.
- Neste caso, talvez Deus também providencie o dinheiro necessário para meus estudos em Oxford - disse Godwyn.
- É possível.
Godwyn sentia um doloroso desapontamento. Experimentava o impulso de escapar de sua cidade natal e respirar um ar diferente. Em Kingsbridge College, continuaria sujeito à mesma disciplina monástica, é claro... mas pelo menos ficaria longe do tio e da mãe, o que era uma perspectiva atraente. Mas ainda não estava disposto a desistir da argumentação.
- Minha mãe ficará muito desapontada se eu não for.
Anthony mostrou-se apreensivo. Não queria incorrer na ira da formidável irmã.
- Então deixe-a rezar para que o dinheiro seja encontrado.
- Eu poderia conseguir o dinheiro em outro lugar - sugeriu Godwyn, improvisando.
- Como faria isso?
Ele vasculhou a mente à procura de uma resposta, e teve uma súbita inspiração.
- Eu poderia fazer o que você faz, e pedir a madre Cecilia.
Era possível. Cecilia deixava-o nervoso - podia ser tão intimidativa quanto Petranilla - mas era mais suscetível a seu charme juvenil. Podia ser persuadida a pagar pela educação de um monge jovem e inteligente.
A sugestão pegou Anthony de surpresa. Godwyn percebeu que ele tentava pensar numa objeção. Mas vinha argumentando como se o dinheiro fosse a principal consideração, e era difícil agora mudar de posição.
Enquanto Anthony hesitava, Cecilia entrou.
Usava um grosso manto de lã, sua única indulgência... detestava sentir frio. Depois de cumprimentar o prior, ela virou-se para Godwyn.
- Sua tia Rose está gravemente doente. - A voz era precisa e musical. - Pode não passar desta noite.
- Que Deus esteja com ela.
Godwyn sentiu uma pontada de compaixão. Numa família em que todos eram líderes, Rose era a única seguidora. Suas pétalas pareciam mais frágeis por estar cercada por espinheiros.
- Não é um choque - acrescentou ele. - Mas minhas primas Alice e Caris ficarão tristes.
- Felizmente elas têm sua mãe para consolá-las.
- É verdade.
Consolar alguém não era o ponto forte de Petranilla, pensou Godwyn - ela era melhor em exigir uma postura empertigada e prevenir as recaídas -, mas não corrigiu a prioresa. Em vez disso, serviu-lhe uma taça de sidra.
- Acha que está frio aqui, reverenda madre?
- Congelando.
- Acenderei o fogo. Anthony interveio, insidioso:
- Meu sobrinho Godwyn está sendo atencioso porque quer que você pague seus estudos em Oxford.
Godwyn lançou-lhe um olhar furioso. Teria planejado um discurso cuidadoso e escolhido o melhor momento para apresentá-lo. Agora, Anthony apresentara o problema da maneira mais brusca possível.
- Acho que não temos condições de financiar mais dois. Foi a vez de Anthony ficar surpreso.
- Alguém mais pediu dinheiro a você para estudar em Oxford?
- Talvez eu não deva dizer. Não quero criar problemas para ninguém.
- Não tem importância. - Anthony falou num tom um tanto brusco, mas logo recuperou o controle e acrescentou: - Somos gratos por sua generosidade.
Godwyn pôs mais lenha na fogueira e saiu em seguida. A casa do prior ficava no lado norte da catedral. O claustro e todos os outros prédios do priorado ficavam no lado sul. Godwyn passou pela catedral, a caminho da cozinha do mosteiro.
Pensara que Anthony podia usar de subterfúgios e ser evasivo sobre Oxford, dizendo-lhe que deveria esperar até ficar mais velho ou até que um dos estudantes que já estavam lá se formasse... pois Anthony era um evasivo por natureza. Mas ele era um protegido de Anthony, e sentira-se confiante de que o tio acabaria por apoiá-lo. A oposição categórica de Anthony deixara-o chocado.
Ele especulou quem mais teria solicitado o apoio da prioresa. Dos vinte e seis monges, seis eram mais ou menos da idade de Godwyn: podia ser qualquer um deles. Na cozinha, o subadegueiro, Theodoric, estava ajudando o cozinheiro. Poderia ser o rival pelo dinheiro de Cecília? Godwyn o observou ajeitar o ganso numa travessa e encher uma tigela com o molho de maçã. Theodoric tinha inteligência suficiente para estudar. Podia ser um concorrente.
Godwyn levou o jantar para a casa do prior, preocupado. Se Cecilia decidisse ajudar Theodoric, ele não sabia o que faria. Não tinha um plano alternativo.
Queria ser o prior de Kingsbridge um dia. Tinha certeza de que poderia fazer um trabalho melhor que o de Anthony. E se fosse um prior bem-sucedido, poderia subir ainda mais alto: bispo, arcebispo ou talvez um agente ou conselheiro real. Tinha apenas uma vaga idéia do que faria com esse poder, mas estava convencido de que pertencia a alguma posição elevada na vida. Mas havia apenas dois caminhos para essas alturas. Um era o nascimento aristocrático; o outro, a educação. Godwyn vinha de uma família de mercadores de lã: sua única esperança era a universidade. E, para isso, precisaria do dinheiro de Cecilia.
Ele pôs o jantar na mesa. Cecilia estava perguntando:
- Mas de que o rei morreu?
- Ele sofreu uma queda. Godwyn trinchou o ganso.
- Quer um pedaço do peito, reverenda madre?
- Quero, sim, por favor. Uma queda? - O tom era cético. - Fala como se o rei fosse um velho trôpego. Ele tinha apenas quarenta e três anos.
- Os carcereiros disseram que foi uma queda.
Deposto, o ex-rei se tornara prisioneiro no castelo de Berkeley, a dois dias de viagem de Kingsbridge.
-Ah, os carcereiros... Homens de Mortimer.
Cecilia desaprovava Roger Mortimer, o conde de March. Não apenas ele liderara a rebelião contra Edward II, mas também seduzira a esposa do rei, a rainha Isabella.
Eles começaram a comer. Godwyn especulou se sobraria alguma coisa. Anthony disse a Cecilia:
- Você dá a impressão de que desconfia de alguma coisa sinistra.
- Claro que não... mas outras pessoas desconfiam. Tem havido comentários...
- De que ele foi assassinado? Sei disso. Mas vi o cadáver, nu. Não havia marcas de violência no corpo.
Godwyn sabia que não deveria interromper, mas não pôde resistir:
- Há rumores de que todos na aldeia de Berkeley ouviram gritos de agonia quando o rei morreu.
Anthony fitou-o com uma expressão de censura.
- Quando um rei morre, há sempre rumores.
- O rei não apenas morreu - disse Cecilia. - Foi primeiro deposto pelo Parlamento... uma coisa que nunca havia acontecido antes.
Anthony baixou a voz para comentar:
- As razões eram poderosas. Havia pecados de impureza.
Ele estava sendo enigmático, mas Godwyn sabia o que isso significava. Edward tinha seus ”favoritos”... rapazes pelos quais demonstrava um afeto anormal. O primeiro, Peter Gaveston, recebera tanto poder e privilégio que despertara ciúme e ressentimento entre os barões. Ao final, ele fora executado por traição. Mas depois vieram outros. Não era de admirar, diziam as pessoas, que a rainha tivesse arranjado um amante.
- Não posso acreditar nisso - protestou Cecilia, que era uma fervorosa realista. - Pode ser verdade que os bandidos na floresta se entreguem a essas práticas tão sórdidas, mas um homem de sangue real nunca poderia afundar tão baixo. Há mais um pouco do ganso?
- Há, sim.
Godwyn fez um esforço para ocultar seu desapontamento. Cortou o último pedaço da carne da ave e serviu a prioresa.
- Pelo menos não há agora nenhum desafio ao novo rei - comentou Anthony. O filho de Edward II e da rainha Isabella fora coroado como rei Edward III.
- Ele tem quatorze anos e foi posto no trono por Mortimer - lembrou Cecilia. - Quem será o verdadeiro soberano?
- Os nobres estão contentes por terem estabilidade.
- Especialmente os amigos de Mortimer.
- Como o conde Roland de Shiring, não é mesmo?
- Ele parecia muito entusiasmado hoje.
- Não está sugerindo...
- Que ele teve alguma coisa a ver com a ”queda” do rei? Claro que não. - A prioresa comeu o resto de sua carne. - Seria muito perigoso falar sobre essa idéia, até mesmo entre amigos.
- Tem toda razão.
Houve uma batida na porta. Saul Whitehead entrou na sala. Tinha a mesma idade de Godwyn. Poderia ser seu rival? Era inteligente e capaz, e tinha a grande vantagem de ser um parente distante do conde de Shiring; mas Godwyn duvidava que ele tivesse a ambição de ir para Oxford. Era devoto e tímido, o tipo de homem para quem a humildade não era uma virtude, porque vinha naturalmente. Mas qualquer coisa era possível.
- Um cavaleiro acaba de entrar no hospital com um ferimento de espada informou Saul.
- Interessante, mas não bastante chocante para justificar a interrupção do jantar do prior e da prioresa - declarou Anthony.
Saul parecia assustado.
- Peço perdão, padre prior - balbuciou ele -, mas há divergências sobre o tratamento.
Anthony suspirou.
- Seja como for, o ganso já acabou...
Ele se levantou e saiu, junto com Cecilia. Godwyn e Saul os seguiram. Entraram na catedral pelo transepto do norte, saíram pelo transepto do sul, atravessaram os claustros e entraram no hospital. O cavaleiro ferido estava na cama mais próxima do altar, como era adequado para sua posição.
O prior Anthony deixou escapar um grunhido involuntário de surpresa. Por um momento, exibiu choque e medo. Mas logo recuperou o controle, e seu rosto se tornou impassível. Cecilia, no entanto, não deixava escapar nada e perguntou-lhe:
- Conhece esse homem?
- Conheço. É Sir Thomas Langley, um dos homens do conde de Monmouth. Era um homem bonito, na casa dos vinte anos, ombros largos e pernas compridas. Estava nu da cintura para cima, exibindo um tronco musculoso, cruzado por cicatrizes de lutas anteriores. Parecia pálido e exausto.
- Ele foi atacado na estrada - explicou Saul. - Conseguiu se livrar dos atacantes, mas depois teve de se arrastar por quase dois quilômetros para chegar à cidade. Perdeu muito sangue.
O antebraço esquerdo do cavaleiro estava cortado do cotovelo ao pulso, um ferimento obviamente infligido por uma espada afiada.
O médico sênior do mosteiro, irmão Joseph, estava ao lado do paciente. Joseph era baixo, na casa dos trinta anos, nariz grande, os dentes ruins.
- O ferimento deve ser mantido aberto e tratado com um ungüento, para fazer o pus sair. Dessa maneira, os humores ruins serão expelidos e o ferimento curará de dentro para fora.
Anthony acenou com a cabeça.
- Onde está a divergência?
- Matthew Barber tem outra idéia.
Matthew era um barbeiro-cirurgião da cidade. Vinha se mantendo recuado, numa atitude deferente, mas agora se adiantou. Segurava a caixa de couro que continha suas tesouras caras e afiadas. Era baixo e magro, com olhos azuis brilhantes e uma expressão solene.
Anthony não cumprimentou Matthew, mas perguntou a Joseph:
- O que ele está fazendo aqui?
- O cavaleiro o conhece e mandou chamá-lo.
Anthony disse a Thomas:
- Se quer ser retalhado, por que veio para o hospital do priorado?
A insinuação de um sorriso surgiu no rosto branco do cavaleiro, mas ele parecia cansado demais para responder.
Foi Matthew quem falou, com surpreendente confiança, aparentemente alheio ao desdém de Anthony:
- Já vi muitos ferimentos como esse no campo de batalha, padre prior. O melhor tratamento é o mais simples: lavar o ferimento com vinho quente, depois costurar para fechar e enfaixar.
Ele não era tão deferente quanto parecia. Madre Cecilia interveio:
- Será que nossos dois jovens monges têm opiniões a respeito?
Anthony estava impaciente, mas Godwyn compreendeu aonde ela queria chegar. Era um teste. Talvez Saul fosse o rival pelo dinheiro da prioresa. E a resposta era tão fácil que Godwyn se apressou em ser o primeiro a enunciá-la:
- O irmão Joseph estudou os antigos mestres. Deve saber melhor. Não creio que Matthew sequer saiba ler.
- Sei, sim, irmão Godwyn - protestou Matthew. - E tenho um livro. Anthony riu. A idéia de um barbeiro com um livro era tão absurda quanto a de um cavalo usando chapéu.
- Que livro?
- O Canon, de Avicenna, o grande médico islâmico. Traduzido do árabe para o latim. Li tudo, devagar.
- E seu tratamento é proposto por Avicenna?
- Não, mas...
- Então não há o que discutir. Matthew insistiu:
- Mas aprendi mais sobre cura viajando com exércitos e tratando de feridos do que jamais poderia aprender no livro.
Madre Cecilia tornou a interferir:
- Saul, qual é sua opinião?
Godwyn esperava que Saul desse a mesma resposta, o que deixaria a competição sem decisão. Mas, embora se mostrasse nervoso e tímido, Saul contradisse Godwyn:
- O barbeiro pode estar certo.
Godwyn exultou, enquanto Saul continuava a argumentar pelo lado errado:
- O tratamento proposto pelo irmão Joseph pode ser mais apropriado para ferimentos de esmagamento ou pancada, como as que acontecem nos locais de construção, onde a pele e toda a carne ao redor ficam cortadas. Fechar o ferimento prematuramente pode fazer com que os humores ruins fiquem dentro do corpo. Este é um ferimento limpo e, quanto mais cedo for fechado, mais depressa vai curar.
- Não diga bobagem - declarou o prior Anthony. - Como um barbeiro da cidade pode estar certo e um monge instruído errado?
Godwyn disfarçou um sorriso triunfante.
A porta foi aberta nesse instante e um jovem com um traje de sacerdote entrou. Godwyn reconheceu Richard de Shiring, o mais jovem dos dois filhos do conde Roland. Seu aceno de cabeça para o prior e a prioresa foi tão superficial a ponto de ser impolido. Foi direto até a cama e perguntou ao cavaleiro:
- O que aconteceu?
Thomas ergueu a mão, num gesto que indicava extrema fraqueza, e fez sinal para que Richard chegasse mais perto. O jovem padre inclinou-se sobre o paciente. Thomas sussurrou em seu ouvido. Padre Richard recuou, num movimento brusco, como se estivesse chocado.
- Absolutamente não! - exclamou ele.
Thomas gesticulou de novo, e o processo se repetiu: outro sussurro, outra reação indignada. E desta vez Richard perguntou:
- Mas por quê? Thomas não respondeu.
- Está pedindo uma coisa que não está em nosso poder conceder. Thomas acenou com a cabeça, firme, como se dissesse: Está, sim.
- Você não nos dá opção.
Thomas sacudiu a cabeça de um lado para outro, fraco. Richard virou-se para o prior Anthony.
- Sir Thomas deseja se tornar um monge aqui no priorado.
Houve um momento de silêncio surpreso. Cecilia foi a primeira a reagir:
- Mas ele é um homem de violência!
- Ora, não é um fato inédito - disse Richard, impaciente. - Às vezes um guerreiro decide abandonar sua vida de combate e procurar perdão por seus pecados.
- Talvez na velhice. Mas esse homem ainda não tem vinte e cinco anos. Está fugindo de algum perigo. - Cecilia olhou para Thomas. - Quem ameaça sua vida?
- Reprima sua curiosidade - resmungou Richard, ríspido. - Ele quer ser um monge, não uma freira. Portanto, não tem por que fazer mais perguntas.
Era uma maneira chocante de falar com uma prioresa, mas os filhos dos condes podiam escapar impunes dessa grosseria. Ele virou-se para Anthony.
- Você tem de aceitá-lo.
- O priorado é pobre demais para aceitar mais algum monge. A menos que haja um donativo que pague os custos...
- Será providenciado.
- Teria de ser adequado à necessidade...
- Será providenciado!
- Está bem.
Cecilia continuava desconfiada. Perguntou a Anthony:
- Sabe mais sobre esse homem do que está me dizendo?
- Não há razão para rejeitá-lo.
- O que o faz pensar que ele é um penitente sincero?
Todos olharam para Thomas. Ele fechara os olhos. Anthony disse:
- Ele terá de provar sua sinceridade durante o noviciado, como todos os outros.
Ela sentia-se visivelmente insatisfeita; mas, para variar, Anthony não estava lhe pedindo dinheiro, e portanto não havia nada que pudesse fazer.
- É melhor cuidarmos logo do ferimento - disse ela. Saul explicou:
- Ele recusou o tratamento do irmão Joseph. Foi por isso que tivemos de chamar o padre prior.
Anthony inclinou-se sobre o paciente. Em voz alta, como se falasse com um surdo, ele declarou:
- Você deve aceitar o tratamento determinado pelo irmão Joseph. Ele sabe melhor.
Thomas parecia inconsciente. Anthony virou-se para Joseph.
- Ele não está mais objetando. Matthew Barber protestou:
- Ele pode perder o braço!
- É melhor se retirar - disse-lhe Anthony. Furioso, Matthew saiu. Anthony olhou para Richard.
- Talvez queira ir até a casa do prior para tomar uma taça de sidra.
- Obrigado.
Antes de se retirar, Anthony disse a Godwyn:
- Fique aqui e ajude a madre prioresa. Procure-me antes da Véspera para informar como o cavaleiro está se recuperando.
O prior Anthony não costumava se preocupar com o progresso dos pacientes individuais. Por isso, era evidente que tinha um interesse especial naquele caso.
Godwyn observou o irmão Joseph aplicar o ungüento no braço do cavaleiro agora inconsciente. Refletiu que provavelmente garantira o apoio financeiro de Cecilia ao dar a resposta correta à indagação, mas estava ansioso em ouvir a confirmação expressa. Depois que o irmão Joseph acabara e Cecilia lavava a testa do cavaleiro com água-de-rosas, ele decidiu dizer:
- Espero que considere meu pedido de forma favorável. Ela lançou-lhe um olhar penetrante.
- É melhor eu lhe dizer logo de uma vez que decidi dar o dinheiro a Saul. Godwyn ficou chocado.
- Mas eu dei a resposta certa!
- Será?
- Não concorda com o barbeiro, não é? Ela ergueu as sobrancelhas.
- Não aceito ser interrogada por você, irmão Godwyn.
- Desculpe - disse ele, no mesmo instante. - Apenas não consigo compreender.
- Sei disso.
Se ela queria ser enigmática, não havia sentido em continuar a conversa. Godwyn virou-se, tremendo de frustração e desapontamento. Ela daria o dinheiro a Saul! Seria porque ele tinha um parentesco com o conde? Godwyn achava que não: madre Cecilia era muito independente. Fora a devoção ostentosa de Saul que inclinara a balança, concluiu Godwyn. Mas Saul nunca seria um líder de qualquer coisa. Seria um tremendo desperdício. Godwyn não sabia como daria a notícia à sua mãe. Ela ficaria furiosa... mas a quem culparia? Anthony? O próprio Godwyn? Um sentimento familiar de medo dominou-o, enquanto imaginava a ira da mãe.
E, ao pensar nela, Godwyn viu-a entrar no hospital, pela porta na outra extremidade, uma mulher alta, com um busto proeminente. Seus olhos se encontraram, e Petranilla parou junto da porta, esperando que o filho viesse ao seu encontro. Ele avançou devagar, tentando decidir o que dizer.
- Sua tia Rose está morrendo - anunciou Petranilla, assim que ele chegou perto.
- Que Deus abençoe sua alma. Madre Cecilia já tinha me contado.
- Você parece chocado... mas sabe como ela estava doente.
- Não é por causa de tia Rose. Tenho outra má notícia. - Godwyn engoliu em seco. - Não posso ir para Oxford. Tio Anthony não vai pagar, e madre Cecilia também recusou.
Petranilla não explodiu de imediato, para grande alívio do filho. Mas contraiu os lábios numa expressão sombria.
- Mas por quê?
- Ele não tem dinheiro, e madre Cecilia prefere mandar Saul.
- Saul Whitehead? Ele nunca será qualquer coisa.
- Pelo menos ele vai ser um médico.
A mãe fitou-o nos olhos, e ele murchou.
- Acho que você cuidou muito mal de tudo. Deveria ter falado comigo antes. Godwyn já receava que a mãe enveredasse por esse caminho.
- Como pode dizer que agi errado?
- Deveria ter me deixado falar com Anthony primeiro. Eu o teria amaciado.
- Mas ele ainda poderia dizer não.
- E, antes de abordar Cecilia, deveria ter descoberto se outro já havia pedido sua ajuda. Dessa maneira, poderia arruinar a posição de Saul antes de falar com ela.
- Como?
- Ele deve ter uma fraqueza. Você poderia descobrir qual é, e levá-la ao conhecimento de Cecilia. E, quando ela estivesse se sentindo desiludida, apresentaria sua proposta.
Godwyn percebeu o sentido do que ela dizia. Baixou a cabeça.
- Nunca pensei nisso.
Com uma raiva controlada, Petranilla declarou:
- Você tem de planejar essas coisas, da maneira como os condes planejam batalhas.
- Compreendo isso agora - murmurou Godwyn, sem fitar a mãe nos olhos.
- Nunca mais cometerei o mesmo erro.
- Espero que não. Ele tornou a fitá-la.
- O que devo fazer?
- Não vou desistir. - Uma expressão familiar de determinação estampou-se no rosto de Petranilla. - Providenciarei o dinheiro.
Godwyn sentiu um fluxo de esperança, mas não podia imaginar como a mãe cumpriria a promessa.
- Onde vai conseguir?
- Venderei minha casa e passarei a morar com meu irmão Edmund.
- Ele aceitará?
Edmund era generoso, mas às vezes tinha atritos com a irmã.
- Acho que sim. Ele ficará viúvo em breve e precisará de alguém para ser dona-de-casa. Não que Rose jamais tenha sido muito eficiente nesse papel.
Godwyn sacudiu a cabeça.
- Mesmo assim, você ainda precisará de dinheiro.
- Para quê? Edmund me dará casa e comida e pagará as pequenas necessidades. Em troca, cuidarei das criadas e educarei suas filhas. E você terá o dinheiro que herdei de seu pai.
Ela falava com firmeza, mas Godwyn podia perceber a amargura expressa nos lábios contraídos. Sabia que seria um grande sacrifício para a mãe. Ela se orgulhava de sua independência. Era uma das mulheres proeminentes da cidade, a filha de um homem rico e irmã do principal mercador de lã. Prezava sua posição. Adorava convidar os homens e mulheres mais poderosos de Kingsbridge para jantar, partilhar o melhor vinho. Agora, propunha se mudar para a casa do irmão e viver como parente pobre, trabalhando como uma espécie de criada, dependente de Edmund para tudo. Seria uma queda terrível.
- É sacrifício demais - murmurou Godwyn. - Não posso aceitar.
O rosto da mãe endureceu. Ela ergueu os ombros, como se estivesse se preparando para assumir uma carga pesada.
- Claro que pode.
Gwenda contou tudo ao pai. Jurara pelo sangue de Jesus que guardaria o segredo; por isso, iria agora para o inferno... mas sentia mais medo do pai do que do inferno.
O pai começou por perguntar onde ela arrumara Skip, o novo filhote, o que a obrigou a contar como Hop morrera; e, no final, toda a história saiu.
Para sua surpresa, não foi açoitada. Na verdade, o pai parecia satisfeito. Fez com que ela o levasse à clareira em que as mortes haviam ocorrido. Não foi fácil encontrar o lugar de novo, mas Gwenda acabou descobrindo; e lá estavam os corpos dos dois homens de armas com a libré verde e amarela.
Primeiro, o pai abriu suas bolsas. Ambas continham vinte ou trinta pennies. Ele se mostrou ainda mais satisfeito com as espadas, que valiam mais do que uns poucos pennies. Começou a despir os mortos, o que era difícil, com apenas uma das mãos; por isso, ordenou que Gwenda o ajudasse. Os corpos sem vida eram pesados, estranhos ao contato. O pai obrigou-a a tirar tudo o que eles usavam, inclusive as calças enlameadas e as roupas de baixo sujas.
Ele envolveu as armas com as roupas, formando o que parecia ser uma trouxa de trapos. Depois, ele e Gwenda arrastaram os corpos nus para a moita.
O pai demonstrava a maior animação quando voltaram para Kingsbridge. Levou-a para a Slaughterhouse Ditch, uma rua perto do rio, e entraram numa taverna grande mas suja, chamada de White Horse. Ele comprou uma caneca de cerveja para Gwenda, e foi para os fundos do prédio com o taverneiro, a quem chamava de ”Davey boy”. Era a segunda vez que Gwenda bebia cerveja naquele dia. O pai voltou poucos minutos depois sem a trouxa.
Retornaram à rua principal. Encontraram a mãe, Philemon e o bebê na Bell Inn, ao lado do portão do priorado. O pai piscou exultante para a mãe, e entregou-lhe um bom punhado de dinheiro para esconder entre as roupas do bebê.
Era o meio da tarde, e a maioria dos visitantes já voltara para suas aldeias. Mas, como era tarde demais para voltar a Wigleigh, a família passaria a noite na estalagem. O pai insistia em dizer que agora tinham condições, embora a mãe, bastante nervosa, sempre murmurasse:
- Não deixe as pessoas saberem que você está com dinheiro!
Gwenda sentia-se exausta. Levantara cedo e andara muito. Deitou num banco e adormeceu no instante seguinte.
Foi acordada pela batida violenta da porta da estalagem. Levantou os olhos, surpresa, para ver dois homens de armas entrarem. A princípio, pensou que eram os fantasmas dos homens que haviam morrido na floresta, e sofreu um momento de terror absoluto. Mas depois compreendeu que eram homens diferentes usando o mesmo uniforme, amarelo num lado, verde no outro. O mais jovem carregava uma trouxa de roupas de aparência familiar. O mais velho perguntou ao pai:
- Você é Joby de Wigleigh, não é?
Gwenda ficou apavorada no mesmo instante. Havia um tom sério de ameaça na voz do homem. Não era pose, mas determinação. O homem deu-lhe a impressão de que era capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que queria.
- Não - respondeu o pai, mentindo automaticamente. - Vocês encontraram o homem errado.
Os dois ignoraram a resposta. O segundo homem pôs a trouxa na mesa e abriu-a. Havia duas túnicas em amarelo e verde envolvendo duas espadas e duas adagas. Ele olhou para o pai.
- De onde veio isto?
- Nunca vi antes. Juro pela Cruz.
Era uma estupidez negar, pensou Gwenda, apavorada: os homens arrancariam a verdade do pai, assim como ele arrancara dela. O mais velho dos homens de armas informou: ,,
- Davey, o dono do White Horse, disse que comprou de Joby Wigleigh.
A voz vibrava de ameaça. As poucas outras pessoas ali levantaram-se e saíram da estalagem, ficando apenas a família de Gwenda.
- Joby foi embora há pouco tempo - alegou o pai, desesperado. i H -
O homem acenou com a cabeça.
- Com a esposa, duas crianças e um bebê. >
- Isso mesmo.
O homem avançou com uma súbita rapidez. Agarrou a túnica do pai com a mão forte e empurrou-o contra a parede. A mãe gritou, e o bebê começou a chorar. Gwenda viu que a mão direita do homem tinha uma luva acolchoada, coberta por uma cota de malha. Ele recuou o braço e desferiu um soco na barriga do pai. A mãe gritou:
- Socorro! Assassino!
Philemon também começou a chorar. O rosto do pai ficou branco de dor e o corpo se tornou inerte. Mas o homem manteve-o comprimido contra a parede, evitando que ele caísse. Deu outro soco, desta vez no rosto. O sangue esguichou do nariz e do rosto do pai.
Gwenda teve vontade de gritar e escancarou a boca, mas nenhum som passou pela garganta. Pensava que o pai era todo-poderoso - muito embora ele fingisse às vezes ser fraco ou covarde, a fim de obter compaixão ou desviar a raiva - e aterrorizava-a agora vê-lo tão impotente.
O estalajadeiro apareceu na porta que dava para os fundos do prédio. Era um homem enorme, na casa dos trinta anos. Uma menina gorducha espiou detrás dele.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou ele, com um tom de autoridade. O homem de armas não olhou para ele.
- Fique fora disso.
E acertou outro soco na barriga do pai, que vomitou sangue.
- Pare com isso! - protestou o estalajadeiro.
- Quem você pensa que é?
- Sou Paul Bell e esta é a minha casa.
- É melhor cuidar de sua própria vida, Paul Bell, se sabe o que é bom para você.
- Acho que você pensa que pode fazer qualquer coisa por usar esse uniforme. Havia desprezo na voz de Paul.
- Tem toda razão.
- Mas, afinal, de quem é essa libré?
- Da rainha.
Paul olhou para trás.
- Bessie, corra para chamar John Constable. Se um homem vai ser assassinado em minha taverna, quero que ele seja testemunha.
A menina desapareceu.
- Não haverá nenhuma morte aqui - declarou o homem de armas. - Joby mudou de idéia. Decidiu que vai me levar ao lugar em que roubou os dois mortos... não é mesmo, Joby?
O pai não podia falar, mas acenou com a cabeça em concordância. O homem largou-o. Ele caiu de joelhos, tossindo e vomitando. O homem olhou para o resto da família.
- E a criança que testemunhou a luta...?
- Não! - gritou Gwenda.
O homem balançou a cabeça com satisfação.
- A menina com cara de ratinho, é óbvio. Gwenda correu para a mãe, que balbuciou:
- Maria, Mãe de Deus, salve minha criança!
O homem agarrou Gwenda pelo braço e afastou-a da mãe, com um puxão brusco. Ela gritou. O homem resmungou:
- Fique quieta ou vai receber a mesma coisa que o desgraçado de seu pai. Gwenda comprimiu os maxilares com toda força para não gritar.
- Levante-se, Joby. - O homem puxou o pai. - Trate de se recuperar logo, pois vamos dar um passeio.
O segundo homem pegou as roupas e as armas. Quando deixavam a estalagem, a mãe ainda gritou, frenética:
- Façam tudo que eles mandarem!
Os homens tinham cavalos. Gwenda sentou na frente do cavalo do homem mais velho, enquanto o pai ocupava a mesma posição no outro cavalo. O pai estava impotente, gemendo, e por isso Gwenda os guiou, lembrando o caminho com toda nitidez, agora que já o percorrera duas vezes. O progresso a cavalo foi rápido, mas mesmo assim a tarde já escurecia quando alcançaram a clareira.
O homem mais jovem segurou Gwenda e o pai, enquanto o líder tirava os corpos de seus companheiros de baixo da moita.
- Esse Thomas deve ser um guerreiro excepcional para matar Harry e Alfred juntos - comentou o homem mais velho, olhando para os cadáveres.
Gwenda compreendeu que os homens não sabiam das outras crianças. Teria confessado que não estava sozinha e que Ralph matara um dos homens, mas sentia-se apavorada demais para falar.
- Ele quase decepou a cabeça de Alfred. - O homem olhou para Gwenda. Alguém falou sobre uma carta?
- Não sei! - exclamou ela, recuperando a voz. - Fiquei com os olhos fechados porque sentia muito medo, e nem ouvi o que disseram! Juro que é verdade! Eu diria se soubesse!
- Se tivessem tirado a carta antes, ele a teria recuperado depois de matá-los.
- O homem correu os olhos pelas árvores ao redor da clareira, como se esperasse encontrar a carta pendurada entre as folhas agonizantes. - É bem provável que ele esteja agora no priorado, onde não podemos pegá-lo sem violar a santidade do mosteiro.
O segundo homem disse:
- Pelo menos podemos relatar o que exatamente aconteceu, e levar os corpos para um sepultamento cristão.
Houve uma súbita comoção. O pai desvencilhou-se do segundo homem e correu através da clareira. Seu captor fez menção de partir no encalço do pai, mas foi detido pelo homem de armas mais velho.
- Deixe-o ir... qual o sentido de matá-lo agora? Gwenda começou a chorar baixinho.
- O que vamos fazer com a criança? - perguntou o segundo homem.
Iam matá-la, Gwenda tinha certeza. Não podia ver qualquer coisa através das lágrimas, e soluçava tanto que não podia suplicar por sua vida. Morreria e iria para o inferno. E ficou esperando pelo fim.
- Deixe-a ir embora - murmurou o homem mais velho. - Não nasci para matar crianças.
O outro homem soltou-a e empurrou-a. Ela cambaleou e caiu. Levantou-se, limpou os olhos para poder ver, e afastou-se a cambalear.
- Corra, menina! - gritou o homem. - Hoje é o seu dia de sorte!
Caris não conseguia dormir. Levantou-se e foi até o quarto da mãe. O pai sentava num banco, olhando para o corpo imóvel na cama.
A mãe tinha os olhos fechados e seu rosto brilhava, à luz da vela, com uma camada de suor. Parecia ter dificuldade para respirar. Caris pegou sua mão pálida: estava muito fria. Ela manteve-a entre suas mãos, tentando esquentá-la.
- Por que tiraram o sangue de mamãe?
- Acham que a doença vem às vezes do excesso de um dos humores. Esperam diminuí-lo com o sangue tirado.
- Mas isso não fez com que ela ficasse melhor.
- Não, não fez. Na verdade, ela parece pior. As lágrimas afloraram aos olhos de Caris.
- Então por que deixou que fizessem isso?
- Os padres e os monges estudam as obras dos filósofos antigos. Sabem mais do que nós.
- Não acredito nisso.
- É difícil saber em que acreditar, meu pequeno botão-de-ouro.
- Se eu fosse médica, só faria coisas que fizessem as pessoas melhorarem.
O pai não prestava atenção. Olhava mais atentamente para a mãe. Inclinou-se para a frente e enfiou a mão sob a manta para tocar no peito, logo abaixo do seio. Caris podia ver o formato de sua mão enorme por baixo da lã fina. Ele deixou escapar um som abafado. Deslocou a mão e comprimiu com mais firmeza. Manteve-a assim por uns poucos momentos.
Fechou os olhos.
Caiu para a frente, lentamente, até ficar de joelhos ao lado da cama, como se estivesse rezando, a cabeça grande encostada na coxa da mãe, a mão ainda em seu peito.
Caris compreendeu que o pai chorava. Era a coisa mais assustadora que já lhe acontecera, muito mais assustadora do que ver um homem ser morto na floresta. As crianças choravam, as mulheres choravam, as pessoas fracas e desamparadas choravam, mas o pai nunca chorava. Ela teve a sensação de que o mundo chegava ao fim.
Tinha de pedir ajuda. Largou a mão fria da mãe em cima da manta, onde permaneceu, imóvel. Voltou a seu quarto e sacudiu o ombro de Alice, que dormia.
A princípio, Alice não abriu os olhos.
- Papai está chorando! - exclamou Caris.
Alice sentou na cama. p olriB ot
Não pode ser.
- Levante-se!
Alice saiu da cama. Caris pegou a mão da irmã e foram juntas para o quarto da mãe. O pai estava de pé agora, olhando para o rosto imóvel no travesseiro, as faces manchadas de lágrimas. Alice fitou-o em choque. Caris sussurrou:
- Eu disse!
Tia Petranilla estava no outro lado da cama.
O pai viu as meninas paradas na porta. Foi até lá e abraçou-as.
- A mãe de vocês foi ao encontro dos anjos - murmurou ele. - Rezem por sua alma.
- Sejam corajosas, meninas - acrescentou Petranilla. - Daqui por diante serei a mãe de vocês.
Caris removeu as lágrimas dos olhos, fitou a tia e balbuciou:
- Não será, não...
8 a 14 de junho de 1337
O domingo de Pentecostes, no ano em que Merthin completou vinte um anos, um rio de chuva caiu sobre a catedral de Kingsbridge. Enormes gotas ricocheteavam no telhado de ardósia; córregos corriam pelas calhas; fontes jorravam das bocas das gárgulas; lençóis de água desciam pelos botaréus; e torrentes projetavam-se pelas arcadas e escorriam pelas colunas, encharcando as estátuas dos santos. O céu, a vasta catedral e a cidade tinham todos diferentes tonalidades de cinza.
Pentecostes celebrava o momento em que o Espírito Santo descera para os discípulos de Jesus. O sétimo domingo depois da Páscoa, caía em maio ou junho, logo depois que a maioria das ovelhas da Inglaterra era tosquiada; e por isso era sempre o primeiro dia da Feira do Velocino de Kingsbridge.
Enquanto seguia para o serviço matutino na catedral, sob o aguaceiro, puxando o capuz para a frente numa vã tentativa de manter o rosto seco, Merthin teve de passar pela feira. Na extensa campina a oeste da catedral, centenas de negociantes haviam armado seus estandes... e haviam-nos coberto às pressas, com pedaços de aniagem oleados e panos empastados, a fim de impedir a passagem da chuva. Os negociantes de lã eram as figuras principais na feira, dos pequenos operadores que ofereciam a produção de uns poucos aldeões dispersos, aos grandes negociantes, como Edmund, que tinha um armazém cheio de sacos de lã para vender. Ao redor deles, agrupavam-se os estandes subsidiários, vendendo tudo o que o dinheiro podia comprar: vinho doce da Renânia, brocado de seda com fios de ouro de Lucca, tigelas de cristal de Veneza, gengibre e pimenta de lugares no Oriente cujos nomes poucas pessoas conheciam. E, finalmente, havia os comerciantes dos produtos cotidianos, que forneciam aos visitantes e donos dos estandes as necessidades comuns: padeiros, cervejeiros, confeiteiros, adivinhos e prostitutas.
Os donos dos estandes reagiam com bravura à chuva, gracejando uns com os outros, na tentativa de criar o clima de carnaval; mas o tempo seria ruim para os lucros. Algumas pessoas tinham de fazer negócios de qualquer maneira, com chuva ou com sol: os compradores italianos e flamengos precisam da macia lã inglesa para milhares de teares movimentados em Florença e Bruges. Mas os clientes mais casuais permaneceriam em casa: a esposa de um cavaleiro decidiria que podia passar sem noz-moscada e canela; um próspero camponês daria um jeito para que seu velho casaco durasse mais um inverno;
um velho advogado chegaria à conclusão de que sua amante não precisava de uma argola de ouro.
Merthin não tencionava comprar qualquer coisa. Não tinha dinheiro. Era um aprendiz sem remuneração, vivendo com seu mestre, Elfric Builder. Comia à mesa com a família, dormia no chão da cozinha, e usava as roupas descartadas de Elfric, mas não recebia um pagamento. Nas longas noites de inverno fabricava brinquedos engenhosos, que vendia por uns poucos pennies - uma caixa de jóias com compartimentos secretos, um galo que esticava a língua quando se apertava o rabo -, mas no verão não tinha tempo de sobra, pois trabalhava até o anoitecer.
Mas seu aprendizado estava quase terminando. Em menos de seis meses, no primeiro dia de dezembro, iria se tornar um membro pleno da guilda dos carpinteiros de Kingsbridge, aos vinte e um anos de idade. Aguardava esse momento com a maior ansiedade.
As grandes portas de oeste da catedral estavam abertas para admitir os milhares de moradores da cidade e visitantes que compareceriam ao serviço religioso naquele dia. Merthin entrou e sacudiu a chuva das roupas. O chão de pedra estava escorregadio de água e lama. Num dia de sol, o interior da catedral estaria iluminado por fachos de luz, mas hoje os vitrais estavam escuros, a congregação encolhida sob roupas escuras e molhadas.
Para onde da toda aquela chuva? Não havia valas de drenagem em torno da catedral. A água - milhares e milhares de galões - apenas encharcava o solo. Descia mais e mais, até cair como chuva no inferno? Não. A catedral fora construída numa encosta. A água seguia por baixo da terra, descendo pela colina de norte para sul. As fundações dos enormes prédios de pedra eram projetadas para permitir a passagem da água, pois um acúmulo seria perigoso. Toda aquela chuva acabaria no rio, no limite meridional do terreno do priorado.
Merthin imaginou que podia sentir o fluxo subterrâneo da água, a vibração transmitida pelas fundações e pelo chão, alcançando as solas de seus pés.
Uma pequena cadela preta aproximou-se, abanando o rabo, para cumprimentá-lo com a maior alegria.
- Olá, Scrap.
Merthin abaixou-se para afagá-la. Ao levantar os olhos, deparou com a dona da cadela, Caris, e seu coração parou por um instante.
Ela usava um manto escarlate que herdara da mãe. Era o único ponto de cor na escuridão. Merthin sorriu, feliz ao vê-la. Era difícil dizer o que a tornava tão bonita. Caris tinha um rosto pequeno e redondo, feições regulares; cabelos castanhos; e olhos verdes com manchas douradas. Não era muito diferente de uma centena de outras moças de Kingsbridge. Mas usava o chapéu num ângulo elegante, exibia um brilho de inteligência zombeteira nos olhos, com um sorriso malicioso, que prometia prazeres vagos mas fascinantes. Merthin conhecera-a havia dez anos, mas só nos últimos meses compreendera que a amava.
Caris puxou-o para trás de uma coluna e beijou-o na boca, a ponta de sua língua passando pelos lábios de Merthin.
Beijavam-se sempre que tinham uma oportunidade: na catedral, no mercado, quando se encontravam na rua e - melhor de tudo - quando ele da à casa de Caris e ficavam a sós.
Merthin vivia para esses momentos. Pensava em beijá-la antes de dormir e voltava a pensar assim que acordava.
Merthin da até a casa de Caris duas ou três vezes por semana. O pai, Edmund, gostava dele, embora a tia Petranilla não gostasse. Um homem jovial, Edmund muitas vezes convidava-o a ficar para o jantar. Merthin aceitava, agradecido, pois sabia que a refeição seria melhor do que na casa de Elfric. Ele e Caris jogavam xadrez ou damas ou apenas conversavam. Ele gostava de observá-la a contar uma história ou explicar alguma coisa, as mãos desenhando imagens no ar, o rosto expressando divertimento ou espanto, de acordo com o relato. Na maior parte do tempo, no entanto, ele esperava pelos momentos em que podia roubar-lhe um beijo.
Ele olhou ao redor na catedral: ninguém olhava naquela direção. Merthin enfiou a mão por dentro do manto e tocou no linho macio do vestido. O corpo de Caris era quente. A mão subiu, a palma envolveu o seio pequeno e redondo.
Ele adorava a maneira como a carne de Caris cedia à pressão das pontas de seus dedos. Nunca a vira nua, mas conhecia os seios com a maior intimidade.
Em seus sonhos, os dois iam mais longe. Ficavam a sós, em algum lugar, uma clareira na floresta ou um quarto grande num castelo; e os dois estavam nus. Por mais estranho que parecesse, porém, os sonhos sempre terminavam um momento antes de penetrá-la; e ele acordava na maior frustração.
Um dia, pensava ele; um dia...
Ainda não haviam falado sobre casamento. Os aprendizes não podiam casar, e por isso ele tinha de esperar. Caris, com certeza, já deveria ter-se perguntado o que fariam quando o prazo de aprendizado terminasse; mas ela nunca expressara esses pensamentos. Parecia contente em viver um dia de cada vez. E Merthin tinha um medo supersticioso de falar sobre o futuro juntos. Diziam que os peregrinos não deviam passar muito tempo planejando a jornada, pois podiam tomar conhecimento de tantos riscos que decidiriam não partir.
Uma freira passou, e Merthin retirou a mão do busto de Caris, com um sentimento de culpa; mas a freira não os notou. As pessoas faziam coisas de todos os tipos na vasta catedral. No ano passado, Merthin vira um casal mantendo um congresso sexual junto da parede da nave do sul, durante o serviço da véspera do Natal... embora tivessem sido expulsos por isso. Especulou se ele e Caris poderiam continuar a se acariciar discretamente ao longo do serviço.
Mas ela tinha outras idéias.
? - Vamos para a frente.
Caris pegou-o pela mão e levou-o através da multidão. Merthin conhecia muitas das pessoas ali, mas nem todas: Kingsbridge era uma das maiores cidades da Inglaterra, com cerca de sete mil habitantes, e ninguém conhecia todo mundo.
Ele acompanhou Caris até o ponto em que a nave se encontrava com os transeptos. Ali, encontraram uma barreira de madeira, bloqueando a passagem para a extremidade leste, o coro, a área que era reservada ao clero.
Merthin descobriu-se ao lado de Buonaventura Caroli, o mais importante dos mercadores italianos, um homem corpulento, com um grosso casaco de lã, todo bordado.
Vinha de Florença - que dizia ser a maior cidade do mundo cristão, nuns de dez vezes maior do que Kingsbridge -, mas agora vivia em Londres, cuidando dos muitos negócios que sua família mantinha com os produtores de lã ingleses. Os Carolis eram tão ricos que emprestavam dinheiro a reis, mas Buonaventura era amável e despretensioso... embora as pessoas dissessem que podia ser implacável nos negócios.
Caris cumprimentou-o com toda familiaridade, já que o homem estava hospedado em sua casa. Ele ofereceu um aceno de cabeça cordial a Merthin, embora devesse ter adivinhado, pela idade e roupas velhas, que era um simples aprendiz. Buonaventura estudava a arquitetura. Puxou uma conversa afável.
- Visito Kingsbridge há cinco anos, mas até hoje nunca havia notado que as janelas dos transeptos são muito maiores do que as outras.
Ele falou em francês, com uma mistura de palavras do dialeto da região italiana da Toscana.
Merthin não teve dificuldade para compreender. Como a maioria dos filhos dos cavaleiros ingleses, crescera falando francês normando com os pais e inglês com os companheiros; e podia adivinhar o significado de muitas palavras italianas porque aprendera latim na escola dos monges.
- Posso explicar por que as janelas são assim.
Buonaventura ergueu as sobrancelhas, surpreso por um aprendiz alegar tal conhecimento.
- A catedral foi construída há duzentos anos, quando as janelas ogivais estreitas eram um esquema revolucionário - continuou Merthin. - Cem anos depois, o bispo queria uma torre mais alta, e reconstruiu os transeptos na mesma ocasião, abrindo janelas maiores do que estava na moda.
Buonaventura ficou impressionado.
- E como sabe de tudo isso?
- Há na biblioteca do mosteiro uma história do priorado, chamada Livro de Timothy, que diz tudo sobre a construção da catedral. A maior parte foi escrita no tempo do grande prior Philip, mas autores posteriores acrescentaram novas informações. Li quando era menino na escola dos monges.
Buonaventura fitou Merthin fixamente por um momento, como se quisesse memorizar seu rosto, antes de murmurar, casual:
- É um belo prédio.
- Os prédios na Itália são muito diferentes?
Merthin sentia o maior fascínio por outros países, sua vida em geral e a arquitetura em particular. A expressão de Buonaventura era pensativa.
- Creio que os princípios da construção são os mesmos por toda parte. Mas nunca vi domos na Inglaterra.
- O que é um domo?
- Um telhado redondo, como se fosse uma meia bola. Merthin ficou atônito.
- Nunca ouvi falar disso! Como é construído? Buonaventura riu.
- Meu jovem, sou um negociante de lã. Posso dizer se um velocino vem de uma ovelha de Cotswold ou uma ovelha de Lincoln apenas por esfregar a lã entre o indicador e o polegar.
Mas não sei como um galinheiro é construído, muito menos um domo.
O mestre de Merthin, Elfric, aproximou-se. Era um homem próspero e usava roupas caras, mas sempre dava a impressão de que elas pertenciam a outra pessoa. Um habitual sicofanta, ignorou Caris e Merthin, mas fez uma reverência profunda para Buonaventura e disse:
- É uma honra tê-lo de novo em nossa cidade, senhor. Merthin afastou-se.
- Quantas línguas você acha que existem? - perguntou-lhe Caris. Ela sempre falava sobre coisas absurdas.
- Cinco - respondeu Merthin, sem pensar.
- Vamos falar sério. Há o inglês, o francês e o latim. São três. Os florentinos e os venezianos falam de maneiras diferentes, embora tenham palavras em comum.
- Tem razão. - Merthin entrou no jogo. -Já são cinco. Há também o flamengo. Poucas pessoas em Kingsbridge podiam entender a língua dos mercadores que vinham das cidades de tecelagem de Flandres: Ypres, Bruges, Ghent.
- E dinamarquês.
- Os árabes têm sua própria língua, e quando escrevem nem usam as mesmas letras que nós.
- E madre Cecilia me disse que todos os bárbaros têm suas próprias línguas, embora ninguém saiba como escrevê-las... escoceses, galeses, irlandeses e provavelmente outros. Com isso, temos onze línguas... e pode até haver povos de que nunca ouvimos falar!
Merthin sorriu. Caris era a única pessoa com quem podia conversar assim. Entre seus amigos da mesma idade, ninguém compreendia a emoção de imaginar povos estranhos e diferentes maneiras de viver. Ela fazia uma pergunta ao acaso: Como é viver na beira do mundo? Os padres estão errados sobre Deus? Como você sabe que não está sonhando neste momento? E os dois se lançavam numa viagem especulativa, competindo para saber quem apresentava idéias mais extravagantes.
O barulho das conversas na catedral cessou de repente. Merthin viu que os monges e freiras começavam a sentar. O mestre do coro, Blind Carlus, entrou por último. Embora fosse cego, caminhava sem ajuda na catedral e nos prédios monásticos, devagar, mas tão confiante quanto um homem dotado de visão, conhecendo cada pilastra e cada laje. Agora, ele deu uma nota, em sua profunda voz de barítono, e o coro começou a cantar um hino.
Merthin mantinha um ceticismo discreto em relação ao clero. Os padres exerciam um poder que nem sempre combinava com seus conhecimentos... mais ou menos como seu empregador, Elfric. Mas ele gostava de freqüentar a catedral. Os serviços religiosos induziam-no a uma espécie de transe. A música, a arquitetura e as invocações em latim o fascinavam, e sentia-se como se estivesse adormecido com os olhos abertos. Mais uma vez, ele experimentou a sensação fantasiosa de que podia sentir a água da chuva correndo em torrentes sob seus pés.
Seu olhar vagueou pelos três níveis da nave, arcada, galeria e clerestório. Sabia que as colunas eram feitas pondo-se uma pedra sobre outra, mas davam
uma impressão diferente, pelo menos à primeira vista. Os blocos de pedra eram esculpidos, de tal forma que cada coluna parecia com um feixe de hastes. Ele acompanhou a subida de um dos quatro pilares gigantescos da interseção, da imensa base até o ponto em que uma projeção estendia-se para o norte, formando uma arcada sobre a nave lateral, antes de continuar a subir até o nível da tribuna. Outra projeção seguia para oeste e formava a arcada da galeria, continuava a subir para se tornar a arcada do clerestório. As hastes restantes separavam-se, como um buquê de flores, para se tornarem as vigas do teto abobadado. Da saliência central, no ponto mais alto da abóbada, ele acompanhou a descida de uma haste até a coluna equivalente no outro lado da interseção.
E, no instante em que o fazia, uma coisa estranha aconteceu. Sua vista pareceu momentaneamente turva, e ele teve a impressão de que o lado leste do transepto se deslocava.
Houve um rumor baixo, tão profundo, que foi quase inaudível, e um tremor sob seus pés, como se uma árvore tivesse caído nas proximidades.
O canto hesitou.
No coro, apareceu uma rachadura na parede do lado sul, bem ao lado do pilar que Merthin estudava.
Ele começou a se virar para Caris. Pelo canto do olho, viu blocos de pedra caindo no coro e na interseção. E, depois, o barulho prevaleceu sobre tudo: mulheres gritando estridentes, homens berrando, o estrondo ensurdecedor das enormes pedras batendo no chão. Durou um longo momento. Quando o silêncio voltou, Merthin descobriu que segurava Caris, o braço esquerdo em torno de seus ombros, comprimindo-a contra ele, o braço direito protetor a cobrir sua cabeça, o corpo se interpondo entre sua amada e o lugar em que uma parte da enorme catedral desabara em ruínas.
Foi obviamente um milagre o fato de ninguém ter morrido.
O dano maior era na nave sul do coro, onde não havia ninguém durante o serviço. A congregação não era admitida no coro, e o clero se concentrava na parte central. Vários monges haviam escapado por um triz, o que apenas aumentava os rumores sobre milagres. Outros haviam sofrido cortes e equimoses de lascas voando. A congregação não sofrera mais do que uns poucos arranhões. Era evidente que todos haviam recebido uma proteção supernatural de St. Adolphus, cujos ossos estavam preservados sob o altar-mor. Seus milagres incluíam muitos casos de cura de doentes e de salvação de pessoas da morte. Mas, de um modo geral, todos concordavam que Deus enviara um aviso aos habitantes de Kingsbridge. Só que ainda não era claro o objetivo da advertência.
Uma hora depois, quatro homens inspecionaram os danos. Irmão Godwyn, o primo de Caris, era o sacristão, o responsável pela catedral e por todos os seus tesouros. Sob o seu comando, como matriculário, encarregado dos reparos e operações de construção, seguia o irmão Thomas, que fora Sir Thomas Langley dez anos antes. O contrato para a manutenção da catedral era de Elfric, carpinteiro por treinamento e construtor geral por ofício.
E Merthin acompanhava o grupo, como aprendiz de Elfric
A extremidade leste da catedral era dividida por pilares em quatro seções, chamadas de baias. O desabamento afetara as duas baias mais próximas da interseção. A abóbada de pedra sobre a nave sul fora destruída por completo na primeira baia, e parcialmente na segunda. Havia rachaduras na galeria da tribuna, e pedras da armação haviam caído de janelas do clerestório.
- Alguma fraqueza na argamassa permitiu que a abóbada desabasse, o que por sua vez causou as rachaduras nos níveis superiores - declarou Elfric.
Não parecia correto para Merthin, mas ele carecia de uma explicação alternativa
Merthin detestava seu mestre. Fora primeiro aprendiz do pai de Elfric, Joachim, um construtor de larga experiência que trabalhara em igrejas e pontes em Londres e Paris. O velho gostava de explicar a Merthin os conhecimentos dos pedreiros... o que eles chamavam de seus ”mistérios”, que eram acima de tudo fórmulas aritméticas para construção, como a proporção entre a altura de um prédio e a profundidade de suas fundações. Merthin gostava de números e absorvia tudo o que Joachim podia lhe ensinar.
Mas Joachim morreu e Elfric assumiu. Elfric achava que a coisa mais importante para um aprendiz era aprender a obediência. Merthin tinha dificuldade para aceitar essa imposição, e Elfric punia-o com rações curtas, roupas finas e trabalho ao ar livre nos dias gelados. Para agravar a situação, a filha gorducha de Klfric, Griselda, da mesma idade de Merthin, era sempre bem vestida e bem agasalhada.
A esposa de Elfric morrera três anos antes, e ele casara com Alice, a irmã mais velha de Caris. As pessoas achavam que Alice era a irmã mais bonita. Era verdade que ela tinha feições mais regulares, mas carecia das atitudes cativantes de Caris. Merthin achava-a insípida. Alice sempre parecera gostar de Merthin, quase tanto quanto a irmã. Por isso, ele esperava que o casamento levasse Elfric a tratá-lo melhor. Mas o inverso acontecera. Alice parecia pensar que era seu dever conjugal juntar-se ao marido para atormentá-lo.
Merthin sabia que muitos outros aprendizes sofriam da mesma maneira; todos aturavam, porque o aprendizado era o único acesso a um ofício bem remunerado. As guildas dos artesãos bloqueavam com eficiência os que queriam exercer um ofício de outra maneira. Ninguém podia trabalhar numa cidade sem pertencer a uma guilda. Até mesmo um padre, um monge ou uma mulher que quisesse negociar com lã ou produzir cerveja para vender teria de ingressar numa guilda. E fora das cidades quase não havia trabalho: os camponeses construíam suas próprias casas e costuravam suas próprias roupas.
Ao final do aprendizado, a maioria dos rapazes permanecia com o mestre, trabalhando por um salário. Uns poucos acabavam como sócios, assumindo os negócios quando o velho morria. Esse não seria o destino de Merthin, de tanto que detestava Elfric. Já decidira que o deixaria no momento em que pudesse.
- Vamos olhar de cima - propôs Godwyn. eles se encaminharam para o leste. Elfric disse:
- É bom vê-lo de volta de Oxford, irmão Godwyn. Mas deve sentir a falta da companhia de todas aquelas pessoas de grande saber.
Godwyn acenou com a cabeça.
- Os mestres são mesmo espantosos.
- E os outros estudantes... devem ser jovens extraordinários, eu imagino. Apesar de também ouvirmos histórias de mau comportamento.
Godwyn exibiu uma expressão desolada.
- Infelizmente, algumas dessas histórias são verdadeiras. Quando um jovem padre ou monge se afasta de casa pela primeira vez, pode sofrer tentações.
- Seja como for... somos afortunados por contar em Kingsbridge com o benefício de homens treinados na universidade.
- É muita gentileza sua dizer isso.
- Mas é verdade.
Merthin teve vontade de dizer: Cale a boca, pelo amor de Deus! Mas aquele era o jeito de Elfric Era um artesão deficiente, com um trabalho inacurado e um julgamento impreciso, mas sabia como se insinuar nas boas graças dos outros. Merthin observara-o fazer isso muitas vezes... pois Elfric podia ser tão encantador com as pessoas de quem queria alguma coisa quanto era grosseiro com aqueles de quem nada precisava.
Merthin sentia-se mais surpreso com Godwyn. Como um homem inteligente e instruído podia deixar de perceber como Elfric era? Talvez fosse menos óbvio para a pessoa que era o alvo dos elogios.
Godwyn abriu uma pequena porta e subiu pela estreita escada em espiral oculta na parede. Merthin sentiu-se animado. Adorava entrar nas passagens escondidas da catedral. Também sentia-se curioso pelo dramático desabamento, ansioso em descobrir a causa.
As naves eram estruturas de um único andar, projetando-se dos lados do corpo principal da catedral. Tinham tetos de pedra, com vigas em abóbada. Por cima da abóbada, um telhado inclinado erguia-se da beira da nave até a base do clerestório. Sob esse telhado inclinado havia um vazio triangular, seu chão o lado oculto, ou extradorso, do teto abobadado da nave. Os quatro homens entraram nesse vazio para avaliar os danos de cima. ’’
Era iluminado pelas aberturas de janela para o interior da catedral. Além disso, Thomas tivera a precaução de trazer um lampião a óleo. A primeira coisa que Merthin notou ali foi que as abóbadas, vistas de cima, não eram exatamente iguais em cada baia. A do leste tinha uma curva um pouco menos acentuada que a vizinha, enquanto a seguinte - parcialmente destruída - parecia ser também diferente.
Caminharam pelo extradorso, mantendo-se perto da beirada, onde a abóbada era mais forte, até chegarem tão perto quanto ousavam da parte desabada. A abóbada era construída da mesma maneira como o resto da catedral, as pedras unidas por argamassa, só que as pedras do teto eram muito finas e leves. Era quase vertical ao subir de seu apoio, mas depois se inclinava para dentro, até se encontrar com a extensão que se projetava do outro lado.
- A primeira coisa a fazer, obviamente, é reconstruir a abóbada sobre as duas primeiras baias da nave - declarou Elfric.
- Faz muito tempo que ninguém constrói uma abóbada com vigas. - Thomas olhou para Merthin. - Você é capaz de fazer o címbrio?
Merthin sabia a que ele se referia. Na beira da abóbada, onde a alvenaria era quase vertical, as pedras ficariam no lugar por seu próprio peso; mais alto, porém, à medida que se inclinasse para o horizontal, havia necessidade de uma sustentação para mantê-las no lugar, enquanto a argamassa secava. O método óbvio era fazer o címbrio, uma armação de madeira, também conhecida como cambota, ajeitando as pedras por cima.
Era um desafio e tanto para um carpinteiro, pois as curvas tinham de ser exatas. Thomas conhecia a competência de Merthin. Afinal, supervisionara o trabalho de Merthin e Elfric na catedral, ao longo de vários anos. De qualquer forma, era falta de tato de Thomas dirigir-se ao aprendiz em vez do mestre. Elfric reagiu no mesmo instante:
- Sob a minha supervisão, é claro que ele pode fazer.
- Posso fazer o címbrio - respondeu Merthin, já pensando na maneira como a armação seria sustentada por andaimes, na plataforma em que os pedreiros trabalhariam. - Mas essas abóbadas não foram construídas com címbrios.
- Não diga bobagem, menino - resmungou Elfric. - Claro que foram. Você não sabe nada sobre isso.
Merthin sabia que era uma insensatez discutir com seu mestre. Por outro lado, dentro de seis meses estaria competindo com Elfric por trabalho e precisava que pessoas como o irmão Godwyn acreditassem em sua competência. Além disso, sentiu-se espicaçado pelo desdém na voz de Elfric, e teve um desejo irresistível de provar que seu mestre estava enganado.
- Reparem no extradorso - disse ele, indignado. - Depois de terminarem uma baia, era de esperar que os pedreiros usassem a mesma armação na seguinte. Neste caso, todas as abóbadas teriam a mesma curva. Mas, na verdade, são todas diferentes.
- É óbvio que não tornaram a usar as armações - declarou Elfric, irritado.
- Por que não fariam isso? - insistiu Merthin. - Deviam querer poupar madeira, para não falar dos salários de carpinteiros competentes.
- Não é possível construir abóbadas sem uma armação de madeira.
- É, sim. Há um método...
-Já chega! - exclamou Elfric. - Você está aqui para aprender, não para ensinar. Godwyn interveio:
- Só um momento, Elfric. Se o garoto estiver certo, poderemos poupar muito dinheiro para o priorado. - Ele olhou para Merthin. - O que você da dizer?
Merthin quase desejou não ter levantado o assunto. Teria de pagar caro mais tarde. Mas já estava comprometido. Se recuasse, todos pensariam que não sabia do que falava.
- Está descrito num livro na biblioteca do mosteiro, e é muito simples. A medida que cada pedra é assentada, passa-se uma corda em torno. Uma ponta da corda é amarrada na parede e se prende um peso de madeira na outra ponta. A corda forma um ângulo reto na beira da pedra, impedindo-a de se soltar da camada de argamassa e cair no chão.
Houve um momento de silêncio, enquanto todos se concentravam, tentando visualizar a disposição. Depois, Thomas acenou com a cabeça e comentou:
- Pode dar certo.
Elfric ficou furioso. Godwyn estava intrigado.
- Que livro é esse?
- Chama-se Livro de Timothy.
- Conheço o livro, mas nunca o estudei. É evidente agora que deveria tê-lo estudado. - Godwyn olhou para os outros. -Já vimos o suficiente?
Elfric e Thomas acenaram com a cabeça. Enquanto desciam, Elfric murmurou para Merthin:
- Compreende que acaba de abrir mão de várias semanas de trabalho? Aposto que não faria isso se fosse seu próprio mestre.
Merthin não pensara a respeito. Elfric tinha razão: ao provar que o címbrio era desnecessário, ele ficara sem o trabalho. Mas havia alguma coisa errada na maneira de pensar de Elfric. Era injusto permitir que alguém gastasse dinheiro desnecessariamente, só para ter um trabalho. Merthin não queria ganhar a vida enganando as pessoas.
Desceram a escada em espiral para o coro. Elfric disse a Godwyn:
- Virei procurá-lo amanhã com um preço para o trabalho.
- Combinado.
Elfric virou-se para Merthin.
- Fique aqui e conte as pedras numa abóbada da nave lateral. Leve-me a resposta em casa.
- Está bem.
Elfric e Godwyn se retiraram, mas Thomas ficou.
- Eu o meti numa encrenca.
- Tentava me ajudar.
O monge deu de ombros e fez um gesto de o-que-se-pode-fazer, com o braço direito. O braço esquerdo fora amputado na altura do cotovelo dez anos antes, depois da infecção no ferimento sofrido no combate que Merthin testemunhara.
Merthin quase não pensara mais naquela estranha cena na floresta acostumara-se a Thomas com o hábito de monge -, mas recordou-a agora: os homens de armas, as crianças escondidas na moita, o arco e a flecha, a carta enterrada. Thomas sempre o tratava com toda gentileza, e Merthin achava que era pelo que acontecera naquele dia.
- Nunca contei a ninguém sobre a carta - murmurou ele.
- Sei disso. Se tivesse contado, estaria morto.
A maioria das grandes cidades era dirigida por uma guilda de mercadores, uma organização dos cidadãos mais eminentes. Sob a guilda dos mercadores, havia numerosas guildas de artesãos, cada uma dedicada a um ofício específico: pedreiros, carpinteiros, curtidores de couro, tecelões, alfaiates. Havia ainda as guildas paroquiais, pequenos grupos centrados em torno de igrejas locais, formados para levantar dinheiro para vestes sacerdotais e ornamentos sagrados, além de ajuda a viúvas e órfãos.
As cidades de catedrais eram diferentes. Kingsbridge, como St. Albans e Bury St. Edmunds, era regida pelo mosteiro, que possuía quase todas as terras dentro e ao redor da cidade. Os priores sempre haviam recusado permissão para uma guilda de mercadores. Contudo, os artesãos e mercadores mais importantes pertenciam à guilda paroquial de St. Adolphus. Não restava a menor dúvida de que começara, no passado distante, como um grupo devoto que angariava dinheiro para a catedral. Agora, era a organização mais importante da cidade. Determinava regras para a condução de negócios, e elegia um chefe e seis auxihares para impor o cumprimento. No salão da guilda eram mantidas as medidas que padronizavam o peso de um saco de lã, a extensão de uma peça de pano e o volume de um bushel, para todas as transações em Kingsbridge. Mas os mercadores não podiam formar tribunais e dispensar justiça, como acontecia nas outras cidades, pois o priorado de Kingsbridge se reservava esses poderes.
Na tarde do domingo de Pentecostes, a guilda paroquial ofereceu um banquete para os compradores visitantes mais importantes. Edmund Wooler era o chefe, e Caris o acompanhou como a anfitriã. Assim, Merthin tinha de se divertir sem ela.
Por sorte, Elfric e Alice também foram ao banquete. Ele sentou sozinho na cozinha, escutando a chuva e pensando. Não fazia frio, mas fora aceso um pequeno fogo para cozinhar, e o brilho vermelho era animador.
Ele podia ouvir a filha de Elfric, Griselda, lá em cima. Era uma boa casa, embora menor que a de Edmund. Havia apenas uma sala e a cozinha lá embaixo. A escada levava a um patamar aberto, onde Gnselda dormia, e a um quarto fechado, para o mestre e sua esposa. Merthin dormia na cozinha.
Houvera uma ocasião, há três ou quatro anos, em que Merthin era atormentado à noite por fantasias de subir a escada e se meter por baixo das cobertas, ao lado do corpo quente e roliço de Griselda. Mas ela se considerava superior a ele, tratando-o como a um servo. Nunca lhe dera o menor encorajamento.
Sentado num banco, Merthin olhava para o fogo e visualizava o andaime de madeira que construiria para os pedreiros que reconstituiriam a abóbada desmoronada na catedral. A madeira era cara e os troncos compridos eram raros... os donos das florestas costumavam ceder à tentação de vender a madeira antes do pleno desenvolvimento da árvore. Por isso, os construtores tentavam reduzir a quantidade de madeira usada em andaime. Em vez de construírem do nível do chão, poupavam madeira ao suspenderem-no das paredes existentes.
Enquanto ele pensava, Gnselda entrou na cozinha e foi se servir de uma caneca de cerveja do barril.
- Quer também? - perguntou ela.
Merthin aceitou, surpreso com a cortesia. Ela tornou a surpreendê-lo ao sentar num banco na sua frente para beber.
O namorado de Gnselda, Thurstan, desaparecera havia três semanas. Sem dúvida, ela sentia-se agora solitária, e era por isso que procurava a companhia de Merthin. A bebida esquentou seu estômago e relaxou-o. Em busca de alguma coisa para dizer, ele perguntou:
- O que aconteceu com Thurstan?
Ela sacudiu a cabeça, como uma égua arisca.
Eu disse que não queria casar com ele.
- Por que não?
- Ele é jovem demais para mim.
Isso não pareceu certo a Merthin. Thurstan tinha dezessete anos e Griselda, vinte... e Griselda não era muito madura. Era mais provável, pensou Merthin, que Griselda o considerasse de uma classe inferior. Thurstan chegara a Kingsbridge dois ou três anos antes, sem que ninguém soubesse de onde vinha. Trabalhara como ajudante não-especializado para vários artesãos da cidade. Era de se imaginar que tivesse se sentido entediado, de Griselda e Kingsbridge, e decidira ir embora.
- Para onde ele foi?
- Não sei e não me importo. Devo casar com alguém da minha idade, alguém com um senso de responsabilidade... talvez um homem que possa um dia assumir o negócio de meu pai.
Ocorreu a Merthin que Griselda podia estar se referindo a ele. Não, não era possível, pois ela sempre o menosprezara. Griselda levantou-se e veio sentar no banco ao seu lado.
- Meu pai é rancoroso com você. Sempre achei isso. Merthin ficou atônito.
- Levou um bocado de tempo para dizer. Estou morando aqui há seis anos e meio.
- É difícil para mim ficar contra minha família.
- Mas por que ele é tão infame comigo?
- Porque você sabe as coisas melhor do que ele e não consegue esconder.
Talvez eu saiba mesmo.
- Entende o que eu quis dizer?
Merthin riu. Era a primeira vez que ela o fazia rir.
Griselda chegou mais perto, de tal forma que sua coxa, coberta pelo vestido de lã, encostou nele. Merthin usava sua velha camisa de linho, que descia até o meio das coxas, com o calção que todos os homens vestiam por baixo. Podia sentir o calor do corpo de Griselda através das roupas. O que provocava isso? Ele fitou-a, incrédulo. Griselda tinha cabelos escuros lustrosos e olhos castanhos. O rosto era atraente, mas meio carnudo. E tinha uma boca bonita para ser beijada.
- Gosto de ficar dentro de casa num dia de chuva - murmurou ela. - É aconchegante.
Merthin sentia-se cada vez mais excitado. Desviou os olhos. O que Caris pensaria, especulou ele, se entrasse ali naquele momento? Ele tentou reprimir o desejo, mas isso só serviu para torná-lo pior.
Tornou a olhar para Griselda. Ela tinha os lábios úmidos e entreabertos. Inclinou-se para ele. Merthin beijou-a. No mesmo instante, ela enfiou a língua em sua boca. Foi uma intimidade súbita e chocante, que o deixou ainda mais excitado. Ele reagiu da mesma maneira. Não era como beijar Caris...
O pensamento o deteve. Ele se desvencilhou de Griselda e levantou-se.
- Qual é o problema?
Merthin não queria dizer a verdade e por isso comentou:
- Você sempre deu a impressão de que não gostava de mim. Ela se mostrou irritada.
- Já disse que tinha de ficar do lado de minha família.
- Mudou de repente.
Griselda levantou-se e avançou. Merthin recuou até encostar na parede. Ela pegou sua mão e comprimiu-a contra o busto. Os seios eram redondos e cheios, e ele não pôde resistir à tentação de acariciá-los.
-Já fez isso antes... a coisa de verdade... com uma mulher?
Merthin descobriu que não era capaz de falar, mas acenou com a cabeça.
- Já pensou em fazer comigo?
-Já
- Pode fazer agora, se quiser, enquanto todo mundo está fora. Podemos subir e deitar na minha cama.
-Não.
Griselda comprimiu o corpo contra o dele.
- Beijá-lo me deixou toda quente e molhada por dentro.
Ele afastou-a. O empurrão foi mais brusco do que tencionava. Griselda cambaleou para trás e caiu, sobre o traseiro bem fornido.
- Deixe-me em paz! - gritou Merthin.
Ele não tinha certeza se era isso mesmo que queria, mas Griselda aceitou sua palavra.
- Pois então vá para o inferno!
Ela levantou-se e subiu, batendo os pés. Merthin continuou onde estava, ofegante. Agora que a rejeitara, já se arrependia.
Os aprendizes não eram atraentes para as jovens, que não queriam esperar anos pelo casamento. Mesmo assim, Merthin cortejara várias garotas de Kingsbridge. Uma delas, Kate Brown, gostara dele o suficiente para deixá-lo ir até o fim, numa tarde quente de verão, um ano antes, no pomar de seu pai. Depois, o pai morrera de repente, e a mãe levara a família para viver em Portsmouth. Fora a única ocasião em que Merthin tivera uma relação com uma mulher. Era louco por rejeitar a oferta de Griselda?
Ele disse a si mesmo que tivera sorte ao escapar. Griselda era mesquinha e não gostava dele. Deveria se orgulhar de ter resistido à tentação. Não seguira o instinto, como um animal estúpido; tomara uma decisão, como um homem.
E foi nesse instante que Griselda começou a chorar.
O choro não era alto, mas dava para ouvir. Ele foi até a porta dos fundos. Como todas as casas na cidade, a de Elfric tinha uma faixa de terra atrás, comprida e estreita, com uma latrina e um depósito de lixo. Em quase todas as casas havia galinhas e um porco, uma horta e árvores frutíferas. Mas o terreno de Elfric era usado para guardar pilhas de madeira e de pedras, rolos de corda, baldes, carrinhos-de-mão e escadas. Merthin ficou olhando para a chuva caindo no quintal, mas mesmo assim os soluços de Griselda ainda alcançavam seus ouvidos.
Ele decidiu sair da casa. Foi até a frente, mas não pôde imaginar para onde iria. Só encontraria Petranilla na casa de Caris, e tinha certeza de que ela não gostaria de recebê-lo.
Pensou em ir até à casa dos pais, mas eram as últimas pessoas que gostaria de ver naquele estado. Poderia conversar com o irmão, mas Ralph só voltaria a Kingsbridge mais para o final da semana. Além do mais, ele compreendeu, não poderia sair de casa sem um casaco... não por causa da chuva, pois não se importava de ficar molhado, mas porque o volume na frente das roupas não diminuiria.
Tentou pensar em Caris. Imaginou que ela estaria tomando vinho, comendo rosbife e pão de trigo. E imaginou o que ela estaria vestindo. Ficava muito bem num vestido rosa, com um decote quadrado, que deixava à mostra a pele alva do pescoço esguio. Mas o choro de Griselda insistia em se intrometer em seus pensamentos. Queria confortá-la, dizer que lamentava fazer com que ela se sentisse rejeitada, explicar que ela era uma mulher atraente, mas não eram certos um para o outro.
Merthin sentou, mas logo tornou a se levantar. Era difícil escutar impassível o choro de uma mulher angustiada. Não podia pensar em andaimes com aquele som espalhando-se pela casa. Não podia ficar, não podia sair, não podia sentar quieto.
Ele subiu.
Griselda estava deitada de barriga para baixo no colchão de palha que era sua cama. O vestido subira pelas coxas grossas. A pele na parte de trás das pernas era muito branca e parecia macia.
- Desculpe - murmurou Merthin.
- Vá embora.
- Não chore.
- Eu odeio você.
Ele ajoelhou-se e acariciou as costas de Griselda.
- Não posso ficar sentado na cozinha ouvindo seu choro. Ela virou-se e fitou-o, o rosto molhado de lágrimas.
- Sou feia, gorda e você me detesta.
- Não, não detesto você.
Merthin removeu as lágrimas das faces dela com o dorso da mão. Griselda segurou-o pelo pulso e puxou-o.
- Não mesmo? Jura?
- Não. Mas...
Ela estendeu a mão para trás da cabeça de Merthin, puxou-o e beijou-o. Ele gemeu, mais excitado do que nunca. Deitou no colchão, ao lado de Griselda. Vou deixá-la daqui a pouco, disse a si mesmo. Só a confortarei por mais um momento, depois vou me levantar e descer.
Griselda pegou a mão dele, levantou a saia, e comprimiu-a entre suas pernas. Merthin sentiu os pêlos duros, a pele macia por baixo, a divisória úmida... e compreendeu que estava perdido. Acariciou-a rudemente, até enfiou o dedo. Sentiu que estava prestes a explodir e balbuciou:
- Não posso parar.
- Depressa!
Ela levantou a camisa e baixou o calção de Merthin. Ele montou-a. Sentiu que perdia o controle quando ela o guiou para dentro. O remorso atingiu-o antes de acabar.
- Oh, não...
A explosão começou com a primeira arremetida e acabou num instante. Ele arriou em cima de Griselda, os olhos fechados.
- Oh, Deus, eu gostaria de estar morto...
Buonaventura Caroli fez seu anúncio surpreendente à primeira refeição da segunda-feira, o dia seguinte ao grande banquete no salão da guilda.
Caris sentia-se um pouco indisposta ao sentar à mesa de carvalho na sala da casa do pai. Estava com dor de cabeça e um pouco de náusea. Comeu um prato pequeno de pão e bebeu leite quente para aquietar o estômago. Ao recordar que apreciara o vinho no banquete, ela especulou se não teria bebido demais. Seria aquela a sensação na manhã seguinte sobre a qual homens e rapazes gracejavam quando se gabavam da quantidade de bebida forte que podiam tomar?
O pai e Buonaventura comiam carneiro, enquanto tia Petranilla contava uma história:
- Quando eu tinha quinze anos, fiquei noiva de um sobrinho do conde de Shiring. Todos consideraram que era uma boa união: o pai dele era um cavaleiro de nível intermediário, e o meu era um rico mercador de lã. Até que o conde e seu único filho morreram, na Escócia, na batalha de Loudon Hill. Meu noivo, Roland, tornou-se o conde... e rompeu o noivado. Ele ainda é o conde. Se eu tivesse casado com Roland antes da batalha, seria agora a condessa de Shiring.
Ela mergulhou sua torrada na cerveja.
- Talvez não fosse a vontade de Deus. - Buonaventura jogou um osso para Scrap, que pulou em cima como se não comesse há uma semana. Depois virou-se para o pai. - Meu amigo, há uma coisa que preciso lhe dizer antes de começarmos os negócios do dia.
Caris sentiu, pelo tom de voz, que era uma má notícia; e o pai deve ter tido a mesma intuição, pois comentou:
- Isso parece sinistro.
- Nosso comércio vem encolhendo durante os últimos anos - continuou Buonaventura. - A cada ano, minha família vende um pouco menos de tecido, a cada ano compramos um pouco menos de lã da Inglaterra.
- Os negócios são sempre assim - disse Edmund. - Sobem, descem, ninguém sabe por quê.
- Mas agora seu rei resolveu interferir.
Era verdade. Edward III compreendera que havia muito dinheiro no negócio de lã e resolvera que uma parte maior deveria ir para a coroa.
Introduzira um novo imposto, de uma libra por saco de lã. Um saco era padronizado em 165 quilos, vendido por quatro libras; portanto, o novo imposto representava um quarto do valor da lã, uma fatia considerável. Buonaventura acrescentou:
- E o que é pior, ele tornou difícil a exportação da lã da Inglaterra. Tive de pagar enormes subornos.
- A proibição das exportações será suspensa em breve - garantiu Edmund. Os mercadores da Companhia da Lã em Londres estão negociando com as autoridades reais...
- Espero que você esteja certo. Mas, nas circunstâncias atuais, minha família acha que não preciso mais visitar duas feiras de lã separadas nesta parte do país.
- É isso mesmo! - exclamou Edmund. - Esqueça a cidade de Shiring e venha só para cá.
A cidade de Shiring ficava a dois dias de viagem de Kingsbrídge. Era mais ou menos do mesmo tamanho; embora não tivesse uma catedral nem um priorado, contava com o castelo do xerife e alojava o tribunal do condado. Realizava uma vez por ano uma feira de lã rival.
- Infelizmente, não consigo as mesmas condições aqui. A Feira do Velocino de Kingsbridge parece estar declinando. Mais e mais vendedores preferem Shiring. A feira ali oferece uma variedade maior de tipos e qualidades.
Caris estava consternada. Aquilo podia ser desastroso para o pai. Ela interveio:
- Por que os vendedores preferem Shiring? Buonaventura deu de ombros.
- A guilda dos mercadores da cidade procura tornar a feira ali cada vez mais atraente. Não há uma fila comprida para passar pelo portão da cidade; os mercadores podem alugar barracas e estandes; e há um prédio onde todos podem negociar à vontade num dia de chuva.
- Podemos fazer tudo isso - declarou Caris. O pai soltou uma risada.
- Duvido muito.
- Por que não, papai?
- Shiring é um burgo independente, com uma carta real. A guilda dos mercadores tem o poder de organizar as coisas em benefício dos negociantes de lã. Kingsbridge pertence ao priorado...
Petranilla interveio:
- Para a glória de Deus.
- Sem dúvida - concordou Edmund. - Mas nossa guilda paroquial não pode fazer nada sem a aprovação do priorado... e os priores são cautelosos e conservadores. Meu irmão não é exceção. O resultado é que quase todos os planos de melhoria são rejeitados.
- Por causa da antiga associação de minha família com você, Edmund, e com seu pai antes, continuamos a vir a Kingsbridge - explicou Buonaventura. - Mas não podemos ser sentimentais em momentos difíceis.
- Pois então deixe-me pedir um pequeno favor, em nome dessa antiga associação. Não tome uma decisão final por enquanto. Mantenha a questão em aberto.
Era uma manobra hábil, pensou Caris. Estava impressionada - como acontecia com freqüência - com a astúcia que o pai podia demonstrar numa negociação. Não argumentou para que Buonaventura revertesse a decisão, o que só serviria para deixá-lo ainda mais determinado. Era mais provável que o italiano concordasse em apenas não tomar a decisão final. Isso não representava nenhum compromisso, mas deixava a porta aberta.
E Buonaventura achou difícil recusar.
- Está bem. Mas com que finalidade?
- Quero a chance de melhorar a feira, especialmente a ponte - explicou Edmund. - Se pudermos oferecer melhores instalações em Kingsbridge do que em Shiring, e passarmos a atrair mais vendedores, vocês continuariam a nos visitar, não é mesmo?
- Claro.
- Então é isso o que temos de fazer. - Edmund levantou-se. - Irei conversar com meu irmão agora. Caris, venha comigo. Vamos lhe mostrar a fila na ponte. Ou melhor, Caris... vá chamar aquele seu jovem e competente construtor, Merthin. Precisaremos de seus conhecimentos.
- Ele deve estar trabalhando.
- Pois então diga ao mestre dele que o regedor da guilda paroquial exige a presença do rapaz - declarou Petranilla.
Ela sentia-se orgulhosa pelo fato de o irmão ser regedor da guilda, e fazia questão de mencioná-lo em todas as oportunidades. Além do mais, tinha toda razão. Elfric teria de liberar Merthin.
- Vou procurá-lo - disse Caris.
Ela vestiu o manto com capuz e saiu. Ainda chovia, embora não com a mesma intensidade do dia anterior. Elfric, como a maioria dos cidadãos proeminentes, vivia na rua principal, que começava na ponte e seguia até os portões do priorado. Era uma rua larga, agora cheia de carroças e pessoas a caminho da feira, passando por enormes poças e pequenos regatos criados pela chuva.
Caris sentia-se ansiosa em ver Merthin, como sempre. Gostava dele desde aquele Dia de Todos os Santos, dez anos antes, quando Merthin aparecera na área de treino de arco-e-flecha com o arco que fabricara. Ele era inteligente e divertido. Como ela, sabia que o mundo era um lugar maior e mais fascinante do que a maioria dos cidadãos de Kingsbridge podia conceber. Mas seis meses antes haviam descoberto uma coisa que era ainda melhor do que serem amigos.
Ela já beijara meninos antes de Merthin, embora não com freqüência: nunca achara que havia algum sentido. Com ele, no entanto, era diferente, excitante e sensual. Merthin tinha um jeito malicioso que tornava tudo atraente. Caris também gostava quando ele acariciava seu corpo. Queria fazer mais... e tentava não pensar a respeito. ”Mais” significava casamento, e uma esposa tinha de ser subordinada ao marido, que seria seu amo... e Caris detestava essa perspectiva. Felizmente, não precisava pensar sobre isso por enquanto. Merthin não podia casar até terminar seu aprendizado, e ainda faltava meio ano.
Caris entrou na casa de Elfric. Sua irmã, Alice, sentava à mesa na sala, em companhia de Griselda, a enteada. Comiam pão com mel.
Alice mudara nos três anos desde que casara com Elfric. Sua natureza sempre fora agressiva, como a de Petranilla; sob a influência do marido, ela se tornara ainda mais desconfiada, ressentida e mesquinha. Mas, naquele momento, se mostrou bastante cordial.
- Sente-se, irmã. O pão é fresco esta manhã.
- Não posso. Estou procurando Merthin. Alice assumiu uma expressão desaprovadora. -Tão cedo?
- O pai quer falar com ele.
Caris atravessou a cozinha até a porta dos fundos e olhou para o pátio. A chuva caía sobre uma paisagem desoladora de material de construção. Um dos trabalhadores de Elfric punha pedras molhadas num carrinho-de-mão. Não havia sinal de Merthin. Ela voltou à sala.
- Deve encontrá-lo na catedral - informou Alice. - Ele está fazendo uma porta.
Caris recordou que Merthin falara a respeito. A porta no pórtico do norte apodrecera, e ele fora encarregado de fazer outra.
- E está esculpindo virgens - acrescentou Griselda, que sorriu e pôs mais pão com mel na boca.
Caris sabia disso também. A velha porta era decorada com esculturas que ilustravam a história que Jesus contara no Monte das Oliveiras, sobre as virgens sábias e as insensatas. Merthin tinha de copiá-las. Mas havia alguma coisa desagradável no sorriso de Griselda, pensou Caris; quase como se ela estivesse rindo de Caris por ser uma virgem.
- Tentarei a catedral.
Com um aceno brusco, ela saiu. Subiu pela rua principal e entrou no pátio da catedral. Enquanto se esgueirava entre os estandes, teve a impressão de que um certo desânimo pairava sobre a feira. Seria apenas sua imaginação, pelo que Buonaventura dissera? Ela achava que não. Ao recordar as Feiras do Velocino de sua infância, refletiu que eram mais movimentadas e mais concorridas. Naquele tempo, o recinto do priorado não era bastante grande para comportar toda a feira. Por isso, as ruas próximas eram atravancadas por estandes sem licença muitas vezes apenas uma mesa pequena com produtos diversos - além de ambulantes com bandejas, malabaristas, adivinhos, músicos, e frades itinerantes, chamando os pecadores para a redenção. Agora, parecia que sobrava lugar no pátio da igreja para mais alguns estandes.
- Buonaventura deve estar certo - murmurou ela para si mesma. - A feira está mesmo encolhendo.
Um mercador lançou-lhe um estranho olhar, e Caris compreendeu que expressara seu pensamento em voz alta. Era um péssimo hábito: as pessoas achavam que ela falava com os espíritos. Condicionara-se a não fazer isso, mas às vezes esquecia, em especial quando se sentia ansiosa.
Ela contornou a enorme catedral para o lado norte.
Merthin trabalhava no pórtico, uma área ampla em que as pessoas costumavam se reunir. A nova porta estava presa numa armação de madeira, para mantêda imóvel, enquanto ele cuidava das esculturas. A porta antiga permanecia na arcada, toda rachada, se esfarelando.
Merthin estava de costas para ela, a luz passando por cima de seus ombros para incidir sobre a madeira à frente. Não a viu, e o barulho da chuva abafou os passos de Caris. Por isso, ela pôde estudá-lo por um momento sem ser notada.
Era um homem pequeno, não muito mais alto do que ela. Tinha uma cabeça grande e inteligente, sobre um corpo vigoroso. As mãos pequenas movimentavam-se com extrema habilidade pela escultura, arrancando lascas de madeira com uma faca afiada, enquanto ele moldava as imagens. A pele era branca e os cabelos vermelhos eram abundantes.
- Ele não é muito bonito - comentara Alice, com uma careta, quando Caris admitira que se apaixonara por Merthin.
Era verdade que Merthm não tinha a aparência vistosa do irmão Ralph, mas Caris achava que seu rosto era maravilhoso: irregular, exuberante, com um riso fácil, igual a seu espírito.
-Olá.
Merthin teve um sobressalto. Ela riu e comentou:
- Você não costuma se assustar com tanta facilidade.
- Confesso que levei um susto.
Ele hesitou por um instante, mas beijou-a em seguida. Parecia um pouco contrafeito, mas isso às vezes acontecia, quando estava concentrado em seu trabalho.
Caris olhou para as imagens na madeira. Eram cinco virgens em cada lado da porta, as sábias festejando no casamento, as insensatas lá fora, segurando lampiões virados ao contrário, para mostrar que não tinham mais óleo. Merthin copiara os desenhos da porta antiga, mas com mudanças sutis. As virgens estavam em filas, cinco num lado, cinco no outro, como as arcadas na catedral; mas na nova porta não eram exatamente iguais. Merthin dera a cada uma delas um sinal de individualidade. Uma era bonita, outra tinha cabelos crespos, outra chorava, outra fechava um olho numa piscadela maliciosa. Fizera com que fossem reais, e a cena na velha porta parecia agora, na comparação, fria e sem vida.
- É maravilhoso - murmurou Caris. - Mas eu me pergunto o que os monges pensarão.
- O irmão Thomas gosta.
- E o prior Anthony?
- Ele ainda não viu. Mas aceitará. Não vai querer pagar duas vezes.
Era verdade, pensou Caris. Seu tio Anthony não gostava de coisas novas, mas também era parcimonioso. A menção do prior lembrou-a de sua missão.
- Meu pai quer que você se encontre com ele e o prior na ponte.
- Ele disse por quê?
- Acho que vai pedir a Anthony para construir uma nova ponte. Merthin guardou as ferramentas num saco de couro. Varreu o chão, tirando do pórtico a serragem e lascas de madeira. Depois, ele e Caris atravessaram a feira, debaixo da chuva, e seguiram pela rua principal até a ponte de madeira. Caris relatou o que Buonaventura dissera à mesa naquela manhã. Merthin também achava, como ela, que as feiras recentes não eram tão movimentadas quanto as de sua infância.
Apesar disso, havia uma longa fila de pessoas e carroças esperando para entrar em Kingsbridge. Na extremidade próxima da ponte havia um monge numa guarita, recebendo uma taxa de um penny de cada mercador que queria entrar na cidade para vender seus produtos. A ponte era estreita, e por isso ninguém podia se esquivar da fila. Em conseqüência, pessoas que não precisavam pagar - principalmente os moradores da cidade - também tinham de entrar na fila. Além disso, algumas tábuas da ponte estavam tortas ou quebradas, o que obrigava as carroças a avançarem devagar. O resultado era que a fila estendia-se interminável pela estrada, passando além das choupanas fora dos limites da cidade e desaparecendo na chuva.
A ponte também era muito curta. Outrora, sem dúvida, os dois lados davam para terra seca. Mas o rio alargara ou a passagem de carroças e pessoas ao longo das décadas e séculos havia afundado as margens, de tal forma que as pessoas tinham de passar agora por uma faixa lamacenta, nos dois lados.
Caris percebeu que Merthin estudava a estrutura. Conhecia aquela expressão em seus olhos: ele pensava em como a ponte conseguia se manter de pé. Caris surpreendia-o com freqüência a olhar para alguma coisa daquela maneira, em geral na catedral, mas às vezes também na frente de uma casa ou até mesmo alguma coisa natural, como um espinheiro em flor e um falcão pairando no ar. Merthin ficava imóvel, os olhos brilhantes e penetrantes, como se projetasse uma luz em algum lugar escuro, tentando entender tudo. Se Caris perguntava, ele respondia que tentava ver o interior das coisas.
Ela acompanhou seu olhar e tentou imaginar o que ele via na velha ponte. Tinha sessenta metros de um lado a outro, a ponte mais longa que ela já vira. Era sustentada por maciças pilastras de carvalho, em duas fileiras, como os pilares nos lados da nave da catedral. Havia cinco pares de pilastras. As que ficavam nas extremidades, onde a água era mais rasa, eram menores, mas as três centrais se elevavam acima da água por cinco metros.
Cada pilastra consistia de quatro vigas de carvalho, mantidas juntas por bracadeiras de tábuas. A lenda dizia que o rei dera ao priorado de Kingsbridge os vinte e quatro melhores carvalhos da Inglaterra para a construção dos três pares de pilastras centrais. As partes de cima eram ligadas por vigas, em duas linhas paralelas. Vigas mais curtas cruzavam de uma linha para outra, para formar o leito da ponte; e tábuas longitudinais haviam sido estendidas por cima, como o leito da estrada. Em cada lado havia uma cerca de madeira, que servia como um frágil parapeito. De dois em dois anos, em média, um camponês embriagado passava com a carroça por essa grade, caindo no rio; o homem e o cavalo morriam.
- O que está vendo? - perguntou Caris.
- As rachaduras.
- Não vejo nenhuma.
- As madeiras nos lados da pilastra central estão rachando. Dá para ver onde Elfric reforçou-as com braçadeiras de ferro.
Agora que ele apontava, Caris podia perceber as faixas de metal pregadas através das rachaduras.
- Você parece preocupado.
- Não sei por que as madeiras racharam, em primeiro lugar.
- Isso tem alguma importância?
- Claro que tem.
Merthin não estava muito loquaz naquela manhã. Caris já da perguntar o porquê quando ele anunciou:
- Lá vem seu pai.
Ela olhou pela rua. Os dois irmãos formavam uma estranha dupla. O alto Anthony levantava com todo cuidado a batina monacal e contornava cauteloso as poças, com uma expressão de desagrado no rosto pálido de quem passava a maior parte do tempo entre quatro paredes. Edmund, mais vigoroso, apesar de mais velho, tinha um rosto vermelho e uma barba grisalha, longa e desgrenhada. Andava descuidado, arrastando a perna murcha pela lama, falando com veemência e gesticulando a todo instante. Quando viu o pai, à distância, da maneira como um estranho poderia vê-lo, Caris sentiu um ímpeto de amor.
A discussão estava no auge quando alcançaram a ponte, e continuou sem qualquer pausa.
- Olhe só para essa fila! - exclamou Edmund. - Centenas de pessoas não estão negociando na feira porque ainda não conseguiram chegar! E pode ter certeza de que a metade encontrará um comprador ou vendedor enquanto espera, e fará seus negócios ali mesmo, depois voltará para casa, sem sequer entrar na cidade!
- Isso é sonegar o imposto e é contra a lei - declarou Anthony.
- Vá dizer às pessoas que estão na fila, se conseguir atravessar a ponte... mas não vai conseguir, porque é estreita demais! Se os italianos forem embora, a Feira do Velocino nunca mais será a mesma. Sua prosperidade e a minha dependem da feira... não podemos permitir que isso aconteça.
- Não podemos obrigar Buonaventura a fazer negócios aqui.
- Mas podemos tornar nossa feira mais atraente que a de Shiring. Precisamos anunciar um projeto grande e simbólico, agora, esta semana, alguma coisa para convencer todo mundo de que a Feira do Velocino não acabou. Temos de dizer que vamos derrubar essa velha ponte e construir uma nova, duas vezes mais larga.
- Sem qualquer aviso, ele virou-se para Merthin. - Quanto tempo levaria, rapaz?
Merthin ficou surpreso, mas respondeu:
- Encontrar as árvores certas seria a parte difícil. Precisamos de madeiras compridas e amadurecidas. Os pilares terão de ser fincados no fundo do rio... o que é sempre complicado, pois estaremos trabalhando na correnteza. Depois disso, é apenas carpintaria. Dá para terminar até o Natal.
- Não há certeza de que a família Caroli mudará de planos se construirmos uma nova ponte - protestou Anthony.
- Mudará - declarou Edmund, incisivo. - Eu garanto.
- Seja como for, não posso construir uma ponte. Não tenho o dinheiro.
- Também não pode deixar de construir a ponte. Vai se arruinar e destruir a cidade.
- É impossível. Nem mesmo sei onde arrumarei dinheiro para consertar a nave sul da catedral.
- Então o que pretende fazer?
- Confiar em Deus.
- Aqueles que confiam em Deus e plantam uma semente podem ter uma colheita abundante. Mas você não está plantando a semente.
Anthony ficou irritado.
- Sei que é difícil para você compreender, Edmund, mas o priorado de Kingsbridge não é um empreendimento comercial. Estamos aqui para cultuar Deus, não para ganhar dinheiro.
- Não poderá cultuar Deus por muito tempo se não tiver nada para comer.
- Deus provera.
O rosto vermelho de Edmund se incendiou de raiva, ao ponto de ficar meio purpura.
- Quando você era menino, o negócio de nosso pai o alimentou e vestiu, pagou sua educação. Desde que se tornou um monge, os cidadãos desta cidade e os camponeses das terras ao redor o mantêm, pagando seus arrendamentos, dízimos, taxas dos estandes no mercado, pedágio da ponte e uma dúzia de outros tributos diferentes. Durante toda a sua vida, você viveu como uma pulga nas costas das pessoas que trabalham. E agora tem a desfaçatez de dizer que Deus provê.
- Isso é perigosamente próximo da blasfêmia.
- Não se esqueça de que o conheço desde que nasceu, Anthony. Você sempre teve um talento para evitar o trabalho.
A voz de Edmund, que se elevava para um grito com bastante freqüência, agora baixava... um sinal, Caris sabia, de que ele estava realmente furioso.
- Quando chegava o momento de esvaziar nossa latrina - continuou Edmund -, você da para a cama, pois precisava estar descansado para a escola no dia seguinte. O presente do pai para Deus, você sempre teve o melhor de tudo, e nunca levantou a mão para ganhar nada. Comida reforçada, o quarto mais quente, as melhores roupas... fui o único menino que usou as roupas descartadas de seu irmão mais jovem!
- E nunca me deixou esquecer isso.
Caris esperava por uma oportunidade de interromper a discussão, e interveio nesse instante:
- Deve haver uma maneira de contornar o problema.
Ambos fitaram-na, surpresos com a interrupção. Ela acrescentou:
- Por exemplo, os moradores da cidade não poderiam construir uma ponte?
- Não diga bobagem - protestou Anthony. - A cidade pertence ao priorado. Um servo não assume o encargo de reformar a casa de seu amo.
- Mas, se sua permissão for solicitada, não teria razão para recusar. Anthony não contestou de imediato, o que era animador; mas Edmund sacudiu a cabeça.
- Não será possível convencer os cidadãos a entrar com o dinheiro. Seria do interesse de todos, a longo prazo, é claro; mas todos relutam em pensar a longo prazo quando são convidados a se separarem de seu dinheiro.
- Mas você espera que eu pense a longo prazo! - exclamou Anthony.
- Você lida com a vida eterna, não é? Entre todas as pessoas, deve ser capaz de ver além do fim da próxima semana. E cobra o pedágio de um penny de todo mundo que passa pela ponte.
Receberia seu dinheiro de volta e ainda se beneficiaria com o aumento dos negócios na cidade.
- Mas tio Anthony é um líder espiritual e acha que esse não é o seu papel interveio Caris.
- Mas ele possui a cidade! - protestou o pai. - É o único que pode fazer isso! Edmund lançou um olhar inquisitivo para a filha, ao compreender que ela devia ter uma razão para contestá-lo.
- Em que está pensando?
- Os moradores da cidade não poderiam construir uma ponte e ser pagos com o penny do pedágio?
Edmund abriu a boca para expressar uma objeção, mas nenhuma lhe ocorreu. Caris olhou para Anthony, que disse:
- Quando o priorado era novo, sua única receita vinha da ponte. Não posso abrir mão agora.
- Mas pense no que ganharia se a Feira do Velocino e o mercado semanal recuperassem seu tamanho antigo: não apenas o pedágio da ponte, mas também as taxas de locação dos estandes, a porcentagem que recebe de todas as transações na feira, e ainda por cima os donativos à catedral!
Edmund acrescentou:
- E os lucros de suas próprias vendas de lã, grãos, peles, livros, estátuas dos santos...
- Planejou tudo isso, não é? - Anthony apontou um dedo acusador para o irmão mais velho. - Instruiu sua filha e o rapaz sobre o que deveriam dizer. Ele nunca poderia conceber um projeto desse tipo, e ela é apenas uma mulher. Tem a sua marca. É tudo uma conspiração para me privar do pedágio da ponte. Pois fracassou. Louvado seja Deus, não sou tão estúpido assim!
Ele afastou-se, furioso, pisando na lama. Antes de se afastar também, Edmund ainda comentou:
- Não sei como meu pai pôde ter um filho com tão pouco bom-senso. Caris virou-se para Merthin.
- O que você acha de tudo isso?
- Não sei. - Ele virou o rosto, evitando os olhos de Caris. - É melhor eu voltar ao trabalho.
E Merthin partiu, sem beijá-la. Quando ele não podia ouvi-la, Caris indagou, em voz alta:
- O que será que deu nele?
O conde de Shiring foi a Kingsbridge na terça-feira da semana da Feira do Velocino. Levou os dois filhos, várias outras pessoas da família e um séqüito de cavaleiros e pajens.
A ponte foi esvaziada por homens que vieram na frente, e ninguém teve permissão para atravessá-la por uma hora antes de sua chegada, para que ele não sofresse a indignidade de ter de esperar, como as pessoas comuns. Seus seguidores usavam librés em vermelho e preto, e entraram na cidade com estandartes erguidos, os cascos dos cavalos espirrando água da chuva e lama nos cidadãos. O conde Roland prosperara nos últimos dez anos - sob a rainha Isabella e, mais tarde, sob seu filho, Edward III - e queria que o mundo soubesse disso, como em geral acontecia com os homens ricos e poderosos.
Em sua companhia, estava Ralph, filho de Sir Gerald e irmão de Merthin. Na mesma ocasião em que Merthin se tornara aprendiz do pai de Elfric, Ralph ingressara como pajem no serviço do conde Roland. Era feliz desde então. Passara a ser bem alimentado e bem vestido, aprendera a cavalgar e lutar, ocupava a maior parte do tempo empenhado em caçadas e jogos. Em seis anos e meio, ninguém jamais lhe pedira para ler ou escrever uma única palavra. Enquanto cavaigava atrás do conde, através dos estandes apinhados da Feira do Velocino, observado por rostos ao mesmo tempo invejosos e assustados, ele se compadeceu dos mercadores e negociantes que tinham de disputar pennies na lama.
O conde desmontou na frente da casa do prior, no lado norte da catedral. Seu filho mais jovem, Richard, fez a mesma coisa. Richard era o bispo de Kingsbridge e a catedral, teoricamente, era sua igreja. Mas o palácio do bispo ficava em Shiring, a sede do condado, a dois dias de viagem. Isso convinha ao bispo, cujos deveres eram políticos, além de religiosos; e convinha aos monges, que preferiam não ter uma estreita supervisão.
Richard tinha apenas vinte e oito anos, mas seu pai era um grande aliado do rei, e isso contava mais do que a idade.
O resto do séquito seguiu para o lado sul da catedral. O filho mais velho do conde, William, lorde de Caster, mandou que os pajens levassem os cavalos para o estábulo, e foi se instalar no hospital, em companhia de meia dúzia de cavaleiros. Ralph apressou-se em ajudar a esposa de William, lady Philippa, a desmontar. Era uma mulher alta e atraente, de pernas compridas e seios profundos. Ralph sentia um amor sem esperança por ela.
Depois que os cavalos estavam cuidados, Ralph foi visitar a mãe e o pai. Eles viviam numa casa pequena, de graça, no lado sudoeste da cidade, à beira do rio, numa área que era malcheirosa por causa do trabalho dos curtidores de couro. Ao se aproximar da casa, Ralph sentiu que murchava de vergonha, dentro de seu uniforme vermelho e preto. E também se sentiu grato porque lady Philippa não podia ver a indignidade da situação de seus pais.
Não os via há um ano, e achou que pareciam mais velhos. Havia muitos fios brancos nos cabelos da mãe, e o pai estava quase perdendo a vista. Serviram-lhe sidra feita pelos monges e morangos silvestres que a mãe colhera na floresta. O pai admirou sua libré.
- O conde já o promoveu a cavaleiro? - perguntou ele, ansioso.
A ambição de cada pajem era a de se tornar um cavaleiro, mas a ansiedade de Ralph era maior que a dos outros. O pai nunca superara a humilhação, dez anos antes, de ser degradado para a posição de pensionista do priorado. Uma flecha penetrara no coração de Ralph naquele dia. A angústia nunca seria atenuada até que ele restaurasse a honra da família.
Mas nem todos os pajens se tornavam cavaleiros. Mesmo assim, o pai sempre falava como se fosse apenas uma questão de tempo para Ralph.
- Ainda não - respondeu Ralph. - Mas é provável que haja em breve uma guerra contra a França, e terei uma oportunidade.
Ele falou em tom jovial, não querendo demonstrar como ansiava pela chance de se distinguir em batalha. A mãe não gostou.
- Por que os reis sempre querem a guerra?
O pai riu.
- Os homens são feitos para isso.
- Não são, não! - protestou a mãe, veemente. - Quando dei à luz Ralph, em dor e sofrimento, não queria que ele vivesse para ter a cabeça cortada pela espada de um francês ou o coração atingido pela flecha de uma besta.
O pai deu-lhe uma palmada de leve, um aviso para encerrar aquele tipo de conversa, e depois perguntou a Ralph:
- O que o faz dizer que haverá guerra?
- O rei Philip da França confiscou a Gasconha.
- Não podemos admitir isso.
Os reis ingleses governavam a província ocidental francesa da Gasconha havia gerações. Haviam concedido privilégios comerciais aos mercadores de Bordeaux e Bayonne, que faziam mais negócios com Londres do que com Paris. Mas sempre havia problemas.
- O rei Edward enviou embaixadores a Flandres para fazer alianças.
- Aliados podem querer dinheiro.
- Foi por isso que o conde Roland veio a Kingsbridge O rei quer um empréstimo dos mercadores de lã.
- Quanto?
- Fala-se em duzentas mil libras, em todo o país, como um adiantamento sobre o imposto da lã.
- O rei deve tomar cuidado para não tributar os mercadores de lã até a morte
- comentou a mãe, desolada.
- Os mercadores têm muito dinheiro... basta olhar para suas boas roupas. Havia uma amargura evidente na voz do pai, e Ralph notou que ele usava uma surrada camisa de linho e sapatos velhos.
- De qualquer maneira, eles querem que tomemos providências para impedir que a marinha francesa continue a interferir com seu comércio - acrescentou o pai.
Ao longo do último ano, navios franceses haviam atacado cidades na costa sul da Inglaterra, saqueando os portos e incendiando os navios ancorados.
- Os franceses nos atacam, e por isso atacamos os franceses - disse a mãe. Qual é o sentido?
- As mulheres nunca compreenderão - resmungou o pai.
- É verdade - declarou a mãe, incisiva. Ralph mudou de assunto:
- Como está meu irmão?
- É um bom artesão.
O pai falava, pensou Ralph, como um vendedor de cavalos dizendo que um pônei pequeno era uma boa montaria para uma mulher.
- Ele está apaixonado pela filha de Edmund Wooler - informou a mãe.
- Caris? - Ralph sorriu. - Ele sempre gostou dela. Brincávamos juntos quando éramos crianças. Caris era mandona, mas Merthin parecia não se importar. Eles vão casar?
- Espero que sim - disse a mãe. - Quando ele terminar o aprendizado.
- Ele terá muito trabalho. - Ralph levantou-se. - Onde ele está neste momento?
- Trabalhando no pórtico norte da catedral - respondeu o pai. - Mas talvez tenha saído para comer.
- Vou procurá-lo.
Ralph beijou os pais e saiu. Voltou ao priorado e vagueou pela feira. A chuva cessara e o sol aparecia de vez em quando, entre as nuvens, brilhando nas poças e no vapor que subia das cobertas encharcadas dos estandes. Ele avistou um rosto familiar, e seu coração disparou: o nariz reto e o queixo forte de lady Philippa. Ela era mais velha do que Ralph, em torno dos vinte e cinco anos, pelos seus cálculos. Estava parada num estande, examinando peças de seda da Itália. Ralph admirou a maneira lasciva como o vestido leve de verão envolvia as curvas dos quadris. Fez uma reverência desnecessariamente elaborada.
Ela levantou os olhos e ofereceu um brusco aceno de cabeça.
- Lindos tecidos - murmurou ele, tentando puxar conversa.
- Sim.
Nesse momento, um homem pequeno, de cabelos cor de cenoura despenteados, aproximou-se: Merthin. Ralph ficou exultante ao vê-lo.
- Este é meu esperto irmão mais velho - disse ele a Philippa.
- Compre o verde-claro... combina com seus olhos - sugeriu Merthin a Philippa.
Ralph estremeceu. Merthin não deveria tê-la tratado com tanta familiaridade. Mas ela parecia não se importar muito. Disse apenas, com um ligeiro tom de censura:
- Quando eu quiser a opinião de um menino, perguntarei a meu filho. Ao mesmo tempo, ela ofereceu um sorriso que era quase galante.
- Esta é lady Philippa, seu tolo! - interveio Ralph. - Peço desculpas pela ousadia de meu irmão, milady.
- Como ele se chama?
- Merthin Fitzgerald, a seu dispor sempre que tiver alguma hesitação sobre sedas.
Ralph pegou o braço do irmão e afastou-o, antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa inconveniente.
- Não sei como você pode fazer isso! - O tom de Ralph misturava exasperação e admiração. - Combina com os olhos dela, não é? Se eu dissesse alguma coisa, ela mandaria me açoitar.
Ele exagerava, é claro, mas também era verdade que Philippa costumava reagir com rispidez a qualquer insolência. Ralph não sabia se devia achar divertido ou sentir raiva por ela ter sido indulgente com Merthin.
- Sou assim - murmurou Merthin. - O sonho de todas as mulheres. Ralph percebeu alguma amargura na voz do irmão.
- Tem algum problema? Como está Caris?
- Cometi uma estupidez - disse Merthin. - Contarei tudo mais tarde. Mas agora vamos dar uma volta, enquanto faz sol.
Ralph notou um estande em que um monge de cabelos louros quase grisalhos vendia queijo. Disse para Merthin:
- Fique observando.
Ele se aproximou do estande e disse:
- Parece saboroso, irmão... de onde vem?
- Fabricamos em St.-John-in-the-Forest. É uma pequena célula do priorado de Kingsbridge. Sou o prior ali... meu nome é Saul Whitehead.
- Sinto fome só de olhar. Bem que gostaria de comprar um pedaço... mas o conde mantém os pajens sem dinheiro.
O monge cortou uma fatia da roda de queijo e deu para Ralph.
- Pode levar um pedaço de graça, em nome de Jesus.
- Obrigado, irmão Saul.
Enquanto se afastavam, Ralph sorriu para Merthin e comentou:
Viu só? É tão fácil quanto tirar uma maçã de uma criança.
- E igualmente admirável.
- Mas ele é um tolo por dar um pedaço de queijo a qualquer um que conte uma história triste.
- É bem provável que ele pense que é melhor correr o risco de ser feito de tolo do que negar comida a um homem faminto.
- Você está um pouco amargo hoje. Por que acha que pode ser atrevido com uma mulher da nobreza, enquanto eu não posso convencer um monge estúpido a me dar um pedaço de queijo de graça?
Merthin surpreendeu-o com um sorriso.
- Como acontecia quando éramos pequenos, não é?
- Exatamente!
Agora, Ralph não sabia se devia achar graça ou ficar furioso. Antes que pudesse tomar uma decisão, uma linda garota abordou-o, com ovos numa bandeja. Era esguia, um busto pequeno sob um vestido caseiro. Ralph imaginou que os seios eram pálidos e redondos como os ovos. Sorriu para a garota.
Quanto? - perguntou ele, embora não precisasse de ovos.
- Um penny por doze.
- São bons?
Ela apontou para um estande próximo.
- São daquelas galinhas.
- E as galinhas foram bem servidas por um galo saudável?
Ralph viu que Merthin revirava os olhos, num desespero zombeteiro, pela insinuação. A garota, no entanto, resolveu entrar na brincadeira. Sorriu e disse:
- Sim, senhor.
- Galinhas de sorte, hem?
- Não sei.
- Claro que não. Uma donzela pouco entende dessas coisas.
Ralph examinou-a. Ela era loura, de nariz arrebitado. Devia ter dezoito anos, ele calculou. A garota pestanejou e murmurou:
- Não me olhe assim, por favor.
Um camponês - sem dúvida o pai da garota - chamou do estande:
- Annet! Venha para cá!
- Então seu nome é Annet - murmurou Ralph. Ela ignorou o chamado.
- Quem é seu pai? - perguntou Ralph.
- Perkin de Wigleigh.
- É mesmo? Meu amigo Stephen é senhor de Wigleigh. Stephen é bom para você?
- Lord Stephen é justo e misericordioso. O pai chamou de novo:
- Annet! Você é necessária aqui!
Ralph sabia por que Perkin tentava afastá-la. Não se importaria se um pajem quisesse casar com sua filha: seria um degrau acima na escada social para ela. Mas receava que Ralph quisesse apenas se divertir com ela e depois descartá-la. E ele tinha toda razão.
- Não vá, Annet Wigleigh - pediu Ralph.
- Não pretendo ir até você comprar o que estou oferecendo. Ao lado deles, Merthin murmurou:
- Não sei qual dos dois é pior.
- Por que não larga seus ovos e vem comigo? - propôs Ralph. - Podemos dar um passeio pela beira do rio.
Entre o rio e o muro do terreno do priorado havia uma margem larga, coberta naquela época do ano por arbustos enormes e flores silvestres, um tradicional ponto de encontro de namorados. Mas Annet não era tão fácil quanto parecia.
- Meu pai não gostaria.
- Não vamos nos preocupar com ele.
Não havia muita coisa que um camponês pudesse fazer para se opor à vontade de um pajem, ainda mais quando o pajem usava a libré de um grande conde. Era um insulto ao conde tentar agredir um de seus servidores. O camponês podia tentar dissuadir a filha, mas seria perigoso para ele tentar contê-la à força.
Mas outra pessoa surgiu em ajuda de Perkin. Uma voz juvenil interveio:
- Olá, Annet. Está tudo bem?
Ralph virou-se para o recém-chegado. Ele parecia ter dezesseis anos, mas era quase tão alto quanto Ralph, os ombros largos, as mãos enormes. Era muito bonito, com feições regulares que podiam ter sido talhadas por um escultor da catedral. Tinha abundantes cabelos louro-castanhos, com um princípio de barba da mesma cor.
- Quem é você? - perguntou Ralph.
- Sou Wulfric de Wigleigh, senhor. - Wulfric era deferente, mas não demonstrava medo. Olhou para Annet. - Vim ajudá-la a vender alguns ovos.
O ombro musculoso do rapaz interpôs-se entre Ralph e Annet, sua postura protegendo a garota, ao mesmo tempo em que excluía Ralph. A atitude era um pouco insolente, e Ralph sentiu um ímpeto de raiva.
- Saia da frente, Wulfric de Wigleigh. Você não é desejado aqui. Wulfric virou-se de novo e fitou-o com uma expressão serena.
- Estou noivo desta mulher, senhor.
Mais uma vez, o tom era respeitoso, mas a atitude, sem medo. Perkin interveio:
- É verdade, senhor... eles vão casar.
- Não me fale sobre seus costumes camponeses - disse Ralph, desdenhoso. Não me importo se ela é casada com esse idiota.
Irritava-o ouvir inferiores lhe falando daquela maneira. Não tinham o direito de lhe dizer o que fazer. Merthin se intrometeu:
- Vamos embora, Ralph. Estou com fome, e Betty Baxter está vendendo tortas quentes.
- Tortas? Estou mais interessado em ovos.
Ele pegou um dos ovos na bandeja e acariciou-o de uma maneira sugestiva. Largou-o em seguida e estendeu a mão para o seio esquerdo de Annet. Era firme sob as pontas de seus dedos, com o formato de um ovo.
- O que pensa que está fazendo?
Ela parecia indignada, mas não se afastou. Ralph apertou, gentilmente, apreciando a sensação.
- Examinando as mercadorias em oferta.
- Tire as mãos de mim.
- Num instante.
Foi nesse momento que Wulfric deu-lhe um violento empurrão.
Ralph foi tomado de surpresa. Não esperava ser atacado por um camponês. Cambaleou para trás, tropeçou e caiu. Ouviu alguém rir, e o espanto deu lugar à humilhação. Levantou-se, furioso.
Não estava usando a espada, mas tinha uma adaga comprida no cinto. Mas seria indigno usar armas contra um camponês desarmado: ele poderia perder o respeito dos cavaleiros do conde e dos outros pajens. Teria de punir Wulfric com os punhos. Perkin saiu de seu estande, falando depressa:
- Um erro lamentável, senhor. Não foi intencional. O rapaz está profundamente arrependido. Posso lhe garantir...
A filha, no entanto, não exibia qualquer sinal de medo.
- Rapazes, rapazes! - exclamou ela, num tom de censura zombeteira, parecendo mais satisfeita do que qualquer outra coisa.
Ralph ignorou os dois. Deu um passo para cima de Wulfric e ergueu o punho direito. E quando Wulfric levantou os braços para se defender do golpe, Ralph acertou o punho esquerdo em sua barriga.
Não era tão mole quanto ele esperava. Mesmo assim, Wulfric dobrou-se para a frente, o rosto contorcido em agonia, levando as mãos à barriga; e Ralph aproveitou para golpeá-lo no rosto com o punho direito, acertando no alto do malar. O soco doeu em sua mão, mas trouxe alegria para a alma.
Para seu espanto, porém, Wulfric atingiu-o em resposta.
Em vez de desabar no chão e ficar estendido, à espera de ser chutado, o camponês reagiu com um golpe do punho direito, que tinha por trás toda a força do ombro. O nariz de Ralph pareceu explodir em sangue e dor. Ele rugiu de raiva.
Wulfric recuou, parecendo compreender a coisa terrível que acabara de fazer. Baixou os braços, as palmas estendidas para cima.
Mas era tarde demais para se arrepender. Ralph atingiu-o com os dois punhos, no rosto e no corpo, uma tempestade de socos de que Wulfric tentou se esquivar, mantendo os braços erguidos e baixando a cabeça. Enquanto batia, Ralph especulou vagamente por que o rapaz não fugia. Adivinhou que ele esperava receber toda a sua punição agora, em vez de enfrentar um destino pior mais tarde. Ele tinha coragem, compreendeu Ralph; mas isso o deixou ainda mais furioso. Acertou-o com toda força, várias vezes, dominado por uma emoção que era ao mesmo tempo de raiva e êxtase. Merthin tentou interferir.
- Pelo amor de Cristo, já chega!
Ele pôs a mão no ombro do irmão, mas Ralph desvencilhou-se com um movimento brusco.
Finalmente as mãos de Wulfric caíram para os lados e ele cambaleou, atordoado, o rosto bonito coberto de sangue, os olhos fechando; um momento depois, ele arriou no chão. Ralph começou a chutá-lo. Foi nesse instante que um homem corpulento, de calça de couro, apareceu e falou, com uma voz de autoridade:
- Já chega, jovem Ralph. Não assassine o rapaz.
Ralph reconheceu John, o constable da cidade, e gritou, indignado:
- Ele me atacou!
- Não está mais atacando, não é, senhor? Nem poderia, estendido no chão, com os olhos fechados. - John postou-se na frente de Ralph. - Prefiro cuidar do caso sem o inquérito do juiz.
As pessoas se agrupavam em torno de Wulfric: Perkin; Annet, que parecia corada de excitamento; lady Philippa; e vários espectadores.
Ralph perdeu o sentimento de êxtase. Sentia o nariz doer muito. Só conseguia respirar pela boca. E sentia o gosto de sangue.
- Esse animal acertou meu nariz.
Ele falava como um homem com uma forte gripe.
- Será punido pelo que fez - declarou John.
Dois homens que se pareciam com Wulfric apareceram: o pai e o irmão mais velho, calculou Ralph. Ajudaram Wulfric a levantar, lançando olhares furiosos para Ralph. Perkin, um homem gordo, com um rosto astuto, disse:
- O pajem deu o primeiro soco.
- O camponês me empurrou deliberadamente! - gritou Ralph.
- O pajem insultou a futura esposa de Wulfric.
- Não importa o que o pajem possa ter dito; Wulfric deveria saber que não pode pôr as mãos num servidor do conde Roland - declarou John. - O conde vai esperar que ele seja severamente punido.
O pai de Wulfric indagou:
- Há uma nova lei, John Constable, dizendo que um homem de libré pode fazer o que bem quiser?
Houve murmúrios de assentimento da pequena multidão agora reunida. Os jovens pajens causavam muitos problemas, e com freqüência escapavam à punição por usarem as cores de algum barão; e isso causava um crescente ressentimento entre mercadores e camponeses. Lady Philippa interveio nesse momento:
- Sou a nora do conde e assisti a tudo.
Sua voz era baixa e melodiosa, mas tinha a autoridade de alguém em sua posição. Ralph esperava que ela tomasse seu lado, mas ficou consternado quando a ouviu acrescentar:
- Lamento dizer que a culpa foi toda de Ralph. Ele acariciou a moça de uma maneira insultuosa.
- Obrigado, milady - disse John Constable, deferente. Ele baixou a voz para conferenciar com ela. - Mas acho que o conde pode não querer que o camponês fique sem punição.
Lady Philippa acenou com a cabeça, pensativa.
- Não queremos que isso seja o início de uma prolongada disputa. Ponha o rapaz no tronco por vinte e quatro horas. Não vai lhe fazer nenhum mal na sua idade, mas todos saberão que a justiça foi feita. Isso será o suficiente para o conde... respondo por ele.
John hesitou. Ralph percebeu que o constable não gostava de receber ordens de ninguém, a não ser de seu empregador, o prior de Kingsbridge. Mas a decisão de Philippa poderia satisfazer a todas as partes. O próprio Ralph gostaria de ver Wulfric açoitado, mas começava a desconfiar de que não sairia daquela história como um herói, e pareceria ainda pior se exigisse uma punição rigorosa. Depois de um momento, John disse:
- Está bem, lady Philippa, se estiver disposta a assumir a responsabilidade.
- Claro que assumo.
- Então está resolvido.
John pegou Wulfric pelo braço e levou-o. O rapaz se recuperara depressa e podia andar normalmente. Talvez lhe dessem de comer e beber enquanto estivesse no tronco, e providenciassem para que não fosse agredido.
- Como se sente? - perguntou Merthin ao irmão.
Ralph tinha a sensação de que metade do rosto inchava como uma bexiga inflada. A voz era fanhosa e ele sentia bastante dor.
- Estou bem. Nunca me senti melhor.
- Vamos procurar um monge para cuidar de seu nariz.
- Não. - Ralph não tinha medo de lutar, mas detestava o que os médicos faziam: sangrias, ventosas, lancetar furúnculos. - Só preciso de uma garrafa de vinho forte. Leve-me para a taverna mais próxima.
- Está bem.
Mas Merthin não se mexeu. Fitava o irmão com uma expressão estranha.
- O que há com você? - perguntou Ralph.
- Você não muda, não é? Ralph deu de ombros. -Alguém muda?
Godwyn estava completamente fascinado pelo Livro de Timothy. Era uma história do priorado de Kingsbridge; e, como a maioria das histórias, começava com a criação do Céu e da Terra por Deus. Mas, acima de tudo, relatava a era do prior Philip, dois séculos antes, quando a catedral fora construída... um tempo que era agora considerado pelos monges como a era de ouro. O autor, irmão Timothy, alegava que o lendário Philip fora um disciplinador rigoroso, além de um homem de compaixão. Godwyn não sabia como alguém podia ser as duas coisas.
Na quarta-feira da semana da Feira do Velocino, na hora de estudo antes do serviço da Sexta, Godwyn sentava num banco alto na biblioteca do mosteiro, o livro aberto sobre o atril à sua frente. Era o seu lugar predileto no priorado: uma sala espaçosa, bem iluminada por janelas altas, com quase cem livros num armario trancado. Era uma sala normalmente silenciosa, mas hoje ele podia ouvir o barulho abafado da feira, no outro lado da catedral: mil pessoas comprando e vendendo, negociando e discutindo, apregoando suas mercadorias e torcendo nas brigas de galo e nas lutas de cachorros com ursos.
Ao final do livro, autores posteriores haviam relatado os descendentes dos construtores da catedral, até os dias atuais. Godwyn sentia-se satisfeito - e francamente surpreso - por encontrar confirmação da teoria de sua mãe de que descendia de Tom Builder, através da filha dele, Martha. Ele se perguntou que características da família poderiam vir de Tom. Um pedreiro precisava ser um hábil negociante, refletiu ele, e o avô de Godwyn e seu tio Edmund possuíam essa qualidade. A prima Caris também apresentava sinais da mesma competência. Talvez Tom também tivesse os olhos verdes com manchas douradas que todos partilhavam.
Godwyn também lera sobre o enteado de Tom Builder, Jack, o arquiteto da catedral de Kingsbridge que casara com lady Aliena e gerara uma dinastia de condes de Shiring. Ele era o ancestral do namorado de Caris, Merthin Fitzgerald. Isso fazia sentido: o jovem Merthin já demonstrava uma capacidade incomparável como carpinteiro. O Livro de Timothy até mencionava os cabelos vermelhos de Jack, herdados por Sir Gerald e Merthin, embora não por Ralph.
O que mais o interessava era o capítulo do livro sobre as mulheres. Ao que parecia, não havia freiras em Kingsbridge no tempo do prior Philip. Havia uma proibição rigorosa do ingresso de mulheres nos prédios do mosteiro. O autor, citando Philip, dizia que um monge nunca deveria olhar para uma mulher, se possível, para sua própria paz de espírito. Philip desaprovava a combinação de mosteiro e convento, argumentando que as vantagens das instalações partilhadas eram superadas pelas oportunidades para que o demônio introduzisse a tentação. Onde havia as duas coisas, a separação de monges e freiras deveria ser tão rigorosa quanto possível, dizia ele.
Godwyn sentiu a emoção de encontrar um apoio autorizado para uma convicção que já acalentava. Em Oxford, apreciara o ambiente exclusivamente masculino do Kingsbridge College. Os professores da universidade eram todos homens, assim como os estudantes, sem exceção. Mal falara com uma mulher durante sete anos; e se mantinha os olhos abaixados ao caminhar pela cidade podia até evitar a possibilidade de vê-las. Ao voltar para o priorado, achara perturbador ver freiras com tanta freqüência. Embora elas tivessem seus próprios claustros, refeitório, cozinha e outros prédios, ele as encontrava a todo instante na igreja, no hospital e em outras áreas comuns. Naquele momento, havia uma jovem e bonita freira chamada Mair a poucos passos de distância, consultando um livro sobre ervas medicinais. Era até pior encontrar as garotas da cidade, com suas roupas justas e penteados atraentes, passando descontraídas pelos terrenos do priorado, em missões diversas, como levar mantimentos para a cozinha e visitar o hospital.
Era evidente, pensou ele, que o priorado não conseguira manter os elevados padrões de Philip... outro exemplo da fraqueza que impregnara tudo sob o regime de Anthony, o tio de Godwyn. Mas talvez ele pudesse fazer alguma coisa sobre isso.
Soou o sino para a Sexta, e ele fechou o livro. Irmã Mair fez a mesma coisa. Sorriu para ele, os lábios vermelhos formando uma doce curva. Ele desviou os olhos e se apressou em deixar a sala.
O tempo começava a melhorar, o sol aparecia a intervalos, entre pancadas de chuva. Na catedral, os vitrais clareavam e escureciam, à medida que as nuvens desfilavam pelo céu. A mente de Godwyn estava igualmente irrequieta, distraída das orações pela especulação sobre a melhor maneira de usar o Livro de Timothy para inspirar um revival no priorado. Decidiu levantar o assunto no capítulo, a reunião diária de todos os monges.
Ele notou que os construtores estavam trabalhando depressa nos consertos no coro, depois do desabamento do último domingo. Os escombros já haviam sido removidos e a área fora isolada por cordas. Havia uma crescente pilha de pedras finas e leves no transepto. Os homens não pararam de trabalhar nem mesmo quando os monges começaram a cantar... havia tantos serviços religiosos no decorrer de um dia normal que os reparos levariam um tempo interminável se fossem interrompidos. Merthin Fitzgerald, que abandonara temporariamente seu trabalho na nova porta, encontrava-se na nave sul, preparando a teia elaborada de cordas, galhos e andaimes que os pedreiros usariam para reconstruir o teto abobadado. Thomas Langley, cujo trabalho era supervisionar os construtores, estava parado no transepto sul, junto com Elfric, apontando com o único braço para a área desmoronada, obviamente discutindo o trabalho de Merthin.
Thomas era eficiente como matriculário: era decidido e nunca deixava as coisas escaparem ao controle. Em qualquer manhã em que os construtores deixavam de aparecer - uma irritação freqüente - Thomas saía para procurá-los e exigia uma explicação para a ausência. Se tinha um defeito, era o fato de ser independente demais: quase nunca relatava o progresso ou pedia a opinião de Godwyn. Conduzia o trabalho como se fosse seu próprio mestre, em vez de subordinado de Godwyn...
E Godwyn tinha a incômoda suspeita de que Thomas duvidava de sua capacidade. Godwyn era mais jovem, mas apenas um pouco: tinha trinta e um anos, contra os trinta e quatro anos de Thomas. Talvez Thomas achasse que Godwyn fora promovido por Anthony sob pressão de Petranilla. Mas ele não deixava transparecer qualquer outro sinal de ressentimento. Apenas fazia as coisas à sua maneira.
Enquanto Godwyn observava, murmurando automaticamente os responsos do serviço, a conversa de Thomas com Elfric foi interrompida. Lorde William de Caster entrou na igreja. Era alto, de barba preta, muito parecido com o pai, igualmente rigoroso, embora as pessoas comentassem que às vezes era abrandado pela esposa, Philippa. Ele aproximou-se de Thomas e acenou para que Elfric se afãstasse. Thomas virou-se para William. Alguma coisa em sua atitude lembrou Godwyn de que Thomas fora outrora um cavaleiro, e chegara ao priorado sangrando de um ferimento de espada, que acabara levando à amputação do braço esquerdo, na altura do cotovelo.
Godwyn desejou poder ouvir a conversa. Lorde William inclinou-se para a frente, falando de um jeito agressivo, apontando um dedo. Thomas, destemido, respondia com igual vigor. Godwyn lembrou de repente que Thomas tivera uma conversa intensa e combativa similar no dia em que chegara ali, há dez anos. Naquela ocasião, ele discutira com o irmão mais moço de William, Richard... antes um padre, agora o bispo de Kingsbridge. Talvez fosse apenas uma fantasia, mas Godwyn imaginou que discutiam hoje sobre o mesmo assunto. O que poderia ser? Seria possível que houvesse algum problema entre um monge e uma família nobre que ainda fosse causa de raiva dez anos depois?
Lorde William se afastou, furioso, numa insatisfação evidente. Thomas virou-se para Elfric.
A discussão dez anos antes resultara no ingresso de Thomas no priorado. Godwyn recordou que Richard prometera um donativo para garantir a aceitação de Thomas. Godwyn nunca mais ouvira falar desse donativo. Especulou agora se teria mesmo sido pago.
Durante todo aquele tempo, ninguém no priorado, ao que tudo indicava, descobrira muita coisa sobre a vida anterior de Thomas. O que era curioso, pois os monges adoravam as intrigas. Por viverem em contato tão estreito, como um pequeno grupo - eram vinte e seis no momento - tendiam a saber tudo uns sobre os outros. A que senhor Thomas servira? Onde vivera? A maioria dos cavaleiros controlava umas poucas aldeias, recebendo arrendamentos que lhe permitiam pagar cavalos, armadura e armas. Thomas tinha antes uma esposa e filhos? Se tinha, o que acontecera com eles? Ninguém sabia.
Além do mistério de seus antecedentes, Thomas era um bom monge, devoto e trabalhador. Parecia que aquela existência combinava com ele mais do que a vida de cavaleiro. Apesar de sua antiga carreira de violência, havia alguma coisa de mulher nele, como acontecia com vários monges. Era muito ligado ao irmão Matthias, um homem de natureza doce, alguns anos mais jovem. Mas, se cometiam pecados de impureza, eram tão discretos que nenhuma acusação jamais fora feita.
Quase ao final do serviço, Godwyn olhou para a escuridão profunda da nave e avistou a mãe, Petranilla, parada ali, tão imóvel quanto um dos pilares, uma haste de sol iluminando a orgulhosa cabeça grisalha. Ela estava sozinha. Godwyn se perguntou há quanto tempo a mãe estaria ali, observando. Os leigos não eram encorajados a comparecer aos serviços durante a semana, e ele calculou que Petranilla viera procurá-lo. Sentiu a mistura familiar de prazer e apreensão. Sabia que a mãe faria qualquer coisa por ele. Vendera sua casa e se tornara governanta do irmão Edmund para que ele pudesse estudar em Oxford. Quando pensava no sacrifício que isso representara para a orgulhosa mãe, ele tinha vontade de chorar de gratidão. Mas a presença de Petranilla sempre o deixava ansioso, como se ele estivesse prestes a ser repreendido por alguma transgressão.
Enquanto os monges e freiras se retiravam, Godwyn afastou-se da procissão para ir ao seu encontro.
- Bom-dia, mamãe.
Ela beijou-o na testa e comentou, com uma preocupação maternal:
- Você parece magro. Não tem o suficiente para comer?
- Peixe salgado e mingau, mas há sempre uma grande quantidade.
- Por que está tão excitado?
Petranilla era sempre capaz de perceber a disposição do filho. Ele falou sobre o Livro de Timothy.
- Eu poderia ler o trecho durante o capítulo.
- Os outros apoiariam?
- Theodoric e os monges mais jovens apoiariam. Muitos acham perturbador ver mulheres durante todo o tempo. Afinal, optaram por viver numa comunidade só de homens.
Petranilla acenou com a cabeça em aprovação.
- Isso o projeta no papel de líder. Excelente.
- Além do mais, eles gostam de mim por causa das pedras quentes.
- Pedras quentes?
- Introduzi uma nova regra no inverno. Nas noites geladas, quando vamos à catedral para as Matinas, cada monge recebe uma pedra quente enrolada num pano. Evita que peguem frieiras.
- Muito esperto. Mesmo assim, verifique seu apoio antes de entrar em ação.
- Claro. Mas combina com o que os mestres ensinam em Oxford.
- E o que é?
- A humanidade é falível, e por isso não devemos confiar em nosso próprio raciocínio. Não podemos esperar compreender o mundo... tudo o que podemos fazer é nos espantar com a criação de Deus. O verdadeiro conhecimento só vem através da revelação. Não devemos questionar a sabedoria recebida.
A mãe parecia cética, como costumava acontecer com os leigos quando homens instruídos tentavam explicar a alta filosofia.
- E é nisso que os bispos e cardeais acreditam?
- É, sim. A Universidade de Paris até proibiu as obras de Aristóteles e Aquino, porque estão baseadas na racionalidade em vez da fé.
- Essa maneira de pensar o ajudará a conquistar os favores de seus superiores?
Era só com isso que a mãe se importava. Queria que o filho fosse prior, bispo, arcebispo, até mesmo cardeal. Godwyn queria a mesma coisa, mas esperava não ser tão cético quanto ela.
- Tenho certeza de que sim.
- Ótimo. Mas não foi por isso que vim procurá-lo. Seu tio Edmund acaba de sofrer um golpe. Os italianos estão ameaçando levar seus negócios para Shiring.
Godwyn ficou chocado.
- Isso vai arruinar muita gente.
Mas ele ainda não entendia por que o fato merecia uma visita especial de Petranilla.
- Edmund acha que pode recuperá-los, se melhorarmos a Feira do Velocino... em particular se derrubarmos a velha ponte e construirmos uma nova, mais larga.
- Deixe-me adivinhar: tio Anthony recusou.
- Mas Edmund não desistiu. ,
- Quer que eu converse com Anthony? Petranilla sacudiu a cabeça.
- Você não pode persuadi-lo. Mas se o assunto for levantado no capítulo, deve apoiar a proposta.
- E ir contra tio Anthony?
- Sempre que uma proposta sensata encontrar a oposição da velha guarda, você deve ser identificado como o líder dos reformadores.
Godwyn sorriu, com a maior admiração.
- Mamãe, como sabe tanto sobre política?
- Eu lhe direi. - Ela desviou os olhos, focalizando a grande janela de rosácea no lado leste, a mente no passado. - Quando meu pai começou a negociar com os italianos, foi tratado como um arrivista pelos principais cidadãos de Kingsbridge. Torciam o nariz para ele e sua família, fizeram tudo o que podiam para impedi-lo de pôr em prática suas idéias. Minha mãe já havia morrido a essa altura, e eu era adolescente. Por isso, tornei-me sua confidente. Ele me contava tudo.
O rosto de Petranilla, normalmente fixo numa expressão de calma gelada, contorceu-se agora numa máscara de ressentimento e amargura: os olhos se contraíram, os lábios foram repuxados, o rosto ficou vermelho na vergonha lembrada.
- Ele concluiu que nunca se livraria deles enquanto não assumisse o controle da guilda paroquial. Foi nisso que se empenhou, e eu o ajudei. - Ela respirou fundo, como se mais uma vez concentrasse suas forças para uma guerra prolongada. - Dividimos o grupo predominante, lançamos uma facção contra outra, fizemos alianças e trocamos de lado, minando as forças de nossos oponentes, implacáveis, usando os nossos partidários até que nos conviesse descartá-los. Demorou dez anos, mas no final ele era o regedor da guilda e o homem mais rico da cidade.
Petranilla já contara antes a história do avô, mas nunca em termos tão francos.
- Quer dizer que você o ajudava, como Caris faz com Edmund? Ela soltou uma risada curta e áspera.
- Isso mesmo. A diferença é que já éramos os cidadãos mais eminentes de Kingsbridge quando Edmund assumiu. Meu pai e eu subimos a montanha; Edmund precisou apenas descer pelo outro lado.
A conversa foi interrompida por Philemon. Ele entrou na catedral, vindo dos claustros, um homem alto, de pescoço estreito, com vinte e dois anos, andando como um passarinho, em passos curtos e saltitantes. Trazia uma vassoura: era empregado pelo priorado como um faxineiro. Parecia excitado.
- Estava à sua procura, irmão Godwyn. Petranilla ignorou a pressa óbvia.
- Olá, Philemon. Ainda não o fizeram monge?
- Não consigo obter o donativo necessário, sra. Petranilla. Venho de uma família humilde.
- Mas não é inédito que o priorado abra mão do donativo no caso de um candidato que demonstre devoção. E há anos você é um servidor do priorado, pago e não-pago.
- Irmão Godwyn propôs meu ingresso, mas alguns monges mais velhos foram contrários.
Godwyn interveio:
- Blind Carlus detesta Philemon... não sei por quê.
- Falarei com meu irmão Anthony. Ele deve prevalecer sobre Carlus. Você é um bom amigo de meu filho... e eu gostaria de vê-lo como um monge.
- Obrigado.
- Como é evidente que está ansioso em contar alguma coisa a Godwyn que não pode ser dita em minha presença, vou me retirar agora. - Petranilla beijou o filho. - Lembre-se do que eu disse.
- Não esquecerei, mamãe.
Godwyn sentiu-se aliviado, como se a nuvem de tempestade tivesse passado para desabar em outra cidade. Assim que Petranilla se afastou, Philemon disse:
- É o bispo Richard!
Godwyn elevou as sobrancelhas. Philemon tinha um jeito todo especial de descobrir os segredos das outras pessoas.
- O que você descobriu?
- Ele está no hospital neste momento, num dos quartos particulares lá em cima... com sua prima Margery!
Margery era uma linda jovem de dezesseis anos. Os pais - um irmão mais moço do conde Roland e uma irmã da condessa de Marr - haviam morrido, e ela era pupila de Roland. Ele acertara seu casamento com um filho do conde de Monmouth, numa aliança política que fortaleceria sua posição como o principal nobre do sudoeste da Inglaterra.
- O que eles estão fazendo? - perguntou Godwyn, embora pudesse adivinhar. Philemon baixou a voz:
- Estão se beijando!
- Como sabe?
- Eu lhe mostrarei.
Philemon seguiu na frente. Deixaram a catedral pelo transepto sul, passaram pelos claustros dos monges e subiram um lance de escada para o dormitório. Era um quarto simples, com duas fileiras de camas de armação de madeira, cada uma com seu colchão de palha. Partilhava uma parede com o hospital.
Philemon foi até um armário grande, onde eram guardados lençóis. Com algum esforço, puxou o armário para a frente. Havia uma pedra solta na parede por trás. Por um momento, Godwyn especulou como Philemon encontrara aquela abertura. Calculou que ele podia ter escondido alguma coisa ali. Philemon retirou a pedra, tomando cuidado para não fazer barulho.
- Dê uma olhada, depressa! - sussurrou ele. Godwyn ainda hesitou.
- Quantos outros hóspedes você já observou daqui?
- Todos eles - respondeu Philemon, como se isso fosse óbvio.
Godwyn pensou que sabia o que da ver, e não gostou. Espionar o comportamento impróprio de um bispo podia ser aceitável para Philemon, mas parecia vergonhosamente clandestino. A curiosidade, no entanto, prevaleceu. Ao final, perguntou a si mesmo o que a mãe aconselharia, e compreendeu no mesmo instante que ela lhe diria para olhar.
O buraco na parede ficava um pouco abaixo do nível do olho. Ele inclinouse e espiou.
Era um dos dois quartos particulares de hóspedes no segundo andar do hospital. Havia num canto um prie-dieu, na frente de um quadro da crucificação. Havia também duas cadeiras confortáveis e alguns bancos. Quando havia muitos hóspedes importantes, os homens ficavam num quarto e as mulheres, no outro; e aquele era com certeza o quarto das mulheres, pois havia numa mesa pequena vários artigos femininos típicos: escovas, fitas e misteriosos potes e outros frascos.
No chão havia dois colchões de palha. Richard e Margery estavam deitados em um dos colchões. E faziam mais do que se beijar.
O bispo Richard era um homem atraente, com cabelos castanhos e feições regulares. Margery tinha quase a metade de sua idade; era uma jovem esguia, de pele branca e sobrancelhas escuras. Deitavam lado a lado. Richard beijava seu rosto e falava em seu ouvido. Um sorriso de prazer contraía seus lábios carnudos. O vestido de Margery fora levantado até a cintura. Ela tinha pernas bonitas, brancas e compridas. Richard mantinha a mão entre as coxas dela, movimentando-a com evidente experiência. Embora não tivesse muito conhecimento de mulheres, Godwyn sabia de alguma forma o que ele fazia. Margery fitava Richard com adoração, a boca entreaberta, ofegante de excitamento, o rosto vermelho de paixão. Talvez fosse apenas preconceito, mas Godwyn teve a intuição de que Richard considerava Margery como sua diversão do momento, enquanto ela via em Richard o amor de sua vida.
Godwyn contemplou-os por um momento horrorizado. Richard deslocou a mão, e Godwyn se descobriu de repente olhando para o triângulo cabeludo entre as coxas de Margery, escuro contra sua pele branca, que nem as sobrancelhas. Apressou-se em desviar os olhos.
- Deixe-me ver também - murmurou Philemon.
Godwyn afastou-se da parede. Aquilo era chocante, mas o que ele deveria fazer... se é que alguma coisa? Philemon olhou pelo buraco e soltou um murmúrio de excitamento.
- Posso ver a cona! - sussurrou ele. - E Richard a está acariciando!
- Saia daí - disse Godwyn. - Já vimos o suficiente... até demais. Philemon ainda hesitou, fascinado; depois, relutante, afastou-se e ajeitou a pedra solta no lugar.
- Devemos denunciar a fornicação do bispo imediatamente!
- Cale a boca e deixe-me pensar.
Se fizesse o que Philemon sugeria, Godwyn passaria a ter Richard e sua poderosa família como inimigos... e sem qualquer propósito. Mas havia alguma maneira de se aproveitar daquela situação? Godwyn tentou pensar a respeito, como a mãe. Se não havia nada a ganhar pela revelação do pecado de Richard, seria possível transformar em virtude o fato de ocultá-lo? Talvez Richard se mostrasse agradecido a Godwyn por guardar o segredo.
Isso era mais promissor. Mas, para que funcionasse, Richard precisava saber que Godwyn o protegia.
- Venha comigo - disse ele a Philemon.
Philemon tornou a arrastar o armário para o lugar. Godwyn se perguntou se o barulho da madeira rangendo na pedra do chão seria audível no quarto ao lado. Duvidava... e, de qualquer maneira, Richard e Margery se encontravam absortos demais no que faziam para prestar atenção a ruídos no outro lado da parede.
Godwyn desceu a escada na frente. Atravessaram os claustros. Havia duas escadas para os aposentos particulares: uma subia do andar térreo e a outra era por fora do prédio, permitindo que os hóspedes importantes entrassem e saíssem sem passar pelo salão em que ficavam as pessoas comuns. Godwyn subiu apressado pela escada externa.
Parou junto do quarto em que Richard e Margery estavam. Murmurou para Philemon:
- Entre atrás de mim. Não faça nada. Não diga nada. Saia quando eu sair. Philemon largou a vassoura.
- Não - disse Godwyn. - Entre com ela.
- Está bem.
Godwyn abriu a porta e entrou.
- Quero este quarto muito limpo - disse ele, em voz alta. - Varra todos os cantos... oh, perdão! Pensei que o quarto estava vazio!
No tempo que levara para Godwyn e Philemon correrem do dormitório para o hospital, os amantes haviam progredido. Richard agora deitava em cima de Margery, a batina clerical levantada na frente. Ela mantinha as pernas levantadas, nos lados dos quadris do bispo. Não havia a menor possibilidade de equívoco sobre o que faziam.
Richard interrompeu os movimentos de arremetida e olhou para Godwyn, com uma mistura de frustração indignada e culpa assustada. Margery soltou um grito chocado e também fitou Godwyn, com medo nos olhos.
- Bispo Richard! - exclamou Godwyn, simulando surpresa, pois queria que Richard não tivesse a menor dúvida de que fora reconhecido. - Mas como... e Margery?
Ele simulou compreender subitamente.
- Perdoem-me! - Godwyn virou-se. Gritou para Philemon. - Saia! Agora!
Philemon se apressou em passar pela porta, ainda segurando a vassoura. Godwyn seguiu-o, mas virou-se na porta, para ter certeza de que Richard o via direito. Os dois amantes permaneceram paralisados na posição, em congresso sexual, mas seus rostos mudaram. A mão de Margery subira para a boca, no gesto eterno de culpa e surpresa. A expressão de Richard era de quem fazia cálculos frenéticos. Queria falar, mas não podia pensar no que dizer. Godwyn decidiu tirá-los da angústia. Fizera tudo o que precisava fazer.
Saiu... mas, antes que pudesse fechar a porta, um choque deixou-o imóvel. Uma mulher subia a escada. Ele foi dominado por um momento de pânico. Era Philippa, a esposa do outro filho do conde. Ele compreendeu no mesmo instante que o segredo culpado de Richard perderia seu valor se mais alguém o descobrisse. Tinha de avisar Richard.
- Lady Philippa! - disse ele, em voz alta. - Seja bem-vinda ao priorado de Kingsbridge!
Ouviu sons urgentes dentro do quarto. Pelo canto do olho, percebeu que Richard levantava-se de um pulo.
Por sorte, Philippa não entrou direto no quarto. Em vez disso, parou e disse a Godwyn:
- Talvez você possa me ajudar.
Do lugar em que parara, ela não podia ver o interior do quarto, percebeu Godwyn.
- Perdi uma pulseira - explicou Philippa. - Não é preciosa, apenas madeira esculpida. Mas gosto muito dela.
- É uma pena - murmurou Godwyn, com um ar compadecido. - Pedirei a todos os monges e freiras para procurarem.
- Eu não vi - disse Philemon.
- Talvez tenha escapulido de seu pulso - comentou Godwyn. Ela franziu o rosto.
- O mais estranho é que não a usei desde que cheguei aqui. Tirei-a e a larguei em cima da mesa. Agora, não consigo encontrá-la.
- Talvez tenha rolado para algum canto escuro. Philemon aqui vai procurar. É ele quem limpa os quartos de hóspedes.
Philippa olhou para Philemon.
- Eu o encontrei quando saía, há cerca de uma hora. Não viu a pulseira quando varreu o quarto?
- Ainda não varri. A srta. Margery entrou no momento em que eu da começar.
- Philemon acaba de voltar para limpar o quarto, mas a srta. Margery está...
- ele olhou para o quarto - ... em oração.
Margery ajoelhara no prie-dieu e mantinha os olhos fechados... suplicando perdão por seu pecado, Godwyn esperava. Richard postava-se atrás dela, a cabeça inclinada, as mãos cruzadas, os lábios em movimento, num murmúrio.
Godwyn deu um passo para o lado, a fim de deixar Philippa entrar no quarto. Ela lançou um olhar desconfiado para o cunhado.
- Olá, Richard. Você não costuma orar durante a semana.
Ele levou um dedo aos lábios, no gesto de quem pedia silêncio, e apontou para Margery. Philippa disse, bruscamente:
Margery pode orar tanto quanto quiser, mas este é o quarto das mulheres, e quero que você saia.
Richard escondeu seu alívio e se retirou, fechando a porta para as duas mulheres.
Ele e Godwyn se fitaram. Godwyn percebeu que Richard não sabia o que fazer. Poderia se sentir propenso a dizer Como ousa entrar num quarto sem bater mas ele estava tão errado que provavelmente não teria o sangue-frio para se mostrar arrogante. Por outro lado, também não podia suplicar a Godwyn que guardasse segredo, pois assim reconheceria que se encontrava sob o poder do monge. Era um momento de constrangimento angustiante. Enquanto Richard hesitava, Godwyn declarou:
- Ninguém jamais ouvirá nada de mim.
Richard mostrou-se aliviado, mas olhou para Philemon. -Eele?
- Philemon quer ser um monge. Está aprendendo a virtude da obediência.
- Estou em dívida com você.
- Um homem deve confessar seus próprios pecados, não os pecados de outros.
- Mesmo assim, sou grato, irmão...
- Godwyn, o sacristão. Sou sobrinho do prior Anthony. - Ele queria que Richard soubesse que era bastante bem relacionado para criar problemas. Mas apressou-se em acrescentar, para atenuar o tom de ameaça: - Minha mãe foi noiva de seu pai, há muitos anos, antes que seu pai se tornasse o conde.
- Já ouvi essa história.
Godwyn teve vontade de dizer também: E seu pai rejeitou minha mãe, assim como você planeja rejeitar a pobre Margery. Mas, em vez disso, apenas comentou, jovial:
- Poderíamos ter sido irmãos.
- É verdade.
Soou o sino para o jantar. Aliviados do embaraço, os três homens se separaram: Richard foi para a casa do prior Anthony, Godwyn, para o refeitório dos monges, e Philemon, para a cozinha, a fim de ajudar a servir.
Godwyn estava pensativo enquanto atravessava os claustros. Sentia-se perturbado pela cena animal que testemunhara, mas achava que cuidara bem da situação. Ao final, Richard dera a impressão de que confiava nele.
No refeitório, Godwyn sentou ao lado de Theodoric, um monge inteligente, uns poucos anos mais jovem do que ele. Theodoric não estudara em Oxford, e em conseqüência tinha o maior respeito por Godwyn. Como Godwyn tratava-o como um igual, Theodoric sentia-se lisonjeado.
- Acabo de ler uma coisa que vai interessá-lo - comentou Godwyn.
Ele resumiu o que lera sobre a atitude do reverenciado prior Philip em relaçâo às mulheres em geral e às freiras em particular.
- É o que você sempre disse - arrematou Godwyn.
Na verdade, Theodoric nunca expressara uma opinião sobre o assunto, mas sempre concordara quando Godwyn queixava-se da indulgência do prior Anthony.
- Claro. - Theodoric tinha olhos azuis e a pele clara. Ficou agora corado de excitamento. - Como podemos ter pensamentos puros quando somos constantemente distraídos pelas mulheres?
- Mas o que podemos fazer?
- Devemos confrontar o prior.
- No capítulo, não é mesmo? - Godwyn falou como se a idéia fosse de Theodoric, não sua. - Um excelente plano. Mas outros nos apoiariam?
- Os monges mais jovens apoiariam.
Os jovens provavelmente concordavam com quase todas as críticas aos mais velhos, pensou Godwyn. Mas ele também sabia que muitos monges partilhavam sua preferência por uma vida em que as mulheres estivessem ausentes... ou pelo menos fossem invisíveis.
- Se conversar com alguém daqui até o capítulo, avise-me sobre o que os outros disserem - pediu Godwyn.
Isso encorajaria Theodoric a sair em busca de apoio.
O jantar foi servido, um ensopado de peixe salgado e vagem. Mas, antes que Godwyn pudesse comer, foi impedido por frei Murdo.
Os frades eram monges que viviam entre as pessoas comuns, em vez de se isolar em mosteiros. Achavam que sua abnegação era mais rigorosa que a dos monges institucionais, cujo voto de pobreza era comprometido por seus esplêndidos prédios e extensas propriedades. Tradicionalmente, os frades não tinham propriedades, nem mesmo igrejas... embora muitos abandonassem esse ideal depois que admiradores devotos lhes davam terras e dinheiro. Aqueles que ainda viviam pelos princípios originais pediam comida e dormiam em chão de cozinha. Pregavam em mercados e na frente de tavernas, e eram recompensados com pennies. Não hesitavam em viver à custa dos monges comuns, aos quais pediam comida e alojamento, sempre que isso lhes convinha. Sua pressuposição de superioridade, como era de se esperar, causava ressentimentos.
Frei Murdo era um exemplo bastante desagradável: gordo, sujo, guloso, muitas vezes bêbado, às vezes visto na companhia de prostitutas. Mas era também um pregador carismático, capaz de atrair uma multidão de centenas de pessoas com seus sermões pitorescos, embora duvidosos em termos teológicos.
Agora ele se levantou, sem ser convidado, e começou a orar, em voz alta:
- Nosso Pai, abençoe este alimento para nossos corpos infames e corrompidos, tão cheios de pecados quanto um cachorro morto é cheio de vermes...
As orações de Murdo nunca eram breves. Godwyn largou sua colher, com um suspiro.
Havia sempre uma leitura no capítulo, em geral da regra de São Bento, mas com freqüência da Bíblia, e às vezes de outros livros religiosos. Enquanto os monges ocupavam seus lugares nos bancos de pedra da câmara octogonal do capítulo, Godwyn procurou o jovem monge com quem deveria ler naquele dia e avisou, em voz baixa mas firme, que ele, Godwyn, seria o único a ler hoje. Depois, quando o momento chegou, ele leu a página crucial do Livro de Timothy.
Sentia-se nervoso. Voltara de Oxford um ano antes, e desde então mantinha conversas discretas sobre a reforma do priorado; mas, até aquele momento, não tivera uma confrontação aberta com Anthony. O prior era fraco e preguiçoso, precisava ser arrancado de sua apatia. Além disso, São Bento escrevera: ”Todos devem participar do capítulo, pois muitas vezes o Senhor revela a um membro mais jovem o que é melhor.” Godwyn tinha todo o direito de falar no capítulo e pedir um cumprimento mais rigoroso das regras monásticas. Mesmo assim, ele sentiu de repente que corria um risco, e desejou ter levado mais tempo a pensar em sua tática de usar o Livro de Timothy.
Mas era tarde demais para qualquer arrependimento. Ele fechou o livro e disse:
- Minha pergunta, para mim mesmo e para meus irmãos, é a seguinte: Caímos abaixo dos padrões do prior Philip na questão da separação entre os monges e as mulheres?
Ele aprendera, nos debates entre estudantes, a apresentar seu argumento sob a forma de uma indagação, sempre que possível, dando a seu oponente a margem mínima de contestação.
O primeiro a responder foi Blind Carlus, o subprior, auxiliar direto de Anthony:
- Alguns mosteiros ficam longe de qualquer centro de população, ou numa ilha desabitada, ou no fundo de uma floresta, ou no topo solitário de uma montanha.
Sua maneira lenta e deliberada de falar deixava Godwyn na maior impaciência. Ele continuou, sem qualquer pressa:
- Nessas casas, os irmãos se isolam de todo contato com o mundo secular. Kingsbridge nunca foi assim. Estamos no coração de uma grande cidade, o lar de sete mil almas. Cuidamos de uma das mais magníficas catedrais da cristandade. Muitos de nós são médicos, porque São Bento disse: ”Cuidados especiais devem ser dispensados aos doentes, pois devem ser tratados como o próprio Cristo.” O luxo do isolamento total não nos foi concedido. Deus nos incumbiu de uma missão diferente.
Godwyn esperava alguma coisa assim. Carlus detestava que mudassem os móveis de posição, pois esbarraria neles; e se opunha a qualquer outro tipo de mudança, pela ansiedade paralela de lidar com o desconhecido. Theodoric tinha uma resposta rápida para Carlus:
- Razão ainda maior para que sejamos rigorosos com as regras. Um homem que vive ao lado de uma taverna deve tomar um cuidado extraordinário para evitar a embriaguez.
Houve um murmúrio de concordância satisfeita: os monges gostavam de uma réplica bem articulada. A pele clara de Theodoric ficou rosada de satisfação. Um noviço chamado Juley, encorajado, disse num sussurro alto:
- As mulheres não incomodam Carlus porque ele não pode vê-las. Vários monges riram, embora outros balançassem a cabeça em desaprovação.
Godwyn sentiu que da muito bem. Parecia estar ganhando a discussão até agora. O prior Anthony perguntou:
- O que propõe exatamente, irmão Godwyn?
Ele não estudara em Oxford, mas sabia o suficiente para pressionar à procura da cenda do oponente. Relutante, Godwyn pôs suas cartas na mesa:
- Podemos considerar a possibilidade de reverter a situação ao que era no tempo do prior Philip.
Anthony continuou a pressionar:
- O que exatamente isso significa? Nada de freiras?
- Isso mesmo.
- Mas para onde elas iriam?
- O convento pode ser removido para outro lugar e se tornar uma célula remota do priorado, como Kingsbridge College ou St.-John-in-the-Forest.
Isso deixou todos chocados. Houve um clamor de comentários, que o prior controlou com alguma dificuldade. A voz que emergiu no burburinho foi a de Joseph, o médico sênior. Era um homem inteligente e orgulhoso, alguém que mantinha Godwyn cauteloso.
- Como poderíamos cuidar do hospital sem as freiras? - Os dentes ruins tornavam a voz sibilante, de tal maneira que parecia embriagado; mas nem por isso falava com menos autoridade. - Elas ministram os medicamentos, trocam os curativos, alimentam os inválidos, penteiam os cabelos dos velhos senis...
- Os monges poderiam fazer tudo isso - garantiu Theodoric
- E o que me diz dos partos? - indagou Joseph. - Muitas vezes cuidamos de mulheres que estão com dificuldade para trazer um bebê ao mundo. Como os monges as ajudariam sem as freiras para... tocar no que é necessário tocar?
Vários homens manifestaram sua concordância, mas Godwyn previra essa questão e sugeriu agora:
- As freiras não poderiam ser removidas para o antigo lazareto?
A colônia de leprosos - ou lazareto - ficava numa pequena ilha no rio, ao sul da cidade. Nos velhos tempos, era povoada por sofredores, mas a lepra parecia estar acabando, e agora havia apenas dois ocupantes, ambos idosos.
Irmão Cuthbert, que era sempre espirituoso, murmurou:
- Eu não gostaria de ser encarregado de comunicar à madre Cecilia que ela será transferida para uma colônia de leprosos.
Houve uma onda de risos.
- As mulheres devem ser regidas pelos homens - declarou Theodoric.
- E madre Cecilia é regida pelo bispo Richard - disse o prior Anthony. - Ele teria de tomar a decisão.
- Que o céu impeça que ele tome tal decisão. - Era Simeon, o tesoureiro. Um homem magro, de rosto comprido, ele se opunha a todas as propostas que acarretassem despesas. - Não poderíamos sobreviver sem as freiras.
Godwyn foi tomado de surpresa.
- Por que não?
- Não temos dinheiro suficiente. Quando a catedral precisa de reparos, quem você acha que paga os construtores? Não somos nós... não temos condições. Madre Cecilia. Ela compra os suprimentos para o hospital, pergaminhos para a sala dos manuscritos e ração para os estábulos. Qualquer coisa usada em comum por monges e freiras é paga por ela.
Godwyn estava consternado.
- Por que somos tão dependentes das freiras? Simeon deu de ombros.
- Ao longo dos anos, muitas mulheres devotas doaram terras e outros bens ao convento.
Essa não era toda a história, Godwyn tinha certeza. Os monges também dispunham de muitos recursos. Recebiam aluguéis e outros tributos de quase todos os cidadãos de Kingsbridge, além de possuir milhares de acres de terras cultivadas. A maneira como a riqueza era administrada devia ser um fator. Mas não havia sentido em entrar nesse ponto agora. Perdera a discussão. Até mesmo Theodoric se calara. Anthony disse, complacente:
- Foi uma discussão muito interessante. Obrigado, Godwyn, por levantar a questão. Agora, vamos rezar.
Godwyn sentia-se furioso demais para uma oração. Não conseguira nada do que queria, e não sabia onde errara. Enquanto os monges saíam, Theodoric lançou-lhe um olhar assustado e murmurou:
- Eu não sabia que as freiras pagavam tanta coisa.
- Nenhum de nós sabia. - Godwyn compreendeu que olhava irritado para Theodoric, e se apressou em acrescentar: - Mas você foi esplêndido... debateu melhor do que muitos homens de Oxford.
Era a coisa certa para dizer, e Theodoric ficou feliz.
Aquela era a hora em que os monges liam na biblioteca ou passeavam pelos claustros, mas Godwyn tinha outros planos. Alguma coisa o apoquentara durante todo o jantar e o capítulo. Relegara para o fundo da mente, porque coisas mais importantes haviam interferido, mas voltou agora. Pensava que sabia onde podia estar a pulseira de lady Philippa.
Havia poucos esconderijos num mosteiro. Os monges levavam uma vida comunitária: com exceção do prior, ninguém tinha um quarto só para si. Mesmo na latrina, sentavam lado a lado, sobre um cocho por onde passava sem cessar a água levada por tubos. Não podiam ter bens pessoais, e por isso ninguém tinha um armário, nem mesmo uma caixa.
Mas hoje Godwyn vira um esconderijo.
Ele subiu para o dormitório. Estava vazio. Afastou o armário de lençóis da parede e removeu a pedra solta, mas não olhou pelo buraco. Em vez disso, enfiou a mão, explorando. Tateou em cima, nos lados, no fundo. A direita, havia uma pequena fissura. Godwyn esticou os dedos e tocou em alguma coisa que não era pedra nem argamassa. Tirou o objeto.
Era uma pulseira de madeira esculpida.
Godwyn levantou-a contra a luz. Era feita de alguma madeira de lei, provavelmente carvalho. A superfície interna era lixada, mas a externa era de quadrados e losangos interligados, com uma precisão fascinante. Godwyn pôde compreender por que lady Philippa gostava tanto daquela pulseira.
Ele guardou-a no mesmo lugar em que a encontrara, ajeitou a pedra solta, e empurrou o armário de volta à posição.
O que Philemon queria com aquela pulseira? Poderia vendê-la por um ou dois pennies, mas seria um risco, porque era reconhecível. Mas com certeza não a usaria.
Godwyn deixou o dormitório e desceu a escada para os claustros. Não sentia a menor disposição para o estudo ou a meditação. Precisava conversar sobre os acontecimentos do dia. Tinha necessidade de ver a mãe.
O pensamento deixou-o apreensivo. Ela poderia censurá-lo por seu fracasso no capítulo. Mas tinha certeza de que o elogiaria pela maneira como lidara com o bispo Richard, e estava ansioso em relatar tudo. Decidiu sair para procurá-la.
Em termos estritos, isso não era permitido. Os monges não deveriam vaguear à vontade pelas ruas da cidade. Precisavam de uma razão, e em teoria deveriam pedir permissão para o prior antes de sair do priorado. Na prática, porém, os obedienciários - autoridades monásticas - tinham dezenas de pretextos. O priorado mantinha negócios constantes com mercadores, comprando alimentos, roupas, sapatos, pergaminhos, velas, ferramentas para o jardim, arreios para os cavalos... todas as necessidades da vida cotidiana. Os monges eram proprietários; possuíam quase toda a cidade. E qualquer um dos médicos podia ser chamado para um paciente que não era capaz de se locomover até o hospital. Portanto, não era incomum ver monges nas ruas, e não era provável que alguém pedisse a Godwyn, o sacristão, uma explicação para sua saída do mosteiro.
Não obstante, era sempre sensato ser discreto. Ele passou pela feira movimentada e seguiu apressado pela rua principal até a casa de seu tio Edmund.
Como já esperava, Edmund e Caris haviam saído para cuidar dos negócios. Encontrou a mãe sozinha com os criados.
- É um presente generoso para uma mãe, ver o filho duas vezes no mesmo dia!
- exclamou Petranilla. - E me dá uma oportunidade de alimentá-lo direito!
Ela serviu-lhe uma caneca grande de cerveja forte, e mandou que a cozinheira trouxesse um prato com carne fria.
- O que aconteceu no capítulo? Godwyn relatou tudo e comentou, ao final:
- Eu estava com pressa demais. Petranilla acenou com a cabeça.
- Meu pai costumava dizer: nunca convoque uma reunião até que o resultado seja certo.
Godwyn sorriu.
- Devo me lembrar disso.
- Seja como for, acho que não houve mal algum. Era um alívio. A mãe não estava ficando furiosa.
- Mas perdi a discussão.
- Mas também definiu sua posição como líder do grupo reformista mais jovem.
- Mesmo que tenha bancado o tolo?
- É melhor do que ser uma figura nula.
Godwyn não sabia se a mãe estava certa sobre isso; mas, como sempre acontecia quando duvidava da sabedoria da mãe, não a contestou, preferindo pensar a respeito mais tarde.
- Aconteceu uma coisa muito estranha.
Ele contou sobre Richard e Margery, omitindo os detalhes físicos mais grosseiros. Ela ficou surpresa.
- Richard deve estar louco! O casamento será cancelado se o conde de Monmouth descobrir que Margery não é mais virgem. O conde Roland ficará furioso. Richard pode ser banido do clero.
- Mas muitos bispos têm amantes, não é mesmo?
- Isso é diferente. Um padre pode ter uma ”governanta”, que é sua esposa sob todos os aspectos, menos no nome. Um bispo pode ter várias amantes. Mas tirar a virgindade de uma nobre pouco antes de seu casamento... até mesmo o filho de um conde pode ter dificuldade para sobreviver como um clérigo depois disso.
- O que acha que devo fazer?
- Nada. Cuidou muito bem da situação até agora.
Godwyn sentiu o maior orgulho.
- Um dia essa informação será uma arma poderosa - acrescentou Petranilla.
- Não se esqueça disso.
- Há mais uma coisa. Fiquei pensando como Philemon descobriu a pedra solta, e me ocorreu que ele podia ter usado o lugar inicialmente como um esconderijo. Estava certo... e encontrei uma pulseira que lady Philippa havia perdido.
- Muito interessante. Tenho a impressão de que Philemon ainda será muito útil para você. Ele é capaz de fazer qualquer coisa. Não tem escrúpulos, não tem moral. Meu pai tinha um associado que estava sempre disposto a fazer o trabalho sujo... começar rumores, espalhar intrigas venenosas, fomentar discórdias. Homens assim podem ser valiosos.
- Acha que não devo denunciar o furto?
- Claro que não. Obrigue-o a devolver a pulseira, se acha que isso é importante... ele pode dizer que a encontrou quando varria. Mas não o denuncie. Garanto que colherá os benefícios mais tarde.
- Devo então protegê-lo?
- Como faria com um cachorro doido que ataca os intrusos. Ele é perigoso, mas vale a pena.
Na quinta-feira, Merthin completou a porta que estava esculpindo. Concluíra seu trabalho na nave sul, pelo menos por enquanto. O andaime estava pronto. Não havia necessidade de fazer o címbrio para os pedreiros, já que Godwyn e Thomas estavam determinados a poupar dinheiro pelo uso do método proposto por Merthin. Por isso, ele voltou a cuidar da porta, e constatou que restava bem pouco para terminá-la. Passou uma hora melhorando os cabelos de uma virgem sábia, e outra no sorriso tolo de uma virgem insensata, mas não tinha certeza se conseguira melhorar o que já fizera antes.
Era difícil tomar decisões com a mente oscilando entre Caris e Griselda.
Mal fora capaz de falar com Caris durante toda a semana. Sentia-se envergonhado de si mesmo. Cada vez que via Caris, pensava na maneira como abraçara Griselda, beijara-a, fizera com ela o maior ato de amor da vida humana... uma jovem de quem ele não gostava, muito menos amava. Embora tivesse passado antes muitas horas felizes imaginando o momento em que faria aquilo com Caris, agora a perspectiva o enchia de medo. Não havia nada de errado com Griselda... isto é, havia, mas não era isso que o perturbava. Sentiria a mesma coisa se fosse qualquer outra mulher que não Caris. Tirara o significado do ato ao fazer com Griselda. E agora não podia encarar a mulher que amava.
Enquanto ele olhava para seu trabalho, tentando parar de pensar em Caris e decidir se a porta já estava pronta ou não, Elizabeth Clerk entrou pelo pórtico norte. Era uma beldade esguia e pálida, de vinte e cinco anos, com uma nuvem de cachos louros. Seu pai fora bispo de Kingsbridge antes de Richard. Residira no palácio do bispo em Shiring, como Richard, mas em suas freqüentes visitas a Kingsbridge se apaixonara por uma garota que servia na Bell... a mãe de Elizabeth. Por causa de sua ilegitimidade, Elizabeth era sensível em relação à posição social, alerta à menor desfeita e rápida em se ofender. Mas Merthin gostava dela, porque era uma mulher inteligente; e também porque o beijara quando ele tinha dezoito anos, deixara-o acariciar seus seios, que ficavam no alto do peito e eram pequenos, como se moldados de taças rasas, com mamilos que endureciam ao contato mais gentil. O romance acabara por algo que parecera trivial para Merthin e imperdoável para ela - uma piada que ele contara sobre padres devassos -, mas ele ainda gostava de Elizabeth.
Ela tocou no ombro de Merthin e olhou para a porta. Levou a mão à boca e soltou uma exclamação de espanto.
- Elas parecem vivas!
Merthin ficou emocionado. O elogio era sincero. Mesmo assim, ele sentiu um impulso de ser modesto.
- Apenas porque eu dei características individuais a cada uma. Todas as virgens eram idênticas na porta antiga.
- É mais do que isso. Elas dão a impressão de que podem sair da porta a qualquer momento para falar com as pessoas.
- Obrigado.
- Mas é diferente de todo o resto na catedral. O que os monges dirão?
- O irmão Thomas gosta.
- E o sacristão?
- Godwyn? Não sei o que ele vai pensar. Mas, se criar problemas, recorrerei ao prior Anthony... que não vai querer encomendar outra porta e pagar duas vezes.
- A Bíblia não diz que eram todas iguais, é claro... apenas que cinco tiveram o bom-senso de se aprontar com antecedência, enquanto as outras cinco deixaram os arranjos para o último momento, e acabaram perdendo a festa. Mas o que me diz de Elfric?
- A porta não é para ele.
- Elfric é o seu mestre.
- Ele só está interessado em receber o dinheiro. Elizabeth não estava convencida de que era só isso.
- O problema é que você é melhor artesão do que ele. É evidente há dois ou três anos, e todo mundo sabe disso. Elfric nunca admitiria, mas é o motivo para que ele odeie você. Pode fazê-lo se arrepender de ter feito essa porta assim.
- Você sempre vê o lado pior.
- Acha mesmo? - Ela se mostrava ofendida. - Veremos se estou certa. Espero estar enganada.
Ela virou-se para ir embora.
- Elizabeth...
- O que é?
- Fico muito satisfeito por você ter gostado.
Ela não respondeu, mas parecia um pouco apaziguada. Acenou em despedida e foi embora.
Merthin decidiu que a porta estava pronta. Envolveu-a com pano de saco. Teria de mostrá-la a Elfric, e agora era uma ocasião tão boa quanto outra qualquer: a chuva cessara, pelo menos por enquanto.
Ele chamou um dos trabalhadores para ajudá-lo a carregar a porta. Os construtores tinham uma técnica para carregar objetos pesados e de difícil manipulação. Estendiam duas estacas fortes no chão, paralelas, e ajeitavam tábuas na transversai, na parte central, para ter uma base firme. Colocavam o objeto sobre as tábuas. Depois, postavam-se entre as estacas, um de cada lado, e levantavam. A disposição era chamada de padiola, sendo usada também para transportar doentes até o hospital.
Mesmo assim, a porta era bastante pesada. Mas Merthin já se acostumara a levantar peso. Elfric nunca permitira que ele se esquivasse desse trabalho por causa de sua pequena estatura. Em conseqüência, ele se tornara surpreendentemente forte.
Os dois homens chegaram à casa de Elfric e entraram com a porta. Griselda estava sentada na cozinha. Parecia se tornar mais voluptuosa a cada dia que passava: os seios grandes pareciam ser ainda maiores. Merthin não gostava de desagradar qualquer pessoa, e tentou ser cordial, indagando ao passarem:
- Não quer ver minha porta?
- Por que eu haveria de querer ver uma porta?
- É esculpida. A história das virgens sábias e das insensatas. Ela soltou uma risada sem qualquer humor.
- Não me fale de virgens.
Levaram a porta para o pátio. Merthin não compreendia as mulheres. Griselda tratava-o com frieza desde que haviam feito amor. Se era assim que ela se sentia, por que fizera? Griselda vinha deixando claro que não queria fazer de novo. Ele poderia tê-la tranqüilizado com a informação de que se sentia da mesma maneira - na verdade, detestava a perspectiva - mas achava que seria insultuoso. Por isso, nada dizia.
Baixaram a padiola no pátio e o ajudante de Merthin foi embora. Elfric estava ali, o corpo musculoso inclinado sobre uma pilha de tábuas, contando-as. Batia em cada uma com um pedaço de madeira de um palmo de comprimento, a língua estufando a bochecha, como sempre fazia quando se deparava com um desafio mental. Lançou um olhar furioso para Merthin e continuou. Merthin não disse nada. Retirou o pano que cobria a porta e encostou-se numa pilha de blocos de pedra. Sentia um orgulho extraordinário do trabalho que fizera. Seguira o padrão tradicional, mas ao mesmo tempo fizera uma coisa original, que deixava as pessoas impressionadas. Mal podia esperar para ver a porta instalada na catedral.
- Quarenta e sete - disse Elfric, virando-se para Merthin.
- Acabei a porta - anunciou Merthin, orgulhoso. - O que você acha? Elfric olhou para a porta por um momento. Tinha o nariz grande, e as narinas tremeram em surpresa. Depois, inesperadamente, ele bateu no rosto de Merthin com a vareta que vinha usando para ajudá-lo a contar. Era sólida e a pancada doeu. Merthin gritou em súbita agonia, cambaleou para trás e caiu.
- Seu monte de imundície! - berrou Elfric. - Você profanou minha filha! Merthin ainda tentou balbuciar um protesto, mas tinha a boca cheia de sangue.
- Como se atreveu?
Como se fosse uma deixa, Alice veio do interior da casa.
- Serpente! - gritou ela. - Entrou sorrateiro na casa e deflorou nossa menina! Os dois fingiam ser espontâneos, mas haviam planejado a cena, pensou Merthin. Ele cuspiu sangue e disse:
- Deflorei? Ela não era mais virgem!
Elfric o golpeou de novo, com o porrete improvisado. Merthin rolou para se esquivar, mas ainda assim foi atingido no ombro, que ficou dolorido.
- Como pôde fazer isso com Caris? - indagou Alice. - Minha pobre irmã... quando ela descobrir, ficará com o coração partido.
Merthin foi espicaçado a dar uma resposta.
- E você, com certeza, vai contar a ela, não é mesmo, sua vaca?
- Ela acabará sabendo, porque seu casamento com Griselda não será um segredo - declarou Alice.
Merthin ficou atônito.
- Casamento? Não vou casar com Griselda. Ela me odeia. Griselda apareceu nesse instante.
- Claro que não quero casar com você, mas não há outro jeito. Estou grávida. Merthin fitou-a, espantado.
- Não é possível... só fizemos uma vez. Elfric soltou risada áspera.
- Só é preciso uma vez, seu idiota.
- Mesmo assim, não casarei com ela.
- Se não casar, será despedido.
- Não pode fazer isso.
- Por que não?
- Não me importo. Não casarei com ela.
Elfric largou o pedaço de pau e pegou um machado.
- Jesus Cristo! - exclamou Merthin. Alice deu um passo para a frente.
- Não cometa um assassinato, Elfric
- Saia da frente, mulher. Elfric ergueu o machado.
Merthin, ainda no chão, recuou apressado, com medo por sua vida. Elfric baixou o machado, não em cima de Merthin, mas em sua porta.
- Não! - berrou Merthin.
A lâmina afiada afundou no rosto da virgem de cabelos compridos e rachou a madeira ao longo da granulação.
- Pare! - gritou Merthin.
Elfric levantou o machado outra vez. O novo golpe rachou a porta em duas. Merthin levantou-se. Para seu horror, sentia os olhos cheios de lágrimas.
- Você não tem esse direito!
Ele tentava gritar, mas a voz saiu num sussurro. Elfric ergueu o machado e virou-se para ele.
- Fique longe, rapaz... não me tente.
Merthin percebeu a luz da loucura nos olhos de Elfric e recuou.
Elfric tornou a bater com o machado na porta.
Merthin ficou olhando, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Os dois cachorros, Skip e Scrap, cumprimentaram-se com um entusiasmo esfuziante. Eram da mesma ninhada, embora não fossem parecidos: Skip era um macho marrom e Scrap, uma fêmea pequena e preta. Skip era um típico cachorro de aldeia, magro e desconfiado, enquanto Scrap, moradora da cidade, era gorda e contente.
Já havia dez anos desde que Gwenda escolhera Skip numa ninhada de filhotes mestiços, no chão do quarto de Caris, na casa enorme do mercador de lã. Acontecera no dia em que a mãe de Caris morreu. Desde então, as duas haviam se tornado grandes amigas. Só se encontravam duas ou três vezes por ano, mas partilhavam seus segredos. Gwenda sentia que podia contar tudo a Caris, e as informações nunca chegariam ao conhecimento de seus pais, ou de qualquer outra pessoa em Wigleigh. Presumia que Caris sentia a mesma coisa: como Gwenda não falava com qualquer outra garota de Kingsbridge, não podia haver risco de deixar escapulir alguma coisa num momento de descuido.
Gwenda chegou a Kingsbridge na sexta-feira da semana da Feira do Velocino. Seu pai, Joby, foi para o terreno da feira, no pátio da catedral, a fim de vender as peles dos esquilos que apanhara em armadilhas, na floresta perto de Wigleigh.
Gwenda seguiu direto para a casa de Caris, e os dois cachorros se reencontraram. Como sempre, Gwenda e Caris puseram-se a conversar sobre os rapazes.
- Merthin anda muito estranho - comentou Caris. -No domingo estava normal, beijando-me na igreja... mas, na segunda-feira, mal foi capaz de me fitar nos olhos.
- Ele se sente culpado por alguma coisa - disse Gwenda no mesmo instante.
- Provavelmente tem alguma relação com Elizabeth Clerk. Ela sempre andou de olho em Merthin, embora seja uma vaca fria e velha demais para ele.
- Você e Merthin já fizeram?
- Fizemos o quê?
- Você sabe... quando eu era pequena, costumava chamar de grunhido, porque era esse o ruído que os adultos soltavam quando faziam.
-Ah, isso? Não... ainda não.
- Por que não?
- Não sei...
- Não tem vontade de fazer?
- Tenho, mas... não se preocupa em passar sua vida fazendo o que algum homem manda?
Gwenda deu de ombros.
- Não gosto da idéia, mas também não me preocupo com isso.
- E você? Já fez algum dia?
- Não fiz direito. Disse sim para um garoto da aldeia próxima, há alguns anos, só para ver como era. Dá um calor por dentro, como beber vinho. Essa foi a única vez. Mas deixaria Wulfric fazer a qualquer momento em que ele quisesse.
- Wulfric? Isso é novidade!
- Sei disso. E falo sério. Eu o conheço desde que éramos pequenos, quando ele costumava puxar meus cabelos e correr. Até que um dia, logo depois do Natal, olhei para ele, quando entrou na igreja, e descobri que se tornara um homem. E não apenas um homem... um homem deslumbrante. Tinha neve nos cabelos, um lenço da cor de mostarda em torno do pescoço... e parecia radiante.
- Você o ama?
Gwenda suspirou. Não sabia como dizer o que sentia. Não era apenas amor. Pensava em Wulfric durante todo o tempo, e não sabia como poderia viver sem ele. Sonhava em seqüestrá-lo e mantê-lo trancafiado numa cabana no fundo da floresta, para que nunca mais pudesse escapar dela.
- A expressão em seu rosto responde à pergunta - comentou Caris. - Ele a ama?
Gwenda sacudiu a cabeça.
- Wulfric nem fala comigo. Gostaria que ele fizesse alguma coisa para mostrar que sabe quem eu sou, mesmo que fosse apenas puxar meus cabelos. Mas ele é apaixonado por Annet, a filha de Perkin. Ela é uma vaca egoísta, mas Wulfric a adora. O pai dela e o dele são os dois homens mais ricos da aldeia. O pai de Annet cria e vende galinhas poedeiras, enquanto o pai de Wulfric tem cinqüenta acres.
- Fala como se não houvesse qualquer esperança.
- Sempre há uma esperança. Tudo pode acontecer, não é mesmo? Annet pode morrer. Wulfric pode compreender de repente que sempre me amou. Meu pai pode ser feito conde e ordenar que ele case comigo.
Caris sorriu.
- Tem razão. No amor, sempre há uma esperança. Eu gostaria de conhecer esse rapaz.
Gwenda levantou-se.
- Era o que eu esperava que você dissesse. Vamos sair e procurá-lo.
As duas deixaram a casa, seguidas pelos cachorros. As tempestades que castigaram a cidade no início da semana já deram lugar a chuvas ocasionais, mas a rua principal ainda era um rio de lama. Por causa da feira, a lama se misturava com o esterco de animais, legumes podres e toda a sujeira e imundície de mil visitantes.
Enquanto passavam pelas poças repugnantes, Caris perguntou sobre a família de Gwenda.
- A vaca morreu. O pai precisa comprar outra, mas não sei como ele vai conseguir. Só tem algumas peles de esquilo para vender.
- Uma vaca custa doze shillings este ano - informou Caris, preocupada. - Dá cento e quarenta e quatro pennies de prata.
Caris sempre fazia de cabeça os cálculos aritméticos; aprendera os alCarismos árabes com Buonaventura Caroli, e dizia que eles tornavam tudo mais fácil.
- Aquela vaca nos manteve vivos durante os últimos invernos... especialmente os pequenos.
A dor da fome extrema era familiar para Gwenda. Mesmo com a vaca para dar leite, quatro dos bebês da mãe haviam morrido. Não era de admirar que Philemon ansiasse em ser monge, pensou ela: valia quase qualquer sacrifício para ter refeições fartas todos os dias, sem falta.
- O que seu pai vai fazer? - perguntou Caris.
- Alguma coisa furtiva. É difícil roubar uma vaca... não se pode escondê-la na bolsa... mas ele vai encontrar algum plano astucioso.
Gwenda falava mais confiante do que se sentia. O pai era desonesto, mas não muito inteligente. Faria qualquer coisa que pudesse, legal ou não, para conseguir outra vaca, mas poderia fracassar.
Elas passaram pelos portões do priorado e entraram no extenso pátio em que se realizava a feira. Os mercadores estavam molhados e desolados, no sexto dia de mau tempo. Haviam exposto suas mercadorias à chuva, e ganharam pouco em retorno.
Gwenda sentia-se embaraçada. Ela e Caris quase nunca falavam sobre a disparidade de riqueza entre as duas famílias. Cada vez que Gwenda visitava-a, Caris encontrava um jeito discreto de dar um presente que a amiga poderia levar para casa: um queijo, um peixe defumado, uma peça de fazenda, um pote de mel. Gwenda agradecia - e se sentia profundamente grata - mas não dizia mais nada a respeito. Quando o pai propunha que ela aproveitasse a confiança de Caris para roubar da casa, Gwenda argumentava que nesse caso nunca mais poderia fazer outra visita, enquanto que assim sempre levava alguma coisa para casa duas ou três vezes por ano. Até mesmo o pai podia perceber que havia sentido nisso.
Gwenda procurou pelo estande em que Perkin estaria vendendo suas galinhas. Provavelmente encontraria Annet ali... e onde Annet se encontrava, Wulfric pairava por perto. Gwenda tinha razão. Lá estava Perkin, gordo e insinuante, sempre polido com os fregueses, grosseiro com todos os outros.
Annet segurava uma bandeja com ovos, sorrindo coquete. A bandeja comprimia o vestido contra os seios, fios dos cabelos louros se soltavam do chapéu para esvoaçar em torno das faces rosadas e do pescoço comprido. E lá estava também Wulfric, como um arcanjo que errara o caminho e vagueava entre a humanidade por engano.
- Ali está ele - murmurou Gwenda. - O alto com...
- Já sei quem é - disse Caris. - Ele tem mesmo uma aparência fascinante.
- Entende agora o que eu quis dizer.
- Ele não é um pouco jovem? a
- Tem dezesseis anos. Eu estou com dezoito. E Annet também tem dezoito.
- Está bem.
- Sei o que pensa, Caris. Ele é bonito demais para mim.
- Não...
- Os homens bonitos nunca se apaixonam pelas mulheres feias, não é mesmo?
-Você não é feia...
- Já me vi num espelho. - A lembrança era tão dolorosa que Gwenda fez uma careta. - Chorei quando descobri como parecia. Tenho um nariz grande e os olhos muito juntos. Pareço com meu pai.
- Você tem lindos olhos castanhos e cabelos maravilhosos - protestou Caris.
- Mas não estou à altura de Wulfric.
Wulfric estava de lado. Gwenda e Caris tinham uma boa visão de seu perfil. Admiraram-no por um momento... até que ele se virou. Gwenda soltou um grito de espanto. O outro lado do rosto de Wulfric era completamente diferente: inchado, cheio de equimoses, com o olho fechado. Ela correu para ele.
- O que aconteceu com você? Ele teve um sobressalto.
- Olá, Gwenda. Tive uma briga.
Wulfric virou-se um pouco, obviamente embaraçado.
- Com quem?
- Um pajem do conde.
- Você ficou ferido!
Ele se mostrou impaciente.
- Não se preocupe. Estou bem.
Wulfric, é claro, não entendia por que ela se mostrava tão preocupada. Talvez até pensasse que Gwenda exultava com seu infortúnio. Caris perguntou:
- Que pajem?
Wulfric fitou-a com interesse, percebendo pelo vestido que era uma mulher rica.
- O nome dele é Ralph Fitzgerald.
- Oh... o irmão de Merthin! - exclamou Caris. - Ele ficou ferido?
- Quebrei seu nariz - respondeu Wulfric, orgulhoso.
- E não foi punido?
- Uma noite no tronco.
Gwenda soltou um grito de angústia.
- Wolfric coitado!
- Não foi tão ruim assim. Meu irmão providenciou para que ninguém jogasse nada em mim.
- Mesmo assim...
Gwenda sentia-se horrorizada. A idéia de ser aprisionada de qualquer forma parecia-lhe o pior tipo de tortura. Annet terminou de atender um freguês e entrou na conversa.
- Oh, é você, Gwenda...
Ela falou com frieza. Wulfric podia ignorar os sentimentos de Gwenda, mas Annet os percebia. Por isso, tratava Gwenda com uma mistura de hostilidade e desdém.
- Wulfric brigou com um pajem que me insultou - acrescentou ela, incapaz de esconder sua satisfação. - Foi como um cavaleiro numa balada.
- Eu não gostaria que ele ficasse com o rosto todo machucado por minha causa - comentou Gwenda, áspera.
- Felizmente, não é provável que isso aconteça, não é mesmo? Annet sorriu, triunfante. Caris interveio:
- Nunca se sabe o que o futuro nos reserva.
Annet fitou-a, surpresa com a interrupção; e ficou ainda mais surpresa ao descobrir que a companheira de Gwenda usava um vestido tão caro. Caris pegou o braço de Gwenda.
- Foi um prazer conhecer vocês de Wigleigh - disse ela, graciosa. - Adeus. Elas se afastaram. Gwenda soltou uma risada.
- Você foi um bocado condescendente com Annet.
- Ela me irritou. Seu tipo dá uma péssima reputação às mulheres.
- Annet ficou satisfeita por Wulfric ter sido espancado por sua causa. Tive vontade de arrancar seus olhos.
Caris perguntou, pensativa:
- Além de bonito, como ele é?
- Forte, orgulhoso, leal... o tipo de homem capaz de se meter numa briga em defesa de outra pessoa. Mas também é o tipo de homem que proverá sua família, ano após ano, incansável, até cair morto.
Caris não disse nada. Gwenda acrescentou:
- Não se sentiu atraída, não é?
- Pela maneira como você fala, é um homem insípido.
- Se tivesse sido criada por meu pai, não acharia que um bom provedor é insípido.
- Eu sei. - Caris apertou o braço de Gwenda. - Acho que ele é maravilhoso para você... e, para provar, vou ajudá-la a conquistá-lo.
Gwenda não esperava por isso.
- Como?
- Venha comigo.
Deixaram a feira e seguiram para a extremidade norte da cidade. Caris levou Gwenda para uma pequena casa numa rua transversal, perto da igreja paroquial de St. Mark.
- Uma curandeira vive aqui - murmurou Caris. - Ela sabe tudo.
As duas deixaram os cachorros do lado de fora e passaram pela porta baixa. O único cômodo do primeiro andar era estreito, dividido por uma cortina. Na metade da frente, havia um banco e uma cadeira. A lareira devia ficar no outro lado, pensou Gwenda, sem entender por que alguém haveria de querer esconder o que acontecia na cozinha. O lugar era limpo, com um cheiro forte, parecendo de ervas, um pouco ácido, mas não desagradável. Caris chamou:
- Mattie, sou eu!
Depois de um momento, uma mulher em torno dos quarenta anos puxou a cortina para o lado e se adiantou. Tinha os cabelos grisalhos e a pele pálida de quem não costumava sair de casa. Sorriu quando viu Caris. Lançou um olhar para Gwenda e disse:
- Vejo que sua amiga está apaixonada... mas o rapaz mal fala com ela. Gwenda ficou aturdida.
- Como soube?
Mattie arriou na cadeira; era corpulenta e tinha dificuldade para respirar.
- As pessoas me procuram por três razões: doença, vingança e amor. Você parece saudável, e é muito jovem para a vingança. Portanto, deve estar apaixonada. E o rapaz deve se mostrar indiferente, caso contrário não precisaria de minha ajuda.
Gwenda olhou para Caris, que parecia satisfeita e comentou:
- Eu disse que ela sabia tudo.
As duas sentaram no banco e fitaram a mulher com expectativa. Mattie continuou:
- Ele mora perto de você, provavelmente na mesma aldeia, mas tem uma família mais rica.
- Tudo isso é verdade.
Gwenda estava impressionada. Não havia a menor dúvida de que Mattie adivinhava, mas era tão precisa que parecia dotada de uma segunda visão.
- Ele é bonito?
- Muito.
- Mas é apaixonado pela garota mais bonita da aldeia.
- Para quem gosta do tipo.
- E a família dela também é mais rica do que a sua.
- É, sim.
Mattie acenou com a cabeça.
- Uma história familiar. Posso ajudá-la. Você deve compreender uma coisa. Não tenho nada a ver com o mundo dos espíritos. Só Deus pode fazer milagres.
Gwenda ficou perplexa. Todos sabiam que os espíritos dos mortos controlavam todos os acasos da vida. Se ficavam satisfeitos com você, faziam os coelhos correrem direto para suas armadilhas, davam bebês saudáveis, e providenciavam para que o sol brilhasse no trigo amadurecendo. Mas se você fazia alguma coisa para enfurecê-los, podiam pôr bichos em suas maçãs, fazer sua vaca parir um bezerro deformado, e deixar seu marido impotente. Até mesmo os médicos no priorado admitiam que as orações para os santos eram mais eficazes que seus tratamentos.
- Não se desespere - acrescentou Mattie. - Posso vimder-lhe uma poção de amor.
- Sinto muito, mas não tenho dinheiro.
- Sei disso. Mas sua amiga Caris gosta muito de você e quer que seja feliz. Veio aqui disposta a pagar pela poção. Mas você deve administrá-la corretamente. Pode ficar a sós com o rapaz por uma hora?
- Darei um jeito.
- Ponha a poção na bebida dele. Não vai demorar muito para que ele se torne amoroso. É quando deve ficar a sós com ele... se houver outra mulher presente, o rapaz pode se apaixonar por ela. Por isso, mantenha-o longe das outras, e seja doce. Ele vai achar que você é a mulher mais desejável do mundo. Beije-o, diga que ele é maravilhoso e, se quiser, faça amor. Depois de algum tempo, ele dormirá. Quando acordar, vai se lembrar que passou a hora mais feliz de sua vida em seus braços... e vai querer fazer de novo, o mais depressa que puder.
- Mas não precisarei de outra dose?
- Não. Na segunda vez, seu amor, desejo e feminilidade serão suficientes. Uma mulher pode fazer qualquer homem muito feliz se ele lhe der a oportunidade.
O simples pensamento deixou Gwenda cheia de desejo.
- Mal posso esperar.
- Então vamos preparar a mistura. - Mattie levantou-se. - Podem vir comigo. Gwenda e Caris passaram para o outro lado da cortina, enquanto ela explicava:
- Só mantenho a cortina para as pessoas ignorantes.
A cozinha tinha um chão de pedra limpo e uma enorme lareira, com suportes e ganchos para os caldeirões, muito mais do que uma mulher precisaria para sua própria alimentação. Havia uma mesa velha e pesada, toda manchada e queimada, mas muito limpa; uma prateleira com uma fileira de potes de cerâmica; e um armário trancado, que devia conter os ingredientes mais preciosos das poções de Mattie. Havia uma grande lousa pendurada na parede, com números e letras rabiscados, presumivelmente as receitas.
- Por que precisa esconder tudo isso por trás de uma cortina? - indagou Gwenda.
- Um homem que faz ungüentos e medicamentos é chamado de boticário, mas uma mulher que faz a mesma coisa corre o risco de ser chamada de bruxa. Há uma mulher na cidade que é chamada de Crazy Nell. Ela anda por toda parte gritando sobre o demônio. Frei Murdo acusou-a de heresia. Nell é louca, sem dúvida, mas não faz mal a ninguém. Mesmo assim, Murdo insiste num julgamento. Os homens gostam de matar uma mulher de vez em quando, e Murdo oferece uma desculpa para isso. Depois, vai cobrar seus pennies como esmolas. É por isso que eu digo às pessoas que só Deus faz milagres. Não conjuro espíritos. Apenas uso as ervas da floresta e meus poderes de observação.
Enquanto Mattie falava, Caris movimentava-se pela cozinha, tão à vontade como se estivesse em casa. Pôs uma tigela para mistura e um frasco na mesa. Mattie entregou-lhe uma chave, e ela abriu o armário.
- Ponha três gotas de essência de papoula numa colher de vinho destilado disse Mattie. - Devemos ter cuidado para não fazer a mistura forte demais, ou ele dormirá antes de chegar o momento.
Gwenda estava espantada.
- Você vai fazer a poção, Caris?
- Às vezes ajudo Mattie; mas não diga nada a Petranilla, que desaprovaria.
- Eu não diria nada a ela mesmo que seus cabelos estivessem pegando fogo.
A tia de Caris detestava Gwenda, provavelmente pela mesma razão por que desaprovaria Mattie: elas pertenciam às classes inferiores, e essas coisas eram importantes para Petranilla.
Mas por que Caris, a filha de um homem rico, trabalhava como aprendiz na cozinha de uma curandeira numa rua transversal? Enquanto Caris preparava a mistura, Gwenda recordou que a amiga sempre se sentira atraída por doenças e curas. Quando pequena, Caris queria ser médica, sem entender que apenas os padres tinham permissão para estudar medicina. Gwenda ainda recordava a indagação de Caris quando sua mãe morrera:
- Mas por que as pessoas têm de ficar doentes?
Madre Cecilia dissera que era por causa do pecado; Edmund dissera que ninguém realmente sabia. Nenhuma das respostas satisfizera Caris. Talvez ela ainda procurasse a resposta ali, na cozinha de Mattie.
Caris despejou o líquido num pequeno frasco, tapou-o, e prendeu a tampa com um barbante, atando as extremidades com um nó. Entregou o frasco a Gwenda.
Gwenda guardou-o na bolsa de couro em sua cintura. Especulou como faria para ficar a sós com Wulfric durante uma hora. Dissera num súbito impulso que daria um jeito, mas, agora que tinha a poção do amor, compreendia que a tarefa era quase impossível. Wulfric mostrava-se irrequieto se ela apenas falava com ele. Queria ficar com Annet em todos os seus momentos de folga. Que razão Gwenda poderia apresentar para ficar a sós com ele? Quero lhe mostrar um lugar em que podemos conseguir ovos de patas selvagens. Mas por que ela mostraria a Wulfric e não a seu pai? Wulfric podia ser um pouco ingênuo, mas não era estúpido: saberia que ela estava tramando alguma coisa.
Caris deu doze pennies de prata a Mattie... duas semanas de salário para o pai. Gwenda disse:
- Obrigada, Caris. Espero que você compareça ao meu casamento. Caris riu.
- É isso que eu gosto de ver... confiança!
As duas deixaram a casa de Mattie. Voltaram para a feira. Gwenda decidira começar por descobrir onde Wulfric se hospedava. Sua família tinha uma boa situação e não podia alegar pobreza. Portanto, não devia estar de graça no priorado. Era bem provável que estivessem em alguma estalagem. Gwenda poderia perguntar a ele, ou a seu irmão, e seguir com uma pergunta sobre o nível das acomodações, como se estivesse interessada em descobrir qual das muitas estalagens da cidade era melhor.
Um monge passou, e Gwenda se lembrou, com um sobressalto de culpa, que nem mesmo pensara em procurar o irmão, Philemon. O pai não o visitaria, pois havia anos que se odiavam; mas Gwenda gostava dele. Sabia que o irmão era furtivo, insincero e maldoso, mas mesmo assim o amava. Haviam passado juntos muitos invernos de fome. Trataria de procurá-lo mais tarde, decidiu, depois que tornasse a se encontrar com Wulfric
Mas antes que alcançassem o pátio da feira, encontraram o pai de Gwenda.
Joby estava quase nos portões do priorado, fora da Bell. Era acompanhado por um homem de aparência rude, numa túnica amarela, com uma mochila nas costas... e uma vaca marrom. Ele acenou para que Gwenda se aproximasse.
- Encontrei uma vaca.
Gwenda examinou a vaca. Devia ter dois anos de idade, era magra, com um jeito impaciente, mas parecia saudável.
- Parece boa - murmurou ela.
- Este é Sim Chapman.
O pai acenou com o polegar para o homem de túnica amarela. Um chapman, ou mascate, viajava de aldeia em aldeia vendendo pequenos artigos, como agulhas, fivelas de cinto, espelhos de mão, escovas. O homem talvez tivesse roubado a vaca, mas isso não incomodaria o pai, se o preço fosse certo. Gwenda perguntou ao pai:
- Onde arrumou o dinheiro?
- Não vou exatamente pagar - respondeu o pai, evasivo. Gwenda já imaginava que ele tinha algum plano.
- O que então pretende fazer?
- É mais uma troca.
- O que dará em troca pela vaca?
- Você.
- Não diga bobagem.
Foi nesse instante que ela sentiu um laço de corda ser enfiado pela cabeça e apertar seu corpo, imobilizando os braços nos lados.
Ficou atordoada. Aquilo não podia estar acontecendo. Debateu-se para se desvencilhar da corda, mas Sim apertou o laço ainda mais.
- Não crie problemas - resmungou o pai.
Gwenda não podia acreditar que ele estivesse falando sério.
- O que você pensa que está fazendo? - indagou ela, incrédula. - Não pode me vender, seu idiota!
- Sim precisa de uma mulher, e eu preciso de uma vaca - explicou o pai. - É muito simples.
Sim falou pela primeira vez:
- Ela é bastante feia, sua filha.
- Isso é um absurdo! - exclamou Gwenda. Sim sorriu para ela.
- Não se preocupe, Gwenda. Serei bom para você, enquanto se comportar e fizer tudo o que eu mandar.
Eles falavam sério, compreendeu Gwenda. Pensavam mesmo que podiam fazer aquele tipo de troca. Uma agulha fria de medo penetrou em seu coração ao constatar que isso podia mesmo acontecer. Caris interveio, a voz alta e firme:
- Essa brincadeira já foi longe demais. Solte Ctwenda agora mesmo. Sim não se intimidou com seu ar de autoridade.
- K quem é você, para dar ordens?
- Meu pai é regedor da guilda da paróquia.
- Mas você não é - declarou Sim. - E, mesmo que fosse, não teria autoridade sobre mim ou meu amigo Joby.
- Não podem trocar uma garota por uma vaca!
- Por que não? - indagou Sim. - A vaca é minha, e a garota é filha dele.
As vozes elevadas atraíram a atenção de pessoas que passavam por ali. Algumas pararam e olharam para a jovem amarrada. Alguém perguntou:
- O que está acontecendo? Outra pessoa explicou:
- Ele vendeu a filha por uma vaca.
Gwenda viu uma expressão de pânico surgir no rosto do pai. Ele gostaria que tudo fosse discreto... e não fora bastante esperto para prever a reação pública. Gwenda compreendeu que os espectadores poderiam ser sua única esperança. Caris acenou para um monge que passava pelos portões do priorado.
- Irmão Godwyn! Venha acertar uma disputa, por favor! - Ela olhou para Sim, triunfante. - O priorado tem jurisdição sobre todos os negócios realizados na Feira do Velocino. O irmão Godwyn é o sacristão. Acho que terá de aceitar sua autoridade.
- Olá, prima Caris - disse Godwyn. - Qual é o problema? Sim soltou um grunhido de repulsa.
- Seu primo?
Godwyn lançou-lhe um olhar gelado.
- Qualquer que seja a disputa aqui, tentarei dar um julgamento justo, como um homem de Deus... pode contar com isso.
- Fico muito contente por ouvir isso, senhor - disse Sim, com uma atitude subserviente.
Joby também se mostrou untuoso.
- Eu o conheço, irmão. Meu filho Philemon é devotado à sua pessoa. Sempre foi a alma da bondade com ele.
- Já chega de conversa - disse Godwyn. - O que está acontecendo?
- Joby quer vender Gwenda por uma vaca - explicou Caris. - Diga a ele que não pode fazer isso.
- Ela é minha filha, senhor, tem dezoito anos e é uma donzela - protestou Joby. - Portanto, é minha para eu fazer o que quiser.
- Mesmo assim, parece vergonhoso vender as próprias crianças - comentou Godwyn.
Joby tornou-se patético.
- Eu não faria isso, senhor, se não tivesse mais três em casa, e sou um trabalhador sem terra que não tem meios de alimentar as crianças durante o inverno, a menos que tenha uma vaca, e nossa velha vaca morreu.
Houve murmúrios de simpatia na crescente multidão. Todos conheciam as dificuldades do inverno, e os extremos a que um homem tinha de chegar para alimentar a família. Gwenda começou a se desesperar.
- Vergonhoso pode achar, irmão Godwyn, mas é um pecado? - indagou Sim. Ele falava como se já soubesse a resposta. Gwenda imaginou que ele já tivera aquela discussão antes, num lugar diferente. Com óbvia relutância, Godwyn disse:
- A Bíblia parece sancionar a venda de uma filha para a escravidão. Livro do Êxodo, capítulo vinte e um.
- Pois aí está! - disse Joby. - É um ato cristão! Caris estava indignada.
- O livro do Êxodo! - exclamou ela, desdenhosa. jfo Uma das espectadoras entrou na discussão: i
- Não somos filhas de Israel!
Era uma mulher baixa e atarracada, dentuça, o que proporcionava a seu queixo uma aparência determinada. Embora vestida pobremente, era decidida. Gwenda reconheceu-a como Madge, a esposa de Mark Webber.
- Não há escravidão hoje em dia - acrescentou Madge.
- E os aprendizes, que não têm pagamentos e podem ser espancados por seus mestres? - indagou Sim. - Ou os noviços, monges e freiras? Ou as criadas por casa e comida nos palácios da nobreza?
- A vida pode ser difícil, mas eles não podem ser comprados e vendidos... não é mesmo, irmão Godwyn? - insistiu Madge.
- Não digo que o negócio é legal - respondeu Godwyn. - Estudei medicina em Oxford, não o direito. Mas não posso encontrar nenhuma razão, nas Sagradas Escrituras ou nos ensinamentos da Igreja, para dizer que é pecado o que esses homens estão fazendo.
Ele olhou para Caris, deu de ombros, e acrescentou:
- Sinto muito, prima.
Madge Webber cruzou os braços.
- E então, mascate, como vai tirar essa moça da cidade?
- Na ponta de uma corda - disse ele. - Da mesma maneira como entrei com a vaca.
- Mas não teve de passar com a vaca por mim e por essas pessoas.
O coração de Gwenda disparou em esperança. Não sabia quantos espectadores a apoiavam; mas se houvesse uma luta, era mais provável que ficassem do lado de Madge, uma moradora da cidade, do que de Sim, um forasteiro.
- Já lidei com mulheres obstinadas antes - disse Sim, os lábios se contraindo em desdém. - Nunca me deram qualquer problema.
Madge pôs a mão na corda.
- Talvez você tivesse sorte. Ele deu um puxão na corda.
- Tire as mãos da minha propriedade e não vai se machucar. Deliberadamente, Madge pôs a mão no ombro de Gwenda.
Sim empurrou-a, e ela cambaleou para trás; mas houve um murmúrio de protesto da multidão. Alguém comentou:
- Você não faria isso se visse o marido dela.
Houve uma onda de risadas. Gwenda recordou Mark, o marido de Madge, um gigante gentil. Se ao menos ele aparecesse!
Mas foi John Constable quem chegou, o faro bem desenvolvido para encrencjs levando-o a qualquer multidão, quase que no momento mesmo em que se formava.
- Não queremos empurrões aqui - disse ele. - Está causando problemas, mascate?
Gwenda tornou a ficar esperançosa. Os mascates tinham uma péssima reputação, e o constable estava presumindo que era Sim o causador do problema.
Sim tornou-se subserviente, uma atitude que obviamente podia assumir mais depressa do que trocar de chapéu.
- Peço perdão, mestre Constable. Mas quando um homem paga o preço acertado por sua compra, deve ter permissão para deixar Kingsbridge com a mercadoria intacta.
- Claro. - John não podia deixar de concordar. Uma cidade-mercado dependia de sua reputação de negócios justos. - Mas o que você comprou?
- Esta moça.
- Hum... -John se mostrou pensativo. - Quem a vendeu?
- Eu vendi - declarou Joby. - Sou o pai.
- E essa mulher de queixo grande ameaçou tirar a moça de mim - acrescentou Sim.
- É isso mesmo - disse Madge. - Pois nunca ouvi falar de nenhuma mulher sendo comprada e vendida no mercado de Kingsbridge, nem ninguém por aqui ouviu.
- Um homem pode fazer o que quiser com sua filha - insistiu Joby, correndo os olhos pela multidão, suplicante. - Há alguém aqui que discorde disso?
Gwenda sabia que ninguém discordaria. Algumas pessoas tratavam as crianças com bondade, algumas com rigor, mas todas concordavam que o pai devia ter poder absoluto sobre os filhos. Ela explodiu, furiosa:
- Vocês não ficariam parados aí, surdos e mudos, se tivessem um pai como ele. Quantos de vocês foram vendidos por seus pais? Quantos de vocês foram obrigados a roubar desde crianças, quando tinham mãos pequenas para entrarem nas bolsas das pessoas?
Joby começou a se mostrar preocupado.
- Ela está delirando agora, mestre Constable - disse ele. - Nenhuma criança minha jamais roubou.
- Isso não importa - declarou John. - Quero que todos prestem atenção. Tomarei uma decisão sobre o caso. Os que discordarem de minha decisão podem se queixar ao prior. Se houver algum empurrão ou outra atitude agressiva de qualquer pessoa, prenderei todos os envolvidos. Espero ter sido bem claro.
Ele olhou ao redor, beligerante. Ninguém falou todos estavam ansiosos por ouvir sua decisão.
- Não conheço nenhuma razão para que esse comércio seja ilegal. Portanto, Sim Chapman tem permissão para ir embora com a garota.
- Eu não disse...
- Feche esta maldita boca, Joby, seu idiota - interrompeu-o John. - Sim, trate de ir embora e depressa. Madge Webber, se erguer a mão, eu a porei no tronco, e seu marido não vai me impedir.
Não quero ouvir nenhuma palavra sua, Caris Woo ler, por favor... pode se queixar de mim a seu pai, se quiser.
Antes mesmo que John acabasse de falar, Sim deu um puxão na corda (ivvenda inclinou-se para a frente, e estendeu um pé para não cair; e depois, de alguma forma, estava andando pela rua, cambaleando, meio correndo. Pelo canto do olho, percebeu que Caris a acompanhava. Até que John Constable agarrou pelo braço; ela virou-se para protestar e, um momento depois, Gwenda não pode mais vê-la.
Sim foi andando depressa pela lamacenta rua principal, puxando a corda, sempre mantendo Gwenda meio desequilibrada. Ao se aproximarem da ponte, ela começou a se sentir desesperada. Tentou puxar a corda também, mas Sim reagiu com um puxão ainda mais forte, que a jogou na lama. Como ainda tinha os braços imobilizados, ela não podia usar as mãos para se proteger. Caiu de frente, machucando o peito, o rosto afundando na lama. Levantou-se com a maior dificuldade, e desistiu de qualquer resistência. Estava amarrada como um animal, machucada, assustada, coberta de lama imunda. Cambaleou atrás de seu novo dono, atravessou a ponte, e seguiu pela estrada que levava à floresta.
Sim Chapman levou Gwenda através do subúrbio de Newtown, até a encruzilhada conhecida como Gallows Cross, a encruzilhada da forca, onde os criminosos eram enforcados. Ah, ele pegou a estrada para o sul, na direção de Wigleigh. Amarrou a corda em seu pulso para que Gwenda não pudesse escapar, mesmo quando sua atenção vagueasse. O cachorro, Skip, seguiu-os. Mas Sim jogou algumas pedras, e depois que uma acertou seu focinho, Skip recuou, com o rabo entre as pernas.
Depois de vários quilômetros, quando o sol começou a se pôr, Sim entrou na floresta. Gwenda não vira nada diferente na beira da estrada para marcar o lugar, mas Sim parecia ter escolhido com todo cuidado, porque encontraram uma trilha de pois de umas poucas centenas de passos entre as árvores. Ao baixar os olhos, Gwenda viu as impressões de dezenas de pequenos cascos na terra, e compreendeu que era uma trilha de veados. Levaria até a água, pensou ela. E não demorou muito para alcançarem um pequeno córrego, a vegetação pisoteada em lama dos dois lados.
Sim ajoelhou-se ao lado do córrego, encheu de água as mãos em concha e bebeu. Levantou a corda, para que ficasse em torno do pescoço de Gwenda, deixando suas mãos livres. Ele gesticulou para a água.
Ela limpou as mãos e depois bebeu, sedenta.
- Lave o rosto - ordenou Sim. - Você já é bastante feia por natureza.
Gwenda obedeceu, especulando cansada por que ele se importava com sua aparência.
A trilha continuava pelo outro lado do córrego. Retomaram a caminhada. Gwenda era forte, capaz de andar durante o dia inteiro, mas estava derrotada, desesperada e apavorada, o que fazia com que se sentisse exausta.
Qualquer que fosse o destino que a aguardava, provavelmente era pior do que aquilo; mesmo assim, ela ansiava em chegar, só para poder sentar.
O crepúsculo começava. A trilha dos veados serpenteou entre as árvores por mais um quilômetro e meio, até desaparecer na base de uma colina. Sim parou ao lado de um carvalho enorme e soltou um assovio baixo. Poucos momentos depois, um vulto surgiu do meio das moitas.
- Tudo bem, Sim?
- Tudo bem, Jed.
- O que você tem aí... uma rameira?
- Terá direito de comer também, Jed, junto com os outros, se tiver seis pennies.
Gwenda compreendeu o que Sim planejara. da prostituí-la. A descoberta atingiu-a como um golpe violento. Ela cambaleou e caiu de joelhos.
- Seis pennies, hein? - A voz de Jed parecia vir de muito longe, mas ainda assim ela pôde perceber o excitamento. - Que idade ela tem?
- O pai alegou que ela tinha dezoito anos. - Sim deu um puxão na corda. Levante, sua vaca preguiçosa. Ainda não chegamos.
Gwenda levantou-se. Era por isso que ele queria que eu lavasse o rosto, pensou ela; e, por alguma razão, a compreensão fê-la chorar.
E continuou a chorar, desesperada, na esteira de Sim, até que alcançaram uma clareira, com uma fogueira no meio. Através das lágrimas, ela percebeu quinze ou vinte pessoas deitadas em torno da beira da clareira, a maior parte envolta por cobertores ou mantos. Quase todos que a observaram, à luz da fogueira, eram homens, mas ela também avistou um rosto branco de mulher, a expressão dura; a mulher fitou-a apenas por um instante, antes de desaparecer nas cobertas esfarrapadas. Um barril de vinho virado e uma porção de canecas de madeira espalhadas ao redor indicavam que acontecera ali uma festa de bêbados.
Gwenda compreendeu que Sim a trouxera para um covil de bandidos.
Ela soltou um gemido. A quantos seria obrigada a se submeter?
E, no instante mesmo em que formulou a pergunta, ela teve certeza da resposta: a todos eles.
Sim arrastou-a através da clareira até um homem que estava sentado no chão, encostado numa árvore.
- Tudo bem, Tam - disse Sim.
Gwenda compreendeu no mesmo instante quem devia ser o homem: o mais famoso bandido do condado, chamado de Tam Hiding. Tinha um rosto bonito, embora avermelhado pela bebida. As pessoas diziam que ele nascera nobre, mas era o que sempre comentavam sobre os bandidos famosos. Ao observá-lo, Gwenda ficou surpresa com sua juventude: devia ter vinte e poucos anos. Mas, como matar um fora-da-lei não era crime, era provável que poucos vivessem para ser velhos.
- Tudo bem, Sim.
- Troquei a vaca de Alwyn por uma garota.
- Bom trabalho.
A voz de Tam estava apenas um pouco engrolada.
- Vamos cobrar seis pennies ao pessoal, mas é claro que você pode ter de graça. Achei que gostaria de ser o primeiro.
Tam examinou-a, com os olhos injetados. Talvez fosse apenas sua ansiedade, mas Gwenda imaginou que viu uma sugestão de compaixão nos olhos dele.
- Não, obrigado, Sim. Pode ir em frente e deixar os outros se divertirem. Talvez você queira deixar para amanhã. Tiramos um barril de bom vinho de dois monges a caminho de Kingsbridge, e quase todos estão mortos de tão bêbados agora.
O coração de Gwenda disparou em esperança. Talvez sua tortura fosse adiada.
- Terei de consultar Alwyn - disse Sim, hesitante. - Obrigado, Tam.
Ele se afastou, puxando Gwenda. A poucos passos de distância, um homem de ombros largos fez um tremendo esforço para se levantar. Sim disse:
- Tudo bem, Alwyn.
A expressão parecia servir aos bandidos como um cumprimento e um código de reconhecimento. Alwyn estava na fase mal-humorada da embriaguez.
- O que você tem aí?
- Uma garota nova.
Alwyn levantou o queixo de Gwenda, apertando com uma força desnecessária, e virou seu rosto para o clarão da fogueira. Ela foi obrigada a fitá-lo nos olhos. O homem era jovem, como Tam Hiding, mas com a mesma aparência doentia de uma vida desregrada. Sua respiração fedia a bebida.
- Por Cristo, você pegou uma feia.
Por uma vez, Gwenda sentiu-se feliz por ser considerada feia: talvez Alwyn não quisesse fazer nada com ela.
- Peguei o que encontrei - resmungou Sim, irritado. - Se o homem tivesse uma filha bonita, não a venderia por uma vaca, não é mesmo? Em vez disso, ele a casaria com o filho de um rico mercador de lã.
O pensamento do pai deixou Gwenda furiosa. Ele deveria saber, ou pelo menos desconfiar, que aquilo aconteceria. Como fora capaz de fazer isso com ela?
- Isso não importa - declarou Alwyn. - Com apenas duas mulheres no grupo, muitos estão desesperados.
- Tam disse que devemos esperar até amanhã, porque todos estão bêbados demais esta noite... mas depende de você.
- Tam está certo. A metade já dormiu.
O medo de Gwenda diminuiu um pouco. Qualquer coisa poderia acontecer durante a noite.
- Combinado. Também estou exausto. - Ele olhou para Gwenda. - Deite, você.
Sim nunca a chamava pelo nome. Ela deitou, e Sim usou a corda para amarrar seus pés e as mãos nas costas. Ele e Alwyn deitaram ao seu lado. Em poucos momentos, os dois estavam dormindo.
Gwenda sentia-se exausta, mas não pensava em dormir. Com os braços nas costas, todas as posições eram dolorosas. Tentou mexer os pulsos dentro da corda, mas Sim apertara com força e dera um nó firme.
Só conseguiu ficar esfolada, de tanto que a corda roçou em sua carne.
O desespero transformou-se em raiva impotente. Imaginou a vingança contra seus captores, açoitando-os com um chicote, enquanto se encolhiam apavorados à sua frente. Era uma fantasia inútil. Ela fez um esforço para se concentrar em meios práticos de fuga.
Primeiro, teria de fazer com que a desamarrassem. Isso feito, trataria de escapar. Em termos ideais, cuidaria para que não pudessem segui-la e recapturá-la.
Parecia impossível.
Gwenda sentia frio quando acordou. Era o meio do verão, mas esfriava durante a noite, e ela não tinha nada para se proteger, exceto o vestido leve. O céu começava a passar de preto para cinzento. Ela correu os olhos pela clareira, na semi-escuridão: ninguém se mexia.
Precisava fazer pipi. Pensou em fazer ali mesmo, deixar o vestido encharcado. Quanto mais ficasse repulsiva, melhor. Mas ela descartou a idéia quase no instante mesmo em que lhe ocorreu. Seria desistir. E ela não tinha a menor intenção de desistir.
Mas o que podia fazer?
Alwyn dormia ao seu lado, com uma adaga comprida na bainha, ainda presa em sua cintura. Isso lhe deu o vislumbre de uma idéia. Não tinha certeza se teria coragem de executar o plano que começava a se delinear em sua mente. Mas recusou-se a pensar no quanto se sentia apavorada. Teria de fazer de qualquer maneira.
Embora os tornozelos estivessem amarrados juntos, ela podia mover as pernas. Chutou Alwyn. A princípio, ele pareceu não sentir. Gwenda chutou-o de novo. Ele se mexeu. Na terceira vez, ele sentou e perguntou, a voz sonolenta:
- Foi você que me chutou?
- Tenho de fazer pipi.
- Não na clareira. É uma das regras de Tam. É preciso dar vinte passos para uma mijada, cinqüenta para uma cagada.
- Portanto, até os bandidos vivem de acordo com regras.
Ele fitou-a sem entender. Não percebeu a ironia. Não era um homem esperto, concluiu Gwenda. Isso era útil. Mas ele era forte e mau. Ela teria de ser bastante cautelosa.
- Não posso ir a lugar nenhum com as pernas amarradas. Resmungando, Alwyn soltou a corda que prendia os tornozelos de Gwenda. A primeira parte do plano dera certo. Agora, ela se sentia ainda mais assustada. Fez um enorme esforço para se levantar. Todos os músculos das pernas doíam, de uma noite de aperto. Ela deu um passo, cambaleou e caiu de novo.
- É muito difícil com as mãos amarradas. Alwyn ignorou a sugestão.
A segunda parte do plano não dera certo.
Teria de continuar a tentar.
Gwenda levantou-se de novo, e foi andando entre as árvores. Ele seguiu-a, contando os passos nos dedos. Na primeira vez em que chegou a dez, ele começou de novo. Na segunda vez, declarou:
- Já é suficiente.
Ela fitou-o, com uma cara de desamparada.
- Não posso levantar o vestido. Alwyn cairia nessa?
Ele ficou olhando para Gwenda, com uma expressão aturdida. Ela quase que podia ouvir o cérebro dele em funcionamento, como as engrenagens de um moinho de água. Alwyn poderia levantar seu vestido enquanto ela urinava; mas era o tipo de coisa que uma mãe fazia com uma criança pequena, e ele acharia humilhante. Como alternativa, ele poderia desamarrar suas mãos; e com as mãos e os pés livres, ela poderia tentar correr. Mas era pequena, estava cansada e com cãibras: não teria a menor possibilidade de correr mais do que um homem com pernas compridas e musculosas. Ele devia estar pensando que o risco não era sério.
Pois desamarrou as mãos dela.
Gwenda virou o rosto, para que ele não visse sua expressão de triunfo.
Ela esfregou os antebraços, para restabelecer a circulação. Tinha vontade de arrancar os olhos do homem com os polegares; em vez disso, porém, sorriu tão docemente quanto podia e murmurou:
- Obrigada.
Era como se Alwyn tivesse acabado de efetuar um ato de bondade. Ele não disse nada. Continuou parado onde estava, observando-a.
Gwenda esperava que ele desviasse os olhos quando ela levantasse a saia e se agachasse, mas Alwyn continuou a observá-la, com uma atenção ainda maior. Ela sustentou seu olhar, relutante em se sentir envergonhada ao fazer o que era natural. O homem entreabriu a boca e a respiração se tornou mais pesada.
Agora, vinha a parte mais difícil.
Ela se levantou, devagar, deixando-o dar uma boa olhada, antes de baixar a saia. Alwyn passou a língua pelos lábios, e ela compreendeu que conseguira o que queria. Adiantou-se.
- Você será meu protetor? - perguntou ela, usando uma voz de menina que não era natural.
Ele não deixou transparecer o menor sinal de desconfiança. Não disse nada, mas estendeu a mão rude para seu seio e apertou-o com toda força. Gwenda soltou um grito de dor.
- Não com tanta força. - Ela pegou a mão de Alwyn entre as suas. - Seja mais gentil.
Ela ajeitou a mão dele em seu seio, esfregando lentamente, até que o mamilo ficou duro.
- É mais gostoso quando você é mais gentil.
Ele grunhiu, mas continuou a esfregar devagar. Depois, puxou a gola do vestido com a mão esquerda, e sacou a adaga. Tinha pelo menos trinta centímetros de comprimento, com uma ponta fina, a lâmina brilhando de ter sido afiada havia pouco tempo. Era evidente que ele tencionava cortar o vestido. O que não seria nada bom, porque a deixaria nua.
Gwenda pegou o pulso de Alwyn, apertando de leve, para contê-lo por um momento.
- Não precisa da faca. Olhe...
Ela recuou, abriu o cinto, e com um rápido movimento tirou o vestido pela cabeça. Era seu único traje.
Gwenda estendeu-o no chão e deitou-se em cima. Tentou sorrir para o homem. Teve certeza de que só conseguiu exibir uma careta horrível. Abriu as pernas.
Alwyn hesitou apenas por um momento.
Com a faca na mão direita, abaixou o calção, e ajoelhou-se entre as pernas de Gwenda. Apontou a adaga para o rosto dela e murmurou:
- Qualquer problema e cortarei seu rosto.
- Não precisará fazer isso. - Ela tentava desesperadamente adivinhar as palavras que um homem gostaria de ouvir de uma mulher naquela situação. - Meu grande e forte protetor...
Ele não demonstrou qualquer reação. Estendeu-se por cima dela, arremetendo às cegas.
- Não tão depressa - disse Gwenda, rangendo os dentes contra a dor das arremetidas desajeitadas.
Ela estendeu as mãos entre as pernas e guiou-o para a entrada, erguendo as pernas para facilitar a penetração.
Alwyn ergueu-se por cima, apoiando o peso do corpo nos braços. Largou a adaga na relva, ao lado da cabeça de Gwenda, cobrindo o cabo com a mão direita. Gemeu quando a penetrou. Ela acompanhou seus movimentos, mantendo a farsa de sua disposição. Olhava para o rosto de Alwyn, com um esforço para não virar a cabeça na direção da adaga, aguardando pelo momento certo. Sentia-se ao mesmo tempo apavorada e repugnada, mas uma pequena parte de sua mente permanecia calma e calculista.
Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como um animal farejando a brisa. Tinha os braços esticados, sustentando o corpo. Gwenda arriscou um olhar para a faca. Ele afastara um pouco a mão, de tal forma que só cobria o cabo parcialmente. Ela poderia pegá-la agora, mas qual seria a rapidez da reação do homem?
Ela olhou de novo para o rosto de Alwyn, que tinha a boca contraída num ricto de concentração. Ele arremeteu com mais força ainda, e Gwenda acompanhou seus movimentos.
Para sua consternação, sentiu um calor espalhar-se pelo ventre. Ficou apavorada com ela própria. O homem era um bandido, assassino, pouco mais que uma besta da floresta, e planejava prostituí-la por seis pennies de cada vez. Ela fazia aquilo para salvar sua vida, não pela diversão! Mas experimentou um fluxo de umidade dentro dela, enquanto o homem acelerava os movimentos.
Gwenda sentiu que o momento do orgasm o masculino era iminente. Tinha que ser agora ou nunca. Ele soltou um gemido, que parecia ser de rendição, e ela entrou em ação.
Tirou a faca de baixo da mão do homem. Não houve mudança na expressão de êxtase que ele exibia: não notara seu movimento. Apavorada, com medo de que ele percebesse o que fazia e a detivesse no último momento, Gwenda não hesitou: desferiu um golpe com a adaga para cima, ao mesmo tempo em que erguia os ombros. O homem sentiu seu movimento e abriu os olhos. Choque e medo estamparam-se em seu rosto. Golpeando desvairada, ela enfiou a adaga em sua garganta, logo abaixo do queixo. Grunhiu, desesperada, sabendo que errara as partes mais vulneráveis do pescoço, o tubo da respiração e a veia jugular. Ele rugiu de dor e raiva, mas ainda não estava incapacitado. Gwenda compreendeu que se encontrava mais próxima da morte do que em qualquer outra ocasião de sua vida.
Agiu por instinto, sem pensar. Com o braço esquerdo, bateu na parte interna do cotovelo do homem. Ele dobrou o braço, e involuntariamente arriou em cima dela. Gwenda tornou a erguer a adaga, e o peso do corpo fez com que penetrasse mais fundo em Alwyn. O sangue jorrou de sua boca aberta, caindo no rosto de Gwenda. Ela sacudiu a cabeça para o lado, num reflexo, mas continuou a enfiar a adaga. A lâmina encontrou resistência por um instante, depois deslizou, até que o globo ocular pareceu explodir. A ponta da adaga saiu pela cavidade, num jato de sangue e cérebro. O homem arriou em cima dela, morto, ou quase. O peso deixou-a sem fôlego. Era como estar por baixo de um tronco caído. Por um momento, ela sentiu-se impotente demais para fazer qualquer movimento.
E, para seu horror, sentiu que o homem ejaculava dentro dela.
Foi dominada por um terror supersticioso. Ele parecia mais assustador assim do que no momento em que a ameaçara com a adaga. Em pânico, Gwenda contorceu-se para sair de baixo.
Levantou-se, trêmula, respirando com dificuldade. Tinha o sangue do homem nos seios e o esperma nas coxas. Olhou apavorada na direção do acampamento dos bandidos. Alguém estaria acordado para ouvir o grito de Alwyn? E, se todos ainda dormiam, o barulho teria acordado alguns?
Sem parar de tremer, ela enfiou o vestido pela cabeça e prendeu o cinto. Tinha sua bolsa e uma faca pequena, que costumava usar para comer. Mal ousava desviar os olhos de Alwyn: tinha um sentimento angustiante de que talvez ele ainda estivesse vivo. Sabia que deveria liquidá-lo de vez, mas não era capaz. Um som na direção da clareira surpreendeu-a. Precisava sair dali, o mais depressa que pudesse. Olhou ao redor, para se orientar, depois seguiu na direção da estrada.
Havia uma sentinela perto do enorme carvalho, ela lembrou, com um súbito sobressalto de medo. Continuou a andar pela floresta, tomando cuidado para não fazer barulho ao se aproximar do carvalho. Avistou a sentinela - o nome era Jed
- dormindo no chão. Passou por ele na ponta dos pés. Teve de recorrer a toda a sua força de vontade para não desatar a correr. Mas o homem não se mexeu.
Gwenda encontrou a trilha dos veados e seguiu-a até o córrego. Parecia que ainda não havia ninguém em sua perseguição. Ela lavou o sangue do rosto e do peito, depois jogou a água fria nas partes íntimas.
Bebeu bastante água, sabendo que tinha uma longa caminhada pela frente.
Já se sentindo um pouco menos frenética, ela continuou pela trilha dos veados. Escutava com toda atenção enquanto andava. Os bandidos levariam quanto tempo para encontrar Alwyn? Ela nem tentara esconder o corpo. Quando descobrissem o que acontecera, certamente partiriam em seu encalço, pois haviam dado uma vaca para comprá-la, e o valor era de doze shillings, o que correspondia a meio ano de salário para um trabalhador como seu pai.
Ela alcançou a estrada. Para uma mulher viajando sozinha, a estrada aberta era quase tão perigosa quanto uma trilha na floresta. O grupo de Tam Hiding não era o único, pois havia muitos outros bandidos refugiados na floresta. Além disso, havia muitos outros homens - pajens, camponeses, bandos de homens de armas - que poderiam se aproveitar de uma mulher indefesa. Mas sua prioridade era escapar de Sim Chapman e seus companheiros. Para isso, a rapidez era de suprema importância.
Que direção deveria seguir? Se voltasse para Wigleigh, Sim poderia segui-la até lá e reivindicá-la de novo... e não havia como prever a reação do pai. Precisava de amigos em quem pudesse confiar. Caris a ajudaria.
Ela seguiu para Kingsbridge.
Era um dia de sol, mas a estrada continuava lamacenta por causa dos muitos dias de chuva. Com isso, andar era muito mais difícil. Depois de algum tempo, ela alcançou o topo de uma colina. Ao olhar para trás, pôde avistar a estrada por cerca de um quilômetro e meio. No limite extremo de seu campo de visão, avistou um vulto solitário. Ele usava uma túnica amarela.
Sim Chapman.
Gwenda desatou a correr.
O caso contra Crazy Nell foi ouvido no transepto norte da catedral, no sábado, ao meio-dia. O bispo Richard presidiu o tribunal eclesiástico, com o prior Anthony à sua direita. A esquerda sentava o assistente pessoal do bispo, o arquidiácono Lloyd, um padre solene, de cabelos pretos, que fazia todo o trabalho do bispado, pelo que se dizia.
Havia uma enorme multidão de espectadores. Um julgamento de heresia era uma boa diversão, e Kingsbridge não testemunhava nenhum havia alguns anos. Muitos artesãos e trabalhadores encerravam suas atividades ao meio-dia de sábado. Lá fora, a Feira do Velocino chegava ao fim. Os mercadores desmontavam seus estandes e empacotavam as mercadorias não vendidas, os compradores preparavam a volta para casa, alugando as balsas que desceriam o rio com suas aquisições, até o porto marítimo de Melcombe.
A espera do início do julgamento, Caris pensou desolada em Gwenda. O que ela estaria fazendo naquele momento? Sim Chapman a obrigaria a ter sexo com ele, com toda certeza... mas isso poderia não ser a pior coisa a lhe acontecer. O que mais ela teria de fazer como sua escrava? Caris não tinha a menor dúvida de que Gwenda tentaria fugir... mas conseguiria? se fracassasse, como Sim a puniria? Caris compreendeu que talvez nunca descobrisse.
Fora uma estranha semana. Buonaventura Caroli não mudara de idéia: os compradores florentinos não voltariam a Kingsbridge, pelo menos até que o priorado melhorasse as condições para a Feira do Velocino. O pai de Caris e outros importantes mercadores de lã haviam passado metade da semana ocupados em conversas com o conde Roland. Merthin continuava num ânimo estranho, retraído e sombrio. E a chuva recomeçara.
Nell foi arrastada para a catedral por John Constable e frei Murdo. Seu único traje era uma túnica sem mangas, presa na frente, mas deixando à mostra os ombros ossudos. Não usava chapéu nem sapatos. Debatia-se sem muita força nas mãos dos dois homens, enquanto gritava imprecações.
Depois que conseguiram acalmá-la, vários moradores da cidade se adiantaram para testemunhar que a haviam ouvido invocar o demônio. Diziam a verdade. Nell ameaçava as pessoas com o demônio durante todo o tempo... pela recusa em lhe dar uma esmola, por ficar na sua frente na rua, por usar um bom casaco ou sem qualquer motivo.
Cada testemunha relatou um infortúnio que se seguira à blasfêmia. A esposa de um ourives perdera um broche precioso; todas as galinhas de um estalajadeiro morreram; uma viúva teve um furúnculo doloroso no traseiro... uma queixa que provocou risos, mas também acarretou condenação, pois as feiticeiras eram conhecidas por seu senso de humor malicioso. Enquanto isso acontecia, Merthin veio se postar ao lado de Caris.
- Isso tudo é uma estupidez - comentou ela com Merthin, indignada. - Dez vezes mais testemunhas poderiam se apresentar para dizer que Nell as amaldiçoou e nada aconteceu.
Merthin deu de ombros.
- As pessoas acreditam no que querem acreditar.
- Talvez as pessoas comuns. Mas o bispo e o prior deveriam saber melhor... são homens instruídos.
- Tenho uma coisa para lhe dizer - anunciou Merthin.
Caris empertigou-se. Talvez estivesse prestes a descobrir a razão para a mudança de ânimo de Merthin. Olhava-o de lado até agora, mas se virou para fitá-lo. Ele tinha uma enorme equimose no lado esquerdo do rosto.
- O que aconteceu com você?
A multidão caiu na gargalhada com alguma declaração de Nell. O arquidiácono Lloyd teve de pedir silêncio várias vezes. Merthin disse, quando pôde ser ouvido de novo:
- Não aqui. Podemos ir para algum lugar sossegado?
Caris quase se virou para sair com ele, mas alguma coisa a deteve. Durante toda a semana Merthin a deixara atônita e magoada com sua frieza. Agora, finalmente, ele decidira que chegara o momento de dizer qual era o problema... e esperava que ela se apressasse em atender à sua ordem. Por que Merthin deveria determinar a hora? Fizera-a esperar por cinco dias... por que ela não podia fazêdo esperar por uma hora?
- Não - murmurou Caris. - Não agora. Ele ficou surpreso.
- Por que não?
- Porque não é da minha conveniência. E, agora, preste atenção.
Ao se virar de novo para a frente, Caris percebeu sua expressão magoada. No mesmo instante, desejou não ter sido tão fria; mas já era tarde demais, e não pretendia se desculpar.
Uma testemunha encerrou seu depoimento. O bispo Richard disse:
- Mulher, você diz que o demônio domina a Terra?
Caris ficou indignada. Os hereges cultuavam Satã porque acreditavam que ele tinha jurisdição sobre a Terra, enquanto Deus só reinava no Céu. Crazy Nell não podia sequer compreender esse credo tão sofisticado. Era vergonhoso que Richard aceitasse a acusação ridícula de frei Murdo. Nell gritou em resposta:
- Pode meter o seu cacete no rabo!
A multidão caiu na gargalhada, exultante com o insulto grosseiro ao bispo. Richard disse:
- Se é essa a sua defesa... i O arquidiácono Lloyd interveio:
- Alguém deve falar em sua defesa.
O tom era respeitoso, mas ele parecia satisfeito por corrigir seu superior. Não podia haver a menor dúvida de que o preguiçoso Richard contava com Lloyd para lembrá-lo das regras. Como ninguém mais falasse, Caris declarou:
- Nell é louca.
Todos se viraram, para descobrir quem era a pessoa bastante insensata para se postar ao lado de Nell. Houve um murmúrio de reconhecimento - a maioria das pessoas conhecia Caris - mas nenhuma reação de surpresa, pois ela tinha a reputação de fazer o inesperado.
O prior Anthony inclinou-se e murmurou alguma coisa no ouvido de Richard, que disse:
- Caris, a filha de Edmund Wooler, nos diz que a acusada é louca. Já haviamos chegado a essa conclusão sem a sua ajuda.
Caris se irritou com o sarcasmo frio.
- Nell não tem a menor idéia do que diz! Invoca o demônio, os santos, a lua e as estrelas. Não faz mais sentido do que os latidos de um cachorro. Seria como enforcar um cavalo por relinchar para o rei.
Ela não pôde evitar o desdém em sua voz, embora soubesse que era uma insensatez permitir que seu desprezo transparecesse quando se dirigia à nobreza.
Algumas pessoas na multidão murmuraram em concordância. Todos gostavam de uma acalorada discussão. Richard disse:
- Mas ouviu as pessoas testemunharem sobre os danos causados por suas pragas.
- Perdi um penny ontem. Cozinhei um ovo e descobri que estava estragado. Meu pai passa a noite inteira acordado de tanto tossir. Mas ninguém nos rogou uma praga. As coisas ruins simplesmente acontecem.
Muitas pessoas balançaram a cabeça. A maioria acreditava que havia uma influência maligna por trás de cada infortúnio, grande ou pequeno.
Caris perdera o apoio da multidão.
O prior Anthony, seu tio, conhecia suas opiniões, e já argumentara com ela antes. Agora, inclinou-se para a frente e disse:
- Certamente não acredita que Deus é responsável por todas as doenças, infortúnios e perdas, não é mesmo? ;
-Não...
- Quem é então?
Caris imitou o tom afetado de Anthony:
- Certamente não acredita que todo infortúnio na vida é responsabilidade de Deus ou de Crazy Nell, não é?
O arquidiácono Lloyd interveio, ríspido:
- Seja respeitosa com o prior.
Ele não sabia que Anthony era tio de Caris. Os espectadores riram: todos conheciam o prior afetado e sua sobrinha de mentalidade independente.
- Acho que Nell é inofensiva - concluiu Caris. - Louca, sem dúvida, mas inotensiva.
Foi nesse instante que frei Murdo levantou-se e começou a falar, com sua voz sonora:
- Meu senhor bispo, homens de Kingsbridge, amigos. O maligno está por toda parte, nos tentando ao pecado... à mentira, gula com comida, embriaguez com o vinho, ao orgulho desmedido, ao desejo da carne.
A multidão gostava disso: as descrições que Murdo fazia do pecado atiçavam a imaginação e evocavam deliciosas cenas de indulgência, que eram santificadas por sua veemente desaprovação.
- Mas ele não pode passar sem ser observado - continuou Murdo, elevando a voz em excitamento. - Assim como o cavalo deixa as marcas de seus cascos na lama, assim como o camundongo da cozinha deixa suas pegadas na manteiga, assim como o devasso deixa seu sêmen infame para crescer no ventre da donzela enganada, assim o demônio deve deixar... sua marca!
Pessoas gritaram em aprovação. Sabiam o que ele queria dizer, inclusive Caris.
- Os servidores do maligno podem ser conhecidos pela marca que ele deixa. Pois ele suga o sangue quente deles, assim como uma criança suga o leite doce dos seios intumescidos de sua mãe. E, como a criança, ele precisa de uma teta para sugar... um terceiro mamilo!
Ele mantinha a audiência extasiada, observou Caris. Começava cada frase em voz baixa e contida, depois da aumentando o tom, recorrendo a uma frase emotiva para alcançar o clímax; e a multidão reagia com ansiedade, escutava em silêncio, para gritar em aprovação ao final.
- Essa marca é escura, saliente como um mamilo, projetando-se da pele clara ao redor. Pode estar em qualquer parte do corpo. Às vezes fica no vale macio entre os seios de uma mulher, a manifestação anormal imitando cruelmente a natural. Mas o demônio gosta mais de localizá-la nas partes secretas do corpo, na virilha, em lugares íntimos, especialmente...
O bispo Richard interrompeu-o, em voz bastante alta:
- Obrigado, frei Murdo. Não precisa continuar. Está pedindo que o corpo da mulher seja examinado à procura da marca do demônio.
- Isso mesmo, meu senhor bispo, pois...
- Não precisa argumentar mais nada. Já disse o suficiente. - Richard olhou ao redor. - Madre Cecilia está por perto?
A prioresa sentava num banco no lado do tribunal, junto com irmã Juliana e algumas freiras mais antigas. O corpo nu de Crazy Nell não podia ser examinado por homens; mulheres teriam de fazê-lo em particular, para depois relatarem o que haviam encontrado. As freiras eram a escolha óbvia.
Caris não invejava a tarefa. A maioria dos moradores da cidade lavava as mãos e o rosto todos os dias, e as partes que mais cheiravam do corpo uma vez por semana. O banho em todo o corpo era, na melhor das hipóteses, um ritual efetuado duas vezes por ano, necessário, embora perigoso para a saúde. Crazy Nell, no entanto, dava a impressão de que nunca se lavava. O rosto era sujo, as mãos eram imundas e ela cheirava como um monte de estrume.
Cecilia levantou-se. Richard disse:
- Por favor, leve essa mulher para uma câmara privada, tire suas roupas, examine seu corpo com todo cuidado, e volte para relatar fielmente o que encontrou.
As outras freiras também se levantaram e se encaminharam para Nell. Cecilia falou em voz suave com a louca. Pegou-a pelo braço, gentilmente. Mas Nell não se deixou enganar. Desvencilhou-se e ergueu os braços. Nesse momento, frei Murdo gritou:
- Estou vendo! Estou vendo!
Quatro freiras conseguiram conter Nell. O frade acrescentou:
- Não é preciso tirar suas roupas. Basta olhar para o braço direito. Enquanto Nell voltava a se debater, ele adiantou-se, ergueu o braço dela, apontou para a axila, e disse:
- Aqui!
A multidão aproximou-se, ansiosa.
- Estou vendo! - gritou alguém.
Outros repetiram o grito. Caris não podia ver nada além dos cabelos normais na axila, e relutava em cometer a indignidade de espiar mais de perto. Não tinha a menor dúvida de que Nell devia ter alguma mancha ou excrescência ali. Muitas pessoas tinham marcas na pele, em particular as mais velhas.
O arquidiácono Lloyd pediu ordem e silêncio. John Constable obrigou a multidão a recuar, batendo com uma vara. Quando o silêncio foi restabelecido, Richard levantou-se e declarou:
- Crazy Nell de Kingsbridge, eu a considero culpada de heresia. Será agora amarrada na traseira de uma carroça e açoitada através da cidade, depois levada até o lugar conhecido como Gallows Cross, para ser enforcada pelo pescoço até a morte.
A multidão aclamou a decisão. Caris virou-se, revoltada. Com uma justiça assim, nenhuma mulher estava segura. Seus olhos se iluminaram ao se deparar com Merthin, ainda esperando, paciente.
- Muito bem - disse ela, irritada. - Qual é o problema?
- Parou de chover. Vamos até o rio.
O priorado tinha uma série de pôneis para os monges e freiras mais idosos usaiiiu quando viajavam, mais alguns cavalos de tiro para transportar as mercadorias. Esses animais e mais as montarias dos visitantes prósperos eram guardados em estábulos de pedra, junto da extremidade meridional da catedral. A horta próxima era fertilizada com a palha suja das baias.
Ralph estava no pátio do estábulo, com o resto da comitiva do conde Roland. Os cavalos haviam sido selados, prontos para iniciar a viagem de dois dias de volta à residência de Roland, o Earlscastle, perto de Shiring. Esperavam apenas pelo conde.
- Não sei por que Stephen foi feito senhor de Wigleigh, enquanto eu não tenho nada - disse ele. - Somos da mesma idade, e ele não é melhor do que eu num cavalo, numa justa ou com a espada.
Cada vez que se encontravam, Sir Gerald fazia as mesmas perguntas esperançosas, e Ralph tinha de dar as mesmas respostas inadequadas. Ralph poderia suportar o desapontamento com mais facilidade se não fosse a patética ansiedade ilo pai em vê-lo promovido a cavaleiro.
Griff era um cavalo novo. Um animal de caça, já que um simples pajem não merecia um custoso cavalo de guerra. Reagia muito bem quando Ralph o exigia numa caçada. Agora, mostrava-se excitado com toda a atividade no pátio, ansioso por partir. Ralph murmurou em seu ouvido:
- Quieto, meu bom rapaz. Terá a oportunidade de esticar as pernas mais tarde.
O cavalo acalmou-se ao som de sua voz.
- Mantenha-se sempre alerta a todas as oportunidades de agradar ao conde recomendou Sir Gerald. - Assim ele se lembrará de você quando tiver um posto para preencher.
Era uma boa idéia em teoria, pensou Ralph, mas as verdadeiras oportunidados só surgiam em batalha. E a guerra podia estar um pouco mais próxima hoje do que há uma semana. Ralph não participara das reuniões entre o conde e os mercadores de lã, mas calculava que os mercadores estavam dispostos a emprestar dinheiro ao rei Edward. Queriam que o rei tomasse alguma ação decisiva contra a França, em retaliação aos ataques franceses nos portos da costa sul.
Enquanto isso, Ralph procurava por alguma maneira de se distinguir e começar a recuperar a honra que a família perdera dez anos antes... não apenas pelo pai, mas também por seu próprio orgulho.
Griff bateu com as patas no chão e sacudiu a cabeça. Para acalmá-lo, Ralph levou-o para andar de um lado para outro, acompanhado pelo pai. A mãe continuou parada no mesmo lugar, transtornada pelo nariz quebrado do filho.
Junto com o pai, Ralph passou por lady Philippa, que segurava com mão firme a rédea de um cavalo veloz e arisco, enquanto conversava com o marido, lorde William.
Ela usava roupas justas, que eram apropriadas para a viagem, mas também realçavam o busto cheio e as pernas compridas. Ralph mantinha-se sempre atento a pretextos para conversar com ela, mas de nada adiantava: ele não passava de mais um servidor de seu sogro, e Philippa só lhe dirigia a palavra quando era necessário.
Enquanto Ralph observava, ela sorriu para o marido e bateu de leve em seu peito, com o dorso da mão, num gesto zombeteiro de repreensão. Ralph ficou cheio de ressentimento. Por que não podia ser com ele que Philippa partilhava aquele momento de divertimento particular? Não havia a menor dúvida de que Philippa faria isso se ele fosse o senhor de quarenta aldeias, como era o caso de William.
Ralph sentiu que sua vida era toda aspiração. Quando conseguiria realizar alguma coisa? Ele e o pai percorreram toda a extensão do pátio, viraram e voltaram.
Ele viu um monge de um braço só sair da cozinha e atravessar o pátio. Ficou impressionado ao constatar como o homem lhe parecia familiar. Um momento depois, ele se lembrou de onde conhecia o rosto. Era Thomas Langley, o cavaleiro que matara dois homens de armas na floresta, dez anos antes. Ralph não o vira desde aquele dia, mas seu irmão Merthin tornara a encontrá-lo, várias vezes, pois o cavaleiro se tornara monge e era agora o responsável pela supervisão dos reparos nos prédios do priorado. Thomas usava o hábito castanho de um monge em vez das belas roupas de um cavaleiro. Tinha os cabelos cortados na tonsura de um monge. Estava mais corpulento na cintura, mas ainda tinha o porte de um guerreiro. Enquanto Thomas passava, Ralph comentou com lorde William, num tom descontraído:
- Lá vai ele... o monge misterioso. William perguntou, ríspido:
- Como assim?
- O irmão Thomas. Ele era um cavaleiro, e ninguém sabe por que entrou no mosteiro.
- O que sabe sobre ele?
O tom de William era de raiva, embora Ralph não dissesse nada ofensivo. Talvez ele estivesse de mau humor, apesar do sorriso afetuoso de sua linda esposa. Ralph desejou não ter puxado o assunto.
- Eu estava aqui no dia em que ele chegou a Kingsbridge.
Ele hesitou, recordando o juramento que as crianças haviam feito naquela tarde. Por causa disso e da inexplicável irritação de William, Ralph não contou toda a história. Limitou-se a acrescentar:
- Ele entrou na cidade trôpego, sangrando de um ferimento de espada. Um menino se lembra dessas coisas.
- Muito curioso... - Philippa olhou para o marido. - Sabe qual é a história do irmão Thomas?
- Claro que não! - respondeu William, incisivo. - Como eu poderia saber de uma coisa assim?
Ela deu de ombros e se afastou. Ralph também se afastou, contente em escapar da conversa.
- Lorde William estava mentindo - disse ele para o pai, em voz baixa. Gostaria de saber por quê.
- Não faça mais perguntas sobre aquele monge - disse o pai, ansioso. - É obviamente um assunto delicado.
O conde Roland finalmente apareceu, acompanhado pelo prior Anthony. Os cavaleiros e pajens montaram. Ralph beijou os pais e subiu para a sela. Griff deu alguns passos para o lado, ansioso em partir. O movimento fez o nariz de Ralph doer como se estivesse pegando fogo. Ele rangeu os dentes: não havia nada que pudesse fazer, a não ser suportar.
Roland foi até seu cavalo, Victory, um garanhão preto com uma mancha branca num olho. Não montou, mas pegou a rédea e começou a andar, ainda em conversa com o prior. William gritou:
- Sir Stephen Wigleigh e Ralph Fitzgerald, sigam na frente e esvaziem a ponte.
Ralph e Stephen atravessaram o pátio gramado da catedral. A relva estava pisoteada e o terreno lamacento na área antes ocupada pela Feira do Velocino. Uns poucos estandes ainda faziam negócios, mas a maioria já fora desmontada. Muitos negociantes já haviam partido. Passaram pelos portões do priorado.
Na rua principal, Ralph avistou o rapaz que o deixara de nariz quebrado. Wulfric era seu nome, e vinha da aldeia de Wigleigh, que pertencia a Stephen. O lado esquerdo do rosto, que Ralph esmurrara várias vezes, estava machucado, bastante inchado. Wulfric havia parado na frente da Bell Inn, com o pai, a mãe e o irmão. Pareciam prestes a ir embora.
É melhor você torcer para nunca mais me encontrar, pensou Ralph.
Ele tentou pensar em algum insulto para gritar, mas foi distraído pelo som de uma multidão.
Enquanto ele e Stephen desciam pela rua principal, os cavalos avançando resolutos pela lama, avistaram à frente uma multidão compacta. No meio da ladeira, foram obrigados a parar.
A rua se encontrava entupida por centenas de homens, mulheres e crianças, gritando, rindo, empurrando-se à procura de espaço. Todos estavam de costas para Ralph. Ele olhou por cima de suas cabeças.
A frente daquela procissão indisciplinada seguia uma carroça, puxada por um boi. Uma mulher seminua fora amarrada na traseira da carroça. Ralph já vira aquele tipo de coisa antes: uma pessoa ser açoitada através da cidade era uma punição comum. A mulher usava apenas uma saia de lã ordinária, presa na cintura por uma corda. O rosto, quando ele pôde vê-lo, estava todo manchado, os cabelos imundos, de tal forma que ele pensou a princípio que era uma velha. Até que viu os seios e compreendeu que ela tinha apenas vinte e poucos anos.
Tinha as mãos amarradas e presas pela mesma corda na carroça. Cambaleava em sua esteira, às vezes caía e era arrastada, contorcendo-se na lama, até que conseguia se levantar de novo. O constable da cidade da atrás, usando um chicote simples, uma tira de couro presa numa vara, para açoitar as costas nuas da mulher.
A multidão, liderada por um bando de jovens, escarnecia da mulher, gritando insultos, rindo, jogando lama e outras sujeiras.
Ela reagia com a maior satisfação, berrando imprecações e cuspindo em quem chegava perto. Ralph e Stephen levaram seus cavalos contra a multidão. Ralph elevou a voz:
- Abram caminho! Dêem passagem para o conde! Stephen fez a mesma coisa.
Mas ninguém deu a menor atenção.
Ao sul do priorado, o terreno descia íngreme até o rio. A margem naquele lado era rochosa, imprópria para a atracação de barcaças e balsas. Por isso, todos os cais ficavam no lado sul, mais acessível, em Newtown. O lado norte era mais quieto, e naquela época do ano era colorido pelas flores silvestres. Merthin e Caris sentaram num penhasco baixo, à beira da água.
O rio aumentara com as chuvas. Deslocava-se mais depressa do que o habitual, Merthin notou, e podia compreender o motivo: o canal se tornara mais estreito do que antes. Isso acontecia por causa do desenvolvimento na margem do rio. Quando ele era pequeno, a maior parte da margem sul era uma praia larga e lamacenta, com uma região pantanosa além. O rio corria então num ritmo lento e imponente, de tal forma que podia flutuar de costas de um lado para outro. Mas os novos cais, protegidos das enchentes por muros de pedras, espremiam a mesma quantidade de água num funil menor, através do qual o rio passava apressado, como se estivesse ansioso em deixar a ponte para trás. Além da ponte, o rio tornava a se alargar e diminuía a velocidade, contornando a ilha do Leproso, onde ficava o lazareto.
- Fiz uma coisa horrível - anunciou Merthin.
Infelizmente, Caris parecia ainda mais adorável naquele dia. Usava um vestido de linho vermelho escuro, e a pele parecia luzir de vitalidade. Mostrara-se furiosa no julgamento de Crazy Nell, mas agora parecia apenas preocupada -, e isso lhe proporcionava uma aparência vulnerável, que provocava um aperto no coração de Merthin. Caris devia ter percebido que ele fora incapaz de fitá-la nos olhos durante toda a semana. Mas o que ele tinha de lhe contar era provavelmente pior do que qualquer coisa que ela imaginara.
Merthin não falara com ninguém a respeito desde a briga com Griselda, Elfric e Alice. Ninguém sabia que sua porta fora destruída. Ele sentira-se ansioso em descarregar, mas se contivera. Não queria conversar sobre aquilo com os pais: a mãe faria um julgamento moral, e o pai lhe diria que tinha de ser um homem. Poderia ter conversado com Ralph, mas havia uma frieza entre os dois desde a briga com Wulfric: Merthin achava que o irmão se comportara como um algoz, e Ralph sabia disso.
Ele receava contar a verdade a Caris. Por um momento, perguntou-se por quê. Não era porque tivesse medo do que ela faria. Podia ser desdenhosa - e era boa nisso -, mas não poderia dizer qualquer coisa pior do que tudo o que vinha dizendo a si mesmo a todo instante.
O que ele de fato receava, compreendeu Merthin, era magoá-la. Podia suportar sua raiva; era a angústia de Caris que não tinha condições de encarar.
- Você ainda me ama, Merthin?
Ele não esperava pela pergunta, mas respondeu sem hesitação:
- Amo.
- E eu amo você. Qualquer outra coisa é apenas um problema que podemos resolver juntos.
Merthin desejou que ela estivesse certa. E desejou tanto que as lágrimas afloraram aos seus olhos. Ele virou o rosto para que Caris não pudesse ver. Uma turba entrava na ponte, seguindo uma lenta carroça. Merthin compreendeu que devia ser Crazy Nell, sendo açoitada através da cidade, a caminho de Gallows Cross, em Newtown. A ponte já estava lotada de negociantes e suas carroças de partida. O movimento era tão intenso que quase não se conseguia avançar.
- Qual é o problema? - indagou Caris. - Você está chorando.
- Deitei-me com Griselda - revelou Merthin, abruptamente. Caris ficou boquiaberta.
- Griselda - murmurou ela, incrédula.
- E me sinto envergonhado.
- Pensei que devia ser Elizabeth Clerk. ;
- Ela é orgulhosa demais para se oferecer.
A reação de Caris surpreendeu-o: i
- Quer dizer que faria com Elizabeth também, se ela se oferecesse?
- Não foi isso que eu quis dizer!
- Griselda! Santa Maria! Pensei que eu valia mais do que isso.
- E vale.
- Uma lupa - disse ela, usando a palavra latina para prostituta.
- Nem mesmo gosto dela. E detestei.
- Diz isso para fazer com que eu me sinta melhor? Não se arrependeria se tivesse gostado?
-Não!
Merthin estava consternado. Caris parecia determinada a interpretar da maneira errada tudo o que ele dizia.
- O que deu em você?
- Ela estava chorando.
- Pelo amor de Deus! Faz isso com toda mulher que começa a chorar?
- Claro que não! Apenas tentava explicar como aconteceu, embora eu não quisesse.
O desdém se tornava pior a cada coisa que ele dizia,
- Não diga bobagem. Se você não quisesse que acontecesse, não teria acontecido.
- Escute, por favor! - suplicou Merthin, frustrado. - Ela me chamou, e eu disse que não. Ela começou a chorar. Passei o braço por seus ombros, para confortá-la, e depois...
- Poupe-me dos detalhes sórdidos... não quero saber.
Merthin começou a ficar ressentido. Sabia que errara e esperava que Caris ficasse furiosa, mas seu desprezo doía.
- Está bem - murmurou ele, para se calar em seguida.
Mas não era o silêncio que Caris queria. Fitou-o na maior insatisfação e indagou:
- O que mais?
Ele deu de ombros.
- De que adianta continuar a falar? Você manifesta seu desdém por tudo o que eu digo.
- Não quero escutar desculpas patéticas. Mas há uma coisa que você não me contou... posso sentir.
Merthin suspirou.
- Ela está grávida.
A reação de Caris surpreendeu-o. Toda a raiva desapareceu. O rosto, até esse momento tenso em indignação, pareceu murchar. Só restou a tristeza.
- Um bebê... Griselda terá seu bebê.
- Pode não acontecer. Às vezes... Caris sacudiu a cabeça.
- Griselda é saudável, bem alimentada. Não há razão para que ela sofra um aborto.
- Nem eu gostaria - murmurou Merthin, embora não soubesse se isso era mesmo verdade.
- Mas o que vai fazer? Será sua criança. E a amará, mesmo que odeie a mãe.
- Tenho de casar com ela.
Caris soltou um grito de espanto.
- Casar? Mas isso seria para sempre!
- Gerei uma criança e tenho de cuidar dela.
- Mas passaria toda a sua vida com Griselda!
- Sei disso.
- Não precisa - declarou Caris, decidida. - Pense um pouco. O pai de Elizabeth Clerk não casou com a mãe dela.
- Ele era um bispo.
- Tem também o caso de Maud Roberts, em Slaughterhouse Ditch... ela tem três filhos, e todos sabem que o pai é Edward Butcher.
- Ele já é casado, e tem quatro outros filhos com a esposa.
- Estou querendo dizer que nem sempre as pessoas são obrigadas a casar. Você pode continuar como está.
- Não seria possível. Elfric me mandaria embora. Caris se mostrou pensativa.
- Quer dizer que já conversou com Elfric?
- Conversei? - Merthin tocou de leve no rosto machucado. - Pensei que ele da me matar.
- E a esposa dele... minha irmã?
- Ela gritou comigo.
- Então ela sabe.
- Sabe. Disse que eu tinha de casar com Griselda. Alice jamais quis que eu ficasse com você, não sei por quê.
- Alice queria ficar com você - murmurou Caris.
Isso era novidade para Merthin. Parecia improvável que a altiva Alice se sentisse atraída por um mero aprendiz.
- Nunca vi nenhum sinal disso.
- Só porque você nunca olhou para ela. O que a deixava furiosa. Ela casou com Elfric por frustração. Você partiu o coração de minha irmã... e agora está partindo o meu.
Merthin desviou os olhos. Não reconhecia aquele retrato de si mesmo como um homem que partia o coração das mulheres. Como as coisas podiam sair tão erradas? Caris ficou calada. Merthin olhou pelo rio, na direção da ponte.
Notou que a multidão parecia não estar mais andando. Uma pesada carroça, carregada com sacos de lã, havia parado na extremidade meridional, provávelmente com uma roda quebrada. A carroça que arrastava Nell havia parado também, incapaz de continuar. A multidão enxameava em torno das duas carroças. Algumas pessoas subiram nos sacos de lã para ver melhor. O conde Roland também tentava partir. Estava no lado da ponte que dava para a cidade, a cavalo, com sua comitiva; mas mesmo eles tinham dificuldade para passar pela ponte. Merthin avistou o irmão, Ralph, em seu cavalo castanho, de crina e rabo pretos. O prior Anthony, que obviamente fora se despedir do conde, retorcia as mãos com ansiedade, enquanto os homens de Roland forçavam seus cavalos contra a multidão, tentando em vão abrir uma passagem.
A intuição de Merthin tocou um alarme. Havia alguma coisa errada, ele tinha certeza, embora a princípio não soubesse o que era. Olhou mais atentamente para a ponte. Já notara, na segunda-feira, que as vigas maciças de carvalho através da ponte, estendendo-se de uma pilastra a outra, apresentavam sinais de rachadura, no lado que dava para rio acima; e que as vigas haviam sido reforçadas com braçadeiras de ferro pregadas por cima das rachaduras. Merthin não participara desse trabalho, e fora por isso que não o examinara direito antes. Mas, na segunda-feira, especulara por que as vigas estavam rachando. A fraqueza não era entre as partes verticais, como se poderia esperar se a madeira tivesse se deteriorado ao longo do tempo. Em vez disso, as rachaduras eram próximas das pilastras centrais, onde a tensão deveria ser menor.
Ele não pensara a respeito desde segunda-feira - havia muitas outras coisas em sua mente - mas agora uma explicação lhe ocorreu. Era quase como se a plataforma central não estivesse suportando as vigas, mas sim puxando-as para baixo. Isso significaria que alguma coisa solapara as fundações por baixo dos pilares... e, assim que o pensamento lhe ocorreu, ele compreendeu como poderia ter acontecido. Devia ser o fluxo mais rápido do rio, removendo a areia no fundo em torno das pilastras.
Ele se recordou de andar descalço por uma praia arenosa quando era pequeno. Parado na beira do mar, notara que as ondas no refluxo puxavam a areia de baixo de seus pés. Esse tipo de fenômeno sempre o fascinara.
Se estava certo, a plataforma central, sem nada por baixo para sustentá-la, estava agora pendurada da ponte... o que explicaria as rachaduras. E as braçadeiras de ferro de Elfric não haviam ajudado; na verdade, poderiam ter agravado o problema, ao tornar impossível a ponte assentar lentamente numa posição nova e estável.
Merthin calculou que a outra pilastra do par - no lado rio abaixo da ponte ainda estava firme. A correnteza, com toda certeza, consumia a maior parte de sua força na pilastra rio acima, e atacava a segunda com uma violência reduzida. Só uma pilastra fora afetada; e parecia que o resto da estrutura era bastante firme para que a ponte permanecesse de pé... desde que não fosse submetida a uma pressão extraordinária.
Mas as rachaduras pareciam mais largas hoje do que na segunda-feira. E não era difícil adivinhar por quê. Havia centenas de pessoas na ponte, uma carga muito maior do que em circunstâncias normais; e havia uma carroça carregada com lã, com vinte ou trinta pessoas sentadas em cima dos sacos, para aumentar o peso.
O medo apertou o coração de Merthin. Achava que a ponte não seria capaz de suportar aquele nível de tensão por muito tempo.
Ele teve a vaga noção de que Caris falava, mas as palavras não penetraram em sua mente até que ela elevou a voz:
- Você não está escutando!
- Vai haver um terrível acidente.
- Como assim?
- Temos de tirar todo mundo da ponte.
- Ficou louco? Estão todos atormentando Crazy Nell. Nem mesmo o conde Roland consegue afastar as pessoas. Não vão escutá-lo.
- Acho que a ponte vai desabar.
- Ei, olhe ali! - exclamou Caris, apontando. - Está vendo uma pessoa correndo pela estrada da floresta, aproximando-se do lado sul da ponte?
Merthin não podia imaginar o que isso tinha a ver com o resto, mas olhou para a direção indicada. E avistou uma mulher correndo, os cabelos esvoaçando.
- Parece Gwenda - murmurou Caris.
Por trás dela, numa perseguição implacável, vinha um homem de túnica amarela.
Gwenda sentia-se mais cansada do que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida.
Sabia que a maneira mais rápida para se percorrer uma longa distância era correr vinte passos, depois andar vinte passos. Começara a fazer isso meio dia antes, quando avistara Sim Chapman um quilômetro e meio atrás. Perdera-o de vista durante algum tempo; mas quando a estrada tornara a oferecer uma extensa vista para trás, percebera que ele fazia a mesma coisa, alternadamente corria e andava. A medida que um quilômetro sucedia outro, que uma hora sucedia outra, ele fora diminuindo a distância que os separava. Na metade da manhã, Gwenda compreendera que Sim a alcançaria antes que ela conseguisse chegar a Kingsbridge.
Em desespero, ela se embrenhara pela floresta. Mas não podia se afastar da estrada por muito tempo, com medo de se perder. Depois de algum tempo, ouvira passos correndo e a respiração ofegante; espiara através das moitas para ver Sim passar pela estrada. E concluíra que ele perceberia o que acontecera depois de percorrer alguma distância sem avistá-la. E ele logo voltara pela estrada.
Gwenda continuara pela floresta, parando a intervalos de poucos minutos para ficar em silêncio e escutar. Conseguia se esquivar durante algum tempo. Sabia que ele continuaria a procurar na floresta nos dois lados da estrada, a fim de ter certeza de que ela não se escondera. Mas o progresso de Gwenda também era lento, retardado pelo mato mais alto do verão e pela necessidade de verificar o curso a todo instante, para não se desviar demais da estrada.
Ao ouvir o som de uma multidão distante, ela compreendeu que não podia estar longe da cidade. E pensou que conseguiria escapar, no final das contas. Foi até a beira da estrada e espiou cautelosa, de trás de uma moita. O caminho estava livre, nas duas direções... e, meio quilômetro ao norte, avistou a torre da catedral.
Estava quase chegando.
Ouviu um latido familiar. Seu cachorro, Skip, saiu das moitas no lado da estrada. Gwenda inclinou-se para afagá-lo, e o cachorro abanou o rabo, na maior alegria. Ela ficou com os olhos cheios de lágrimas.
Sim não estava à vista, e por isso ela se arriscou a sair para a estrada aberta. Cansada, retomou o ritmo de vinte passos correndo, vinte passos andando, agora com Skip trotando a seu lado, pensando que era uma nova brincadeira. A cada vez que trocava de ritmo, Gwenda olhava para trás. Na terceira, avistou Sim.
Ele vinha a apenas duzentos metros atrás.
O desespero envolveu-a, como um maremoto. Teve vontade de se jogar no chão e morrer. Mas já alcançara a área suburbana, e faltava agora menos de meio quilômetro para chegar à ponte. Por isso, forçou-se a continuar.
Tentou correr, mas as pernas se recusaram a obedecer à ordem. Passos mais rápidos, cambaleantes; aquilo foi o máximo que conseguiu. Os pés doíam. Olhou para baixo: o sangue escorria pelos buracos nos sapatos arrebentados. Ao virar a encruzilhada de Gallows Cross, ela divisou uma enorme multidão na ponte à sua frente. Todos observavam alguma coisa. Ninguém notou-a correndo por sua vida, perseguida de perto por Sim Chapman.
Não tinha armas além da faca que usava para comer, que mal dava para cortar uma lebre assada, e não seria de qualquer proveito diante de um homem. Ela desejou com todo seu coração ter tido a coragem de arrancar a adaga comprida da cabeça de Alwyn e trazê-la. Agora, estava praticamente indefesa.
Havia uma fileira de casas num lado - as casas suburbanas de pessoas pobres demais para viverem na cidade - e, no outro, o pasto conhecido como Lovers’ Field, que pertencia ao priorado. Sim estava tão próximo que ela podia ouvir sua respiração, também pesada e entrecortada. O terror lhe proporcionou um novo fluxo de energia. Skip latiu, mas havia mais medo do que desafio no som... ele não esquecera a pedra que o atingira no focinho.
O acesso à ponte era uma área de lama pegajosa, revolvida por botas, cascos e rodas de carroças. Gwenda avançou, com a esperança desesperada de que Sim, mais pesado, fosse estorvado ainda mais do que ela.
Finalmente alcançou a ponte. Avançou pela multidão, que era menos densa naquela extremidade. Todos olhavam para o outro lado, onde uma pesada carroça, carregada de lã, bloqueava a passagem de um carro de boi. Ela tinha de chegar à casa de Caris, quase à vista, na rua principal.
- Deixem-me passar! - gritou ela, lutando para se adiantar.
Apenas uma pessoa pareceu ouvi-la. Uma cabeça virou-se para olhar, e ela reconheceu o irmão, Philemon. Ele abriu a boca, em alarme, e tentou se aproximar, mas a multidão resistiu a seu avanço, tanto quanto resistia a ela.
Gwenda tentou passar pela parelha de bois que puxava a carroça, mas um boi virou a cabeça maciça e empurrou-a para o lado. Ela perdeu o equilíbrio... e nesse momento uma mão enorme agarrou-a pelo braço e deu-lhe um puxão poderoso. Ela compreendeu que fora recapturada.
- Peguei você, sua vaca - balbuciou Sim.
Ele deu um tapa na cara de Gwenda, com toda força. Ela não tinha mais qualquer energia para resistir. Skip tentava morder, em vão, os calcanhares de Sim.
- Não vai me escapar de novo - resmungou ele.
O desespero dominou-a. Fora tudo por nada: seduzir Alwyn, assassiná-lo, correr por quilômetros. Estava de volta ao ponto em que começara, a cativa de Sim.
E, de repente, a ponte começou a balançar.
Merthin viu a ponte vergar. Sobre o píer central, no lado próximo, toda a superfície vergou, como um cavalo com o dorso quebrado. As pessoas que atormentavam Nell descobriram de repente que as tábuas sob seus pés já não eram mais firmes. Cambalearam, agarrando as pessoas próximas em busca de apoio. Uma caiu para trás, passou por cima do parapeito e despencou no rio, logo seguida por outra. Os gritos e vaias dirigidos contra Nell foram logo abafados em berros de alerta e medo.
- Oh, não! - exclamou Merthin.
- O que está acontecendo? - gritou Caris.
Todas essas pessoas, ele teve vontade de dizer... pessoas com quem fomos criados, mulheres que foram bondosas conosco, crianças que nos admiram; mães e filhos, tios e sobrinhas; mestres cruéis, inimigos jurados, amantes ansiosos... todos vão morrer. Mas ele não foi capaz de emitir qualquer palavra.
Por um momento - menos que uma respiração - Merthin torceu para que a estrutura pudesse estabilizar na nova posição; mas ficou desapontado. A ponte vergou de novo. E desta vez as tábuas engatadas começaram a se soltar das articulações. As pranchas longitudinais, sobre as quais as pessoas pisavam, saíram das cavilhas de madeira; as juntas transversais, que sustentavam o leito da ponte, viraram e saíram dos encaixes; e as cintas de ferro que Elfric pregara sobre as rachaduras foram arrancadas da madeira.
A parte central da ponte pareceu dar uma guinada para baixo, no lado mais próximo de Merthin, rio acima. A carroça carregada de lã inclinou-se e os espectadores de pé e sentados nas pilhas de sacos foram lançados no rio.
Vigas enormcs se partiram e voaram pelo ar, matando todas as pessoas que atingiam. O parapeito insubstancial cedeu e a carroça deslizou lentamente pela beira, a parelha de bois, impotente, mugindo em terror. Caiu com uma lentidão de pesadelo, e bateu na água com um estrondo. E, de repente, havia dezenas de pessoas se jogando ou caindo no rio, logo seguidas por outras dezenas. As pessoas que já estavam na água eram atingidas pelas outras que caíam, pelas madeiras que se desintegravam, alguns fragmentos pequenos, outros imensos. Cavalos também caíam, com e sem cavaleiros, carroças despencando por cima.
O primeiro pensamento de Merthin foi sobre os pais. Nenhum dos dois fora ao julgamento de Crazy Nell, e não teriam a menor disposição para acompanhar sua punição: a mãe achava que esses espetáculos públicos eram abaixo de sua dignidade, e o pai não tinha o menor interesse quando a única coisa em jogo era a vida de uma louca. Em vez disso, haviam ido ao priorado para se despedir de Ralph.
Mas Ralph estava agora na ponte.
Merthin podia ver o irmão fazendo o maior esforço para controlar o cavalo, Griff, que empinou, batendo no ar com os cascos da frente.
- Ralph! - gritou ele, inutilmente.
As tábuas por baixo do cavalo cederam. Griff caiu na água.
- Não! - berrou Merthin, quando cavalo e cavaleiro desapareceram de sua vista.
O olhar de Merthin deslocou-se para o outro lado, onde Caris avistara Gwenda. Viu-a lutando contra um homem de túnica amarela. No instante seguinte, essa parte também despencou. As duas extremidades da ponte foram puxadas para a água pelo meio desabando.
O rio era agora uma massa de pessoas se debatendo, cavalos em pânico, tábuas quebradas, corpos ensangüentados. Merthin compreendeu que Caris não se encontrava mais ao seu lado quando a viu correndo pela margem na direção da ponte. Ela pulava pedras, afundava na lama, mas seguia em frente. Olhou para trás e gritou:
- Depressa! O que está esperando? Vamos ajudar!
Um campo de batalha deve ser assim, pensou Ralph: os gritos, a violência fortuita, as pessoas caindo, os cavalos enlouquecidos pelo medo. Foi o último pensamento que ele teve antes que a ponte despencasse no ponto em que se encontrava.
Sofreu um momento de terror absoluto. Não podia entender o que havia acontecido. A ponte estava ali, debaixo dos cascos de seu cavalo, mas agora não estava mais, e ele e Griff davam cambalhotas pelo ar. Um momento depois, não podia mais sentir a massa familiar do cavalo entre suas coxas, e compreendeu que não se encontravam mais juntos. E bateu na água fria.
Afundou e prendeu a respiração. O pânico deixou-o. Agora, sentia-se assustado, mas calmo. Brincara no mar quando era criança - uma aldeia à beira-mar era um dos domínios do pai - e sabia que voltaria à superfície, embora pudesse demorar um pouco. Era arrastado para o fundo pelo peso das grossas roupas de viagem, agora molhadas, e da espada.
Se estivesse de armadura, afundaria até o leito do rio e lá permaneceria para sempre. Mas finalmente a cabeça tornou a aflorar à superfície e ele aspirou o ar, sôfrego.
Nadara muito quando era menino, mas isso fora há muitos anos. Mesmo assim, a técnica voltou, mais ou menos, e conseguiu manter a cabeça acima da água. Começou a bater braços e pernas na direção da margem norte. Reconheceu a seu lado a pelagem castanha e a crina preta de Griff, fazendo a mesma coisa que ele, nadando para a praia mais próxima.
A postura do cavalo mudou de repente, e Ralph compreendeu que seus cascos agora se apoiavam no leito do rio. Estendeu as pernas para o fundo e descobriu que dava pé também para ele. Avançou com alguma dificuldade. A lama pegajosa parecia querer sugá-lo para o meio da correnteza. Griff subiu para a faixa estreita de praia por baixo da muralha do priorado. Ralph fez a mesma coisa.
Virou-se e olhou para trás. Havia várias centenas de pessoas na água, muitas sangrando, muitas gritando, muitas mortas. Quase na beira, ele avistou alguém com a libré vermelha e preta do conde de Shiring, flutuando, o rosto virado para baixo. Tornou a entrar na água, agarrou o homem pelo cinto, e arrastou-o para a margem.
Virou o corpo, e seu coração teve um sobressalto no reconhecimento. Era seu amigo Stephen. Tinha o rosto ileso, mas o peito parecia ter afundado. Os olhos estavam arregalados, mas sem qualquer sinal de vida. Não havia respiração. O corpo ficara lesionado demais para que Ralph pudesse sequer sentir as batidas do coração. Há poucos minutos, pensou Ralph, eu o invejava. Agora, sou o afortunado.
Com um sentimento de culpa irracional, ele fechou os olhos de Stephen.
Pensou nos pais. Deixara-os no pátio do estábulo apenas alguns minutos antes. Mesmo que o tivessem seguido, ainda não teriam alcançado a ponte. Deviam estar seguros.
Onde estava lady Philíppa? Ralph projetou a mente de volta à cena na ponte, pouco antes do desabamento. Lorde William e Philippa se encontravam na retaguarda da procissão do conde, e ainda não haviam entrado na ponte.
Mas o conde já entrara.
Ralph conseguiu projetar a cena com toda nitidez. O conde Roland estava perto dele, impaciente, instigando seu cavalo, Victory, a avançar pelo espaço aberto na multidão por Ralph, montado em Griff. Portanto, Roland devia ter caído perto de Ralph.
Ele ouviu as palavras do pai: Mantenha-se sempre alerta a todas as oportunidades de agradar ao conde. Talvez fosse aquela a grande oportunidade que esperava, pensou Ralph, excitado. Talvez não precisasse esperar por uma guerra. Podia se distinguir hoje. Salvaria o conde... ou mesmo apenas Victory.
O pensamento incutiu-lhe uma nova energia. Esquadrinhou o rio. O conde vestia uma túnica purpura distintiva e um manto de veludo preto. Mas era difícil distinguir uma pessoa na massa fervilhante de corpos, vivos e mortos. Até que avistou um garanhão preto, com uma mancha branca sobre um olho.
Seu coração disparou: era o cavalo de Roland, Victory debatia-se na água, parecendo incapaz de nadar em linha reta, provavelmente com uma ou mais pernas quebradas.
Ao lado do cavalo, flutuava um corpo alto, de túnica purpura.
Aquele era o momento de Ralph.
Ele tirou os trajes externos, pois tornariam o nado difícil. Apenas com o calção de baixo, tornou a entrar no rio e nadou na direção do conde. Teve de forçar a passagem por homens, mulheres e crianças. Muitos dos vivos o agarravam, desesperados, retardando seu progresso. Ralph tratou de repeli-los, implacável, com socos furiosos.
Finalmente alcançou Victory. Os movimentos do animal eram mais fracos agora. Ficou imóvel por um instante, para depois começar a afundar; mas quando a cabeça entrou toda na água, o cavalo voltou a se debater.
- Calma, rapaz, calma... - murmurou Ralph em seu ouvido, embora tivesse certeza de que o cavalo morreria afogado.
Roland flutuava de costas, os olhos fechados, inconsciente ou morto. Tinha um pé ainda preso no estribo e parecia ser isso que impedia o corpo de afundar. Perdera o chapéu e o alto da cabeça era uma massa ensangüentada. Ralph não podia imaginar que o homem fosse capaz de sobreviver a um ferimento assim. De qualquer forma, trataria de salvá-lo. Haveria com certeza alguma recompensa apenas pelo cadáver, quando era de um conde.
Ele tentou arrancar o pé de Roland do estribo, mas descobriu que a tira de couro enrolara no tornozelo. Estendeu a mão para sua faca, mas se lembrou que ela estava presa no cinto, que deixara na praia, junto com o resto dos trajes externos. Mas o conde tinha armas. Ralph tateou para tirar da bainha a adaga de Roland.
As convulsões de Victory tornavam difícil cortar a tira. Cada vez que Ralph segurava o estribo, o cavalo agonizante estrebuchava e se afastava de seu alcance, antes que ele pudesse encostar a faca no couro. Cortou o dorso da própria mão no esforço. Ao final, apoiou-se no flanco do cavalo, em busca de estabilidade, e nessa posição foi capaz de cortar a tira do estribo.
Agora, tinha de arrastar o conde inconsciente até a margem. Ralph não era um bom nadador, e já se encontrava ofegante de exaustão. Para agravar a situação, não podia respirar direito através do nariz quebrado, e por isso sua boca se enchia a todo instante com a água do rio. Ele ficou quieto por um momento, apoiando o peso do corpo no condenado Victory, enquanto tentava recuperar o fôlego; mas o corpo do conde, agora sem nada para segurá-lo na superfície, começou a afundar, e Ralph compreendeu que não podia descansar.
Pegou o tornozelo de Roland com a mão direita e começou a nadar para a margem. Descobriu que era mais difícil manter a cabeça acima da superfície quando só tinha um braço para nadar. Não olhava para Roland: se a cabeça do conde ficasse coberta pela água, não haveria nada que Ralph pudesse fazer para evitar. Depois de alguns segundos, ofegava para respirar e sentia braços e pernas doendo muito.
Não estava acostumado a uma coisa assim. Era jovem e forte, passara toda a sua vida cavalgando, participando de justas, lutando com a espada.
Podia passar o dia inteiro na sela e, na mesma noite, ganhar uma disputa de luta livre. Mas agora ele parecia depender de músculos pouco usados. O pescoço doía do esforço de manter a cabeça erguida. Não conseguia deixar de engolir água quando respirava, e isso o fazia tossir e sufocar. Agitava o braço esquerdo frenético, mas só conseguia se manter à tona. Puxava o volumoso corpo do conde, ainda mais pesado por causa das roupas molhadas. Foi se aproximando da praia com uma lentidão angustiante.
Até que chegou bastante perto de apoiar os pés no leito do rio. Resfolegante, passou a andar, sempre puxando o corpo de Roland. Quando a água ficou na altura das coxas, Ralph virou-se, pegou o corpo do conde nos braços, e carregouo pelos últimos passos até a praia.
Pôs o corpo no chão e arriou ao lado, exausto. Com o que lhe restava de força, sentiu o peito do conde. O coração batia forte.
O conde Roland estava vivo.
O desabamento da ponte deixou Gwenda paralisada pelo medo. Um instante depois, o súbito mergulho na água fria provocou um choque que a levou de volta ao normal.
Quando sua cabeça aflorou à superfície, descobriu-se cercada por pessoas se debatendo e gritando. Alguns haviam encontrado pedaços de madeira para mantêlos à tona, mas todos os outros tentavam se manter na superfície se apoiando em alguém. As pessoas empurradas para baixo tentavam se desvencilhar, reagindo com socos. Muitos golpes erravam o alvo; e os homens que se apoiavam nelas tratavam de voltar. Era como estar na frente de uma taverna de Kingsbridge à meia-noite. Seria cômico, se as pessoas não estivessem morrendo.
Gwenda ofegou para respirar e afundou. Não sabia nadar.
Logo retornou à superfície. Para seu horror, deparou com Sim Chapman bem à sua frente, soprando água pela boca, como uma fonte. Ele começou a afundar, obviamente porque não sabia nadar, como Gwenda. Em desespero, Sim seguroua pelo ombro e tentou usá-la para se apoiar. Gwenda afundou no mesmo instante. Ao constatar que ela não poderia mantê-lo na superfície, Sim largou-a.
Abaixo da superfície, prendendo a respiração, com um esforço para conter o pânico, ela pensou: Não posso me afogar agora, depois de tudo por que passei.
Na outra vez em que voltou à tona, ela sentiu que era empurrada para o lado por um corpo pesado. Pelo canto do olho, viu que era o boi que esbarrara nela um momento antes de a ponte desabar. Parecia ileso e nadava com vigor. Gwenda alcançou-o, batendo os pés, e conseguiu segurar um dos chifres. Puxou a cabeça do animal para o lado, por um momento, mas logo o pescoço poderoso do boi tornou a erguê-la.
Gwenda não largou o chifre.
Seu cachorro, Skip, apareceu ao seu lado, nadando sem esforço. Latiu de alegria ao vê-la.
O boi seguia para a praia além da cidade. Gwenda continuou a segurar o chifre, embora tivesse a sensação de que o braço estava prestes a se soltar do encaixe.
Alguém segurou-a, e ela olhou para trás e viu que era Sim de novo. No esforço de usá-la para se manter à tona, ele puxou-a para baixo. Sem largar o boi, ela se clesvencilhou de Sim com a mão livre. Ele recuou, a cabeça próxima dos pés de Gwenda. Ela mirou com todo cuidado, e acertou um chute em sua cara, com toda a força de que era capaz. Ele soltou um grito de dor, logo abafado quando sua cabeça afundou.
O boi alcançou um ponto em que podia pisar no fundo e saiu do rio, espanando água e bufando. Gwenda largou-o assim que descobriu que já dava pé para ela.
Skip soltou um latido assustado, e Gwenda olhou ao redor, cautelosa. Sim não estava na margem. Ela esquadrinhou o rio, à procura do brilho de uma túnica amarela entre os corpos e as madeiras flutuantes.
Avistou-o, segurando um pedaço de tábua que o mantinha à tona. Batia as pernas e avançava direto para o lugar em que ela se encontrava.
Gwenda não podia correr. Não lhe restava qualquer força, o vestido estava molhado. Não havia onde se esconder naquele lado do rio. E agora que a ponte desabara, não havia jeito de atravessar o rio para Kíngsbridge.
Mas não deixaria que Sim a levasse.
Viu que ele se debatia, o que lhe proporcionou alguma esperança. A tábua o manteria à tona se ficasse quieto, mas Sim batia as pernas para alcançar a margem, e os movimentos o desestabilizavam. Ele puxava a tábua para se erguer, depois batia as pernas para se aproximar da margem, e a cabeça tornava a afundar. Talvez não conseguisse sair do rio.
Mas Gwenda compreendeu que não podia ter certeza disso.
Ela olhou ao redor. Havia muita madeira na água, de pequenos fragmentos a pranchas enormes. Seus olhos se iluminaram quando viu uma tábua grossa, talvez com um metro de comprimento. Ela entrou na água e pegou-a. Depois, seguiu por dentro da água na direção do homem que a comprara.
Teve a satisfação de perceber o brilho do medo nos olhos de Sim.
Ele parou de bater os pés. A sua frente, via a mulher que tentara escravizar... furiosa, determinada, brandindo um porrete formidável. Por trás, a morte por afogamento espreitava-o.
Ele se adiantou.
Gwenda estava de pé, com água até a cintura, à espera do momento certo.
Viu Sim parar de novo, e percebeu por seus movimentos que ele estendia os pés à procura do leito do rio.
Tinha de ser agora ou nunca.
Gwenda ergueu a madeira por cima da cabeça e adiantou-se. Sim compreendeu o que ela pretendia fazer e tentou se esquivar, desesperado. Mas estava meio desequilibrado, nem nadando nem vadeando, e não tinha como escapulir. Gwenda bateu com a tábua em sua cabeça, com toda a sua força.
Sim revirou os olhos e arriou, inconsciente.
Ela inclinou-se para a frente e agarrou-o pela túnica amarela. Não deixaria que Sim flutuasse para longe... pois ele poderia sobreviver. Puxou-o, pôs as duas mãos em sua cabeça, e empurrou-a para baixo da água.
Era mais difícil do que imaginara manter um corpo abaixo da superfície, mesmo ele estando inconsciente. Os cabelos ensebados eram escorregadios. Ela teve de prender a cabeça sob seu braço e depois tirar os pés do fundo, para que seu peso levasse ambos para baixo.
E começou a sentir que poderia subjugá-lo. Quanto tempo era preciso para afogar um homem? Não tinha a menor idéia. Os pulmões de Sim já deviam estar se enchendo de água. Como ela saberia quando poderia largá-lo?
Subitamente, ele se contorceu. Gwenda apertou sua cabeça com mais força. Por um momento, teve de fazer um tremendo esforço para contê-lo Não sabia se ele recuperara os sentidos ou se era uma convulsão da inconsciência. Os espasmos de Sim eram fortes, mas pareciam aleatórios. Os pés de Gwenda tornaram a tocar no fundo, ela se firmou, e continuou a apertá-lo.
Olhou ao redor. Ninguém a observava: todos estavam concentrados em se salvar.
Depois de alguns momentos, os movimentos de Sim foram se tornando mais fracos. E logo ele ficou imóvel. Pouco a pouco, ela soltou-o. Sim afundou.
E não tornou a subir.
Ofegante, ela voltou à margem do rio. Sentou no chão lamacento. Procurou a bolsa de couro no cinto; continuava ali. Os bandidos não haviam se preocupado em roubá-la, e ela conseguira preservá-la através de todas as suas atribulações. Continha a preciosa poção do amor feita por Mattie Wise. Gwenda abriu a bolsa para verificar... e encontrou apenas fragmentos de cerâmica. O pequeno frasco se quebrara.
Ela começou a chorar.
A primeira pessoa que Caris viu fazer alguma coisa sensata foi Ralph, o irmão de Merthin. Ele vestia apenas um calção de baixo, encharcado. Não estava ferido, além do nariz vermelho e inchado, que já tinha antes. Ralph tirou o conde de Shiring do rio e deitou-o na margem, ao lado de um corpo que já se encontrava ali, de um homem com a libré do conde. Roland tinha um horrível ferimento na cabeça, que podia ser fatal. Ralph parecia exausto do esforço e sem saber o que fazer em seguida. Caris pensou no que deveria lhe dizer.
Olhou ao redor. Naquele lado, a margem do rio consistia de pequenas praias lamacentas, separadas por rochas. Não havia muito espaço para acomodar os mortos e feridos ali; teriam de ser levados para outro lugar.
A poucos metros de distância, alguns degraus de pedra subiam do rio para um portão no muro do priorado. Caris tomou uma decisão. Apontou e disse para Ralph:
- Leve o conde para o priorado por ali. Deite-o com todo cuidado na catedral, e corra até o hospital. Diga à primeira freira que encontrar para chamar madre Cecília imediatamente.
Ralph parecia contente por contar com uma pessoa decidida para obedecer. Não hesitou em fazer o que era ordenado.
Merthin começou a entrar na água, mas Caris deteve-o.
- Olhe para aquele bando de idiotas. - Ela apontou para o lado da cidade da ponte desabada. Havia dezenas de pessoas paradas ali, olhando aturdidas para a cena trágica no rio. - Convoque os homens mais fortes que estiverem ali. Eles podem começar a tirar as pessoas do rio e carregá-las para a catedral.
Ele hesitou.
- Os homens não têm como descer até aqui.
Caris compreendeu o argumento. Eles teriam de descer pelos destroços da ponte, o que provavelmente causaria mais feridos. Mas as casas naquele lado da rua principal tinham hortas nos fundos que subiam até o muro do priorado. A casa na esquina, pertencente a Ben Wheeler, tinha uma pequena porta no muro, que permitia o acesso ao rio. Merthin pensou a mesma coisa.
- Eu os trarei através da casa e da horta de Ben Wheeler.
- Boa idéia.
Ele subiu pelos rochedos, abriu a porta e desapareceu. Caris olhou para a água. Um homem alto vadeava pela beira do rio para alcançar a margem. Ela reconheceu Philemon. Ofegante, ele perguntou:
- Viu Gwenda?
- Vi, sim... pouco antes de a ponte desabar - respondeu Caris. - Ela fugia de Sim Chapman.
- Eu sei... mas onde ela está agora?
- Não sei. A melhor coisa que você pode fazer agora é começar a tirar as pessoas da água.
- Quero encontrar minha irmã.
- Se ela estiver viva, será uma das pessoas que precisam de ajuda para sair da água.
Caris também estava desesperada para saber onde sua própria família se encontrava... mas havia muita coisa para fazer ali. Ela prometeu a si mesma que procuraria o pai assim que fosse possível.
Ben Wheeler passou por seu portão. Um homem atarracado, de ombros largos e pescoço grosso, era um carroceiro; ganhava a vida mais pelo uso dos músculos do que do cérebro. Desceu para a praia e olhou ao redor, sem saber o que fazer.
Estendido no chão, perto de Caris, estava um dos homens do conde Roland, usando a libré vermelha e preta, aparentemente morto. Ela disse:
- Ben, leve este homem para a catedral.
A mulher de Ben, Lib, também passou pelo portão, com uma criança no colo. Era um pouco mais inteligente do que o marido, e perguntou:
- Não deveríamos cuidar dos vivos primeiro?
- Temos de tirar as pessoas da água antes de sabermos se estão vivas ou mortas... e não podemos deixar os corpos aqui na margem porque isso atrapalharia as equipes de resgate. Devemos levá-los para a catedral.
Lib percebeu que o argumento fazia sentido.
- É melhor fazer logo o que Caris está pedindo, Ben - disse ela. Ben levantou o corpo sem o menor esforço e afastou-se.
Caris compreendeu que poderiam transportar os corpos mais depressa se os carregassem nas padiolas que os construtores costumavam usar.
Os monges poderiam organizar esse transporte. Mas onde estavam os monges? Dissera a Ralph para avisar madre Cecilia, mas até agora ninguém aparecera. Os feridos precisariam de ataduras, ungüentos e fluidos de limpeza. Todas as freiras e os monges teriam de ajudar. Matthew Barber deveria ser chamado: haveria muitos ossos quebrados para consertar. E Mattie Wise também deveria ajudar, dando poções aos feridos para aliviar a dor. Caris tinha de dar o alarme, mas relutava em deixar a beira do rio antes que a operação de resgate estivesse organizada. Onde estava Merthin?
Uma mulher engatinhou para a praia. Caris entrou na água e ajudou-a a se levantar. Era Griselda. O vestido molhado grudava no corpo e Caris podia ver os contornos dos seios cheios e das coxas grossas. Como sabia que ela estava grávida, Caris perguntou, na maior ansiedade:
-Você está bem?
- Acho que sim.
- Está sangrando? -Não.
- Graças a Deus!
Caris olhou ao redor e sentiu-se grata ao ver Merthin passar pelo portão de Ben Wheeler, à frente de uma fileira de homens, alguns dos quais com a libré do conde. Gritou para ele:
- Pegue o braço de Griselda, e ajude-a a subir os degraus até o priorado. Ela deve sentar e descansar um pouco. - Uma pausa e Caris acrescentou, tranqüilizadora: - Ela está bem.
Merthin e Griselda fitaram-na de uma maneira estranha, e ela compreendeu de repente que a situação era mesmo esquisita. Os três ficaram imóveis por um momento, num triângulo paralisado: a futura mãe, o pai de sua criança, e a mulher que o amava.
Mas logo Caris virou-se, rompendo o encantamento, e passou a dar ordens aos homens.
Gwenda chorou por uns poucos momentos, mas logo parou. Não era tanto o frasco quebrado que a deixava triste. Afinal, Mattie podia fazer outra poção do amor, e Caris pagaria, se as duas ainda estivessem vivas. Suas lágrimas eram por tudo o que passara nas últimas vinte e quatro horas, da traição do pai aos pés sangrando.
Não sentia qualquer arrependimento pelos dois homens que matara. Sim e Alwyn queriam escravizá-la e prostituí-la. Mereciam morrer. Matá-los nem mesmo fora assassinato, pois não era crime eliminar um fora-da-lei. Ainda assim, ela não conseguia fazer com que as mãos parassem de tremer. Exultava por ter vencido seus inimigos e conquistado a liberdade, mas ao mesmo tempo sentia-se angustiada pelo que fizera. Jamais esqueceria a maneira como o corpo agonizante de Sim estrebuchara até o fim. E temia que a visão de Alwyn com a ponta da adaga saindo pelo olho poderia atormentá-la nos sonhos. Não podia deixar de tremer, dominada por sentimentos contraditórios tão fortes.
Tentou apagar as duas mortes de sua mente. Quem mais teria morrido? Seus pais planejavam deixar Kingsbridge no dia anterior. Mas o que teria acontecido com seu irmão, Philemon? Com Caris, sua maior amiga? E Wulfric, o homem que tanto amava?
Ela olhou através do rio e sentiu-se tranqüilizada em relação a Caris. Ela estava na outra margem, com Merthin, e os dois pareciam organizar um grupo de homens para tirar as pessoas da água. Gwenda sentiu um fluxo de gratidão: pelo menos não ficara completamente sozinha no mundo.
Mas onde estava Philemon? Fora a última pessoa que ela vira antes do desabamento. Era de se imaginar que caíra perto dela, mas não podia avistá-lo agora.
E onde estava Wulfric? Duvidava que ele pudesse apreciar o espetáculo de uma bruxa sendo açoitada através da cidade. Mas ele planejava voltar para Wigleigh hoje com a família, e era possível - oh, Deus, não! - que eles estivessem atravessando a ponte quando ocorrera o desabamento. Ela correu os olhos pela superfície, frenética, procurando pelos cabelos fulvos distintivos. Rezou para vêdo nadar vigorosamente para a praia, em vez de flutuar com o rosto virado para baixo. Mas não o viu em parte alguma.
Decidiu atravessar o rio. Não sabia nadar, mas pensou que seria possível se tivesse uma tábua bastante grande para mantê-la na superfície enquanto batia os pés. Encontrou uma tábua apropriada, tirou-a da água e caminhou pela margem por cinqüenta metros, rio acima, a fim de ficar longe da massa de corpos. Entrou na água. Skip seguiu-a, assustado. Foi mais difícil do que imaginara, com o vestido molhado retardando o progresso, mas finalmente alcançou a outra margem.
Correu para Caris. As duas se abraçaram. Caris perguntou:
- O que aconteceu?
- Fugi.
- E Sim?
- Ele era um bandido. -Era?
- Ele morreu.
Caris mostrou-se surpresa, e Gwenda apressou-se em acrescentar:
- Morreu quando a ponte desabou. - Ela não queria que ninguém soubesse das circunstâncias exatas, nem mesmo sua melhor amiga. - Viu alguém da minha família?
- Seus pais deixaram a cidade ontem. Vi Philemon há poucos momentos... ele estava à sua procura.
- Graças a Deus! Sabe alguma coisa sobre Wulfric?
- Não. Ele não foi tirado do rio. A noiva deixou a cidade ontem, mas seus pais e seu irmão estiveram na catedral esta manhã, durante o julgamento de Crazy Nell.
- Tenho de procurá-lo.
- Boa sorte.
Gwenda subiu apressada os degraus e atravessou o pátio gramado. Uns poucos negociantes ainda arrumavam seus pertences, no final da feira. Ela achou incrível que fossem capazes de continuar em suas atividades normais quando centenas de pessoas acabavam de morrer num acidente... até compreender que era provável que as pessoas ali ainda não soubessem; a tragédia acontecera apenas poucos minutos antes, embora a sensação fosse de que várias horas se haviam passado.
Ela passou pelos portões do priorado para a rua principal. Wulfric e sua família haviam se hospedado na Bell. Ela entrou correndo.
Havia um adolescente parado ao lado do barril de cerveja, com uma expressão assustada.
- Estou procurando Wulfric Wigleigh - disse Gwenda.
- Não há mais ninguém aqui. Sou o aprendiz. Deixaram-me para tomar conta da cerveja.
Alguém convocara todo mundo para ajudar na beira do rio, pensou Gwenda. Ela tornou a sair, correndo. Deparou-se com Wulfric no momento em que passou pela porta. Gwenda sentiu-se tão aliviada que o abraçou.
- Você está vivo... graças a Deus!
- Alguém disse que a ponte desabou. Quer dizer que é verdade?
- É, sim... uma coisa horrível. Onde está o resto de sua família?
- Todos partiram há algum tempo. Fiquei para cobrar uma dívida. - Ele levantou uma pequena bolsa de couro com dinheiro. - Espero que não estejam entre as vítimas do desabamento da ponte.
- Sei como podemos descobrir. Venha comigo.
Gwenda pegou-o pela mão. Wulfric deixou que ela o levasse para o priorado sem retirar a mão. Ela não o tocava havia muito tempo. Ele tinha a mão enorme, os dedos grossos do trabalho, a palma macia. O contato deixou-a emocionada, apesar de tudo o que acontecera. Atravessaram o pátio gramado e entraram na catedral.
- Estão tirando as pessoas do rio e trazendo para cá - explicou ela.
Já havia vinte ou trinta corpos no chão de pedra da nave, e mais chegavam a todo instante. Algumas freiras cuidavam dos feridos, e pareciam muito pequenas no contraste com os poderosos pilares ao redor. O monge cego que conduzia o coro parecia ter assumido o comando.
- Ponham os mortos no lado norte - disse ele, quando Wulfric e Gwenda entraram na nave. - Os feridos vão para o sul.
Subitamente, Wulfric soltou um grito de choque e consternação. Gwenda seguiu seu olhar e avistou David, o irmão de Wulfric, estendido entre os feridos. Ajoelharam-se no chão, ao seu lado. David era dois anos mais velho do que Wulfric, com o mesmo corpo enorme. Respirava e tinha os olhos abertos, mas parecia não vê-los.
- Dave... - chamou o irmão, em voz baixa e urgente. - Sou eu, Wulfric. Gwenda sentiu alguma coisa pegajosa e descobriu que David estava estendido no meio de uma poça de sangue.
- Dave... onde estão mamãe e papai?
Não houve resposta. Gwenda olhou ao redor e avistou a mãe de Wulfric. Ela estava no lado norte da nave, onde Blind Carlus mandava deixarem os mortos. -Wulfric...
-Oqueé?
- Sua mãe. Ele levantou-se e olhou.
- Oh, não!
Atravessaram a catedral. A mãe de Wulfric estava estendida ao lado de Sir Stephen, o senhor de Wigleigh... iguais agora. Era uma mulher pequena... e todos se espantavam por ter tido dois filhos tão grandes. Em vida, era vigorosa e cheia de energia, mas agora parecia uma boneca frágil e magra. Wulfric pôs a mão em seu peito, à procura de batidas do coração. Quando apertou, um filete de água escorreu da boca de sua mãe.
- Ela se afogou - sussurrou ele.
Gwenda estendeu o braço pelos ombros largos de Wulfric, tentando confortá-lo com o contato. Não dava para saber se ele notara.
Um homem de armas, usando a libré vermelha e preta do conde Roland, aproximou-se nesse instante, carregando o corpo sem vida de um homem enorme. Wulfric soltou um grito angustiado. Era seu pai.
- Pode deixá-lo aqui, ao lado da esposa - disse Gwenda.
Wulfric estava atordoado. Não disse nada. Parecia incapaz de absorver o que acontecera. Gwenda sentia-se aflita. O que poderia dizer ao homem que amava naquelas circunstâncias? Todas as frases que afloravam em sua mente pareciam estúpidas. Queria desesperadamente lhe proporcionar algum conforto, mas não sabia como.
Enquanto Wulfric contemplava os corpos da mãe e do pai, Gwenda olhou para seu irmão. David parecia imóvel demais. Ela se encaminhou apressada para o seu lado. Os olhos abertos fixavam-se no teto, sem ver, e ele não respirava mais. Gwenda encostou a mão em seu peito. Não sentiu as batidas do coração.
Como Wulfric poderia suportar?
Ela removeu as lágrimas de seus olhos e voltou para junto dele. Não havia sentido em esconder a verdade.
- David também morreu - murmurou ela.
Wulfric permaneceu com os olhos vazios, como se não compreendesse. Ocorreu a Gwenda o pensamento terrível de que o choque fizera-o perder o juízo. Mas ele finalmente falou, num sussurro:
- Todos eles... todos os três... todos mortos.
Ele fitou Gwenda, que viu as lágrimas aflorarem em seus olhos. Ela abraçouo, sentindo seu corpo enorme se sacudir em soluços desamparados. Apertou-o com força e murmurou:
- Pobre Wulfric... pobre e amado Wulfric...
- Graças a Deus que ainda tenho Annet - sussurrou ele.
Uma hora depois, os corpos dos mortos e feridos cobriam a maior parte do chão da nave. Blind Carlus, o vice-prior, estava parado no meio de tudo, com o tesoureiro Simeon de rosto fino ao lado, servindo como seus olhos. Carlus assumira o comando porque o prior Anthony havia desaparecido.
- Irmão Theodoric, é você? - indagou ele, aparentemente reconhecendo os passos do monge de pele clara e olhos azuis, que acabara de entrar. - Procure o coveiro. Diga a ele para providenciar seis homens fortes para ajudá-lo. Vamos precisar de pelo menos cem novas covas, e não podemos demorar com os sepultamentos nesta época do ano.
- Imediatamente, irmão - disse Theodoric.
Caris ficou impressionada pela eficiência com que Carlus era capaz de organizar tudo, apesar da cegueira.
Ela deixara Merthin cuidar com toda competência do resgate dos corpos ainda no rio. Providenciara para que todas as freiras e monges fossem avisados do desastre, depois chamara Matthew Barber e Mattie Wise. E, finalmente, procurara sua própria família.
Só tio Anthony e Griselda estavam na ponte no momento do desabamento. Ela encontrara o pai no salão da guilda, em companhia de Buonaventura Caroli. Edmund comentara:
- Agora eles terão de construir uma nova ponte de qualquer maneira!
E ele descera mancando até a beira do rio para ajudar a tirar as pessoas da água. Os outros também estavam sãos e salvos: tia Petranilla se encontrava em casa na ocasião, cozinhando; a irmã de Caris, Alice, fora com o marido, Elfric, à Bell Inn; o primo Godwyn ficara na catedral, inspecionando os reparos no lado sul do coro.
Griselda fora agora descansar em casa. Anthony continuava desaparecido. Caris não gostava do tio, mas também não queria sua morte. Procurava-o ansiosa sempre que um novo corpo entrava na catedral.
Madre Cecilia e as freiras lavavam ferimentos, aplicavam mel como antiséptico, prendiam ataduras, e serviam canecas restaurativas de cerveja quente bem temperada. Matthew Barber, o competente e incisivo cirurgião com experiência em campo de batalha, trabalhava em cooperação com a gorda e ofegante Mattie Wise. Era ela quem administrava uma poção calmante poucos minutos antes de Matthew consertar pernas e braços quebrados.
Caris foi até o transepto sul. Ali, longe do barulho, confusão e sangue na nave, os monges médicos sêniores agrupavam-se em torno do corpo ainda inconsciente do conde de Shiring. Suas roupas molhadas haviam sido removidas e o corpo estava coberto por uma manta grossa.
- Ele está vivo - disse o irmão Godwyn. Mas seu ferimento é muito grave. Godwyn apontou para a parte posterior da cabeça e acrescentou:
- Parte do crânio foi esmigalhada.
Caris espiou por cima do ombro de Godwyn. Podia ver o crânio, como uma crosta de pastelão arrebentada, todo ensangüentado. Através das aberturas, dava para ver a matéria cinzenta por baixo. Será que nada se podia fazer por um ferimento tão terrível?
Irmão Joseph, o mais velho dos médicos, achava que não. Esfregou o nariz grande e disse, através dos dentes estragados:
- Devemos trazer as relíquias do santo. - Como sempre, a voz saía engrolada e sibilante, como a de um bêbado. - São a sua melhor esperança de recuperação.
Caris tinha pouca fé no poder dos ossos de um homem havia muito morto para curar a cabeça quebrada de um homem vivo. Não disse nada, é claro; sabia que era diferente sob esse aspecto, e na maior parte do tempo guardava suas opiniões para si mesma.
Os filhos do conde, lorde William e bispo Richard, acompanhavam tudo. William, alto, cabelos pretos, porte militar, era uma versão mais jovem do homem inconsciente. Richard tinha os cabelos mais claros e era mais arredondado. O irmão de Merthin, Ralph, estava com eles.
- Tirei o conde da água - declarou ele.
Era a segunda vez que Caris o ouvia dizer isso. A esposa de William, Philippa, parecia tão insatisfeita quanto Caris com a declaração do irmão Joseph.
- Não há qualquer coisa que vocês possam fazer para ajudar o conde? - indagou ela.
Godwyn respondeu:
- A oração é a cura mais eficaz.
As relíquias eram guardadas num compartimento trancado por baixo do altarmor. Enquanto Godwyn e Joseph se afastavam para buscá-las, Matthew Barber inclinou-se sobre o conde e examinou o ferimento na cabeça.
- Nunca vai curar desse jeito - murmurou ele. - Nem mesmo com a ajuda do santo.
- Como assim? - perguntou William, ríspido. Caris pensou que ele falava como o pai.
- O crânio é um osso como qualquer outro - respondeu Matthew. - Pode se emendar por si mesmo, mas os pedaços precisam ser ajustados da maneira certa. Se não se fizer isso, crescerá torto.
- Acha que sabe mais do que os monges?
- Milorde, os monges sabem como invocar a ajuda do mundo espiritual. Eu apenas conserto ossos quebrados.
- E onde obteve esse conhecimento?
- Fui cirurgião com os exércitos do rei por muitos anos. Marchei com seu pai, o conde, nas guerras escocesas. Já vi cabeças quebradas antes.
- E o que faria por meu pai agora?
Matthew estava nervoso com o interrogatório agressivo de William, Caris sentiu; mas parecia seguro no que dizia.
- Separaria os pedaços de ossos quebrados do cérebro, limparia com todo cuidado e tentaria ajustá-los direito.
Caris respirou fundo, aturdida. Mal podia imaginar uma operação tão ousada. Como Matthew tinha a coragem de propô-la? E se desse errado?
- E ele vai se recuperar? - perguntou William.
- Não sei - respondeu Matthew. - Às vezes, um ferimento na cabeça tem estranhos efeitos; pode prejudicar a capacidade de um homem andar ou falar. Tudo o que posso fazer é remendar o crânio. Se querem milagres, peçam ao santo.
- Então não pode prometer sucesso.
- Só Deus é todo-poderoso. Os homens fazem o que podem e torcem pelo melhor. Mas creio que seu pai morrerá se o ferimento não for tratado.
- Mas Joseph e Godwyn leram os livros escritos pelos antigos filósofos médicos.
- E eu vi homens feridos no campo de batalha morrerem ou se recuperarem. É sua a decisão sobre em quem confiar.
William olhou para a esposa. Philippa disse:
- Deixe o barbeiro fazer o que pode, e peça para St. Adolphus ajudá-lo. William acenou com a cabeça. I
- Está bem. - Ele olhou para Matthew. - Pode começar.
- Quero o conde estendido numa mesa perto da janela, onde a claridade poderá iluminar o ferimento - disse Matthew, decidido.
William estalou os dedos para dois monges noviços.
- Façam tudo o que esse homem mandar - ordenou ele.
- Preciso também de uma tigela com vinho quente - acrescentou Matthew. Os monges trouxeram uma mesa de cavaletes do hospital e armaram-na por baixo da janela grande no transepto sul. Dois pajens levantaram o conde Roland sobre a mesa.
- O rosto virado para baixo, por favor - pediu Matthew. Eles viraram-no.
Matthew tinha uma bolsa de couro em que guardava todos os seus instrumentos afiados. Pegou primeiro uma tesoura pequena. Inclinou-se sobre o conde e começou a cortar os cabelos em torno do ferimento. O conde tinha cabelos pretos abundantes, que eram naturalmente oleosos. Matthew cortava as mechas e as jogava para o lado, a fim de que caíssem no chão. Depois que abriu um círculo em torno do ferimento, a lesão se tornou mais visível.
O irmão Godwyn voltou, carregando o relicário, a caixa esculpida com marfim e ouro contendo o crânio de St. Adolphus e os ossos de um braço e uma das mãos. Quando viu Matthew cuidando do conde Roland, ele perguntou, indignado:
- O que está acontecendo aqui? Matthew levantou os olhos.
- Se puser as relíquias sagradas nas costas do conde, tão perto da cabeça quanto possível, acho que o santo firmará minhas mãos.
Godwyn hesitou, obviamente furioso por um mero barbeiro ter assumido o comando. Lorde William interveio:
- Faça o que ele diz, irmão, ou a morte de meu pai pode lhe ser atribuída. Ainda assim, Godwyn não obedeceu. Em vez disso, dirigiu-se a Blind Carlus,
parado a poucos passos de distância:
- Irmão Carlus, lorde William ordenou...
- Ouvi o que lorde William disse - interrompeu-o Carlus. - É melhor fazer o que ele deseja.
Não era a resposta que Godwyn esperava. Seu rosto exibiu uma frustração furiosa. Com evidente desagrado, pôs o relicário sagrado nas costas largas do conde Roland.
Matthew segurou um fórceps. Com extremo cuidado, pegou a parte visível de um pedaço de osso e levantou-o, sem tocar na matéria cinzenta por baixo. Carís observava, fascinada. O osso desprendeu-se da cabeça, com pele e cabelos ainda grudados. Matthew pôs o fragmento de osso na tigela com vinho quente.
Fez a mesma coisa com mais dois fragmentos de osso. O barulho na nave - os gemidos dos feridos e os soluços dos parentes desconsolados - pareceu retroceder para um segundo plano. As pessoas observavam Matthew em silêncio, ainda num círculo ao seu redor e do conde inconsciente.
Em seguida, ele trabalhou nos fragmentos que continuavam presos no resto do crânio. Em cada caso, ele cortava os cabelos, limpava a área com um pedaço de linho embebido em vinho. Depois, usava o fórceps para ajeitar o osso no que julgava ser a posição original.
Caris mal respirava, de tão grande que era a tensão. Nunca admirara tanto alguém quanto admirava Matthew Barber naquele momento. Ele tinha muita coragem, habilidade e confiança. E efetuava aquela operação de delicadeza inconcebível num conde! Se saísse errada, provavelmente seria enforcado. Apesar disso, suas mãos eram tão firmes quanto as mãos dos anjos esculpidos em pedra por cima do portal da catedral.
Finalmente ele ajeitou os três pedaços de ossos que deixara na tigela com vinho, ajustando-os como se estivesse consertando um vaso quebrado.
Puxou a pele do couro cabeludo por cima do ferimento e costurou-a, com pontos rápidos e precisos.
O crânio de Roland estava agora completo.
- O conde deve dormir por um dia e uma noite - disse Matthew. - Se açordar, dêem a ele uma dose forte da poção para dormir de Mattie Wise. Depois, ele deve permanecer imóvel por quarenta dias e quarenta noites. Se for preciso, devem amarrá-lo.
Para encerrar, ele pediu a madre Cecilia que enfaixasse a cabeça do conde.
Godwyn deixou a catedral e correu para a margem do rio, sentindo-se frustrado e furioso. Não havia mais uma autoridade firme: Carlus estava deixando que todos fizessem o que desejassem. O prior Anthony era fraco, mas era melhor do que Carlus. Era preciso encontrá-lo.
A maioria dos corpos já fora retirada do rio. Os que estavam apenas um pouco machucados e chocados haviam ido embora. Quase todos os mortos e feridos já se encontravam na catedral. Restavam apenas os que continuavam presos nos destroços.
Godwyn sentia-se ao mesmo tempo excitado e assustado com o pensamento de que Anthony podia ter morrido. Ansiava por um novo regime, com uma interpretação mais rigorosa da regra de São Bento, junto com uma administração meticulosa das finanças. Ao mesmo tempo, porém, sabia que Anthony era seu protetor, e que poderia não ter mais promoções com outro prior.
Merthin requisitara um barco. Ele e dois outros homens se encontravam agora no meio do rio, onde agora flutuava a maior parte da ponte desabada. Vestidos apenas com as roupas de baixo, os três tentavam levantar uma pesada viga, a fim de soltar alguém por baixo. Merthin era pequeno na estatura, mas os outros dois pareciam fortes e bem alimentados. Godwyn calculou que deviam ser pajens do conde.
Apesar do vigor evidente, eles tinham dificuldade para levantar as vigas, no meio da correnteza, de pé num pequeno barco a remo.
Godwyn observava, no meio de um grupo de moradores da cidade, dividido entre o medo e a esperança, enquanto os dois pajens levantavam uma viga e Merthin tirava um corpo por baixo. Depois de um breve exame, ele gritou:
- Marguerite Jones... morta!
Marguerite era uma mulher idosa, que não tinha parentesco com ninguém. Impaciente, Godwyn perguntou:
- Não pode encontrar o prior Anthony?
Os homens no barco trocaram um olhar, e Godwyn compreendeu que fora peremptório demais. Mas Merthin gritou em resposta:
- Posso ver o hábito de um monge.
- Então é o prior! - Anthony era o único monge ainda desaparecido. - Pode dizer como ele está?
Merthin inclinou-se pelo lado do barco. Aparentemente incapaz de chegar bastante perto dessa maneira, ele entrou na água. E gritou depois de algum tempo:
- Ainda está respirando!
Godwyn sentiu-se ao mesmo tempo exultante e desapontado.
- Então tirem-no da água depressa! - Uma pausa e ele acrescentou: - Por favor!
Não houve resposta, mas ele viu Merthin enfiar a cabeça por baixo de uma tábua parcialmente submersa, e depois dar instruções para os outros dois homens. Eles estenderam para o lado a viga que seguravam, largaram-na na água com todo o cuidado. Depois, inclinaram-se pela proa do barco para pegar a prancha sob a qual Merthin se metera. Merthin parecia ter a maior dificuldade para soltar as roupas de Anthony de um emaranhado de tábuas e lascas.
Godwyn observava, frustrado por não ser capaz de fazer nada para acelerar o processo. Disse para dois espectadores:
- Corram até o priorado e peçam a dois monges para trazerem uma padiola. Digam que foi Godwyn quem mandou.
Os dois subiram os degraus e entraram no terreno do priorado. Merthin conseguiu finalmente tirar o homem inconsciente do meio dos destroços. Puxou o corpo e os outros dois homens o levaram para o barco. Merthin também subiu, e eles empurraram o barco com as varas até a margem.
Voluntários ansiosos tiraram Anthony do barco e estenderam-no na padiola trazida pelos monges. Godwyn examinou o prior rapidamente. Ainda respirava, mas a pulsação era fraca. Tinha os olhos fechados, o rosto exibia uma palidez assustadora. A cabeça e o peito tinham apenas escoriações, mas a pélvis parecia esmagada, e ele sangrava bastante.
Os monges levantaram-no. Godwyn seguiu na frente, atravessando o terreno do priorado até a catedral.
- Abram caminho! - gritava ele a todo instante.
Ele conduziu o prior pela nave e entrou no coro, a parte mais sagrada da catedral. Orientou os monges para porem o corpo na frente do altar-mor.
O hábito encharcado delineava com nitidez os quadris e as pernas de Anthony, torcidos de tal maneira que apenas a parte superior do corpo parecia humana.
Em poucos momentos, todos os monges se reuniram em torno do corpo inconsciente do prior. Godwyn foi buscar o relicário que deixara junto do conde Roland e ajeitou-o aos pés de Anthony. Joseph pôs um crucifixo com pedras preciosas no peito e estendeu as mãos do prior por cima.
Madre Cecilia ajoelhou-se ao lado de Anthony. Limpou seu rosto com um pano embebido em algum líquido tranqüilizante. Disse a Joseph:
- Ele parece ter quebrado muitos ossos. Quer que Matthew Barber o examine?
Joseph sacudiu a cabeça, sem dizer nada.
Godwyn sentiu-se satisfeito. O barbeiro teria profanado o santuário sagrado. Era melhor deixar que Deus cuidasse de tudo.
Irmão Carlus deu a extrema-unção e depois conduziu os monges num hino.
Godwyn não sabia por que torcer. Havia alguns anos que aguardava ansioso pelo fim do regime do prior Anthony. Mas na última hora tivera um vislumbre do que poderia substituir Anthony: um regime conjunto de Carlus e Simeon. Eram companheiros de Anthony, e não seriam melhores do que ele.
Subitamente, ele avistou Matthew Barber à beira da multidão, olhando por cima dos ombros dos monges para estudar a metade inferior do corpo de Anthony. Godwyn já da ordenar, indignado, que ele deixasse o coro, quando Matthew sacudiu a cabeça, de forma quase imperceptível, e se afastou.
Anthony abriu os olhos.
- Louvado seja Deus! - exclamou irmão Joseph.
O prior deu a impressão de que queria falar. Madre Cecilia, que ainda estava ajoelhada ao seu lado, inclinou-se para ouvir suas palavras. Godwyn viu a boca de Anthony se movimentar, e desejou poder ouvir. Depois de um momento, o prior se calou.
Cecilia parecia chocada.
- Isso é verdade? - murmurou ela.
Todos fitaram-na, aturdidos. Godwyn perguntou:
- O que ele disse, madre Cecilia? Ela não respondeu.
Os olhos de Anthony se fecharam. Uma mudança sutil ocorreu. Ele ficou absolutamente imóvel.
Godwyn inclinou-se sobre o corpo. Não havia mais respiração. Ele pôs a mão sobre o coração de Anthony, e não sentiu qualquer batida. Segurou o pulso, à procura de uma pulsação: nada. Ele levantou-se e disse:
- O prior Anthony deixou este mundo. Que Deus abençoe sua alma e o receba em sua sagrada presença.
Todos os monges disseram:
- Amém. i Godwyn pensou: Agora terá de haver uma eleição.
junho a dezembro de 1337
Acatedral de Kingsbridge era um lugar de horror. Feridos gemiam de dor e gritavam pela ajuda de Deus, dos santos ou de suas mães. A intervalos de poucos minutos, alguém à procura de uma pessoa amada encontrava-a morta e desatava a gritar, com o choque da dor súbita. Os vivos e os mortos estavam contorcidos de uma maneira grotesca, os ossos quebrados, cobertos de sangue, as roupas encharcadas e rasgadas. O chão de pedra da catedral se tornara escorregadio de água, sangue e lama da beira do rio.
No meio do horror, uma pequena zona de calma e eficiência concentrava-se na figura de madre Cecilia. Como um passarinho ágil, ela passava de um corpo estendido para outro. Era acompanhada por um pequeno bando de freiras encapuzadas, entre as quais sua assistente havia muito tempo, irmã Juliana, agora respeitosamente conhecida como Old Julie. Enquanto examinava cada paciente, ela dava ordens: para lavar, para ungüentos, para ataduras, para medicamentos de ervas. Nos casos mais graves, chamava Mattie Wise, Matthew Barber ou irmão Joseph. Sempre falava em voz baixa, mas incisiva, as instruções simples e decididas. Deixava quase todos os pacientes mais calmos e seus parentes, esperançosos.
Lembrou Caris, com terrível nitidez, do dia em que sua mãe morrera. Havia terror e confusão na ocasião, embora apenas em seu coração. Da mesma forma, madre Cecilia parecia saber o que fazer. A mãe morrera apesar da ajuda de Cecilia, assim como muitos dos feridos hoje também morreriam; mas havia uma certa ordem na morte, o senso de que fora feito tudo o que era possível.
Algumas pessoas apelavam para a Virgem e os santos quando alguém ficava doente, mas isso deixava Caris ainda mais incerta e assustada, pois não havia como saber se os espíritos ajudariam ou mesmo se haviam ouvido. Madre Cecilia não era tão poderosa quanto os santos, a Caris de dez anos sabia; mesmo assim, sua presença tranqüilizadora e pragmática proporcionara a Caris esperança e resignação, numa combinação que levara paz à sua alma.
Agora, Caris tornava-se parte do círculo de Cecilia, sem tomar uma decisão ou sequer pensar a respeito. Seguia as ordens da pessoa mais decidida ali, assim como as pessoas haviam seguido suas orientações na beira do rio logo depois do desabamento, quando ninguém mais parecia saber o que fazer. O pragmatismo decidido de Cecilia era contagiante, e as pessoas ao redor adquiriam um pouco da mesma competência controlada.
Caris descobriu-se a segurar uma pequena tigela com vinagre, enquanto uma linda noviça chamada Mair mergulhava um pano e lavava o sangue do rosto de Susanna Chepstow, a esposa do mercador de madeira.
Depois disso, ela trabalhou sem cessar até depois do escurecer. Graças à longa noite de verão, todos os corpos flutuando foram retirados do rio antes da escuridão... embora talvez ninguém jamais soubesse quantos afogados teriam afundado para o leito do rio ou sido arrastados pela correnteza. Não havia qualquer sinal de Crazy Nell que devia ter sido arrastada para o fundo com a carroça a que estava amarrada. Injustamente, frei Murdo sobrevivera: sofrera apenas uma torção no tornozelo, e claudicara até a Bell para se recuperar com presunto quente e cerveja forte.
Mas o tratamento dos feridos continuou mesmo depois do escurecer, à luz de velas. Algumas freiras ficaram exaustas e tiveram de parar; outras se acabrunharam tanto com a escala da tragédia que perderam o controle, confundindo as ordens e se tornando tão desajeitadas que tiveram de ser dispensadas; mas Caris e um pequeno grupo persistiram, até que não havia mais o que fazer. Já devia ser meia-noite quando o último nó foi dado na última atadura, e Caris atravessou o pátio cambaleando de cansaço, de volta à casa de seu pai.
O pai e Petranilla sentavam juntos na sala de jantar, de mãos dadas, lamentando a morte do irmão, Anthony. Edmund tinha os olhos marejados de lágrimas, e Petranilla chorava desconsolada. Caris beijou-os, mas não foi capaz de pensar em qualquer coisa para dizer. Se sentasse, dormiria na cadeira; por isso, preferiu subir a escada. Deitou na cama, ao lado de Gwenda, que fora para seu quarto, como sempre fazia quando vinha à cidade. Gwenda mergulhara num sono profundo da exaustão, e não se mexeu.
Caris fechou os olhos, o corpo cansado e o coração apertado de tristeza.
O pai lamentava uma pessoa entre as muitas, mas ela sentia o peso de todas. Pensou em seus amigos, vizinhos e conhecidos, estendidos mortos no frio chão de pedra da catedral; e imaginou a desolação dos pais, filhos, irmãos e irmãs de todas aquelas pessoas; e o puro volume de tanta dor sufocou-a. Soluçou no travesseiro. Sem dizer nada, Gwenda estendeu o braço e abraçou-a. Depois de um momento, a exaustão prevaleceu e Caris adormeceu.
Levantou-se de novo ao amanhecer. Deixou Gwenda ainda adormecida, voltou à catedral, e recomeçou a trabalhar. Muitos feridos haviam sido enviados para casa. Os que ainda precisavam de cuidados - como o conde Roland, ainda inconsciente foram transferidos para o hospital. Os mortos foram dispostos em fileiras no coro, no lado leste da catedral, aguardando o sepultamento.
O tempo voou, quase sem qualquer momento para o descanso. Ao final da tarde de domingo, madre Cecilia mandou Caris tirar uma folga. Ela olhou ao redor e compreendeu que a maior parte do trabalho já fora feita. Foi nesse momento que começou a pensar no futuro.
Até aquele momento, sentira - de forma inconsciente - que a vida normal acabara, e que ela passara a viver num novo mundo de horror e tragédia. Agora, ela compreendeu que isso, como todo o resto, também passaria. Os mortos seriam enterrados, os feridos ficariam curados, e de alguma forma a cidade se esforçaria para voltar ao normal. E ela recordou que outra tragédia ocorrera pouco antes de a ponte desabar, violenta e devastadora à sua maneira.
Foi encontrar Merthin à beira do rio, com Elfric e Thomas Langley, organizando a limpeza, com a ajuda de cinqüenta ou mais voluntários. A briga de Merthin com Elfric fora obviamente posta de lado na emergência. A maior parte da madeira solta fora retirada da água e empilhada na beira do rio. Mas muito da ponte ainda continuava junto; e uma massa de pranchas e vigas interligadas flutuava na superfície, movendo-se de leve com a água que subia e descia, com a inocente tranqüilidade de uma besta depois de matar e devorar.
Os homens tentavam separar os destroços em proporções controláveis. Era um trabalho perigoso, com o risco constante de a ponte desabar ainda mais e ferir os voluntários. Haviam amarrado uma corda em torno da parte central da ponte, agora meio submersa. Uma equipe de homens mantinha-se na margem, puxando a corda. Num barco, no meio da correnteza, estavam Merthin, o gigante Mark Webber e um remador. Quando os homens na margem pararam de puxar, o barco foi remado para junto dos destroços; e Mark, orientado por Merthin, atacou as vigas, com um enorme machado de lenhador. Depois, o barco afastou-se para uma distância segura, Elfric deu uma ordem e os homens na margem tornaram a puxar a corda.
Enquanto Caris observava, uma enorme seção da ponte se soltou. Todos aclamaram, e os homens puxaram a madeira emaranhada até a praia.
As esposas de alguns voluntários chegaram com pães e canecas de cerveja. Thomas Langley determinou uma pausa no trabalho. Enquanto os homens descansavam, Caris levou Merthin para um lado.
- Você não pode casar com Griselda - declarou ela, sem qualquer preâmbulo. A súbita declaração não o surpreendeu.
- Não sei o que fazer. Continuo pensando a respeito.
- Quer dar uma volta comigo?
- Está bem.
Os dois deixaram a multidão na beira do rio e subiram pela rua principal. Depois do intenso movimento da Feira do Velocino, a cidade tinha agora a quietude de um cemitério. Todos permaneciam em suas casas, cuidando dos feridos ou lamentando os mortos.
- Não pode haver muitas famílias na cidade que não tenham algum morto ou ferido - comentou Caris. - Devia haver mil pessoas na ponte, tentando deixar a cidade ou atormentando Crazy Nell. Há mais de cem mortos na igreja e já tratamos de quatrocentos feridos.
- E quinhentas pessoas foram afortunadas - murmurou Merthin.
- Nós dois poderíamos estar na ponte ou em algum lugar próximo. E neste momento poderíamos estar estendidos no chão do coro, frios e imóveis. Mas recebemos uma dádiva... o resto de nossas vidas. Não podemos desperdiçá-la por causa de um erro.
- Não é um erro - protestou Merthin, brusco. - É um bebê... uma pessoa, com uma alma.
- Você também é uma pessoa com uma alma... e uma pessoa excepcional. Pense no que está fazendo. Há três pessoas no comando na beira do rio neste momento. Uma delas é o construtor mais próspero da cidade.
Outra é o matriculário do priorado. E a terceira pessoa é... um mero aprendiz, que ainda não completou vinte e um anos. Mas os moradores da cidade obedecem a você com a mesma disposição com que obedecem a Elfric e Thomas.
- Isso não significa que eu possa me esquivar de minhas responsabilidades. Os dois entraram no terreno do priorado. O pátio gramado na frente da catedral estava todo esburacado da feira. Havia trechos enlameados e enormes poças. Nas três janelas grandes a oeste da catedral Caris podia ver os reflexos do sol claro e de nuvens brancas esparsas, uma cena dividida, como um retábulo de três partes. O sino começou a tocar para a Véspera.
- Pense em todas as vezes que você falou que queria conhecer os prédios de Paris e Florença - disse Caris. - Vai renunciar a tudo isso?
- Acho que sim. Um homem não pode abandonar sua esposa e sua criança.
- Então já está pensando nela como sua esposa. Merthin virou-se para ela.
- Nunca pensarei nela como minha esposa - murmurou ele, amargurado. Você sabe quem eu amo.
Por uma vez, Caris não foi capaz de pensar numa resposta hábil. Abriu a boca para falar, mas as palavras não lhe ocorreram. Em vez disso, sentiu um aperto na garganta. Piscou para conter as lágrimas, e baixou os olhos para esconder as emoções. Merthin segurou-a pelos braços e puxou-a ao seu encontro.
- Você sabe, não é?
Ela forçou-se a fitá-lo nos olhos.
-Sei?
Sua visão estava turva. Merthin beijou-a na boca. Era um novo tipo de beijo, diferente de qualquer outra coisa que ela já experimentara antes. Ele mexeu os lábios contra os dela, num movimento gentil, mas insistente, como se estivesse determinado a nunca mais esquecer aquele momento; e ela compreendeu, apavorada, que Merthin estava pensando que aquele seria o último beijo.
Abraçou-o e apertou-o, querendo que aquele instante durasse para sempre; mas ele logo se afastou.
- Eu amo você, Caris, mas vou casar com Griselda.
Vida e morte continuaram. Crianças nasceram e velhos morreram. No domingo, Emma Butchers atacou o marido adúltero, Edward, com o maior cutelo que ele tinha, num acesso de raiva e ciúme. Na segunda-feira, uma das galinhas de Bess Hampton desapareceu, e foi encontrada na água fervendo na panela na cozinha de Glynnie Thompson. Por isso, Glynnie foi despida e açoitada por John Constable. Na terça-feira, Howell Tyler trabalhava no telhado da igreja de St. Mark quando uma viga podre cedeu. Ele caiu no chão da igreja. Teve morte instantânea.
Na quarta-feira, os destroços da ponte já haviam sido removidos, faltando apenas os tocos das duas pilastras centrais. A madeira fora empilhada na margem.
O canal principal do rio estava aberto e as barcaças e balsas puderam deixar kingsbridge, a caminho de Melcombe, levando a lã e outras mercadorias da Feira do Velocino, que seguiram para Flandres e Itália.
Quando Caris e Edmund foram até a beira do rio, para verificar o andamendo do transporte, Merthin usava as madeiras salvas da ponte desabada para construir uma balsa, que levaria as pessoas de um lado para outro do rio.
- É melhor do que um barco - explicou ele. - O gado pode entrar e sair, e as carroças também.
Edmund acenou com a cabeça, a expressão sombria.
- Deverá servir para a feira semanal. Felizmente, devemos ter uma nova ponte antes da próxima Feira do Velocino.
- Acho que não - disse Merthin.
- Mas você garantiu que levaria um ano para construir uma nova ponte!
- Uma ponte de madeira. Mas se construirmos outra ponte de madeira, também vai desabar.
- Por quê?
- Deixe-me mostrar.
Merthin levou-os até uma pilha de madeiras. Apontou para um grupo de postes enormes.
- Eram as pilastras... provavelmente os melhores vinte e quatro carvalhos da terra, dados ao priorado pelo rei. Observem as extremidades.
Caris pôde perceber que os enormes postes eram originalmente pontiagudos, mas seus contornos haviam sido suavizados por anos debaixo d’agua.
- Uma ponte de madeira não tem fundações - explicou Merthin. - Os postes são simplesmente fincados no leito do rio. Isso não é suficiente.
- Mas essa ponte resistiu por centenas de anos! - protestou Edmund, indignado.
Ele sempre se mostrava belicoso quando argumentava. Merthin já estava acostumado a isso e não deu a menor importância a seu tom de voz.
- E agora desabou - disse ele, paciente. - Alguma coisa mudou. As pilastras de madeira eram firmes antes, mas não são mais.
- O que pode ter mudado? O rio é o rio.
- Por um lado, você construiu um armazém e um cais na margem do rio. E protegeu a propriedade com um muro. Vários outros mercadores fizeram a mesma coisa. A velha praia lamacenta em que eu costumava brincar, na margem sul, desapareceu quase por completo. O rio não pode mais se espalhar pelos campos. Em conseqüência, a água corre mais depressa do que antes... ainda mais depois de chuvas fortes como as que caíram este ano.
- Quer dizer que terá de ser uma ponte de pedra?
- Isso mesmo.
Edmund levantou os olhos e avistou Elfric parado ali perto, escutando.
- Merthin diz que uma ponte de pedra levará três anos para ser construída. Elfric confirmou com um aceno de cabeça.
- Três temporadas de construção.
A maior parte da construção era realizada nos meses mais quentes, Caris sabia. Merthin já lhe explicara que as muralhas de pedra não podiam ser erguidas quando havia o risco de a argamassa congelar antes de começar a secar.
Elfric acrescentou:
- Uma temporada para as fundações, outra para as arcadas, a terceira para o leito da ponte. Depois de cada estágio, a argamassa deve permanecer intocada por três ou quatro meses para endurecer, antes que se possa acrescentar o novo estágio por cima.
- Três anos sem ponte - murmurou Edmund, sombrio.
- Quatro anos, a menos que comece imediatamente.
- É melhor preparar uma estimativa de custo para o priorado.
- Já comecei a preparar. Mas é um trabalho longo. Precisarei de mais dois ou três dias.
- Seja o mais rápido que puder.
Edmund e Caris deixaram a beira do rio e subiram pela rua principal. Ele caminhava com seu andar trôpego, mas vigoroso. Nunca se apoiava no braço de ninguém, apesar da perna aleijada. Para manter o equilíbrio, sacudia os braços, como se estivesse correndo. Os habitantes da cidade sabiam que deviam lhe oferecer espaço suficiente, ainda mais quando ele tinha pressa.
- Três anos! - exclamou ele, enquanto andavam. - Será terrível para a Feira do Velocino. Não sei quanto tempo levaremos para voltar ao normal. Três anos!
Ao chegar em casa, encontraram Alice, a irmã de Caris. Ela prendera os cabelos dentro do chapéu, numa nova moda, copiada de lady Philippa. Sentava à mesa, em companhia de tia Petranilla. Caris compreendeu no mesmo instante, pelas expressões em seus rostos, que conversavam sobre ela.
Petranilla foi até a cozinha, e voltou com cerveja, pão e manteiga fresca. Encheu uma caneca para Edmund.
Petranilla chorara no domingo, mas desde então não demonstrava qualquer sinal de pesar pelo irmão morto, Anthony. Surpreendentemente, Edmund, que jamais gostara de Anthony, parecia lamentá-lo mais: lágrimas afloravam a seus olhos em momentos inesperados durante o dia, embora pudessem desaparecer um instante depois.
Agora, ele estava cheio de notícias sobre a ponte. Alice parecia disposta a questionar o julgamento de Merthin, mas Edmund descartou essa noção com a maior impaciência.
- O garoto é um gênio. Sabe mais do que muitos mestres construtores, embora ainda não tenha concluído o aprendizado.
Caris comentou, amargurada:
- O que torna ainda mais lamentável que ele tenha de passar o resto de sua vida com Griselda.
Alice interveio em defesa da enteada:
- Não há nada de errado com Griselda.
- Há, sim - insistiu Caris. - Ela não o ama. Seduziu-o porque seu namorado deixou a cidade... só por isso.
- É essa a história que Merthin lhe contou? - Alice riu, sarcástica. - Se um homem não quer fazer, não faz... aceite minha palavra.
Edmund soltou um grunhido.
- Um homem pode ser tentado.
- Quer dizer que está do lado de Caris, papai? - indagou Alice. - Isso não me surpreende. É o que sempre costuma acontecer.
- Não é uma questão de ficar de um lado ou de outro - respondeu Edmund. Um homem pode não querer fazer uma coisa antes, e se arrepender depois, mas por um breve momento seu desejo pode mudar... ainda mais quando uma mulher usa sua astúcia.
- Astúcia? Por que presume que ela se jogou em cima de Merthin?
- Eu não disse isso. Mas soube que começou quando Griselda chorou e ele confortou-a.
A própria Caris lhe dissera isso. Alice soltou um resmungo desgostoso.
- Você sempre teve uma fraqueza por esse aprendiz insubordinado.
Caris comeu um pouco de pão com manteiga, mas não sentia o menor apetite. Comentou:
- Acho que eles terão meia dúzia de crianças gordas, Merthin herdará o negócio de Elfric, e se tornará apenas mais um negociante da cidade. Construirá casas para os mercadores e vai adular os clérigos para obter contratos, como seu sogro faz.
Petranilla interveio:
- E poderá se considerar um homem afortunado por isso. Será um dos homens mais importantes da cidade.
- Ele é digno de um destino melhor.
- Acha mesmo? - O tom de Petranilla era de espanto zombeteiro. - O filho de um cavaleiro que caiu em desgraça e não tem um shilling para comprar sapatos para a esposa! Para que exatamente acredita que ele estava destinado?
Caris irritou-se com o escárnio. Era verdade que os pais de Merthin eram corrodiários pobres, dependentes do priorado para ter o que comer e beber. Para ele, herdar um bem-sucedido negócio de construção significaria uma ascensão na escada social. Mas ainda assim ela sentia que Merthin merecia coisa melhor. Não podia dizer que futuro exatamente tinha em mente para ele. Apenas sabia que Merthin era diferente de todos os outros na cidade, e não suportava o pensamento de que ele pudesse se tornar igual ao resto.
Na sexta-feira, Caris levou Gwenda para ver Mattie Wise.
Gwenda ainda estava na cidade porque Wulfric continuava ali, providenciando o enterro dos pais. Elaine, a criada de Edmund, secara o vestido de Gwenda na frente do fogo. Caris fizera curativos em seus pés e lhe dera um par de sapatos velhos.
Caris achava que Gwenda não lhe contara toda a verdade sobre sua aventura na floresta. Ela dissera que Sim a levara ao encontro dos bandidos, mas que conseguira escapar; Sim a perseguira e morrera no desabamento da ponte. John Constable ficara satisfeito com essa história: os bandidos estavam fora da lei, e por isso Sim não podia legar sua propriedade para ninguém. Gwenda era livre.
Mas alguma coisa mais acontecera na floresta, Caris tinha certeza; alguma coisa sobre a qual Gwenda não queria falar. Caris não pressionava a amiga. Era sempre melhor deixar algumas coisas enterradas.
Os funerais eram o negócio mais importante da cidade naquela semana. A maneira extraordinária como as mortes haviam ocorrido não fazia muita diferença para os rituais de sepultamento. Os corpos tinham de ser lavados; as mortalhas, costuradas para os pobres; os caixões, pregados para os ricos; as sepulturas, escavadas; e os padres, pagos. Nem todos os monges eram qualificados como padres, mas vários eram, e trabalhavam em turnos, durante o dia inteiro, todos os dias, conduzindo as exéquias no cemitério, no lado norte da catedral. Havia meia dúzia de pequenas igrejas paroquiais em Kingsbridge, e seus padres também ficaram ocupados.
Gwenda estava ajudando Wulfric com os arranjos, desempenhando as tarefas tradicionais das mulheres, como lavar os corpos e costurar as mortalhas, além de fazer tudo o que podia para confortá-lo. Wulfric continuava atordoado. Cuidava direito dos detalhes dos enterros, mas passava horas com o olhar perdido no espaço, o rosto franzido em perplexidade, como se tentasse encontrar algum sentido naquele terrível enigma.
Na sexta-feira, os funerais já haviam terminado, mas o prior em exercício, Carlus, anunciara um serviço especial pelas almas dos mortos. Por isso, Wulfric ficaria até segunda-feira. Gwenda relatou a Caris que ele parecia grato pela companhia de alguém de sua aldeia, mas só demonstrava alguma animação quando falava sobre Annet. Caris ofereceu-se para pagar outra poção do amor.
Encontraram Mattie Wise em sua cozinha, preparando medicamentos. A pequena casa recendia a ervas, óleo e vinho.
- Usei quase tudo o que tinha no sábado e domingo - comentou ela. - Preciso me reabastecer.
- Mas deve ter ganhado algum dinheiro - disse Gwenda.
- É verdade... se conseguir receber. Caris ficou chocada.
- As pessoas dão o calote em você?
- Algumas. Sempre tento receber adiantado, enquanto as pessoas ainda estão sentindo dor. Mas se não tiverem dinheiro com elas naquele momento, é difícil recusar o tratamento. A maioria paga depois, mas nem todas.
Caris sentiu-se indignada por conta da amiga.
- O que elas dizem?
- Uma porção de coisas. Alegam que não têm dinheiro, que a poção não serviu, que tomaram contra a sua vontade, qualquer coisa. Mas não se preocupe. Há bastantes pessoas honestas para que eu possa continuar. Por que veio me procurar?
- Gwenda perdeu sua poção do amor no acidente.
- É um problema fácil de remediar. Por que não prepara a poção para ela? Enquanto fazia a mistura, Caris perguntou a Mattie:
- Quantas gravidezes terminam em aborto espontâneo?
Gwenda sabia por que ela perguntava. Caris lhe falara sobre o dilema de Merthin. As duas conversavam, na maior parte do tempo em que passavam juntas, sobre a indiferença de Wulfric ou os elevados princípios de Merthin.
Caris até se sentira tentada a comprar uma poção de amor e usá-la com Merthin; mas alguma coisa a contivera.
Mattie lançou-lhe um olhar incisivo, mas respondeu num tom neutro:
- Ninguém sabe. Muitas vezes uma mulher perde a regra num mês, mas volta no mês seguinte. Ela engravidou e perdeu o bebê ou havia alguma outra razão? É impossível determinar.
-Hum...
- Nenhuma das duas está grávida, porém, se é isso o que a preocupa. - Gwenda se apressou em perguntar:
- Como sabe?
- Basta olhar para vocês. Uma mulher muda quase que imediatamente. Não é apenas na barriga e nos seios, mas também na pele, na maneira de se movimentar, na disposição. Reparo nessas coisas mais do que a maioria das pessoas... é por isso que acham que sei de tudo. Então quem está grávida?
- Griselda, a filha de Elfric
- Ah, sim. Eu a tenho visto. Ela já está com três meses. Caris ficou atônita.
- Quanto tempo?
- Três meses ou quase isso. Dê uma olhada nela. Nunca foi uma garota magra, mas está ainda mais cheia agora. Por que ficou tão chocada? O bebê é de Merthin, não é?
Mattie sempre adivinhava essas coisas. Gwenda comentou com Caris:
- Pensei que tivesse me dito que aconteceu há pouco tempo.
- Merthin não me contou quando foi exatamente, mas deu a impressão de que não tem muito tempo, e garantiu que só aconteceu uma vez. Agora, parece que vem fazendo isso com ela há meses!
Mattie franziu o rosto.
- Por que ele mentiria?
- Para não ficar tão mal? - sugeriu Gwenda.
- Como poderia ser pior?
- Os homens são estranhos... não entendo a maneira como eles pensam.
- Perguntarei a Merthin - declarou Caris. - Agora mesmo. Ela largou o frasco e a colher de medição. Gwenda indagou:
- E minha poção do amor?
- Pode deixar que eu acabo - disse Mattie. - Caris está com muita pressa.
- Obrigada.
Caris saiu. Desceu até a beira do rio, mas não encontrou Merthin ali. Também não o encontrou na casa de Elfric. Concluiu que ele deveria estar no sótão do pedreiro.
Na fachada oeste da catedral, numa das torres, havia uma oficina para o mestre pedreiro. Caris subiu por uma escada em espiral interna, no botaréu da torre. A oficina era grande, bem iluminada por janelas altas e estreitas. Ao longo de uma parede estavam os moldes de madeira originais usados pelos pedreiros que haviam preparado as pedras para a catedral. Eram preservados com todo cuidado e usados agora para reparos.
O chão era todo marcado. As tábuas do assoalho haviam sido cobertas por uma camada de argamassa. O mestre pedreiro original, Jack Builder, riscara suas plantas na argamassa, com instrumentos de ferro. As marcas eram brancas a princípio, mas esmaeceram com o passar do tempo. Novos desenhos foram riscados por cima dos antigos. Quando havia tantos desenhos que era impossível distinguir os novos dos antigos, uma nova camada de argamassa era aplicada por cima de tudo, e o processo recomeçava.
Pergaminhos, as peças de couro fino em que os monges copiavam os livros da Bíblia, eram caros demais para serem usados em desenhos. Ainda na vida de Caris, um novo material de escrita aparecera, o papel, mas vinha dos árabes, e por isso os monges o rejeitavam como uma invenção paga muçulmana. De qualquer maneira, tinha de ser importado da Itália e não era mais barato do que o pergaminho. E traçar tudo no chão tinha outra vantagem: um carpinteiro podia pôr um pedaço de madeira no chão, e esculpir seu molde exatamente de acordo com os desenhos deixados pelo mestre pedreiro.
Merthin estava ajoelhado no chão, esculpindo um pedaço de carvalho de acordo com um desenho; mas não fazia um molde. Era uma roda denteada, com dezesseis dentes. Caris contemplou-o em silêncio por um momento, a raiva competindo com o amor em seu coração. Ele tinha aquela expressão de concentração total que ela conhecia tão bem: o corpo franzino inclinado sobre o trabalho, as mãos fortes e os dedos hábeis fazendo pequenos ajustamentos, o rosto imóvel, o olhar firme. Exibia a graça perfeita de um jovem cervo baixando a cabeça para beber a água de um regato. Era assim que um homem parecia, pensou Caris, quando fazia aquilo que nascera para fazer. Ele se encontrava num estado que parecia de felicidade, mas era mais profundo. Realizava seu destino.
- Por que mentiu para mim? - perguntou Caris, abruptamente.
A talhadeira escapou ao controle. Merthin soltou um grito de dor e olhou para o dedo ferido.
- Cristo! - exclamou ele, pondo o dedo na boca.
- Desculpe - murmurou Caris. - Ficou machucado?
- Não muito. Quando menti para você?
- Deu-me a impressão de que Griselda só o seduziu uma vez. A verdade é que vocês dois estão fazendo isso há meses.
- Claro que não.
Ele sugou o dedo sangrando.
- Ela está grávida de três meses.
- Não é possível. Aconteceu há duas semanas.
- Mas ela já tem três meses de gravidez. Pode-se dizer por seu corpo.
- Você consegue perceber?
- Mattie Wise me disse. Por que você mentiu?
Merthin fitou-a nos olhos.
- Mas eu não menti. Aconteceu no domingo da semana da Feira do Velocino. Foi a primeira e única vez.
- Então como ela pode ter certeza de que está grávida, depois de apenas duas semanas?
- Não sei. Como as mulheres costumam saber dessas coisas?
- Você não sabe?
- Nunca perguntei. De qualquer maneira, há três meses Griselda ainda estava com...
- Oh, Deus! - Uma centelha de esperança surgiu no coração de Caris. - Ela ainda estava com o antigo namorado... Thurstan. ,
A centelha transformou-se numa chama intensa, e ela acrescentou:
- A criança deve ser de Thurstan... não sua. Você não é o pai!
- É possível? Merthin não ousava ter essa esperança.
- Claro que é... e isso explica tudo. Se ela tivesse se apaixonado por você de repente, trataria de procurá-lo em todas as oportunidades possíveis. Mas disse que ela mal fala com você.
- Pensei que era porque eu relutava em casar com ela.
- Griselda jamais gostou de você. Apenas precisava de um pai para seu bebê. Thurstan fugiu... provavelmente quando ela lhe disse que engravidara... e você estava disponível, na casa, bastante estúpido para cair em sua armadilha. Oh, graças a Deus!
- Graças a Mattie Wise - murmurou Merthin.
Caris olhou para a mão esquerda dele. O sangue escorria de um dedo.
- Fiz você se cortar! - Ela pegou a mão de Merthin e examinou o talho. Era pequeno, mas profundo. - Desculpe.
- Não é tão ruim assim.
- É, sim - murmurou Caris, sem saber se falava sobre o talho ou outra coisa. Ela beijou a mão de Merthin, sentindo o sangue em seus lábios. Pôs o dedo em sua boca, chupando para limpar o ferimento. Era um gesto de tanta intimidade que parecia um ato sexual. Caris fechou os olhos, extasiada. Engoliu, sentindo o gosto de sangue, e estremeceu de prazer.
Merthin construíra uma balsa uma semana depois do desabamento da ponte.
Ficou pronta na manhã de sábado, a tempo para o mercado semanal de Kingsbridge. Trabalhara na balsa durante toda a noite de sexta-feira, à luz de lampiões, e Caris calculava que ele não tivera tempo de dizer a Griselda que sabia que o bebê era de Thurstan. Caris e o pai foram até a beira do rio para ver a nova sensação no momento em que os primeiros negociantes chegavam... mulheres das aldeias vizinhas com cestos de ovos, camponeses com manteiga e queijo, pastores com rebanhos de ovelhas.
Caris admirou o trabalho de Merthin. A balsa era bastante grande para transportar um cavalo e uma carroça sem que fosse preciso tirar o animal do varal. Tinha grades de madeira para impedir que as ovelhas caíssem no rio. Novas plataformas de madeira, no nível da água, nas duas margens, facilitavam a entrada e saída das carroças. Os passageiros pagavam um penny, coletado por um monge, já que a balsa, como a ponte, pertencia ao priorado.
O mais engenhoso era o sistema que Merthin projetara para impulsionar a balsa de uma margem a outra. Uma corda comprida estendia-se da extremidade sul da balsa através do rio, passava por um poste, voltava pelo rio, dava uma volta por um tambor, e seguia de novo até a balsa, para ficar presa na extremidade norte. O tambor era ligado por engrenagens de madeira a uma roda, impulsionada por um boi: Caris vira Merthin desenhando as engrenagens no dia anterior. Uma alavanca alterava as engrenagens para que o tambor girasse numa direção ou outra, dependendo se a balsa da ou voltava... e não havia necessidade de desatrelar o boi e fazê-lo andar na direção oposta.
- É muito simples - comentara Merthin, quando ela manifestara sua admiração.
E era mesmo, admitiu Caris, quando olhou o esquema mais atentamente agora. A alavanca levantava uma roda denteada grande, afastando-a da corrente, e duas rodas menores entravam em seu lugar; o efeito era fazer com que o tambor girasse na direção inversa. Mesmo assim, ninguém em Kingsbridge jamais vira qualquer coisa parecida.
Durante a manhã, metade da cidade foi olhar a espantosa máquina de Merthin. Caris transbordava de orgulho por ele. Elfric ficou parado ao lado, explicando o mecanismo para qualquer pessoa que perguntava, assumindo o crédito pelo trabalho de Merthin.
Caris não entendia como Elfric podia ter tanta desfaçatez. Ele destruíra a porta de Merthin, um ato de violência que escandalizaria a cidade se não fosse ofuscado pela tragédia maior do desabamento da ponte. Batera com um pedaço de pau em Merthin, que ainda tinha a equimose no rosto. E tramara uma fraude para fazer com que Merthin casasse com Griselda e cuidasse da criança de outro homem. Merthin continuara a trabalhar com ele, achando que a emergência era mais importante do que a briga entre os dois. Mas Caris não entendia como Elfric ainda era capaz de manter a cabeça erguida.
A balsa e seu conceito eram brilhantes... mas insuficientes.
Foi o que Edmund ressaltou. No outro lado do rio, carroças e mercadores faziam fila na estrada, até onde a vista podia alcançar.
- Seria mais rápido com dois bois - comentou Merthin.
- Duas vezes mais rápido?
- Nem tanto. Mas eu poderia construir outra balsa.
- Já há uma segunda embarcação.
Edmund apontou. Ele tinha razão: Ian Boatman, o barqueiro, remava um barco com quatro passageiros através do rio. Ian não podia levar carroças, recusava animais, e cobrava dois pennies por passageiro. Em circunstâncias normais, tinha dificuldade para ganhar a vida: levava um monge até a ilha do Leproso duas vezes por dia e tinha uns poucos outros passageiros, aqui e ali. Mas hoje também havia uma fila de pessoas para usar seu barco.
- Tem razão - disse Merthin. - No final das contas, uma balsa não é uma ponte.
- Isso é uma catástrofe - murmurou Edmund. - A notícia de Buonaventura já foi terrível, mas isso pode acabar com a cidade.
- Então precisamos de outra ponte.
- Não depende de mim, mas do priorado. O prior morreu, e não há como saber quanto tempo vão levar para eleger outro. Teremos de pressionar o prior em exercício para tomar uma decisão. Falarei com Carlus agora mesmo. Venha comigo, Caris.
Eles subiram pela rua e entraram no priorado. A maioria dos visitantes tinha de ir ao hospital e avisar a um dos servidores que queria falar com um monge; mas Edmund era importante demais e muito orgulhoso para suplicar por uma audiência dessa maneira. O prior era o senhor de Kingsbridge, mas Edmund era o regedor da guilda, líder dos mercadores que tornavam a cidade o que era; por isso, tratava o prior como um parceiro na administração da cidade. Além do mais, durante os últimos treze anos, o prior fora seu irmão mais jovem. Assim, ele foi direto para a casa do prior, no lado norte da catedral.
Era uma casa de madeira, como a de Edmund, com um vestíbulo e uma sala no primeiro andar, dois quartos no segundo. Não havia cozinha, pois as refeições do prior eram preparadas na cozinha do mosteiro. Muitos bispos e priores viviam em palácios - e o bispo de Kingsbridge tinha um lindo palácio em Shiring , mas o prior de Kingsbridge tinha uma vida modesta. Mas as cadeiras eram confortáveis, havia nas paredes tapeçarias com cenas da Bíblia, e uma enorme lareira mantinha a casa aconchegante no inverno.
Caris e Edmund chegaram no meio da manhã, o momento em que os monges mais jovens deveriam estar ocupados no trabalho e os mais velhos, absortos na leitura. Encontraram Blind Carlus na entrada da casa do prior, conversando com Simeon, o tesoureiro.
- Precisamos conversar sobre a nova ponte - declarou Edmund, sem qualquer preâmbulo.
- Está bem, Edmund - disse Carlus, reconhecendo-o pela voz.
Caris percebeu que a recepção não era calorosa, e especulou se não teriam vindo num momento inoportuno. Edmund era tão sensível quanto ela ao clima, mas sempre assumia os riscos. Tratou de sentar e perguntou:
- Quando acha que será a eleição para o novo prior?
- Pode sentar também, Caris. - Ela não tinha a menor idéia de como Carlus tomara conhecimento de sua presença. - Ainda não foi marcada a data para a eleição. O conde Roland tem o direito de indicar um candidato, mas ainda não recuperou a consciência.
- Não podemos esperar - disse Edmund.
Caris achou que o pai estava sendo brusco demais; mas era o seu jeito, e por isso ela não disse nada.
- Temos de iniciar a construção da nova ponte imediatamente - continuou Edmund. - Uma ponte de madeira não serve. Temos de fazer uma ponte de pedra. Levará três anos... quatro, se atrasarmos a decisão.
- Uma ponte de pedra?
- É essencial. Conversei com Elfric e Merthin. Outra ponte de madeira desabaria como a antiga.
- Mas o custo seria alto demais
- Cerca de duzentas e cinqüenta libras, dependendo do projeto. IVlos cálculos de Elfric
Irmão Simeon interveio:
- Uma nova ponte de madeira custaria cinqüenta libras, e o prior Anthony rejeitou-a na semana passada por causa do preço.
- E olhe só o resultado! Cem pessoas mortas, muitas outras feridas, animais e carroças perdidos, o prior morto, o conde às portas da morte!
Carlus disse, incisivo:
- Espero que não pretenda lançar a culpa por tudo isso ao falecido prior Anthony.
- Não podemos achar que a decisão dele foi acertada.
- Deus nos pune pelo pecado.
Edmund suspirou. Caris sentia-se frustrada. Sempre que estavam errados, os monges metiam Deus na discussão. Edmund comentou:
- É difícil para nós, meros homens, conhecer as intenções de Deus. Mas de uma coisa sabemos com certeza: sem a ponte, esta cidade morrerá. Já começamos a perder muitas coisas para Shiring. A menos que construamos uma nova ponte de pedra, o mais depressa possível, Kingsbridge logo será uma pequena aldeia.
- Pode ser esse o plano de Deus para nós. Edmund começou a demonstrar exasperação.
- É possível que Deus esteja insatisfeito com vocês, monges? Pois podem ter certeza de uma coisa: se a Feira do Velocino e o mercado de Kingsbridge acabarem, não haverá mais um priorado aqui, com vinte e cinco monges, quarenta freiras e cinqüenta servidores, um hospital, um coro e uma escola. E também não haverá mais uma catedral. O bispo de Kingsbridge sempre residiu em Shiring... e se os prósperos mercadores ali se oferecerem para construir uma catedral nova e esplêndida em sua própria cidade, com os lucros de seu mercado cada vez maior? Nada de mercado em Kingsbridge, nada de cidade, nada de catedral, nada de priorado... é isso o que vocês querem?
Carlus parecia consternado. Era evidente que não lhe havia ocorrido que as conseqüências a longo prazo do desabamento da ponte poderiam afetar a posição do priorado. Mas Simeon disse:
- Se o priorado não tem condições de construir uma ponte de madeira, não há com certeza a menor possibilidade de construir uma ponte de pedra.
- Mas vocês devem construir a ponte!
- Os pedreiros trabalhariam de graça?
- Claro que não. Precisam alimentar suas famílias. Mas já explicamos como os habitantes da cidade podem levantar o dinheiro e emprestá-lo ao priorado, tendo como garantia os pedágios da ponte.
- E ficaríamos sem a receita da ponte! - protestou Simeon, indignado. - Está de volta a essa fraude, hem?
Caris interveio:
- Não estão recebendo os pedágios da ponte agora.
- Mas recebemos as passagens na balsa.
- Tiveram de arrumar o dinheiro para pagar a Elfric por isso.
- Muito menos do que gastaríamos com uma ponte... e mesmo assim tivemos de esvaziar os cofres.
- As passagens nunca darão bastante dinheiro... a balsa é muito lenta.
- Pode chegar o momento, no futuro, em que o priorado terá condições de construir uma nova ponte. Deus providenciará os recursos... se assim o desejar. E depois ainda teremos os pedágios.
- Deus já providenciou os recursos - disse Edmund. - Inspirou minha filha a imaginar uma maneira de levantar o dinheiro, como nunca se pensou antes.
- Por favor, deixe-nos decidir o que Deus faz - pediu Carlus, irritado.
- Está bem. - Edmund levantou-se e Caris também. - Lamento muito que esteja assumindo essa atitude. É uma catástrofe para Kingsbridge e todos os que vivem aqui, inclusive os monges.
- Devo ser orientado por Deus, não por você. Edmund e Caris viraram-se para sair.
- Só mais uma coisa, se me permite - disse Carlus. Edmund parou na porta e virou-se.
- Claro.
- Não é aceitável que os leigos entrem no prédio do priorado à vontade. Na próxima vez em que desejar falar comigo, vá até o hospital, por favor, e mande um noviço ou um servidor do priorado me avisar, à maneira normal.
- Sou o regedor da guilda da paróquia! - protestou Edmund. - Sempre tive acesso direto ao prior!
- Sem dúvida o fato de o prior Anthony ser seu irmão deixava-o relutante em impor as normas usuais. Mas esses dias passaram.
Caris olhou para o pai. Ele fazia um esforço para reprimir a fúria.
- Está bem - murmurou Edmund, tenso.
- Deus o abençoe.
Edmund saiu, acompanhado por Caris.
Atravessaram o pátio enlameado, passando por poucos estandes armados para o mercado. Caris podia sentir o peso das obrigações do pai. A maioria das pessoas preocupava-se apenas em alimentar a própria família. Edmund preocupava-se com toda a cidade. Agora, tinha o rosto contraído de ansiedade. Ao contrário de Carlus, ele não levantaria as mãos para o céu e diria que a vontade de Deus seria feita. Vasculhava o cérebro à procura de uma solução para o problema. Caris sentiu um ímpeto de compaixão pelo pai, que tanto se esforçava para fazer a coisa certa, sem a ajuda do poderoso priorado. Nunca se queixava da responsabilidade, apenas a assumia. Deixou-a com vontade de chorar.
Os dois saíram do terreno do priorado e seguiram pela rua principal. Ao se aproximarem da porta de sua própria casa, Caris perguntou:
- O que vamos fazer?
- Não é óbvio? - murmurou o pai. - Temos de providenciar para que Carlus não seja eleito prior.
Godwyn queria ser o prior de Kingsbridge. Ansiava por isso, com toda a força de seu coração. Queria reformar as finanças do priorado, controlar a administração das terras e outros patrimônios, para que os monges não precisassem mais pedir dinheiro a madre Cecilia. Desejava uma separação mais rigorosa entre monges e freiras, mas também dos habitantes da cidade, para que pudesse respirar o ar mais puro da santidade. Mas, além desses motivos irrepreensíveis, havia mais alguma coisa. Sonhava com a autoridade e a distinção do título. A noite, em sua imaginação, já era o novo prior.
- Limpe essa sujeira no claustro! - diria a um monge.
- Pois não, padre prior. Imediatamente. Godwyn adorava o som de padre prior.
- Bom-dia, bispo Richard - diria, não submisso, mas com uma cortesia afável. E o bispo Richard responderia, um eminente clérigo se dirigindo a outro:
- Bom-dia para você também, prior Godwyn.
- Posso contar que está satisfeito com tudo, arcebispo? - poderia dizer, mais deferente desta vez, mas ainda assim como um colega júnior do grande homem, não como um subalterno.
- Claro que sim, Godwyn. Tem realizado um trabalho extraordinário aqui.
- Sua Reverência é muito generoso.
E talvez um dia, caminhando pelo claustro ao lado de um homem bem vestido e muito poderoso:
- Sua Majestade nos concede uma grande honra ao visitar nosso humilde priorado.
- Obrigado, padre Godwyn, mas vim até aqui para pedir seu conselho.
Ele queria o cargo... mas não sabia como alcançá-lo. Refletiu sobre a questão durante toda a semana, enquanto supervisionava cem enterros e planejava o serviço no domingo, que seria ao mesmo tempo o funeral de Anthony e uma recordação de todos os mortos de Kingsbridge.
Enquanto isso, não falou com ninguém sobre suas esperanças. Aprendera havia apenas dez dias qual era o preço de ser inocente. Fora para o capítulo com o Livro de Timothy e um forte argumento para a reforma... e a velha guarda o rejeitara com uma perfeita coordenação, como se todos tivessem ensaiado, esmagando-o como a uma rã sob a roda de uma carroça.
Não deixaria que isso acontecesse de novo.
Na manhã de domingo, enquanto os monges entravam no refeitório para a primeira refeição, um noviço sussurrou para Godwyn que sua mãe gostaria de vêdo, no pórtico norte da catedral. Ele tratou de se afastar, com toda a discrição possível.
Sentia-se apreensivo ao atravessar o claustro e a catedral. Não podia imaginar o que acontecera. Pois ocorrera alguma coisa no dia anterior para perturbar Petranilla.
Ela passara metade da noite acordada, pensando a respeito. Despertara ao amanhecer, com um plano de ação... e o filho era uma parte desse plano. Ela se mostraria impaciente e autoritária. O plano provavelmente seria bom... mesmo que não fosse, insistiria para que Godwyn o executasse.
Esperava pelo filho na escuridão do pórtico, o manto molhado, pois voltara ,a chover.
- Meu irmão Edmund foi falar com Blind Carlus ontem - disse ela. - E me imitou que Carlus age como se já fosse o prior, e a eleição não passasse de uma mera formalidade.
Havia um tom acusador em sua voz, como se a culpa fosse de Godwyn. Ele respondeu na defensiva:
- A velha guarda se postou atrás de Carlus antes mesmo que o corpo de tio Anthony esfriasse. Não querem ouvir falar de qualquer outro candidato.
- E os mais jovens?
- Querem que eu concorra, é claro. Gostaram da maneira como enfrentei o prior Anthony no caso do Livro de Timothy... embora eu tenha sido derrotado. Mas eu não disse nada.
- Algum outro candidato?
- Thomas Langley é o intruso. Alguns o desaprovam porque ele já foi um cavaleiro e matou pessoas, por sua própria admissão. Mas ele é competente. Faz o seu trabalho com uma eficiência discreta, nunca pressiona os noviços...
A mãe exibia uma expressão pensativa.
- Qual é a história dele? Por que se tornou um monge?
A apreensão de Godwyn começou a se dissipar. Parecia que a mãe não da censurá-lo por inação.
- Thomas diz apenas que sempre ansiou pela vida religiosa. Veio até aqui para cuidar de um ferimento de espada, e decidiu que nunca mais iria embora.
- Lembro disso. Foi há dez anos. Mas nunca soube em que circunstâncias ele sofreu o ferimento.
- Nem eu. Ele não gosta de falar sobre seu passado violento.
- Quem pagou por sua admissão no priorado?
- Por mais estranho que possa parecer, não sei.
Godwyn costumava se espantar com a capacidade da mãe de formular as perguntas reveladoras. Ela podia ser tirânica, mas tinha de admirá-la.
- Pode ter sido o bispo Richard - acrescentou ele. - Recordo-o a prometer o donativo. Mas ele não teria os recursos pessoalmente... não era um bispo na ocasião, apenas um padre. Talvez estivesse falando pelo conde Roland.
- Descubra.
Godwyn hesitou. Teria de procurar nos documentos do priorado. O bibliotecario, irmão Augustine, não teria a pretensão de questionar o sacristão, mas algum outro poderia fazê-lo. Neste caso, Godwyn passaria pelo constrangimento de inventar uma história plausível para explicar o que fazia. Se o donativo tivesse sido em dinheiro, em vez de terras ou outras propriedades - o que era excepcional, mas sempre possível -, ele teria de verificar as contas do priorado...
- Qual é o problema? - perguntou a mãe, ríspida.
- Nada. Você tem razão. - Godwyn lembrou a si mesmo que a atitude autoritária era um sinal do amor da mãe, talvez a única maneira que ela conhecia para expressá-lo. - Deve haver um registro. Pensando bem...
- O que é?
- Um donativo assim costuma ser alardeado. O prior o anuncia na catedral e invoca bênçãos para o doador. E faz um sermão para explicar como as pessoas que doam terras ao priorado são recompensadas no paraíso. Mas não me lembro de qualquer coisa parecida na ocasião em que Thomas se tornou um de nós.
- Mais razão ainda para procurar o documento de doação. Thomas é um homem com um segredo. E um segredo é sempre uma fraqueza.
- Pode deixar que vou procurar. O que acha que devo dizer aos que quiserem me apoiar na eleição?
Petranilla sorriu, insinuante.
- Acho que você deve dizer que não será um candidato.
A primeira refeição já acabara quando Godwyn deixou a mãe. Os retardatários não tinham permissão para comer, por uma regra antiga. Mas o responsável pela cozinha, irmão Reynard, sempre podia oferecer alguma coisa para alguém de quem gostava. Godwyn foi até a igreja e conseguiu um pedaço de queijo e um bico de pão. Comeu de pé, enquanto, ao seu redor, os servidores do priorado traziam as tigelas do refeitório e limpavam o caldeirão de ferro em que o mingau fora feito.
Enquanto comia, ele refletiu sobre o conselho da mãe. E, quanto mais pensava a respeito, mais esperto lhe parecia. Depois que anunciasse que não seria candidato na eleição, tudo o que dissesse teria a autoridade de um observador desinteressado. Poderia manipular a eleição sem ser suspeito de motivos egoístas. E, depois, tomaria a iniciativa no último momento. Ele sentiu um fluxo de gratidão pela astúcia do cérebro irrequieto da mãe e a indômita lealdade de seu coração.
O irmão Theodoric encontrou-o ali. A pele clara de Theodoric estava corada de indignação.
- O irmão Simeon falou conosco no refeitório sobre a escolha de Carlus para prior. Acentuou que seria a continuação das sábias tradições de Anthony. Ele não vai mudar coisa alguma!
Fora uma manobra astuciosa, pensou Godwyn. Simeon aproveitara sua ausência para dizer, com autoridade, coisas que Godwyn teria contestado se estivesse presente. Ele disse, compreensivo:
- É vergonhoso.
- Perguntei se os outros candidatos teriam direito de falar aos monges no refeitório da mesma maneira.
Godwyn sorriu.
- Boa pergunta.
- Simeon disse que não havia necessidade de outros candidatos. ”Não estamos disputando um concurso de arco-e-flecha”, foram suas palavras.
Em sua opinião, a decisão já estava tomada: o prior Anthony escolheu Carlus para seu sucessor ao fazê-lo vice-prior.
- Isso é um absurdo total.
- Concordo plenamente. Os monges estão furiosos.
O que era ótimo, pensou Godwyn. Carlus ofendera até mesmo seus partidarios ao tentar lhes tirar o direito de votar. Estava minando sua própria candidatura. Theodoric acrescentou:
- Acho que devemos pressionar Carlus a se retirar da disputa.
Godwyn teve vontade de dizer: Ficou louco Mas mordeu a língua e tentou dar a impressão de que refletia a respeito.
- Seria a melhor maneira de lidar com a situação? - indagou ele, como se realmente estivesse em dúvida.
Theodoric se mostrou surpreso com a pergunta.
- Como assim?
- Você diz que os irmãos estão todos furiosos com Carlus e Simeon. Mas, se Carlus se retirar, a velha guarda encontrará outro candidato. E pode fazer uma escolha melhor na segunda vez. Pode ser alguém popular... como o irmão Joseph, por exemplo.
Theodoric ficou aturdido.
- Eu nunca tinha pensado assim.
- Talvez devamos torcer para que Carlus continue a ser a escolha da velha guarda. Todos sabem que ele é contra qualquer tipo de mudança. A razão para ele ser um monge é o fato de saber que todos os dias serão iguais: percorrerá os mesmos caminhos, sentará nos mesmos assentos, vai comer, rezar e dormir nos mesmos lugares. Talvez seja por causa da cegueira, embora eu desconfie que ele sempre foi assim. A causa não importa. Ele acredita que nada aqui precisa mudar. Não são muitos os monges que se sentem tão satisfeitos assim... o que faz com que Carlus seja um adversário relativamente fácil de derrotar. Um candidato que representasse a velha guarda mas defendesse algumas pequenas reformas teria muito mais probabilidade de vencer.
Godwyn compreendeu que deixara de parecer hesitante, e passara a ser categórico. Apressou-se em voltar atrás, murmurando:
- Não sei... o que você acha?
- Acho que você é um gênio - respondeu Theodoric.
Não sou um gênio, pensou Godwyn, mas aprendo depressa.
Ele foi para o hospital. Encontrou Philemon varrendo os quartos de hóspedes no segundo andar. Lorde William continuava ali, velando o pai, à espera de que ele vivesse ou morresse. Lady Philippa ficara com ele. O bispo Richard voltara para seu palácio em Shiring, mas era esperado hoje, para a grande missa fúnebre.
Godwyn levou Philemon à biblioteca. Philemon mal sabia ler, mas seria útil para pegar os documentos, chamados de cartulários.
O priorado tinha mais de uma centena de documentos desse tipo. A maior parte era de registro de propriedades, quase todas nas proximidades de Kingsbridge, mas algumas espalhadas por outras partes da Inglaterra e de Gales.
Outros documentos concediam aos monges o direito de estabelecer seu priorado, construir uma igreja, retirar pedras de uma pedreira em terras do conde de Shiring sem pagamento, dividir e arrendar a terra em torno do priorado para a construção de casas, realizar julgamentos, promover um mercado semanal, cobrar um pedágio pela travessia da ponte, ter uma Feira do Velocino anual, e despachar mercadorias de navio pelo rio até Melcombe, sem o pagamento de tributo aos senhores das terras pelas quais o rio passava.
Os documentos eram escritos com pena e tinta em pergaminhos, um couro fino limpo e raspado com todo cuidado, embranquecido e estendido para formar uma superfície em que se podia escrever. Os mais compridos eram enrolados e amarrados com uma tira fina de couro. Eram guardados numa arca revestida de ferro. A arca estava sempre trancada, mas a chave ficava na biblioteca, numa pequena caixa esculpida.
Godwyn franziu o rosto em desaprovação quando abriu a arca. Os documentos não estavam alinhados em pilhas meticulosas, mas largados de qualquer maneira, sem nenhuma ordem aparente. Alguns tinham pequenos rasgões e pontas esfareladas, e todos estavam cobertos de poeira. Deveriam ser mantidos na seqüência das datas, pensou ele, cada um numerado, com uma relação grudada na parte interna da tampa da arca, para que qualquer documento específico pudesse ser encontrado mais depressa. Se eu fosse o prior...
Philemon tirou os documentos da arca, um a um, soprando a poeira, para depois ajeitá-los numa mesa, ao lado de Godwyn. A maioria das pessoas detestava Philemon. Um ou outro monge mais velho desconfiava dele, mas não era assim que Godwyn se sentia: era difícil desconfiar de alguém que o tratava como a um deus. A maioria dos monges se acostumara a ele, pois estava ali há muito tempo. Godwyn recordava-o como menino, alto e desajeitado, sempre rondando o priorado, perguntando aos monges para que santo era melhor orar, e se já haviam testemunhado um milagre.
A maior parte dos documentos fora originalmente escrita duas vezes na mesma folha. A palavra ”quirógrafo” era escrita em letras grandes entre as duas cópias, para depois se cortar o pergaminho ao meio, numa linha em ziguezague através da palavra. Cada uma das partes ficava com uma metade e a combinação dos ziguezagues era a prova de que se tratava de um documento genuíno.
Alguns documentos tinham buracos, provavelmente onde a ovelha viva fora mordida por um inseto. Outros pareciam ter sido roídos em algum momento de sua história, presumivelmente por ratos.
Estavam escritos em latim, é claro. Os mais recentes eram mais fáceis de ler; às vezes Godwyn tinha dificuldade para decifrar o estilo de escrita mais antigo. Ele examinava cada documento até encontrar uma data. Procurava por algo escrito logo depois do Dia de Todos os Santos, há dez anos.
Examinou cada folha e nada encontrou.
O mais próximo era um documento datado de algumas semanas depois, pelo qual o conde Roland concedia permissão a Sir Gerald para transferir suas terras para a propriedade do priorado; em troca, o priorado perdoaria as dívidas de Gerald e o sustentaria e a esposa pelo resto de suas vidas.
Godwyn não chegou a ficar realmente desapontado. Muito pelo contrário.
Ou Thomas fora admitido sem o donativo usual - o que por si só já seria curioso
ou o documento era guardado em outro lugar, longe de olhos bisbilhoteiros. De qualquer forma, parecia cada vez mais provável que o instinto de Petranilla era certo: Thomas tinha mesmo um segredo.
Não havia muitos lugares privados num mosteiro. Os monges não deveriam ter bens pessoais, nem segredos. Embora em alguns mosteiros mais ricos houvesse celas particulares para os monges sêniores, em Kingsbridge todos dormiam num enorme dormitório, com exceção do prior. Era quase certo que o documento que garantira a admissão de Thomas estivesse na casa do prior.
Que era agora ocupada por Carlus.
Isso tornava a situação bastante difícil. Carlus não permitiria que Godwyn revistasse a casa. Mas talvez não houvesse necessidade de uma revista meticulosa. Era provável que houvesse uma caixa ou uma bolsa à plena vista contendo os documentos pessoais do falecido prior Anthony: um breviário do tempo de noviço, uma carta cordial do arcebispo, alguns sermões. Era também provável que Carlus já tivesse examinado o conteúdo depois da morte de Anthony. Mas não tinha qualquer razão para permitir que Godwyn fizesse a mesma coisa.
Godwyn franziu o rosto, pensando. Outra pessoa poderia procurar? Edmund ou Petranilla poderiam pedir para ver os bens do irmão, e seria difícil para Carlus negar o pedido. Mas ele poderia retirar antes os documentos do priorado. Portanto, a busca teria de ser clandestina.
O sino tocou para a Terça, o ofício da manhã. Godwyn compreendeu que o único momento em que podia ter certeza de que Carlus não estaria na casa do prior seria quando estivesse num serviço na catedral.
Teria de faltar à Terça. Teria de pensar em alguma desculpa plausível. Não seria fácil. Afinal, era o sacristão, o único monge que nunca deveria faltar aos serviços. Mas não havia alternativa.
- Quero que vá me procurar na catedral - disse ele a Philemon.
- Está bem.
Philemon ficou preocupado: os empregados do priorado não deveriam entrar no coro durante um culto.
- Apareça logo depois do primeiro versículo. Sussurre em meu ouvido. Pode dizer qualquer coisa. Não dê atenção às reações, apenas faça isso.
Philemon contraiu o rosto, em ansiedade, mas acenou com a cabeça em concordância. Faria qualquer coisa por Godwyn.
Godwyn deixou a biblioteca e juntou-se à procissão a caminho da catedral. Havia apenas algumas poucas pessoas na nave: a maior parte dos habitantes viria mais tarde, para a missa pelas vítimas do desabamento da ponte. Os monges ocuparam seus lugares no coro, e o ritual começou.
- Ó, Deus, venha em minha ajuda - entoou Godwyn, junto com os outros.
O versículo acabou e eles começaram o primeiro hino. Philemon apareceu. Todos os monges olharam para ele, como as pessoas sempre olham para qualquer coisa fora do normal que ocorre durante um ritual familiar. O irmão Simeon franziu o rosto em desaprovação. Carlus, conduzindo o canto, sentiu a perturbação e assumiu uma expressão de perplexidade.
Philemon seguiu direto para Godwyn e inclinou-se para sussurrar em seu ouvido:
- Bem-aventurado é o homem que não anda no conselho dos ímpios. Godwyn simulou surpresa e continuou a escutar, enquanto Philemon recitava o Salmo número um. Depois de alguns momentos, ele sacudiu a cabeça vigorosamente, como se negasse um pedido. Escutou mais um pouco. Teria de inventar uma história elaborada para explicar aquela pantomima. Talvez alegasse que a mãe insistia em falar com ele com urgência sobre o funeral do irmão, o prior Anthony, e que ameaçara entrar no coro pessoalmente, se Philemon não transmitisse um recado a Godwyn. A personalidade autoritária de Petranilla e a dor da família fariam com que a história tivesse credibilidade. Enquanto Philemon terminava de recitar o salmo, Godwyn assumiu uma expressão resignada, levantou-se e deixou o coro atrás dele.
Contornaram apressados a catedral, até a casa do prior. Um jovem servidor varria a casa. Não ousaria questionar um monge. Poderia informar a Carlus que Godwyn e Philemon haviam passado pela casa... mas àquela altura já seria tarde demais.
Godwyn achava que a casa do prior era uma vergonha. Era menor do que a casa de tio Edmund, na rua principal. Um prior deveria ter um palácio de acordo com sua posição, como era o caso do bispo. Mas não havia nada de glorioso naquela casa. Umas poucas tapeçarias cobriam as paredes, mostrando cenas bíblicas e impedindo a passagem das correntes de ar, mas no geral a decoração era insípida e sem imaginação... como fora o falecido Anthony.
Os dois revistaram a casa rapidamente e logo encontraram o que procuravam. Lá em cima, no quarto, numa arca ao lado do prie-dieu, havia uma bolsa grande. Era feita de pele de cabra, cor de gengibre, costurada com linha escarlate: Godwyn teve certeza de que fora um presente de uma das pessoas que trabalhavam com couro na cidade.
Ele abriu a bolsa, observado atentamente por Philemon.
Lá dentro havia trinta folhas de pergaminho, separadas por pedaços de linho protetores. Godwyn examinou-as depressa.
Várias tinham anotações sobre os Salmos: Anthony devia ter cogitado, em algum momento, escrever um livro de comentários, mas o trabalho parecia ter sido abandonado. O documento mais surpreendente era um poema de amor, em latim. Tinha o título de Virent Oculi, e era endereçado a um homem de olhos verdes. Tio Anthony tinha olhos verdes com pintas douradas, como toda a família.
Godwyn especulou sobre quem o teria escrito. Não eram muitas as mulheres que sabiam escrever bastante bem em latim para compor um poema. Uma freira amara Anthony? Ou o poema era de um homem? O pergaminho era antigo e amarelado: o caso de amor, se é que houvera algum, ocorrera na juventude de Anthony. Mas ele guardara o poema. O que talvez significasse que não fora um homem tão insosso quando Godwyn imaginara.
- O que é isso? - perguntou Philemon.
Godwyn sentiu-se culpado. Bisbilhotara um canto muito particular da vida do tio, e desejou agora não ter feito isso.
- Nada... apenas um poema.
Ele pegou a folha seguinte... e descobriu o que procurava.
Era um documento datado do Natal, de dez anos antes. Tratava de uma propriedade de quinhentos acres perto de Lynn, em Norfolk. O senhor local morrera pouco antes. O documento transferia a senhoria vaga para o priorado de Kingsbridge e especificava as contribuições anuais - em cereais, velocinos, bezerros e galinhas - para o priorado dos servos e rendeiros que cultivavam a terra. Também determinava que pagamentos em dinheiro podiam ser efetuados no lugar dos produtos, uma prática que era agora predominante, ainda mais quando a terra se situava a muitos quilômetros de distância da residência do senhor.
Era um documento típico. Todos os anos, depois da colheita, representantes de dezenas de comunidades similares faziam a peregrinação ao priorado para entregar o que deviam. Os emissários das propriedades próximas apareciam no início do outono; outros vinham a intervalos ao longo do inverno. Uns poucos de lugares distantes só chegavam depois do Natal.
O documento também especificava que o donativo era feito em consideração pela aceitação de Sir Thomas Langley como um monge. Isso também era rotina.
Mas uma característica do documento não era comum. Fora assinado pela rainha Isabella.
O que era muito interessante. Isabella era a esposa infiel do rei Edward II. Rebelara-se contra o marido real e instalara em seu lugar o filho de quatorze anos. Pouco depois, o rei deposto morrera. O prior Anthony comparecera a seu funeral, em Gloucester. Thomas chegara a Kingsbridge nessa ocasião.
Durante uns poucos anos, a rainha e seu amante, Roger Mortimer, haviam controlado a Inglaterra; mas não demorara muito para que Edward III proclamasse sua autoridade, apesar de muito jovem. O novo rei tinha agora vinte e quatro anos e mantinha um firme controle. Mortimer morrera e Isabella, agora com quarenta e dois anos, vivia num retiro opulento em Castle Rising, Norfolk, não muito longe de Lynn.
- Então é isso! - exclamou Godwyn para Philemon. - Foi a rainha Isabella quem providenciou para que Thomas se tornasse um monge!
Philemon franziu o rosto.
- Mas por quê?
Embora não tivesse instrução, Philemon era esperto.
- Isso mesmo, por quê?
- Podemos presumir que queria recompensá-lo, ou silenciá-lo, se não as duas coisas. E isso aconteceu no ano em que ela deu o golpe. - Godwyn respondeu.
- Ele deve ter prestado algum serviço à rainha. Godwyn acenou com a cabeça, em concordância.
- Ele levou uma mensagem, ou abriu os portões de um castelo, ou revelou os planos do rei para ela, ou garantiu o apoio de algum barão importante. Mas por que é um segredo?
- Não é - disse Philemon. - O tesoureiro deve saber. E todas as pessoas em Lynn. O emissário de lá deve conversar com algumas pessoas quando vem a Kingsbridge.
- Mas ninguém sabe que tudo foi feito em benefício de Thomas... a menos que tenham visto este documento.
- Então é esse o segredo... o fato de que a rainha Isabella fez o donativo por Thomas.
- Exatamente.
Godwyn arrumou os documentos com todo cuidado, entremeando os pergaminhos com os pedaços de linho, e tornou a guardar a bolsa na arca. Philemon perguntou:
- Mas por que é um segredo? Não há nada de desonesto ou vergonhoso nessa disposição... acontece o tempo todo.
- Não sei por que é um segredo, e talvez não precisemos saber. O fato de as pessoas se empenharem em esconder pode ser suficiente para o nosso propósito. Vamos sair desta casa.
Godwyn sentia-se satisfeito. Thomas tinha um segredo e Godwyn sabia disso. O que lhe proporcionava algum poder. Agora, sentia-se bastante confiante para assumir o risco de lançar Thomas como candidato a prior. Mas também sentia-se apreensivo: Thomas não era nenhum tolo.
Os dois voltaram à catedral. O ofício da Terça terminou poucos momentos depois, e Godwyn começou a preparar a catedral para o grande serviço fúnebre. Seguindo suas instruções, seis monges levantaram o caixão de Anthony e o puseram num suporte na frente do altar, para depois cercá-lo com velas acesas. Os habitantes da cidade começaram a se reunir na nave. Godwyn acenou com a cabeça para a prima Caris, que cobrira sua touca habitual com seda preta. Depois, avistou Thomas, carregando uma cadeira grande e ornamentada com a ajuda de um noviço. Era o trono do bispo, ou cátedra, que proporcionava à igreja sua posição especial de catedral. Godwyn tocou no braço de Thomas.
- Deixe Philemon fazer isso.
Thomas se irritou, pensando que Godwyn oferecia ajuda por causa de seu braço perdido.
- Posso dar um jeito.
- Sei que pode. Mas queria lhe falar.
Thomas era mais velho - tinha trinta e quatro anos, enquanto Godwyn tinha trinta e um anos - mas Godwyn era seu superior na hierarquia monástica. Mesmo assim, Godwyn sempre sentira um pouco de medo de Thomas. O matriculário em geral demonstrava a deferência devida ao sacristão, mas ainda assim Godwyn tinha a impressão de que recebia apenas o respeito que Thomas achava que ele merecia, nem mais um pouco. Embora Thomas se conformasse sob todos os aspectos com a disciplina da regra de São Bento, mesmo assim parecia ter levado para o priorado uma qualidade de independência e auto-suficiência que nunca perdera.
Não seria fácil enganar Thomas... mas era exatamente isso o que Godwyn planejava fazer.
Thomas permitiu que Philemon tomasse seu lugar ao lado do trono. Godwyn levou-o para um lado da catedral.
- Estão falando sobre você como possível novo prior - comentou Godwyn.
- Dizem a mesma coisa a seu respeito.
- Eu me recuso a ser candidato. Thomas elevou as sobrancelhas.
- Você me surpreende, irmão.
- Tenho dois motivos - declarou Godwyn. - Primeiro, acho que você faria um trabalho melhor.
Thomas parecia ainda mais surpreso. Provavelmente não desconfiara que Godwyn fosse capaz de tanta modéstia. Ele estava certo: Godwyn mentia.
- Segundo, você tem mais chance de vencer. - Godwyn agora dizia a verdade. - Os jovens gostam de mim, mas você é popular em grupos de todas as idades.
O rosto bonito de Thomas exibia uma expressão irônica. Esperava pelo ardil.
- Quero ajudar - acrescentou Godwyn. - Creio que a única coisa importante é ter um prior que introduza reformas no mosteiro e melhore as finanças.
- Acho que eu poderia fazer isso. Mas o que você quer em troca de seu apoio?
Godwyn sabia que não podia deixar de pedir alguma coisa. Thomas não acreditaria nele. Inventou uma mentira plausível.
- Eu gostaria de ser o vice-prior.
Thomas acenou com a cabeça, mas não deu um consentimento imediato.
- Como me ajudaria?
- Primeiro, obtendo o apoio dos habitantes da cidade.
- Só porque Edmund Wooler é seu tio?
- Não é tão simples assim. Os habitantes estão preocupados com a ponte. Carlus não diz quando começará a construir, nem mesmo se vai construir. Por isso, as pessoas torcem para que ele não seja o novo prior. Se eu disser a Edmund que você começará a cuidar da nova ponte assim que for eleito, contará com o apoio de toda a cidade.
- Mas isso não me valerá os votos de muitos monges.
- Não tenha tanta certeza. Lembre-se de que a escolha dos monges tem de ser ratificada pelo bispo. A maioria dos bispos sempre tem a prudência de consultar a opinião local... e Richard é tão ansioso quanto qualquer outro em evitar problemas. Se os habitantes o apoiarem, isso pode fazer uma diferença.
Godwyn podia perceber que Thomas não confiava nele. O matriculário estudava-o, e Godwyn sentiu uma gota de suor escorrer pela coluna; mas fez um esforço para permanecer impassível sob o olhar atento. Mas Thomas aceitava seus argumentos.
- Não resta a menor dúvida de que precisamos de uma nova ponte - disse ele.
- Carlus é insensato ao protelar a decisão.
- Portanto, pode prometer uma coisa que tenciona fazer.
- Você é muito persuasivo.
Godwyn ergueu as mãos num gesto defensivo.
- Não tenho essa intenção. Você deve fazer o que achar que é a vontade de Deus.
Thomas fitava-o com evidente ceticismo. Não acreditava que Godwyn fosse tão imparcial. Mas disse:
- Está bem. - Uma pausa, e ele acrescentou: - Rezarei por uma orientação. Godwyn sentiu que não arrancaria de Thomas um compromisso mais forte
hoje, e que poderia ser contraproducente se tentasse pressioná-lo mais um pouco.
- Eu também - disse ele, antes de se virar.
Thomas faria exatamente o que prometera, rezaria em busca de uma orientação. Não tinha muitos desejos pessoais. Se achasse que essa era a vontade de Deus, seria candidato a prior; se não, não seria. Godwyn não poderia fazer mais nada com ele, pelo menos por enquanto.
Havia um brilho de velas em torno do caixão de Anthony. A nave se enchia de habitantes da cidade e camponeses das aldeias próximas. Godwyn esquadrinhou a multidão à procura do rosto de Caris, que avistara poucos minutos antes. Localizou-a no transepto sul, olhando para o andaime de Merthin. Tinha lembranças afetuosas de Caris quando criança, no tempo em que ele era o primo crescido que sabia de tudo.
Caris se mostrava desolada desde o desabamento da ponte, mas Godwyn notou que ela parecia mais animada hoje. O que o deixou satisfeito, porque gostava da prima. Tocou em seu cotovelo.
- Você parece feliz.
- E estou. - Caris sorriu. - Um nó romântico acaba de ser desatado. Mas você não compreenderia.
- Claro que não.
Você não faz idéia de quantos nós românticos existem entre os monges, pensou ele. Mas não disse nada: era melhor deixar os leigos na ignorância dos pecados que ocorriam no priorado. Ele disse:
- Seu pai deveria conversar com o bispo Richard sobre a reconstrução da ponte.
- É mesmo? - indagou ela, cética. Quando criança, ela o admirava como um herói, mas agora não sentia tanto respeito. - Qual o sentido? A ponte não é dele.
- A escolha dos monges para prior tem de ser aprovada pelo bispo. Richard pode avisar que não aprovaria alguém que se recuse a construir a ponte. Alguns monges podem assumir uma posição de desafio, mas outros dirão que não há sentido em votar em alguém que não será ratificado.
- Entendo. Mas acha mesmo que meu pai pode ajudar?
- Tenho certeza de que sim.
- Então farei a sugestão.
- Obrigado.
O sino tocou. Godwyn deixou a catedral e foi se juntar outra vez à procissão que se formava no claustro. Era meio-dia. Fizera um bom trabalho naquela manhã.
Wulfric e Gwenda deixaram Kingsbridge no início da manhã de segundafeira, para caminhar pela longa estrada que os levaria de volta à aldeia de Wigleigh.
Caris e Merthin observaram os dois atravessar o rio na balsa nova. Merthin sentia-se satisfeito por constatar que ela continuava a funcionar muito bem. As engrenagens de madeira ficariam desgastadas bem depressa, ele sabia. Usar engrenagens de ferro seria melhor, mas... Caris tinha outros pensamentos.
- Gwenda está muito apaixonada - murmurou ela, suspirando.
- Ela não tem a menor chance com Wulfric.
- Nunca se sabe. Gwenda é muito determinada. Veja como ela escapou de Sim Chapman.
- Mas Wulfric está noivo de Annet... que é muito mais bonita.
- A boa aparência não é tudo num romance.
- Pelo que agradeço a Deus todos os dias. Caris riu.
- Adoro sua cara engraçada.
- Mas Wulfric brigou com meu irmão por causa de Annet. Portanto, deve amá-la.
- Gwenda tem uma poção do amor. Merthin lançou-lhe um olhar de desaprovação.
- Então acha certo que a mulher manobre um homem para casar com ela mesmo quando ele ama outra?
Caris permaneceu calada por um momento. A pele macia do pescoço ficou rosada.
- É realmente a mesma coisa?
- É parecido.
- Mas ela não o está coagindo... só quer fazer com que Wulfric a ame.
- Deveria tentar isso sem uma poção.
- Agora me sinto envergonhada de ajudá-la.
- Tarde demais.
Wulfric e Gwenda desembarcaram da balsa, no outro lado do rio. Viraram-se para acenar, e depois se afastaram pela estrada, com o cachorro Skip em sua esteira. Merthin e Caris tornaram a subir pela rua principal. Caris comentou:
- Você ainda não falou com Griselda.
- Farei isso agora. Não sei se aguardava ansioso pelo momento, ou se receava.
- Não tem nada a temer. Foi ela quem mentiu.
- É verdade. - Merthin levou a mão ao rosto. A equimose quase desaparecera. - Só espero que o pai dela não fique violento outra vez.
- Quer que eu vá com você?
Merthin gostaria muito de contar com o apoio de Caris, mas sacudiu a cabeça.
- Eu criei essa confusão, e agora tenho de resolver tudo sozinho.
Pararam na frente da casa de Elfric; Caris murmurou:
- Boa sorte.
- Obrigado.
Merthin deu um beijo de leve nos lábios dela, resistiu à tentação de beijá-la de novo, e entrou na casa.
Elfric estava sentado à mesa, comendo pão e queijo. Tinha uma caneca de cerveja à sua frente. Além dele, Merthin viu Alice e a criada na cozinha. Não havia sinal de Griselda.
- Onde você estava? - perguntou Elfric.
Merthin decidiu que, se não tinha nada a temer, era melhor agir sem medo. Ignorou a pergunta de Elfric.
- Onde está Griselda?
- Ainda na cama. Merthin gritou pela escada:
- Griselda! Quero falar com você!
- Não há tempo para isso - disse Elfric. - Temos muito trabalho a fazer. Merthin tornou a ignorá-lo.
- Griselda! É melhor você se levantar agora!
- Ei, quem você pensa que é para dar ordens aqui? - protestou Elfric. I
- Quer que eu case com ela, não é?
- E daí?
- Então é melhor ela se acostumar a fazer o que seu marido manda. - Ele tornou a elevar a voz. - Desça agora mesmo, ou terá de ouvir o que vou dizer de outra pessoa!
Griselda apareceu no alto da escada.
- Já estou descendo! - exclamou ela, irritada. - Por que toda essa confusão? Merthin esperou que ela descesse, antes de declarar:
- Descobri quem é o pai da criança. O medo aflorou aos olhos de Griselda.
- Não seja estúpido. É você.
- Não, não sou eu. É Thurstan.
- Nunca deitei com Thurstan! - Ela olhou para o pai. - Juro que não!
- Ela não mente - disse Elfric. Alice veio da cozinha.
- É isso mesmo - declarou ela.
- Deitei com Griselda no domingo da semana da Feira do Velocino... há quinze dias. Griselda está grávida de três meses.
- Não estou, não!
Merthin olhou duro para Alice.
- Você sabia, não é?
Alice desviou os olhos. Merthin acrescentou:
- E mentiu... até mesmo para Caris, sua própria irmã.
- Você não sabe há quanto tempo ela está grávida - resmungou Elfric.
- Olhe para ela - respondeu Merthin. - Dá para ver sua barriga crescida. Não é muita coisa, mas se pode perceber.
- O que você sabe sobre essas coisas? É apenas um garoto.
- Você contava com minha ignorância, não é? E quase deu certo. Elfric acenou com um dedo.
- Você deitou com Griselda e agora terá de casar com ela.
- Não vou, não. Ela não me ama. Deitou comigo para arrumar um pai para eu bebê, depois que Thurstan fugiu. Sei que fiz uma coisa errada, mas vou me punir pelo resto da minha vida ao casar com ela.
Elfric levantou-se.
- Vai casar, e sabe disso.
- Não.
- Tem de casar.
- Não.
O rosto de Elfric ficou vermelho. Ele gritou:
- Vai casar com ela!
- Quantas vezes quer que eu continue a dizer não? Elfric compreendeu que não o faria mudar de idéia.
- Neste caso, você está dispensado. Saia da minha casa e nunca mais volte. Merthin já esperava por isso. Era um alívio. Significava que a discussão terminara.
- Está bem.
Ele tentou passar por Elfric, que bloqueou sua passagem.
- Onde você pensa que vai?
- Até a cozinha, para pegar minhas coisas.
- Está se referindo às suas ferramentas, não é?
- Isso mesmo.
- Não são suas. Paguei por elas.
- Um aprendiz sempre tem direito às suas ferramentas no final do... Merthin não concluiu a frase.
- Ainda não terminou o aprendizado. Portanto, não tem direito às ferramentas.
Merthin não esperava por isso.
- Já tenho seis anos e meio!
- Precisa completar sete anos.
Sem ferramentas, Merthin não poderia ganhar a vida.
- Isso é injusto. Apelarei para a guilda dos carpinteiros.
- Aguardo ansioso por isso - disse Elfric, presunçoso. - Será interessante ouvir você argumentar que um aprendiz que foi despedido por deitar com a filha do mestre deve ser recompensado com um jogo de ferramentas de graça. Todos os carpinteiros na guilda têm aprendizes e muitos têm filhas. Vão expulsá-lo a pontapés no traseiro.
Merthin compreendeu que ele tinha razão. Alice interveio:
- Está metido na maior encrenca, não é mesmo?
- Estou, sim - respondeu Merthin. - Mas o que quer que aconteça, não será tão terrível como a vida com Griselda e sua família.
Ao final daquela manhã, Merthin foi à igreja de St. Mark para o funeral de Howell Tyler. E foi porque esperava que alguém ali lhe arrumasse um trabalho.
Ao olhar para o teto de madeira - a igreja não tinha uma abóbada de pedra -, Merthin divisou o buraco no teto pintado, no formato de um homem, um sombrio testemunho da maneira como Howell morrera. Tudo lá em cima estava apodrecido, comentaram os construtores presentes ao funeral, com conhecimento de causa; mas só diziam isso depois do acidente, a sagacidade chegando tarde demais para salvar a vida de Howell. Era evidente agora que o telhado estava fraco demais para ser reparado; devia ser demolido por completo e reconstruído do nada. Isso significava fechar a igreja.
St. Mark era uma igreja pobre. Tinha apenas uma pequena dotação, uma única fazenda, a quinze quilômetros de distância, cuidada pelo irmão do padre, que mal dava para sustentar a família. Os rendimentos do padre Joffroi vinham de oitocentos ou novecentos cidadãos de sua paróquia, na zona norte da cidade, a mais pobre. Os que não eram de fato indigentes, em geral fingiam ser; assim, seus dízimos rendiam apenas uma modesta quantia. Ele ganhava a vida com batizados, casamentos e enterros, cobrando muito menos que os monges na catedral. Seus paroquianos casavam cedo, tinham muitos filhos, e morriam jovens, o que significava que havia bastante trabalho. No final das contas, ele ganhava o suficiente. Mas se fechasse a igreja, seus rendimentos ficariam suspensos... e ele não poderia pagar os construtores.
Em conseqüência, o trabalho no telhado estava paralisado.
Todos os construtores da cidade compareceram ao funeral, inclusive Elfric Merthin tentou se manter impassível, mas era difícil: quase todos sabiam que ele fora dispensado. Recebera um tratamento injusto, mas infelizmente não era de todo inocente.
Howell tinha uma jovem esposa que era amiga de Caris; e foi junto com a viúva e a família desconsolada que Caris entrou na igreja. Merthin foi se postar ao seu lado, e relatou o que acontecera com Elfric.
O padre Joffroi conduziu o serviço numa velha batina. Merthin pensou no telhado. Achava que tinha de haver um jeito de desmontá-lo sem fechar a igreja. O processo habitual, quando os reparos haviam sido adiados por muito tempo e as madeiras estavam muito apodrecidas para suportar o peso de trabalhadores, era construir andaimes em torno da igreja e derrubar as tábuas dentro da nave. O prédio ficava então exposto aos elementos, até que o novo telhado fosse concluído e coberto de telhas. Mas deveria ser possível fazer um guincho móvel, sustentado pela grossa parede lateral da igreja, que levantaria as madeiras do telhado, uma a uma, em vez de derrubá-las dentro da igreja, passando por cima da parede, para depositá-las no cemitério. Dessa maneira, o teto de madeira poderia ficar intacto, e só seria substituído depois que o telhado fosse trocado.
A beira da sepultura, ele olhou para os homens, especulando qual deles teria mais probabilidade de empregá-lo. Decidiu falar com Bill Watkin, o segundo maior construtor da cidade, que nunca fora um admirador de Elfric.
Bill tinha o alto da cabeça calvo, com uma franja de cabelos pretos ao redor, uma versão natural da tonsura monacal. A maior parte de suas construções era em Kingsbridge. Como Elfric, empregava um pedreiro e um carpinteiro, um punhado de trabalhadores e um ou dois aprendizes.
Howell não fora um homem próspero, e seu corpo foi baixado para a cova numa mortalha, sem um caixão. Depois que o padre Joffroi se retirou, Merthin procurou Bill Watkin.
- Bom-dia, mestre Watkin - disse ele, formal.
A reação de Bill não foi calorosa.
- O que é, jovem Merthin? oci um ..
- Acabo de me separar de Elfric.
- Sei disso. E também sei por quê.
- Ouviu o lado de Elfric da história.
- Ouvi tudo o que precisava ouvir.
Merthin compreendeu que Elfric conversara com as pessoas antes e durante o serviço. Tinha certeza de que Elfric omitira de seu relato o fato de que Griselda tentara fazer com que Merthin se tornasse o pai substituto do bebê de Thurstan. Mas sentiu que de nada lhe serviria apresentar desculpas. Era melhor admitir sua tulpa.
- Sei que agi errado e lamento muito, mas ainda sou um bom carpinteiro. Bill acenou com a cabeça em concordância.
- A nova balsa confirma isso. Merthin sentiu-se mais animado.
- Não quer me contratar?
- Como o quê?
- Como um carpinteiro. Disse que eu era bom.
- Mas onde estão suas ferramentas?
- Elfric não quis me dar.
- E tinha razão... porque você não concluiu seu aprendizado.
- Então me aceite como aprendiz por seis meses.