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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MUTAÇÃO / Robin Cook
MUTAÇÃO / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

No preciso momento em que se formaram, há seis meses, estes milhões de neurónios começaram a armazenar energia. As células nervosas estavam carregadas de electricidade e moviam-se em direcção a um patamar voltaico. A divisão das dendrites que constituem as células nervosas, não esquecendo todas as células de apoio, aumentava até quase atingir o seu nível máximo, verificando-se o aparecimento de novas ramificações sinápticas de hora a hora. Era como se de um reactor nuclear se tratasse e este estivesse prestes a atingir o ponto crítico.

E por fim aconteceu! O patamar foi alcançado e ultrapassado. Fortes descargas eléctricas percorriam as complicadas redes das ligações sinápticas, fornecendo energia a toda a massa. As cavidades intracelulares expeliam os neurotransmissores e neuromoduladores que possuíam, aumentado o nível de excitação até se verificar um novo ponto crítico.

E foi desta complexa e microscópica actividade celular que surgiu um dos mistérios do Universo: a consciência! Mais uma vez, é o espirito que se forma a partir da matéria.

A consciência foi a faculdade que permitiu a criação de alicerces para a existência da memória e do sentido, mas também do terror e do medo. Foi com a consciência que surgiu o fardo do conhecimento da morte. Contudo, a consciência que então surgiu não trazia vestígios de conhecimento. Este estava para breve.

 

 

 

11 DE OUTUBRO DE 1978

— Oh, meu Deus! — exclamou Mary Millman, agarrando-se aos lençóis com ambas as mãos. Voltava a sentir a mesma dor na parte baixa do abdómen, a qual se espalhava rapidamente pela virilha como se de a ponta de uma lança de metal incandescente se tratasse. — Dêem-me alguma coisa para as dores! Por favor! Já não aguento mais! — Dito isto, soltou um grito.

 

— Mary, você está a sair-se muito bem — disse o Dr. Stedman com toda a calma. — Limite-se a respirar fundo. — Enquanto assim fala, ia calçando um par de luvas de borracha, ao mesmo tempo que as ajustava aos dedos.

 

— Não aguento mais — gritou Mary. Mudou de posição, mas o facto em nada a aliviou. A dor tornava-se mais forte de segundo para segundo. Susteve a respiração, e, por instinto, contraiu todos os músculos do corpo.

 

— Mary! — exclamou o médico com firmeza, agarrando o braço da rapariga. — Não faça força! Isso só a vai ajudar quando o útero estiver suficientemente dilatado. Para além do mais pode magoar o bebé!

 

Mary abriu os olhos e tentou descontrair o corpo. Soltou um gemido fraco.

 

— Não posso deixar de o fazer — choramingou. — Por favor, não aguento mais. Ajude-me! — A frase terminou num outro grito.

 

Mary Millman era uma secretária de vinte e dois anos que trabalhava num armazém situado na baixa de Detroit. Quando lera o anúncio que pedia uma mãe de aluguer, o dinheiro que poderia vir a receber pareceu-lhe uma dádiva dos céus — a maneira ideal de conseguir pagar todas as dívidas que a prolongada doença da mãe lhe deixara. Mas, dado que nunca estivera grávida e os únicos partos a que assistira tinham ocorrido nos filmes, não fazia a mínima ideia do que a esperava. Naquele momento, não conseguia sequer pensar nos trinta mil dólares que receberia quando tudo aquilo acabasse, uma soma bastante superior à que o Estado do Michigan, o único que permitia a adopção de uma criança antes do seu nascimento, lhe iria cobrar por se ter prestado a semelhante papel. Não conseguia deixar de pensar que ia morrer.

 

A dor atingiu o seu ponto máximo e depois desapareceu. Mary conseguiu arranjar fôlego para respirar.

 

— Preciso de uma injecção para as dores — disse ela com alguma dificuldade. Sentia a boca seca.

 

— Já lhe demos duas — respondeu o Dr. Stedman. O médico parecia mais preocupado a desccalçar o par de luvas que contaminara ao agarrar-lhe o braço e em substituí-lo por um novo par esterilizado.

 

— Não lhes sinto o efeito — gemeu ela.

 

— Talvez não no auge das contracções — retorquiu o médico —, mas há apenas alguns instantes estava a dormir.

 

— Estava? — Como que à procura de confirmação, Mary levantou os olhos na direcção do rosto de Marsha Frank, um dos membros do casal que iria adoptar a criança e que lhe limpava o suor da testa com uma compressa humedecida. Marsha fez que sim com a cabeça. Possuía um sorriso caloroso e simpático. A rapariga simpatizava com ela e estava feliz por esta ter insistido para assistir ao parto. Ambos os Frank tinham insistido para que o facto se tornasse uma das cláusulas do contrato, muito embora Mary se sentisse muito menos entusiasmada em relação ao futuro pai, pois este estava constantemente a dar-lhe ordens.

 

— Não se esqueça que o bebé será afectado por todos os medicamentos que tomar — informou Victor Frank com maus modos. — Não podemos mandar a vida dele para o boneco só para lhe aliviar as dores.

 

O Dr. Stedman endereçou-lhe um olhar furtivo. Já começava a ficar irritado com aquele homem. Por tudo o que podia ver, Frank era o pior pai que já alguma vez estivera na sala de observações. O mais incrível dos factos é que Victor Frank também era médico, e, antes de se ter dedicado à investigação, tinha sido obstetra. Se, de facto, tinha experiência no assunto, esta não estava patente no modo como se comportava. Mary soltou um suspiro profundo, facto que fez que o Dr. Stedman voltasse a concentrar as atenções na parturiente.

 

O esgar que distorcera as feições de Mary desapareceu devagar. Era óbvio que a contracção chegara ao fim.

 

— Muito bem — disse o médico, ao mesmo tempo que fazia sinal à enfermeira para levantar o lençol que cobria as pernas da rapariga. — Vamos lá ver o que se está a passar. — Inclinou-se e colocou as pernas de Mary na posição correcta.

 

— E que tal se tentássemos a sonda? — sugeriu Victor. — Tenho a sensação de que não estamos a fazer grandes progressos.

 

O outro endireitou-se.

 

— Dr. Frank! Se não se importa... —Não completou a frase, esperando que o tom de voz que utilizara fosse suficiente para exprimir a irritação que sentia.

 

Victor Frank levantou os olhos na direcção do colega e este apercebeu-se de súbito que o homem estava aterrorizado. O seu rosto estava branco como a cal da parede e a testa cheia de suor. Talvez que o facto de usar uma mãe de aluguer fosse de mais, até mesmo para um médico.

 

— Oh!—exclamou Mary. Subitamente, a cama foi inundada por um líquido, facto que fez que o médico se voltasse a ocupar da sua paciente. Por um momento, esqueceu-se do Dr. Frank.

 

— Trata-se da ruptura das membranas — esclareceu. — Tal como já antes expliquei, trata-se de um caso absolutamente normal. Vamos lá ver qual a posição do bebé.

 

Mary fechou os olhos. Ficou com a impressão de que havia dedos a moverem-se dentro de si. Sentiu-se humilhada e vulnerável, deitada em lençóis encharcados com líquidos que haviam partido do interior do seu corpo. Repetira vezes sem conta para si mesma que não se sujeitava a tudo isto apenas por dinheiro, mas também para trazer felicidade a um casal que não podia ter mais filhos. Marsha fora bastante meiga e persuasiva. Contudo, agora interrogava-se sobre se teria agido de um modo acertado. Foi então que uma outra contracção lhe varreu todos os pensamentos da cabeça.

 

— Ora bem! —exclamou o Dr. Stedman. —Está a sair-se bastante bem, Mary. Bastante bem, mesmo. —Tirou as luvas de borracha e atirou-as para o lado. —A cabeça do bebé já está no ponto certo e o seu útero está quase totalmente dilatado. Linda menina! — Voltou-se para a enfermeira. — Já podemos passar para a sala de partos.

 

— Posso tomar algo para aliviar as dores? — inquiriu a rapariga.

 

— Assim que chegarmos à outra sala — retorquiu o médico com descontracção. Sentia-se aliviado. Foi então que uma mão lhe agarrou o braço.

 

— Tem a certeza de que a cabeça não é demasiado grande? — Perguntou Victor de forma abrupta, desviando o Dr. Stedman para um dos lados da sala.

 

O médico ficou com a impressão de que a mão que o agarrava tremia. Estendeu uma mão e libertou-se dos dedos.

 

— Eu disse que a cabeça estava na posição certa. Isso significa que já passou a cintura pélvica. Tenho a certeza de que ainda não se esqueceu disso!

 

— Mas tem mesmo a certeza de que a cabeça está na posição certa? — Era de novo Victor.

 

O Dr. Stedman sentiu-se percorrido por uma vaga de irritação. Estava prestes a perder o controlo, mas foi então que reparou que a angústia fazia que o outro tremesse. Contendo a fúria a tempo, limitou-se a dizer que tinha a certeza de que a cabeça estava na posição certa. E acrescentou:

 

— Se tudo isto o está a perturbar, talvez seja melhor ir até à sala de espera.

 

— Não sou capaz! —exclamou o outro com ênfase. —Tenho de ver tudo isto chegar ao fim.

 

O outro olhou-o fixamente. Desde a primeira vez que o vira que sentia que havia algo de estranho neste homem. Durante alguns momentos, atribuiu o estranho comportamento de Frank ao facto de este ter de recorrer a uma mãe de aluguer, mas ali havia algo mais do que isso. É que o Dr. Frank era algo mais do que um pai preocupado. “Tenho de ver tudo isto chegar ao fim”, era um comentário muito estranho para um futuro pai, até mesmo quando este era adoptivo. Fazia que as coisas tomassem o aspecto de uma missão, não uma missão agradável, mas sim traumática, a qual envolvesse seres humanos.

 

À medida que, atrás da cama de Mary, descia o corredor que levava à sala de partos, Marsha apercebeu-se vagamente do estranho comportamento do marido. Contudo, estava tão concentrada no parto que não lhe prestou grande atenção. Desejava com todas as forças poder ser ela a estar naquela cama. Sabia que todas aquelas dores seriam bem-vindas, muito embora há cinco anos atrás, durante o parto do filho, David, as coisas tivessem terminado com uma hemorragia de tal modo violenta, que, para lhe salvar a vida, o médico se vira obrigado a praticar uma histerotomia. Tanto ela como Victor haviam desejado tanto um segundo filho! Dado que ela não o podia ter, tinham pensado bastante a sério nas opções que lhes restavam. Depois de medirem os prós e os contras, decidiram-se por arranjar uma mãe de aluguer. Marsha ficara bastante satisfeita com a solução encontrada, bem assim como com o facto de poder adoptar legalmente a criança ainda antes do seu nascimento, mas, mesmo assim, teria dado tudo para ’ser ela a transportar consigo durante nove meses esta criança tão desejada. Por um momento, deu consigo a pensar em como é que Mary seria capaz de se separar dela. Era por esta razão que estava particularmente satisfeita com as leis do Michigan.

 

Quando viu as enfermeiras transportarem Mary para a mesa de parto, devagar, Marsha disse:

 

— Está a sair-se bastante bem. Está quase a acabar.

 

— Vamos pô-la de lado — disse a Dr.a Whitehead, a anestesista, dirigindo-se às enfermeiras. Depois, agarrando no braço da rapariga, anunciou: —Vou dar-lhe o tal epidural de que já falámos.

 

— Não estou a gostar nada desse negócio do epidural — disse Victor, ao mesmo tempo que se dirigia para o lado oposto da mesa de partos. — Especialmente numa situação como esta.

 

— Dr. Frank! — exclamou o médico, já bastante zangado. — Vai ter de optar: ou pára de interferir com o que se está a passar, ou terá de abandonar a sala. Decida-se. —O Dr. Stedman estava mais do que farto. Já tivera de aguentar uma série de ordens que o outro lhe dera, nomeadamente a realização de todos os testes pré-natais existentes, incluindo o exame do saco amniótico e da membrana exterior que rodeia o feto. Chegara mesmo a permitir que, logo no início da gravidez, Mary tomasse antibióticos pouco recomendáveis. No plano profissional, sentia que nada disto era indicado, mas tudo tolerara devido à insistência de Victor, e também porque a existência de uma mãe de aluguer tornava a situação especial. Dado que Mary não levantara qualquer objecção, dizendo que tudo aquilo fazia parte do acordo que estabelecera com os Frank, ele também não se queixara. Contudo, isto passara-se durante a gravidez. O parto era uma história diferente, e o Dr. Stedman não estava disposto a comprometer a sua linha metodológica só por causa de um colega neurótico. Interrogou-se sobre qual teria sido o tipo de treino médico a que Victor se sujeitara. Tinha a certeza de que ele se deveria saber comportar numa sala de operações. No entanto, este passava o tempo a questionar as suas ordens, tentando descobrir segundas intenções em tudo.

 

Durante alguns segundos, ambos os homens se deixaram ficar a olhar um para o outro. Victor tinha os punhos cerrados, e, durante um curto espaço de tempo, o médico ficou com a impressão de que o outro lhe iria bater. No entanto, o momento passou, e Victor afastou-se, indo posicionar-se num dos cantos da sala.

 

Este último sentia o coração a bater furiosamente, bem assim como uma sensação bastante desagradável no abdómen. “Por favor, fazei que o bebé seja normal”, disse ele para consigo mesmo, à laia de oração. Olhou para a mulher e as lágrimas toldaram-lhe a visão. Ela quisera tanto ter um outro filho. Sentiu que voltava a tremer. Em pensamentos, deu consigo a repreender-se. “Não o devia ter feito. Contudo, por favor, meu Deus, faz que o bebé seja Perfeito.” Olhou para o relógio. Sentiu que passava uma das mãos Pelo rosto. Perguntou-se quanto mais tempo seria capaz de aguentar a tensão.

 

As mãos experientes da Dr.a Whitehead administraram o analgésico-, em apenas alguns segundos. Marsha pegou na mão de Mary, sorrindo para lhe dar coragem à medida que as dores começaram a diminuir. Mary voltou a recuperar consciência quando alguém a acordou, dizendo que estava na hora de fazer força. A segunda fase do trabalho de parto decorreu de forma rápida e sem problemas, e às seis horas e quatro minutos da tarde veio ao mundo um vigoroso Victor Frank Júnior.

 

Quando a criança nasceu, Victor estava mesmo atrás do Dr. Stedman, contendo a respiração e tentando ver tudo o melhor que podia. Assim que o bebé ficou visível e o médico procedia ao corte do cordão umbilical, tentou examiná-lo o melhor possível. Stedman entregou o recém-nascido ao pediatra de serviço, tendo este sido seguido por Victor até à incubadoura. O pediatra deitou o bebé, que, diga-se, continuava silencioso, e começou a examiná-lo. O pai sentiu-se invadido por um súbito alívio. A criança parecia ser normal.

 

— Nota dez — comentou o médico de serviço, indicando com isso que Victor Júnior atingira a pontuação máxima no que respeitava aos níveis de sobrevivência.

 

— Óptimo — retorquiu o Dr. Stedman, demasiado ocupado com Mary e com todo o trabalho que se segue ao parto.

 

— Mas ele não chora — comentou Victor. A sua felicidade era toldada por um sentimento de dúvida.

 

O pediatra bateu ao de leve na planta dos pés do recém-nascido e depois esfregou-lhe as costas. Mesmo assim, a criança não se mexeu.

 

— Ele está a respirar bem.

 

O médico pegou na borrachinha com que é costume extrair-se o muco das narinas das crianças acabadas de nascer e tentou voltar a aplicá-la. Para seu espanto, a mão daquele recém-nascido elevou-se, arrancou o aparelho das mãos do pediatra e deixou-o cair ao lado da incubadora.

 

— bom, isto explica tudo — comentou o médico com uma gargalhada. — O que ele não quer é chorar.

 

— Posso? — perguntou Victor, fazendo um gesto na direcção do bebé.

 

— Desde que ele não apanhe frio...

 

com todo o cuidado, aproximou-se da incubadora e pegou na criança. com ambas as mãos a rodearem-lhe o torso, segurou o filho à sua frente. Tratava-se de um bebé muito bonito, com os cabelos incrivelmente louros. O facto de ter as bochechas gordas e rosadas conferia-lhe um aspecto angélico, mas, no entanto, a característica mais marcante das suas feições eram os olhos, azuis e brilhantes. À medida que os fitava com atenção, descobriu, não sem sombra de choque, que a criança lhe devolvia o olhar.

 

— É tão bonito, não é? — perguntou Marsha, espreitando por sobre o ombro do marido.

 

— Magnífico — concordou. — Mas onde é que ele foi buscar o cabelo louro? O nosso é castanho.

 

— Fui loura até aos cinco anos — retorquiu ela, estendendo os braços para tocar na pele rosada do filho.

 

Victor olhou-a com atenção à medida que ela observava a criança com ternura. Tinha o cabelo castanho-escuro, salpicado de alguns fios cinzentos. Os olhos eram cizento-azulados e as feições bem marcadas contrastavam com o rosto cheio e redondo do recém-nascido.

 

— Repara nos olhos dele — comentou Marsha. Ele voltou a concentrar as suas atenções no bebé.

 

— São incríveis, não são? Há apenas um minuto era capaz de jurar que estavam a olhar para mim.

 

— São como pedras preciosas — continuou a mãe.

 

Victor desviou o rosto do bebé em direcção da mulher. Assim que o fez, reparou que os olhos do filho continuavam presos nos seus! A sua cor turquesa era fria e brilhante como gelo. Sem querer, Victor sentiu qualquer coisa parecida com o medo.

 

À medida que Victor conduzia o seu Oldsmobile Cutlass pelo caminho empedrado que levava à sua casa rústica de madeira, o casal Frank foi dominado por uma sensação de triunfo. Todo o processo angustiante que culminara na fertilização In vitro fora recompensado. A busca que precedera o encontro com uma mãe de aluguer adequada, bem assim como todas aquelas horrorosas viagens a Detroit, haviam dado os seus frutos. Tinham mais um filho, e Marsha embalava-o nos braços, agradecendo a Deus a Sua dádiva.

 

Quando o carro descreveu a última curva, ela ficou a olhar para a casa. Levantou a criança, desviou a ponta do cobertor que a envolvia e mostrou ao rapazinho aquele que era o seu lar. Como se tivesse compreendido, Victor Júnior espreitou pelo pára-brisas e olhou Para aquela casa pequena, mas agradável. Pestanejou e acabou por se virar e sorrir para o pai.

 

— Gostas, ah, tigre? — perguntou Victor na brincadeira. — Tem apenas três dias, mas era capaz de jurar que, se pudesse, falava comigo.

 

— E que coisas te diria ele? — interrogou Marsha, ao mesmo tempo que voltava a deitar VJ no colo. Tinham-lhe dado este nome para que não houvesse confusão com o pai, Victor Sénior.

 

— Não sei — retorquiu ele, acabando por parar o carro em frente à porta. — Talvez que, quando crescesse, gostaria de ser médico como o pai.

 

— Ora, por amor de Deus — disse a mulher, abrindo a porta lateral que dava para o carreiro.

 

Ele saiu do carro para a ajudar. Estava-se em Outubro, o dia era límpido como o cristal e a luz do Sol iluminava toda a cena. Por detrás da casa, as árvores apresentavam uma vasta gama de cores de Outono. Os áceres escarlates, os carvalhos alaranjados e as faias amarelas, todas estas árvores emprestavam à atmosfera a sua beleza. Quando começaram a subir o carreiro, a porta da frente abriu-se e Janice Fay, a ama que vivia com eles, desceu os degraus a correr.

 

— Deixem-me vê-lo — pediu, parando mesmo em frente a Marsha. Como sinal de admiração, colocou a mão em frente à boca.

 

— Que achas dele? — perguntou Victor.

 

— É angelical! — exclamou Janice. —É lindo, e acho mesmo que nunca Vi olhos tão azuis. — Estendeu os braços. — Deixem-me pegar nele. — com toda a delicadeza, tirou a criança do colo da mãe e começou a embalá-la de um lado para o outro. —Não estava à espera que ele tivesse o cabelo louro.

 

— Nem nós — concordou Marsha. — Achámos que também ias ficar surpreendida. Sai à minha família.

 

— Claro — brindou o marido. — As hostes de Gengiscão estavam cheias de gente loura.

 

— Onde é que está o David? — perguntou Marsha.

 

— Em casa — respondeu Janice sem deixar de olhar para o rosto de VJ.

 

— David! —chamou a mãe.

 

O rapazinho apareceu à porta, trazendo na mão um dos ursinhos de peluche que já havia posto de parte há algum tempo. Tratava-se de uma criança de cinco anos, franzina, de cabelo escuro e encaracolado.

 

— Anda cá ver o teu novo irmãozinho. Obediente, David abeirou-se do grupo.

 

Janice baixou-se e mostrou o recém-nascido à criança. David olhou-o e torceu o nariz.

 

— Cheira mal.

 

Victor soltou uma gargalhada e a mãe beijou-o, dizendo que assim que V f fosse um pouco mais velho passaria a cheirar tão bem como ele.

 

Marsha voltou a pegar no bebé e encaminhou-se para casa. Janice soltou um suspiro. Aquele era um dia particularmente feliz. Adorava recém-nascidos. Sentiu que David lhe pegava na mão. Baixou os olhos para o rapazinho. Este tinha a cabeça levantada na sua direcção

 

— Quem me dera que o bebé não tivesse vindo — disse ele.

 

Então — retorquiu Janice com ternura, apertando David contra si. — Não é bonito agir assim. Ele não passa de um bebé pequenino e tu já és um rapazinho crescido.

 

De mãos dadas, entraram em casa no preciso momento em que Marsha e Victor penetravam no quarto do bebé, o qual fora decorado há pouco tempo e estava situado no cimo das escadas. A ama levou David para a cozinha, onde já começara a preparar o jantar. O garoto sentou-se numa das cadeiras que ali estavam, colocando o ursinho na cadeira em frente. Janice estava a fazer qualquer coisa no lava-louça.

 

— Gostas mais de mim ou do bebé?

 

O mais depressa que podia, a ama pousou as vegetais que estava a arranjar e pegou no rapazinho ao colo. Encostou a sua testa contra a dele e disse:

 

— Gosto mais de ti do que de tudo o mais que existe no mundo. —Depois disto, abraçou-o com força. David retribuiu o abraço.

 

Nenhum deles podia saber que só lhes restava alguns, poucos, anos de vida.

 

19 DE MARÇO DE 1989

DOMINGO, AO ENTARDECER

Dos áceres nus que rodeavam o caminho projectavam-se sombras compridas e rendadas, que se reflectiam no pátio empedrado que separava a casa, de cor branca, tipo colonial, do celeiro. Ao entardecer levantara-se um vento forte, e este fazia as sombras moverem-se, desenhando padrões semelhantes a teias de aranha gigantescas. Apesar de, e a nível oficial, ser quase Primavera, o Inverno continuava a fazer-se sentir em North Andover, Massachusetts.

 

Junto ao lava-louça existente naquela enorme cozinha rústica, Marsha olhava para o jardim e para a luz do Sol, que esmorecia. Um qualquer movimento no carreiro que levava a casa chamou-lhe a atenção e ela voltou-se mesmo a tempo de ver VJ pedalando na sua bicicleta.

 

Por um instante, sentiu-se sufocar. Desde a morte de David, há quase cinco anos, que nunca mais considerara a família em segurança. Nunca mais seria capaz de esquecer o dia terrível em que o médico lhe dissera que a icterícia de que o filho sofria se devia a um cancro. O seu rosto, amarelo e mirrado devido à doença, estava gravado no seu coração. Sentia ainda o corpinho do garoto agarrado ao seu, pouco antes de ter morrido. Tinha a certeza de que ele estava a tentar dizer-lhe qualquer coisa, mas tudo o que conseguira ouvir fora a sua respiração entrecortada, que indicava os esforços que o filho fazia para se agarrar à vida.

 

Desde essa data que as coisas nunca mais voltaram a ser as mesmas. Inclusivamente, e cerca de um ano depois, voltaram a piorar. A enorme preocupação que Marsha sentia por VJ não se ficava a dever apenas à perda de David, mas também às terríveis circunstâncias que haviam rodeado a morte de Janice, um ano depois de o filho ter falecido. Ambos haviam contraído uma forma bastante rara de cancro de fígado, e, muito embora lhe tivessem assegurado que os dois cancros não eram de modo algum contagiosos, Marsha não conseguia deixar de pensar que não costuma haver duas sem três.

 

Devido à crueza de que se revestira, a morte de Janice fora ainda mais memorável.

 

Ocorrera no Outono, logo a seguir ao aniversário de VJ. As folhas estavam a cair das árvores e no ar pairava um vento frio. Mesmo antes de ter adoecido, Janice comportava-se de uma forma estranha há já algum tempo, só comendo aquilo que ela própria preparava, e que vinha directamente de recipientes fechados. Tornara-se particularmente religiosa, quase que atingindo as raias do fanatismo. Marsha e Victor não teriam tido paciência para a aturar se, durante os anos que para eles trabalhava, não se tivesse transformado num dos membros da família.

 

Fora fantástica durante a fase final da doença de David. Mas, logo a seguir à morte deste, passara a levar a Bíblia para todo o lado, apertando-a contra o peito como se de um poderoso escudo contra males invisíveis se tratasse. Só a pousava para desempenhar as suas tarefas, e, mesmo assim, a contragosto. Para cúmulo, tomara-se rabugenta e reservada, e, à noite, fechava-se à chave no quarto.

 

No entanto, o pior de tudo era a atitude por ela demonstrada em relação a VJ. Sem qualquer motivo aparente, recusava-se a ter qualquer coisa a ver com o garoto, que, na altura, tinha apenas cinco anos. Muito embora se tratasse de uma criança excepcionalmente inteligente e independente, havia momentos em que a sua ajuda seria bem-vinda, mas Janice recusava cooperar. Marsha conversara com ela por mais de uma vez, mas nada dera resultado. A ama não queria nada com o rapazinho. Quando a pressionavam, começava a falar do diabo que existia entre eles e outros disparates de teor religioso.

 

Quando ela acabou por adoecer, Marsha já não podia mais. Victor fora o primeiro a reparar que os olhos da empregada se tinham tornado muito amarelos, e comunicara-o à mulher. Horrorizada, esta apercebeu-se de que os olhos de Janice tinham a mesma tonalidade adoentada que os de David costumavam apresentar. De forma a conseguir um diagnóstico, Victor levou a antiga empregada para Boston. Apesar dos olhos amarelos, o diagnóstico traduziu-se Por um enorme choque: ela sofria do mesmo tipo de tumor maligno que levara à morte de David.

 

Dado que no espaço de um ano se haviam registado dois casos semelhantes de cancro de fígado dentro do mesmo lar, o facto pedia investigações aturadas com vista a detectar uma possível epidemia. No entanto, os resultados foram negativos. Não havia qualquer factor ambiental que pudesse ter causado a doença. Os computadores concluíram que os dois casos não passavam de uma rara coincidência.

 

Pelo menos, o facto de Janice sofrer de cancro de fígado era uma explicação plausível para o seu estranho comportamento. Os médicos achavam que ela já vinha há muito a sofrer de metástase cerebral. Uma vez descoberta a doença, o seu curso descendente foi rápido e impiedoso. Muito embora estivesse a ser medicada, perdeu peso rapidamente, e, ao fim de duas semanas, não era mais do que pele e osso. Contudo, o dia que antecedeu o seu internamento foi sem dúvida o mais traumático.

 

Victor acabara de chegar do trabalho e encontrava-se na casa de banho, situada à entrada. Marsha estava na cozinha a preparar o jantar. Foi então que por toda a casa ecoou um grito de pôr os cabelos em pé.

 

Victor saiu da casa de banho a correr.

 

— Meu Deus, que foi isto? — gritou.

 

— Veio do quarto da Janice — retorquiu Marsha, que ficara muito pálida.

 

Ambos trocaram um olhar que revelava saberem o que se passava. Precipitaram-se para fora da garagem e subiram as estreitas escadas que levavam ao apartamento de Janice, situado numa ala separada.

 

Antes de terem tido tempo de chegar ao quarto, o silêncio foi cortado por um segundo grito. A sua força parecia querer quebrar as janelas.

 

Ele foi o primeiro a chegar ao quarto, logo seguido pela mulher.

 

Janice estava de pé no meio da cama, agarrada à Bíblia. Era uma visão lamentável. O cabelo, que se tornara escasso, estava praticamente todo em pé, facto que lhe conferia um ar demoníaco. O rosto estava escaveirado e a pele amarela muito esticada por cima dos ossos, sendo estes demasiado visíveis. Os olhos eram como duas luzes de néon amarelas e não se moviam.

 

Por alguns instantes, Marsha ficou paralisada, tal como se a ama fosse uma górgone. Foi só então que seguiu o olhar da mulher. VJ estava à entrada da porta dos fundos. Nem sequer pestanejava, retribuindo o olhar fixo de Janice.

 

Não demorou muito para que a mãe compreendesse o que se passara: na sua inocência, VJ subira as escadas de serviço do quarto de Janice e acabara por a assustar. A doença mental de que sofria, e que fora provocada pela doença física, fizera-a soltar aqueles gritos.

 

— Ele é o demónio — afirmou a ama por entre os dentes cerrados. — É um assassino! Tirem-no do pé de mim!

 

— Acalma-te, Janice — gritou Marsha, correndo para junto do filho. Pegou no rapazinho, então com seis anos, apertou-o de encontro ao peito, desceu as escadas a correr, entrou na sala de estar e fechou a porta atrás de si. Apertava a cabeça do garoto de encontro

 

ao peito, ao mesmo tempo que pensava em como fora estúpida por ter deixado aquela mulher louca ficar lá em casa.

 

Por fim, libertou VJ daquele enorme abraço. O filho afastou-se e levantou a cabeça, fitando-a com aqueles olhos de cristal.

 

— A Janice não sabe o que diz — explicou ela. Esperava que aquele momento horroroso não ficasse na memória do rapazinho durante muito tempo.

 

— Eu sei — respondeu VJ com uma maturidade incrivelmente precoce. — Ela está muito doente. Não queria dizer nada daquilo.

 

Desde esse dia, Marsha fora incapaz de descansar e de gozar a vida como então o tinha feito. Tinha medo que, se o fizesse, talvez Deus a castigasse, e estava convencida que, se acontecesse alguma coisa ao filho, não seria capaz de suportar a perda.

 

No papel de psiquiatra especializada nos problemas da infância, sabia que não podia esperar que o filho se desenvolvesse de uma determinada maneira, mas era com frequência que dava consigo a desejar que este fosse uma criança mais meiga. Quase que desde o nascimento que ele se revelara um garoto excepcionalmente independente. Por vezes, deixava que o abraçassem, mas eram mais as vezes em que ela desejava que o filho lhe subisse para o colo e se aninhasse do mesmo modo que David costumava fazer.

 

Agora, ao vê-lo descer da bicicleta, perguntou-se se VJ era mesmo tão absorto como parecia ser. Acenou para lhe chamar a atenção, mas ele nem sequer levantou a cabeça, ocupado como estava a desprender a mochila e a atirá-la para cima do empedrado. Depois, abriu a porta do celeiro e desapareceu por um instante, pois fora guardar a bicicleta. Quando voltou a aparecer, pegou na mochila e começou a andar em direcção à casa. Marsha voltou a acenar, mas, muito embora o rapaz se estivesse a dirigir ao seu encontro, não lhe deu qualquer resposta. Tinha o queixo pressionado contra o peito, numa tentativa de se proteger contra o vento que costumava soprar Pelo pátio.

 

Ela começou a bater à janela, mas acabou por deixar cair a mão. Nos últimos tempos, vira-se a braços com o terrível problema de achar que havia qualquer coisa de errado com o rapaz. Deus era testemunha de que não seria capaz de o amar mais, nem mesmo se ele tivesse saído de dentro dela, mas por vezes receava que o garoto fosse demasiado frio e desprovido de sentimentos. Geneticamente, Catava-se do seu filho natural, mas VJ não possuía os modos calorosos e descuidados que haviam caracterizado a sua própria meninice. Por vezes, antes de adormecer, não conseguia deixar de pensar que o facto de ter sido concebido num tubo de ensaio lhe havia gelado as emoções. Sabia tratar-se de uma ideia ridícula, mas esta não a largava.

 

Libertou-se dos pensamentos que a atormentavam e disse ao marido, que lia qualquer coisa em frente ao lume que crepitava na sala de estar, próximo da cozinha, que o filho já estava em casa. Victor resmungou qualquer coisa, mas não levantou os olhos.

 

O som da porta dos fundos a bater veio anunciar a entrada de V J. Marsha podia ouvi-lo tirar o casaco e as botas na sala que fora concebida para esse fim. Não faltou muito para que aparecesse à porta da cozinha. Era um rapaz muito bonito, alto e demasiado desenvolvido para alguém com dez anos. Ao contrário do que acontecera com o cabelo da mãe, o seu não escurecera e mantinha-se de um louro dourado. O rosto conservava um aspecto angelical. Mas, tal como no dia em que nascera, a característica que mais chamava a atenção era o azul gelado dos olhos, pois, por muito angélico que parecesse, aqueles olhos profundos revelavam uma inteligência muito superior à que a idade faria supor.

 

— Muito bem, rapazinho — ralhou Marsha na brincadeira. — Penso que sabes que não te deixam andar de bicicleta depois do escurecer.

 

— Mas ainda não está escuro — disse ele na defensiva, utilizando uma voz clara e nítida de soprano. Foi então que compreendeu que a mãe estava a brincar. —Estive na casa do Richie — explicou. Pousou a mochila e aproximou-se do lava-louça.

 

— Isso é bom — comentou a mãe, visivelmente satisfeita. — Por que razão não telefonaste? Podias ter ficado o tempo que te apetecesse. Não me importava nada de te ir buscar.

 

— Mas eu já queria vir para casa — respondeu ele, pegando numa das cenouras que Marsha acabara de lavar. Deu-lhe uma mordidela ruidosa.

 

A mãe colocou os braços em torno dele, e, consciente da força que emanava do seu corpo jovem, deu-lhe um apertão.

 

— Como não tens aulas esta semana, pensei que talvez não te importasses de ficar com o Richie e de te divertires um bocado.

 

— Não — retorquiu ele, ao mesmo tempo que se tentava libertar do abraço materno.

 

— Estás outra vez a arreliar a tua mãe? — perguntou Victor na brincadeira. Estava à entrada da porta da sala com uma revista científica na mão e os óculos precariamente equilibrados na ponta do nariz.

 

Ignorando o comentário do marido, Marsha prosseguiu:

 

— E para esta semana? Fizeste alguns planos com o Richie?

 

— Nada. Estou a pensar passar toda a semana com o pai, no laboratório. Está bem, papá? — Ao dizer isto, os seus olhos estavam cravados nos de Victor.

 

— Por mim está tudo bem — respondeu ele, encolhendo os ombros.

 

— Mas por que raio é que queres ir para o laboratório? — perguntou a mãe. Tratava-se de uma pergunta retórica. Não esperava qualquer resposta. Desde pequenino que VJ ia com o pai para o laboratório. Ao princípio para aproveitar as vantagens que lhe eram oferecidas pela creche da Chimera, Inc., e, mais tarde, para brincar no próprio laboratório. Este estado de coisas tornara-se uma rotina, especialmente depois da morte de Janice Fay.

 

— Por que razão não convidas alguns amigos da escola, e, junto com o Richie, fazem alguma coisa agradável?

 

— Deixa-o em paz. — Tratava-se de Victor, dando uma ajuda ao filho. — Se ele quer ir comigo, então está tudo bem.

 

— Está bem, está bem — concordou Marsha, sabendo que estava em desvantagem. — O jantar fica pronto às oito — acrescentou, dando uma palmada ao garoto no fundilho das calças.

 

VJ pegou na mochila que colocara numa cadeira perto do telefone e dirigiu-se para as escadas do fundo. Os velhos degraus de madeira começaram a ranger devido ao seu peso. O rapaz dirigiu-se directamente para o gabinete do segundo andar. Tratava-se de uma sala confortável, apainelada a mogno. Sentou-se junto ao computador do pai e pôs a máquina em funcionamento. Ficou à escuta durante alguns instantes, certificando-se de que os pais ainda estavam a conversar na cozinha, e só depois se envolveu na complicada operação de achar a ficha que dava pelo nome de STATUS. O écran estremeceu e em seguida encheu-se de dados. Começou a abrir as bolsas da mochila que estava junto a si, ao mesmo tempo que fazia alguns cálculos bastante rápidos. Logo em seguida, deu entrada a uma série de números no computador. Todo o processo demorou apenas alguns minutos.

 

Depois de ter completado a entrada, VJ pôs de lado a operação STATUS, fechou a mochila e começou a brincar com um dos jogos de computador, o Pac-Man. À medida que a bola amarela se movia através do labirinto, devorando a sua presa, um sorriso espalhou-se Pelo rosto de VJ.

 

Marsha sacudiu a água das mãos e depois limpou-as a uma toalha que estava pendurada na pega do frigorífico. Não conseguia deixar de se preocupar com o filho. Não se tratava de uma criança difícil. Na escola, os professores não se queixavam a seu respeito, e, no entanto, ela tinha cada vez mais a certeza de que havia ali qualquer coisa de errado. Pegou em Kissa, a persa azul que já há algum tempo se entretinha a andar em torno das suas pernas, e entrou na sala onde Victor descansava deitado no sofá, ao mesmo tempo que, e tal como era costume, ia dando uma vista de olhos por algumas revistas.

 

— Posso falar contigo por um bocadinho — inquiriu ela. Desconfiado, Victor baixou a revista, olhando para a mulher por cima dos óculos. Aos quarenta e três anos, era um homem esbelto, mas forte, com o cabelo escuro e ondulado e feições delicadas. Tal como a maioria dos cientistas, andava sempre despenteado. Nos seus tempos académicos, fora um razoável jogador de squash, e, três vezes por semana, continuava a praticar este desporto. Graças a Victor, a Chimera podia dar-se ao luxo de ter os seus próprios courts de squash.

 

— Estou preocupada com o VJ — disse ela, sentando-se na cadeira que estava ao lado do sofá, ainda a fazer festas a Kissa, que, de momento, se contentava em estar ao seu colo.

 

— Sim? — perguntou o marido, algo surpreendido. — Passa-se alguma coisa?

 

— Não propriamente — acabou Marsha por admitir. — Trata-se antes de um sem-número de coisinhas miúdas. Por exemplo, preocupo-me com o facto de ele ter tão poucos amigos. Há um bocadinho, quando ele me disse que tinha estado com esse tal Richie, fiquei felicíssima, tal como se de um grande feito se tratasse. Contudo, acabou por me dizer que, durante as férias, não quer passar nenhum tempo com ele. Uma criança da idade do nosso filho tem de estar com outras crianças. É um factor importante para o seu desenvolvimento normal.

 

Victor encarou-a de forma pouco amistosa. Sabia que o marido detestava este tipo de discussões psicológicas, muito embora a psiquiatria fosse o seu campo de acção. Não tinha paciência para estas coisas. Para além disso, qualquer conversa relacionada com os problemas que se prendiam ao desenvolvimento do filho parecia enchê-lo de angústias que ele parecia não estar disposto a enfrentar. Soltou um suspiro, mas manteve-se silencioso.

 

Quando se apercebeu que Victor estava disposto a nada dizer, Marsha insistiu:

 

— Não te parece? — Fez uma festa à gata, e esta pareceu aceitar a carícia como se de um fardo se tratasse.

 

Ele abanou a cabeça.

 

— Não. Acho que o VJ é uma das crianças mais bem adaptadas que conheço. Que é o jantar?

 

— Victor! — exclamou Marsha, irritada. — Isto é importante.

 

— Está bem, está bem! — disse, fechando a revista.

 

— bom, ele dá-se bem com os adultos — continuou a mãe —, mas acho que passa pouco tempo com as crianças da sua idade.

 

— Está com elas na escola—• retorquiu o pai.

 

— Eu sei — concordou Marsha. — Mas isso não quer dizer nada.

 

— Para te falar com franqueza — disse ele, sabendo que estava a ser deliberadamente cruel, mas, dado que se preocupava com o filho, se bem que de um modo diferente daquele que caracterizava a mulher — não suportava tocar no assunto —, acho que estás a ser neurótica. O VJ é um miúdo incrível. Não há nada de estranho nele. Acho que ainda estás a reagir à morte do David. — Estremeceu por dentro quando disse isto, mas não tinha outra hipótese: a melhor defesa era o ataque.

 

O comentário atingiu Marsha como se de uma bofetada se tratasse. De imediato se sentiu emocionada. A tentar reter as lágrimas, esforçou-se por continuar.

 

— Mas, para além da sua notória falta de amigos, há mais coisas. Dá a sensação de que nunca precisa de nada nem de ninguém. Quando comprámos a Kissa, tivemos o cuidado de lhe dizer que era para ele. Mas o nosso filho nunca lhe prestou atenção. E já que mencionaste a morte do David, achas normal que o nosso filho nunca lhe tenha tocado no nome? Quando lhe contámos o que se passara, agiu como se estivéscemos a falar de um estranho.

 

— Marsha, ele só tinha cinco anos. Acho que tu é que estás perturbada. Um luto de cinco anos é muito longo. Acho melhor fazeres uma visita ao psiquiatra.

 

Marsha mordeu o lábio. Victor costumava ser bastante meigo, mas, sempre que ela queria falar a respeito do filho, era repelida.

 

— Bem, só te quis dizer o que penso — declarou, levantando-se. Estava na hora de voltar para a cozinha e acabar o jantar. Quando, vindos do cimo da escada, lhe chegaram os sons familiares do Pac-Man, sentiu-se algo confortada.

 

Victor levantou-se, espreguiçou-se e seguiu-a para a cozinha.

 

DOMINGO, À NOITINHA

O Dr. William Hobbs olhava para o filho por cima do tabuleiro de xadrez, e, tal como acontecia todos os dias, maravilhava-se com o que via, quando os profundos olhos azuis do rapazinho começaram a rolar até se afundarem nas órbitas e a criança acabou por cair de costas no chão. William não viu o filho cair, mas ouviu o baque provocado pela queda.

 

— Sheila! —gritou, pondo-se de pé num salto e precipitando-se para o outro lado da mesa. Horrorizado, viu que as pernas e os braços de Maurice se agitavam desordenada e selvaticamente. Estava no meio de um ataque de grandes dimensões.

 

Dado que era doutorado em Letras, e não em Medicina, William não tinha a certeza daquilo que deveria fazer. Lembrava-se vagamente de algo a respeito de proteger a língua da vítima colocando qualquer coisa entre os seus dentes, mas não tinha nada de apropriado à mão.

 

Ajoelhou-se ao lado do garoto, que estava apenas a alguns dias de completar três anos, e voltou a gritar pela mulher. O corpo de Maurice contorcia-se com uma força surpreendente e William sentia dificuldade em evitar que o filho se magoasse.

 

Sheila ficou gelada quando viu o marido a tentar segurar aquela criança que se debatia com fúria. Por essa altura, já Maurice tinha mordido a língua, e, dado que a cabeça se movia para cima e para baixo, um jorro de sangue espumoso manchou o tapete.

 

— Chama uma ambulância — gritou William.

 

Sheila conseguiu livrar-se do sentimento de paralisia que a dominava e correu para o telefone da cozinha. O filho já não se sentia bem quando ela o fora buscar à Chimera Day Care. Queixara-se de uma dor de cabeça do tipo enxaqueca, das que martelam. É claro que a maior parte das crianças de três anos não descreveria assim uma dor de cabeça, mas Maurice não era como a maior parte das crianças da sua idade. Era uma criança verdadeiramente prodigiosa, um génioAprendera a falar aos oito meses, começara a ler aos dezoito, e agora vencia sempre o pai no jogo de xadrez que levavam a cabo todas as noites.

 

— Precisamos de uma ambulância! — gritou ela mal ouviu uma voz do outro lado do fio. Deu-lhe a morada e pediu à telefonista para não se demorar. Depois voltou a correr para a sala.

 

As convulsões haviam parado. Maurice estava agora muito quieto, deitado no sofá onde o pai o colocara. Vomitara o jantar, bem assim como uma grande quantidade de sangue. Toda aquela mistura se colara ao seu cabelo louro e aos cantos da boca. Perdera igualmente o controlo da bexiga e dos intestinos.

 

— Que devo fazer? — perguntou William, frustrado. Pelo menos, a criança respirava, e a sua cor, que se havia transformado num azul-acizentado, estava a voltar ao normal.

 

— Que aconteceu? — quis saber a mulher.

 

— Nada — respondeu ele. — Como sempre, o Maurice estava a ganhar. Foi então que os seus olhos começaram a rolar e ele caiu. Receio bem que tenha batido com a cabeça no chão com bastante força.

 

— Oh, meu Deus! — exclamou Sheila, limpando a boca do filho com a ponta do avental. — Talvez não devesses ter insistido com ele para jogar xadrez. Doía-lhe a cabeça.

 

— Mas ele queria — retorquiu William na defensiva. Contudo, a verdade não era bem assim. Maurice mostrara-se relutante em relação à ideia. No entanto, o pai não conseguia resistir à oportunidade de admirar a criança a servir-se do seu cérebro fenomenal. Maurice era o orgulho e a alegria do pai.

 

Ele e Sheila já estavam casados há oito anos quando acabaram por admitir que eram incapazes de conceber uma criança. Dado que a Chimera tinha o seu próprio centro de infertilidade, Fertility, Inc., e dado que William era dos empregados da firma, ele e a mulher foram consultados sem nada terem de pagar. As coisas não tinham sido fáceis. Tiveram de enfrentar o facto de que eram ambos estéreis, através de doações e de uma mãe de aluguer, acabaram por receber Maurice, o seu bebé miraculoso, com um coeficiente de inteligência muito superior à média.

 

— Vou buscar uma toalha para o limpar — disse Seila, precipitando-se para a cozinha. No entanto, o marido segurou-lhe um braço.

 

— Talvez não lhe devêssemos tocar.

 

Impotente, o casal sentou-se a observar a criança, até que acabou por ouvir a sirene da ambulância que vinha a descer a rua. foi a correr abrir a porta aos médicos.

 

Alguns minutos depois, William deu consigo a balouçar-se no assento traseiro da ambulância, enquanto Sheila, ao volante do automóvel que pertencia à família, seguia a viatura.

 

Quando chegaram ao Lowell General Hospital, o casal mal podia esperar para saber os resultados dos testes a que Maurice tivera de se submeter. No final destes, o estado da criança foi considerado suficientemente estável para poder ser transferida. William queria que o filho fosse transferido para o Children’s Hospital, em Boston, a cerca de meia hora de automóvel. Algo lhe dizia que o filho estava mortalmente doente. Talvez que se tivessem mostrado demasiado orgulhosos da inteligência fenomenal do garoto. Talvez Deus os estivesse a castigar.

 

— VJ! — gritou Victor do cimo das escadas. — Que tal irmos nadar? — Conseguiu ouvir a sua própria voz ecoar através das paredes daquela casa enorme. O possuidor de todas aquelas terras construíra-a durante o século XVIII. Victor comprara-a e remodelara-a pouco depois da morte de David. Depois de a empresa se ter tornado pública, os negócios da Chimera haviam começado a progredir e Victor sentiu que seria melhor para Marsha se esta não tivesse de enfrentar os quartos onde David crescera. Ela aceitara a morte do filho ainda pior do que ele.

 

— Queres ir dar um mergulho? — voltou ele a gritar. Era em alturas como esta que desejava ter mandado instalar um sistema de telefones internos.

 

— Não, obrigado. — Desta vez, era a resposta do rapazinho que ecoava pela escada.

 

Victor deixou-se ficar onde estava durante breves instantes, uma das mãos pousadas no corrimão, um dos pés no primeiro degrau. A conversa que travara com Marsha voltara a acordar todos os medos que começara por sentir a respeito do filho. O inicial desenvolvimento precoce do garoto, a inteligência que, aos três anos, fazia dele um mestre de xadrez e a súbita baixa de inteligência que ocorrera antes dos quatro, tudo isto fazia que o filho não apresentasse um desenvolvimento normal. Victor sentira-se tão culpado desde o momento em que o filho nascera que quase se sentira aliviado com o desaparecimento dos extraordinários poderes do rapazinho. Contudo, agora perguntava-se se uma criança normal não daria pulos de contentamento ao ver-se confrontada com a possibilidade de dar um mergulho na sua nova piscina. Victor decidira mandar construí-la para se poder manter em forma. Tinham-na edificado nas traseiras da casa e o seu aspecto era semelhante ao de uma estufa. Ficara pronta no ultimo mês.

 

Decidido a não aceitar uma resposta negativa, e sem se dar ao trabalhr de calçar os sapatos, desceu os degraus a dois e dois. Sem fazer barulho, esgueirou-se ao longo do corredor até chegar ao quarto do filho, que ficava mesmo na parte da frente da casa e dava para o caminho. Como sempre, o quarto estava limpo e arrumado. Numa das paredes alinhavam-se os volumes da Enciclopedia Britannica, ao passo que na parede oposta se via a tabela química dos elementos. VJ estava deitado na cama de barriga para baixo, completamente absorvido na leitura de um livro bastante grosso.

 

À medida que se aproximava da cama, Victor fazia todos os possíveis para ver aquilo que V J estava a ler. Espreitou por cima do livro e tudo o que conseguiu detectar foi uma massa compacta de equações, algo muito diferente daquilo com que contava.

 

— Apanhei-te! — exclamou, agarrando uma das pernas do rapaz. Ao sentir a mão do pai, o rapaz levantou-se de um salto, pronto

 

para se defender.

 

— Caramba! Estavas concentrado, não? — perguntou, soltando uma gargalhada.

 

Os olhos azul-turquesa do garoto cravaram-se no pai.

 

— Nunca mais voltes a fazer isso! — gritou.

 

Durante breves segundos. Victor voltou a ver-se envolvido naquela onda familiar de medo por aquilo que criara. Foi então que o filho soltou um suspiro e se deixou cair na cama.

 

— Que raio andas tu a ler? — quis saber o pai.

 

O garoto fechou o livro como se este fosse uma revista pornográfica.

 

— Nada de especial.

 

— É bastante pesado! — comentou Victor, tentando brincar.

 

— Por acaso não é grande coisa — retorquiu o filho. — Tem muitos erros.

 

Mais uma vez, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado. Ultimamente, voltara a interrogar-se sobre se a inteligência precoce do filho não estaria a voltar. Na tentativa de afastar as suas preocupações, disse:

 

— Ouve, V J, eu e tu vamos dar um mergulho. Foi até junto do armário do filho, abriu-o, tirou de lá um par de calções e atirou-os na direcção do garoto. — Vá lá, vamos fazer uma corrida.

 

Saiu do quarto de VJ e dirigiu-se para o seu. Vestiu ’os calções de banho e chamou o rapaz. VJ apareceu e começou a andar pelo corredor, movendo-se na direcção do pai. com orgulho, Victor reparou que o filho era bastante bem constituído para um rapazinho de dez anos. Pela primeira vez, achou que, se VJ assim o quisesse, poderia vir a ser um atleta.

 

A piscina possuía o cheiro típico e húmido do cloro. O vidro que constituía as paredes e o tecto que a cobria reflectiam a sua imagem. A paisagem invernosa do exterior não era visível. Quando Marsha apareceu à porta da sala, o marido atirou com a toalha para cima de uma das cadeiras de alumínio que ali estavam.

 

— Queres vir nadar connosco? — perguntou ele. A mulher abanou a cabeça.

 

— Divirtam-se vocês, rapazes. Está frio de mais para mim.

 

— Vamos fazer uma corrida — explicou o marido. — Que tal ficares a fazer de juiz?

 

— Papá — queixou-se VJ —, não quero fazer corrida nenhuma.

 

— Claro que queres — retorquiu ele. — Duas voltas. Quem perder vai deitar fora o lixo.

 

Marsha aproximou-se, pegou na toalha do filho e olhou-o, compreensiva.

 

— Queres a pista exterior ou a interior? — perguntou o pai, à espera de lhe prender a atenção.

 

— Tanto faz — respondeu o garoto, medindo com os olhos o comprimento da piscina. O aparelho que mantinha a água em condições fazia que a superfície da piscina se agitasse suavemente.

 

— Tu dás o sinal de partida — disse Victor a Marsha.

 

— Aos vossos lugares, preparem-se... — começou ela em voz pausada, enquanto observava o marido e o filho oscilar à beira da piscina. — Agora.

 

Depois de ter recuado para evitar os salpicos, Marsha sentou-se numa das cadeiras e ficou a observar. Victor não era um bom nadador, mas mesmo assim ficou surpreendida por ver que VJ lhe tomava a dianteira durante a primeira parte da corrida, e mesmo depois de terem dado a volta. Foi então que, na segunda volta, o filho pareceu retrair-se, e Victor acabou por ganhar com cerca de meio comprimento.

 

— Foi uma boa tentativa — disse ele arquejando, mas não sem um ar de triunfo. — Sê bem-vindo ao caixote do lixo.

 

Perplexa com aquilo que achava ter visto, Marsha observou o filho com curiosidade à medida que este se içava para fora de água. Quando os seus olhares se encontraram, VJ piscou-lhe o olho, confundindo-a ainda mais.

 

O rapaz pegou na toalha e começou a esfregar-se com força. Gostaria bastante de ser o tipo de filho que a mãe ansiava ter, mais ou menos como David o fora. No entanto, isto não estava nas suas mãos. Às vezes tentava fingir, mas sabia que as coisas nunca resultavam plenamente. Apesar de tudo, se o tipo de momentos como aquele que se acabara de passar na piscina dava aos pais a sensação de felicidade familiar, quem era ele para lhos negar?

 

— Mamã, dói cada vez mais — disse Mark Murray a Colette. estava no seu quarto, que ficava no terceiro andar da casa que os Murray ocupavam na cidade, em Beacon Hill. — Faça eu o que fizer, sinto sempre uma certa pressão entre os olhos, e também no traçado sinusoidal. — A precisão dos termos constratava vivamente com as pequenas mãos da criança, com as quais ela apertava a cabeça.

 

— Está pior agora do que antes do jantar? — perguntou a mãe, ao mesmo tempo que acariciava o cabelo louro e encaracolado do filho. Há já muito tempo que deixara de se surpreender com a riqueza vocabular do seu rebento. O rapaz estava deitado numa cama própria para um adulto, muito embora tivesse apenas dois anos e meio. Quando tinha treze meses, exigira que lhe levassem o berço para a cave.

 

— Está muito pior — acabou Mark por responder.

 

— Vamos lá tirar-te a temperatura mais uma vez — disse Colette, enfiando-lhe o termómetro na boca. Apesar de continuar a dizer para si mesma que aquilo não era mais do que o princípio de uma constipação ou de uma gripe, o certo é que estava cada vez mais alarmada. Tudo começara cerca de uma hora depois de Horace, o marido, ter trazido o garoto da creche da Chimera. Mark dissera-lhe que não tinha fome, o que, para ele, não era nada normal.

 

O sintoma seguinte fora o suor. Começara quando estavam prestes a sentar-se para jantar. Muito embora tivesse dito aos pais que não se sentia quente, suava por todos os poros. Vomitara passados alguns minutos. Fora então que a mãe o levara para a cama.

 

Enquanto contabilista, um dos que haviam sido demasiado enjoados até mesmo para estudar biologia, Horace ficou feliz por poder deixar o doente aos cuidados da mulher, muito embora esta não tivesse qualquer experiência no assunto. Era advogado e o seu trabalho obrigara-a a colocar Mark na creche quando este tinha apenas um ano de idade. Adorava o seu brilhante filho único, mas tudo o que passara para o ter fazia que o facto se tornasse inesquecível.

 

Ao fim de três anos de casamento, tanto ela como Horace decidiram que estava na hora de constituir família. No entanto, ao fim de um ano de tentativas fracassadas, decidiram fazer os testes de fertilidade. Foi então que foram confrontados com a dura realidade: era estéril. Mark era resultado do último recurso a que deita mão: a fertilização in vitro e os serviços de uma mãe de aluguer.

 

Tudo aquilo fora um pesadelo, especialmente com toda a controvérsia gerada pelo caso do bebé M.

 

Colette tirou o termómetro da boca do filho, e, depois de lhe dar uma volta, observou a coluna de mercúrio. Tudo normal. Soltou um suspiro.

 

— Estás com fome ou com sede? — perguntou. Mark abanou a cabeça.

 

— Estou a começar a não ver muito bem — disse.

 

— Que queres dizer com isso? —A mãe estava a começar a ficar alarmada. Tapou-lhe os olhos, um de cada vez. — Consegues ver dos dois olhos?

 

— Sim — respondeu Mark. — As coisas estão é a ficar enevoadas. Desfocadas.

 

— Está bem, fica a descansar. Vou falar com o teu pai. Deixando a criança sozinha, desceu as escadas e encontrou o marido escondido no escritório, entretido a ver um desafio de futebol na televisão pequenina.

 

Quando Horace viu a mulher à entrada da porta, desligou o aparelho, não sem alguma culpa.

 

— São os Celtics — anunciou, à laia de desculpa. Ela tentou esconder a irritação que sentia.

 

— O nosso filho está muito pior — disse, com modos bruscos. — Estou preocupada. Diz que não consegue ver bem. Acho que devemos chamar o médico.

 

— Tens a certeza? — inquiriu Horace. — É domingo à noite.

 

— Não posso fazer mais nada! — exclamou Colette com maus modos.

 

Foi então que, vindo do andar de cima, partiu um grito de pôr os cabelos em pé.

 

Para seu horror, Mark contorcia-se na cama, agarrando a cabeça como se estivesse a debater-se numa incrível agonia, e gritava o mais que podia. Horace agarrou na criança pelos ombros e tentou segurá-la, enquanto a mulher se dirigia para o telefone.

 

Ele estava surpreendido com a força do filho. Era como se não conseguisse impedir que a criança se elevasse da cama com violência.

 

Então, tão de repente como haviam começado, os gritos pararam. Durante alguns instantes, Mark deixou-se ficar quieto, com os olhos cerrados.

 

— Mark — murmurou o pai.

 

Os braços da criança descontraíram-se. Abriu os olhos azuis e fitou o pai. No entanto, não deu qualquer sinal de o ter reconhecido, e, quando abriu a boca, foi apenas para murmurar palavras sem sentido.

 

Sentada ao tocador, a escovar o longo cabelo, Marsha ia observando o marido através do espelho. Este estava junto ao lavatório, escovando os dentes com movimentos rápidos e fortes. VJ fora deitar-se há já bastante tempo. Marsha fora vê-lo há cerca de quinze minutos, quando subira para o quarto. Ao observar o seu rosto angélico, voltara a pensar no comportamento que este tivera na piscina.

 

— Victor! — chamou ela de repente.

 

com a pasta dos dentes a formar-lhe bolhas no canto da boca, como se de um cão raivoso de tratasse, Victor deu meia volta. Ela apanhara-o de surpresa.

 

— Reparaste que foi o VJ quem te deixou ganhar a corrida? Victor cuspiu no lavatório com bastante ruído.

 

— Vamos lá com calma. Pode ter sido por pouco, mas não há qualquer dúvida de que fui eu quem ganhou.

 

— O nosso filho foi à frente durante a maior parte do tempo — teimou ela. — Abrandou de propósito só para te deixar passar.

 

— Isso é um absurdo! — exclamou o marido com indignação.

 

— Não, não é. Ele faz coisas que não fazem sentido para um rapaz de dez anos. É mais ou menos como quando tinha dois anos e meio e começou a jogar xadrez. Tu adoravas o facto, mas eu estava preocupada. Para falar com franqueza, andava mesmo assustada. Fiquei aliviada quando o seu nível intelectual baixou e acabou por estabilizar nos limites normais. A única coisa que quero é ter um filho normal e feliz. — Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. — Tal como o David — acrescentou, desviando o rosto.

 

Victor enxugou o rosto o mais depressa que podia, pôs a toalha de lado e aproximou-se da mulher. Rodeou-a com os braços.

 

— Estás preocupada à toa. O VJ é um bom rapaz.

 

— Talvez que o comportamento dele seja assim tão estranho porque o deixei demasiado tempo com a Janice quando ele era pequeno — disse, ao mesmo tempo que tentava reprimir as lágrimas. — Eu nunca estava em casa. Devia ter tirado uma licença lá no emprego.

 

— Estás mesmo com vontade de ficar com as culpas — comentou o marido. — Não há nada de errado com o miúdo.

 

— bom — continuou ela —, há qualquer coisa de estranho no sseu comportamento. Se as coisas só tivessem acontecido uma vez, então não haveria problemas. Mas não é assim. Ele não é normal para quen tem só dez anos. É demasiado fechado, demasiado adulto. — Começou a chorar. — Por vezes, sinto-me assustada.

 

Quando se baixou para consolar a mulher, Victor lembrou-se do terror que sentira aquando do nascimento do filho. Queria que o rapaz fosse excepcional, e não anormal.

 

20 DE MARÇO DE 1989

SEGUNDA-FEIRA DE MANHÃ

Em casa dos Frank, o pequeno-almoço era uma refeição ligeira Frutas, flocos, café e sumo. A única coisa que fazia que esta manhã fosse diferente das demais era o facto de VJ não precisar de ir para a escola, e, por isso, não andava à pressa para apanhar o autocarro. Marsha foi a primeira a sair, por volta das oito, pois precisava de tempo para fazer a ronda dos hospitais antes de ir para o consultório. Quando saiu, cruzou-se com Ramona Juarez, a mulher encarregadas das limpezas, que ia lá a casa às segundas e às quintas

 

Victor ficou a ver a mulher entrar na carrinha Volvo, que lhe pertencia. Do tubo de escape elevaram-se nuvens de vapor, que ficaram suspensas no ar. Apesar de o calendário anunciar a chegada da Primavera para o dia seguinte, a temperatura era glacial.

 

Acabando de beber o café perto do lava-louça, Victor concentrou as suas atenções no filho, que se entretinha a ver televisão e a meter o nariz numa das revistas científicas do pai. Franziu o sobrolho. Talvez Marsha estivesse com a razão. Talvez que a inteligência brilhante que caracterizara o rapaz durante os primeiros tempos estivesse de volta. Os artigos daquela revista eram bastante complicados. Deu consigo a interrogar-se sobre a quantidade de dados que o rapaz seria capaz de decifrar.

 

Pensou em dizer qualquer coisa, mas depois desistiu. O miúdo estava bem era normal.

 

— Tens a certeza de que queres ir mesmo ao laboratório? — questionou. — Talvez possas descobrir qualquer coisa de mais interessante que te apetecesse fazer com os teus amigos.

 

— Ir até ao laboratório já é bastante interessante — comentou o rapaz.

 

— A tua mãe acha que devias passar mais tempo com gente da tua idade. Diz que só assim serias capaz de aprender a cooperar e a partilhar, e outras coisas do género.

 

— Por favor! —exclamou V J. —Na escola estou sempre com gente da minha idade.

 

— bom, pelo menos temos a mesma opinião — disse o pai.— Acabei de dizer exactamente a mesma coisa à tua mãe. bom, agora que já esclarecemos as coisas, como é que queres ir até ao laboratório? No meu carro ou na bicicleta?

 

— Na bicicleta — foi a sua resposta.

 

Apesar de o ar estar bastante gelado, Victor levava o tejadilho aberto, e o vento despenteava-lhe o cabelo. com o rádio sintonizado no único posto que emitia música clássica que conseguia apanhar, precipitou-se na direcção de uma velha ponte situada por sobre o rio Merrimack. Este era uma enorme torrente de remoinhos e água branca, e, graças à neve de inverno que estava a derreter nas montanhas brancas, em New Hampshire, a cerca de cem milhas para norte, aumentava de volume todos os dias.

 

Quando chegou à rua que antecedia a Chimera, Inc., Victor virou à esquerda e foi conduzindo ao longo de uma enorme parede de tijolos que se estendia por toda a rua. Voltou a virar à esquerda no fim do edifício, e, depois, à medida que se aproximava de um dos gabinetes da segurança, abrandou a velocidade. Ao reconhecer o automóvel, o guarda, que envergava um uniforme, acenou-lhe, e ele passou por baixo da grade preta e branca que fora previamente subida, acabando por entrar no pátio de uma enorme firma privada de biotecnologia.

 

Quando entrava naquele complexo industrial que fora construído no século passado com tijolos vermelhos, Victor sentia sempre uma nota de orgulho, que só pode derivar do sentimento de posse. Era um lugar imponente, pois a maior parte dos edifícios, ao invés de ser remodelada, fora restaurada.

 

Os prédios mais altos tinham cinco andares, mas a maioria Possuía apenas três, e todos eles se estendiam tanto para a esquerda como para a direita, mais ou menos como se de um esboço onde se estudasse a perspectiva se tratasse. Eram de formato rectangular e encontravam-se situados em torno de um pátio interior, que, por sua Vez, estava salpicado por uma série de edifícios mais recentes, de diferentes tamanhos e feitios.

 

Na ala oeste da propriedade, e dominando todo o local, erguia-se um relógio composto por uma torre com oito andares, o qual era conhecido como sendo uma réplica do Big-Ben de Londres. Elevava-se Por sobre os outros edifícios a partir de uma estrutura de três andares> a qual fora construída em cima de um açude de cimento situado no Merrimack. Dado que o rio estava a aumentar de volume, a represa encontrava-se prestes a transbordar. A queda de água, ruidosa, que partia do veitedouro situado no centro do açude enchia o ar com uma névoa ligeira.

 

Nos tempos em que a fábrica transformava em tecidos o algodão vindo do Sul, a fonte de energia encontrava-se no edifício que suportava a torre do relógio. Até ao dia em que a electricidade viera fechar o açude e silenciar as enormes pás e outro equipamento colocado na cave do edifício, todo o complexo se alimentara de emergia produzida pelas águas do rio. Há já alguns anos que o relógio que imitava o Big-Ben não trabalhava, mas Victor estava a pensar em mandá-lo reparar.

 

Em 1976, quando a Chimera adquirira os terrenos abandonados, restaurara menos de metade da área total dos edifícios, ficando o resto à espera de ser utilizado no futuro. Contudo, e já a prever o crescimento da firma, todos os edifícios haviam sido equipados com água, electricidade e instalações sanitárias. Victor não tinha dúvidas de que iria ser fácil fazer que o velho Big-Ben voltasse a trabalhar. Mentalmente, tomou nota do caso, pronto para o trazer à baila na próxima reunião em que o desenvolvimento da empresa fosse discutido.

 

À medida que entrava no local que lhe fora destinado para arrumar o carro, mesmo em frente do edifício da administração, e fechava o tejadilho, fez uma pausa para rever tudo o que tinha que fazer durante o dia. Apesar do orgulho que aquele lugar imponente lhe despertava, reconhecia possuir sentimentos contraditórios em relação ao sucesso da companhia. No seu íntimo, Victor era um cientista; contudo, como um dos três sócios fundadores da Chimera, era-lhe exigido que tomasse parte nas responsabilidades administrativas. Infelizmente, estas tomavam-lhe cada vez mais tempo.

 

Victor penetrou no edifício através da elaborada entrada georgiana, cheia de colunas e de fachadas. Os arquitectos encarregados da restauração haviam prestado toda a atenção aos pormenores. Até mesmo o mobiliário datava do princípio do século xix. O salão de entrada era totalmente diferente dos corredores utilitários do MIT, onde, em 1973, Victor leccionara. Foi nessa altura que começou a trocar impressões com um colega, Ronald Beekman, a respeito das possibilidades que a exploração da biotecnologia lhes oferecia. Do ponto de vista técnico, tratava-se de um bom casamento, pois Victor era biólogo e Ronald trabalhava no campo da bioquímica. Haviam combinado forças com um homem de negócios, Clark Fitzsimmons Póster, e haviam fundado a Chimera em 1975. O resultado ultrapassou as melhores expectativas. Em 1983, sob a orientação de Clark, a companhia entrara no mercado de acções, e todos eles se haviam tornado incrivelmente ricos.

 

Mas o sucesso trouxe consigo responsabilidades, e estas mantinham Victor afastado do seu primeiro amor, o laboratório. Como sócio fundador, era membro do conselho de directores da companhia principal, a Chimera. Era ainda o vice-presidente da mesma, e tinha a seu cargo o departamento de pesquisa. Simultaneamente, era o director do departamento de biologia. Por último, era presidente e director de uma das filiais mais lucrativas, a Fertility, Inc., que era dona de uma rede de clínicas onde se tratavam casos de infertilidade.

 

Quando chegou ao cimo da escadaria principal, fez uma pausa e espreitou pela janela, avistando todo aquele enorme complexo industrial que haviam feito voltar à vida. Não havia qualquer dúvida a respeito da satisfação que sentia. No século passado, a fábrica tivera bastante sucesso, mas este baseara-se na exploração do proletariado imigrante. Agora, o seu sucessor assentava em alicerces mais sólidos, ou seja, nas leis da ciência e na ingenuidade da mente humana no esforço por si despendido com vista a decifrar os mistérios da vida. Victor sabia que a ciência, na forma da biotecnologia, constituía a vaga do futuro, e congratulava-se por estar no seu centro. Nas suas mãos estava a alavanca que podia mudar o mundo, até mesmo o universo.

 

À medida que, a pedalar a toda a velocidade, descia Stanhope, VJ não parava de assobiar. Tinha o blusão apertado até acima, numa tentativa de manter o frio afastado, e as mãos estavam protegidas com um par de luvas feito com o mesmo material isolante usado pelos astronautas.

 

Depois de ter posto a bicicleta a rodar à maior velocidade possível, tirou os pés dos pedais. O som do vento a assobiar, junto com o chiar dos travões, davam-lhe a sensação de ir a cem quilómetros à hora. Era livre. Durante uma semana não precisava de ir às aulas. Não precisava mais de fingir em frente dos professores e dos outros alunos. Podia ocupar o tempo a fazer aquilo para que nascera. Sorriu de um modo estranho, pouco infantil. Havia um brilho profundo nos> seus olhos azuis, e VJ ficou feliz por a mãe ’não estar ali por Perto para o poder ver. Tal como o pai, também ele tinha uma função a cumprir, e não podia admitir interferências.

 

Foi obrigado a abrandar quando chegou à pequena cidade de Andover. Subiu a rua principal e parou em frente do banco, ou a bicicleta perto de uma armação de metal que aí fora Posta para esse efeito e trancou-a com o cadeado. Pôs a mochila às costas e subiu os três degraus de pedra escura que levavam à porta principal, acabando por penetrar no edifício.

 

— bom dia, Mr. Frank — disse-lhe o gerente, dando uma volta na sua cadeira giratória. Chamava-se Harold Scott e VJ costumava evitá-lo, mas, dado que a sua secretária ficava junto à entrada, era uma tarefa difícil. — Posso dar-lhe uma palavrinha, jovem?

 

O rapaz parou, considerou as hipóteses que tinha de recusar e, depois, não sem alguma relutância, encaminhou-se para a secretária.

 

— Deve saber que o banco o considera um bom cliente — disse Harold —, e por isso achei apropriado dizer-lhe quais as vantagens de abrir aqui uma conta. Penso que sabe o que são juros, não é verdade, jovem?

 

— Acho que sim — respondeu VJ.

 

— Nesse caso, gostava de lhe perguntar por que razão não abre uma conta a prazo com o dinheiro que tem na caderneta de poupança?

 

— Caderneta de poupança?

 

— Sim — respondeu Harold. —Disse-me há já algum tempo que tem uma caderneta de poupança. Dado que continua a vir ao banco com bastante regularidade, parto do princípio que ainda a tem.

 

— Claro que ainda a tenho. —Lembrava-se agora que já fora abordado por este indivíduo. Devia ter sido há cerca de um ano.

 

— Uma vez aplicado o dinheiro num depósito a prazo, este começa a trabalhar em seu favor. Para dizer a verdade, o dinheiro começa mesmo a crescer. Deixe-me dar-lhe um exemplo.

 

— Mr. Scott — atalhou VJ quando viu o gerente abrir uma gaveta e tirar de lá algumas folhas. — Não tenho muito tempo. O meu pai está à minha espera no laboratório.

 

— Isto não demora nada— retorquiu o outro. Logo de seguida começou a explicar o que acontecia à quantia de vinte dólares, desde que depositada no The North Andover National Bank durante o período de vinte anos. Quando acabou, voltou-se para o rapaz e inquiriu: — Que acha? Está convencido?

 

— Absolutamente.

 

— Muito bem — prosseguiu o gerente. Tirou alguns impressos de uma outra gaveta e preencheu-os rapidamente. Colocou-os em frente de VJ e apontou para a linha penteada junto do fim da página. — Assine aqui.

 

Obediente, o garoto pegou >na caneta e assinou o nome.

 

— Muito bem — repetiu o homem. — Qual a importância do depósito que vai fazer?

 

VJ mordeu o lábio e só depois tirou a carteira. Lá dentro estavam três dólares. Pegou neles e entregou-os a Harold.

 

— Só isto? — perguntou este. —Quanto é que a sua caderneta de poupança lhe rende durante a semana? Os hábitos de poupança devem ser adquiridos logo de pequenino.

 

— Eu depois deposito mais.

 

O gerente pegou nas notas e nos impressos e dirigiu-se ao balcão do caixa. Quando voltou, entregou ao garoto um talão de depósito.

 

— Este é um dia bastante importante na sua vida — disse ele. VJ fez que sim com a cabeça, guardou o talão no bolso e depois dirigiu-se para a porta do banco que dava para as traseiras. Deu uma olhadela a Mr. Scott. Felizmente, aproximara-se uma cliente, acabando por se sentar à sua secretária.

 

Carregou no botão que chamava o funcionário do cofre-forte. Alguns minutos mais tarde, já se encontrava em segurança num dos compartimentos privados que ali existiam, em frente ao seu cofre pessoal. Pôs a mochila no chão e abriu-a com todo o cuidado. Esta estava cheia de maços de notas de cem dólares. Quando acabou de as juntar às que se encontravam no cofre, teve de usar ambas as mãos para o voltar a colocar no sítio que lhe pertencia, e que ficava bastante alto.

 

Quando saiu, montou na bicicleta e abandonou North Andover, dirigindo-se para a esquerda. Pedalava com vigor, e não foi preciso muito para chegar a Lawrence. Atravessou o Merrimack e entrou no território da Chimera. O segurança que estava ao portão acenou-lhe com o mesmo respeito que reservava para o Dr. Frank.

 

Assim que Victor chegou ao escritório, a sua bonita e eficiente secretária, Colleen, abordou-o com uma série de mensagens telefónicas.

 

Ele gemeu baixinho. A maior parte das segundas-feiras costumavam ser assim, fazendo que não tivesse muito tempo para ir até ao laboratório. O trabalho de investigação com que Victor se ocupava dizia respeito ao modo misterioso como um óvulo fertilizado se implantava no útero. Ninguém sabia como as coisas funcionavam, nem quais os factores necessários a que tudo decorresse com a maior facilidade. Há já alguns anos que o projecto lhe pertencia, Pois sabia que a sua solução seria de grande importância, ’não só académica, mas também comercial. No entanto, se as coisas continuassem a progredir desta maneira, teria de continuar a trabalhar nelas durante muitos anos.

 

— Acho que a mensagem mais importante é esta — disse a secretária, entregando-lhe um papel cor-de-rosa.

 

Ele pegou na folha e viu que esta dizia para telefonar a Ronald . “Era só o que me faltava”, pensou. Muito embora ele e Ronald tivessem sido excelentes amigos durante a fase inicial da fundação da Chimera, Inc., as suas relações actuais eram bastante difíceis devido às diferentes opiniões que ambos mantinham a respeito do futuro da companhia. De momento, as suas divergências diziam respeito a uma possível venda de acções que fora proposta por Clark Foster, a qual se destinava a conseguir um aumento de capital destinado à expansão da firma.

 

Ronald opunha-se ferozmente a qualquer diluição do património, pois receava que o futuro lhes pudesse trazer dificuldades. Acreditava que a expansão deveria estar directamente relacionada com os rendimentos e os lucros do momento. Mais uma vez, seria o voto de Victor a desempenhar a questão, pois o mesmo já tinha acontecido em 1983, quando se decidira a entrada da companhia no mercado de acções. Nessa altura, Victor apoiara Clark, opondo-se a Ronald. Apesar do indiscutível sucesso obtido pela companhia, Ronald continuava a pensar que Victor vendera a sua integridade académica

 

Colocou a mensagem do sócio no meio da pasta.

 

— Que mais? — perguntou.

 

Antes de Colleen ter tido tempo de lhe responder, a porta abriu-se e apareceu a cabeça de V J. O rapaz vinha perguntar se alguém vira Philip.

 

— Vi-o logo de manhã, no bar — informou a secretária.

 

— Se alguém o voltar a ver —pediu o rapaz —, digam-lhe que já cheguei.

 

— Claro — prometeu Colleen.

 

— Eu vou ficar por aqui — garantiu o garoto.

 

Distraído, o pai abanou a cabeça. Continuava a pensar no que iria dizer a Ronald. Victor tinha a certeza de que era agora e não no próximo ano que precisavam de dinheiro.

 

V J saiu e fechou a porta atrás de si.

 

— Ele não tem escola? — inquiriu Colleen.

 

— Está de férias — respondeu o pai.

 

— É uma criança incrível — continuou a secretária. — Não exige nada. Se o meu filho fosse assim, eu não teria qualquer problema.

 

— A minha mulher pensa de maneira diferente. Está convencida de que o VJ tem um qualquer distúrbio de personalidade.

 

— Até custa a acreditar. É um garoto tão bem-educado, tão adulto.

 

— Talvez fosse bom dar uma palavrinha à Marsha — gracejou Victor. Depois, desejoso de se despachar, estendeu a mão. — Qual a mensagem que se segue?

 

— Desculpe. Tem aqui o número de telefone do advogado de Gephardt, Jonathan Marronetti.

 

— Magnífico! — exclamou. George Gephardt era o director de pessoal da Fertility, Inc., e fora o director de compras da Chimera até há cerca de três anos. Presentemente, estava prestes a ser despedido, tudo dependendo do resultado de uma investigação relacionada com o desaparecimento de mais de cem mil dólares que haviam sido roubados da Fertility, Inc. Para piorar as coisas, foram os agentes do Fisco os primeiros a descobrir que Gephardt estava a meter ao bolso os pagamentos de um empregado já falecido’. Assim que tomara conhecimento do facto, Victor ordenara uma investigação aos recibos de compras que o outro apresentara à firma entre os anos de 1980 e 1986. Suspirando, Victor colocou o número de telefone do advogado ao lado do de Ronald.

 

— A seguir? — perguntou.

 

Colleen deu uma vista de olhos às mensagens que se seguiam.

 

— Essas são as mais importantes. As outras posso eu muito bem resolver sozinha.

 

— E não há mais nada? — voltou ele a perguntar. O tom da sua voz era de descrença.

 

A secretária pôs-se de pé e espreguiçou-se.

 

— Quanto a mensagens, não há mais nada, mas a Sharon Carver está à sua espera.

 

— Não é capaz de resolver o caso com ela?

 

— Ela quer vê-lo pessoalmente — respondeu Colleen. —Tem aqui a sua ficha.

 

Victor não precisava da ficha, mas pegou-lhe e colocou-a na secretária. Sabia tudo a respeito de Sharon Carver. Trabalhara no departamento de pesquisa animal até ao momento em que fora despedida por ter negligenciado o serviço.

 

— Deixe-a esperar — disse, pondo-se em pé. — Falo com ela depois de ter visto o Ronald.

 

Servindo-se da porta dos fundos, Victor encaminhou-se para o escritório do sócio. Talvez Ronald se mostrasse mais razoável se o enfrentasse pessoalmente.

 

Quando virou a esquina, avistou uma figura que lhe era familiar, a qual vinha a sair de costas de uma porta, ao mesmo tempo que puxava um carrinho. Tratava-se de Philip Cartwright, um dos deficientes mentais contratados pela Chimera para se ocuparem de funções compatíveis com o seu estado. Todos eles eram empregados valiosos. Philip era paquete e tornara-se popular desde o primeiro dia. Para além disso, afeiçoara-se bastante a VJ e passava imenso tempo com ele, principalmente antes de o rapaz ter entrado para a escola. Faziam um par muito estranho. Philip era um jovem alto e bastante forte, com pouco cabelo, olhos demasiado juntos e um pescoço largo, curvado desde a parte detrás das orelhas até ao princípio dos ombros. Os braços compridos terminavam em mãos semelhantes a pás, as quais tinham todos os dedos do mesmo tamanho. Quando Philip encarou com o Dr. Frank, o seu rosto abriu-se num sorriso de reconhecimento. O facto deixou visíveis uma série de dentes quadrados. Se não houvesse algo de agradável na sua maneira de ser, o homem talvez pudesse ser considerado assustador.

 

— Bom dia, Mr. Frank — disse. Apesar do tamanho do corpo, a voz era a de uma criança.

 

— Bom dia, Philip — respondeu ele. —O VJ anda por aí à tua procura. Vai ficar cá durante toda a semana.

 

— Fico feliz com isso — retorquiu o outro com sinceridade. — Encontro-o num instante. Obrigado.

 

Victor ficou a vê-lo afastar-se com o carrinho e desejou poder confiar em todos os empregados da firma do mesmo modo que confiava naquele.

 

Quando chegou ao escritório de Ronald, que por sinal era uma réplica do seu, cumprimentou a secretária pessoal do sócio e perguntou-lhe se o patrão estava disponível. Antes de o mandar entrar, ela fê-lo esperar durante cerca de dez minutos.

 

— Será que Brutus vem elogiar César? — perguntou Ronald por baixo das sobrancelhas espessas. Tratava-se de um homem bem constituído, de cabelos fartos e despenteados.

 

— Achei melhor discutirmos o negócio das acções — sugeriu Victor. Pelos modos e tom de voz do sócio, era patente que não estava disposto a conversar.

 

— E há alguma coisa para falar a esse respeito? — interrogou Ronald com um ressentimento mal disfarçado. — Constou-me que és a favor da dissolução do património.

 

— Quero angariar capital — retorquiu Victor.

 

— É a mesma coisa.

 

— Queres ouvir o que tenho para te dizer?

 

— Acho que as tuas razões são bastante claras. Desde que a companhia entrou no mercado de acções que tu e o Clark têm vindo a conspirar contra mim!

 

— Ah, sim? — perguntou Victor, incapaz de dissimular o tom sarcástico. Este tipo de paranóia ridícula começava a dar-lhe a ideia de que o excesso de trabalho administrativo estava a dar a volta à cabeça do sócio. Este tinha tanto ou mais trabalho que ele e nenhum deles estava preparado para aquele tipo de tarefas.

 

— Não me venhas com isso! — exclamou Ronald, pondo-se de pé. Inclinou-se para a frente, por sobre a secretária. — Estou a avisar-te, Frank. Hei-de ajustar contas contigo.

 

— De que raio estás a falar — inquiriu Victor, como quem não quisesse acreditar no que ouvia. — Que vais fazer, furar-me os pneus do carro? Ronald, sou eu, Victor. Lembras-te? — Abanou a mão em frente ao rosto do sócio.

 

— Posso fazer que a tua vida seja tão má como a que tenho agora, graças a ti. Se continuares a pressionar-me para que venda mais acções, garanto-te que hei-de ajustar contas contigo.

 

— Por favor! — exclamou ele, recuando. — Ronald, chama-me quando acordares. Não vou ficar aqui a ouvir mais ameaças.

 

Voltou-se e saiu do escritório. Percebeu que Ronald ia começar a dizer qualquer coisa, mas não parou para ouvir. Sentia-se enojado. Por um momento, chegou mesmo a pensar em largar tudo, depositar as acções que lhe pertenciam e voltar à investigação. Contudo, quando se sentou de novo à secretária, já pensava de outra maneira. Não estava disposto a deixar que os distúrbios de personalidade de Ronald lhe negassem o acesso ao mundo da biotecnologia enquanto indústria. Ao fim e ao cabo, o trabalho académico também tinha as suas limitações, só que estas eram de outro tipo.

 

Bem no meio da pasta que tinha na secretária, estava o número de telefone de Jonathan Marronetti, o advogado de Gephardt. Resignado, acabou por fazer a ligação e chamar o homem ao telefone. Este tinha um sotaque distintamente nova-iorquino, facto que o irritou.

 

— Tenho boas notícias para vocês — anunciou Jonathan.

 

— Talvez nos façam jeito — retorquiu ele.

 

— O meu cliente, Mr. Gephardt, está disposto a devolver a importância que, misteriosamente, apareceu na sua conta bancária, bem assim como os juros. Isto não significa que se considere culpado, mas sim que apenas pretende dar o assunto por encerrado.

 

— Vou discutir a oferta com os nossos advogados.

 

— Espere, ainda há mais. Em troca do pagamento em dinheiro, o meu cliente quer ser readmitido na firma, bem assim como o fim de todas as perseguições, incluindo as investigações respeitantes aos negócios de Mr. Gephardt.

 

— Isso está fora de questão. O seu cliente não pode esperar ser reintegrado sem termos terminado a investigação.

 

— bom — continuou Jonathan, fazendo uma pausa. — Acho que vou falar com Mr. Gephardt, e, a título provisório, fazê-lo desistir da reintegração.

 

— Receio que isso não vá adiantar muito.

 

— Ouça, estamos a tentar ser razoáveis.

 

— A investigação prosseguirá conforme o estabelecido — disse Victor.

 

— Tenho a certeza de que deve existir uma maneira... — começou o advogado.

 

— Tenho muita pena — interrompeu ele. — Quando estivermos na posse desses dados, então voltaremos a falar consigo.

 

- —Se não estiver disposto a ser razoável, Mr. Frank, serei forçado a mover-lhe uma acção de que talvez se venha a arrepender. Não está de maneira nenhuma em condições de se armar em santo

 

— Adeus, Mr. Marronetti — disse, desligando o telefone com força.

 

Recostou-se na poltrona e carregou no botão do intercomunicador para avisar Collen de que podia mandar entrar Sharon Carver. Muito embora o caso lhe fosse familiar, abriu a respectiva pasta. Sharon fora um problema praticamente desde o dia em que começara a trabalhar. Era uma pessoa em quem não se podia confiar e faltava bastante. O processo continha cinco cartas de indivíduos a queixarem-se do seu fraco desempenho.

 

Victor levantou a cabeça. Sharon Carver entrou na sala envergando uma minissaia de cabedal e um top de seda preta. Sem grandes pressas, sentou-se na cadeira que estava em frente à secretária de Victor, mostrando uma grande quantidade de perna.

 

— Obrigada por me ter recebido — murmurou.

 

Ele deitou uma olhadela à fotografia instantânea que estava na ficha dela. Usava uns jeans desbotados e uma camisa de flanela.

 

— Em que lhe posso ser útil? — perguntou, olhando-a nos olhos.

 

— Tenho a certeza de que em muitas coisas — respondeu a mulher com alguma timidez. — No entanto, de momento estou mais interessada em recuperar o meu emprego. Quero ser readmitida.

 

— Isso não é possível.

 

— Acho que é — insistiu Sharon.

 

— Miss Carver — começou Victor —, será que tenho de lhe lembrar que foi despedida por negligência?

 

Então por que razão é que o homem que estava comigo na arrecadação quando fomos apanhados não foi despedido? — perguntou ela descruzando as pernas e inclinando-se para a frente com ar de desafio. —Responda!

 

— As actividades amorosas por si praticadas no último dia em que trabalhou para nós não foram o único motivo do seu despedimento — explicou Victor. — Se o problema fosse só esse, não teria sido despedida. Aliás, o homem que acabou de mencionar não descurou nunca as suas responsabilidades. O dia em questão coincidia com a sua folga, o que não era o seu caso, Miss Carver. Em qualquer dos casos, o que está feito, está feito. Espero sinceramente que encontre trabalho noutro lado, por isso, e se me dá licença... — Levantou-se e fez um gesto na direcção da porta.

 

Ela não se moveu. Olhava-o de maneira fria.

 

— Se continuar a não me querer readmitir, movo-lhe um processo de descriminação sexual que lhe vai pôr a cabeça à roda. Vou fazê-lo sofrer.

 

— Para já, tem feito um bom trabalho — comentou ele. — Agora, e se me dá licença...

 

Tal como um gato prestes a atacar, Sharon levantou-se lentamente da cadeira, olhando-o pelo canto dos olhos.

 

— Ainda não sabe do que sou capaz! — ameaçou.

 

Victor esperou que a porta se fechasse e só então avisou Colleen que ia para o laboratório e que ela não o deveria chamar para atender mais ninguém, nem mesmo que essa pessoa fosse o Papa.

 

— Demasiado tarde — disse a secretária, à laia de desculpa. — O Dr. Hurst está na sala de espera. Diz que o quer ver e está bastante aborrecido.

 

William Hurst era o chefe do departamento de oncologia médica. Também ele estava a ser alvo de uma investigação, a qual fora pedida recentemente. Mas, ao invés do que acontecia com Gephardt, Hurst era acusado de estar envolvido num processo de pesquisa fraudulenta, uma ameaça crescente no mundo científico.

 

— Mande-o entrar — comentou Victor, não sem alguma relutância. Não havia lugar onde se pudesse esconder.

 

Hurst entrou na sala como se estivesse a planear assaltar o outro e precipitou-se para a secretária.

 

— Acabei de saber que você deu ordens a um laboratório independente para verificar os resultados apresentados no último número que publiquei na revista.

 

— À luz do artigo do Boston Globe, de sexta-feira passada, não creio que isso o possa surpreender. — Perguntou-se sobre o que faria se este maníaco desse a volta à secretária e aparecesse ao seu lado.

 

— Que se lixe o Boston Globe! — gritou o homem. — A história que publicaram baseia-se nas declarações de um técnico descontente. Não acredita nela, pois não?

 

— As minhas opiniões não são para aqui chamadas. O Globe noticiava que os dados do seu artigo haviam sido deliberadamente falsificados. Este tipo de acusação pode ser bastante prejudicial, não só para si, mas também para a Chimera. Temos de cortar o mal pela raiz antes que este assuma proporções incontroláveis. Não entendo Por que razão está tão zangado.

 

— Nesse caso, eu explico — retorquiu o outro bruscamente.— Estava à espera de apoio, não de mais suspeitas. O simples facto de ter pedido que verifiquem o meu trabalho é meio caminho para me considerarem culpado. Para além do mais, qualquer tipo de trabalho implica uma pequena margem de erro. Até mesmo Isaac Newton exagerou algumas observações planetárias. Quero que essa investigação seja cancelada.

 

— Olhe, lamento muito que esteja aborrecido, mas, independentemente das inexactidões de Isaac Newton, sempre que entramos no campo da ética cientifica deixa de haver relatividade. A confiança do público no que respeita à pesquisa...

 

— Não vim aqui para ouvir lições de moral! — gritou o outro. — Estou a dizer-lhe que quero que ponha um fim a este inquérito.

 

— Não há dúvida de que está a ser muito claro. No entanto, se não tiver cometido qualquer fraude, não tem nada a recear, e só poderá ganhar alguma coisa.

 

— Está a querer dizer-me que não vai mandar cancelar o inquérito?

 

— É exactamente isso que estou a tentar dizer-lhe — respondeu,

 

já farto de aturar William Hurst.

 

— A sua falta de lealdade académica choca-me — acabou o outro por dizer. — Agora sei o motivo que leva o Ronald a sentir-se como se sente.

 

— O Dr. Beekman defende a mesma ética profissional que eu — respondeu Victor, acabando por deixar mostrar a sua raiva. — Adeus, Dr. Hurst. A conversa terminou.

 

— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Frank — disse o outro, inclinando-se por sobre a secretária. — Se insistir em atolar o meu nome na lama, farei o mesmo consigo. Está a ouvir-me? Sei perfeitamente que não é o “santinho” que pretende ser.

 

— Receio bem que nunca tenha publicado dados falsos — retorquiu Victor, sarcasticamente.

 

— Acontece que você não corresponde à imagem do “santinho” que nos anda a impingir.

 

— Saia daqui.

 

— com todo o prazer. — Encaminhou-se para a porta, abriu-a e disse: —Você não está imune! —Só então saiu, batendo a porta com tanta força que o vidro da moldura que continha o diploma de Victor tilintou.

 

Deixou-se ficar sentado na secretária durante alguns momentos, tentando recuperar o equilíbrio emocional. Já sofrera ameaças que bastassem para um dia. Interrogou-se sobre o que queria Hurst dizer quando se referia ao facto de ele não ser nenhum “santinho”.

 

Que confusão!

 

Empurrou a cadeira para trás, levantou-se e pegou na bata branca que usava no laboratório. Abriu a porta, pretendendo meter a cabeça de fora e dizer a Colleen que estava prestes a seguir para o laboratório. Quase que esbarrou com ela, pois esta dirigia-se precisamente para o escritório.

 

— Está aqui o Dr. William Hobbs — anunciou. —Devo dizer-lhe que está emocionalmente arrasado.

 

Victor tentou ver o que se passava para lá da secretária. Sentado numa das cadeiras do vestíbulo, avistou um homem dobrado sobre si mesmo, a amparar a cabeça com ambas as mãos.

 

— Qual é o problema? — perguntou, em voz baixa.

 

— Qualquer coisa relacionada com o filho. Acho que há qualquer problema com o garoto e ele quer tirar uns dias de licença.

 

Sentiu as mãos pegajosas devido ao suor, bem assim como um aperto na garganta.

 

— Mande-o entrar — conseguiu dizer.

 

Não podia deixar de se solidarizar um pouco com o caso, pois passara pela mesma experiência para conseguir ter um filho. O facto de saber que podia estar a acontecer qualquer coisa de errado com a criança fazia-o reviver todas as preocupações que tivera com VJ.

 

— O Maurice...—começou Hobbs, mas foi obrigado a parar para conseguir sufocar as lágrimas. — O meu garoto estava prestes a fazer três anos. Nunca o chegou a ver. Ele era o centro das nossas vidas. Era a nossa alegria. Era um génio.

 

— Que aconteceu? — perguntou Victor, quase receando ouvir a resposta.

 

— Morreu! —exclamou Hobbs, deixando transparecer a raiva que sentia por baixo de toda aquela tristeza.

 

Ele engoliu em seco. A sua garganta parecia de papel.

 

— Foi algum acidente? — quis saber. Hobbs abanou a cabeça.

 

— Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Tudo começou com um ataque. Quando o levaram para o Children’s Hospital, concluíram que se tratava de um edema cerebral: o cérebro estava a inchar. Não puderam fazer nada. Nunca recuperou a consciência. Foi então que o coração parou.

 

Durante alguns instantes, um silêncio pesado ficou a pairar no escritório. Passado algum tempo, Hobbs disse:

 

— Gostaria de tirar alguns dias de licença.

 

— Claro — concordou Victor. O homem levantou-se e saiu.

 

Depois disto, Victor ficou a olhar fixamente para a porta durante dez minutos. Pela primeira vez na vida, o laboratório era o último lugar no mundo onde queria ir.

 

SEGUNDA-FEIRA AO FIM DA MANHA

A pequena campainha de alarme que estava em cima da secretária de Marsha tocou, assinalando o fim de mais uma sessão de cinquenta minutos com Jasper Lewis, um adolescente de quinze anos bastante zangado com o mundo e que exibia uma espécie de barba composta por meia dúzia de pêlos. Estava estirado em frente da secretária de Marsha e parecia aborrecido. O diagnóstico do rapaz indicava que este tinha todas as probabilidades de vir a meter-se em apuros.

 

— A única coisa que ainda não discutimos foi o teu internamento — disse Marsha. Tinha a ficha do rapaz aberta no colo.

 

lasper elevou o dedo por sobre a linha do ombro, apontando para a campainha na secretária da médica.

 

— Pensei que isso tocasse para indicar o fim da sessão.

 

— Significa que está quase a acabar — respondeu ela. —Como te sentes depois de teres passado três meses no hospital, agora que estás de volta a casa? — Marsha tinha a impressão de que o ambiente organizado do hospital lhe fora favorável, mas queria saber o que lasper tinha para dizer a esse respeito.

 

— Correu tudo bem.

 

— Só isso? — inquiriu, tentando encorajá-lo. Era bastante difícil fazer que este indivíduo se abrisse.

 

— As coisas não foram mal — continuou ele, encolhendo os ombros. —Você sabe, nada de especial.

 

Era evidente que teria de se esforçar muito mais para ficar a saber aquilo que Jasper pensava, por isso fez uma nota na ficha do rapaz, nota esta que se destinava a não a deixar esquecer do facto. Na próxima sessão começaria por ali. Fechou a pasta e fitou o rapaz

 

bem nos olhos.

 

— Foi bom voltar a ver-te. Até para a semana.

 

— Claro — retorquiu ele, evitando olhá-la de frente. Levantou-se e saiu da sala bruscamente.

 

Marsha voltou à secretária com vista a tomar as suas notas. Abriu de novo a pasta e leu os antecedentes do doente. Desde a mais tenra infância que a conduta de Jasper revelara propensão para a desordem. Havia fortes possibilidades de que este diagnóstico se transformasse em conduta anti-social. Como se tudo isto não bastasse, Marsha tinha a certeza de que se tratava de uma personalidade com tendência para a esquizofrenia.

 

Ao rever as características principais da história clínica do rapaz, reparou que este mentia com frequência, brigava na escola, era gabarola, apresentava um comportamento vingativo e era dado à fantasia. Os seus olhos detiveram-se na seguinte frase: “Não consegue experimentar emoções nem exprimir afecto.” Foi então que lhe apareceu a imagem de VJ a libertar-se dos seus abraços, a encará-la com aqueles olhos azuis e gelados como lagos de montanha. Fez um esforço para se voltar a concentrar na ficha. “Prefere actividades solitárias, não sente necessidade de estabelecer relações profundas, não tem amigos chegados.”

 

As pulsações de Marsha aceleraram. Não estaria ela a ler a história clínica do seu próprio filho? A tremer, releu tudo o que dizia respeito a Jasper. Verificavam-se uma série de coincidências pouco agradáveis. Ficou feliz quando os seus pensamentos foram interrompidos por Jean Colbert, uma nativa de New England, possuidora de uma cabeleira arruivada, que desempenhava as funções de sua enfermeira e secretária. Quando levantou a cabeça, o seu olhar foi atraído por uma frase que sublinhara a vermelho: “Jasper foi praticamente criado pela tia, pois, para manter a família, a mãe tinha de ter dois empregos.”

 

— Estás pronta para receber o próximo doente? — perguntou Jean.

 

Marsha respirou fundo.

 

— Ainda te lembras daqueles artigos que guardei e que falavam das creches e dos seus efeitos psicológicos?

 

— Claro que sim. Coloquei-os em fichas e estão na arrecadação.

 

— Que tal ires à procura deles? — interrogou, tentando disfarçar a preocupação que sentia.

 

— Claro — retorquiu a enfermeira. Fez uma pausa e depois perguntou : — Estás a sentir-te bem?

 

— Estou óptima — respondeu, ao mesmo tempo que agarrava a ficha que se seguia. A medida que ia passando em revista as notas que tomara nas últimas consultas, Nancy Traverse, uma criança de doze anos, entrou na sala e fez os possíveis por se afundar numa das cadeiras. Enterrou a cabeça nos ombros, como se de uma tartaruga se tratasse.

 

Marsha sentou-se na cadeira em frente à da rapariga. Tentou lembrar-se onde haviam ficado da última vez. Estavam a falar de algo relacionado com as experiências sexuais da garota.

 

Acabou por dar início à sessão. Tentou concentrar-se, mas os receios que sentia por VJ estavam constantemente a voltar-lhe à cabeça, bem assim como o sentimento de culpa por não ter parado de trabalhar quando o filho era pequeno. Não que ele alguma vez se tivesse importado com a sua ausência. Mas, como era do seu conhecimento, o facto podia ser sintoma de uma qualquer doença psicológica.

 

Assim que Hobbs saiu, Victor tentou manter-se ocupado cuidando da correspondência, em parte para evitar o laboratório, em parte para o impedir de pensar nas notícias terríveis que o homem lhe dera. Contudo, os seus pensamentos em breve se voltaram a concentrar nas circunstâncias relacionadas com a morte do rapaz. Aparentemente, o facto ficara a dever-se a um edema cerebral, facto que fizera que o cérebro inchasse. Mas qual teria sido a causa do edema? Gostaria que Hobbs lhe pudesse ter fornecido mais pormenores. Os seus receios prendiam-se precisamente com a falta de diagnóstico específico.

 

— Raios! —exclamou, batendo com a mão no tampo da mesa. Levantou-se de repelão e ficou a olhar através da janela. A partir

 

do escritório, podia avistar com clareza a torre do relógio. Há muito tempo atrás, quando os ponteiros haviam parado, passavam quinze minutos das duas.

 

— Eu devia ter calculado! — disse ele para consigo mesmo, ao mesmo tempo que batia com o punho direito na palma da mão esquerda com força suficiente para que esta lhe ficasse a doer. A morte do filho dos Hobbs trouxera de volta todas as preocupações que sentira pelo filho — e às quais conseguira pôr um ponto final. Enquanto Marsha se atormentava com o estado psicológico do rapaz, as suas preocupações sempre se haviam prendido com as condições físicas de VJ. Quando o quoficiente de inteligência do filho sofrera uma baixa e depois estabilizara no que ainda podia ser considerado um nível excepcional, Victor sentira-se aterrorizado. Demorou vários anos a vencer os seus medos e a sentir-se descansado. No entanto, a morte repentina do garoto Hobbs voltara a erguer os seus fantasmas. A sua maior preocupação prendia-se com o facto de que os paralelismos entre VJ e o rapazinho que morrera não se ficavam pela concepção de ambos. Victor sabia que, tal como o seu próprio filho, Maurice Hobbs era uma criança prodígio. Desde o seu nascimento que ele mantinha uma ficha secreta a respeito dos progressos que ia registando. Antes de ter sido abalado com a notícia da sua morte, estava ansioso por saber se o rapazinho iria sofrer uma queda de inteligência tão súbita como a que acontecera com V J. Contudo, agora só estava interessado em saber quais as circunstâncias que tinham rodeado a morte da criança.

 

Dirigiu-se ao terminal do seu computador e limpou o ecran, fez as operações necessárias para que a ficha pessoal que mantinha sobre o bebé Hobbs aparecesse. Hão andava à procura de nada em especial, mas pensou que talvez lhe ocorresse uma explicação para a morte do rapaz se examinasse com cuidado os dados que possuía. O écran continuava escuro. Confuso, Victor voltou a carregar na tecla que dava início a todo o processo. Como que a responder-lhe, no canto inferior direito apareceu a indicação de que o computador andava à procura do que ele queria. Então, para sua surpresa, a máquina informou-o de que a ficha em questão não existia.

 

— Mas que é isto? — perguntou. Pensou que talvez tivesse cometido algum erro e voltou a tentar, martelando com força nas teclas que formavam as palavras “Bebé Hobbs”. Carregou no botão, e, depois de uma pausa durante a qual o computador pesquisou todos os bancos de dados que possuía, a resposta que recebeu foi exactamente a mesma: NÃO SE ENCONTRA A FICHA.

 

Tentando encontrar uma explicação para o que acabara de acontecer, Victor afastou-se do computador. É verdade que já há muito que não consultava aquela ficha, mas o facto não devia fazer qualquer diferença. Ficou a tamborilar com os dedos no tampo da secretária, mesmo em frente ao teclado, enquanto ia meditando. Por fim, voltou a sentar-se ao computador. Desta vez, bateu as teclas que compunham as palavras “Bebé Murray”.

 

Seguiu-se a mesma pausa que antecedera a resposta relativa ao caso Hobbs, e o resultado foi exactamente o mesmo: NÃO SE ENCONTRA A FICHA.

 

A porta do escritório abriu-se e Victor foi obrigado a dar meia volta. Avistou Colleen à entrada.

 

— Decididamente, este não é um dia bom para os pais — informou a secretária, agarrando a ombreira. — Tem em linha um telefonema de um tal Mr. Murray. Parece que o filho não está lá muito bem e também está a chorar.

 

— Não acredito — cortou ele bruscamente. As coisas estavam exactamente a passar-se ao mesmo tempo.

 

— Confie em mim. É a linha dois.

 

Meio tonto, Victor pegou no telefone. A luz não parava de acender e apagar e tinha a sensação de que havia uma campainha a tocar na sua cabeça. Não era verdade que tudo isto estivesse a perguntou Victor, ansioso.

 

 

Acontecer, não depois de as coisas terem corrido bem durante tanto tempo. Teve de fazer um esforço para atender a chamada.

 

— Desculpe incomodá-lo — conseguiu Murray articular —, mas mostrou-se tão compreensivo durante todo o processo de fertilização in vitro que achei que gostaria de ser informado. Trouxemos o Mark para o Children’s Hospital, pois ele está às portas da morte. Os médicos dizem que não podem fazer nada.

 

— Que aconteceu? — perguntou Victor, praticamente incapaz de falar.

 

— Ninguém sabe — informou Horace. — Tudo começou com uma dor de cabeça.

 

— Sabe se ele bateu com a cabeça?

 

— Não, não sabemos.

 

— Importa-se que eu vá para aí? — pediu.

 

Meia hora mais tarde, Victor estava a arrumar o carro na garagem em frente ao hospital. Entrou e dirigiu-se ao local onde forneciam informações. A recepcionista disse-lhe que Mark Murray estava na unidade de cuidados intensivos e ensinou-lhe o caminho para a sala de espera. Ele foi encontrar Horace e Colette completamemte arrasados devido à preocupação e à falta de sono. Quando o viu, Horace levantou-se.

 

— Houve alguma mudança? O outro abanou a cabeça.

 

— Puseram-lhe uma máscara respiratória.

 

O melhor que podia, apresentou as suas condolências. Os Murray pareciam estar sensibilizados com o facto de ele ter tido tempo para se deslocar até ao hospital, especialmente porque não conviviam socialmente.

 

— Era uma criança tão especial — disse o pai. —Tão incrível, tão inteligente... —abanou a cabeça.

 

Colette escondeu o rosto nas mãos. Os ombros começaram-lhe a tremer. Horace voltou a sentar-se e colocou um braço em torno dos ombros da mulher.

 

— Como é que se chama o médico que está a tomar conta do Mark? — perguntou Victor.

 

— Nakano. Dr. Nakano.

 

Balbuciou uma desculpa, deixou o casaco com os Murray e abandonou a sala de espera e aqueles pais angustiados. Dirigiu-se para a unidade de cuidados intensivos, a qual ficava mesmo ao fundo do corredor, para lá de um par de portas electrónicas. Assim que pisou a área coberta de borracha que ficava em frente das portas, estas abriram-se automaticamente.

 

O interior do compartimento era-lhe familiar, pois já ali trabalhara. Via-se a mesma quantidade de equipamento electrónico e as eternas enfermeiras apressadas. O assobio constante das máscaras respiratórias, bem assim como o ruído dos monitores cardíacos, tudo isto conferia à sala um aspecto tenso. Ali travava-se uma luta contra a morte.

 

Dado que se movia à vontade naquele ambiente, ninguém lhe perguntou o que ali fazia, muito embora não tivesse qualquer cartão que o identificasse. Dirigiu-se a uma secretária e perguntou se o Dr. Nakano estava disponível.

 

— Ainda agora aqui estava — respondeu uma jovem algo petulante. Soergueu-se da cadeira e inclinou-se por sobre o balcão para ver se o descobria. Como não o conseguiu, voltou a sentar-se e pegou no telefone. Não demorou muito para que os altifalantes existentes no tecto começassem a chamar o médico.

 

Victor pôs-se a andar de um lado para o outro, ao mesmo tempo que tentava localizar Mark. No entanto, havia ali demasiadas crianças com máscaras respiratórias, que lhes distorciam as feições. Voltou para junto da mesa no preciso momento em que a funcionária desligava o telefone. Quando o avistou, esta informou-o de que o Dr. Nakano já vinha a caminho da unidade.

 

Cinco minutos mais tarde, Victor foi apresentado a um indivíduo simpático e bronzeado, de ascendência americana e japonesa. Explicou-lhe que era médico e amigo dos Murray e que esperava poder compreender o que estava a acontecer com Mark.

 

— Não é nada de bom — respondeu o outro com alguma candura. — O garoto está a morrer. Não é com frequência que o dizemos, mas trata-se de um caso que não reage a qualquer tratamento.

 

— Tem alguma ideia do que se estará a passar agora?

 

— Nós sabemos o que se está a passar — declarou o médico —, só não sabemos a sua causa. Venha, eu mostro-lhe.

 

com os passos rápidos típicos de um médico apressado, encaminhou-se para um dos extremos da unidade. Parou em frente a um cubículo separado da parte principal do pavilhão.

 

— O garoto está sob vigilância especial — disse o Dr. Nakano.— Não há sinais de infecção, mas, mesmo assim... — Entregou a Victor uma máscara, uma bata e uma touca. Ambos vestiram as roupas de protecção e só depois entraram no compartimento.

 

Mark Murray estava colocado no centro de um enorme berço com resguardos altos. Tinha a cabeça embrulhada numa ligadura. O médico explicou que, na esperança de conseguirem alguma coisa, tinham tentado uma descompressão, mas nada tinha ajudado.

 

— Veja por si mesmo — continuou, entregando um oftalmoscópio a Victor. Este inclinou-se por sobre aquela criança de dois anos, levantou-lhe uma pálpebra e espreitou através da pupila dilatada e imóvel. Apesar de não ter qualquer experiência com o aparelho, de imediato viu o que de errado ali se passava. Tal como se estivesse a ser empurrado, o nervo óptico precipitava-se para fora do olho.

 

Victor endireitou-se.

 

— Impressiona bastante, não é? — perguntou o Dr. Nakano. Tirou-lhe o oftalmoscópio e ele mesmo deu uma olhadela. Ficou quieto por um momento e depois levantou-se. — O mais grave é que as coisas pioram a olhos vistos. O cérebro do garoto não pára de inchar. Surpreende-me que ainda não lhe esteja a sair pelos ouvidos. Não houve nada que ajudasse, nem a descompressão, nem os esteróides, nem mesmo o manitol. Receio bem que estejamos prestes a desistir.

 

Victor reparou que não havia ali qualquer enfermeira.

 

— Há alguma hemorragia ou traumatismo? — perguntou.

 

— Nada — retorquiu o outro com simplicidade. — Para além do cérebro inchado, não há mais nada de errado com o miúdo. Tal como já lhe tinha dito, não há sintomas de meningite. Não compreendemos. Só o que está lá em cima é que sabe — ao dizer isto, apontou para o alto.

 

Como resposta às mórbidas previsões do Dr. Nakano, o monitor cardíaco deixou escapar um breve sinal de alarme, o que indicava que o coração de Mark parara. Os batimentos cardíacos do rapazinho estavam a tornar-se irregulares. O alarme voltou a soar. O médico não se mexeu.

 

— Isto já aconteceu antes — disse. — Contudo, e nas presentes circunstâncias, as coisas têm outro significado. — Depois, à laia de explicação, acrescentou: —Os pais não vêem qualquer vantagem em o manter vivo depois de o cérebro ter parado.

 

Victor assentiu com a cabeça, e, quando o fez, o alarme do monitor cardíaco voltou a dar sinais de vida, só que desta vez não parou. O coração do rapazinho estava em fibrilação. Ele espreitou por cima do ombro em direcção à secretária que ali estava. Ninguém respondeu.

 

Não demorou muito para que a linha que aparecia no écran do monitor não fosse mais do que um traço a direito.

 

— E são assim os jogos de azar — comentou o médico.

 

Dava a sensação de se tratar de um comentário pouco caridoso, mas Victor sabia que a sua origem se devia a uma grande frustração; e não à ausência de sentimentos. Ainda não se esquecera dos tempos em que ali trabalhara.

 

Regressaram ambos para junto da secretária e o médico informou a recepcionista de que o bebé Murray morrera. Sem se mostrar perturbada, a rapariga pegou no telefone e deu início a todo o processo burocrático que se prendia com o facto. Victor sabia que ali só podia trabalhar quem não se deixasse perturbar com a morte.

 

— Ontem à noite houve um caso semelhante — comentou ele. — O apelido da criança era Hobbs. O garoto tinha sensivelmente a mesma idade deste. Talvez fosse até um pouco mais velho. Sabe alguma coisa a este respeito?

 

— Ouvi falar — respondeu o médico de um modo algo vago. — No entanto, o caso não estava a meu cargo. Parece-me que havia uma série de sintomas semelhantes.

 

— Parece que sim. —Fez uma breve pausa, ao fim da qual prosseguiu: —Vai mandá-lo autopsiar?

 

— Sem qualquer margem para dúvidas — disse o Dr. Nakano. — Trata-se de um caso que só poderá ser explicado através de autópsia. No entanto, é com bastante frequência que os médicos legistas nos devolvem o material. Andam sempre demasiado ocupados, principalmente para este tipo de material esotérico. Quer que eu vá falar com os pais, ou fá-lo você por mim?

 

Victor ficou desconcertado com a súbita mudança de direcção que ocorrera na conversa.

 

— Eu digo-lhes — respondeu, não sem antes ter feito uma pausa. — Obrigado por me ter cedido o seu tempo.

 

— De nada — respondeu o médico sem sequer olhar para Victor, pois já estava envolvido numa outra crise.

 

Atordoado, Victor abandonou a unidade de cuidados intensivos. Quando as portas electrónicas se fecharam atrás de si, o silêncio soube-lhe bem. De volta à sala de espera, os Murray adivinharam as más notícias muito antes de ele as ter dito. Agarraram-se um ao outro e voltaram a agradecer-lhe pelo facto de ali estar. Ele balbuciou algumas palavras em que lhes apresentava os seus pêsames. Contudo, mesmo enquanto falava, formou-se-lhe na cabeça a imagem de VJ, pálido e agarrado à máscara respiratória que Mark usara.

 

Gelado de medo, dirigiu-se à secção de patologia e apresentou-se ao chefe do departamento, o Dr. Warren Burghofen. Este assegurou-lhe que faria tudo o que estava ao seu alcance para conseguir as duas autópsias, e o mais depressa possível.

 

— Pode ter a certeza que todos queremos saber o que se passou — assegurou Burghofen. — Não queremos que a cidade seja assolada por uma epidemia de edema cerebral idiopático.

 

Devagar, Victor voltou para o carro. Estava certo de que havia poucas hipóteses de se verificar a tal epidemia. Sabia bem de mais qual o número de crianças em perigo. Eram apenas três.

 

Assim que Victor voltou ao escritório pediu a Colleen para entrar em contacto com Louis Kaspwicz, o chefe do departamento encarregue do processamento de dados, e para o mandar subir imediatamente.

 

Louis era um homem baixo e atarracado, com uma careca reluzente, que tinha o hábito de efectuar movimentos imprevisíveis. Era muitíssimo envergonhado e eram raras as vezes em que olhava para os outros de frente, mas, apesar da sua personalidade sinuosa, era um excelente profissional. A firma dependia da sua competência em quase todas as áreas, desde a pesquisa até à emissão de uma simples factura.

 

— Tenho um problema — disse Victor, encostando-se à secretária e mantendo os braços cruzados ao nível do peito. — Não consigo encontrar duas das minhas fichas pessoais. Faz alguma ideia do que se está a passar?

 

— Há uma série de razões para isso. Regra geral, essas coisas acontecem porque o utilizador esquece o número de código em que as fichas estavam.

 

— Mas eu verifiquei o número de código — retorquiu Victor. — Elas não estavam lá.

 

— Talvez tenham ido parar ao código de outra pessoa qualquer — sugeriu Louis.

 

— Confesso que não tinha pensado nisso — admitiu. —Contudo, não me lembro de as ter consultado, e, para além do mais, nunca precisei de usar outro caminho para as encontrar.

 

— bom, não posso dizer mais nada até ter estudado o caso Qual foi o nome que deu às fichas?

 

— Antes do mais, devo dizer-lhe que quero que este assunto continue a ser confidencial — enfatizou Victor.

 

— Claro.

 

Entregou os nomes a Louis e este sentou-se junto do terminal

 

— Teve alguma sorte? — perguntou, depois de ter esperado alguns minutos e de o écran continuar vazio.

 

— Parece que não. No entanto, quando voltar para o meu escritório, talvez consiga descobrir alguma coisa, pois posso servir-me do computador para pesquisar através dos logaritmos. Tem a certeza de que foram estes os nomes que deu às fichas?

 

— A certeza absoluta — respondeu ele.

 

— Se o assunto for urgente, posso começar agora mesmo — disse o homem.

 

— É urgente, sim.

 

Depois da saída do funcionário, Victor deixou-se ficar perto do terminal do computador. Tinha uma ideia. com todo o cuidado, marcou o nome de uma outra ficha: BEBÉ FRANK. Hesitou durante uns instantes, receoso daquilo que poderia vir a aparecer — ou a não aparecer. Por fim, carregou na tecla final e susteve a respiração. Infelizmente, os seus receios tinham fundamento: a ficha de V J desaparecera!

 

Sentou-se outra vez. O suor inundava-lhe a testa. O desaparecimento de três fichas relacionadas, mas sem referências comuns, não podia ficar a dever-se ao acaso. De repente, Victor tornou a ver o rosto alterado de Hurst e pareceu ouvir a ameaça que este lhe fizera: “Você não é o ’santinho’ que parece... Você não está imune.”

 

Levantou-se, saiu de junto do computador, e foi até à janela. No céu acumulavam-se nuvens vindas de leste. Já não faltava muito para que chovesse ou nevasse. Deixou-se ali ficar durante alguns minutos, perguntando a si mesmo se Hurst teria alguma coisa a ver com o desaparecimento das fichas. Será que suspeitava de alguma coisa? Se assim fosse, talvez que isco constituísse a base para as suas vagas ameaças. Abanou a cabeça. Não havia maneira de Hurst saber da existência das fichas. Ninguém sabia nada a respeito delas. Ninguém!

 

SEGUNDA-FEIRA À NOITE

Marsha olhou para o marido e para o filho, que se encontravam sentados no outro lado da mesa. VJ estava absorto na leitura de um livro qualquer a respeito dos buracos negros e quase que se esquecia de comer. Ela tinha vontade de o mandar parar de ler, mas Victor chegara a casa muito maldisposto e não queria dizer nada que piorasse a situação. Para além do mais, estava preocupada com o filho. Gostava tanto dele que mal podia pensar que ele talvez estivesse perturbado. Contudo, também sabia que, a menos que enfrentasse a realidade, não seria capaz de o ajudar. Parecia que passara todo o dia na firma, quase sempre sozinho, pois, e tal como o marido dissera quando fora interrogado a esse respeito, não o vira durante toda a tarde.

 

Exactamente como se tivesse compreendido que a mãe o estava a observar, pousou o livro e levou o prato para o lava-louça. À medida que se levantava, os seus profundos olhos azuis encontraram-se com os de Marsha. Neles não havia qualquer vestígio de calor e sentimento, apenas uma luz brilhante que a fazia sentir como se estivesse debaixo de um microscópio.

 

— Obrigado pelo jantar — agradeceu ele, mecanicamente. Ficou a ouvir os passos do filho ecoarem pela casa enquanto

 

ele subia a escada das traseiras. Lá fora, o vento começava a assobiar, e ela espreitou pela janela. Através da réstea de luz que se escapava da garagem, foi capaz de se aperceber que a chuva dera lugar à neve. Estremeceu, mas não devido à paisagem invernosa.

 

— Acho que não tenho assim muita fome — acabou Victor por dizer. Por aquilo que se podia lembrar, tratava-se da primeira vez que ele iniciava uma conversa desde que Marsha chegara a casa, depois de ter concluído a ronda que fazia pelos hospitais.

 

— Estás preocupado com alguma coisa? — perguntou a mulher. — Queres falar sobre isso?

 

— Não preciso que te armes em psiquiatra comigo — respondeu ele com maus modos.

 

Marsha sabia que não tinha razões para ficar ofendida. Não se estava a armar em psiquiatra. Contudo, achou que talvez fosse melhor portar-se como as pessoas crescidas e não forçar as coisas. Victor não iria estar muito tempo sem lhe contar o que se passava.

 

— Bom, existe algo que me preocupa — disse ela. Acabara de decidir que iria ser honesta. O marido olhou-a. Conhecendo-o como o conhecia, partia do princípio de que ele já se devia estar a sentir culpado por ter falado com tanta rudeza. — Hoje li uma série de artigos — prosseguiu Marsha. — Eram a respeito dos possíveis efeitos que o facto de uma criança passar muito tempo sem os pais e ser criada por amas e em creches pode provocar. Algumas das coisas que descobri podem muito bem aplicar-se ao VJ. Acho que não teria sido má ideia se eu tivesse tirado uma licença quando o nosso filho era mais pequeno e pudesse ter passado mais tempo com ele.

 

Palavras não eram ditas e já o rosto de Victor se mostrava irritado.

 

— Espera aí — atalhou, com maus modos, ao mesmo tempo que levantava ambas as mãos. — Acho que não estou interessado em ouvir o resto. Pela parte que me toca, o VJ está óptimo e não quero ouvir uma série de disparates psiquiátricos a tentarem provar-me o contrário.

 

— Mas que raio de conversa é essa?! —exclamou ela, sentindo que estava prestes a perder a paciência.

 

— Poupa-me, por amor de Deus. —Dito isto, pegou no prato do jantar e começou a despejá-lo no caixote do lixo. — Não estou com paciência para este tipo de coisas.

 

— Bom, e estás com paciência para quê?

 

Victor respirou fundo e espreitou pela janela da cozinha.

 

— Acho que vou dar uma volta.

 

— Com este tempo? A neve está fria e o chão escorregadio. Acho que estás preocupado com qualquer coisa e não estás em condições de falar sobre o assunto.

 

Ele voltou-se para a mulher.

 

— Sou assim tão óbvio? Marsha soltou uma gargalhada.

 

— É doloroso ver-te sofrer. Por favor, diz-me o que se passa. Sou tua mulher.

 

Victor encolheu os ombros e voltou para a mesa. Sentou-se, e, com os cotovelos apoiados na mesa, começou a brincar com os dedos.

 

— Por acaso, há mesmo uma coisa que me preocupa — acabou por admitir.

 

— Ainda bem que os meus clientes não têm tantos problemas para se abrir. — Estendeu a mão, e, com todo o carinho, tocou-lhe no braço.

 

Ele levantou-se e foi até perto das escadas das traseiras. Ficou à escuta durante breves segundos, ao fim dos quais fechou a porta e voltou para a mesa. Sentou-se e inclinou-se para a mulher.

 

— Quero que o VJ faça um exame neurológico completo, tal como aconteceu há sete anos, quando o seu nível de inteligência caiu.

 

Marsha não respondeu. Preocupar-se com a forma como a personalidade do rapaz se desenvolvia era uma coisa, mas quando as inquietações se prendiam com a sua condição física, aí tudo mudava de figura. A simples referência ao exame era já de si chocante, bem assim como a menção à baixa de inteligência do rapaz.

 

— Ainda te lembras de quando o quoeficiente de inteligência dele caiu de uma forma tão dramática, devia o nosso filho ter três anos e meio? — inquiriu Victor.

 

— Claro que me lembro. — Ficou a observar o marido com o máximo da atenção. Por que razão lhe estaria ele a dizer isto? Devia saber que este tipo de conversa só iria resultar num aumento das preocupações que ela já sentia.

 

— Quero que ele repita o mesmo tipo de exame — voltou Victor a dizer.

 

— Tu sabes mais do que aquilo que me queres contar! — exclamou ela, alarmada. — Que se passa? Há alguma coisa de errada com o nosso filho?

 

— Não! Tal como já te disse, o VJ está bem. Eu só me limito a querer ter a certeza e só me sentirei em segurança depois de ele ter feito os exames. É só isso.

 

— E eu quero saber a razão que te leva a querer fazer os exames neste preciso momento.

 

— E eu já te disse porquê — respondeu ele, elevando a voz devido à raiva.

 

— E tu queres que eu deixe o nosso filho submeter-se a um exame neurológico sem que me dês qualquer razão para isso? Nem penses! Não vou deixar que o miúdo tenha de fazer todas aquelas radiografias e coisas parecidas sem que me digas porquê.

 

— Raios, Marsha! — disse ele, rangendo os dentes.

 

— Isso digo eu — replicou a mulher. — Victor, tu estás a esconder-me alguma coisa e eu não gosto disso. Estás a tentar passar por cima dos meus sentimentos. A menos que me dês uma razão plausível para o facto, o VJ não vai fazer testes nenhuns, e, acredita-me, a minha opinião é bastante importante. Por isso, só tens uma solução: ou me dizes o que se passa ou esquece aquilo em que estás a pensar.

 

Marsha recostou-se na cadeira e respirou fundo, sustendo a respiração durante alguns momentos, antes de voltar a expirar. Visivelmente irritado, o marido ficou a olhá-la, mas a força que dela exalava começou a dobrá-lo. A sua posição era bastante clara e ele sabia por experiência própria que nada a faria mudar de ideias. Depois de um minuto de silêncio, o seu olhar principiou a ceder. Finalmente, acabou por olhar para as mãos. O relógio antigo que estava na sala bateu as oito horas.

 

— Está bem — acabou ele por dizer, completamente esgotado. — vou contar-te toda a história. — Recostou-se e passou as mãos pelos cabelos. Fitou Marsha nos olhos durante breves segundos e depois desviou o olhar para o tecto, tal como um rapazinho apanhado num acto proibido.

 

Ela sentiu-se cada vez mais impaciente e preocupada com aquilo que estava prestes a ouvir.

 

— O pior é que eu não sei por onde devo começar — anunciou ele.

 

— E que tal pelo princípio? — Era de novo Marsha, mostrando mais uma vez a sua impaciência.

 

Voltaram a encarar-se. Victor guardara só para si o segredo que rodeava a concepção de V J durante dez anos. Ao encarar o rosto aberto e honesto da mulher, perguntou-se se esta, depois de ter ouvido a verdade, alguma vez o perdoaria.

 

— Por favor! Por que razão não me contas tudo? Baixou os olhos.

 

— Por muitas razões — respondeu. — Uma prende-se com o facto de que talvez não me acredites. Para falar com franqueza, é melhor irmos até ao meu laboratório.

 

— Agora? Estás a falar a sério?

 

— Se queres mesmo ouvir a verdade...

 

Seguiu-se uma breve pausa. Kissa surpreendeu Marsha quando saltou para o seu colo. Esquecera-se de lhe dar de comer.

 

— Está bem — acabou por dizer. — Deixa-me só dar qualquer coisa à gata e dizer umas palavras ao VJ. Estou pronta dentro de quinze minutos.

 

VJ ouviu passos avançarem no corredor em direcção ao seu quarto. Sem pressas, fechou a capa do álbum de selos que tinha na mão e enfiou-o na prateleira. Os pais nada sabiam a respeito de filatelia e por isso nunca iriam saber para o que estavam a olhar. No entanto, não havia qualquer razão para correr riscos. Não queria que eles soubessem o quanto a sua colecção crescera e se valorizara. Quando lhes pedira para abrir uma caderneta de poupança, os pais haviam encarado o facto como mais um capricho infantil e VJ não via qualquer razão para que pensassem de outra maneira.

 

— Que estás a fazer, querido? — perguntou a mãe assim que apareceu à porta.

 

O rapaz fez beicinho.

 

— Nada.

 

Sabia que ela estava aborrecida, mas não podia fazer nada a esse respeito. Desde a mais tenra idade que se apercebera de que ela queria dele uma determinada coisa, algo que os outros filhos davam às mães e que ele não lhe podia dar. Por vezes, tal como agora, sentia pena.

 

— Por que razão é que não convidas o Richie para vir cá a casa numa destas noites?

 

— Talvez o faça.

 

— Seria uma boa ideia. Gostava de o conhecer. V J acenou.

 

Aliviada, ela sorriu.

 

— O teu pai e eu vamos sair durante alguns instantes. Não te importas, pois não?

 

— Claro que não.

 

— Não nos vamos demorar muito.

 

— Por mim, tudo bem.

 

Cinco minutos mais tarde, à janela do quarto, VJ viu o carro afastar-se na estrada. Deixou-se ficar a olhar lá para fora durante um bocado. Perguntou-se se faria bem em se preocupar. Ao fim e ao cabo, não era costume os pais saírem à noite durante a semana. Encolheu os ombros. Se alguma coisa estava mal, não tardaria a sabê-lo.

 

Afastou-se da janela, tirou o álbum de selos da prateleira e voltou a entregar-se à tarefa de pôr em ordem uma série de selos americanos dos primórdios, os quais acabara de receber.

 

O telefone estava a tocar há já algum tempo quando VJ ouviu. Finalmente, lembrando-se que os pais não estavam, levantou-se, desceu as escadas e entrou no escritório. Pegou no auscultador e atendeu a chamada.

 

— Por favor, podia chamar o Dr. Frank — pediu uma voz. Esta parecia abafada, tal como se estivessem a falar longe dali.

 

— O Dr. Frank não está — disse ele com toda a educação. — Quer deixar algum recado?

 

— A que horas é que ele volta?

 

— Dentro de uma hora.

 

— Estou a falar com o filho?

 

— Sim.

 

— Talvez seja melhor que seja o menino a dizer-lhe. Diga ao seu pai que, a menos que reconsidere e seja razoável, a vida dele tornar-se-á cada vez pior. Percebeu?

 

— Quem fala — exigiu ele saber.

 

— Limite-se a dar a mensagem ao seu pai. Ele sabe quem é.

 

— Quem fala? — repetiu VJ, começando a sentir medo. Contudo, já tinham desligado.

 

Devagar, VJ pousou o auscultador. Mal o fez, apercebeu-se que estava sozinho em casa. Deixou-se ficar à escuta durante um instante. Nunca antes se apercebera da quantidade de ruídos que podem existir numa casa vazia. O radiador que estava no canto sohou um assobio. De um outro ponto qualquer ouviu-se um som abafado, talvez proveniente de um dos tubos de aquecimento central. Lá fora, o vento atirava a neve de encontro à janela.

 

Voltou a pegar no telefone, desta vez para fazer uma chamada. Quando uma voz masculina lhe respondeu, disse a essa pessoa que estava assustado. Depois de lhe terem garantido que estava tudo debaixo de controlo, o rapaz desligou o telefone. Sentia-se melhor, mas, como o seguro morreu de velho, desceu as escadas e verificou todas as portas e janelas, certificando-se de que estava tudo bem fechado. Não chegou a descer à cave, mas trancou a porta.

 

De volta ao quarto, tentou ocupar-se com o computador. Gostaria que a gata estivesse ali com ele, mas não se deu ao trabalho de a ir procurar. Apesar de VJ fazer todos os possíveis para que a mãe não reparasse, o certo é que Kíssa tinha medo dele. Havia tantas coisas que tinha de esconder da mãe. Tudo isso era esgotante! No entanto, ele também não escolhera ser como era.

 

Programou o computador para o Pac-Man e tentou concentrar-se.

 

As luzes fluorescentes estremeceram e depois encheram a sala com uma luz crua. Victor desviou-se, deixando a mulher entrar primeiro no escritório. Ela já ali estivera algumas vezes, mas sempre durante o dia. Ficou surpreendida por ver como aquele lugar era sinistro à noite, quando não havia ali ninguém para lhe aliviar a aparência estéril, O compartimento tinha quinze metros de comprimento por nove de largura e as paredes estavam cheias de prateleiras. No centro da divisão estava uma mesa repleta de equipamento científico, sendo cada um dos instrumentos mais exótico do que aquele que lhe estava ao lado. Viam-se grandes quantidades de mostradores, válvulas de raios catódicos, tubos de ensaio e labirintos de dispositivos electrónicos.

 

A sala principal dava para muitas portas. Victor guiou Marsha através de uma área em forma de L, a qual se encontrava repleta de mesas de dissecação.

 

Ela olhou para os escalpelos e para todos aqueles instrumentos horríveis e estremeceu. Para lá daquele quarto, depois de uma porta de arame, estava a sala dos animais, e, partindo do ponto onde se encontrava, Marsha podia ver os cães e os macacos a andarem de um lado para o outro nas jaulas. Desviou o olhar. Tratava-se de uma das componentes da pesquisa científica em que ela preferia não pensar.

 

— Por aqui — disse Victor, levando-a até mesmo ao fundo do L, onde a parede era feita de vidro.

 

O marido carregou num interruptor e as luzes que estavam por detrás do vidro acenderam-se. Marsha ficou surpreendida por ver uma grande quantidade de aquários de grandes dimensões, cada um deles contendo dúzias de criaturas marítimas de aspecto estranho. Pareciam caracóis sem casca.

 

Ele pegou numa pequena escada. Depois de ter procurado numa série de tanques, pegou num prato de dissecação e só depois subiu a escada. com uma rede, apanhou duas criaturas, cada uma de seu tanque.

 

— Isto tudo é mesmo necessário? — perguntou Marsha, tentando compreender em que medida aquelas criaturas horrorosas tinham a ver com a preocupação de Victor no que respeitava à saúde do filho.

 

Não obteve resposta. Viu o marido descer a escada. Deitou um longo olhar às criaturas. Tinham cerca de dez polegadas de comprimento, apresentavam uma coloração acastanhada e a pele era gelatinosa e escorregadia. A náusea fê-la estremecer. Detestava este tipo de coisas. Esta era mesmo uma das razões porque escolhera a psiquiatria. Tratava-se de um trabalho limpo, organizado, muito humano.

 

— Victor! — exclamou, ao vê-lo empalar as criaturas no fundo coberto de cera do prato de dissecação, ao mesmo tempo que lhes estendia as barbatanas ou lá que coisa era aquela. — Por que razão não te limitas a dizer-me o que se passa?

 

— Porque tu não ias acreditar. Tem paciência e espeta mais um bocadinho. — Pegou num bisturi e colocou-lhe uma lâmina afiada.

 

Enquanto o marido abria ambos os animais, Marsha mantinha a cabeça desviada.

 

— Estas criaturas chamam-se aplasias — explicou ele, tentando dissimular o nervosismo através de uma aproximação científica. — São bastante usadas na investigação de células nervosas. — Pegou numa tesoura e começou a cortar à esquerda e à direita.

 

— Pronto, já removi o gânglio abdominal de ambas as aplasias. Olhou para o marido. Este segurava um prato liso cheio de um

 

líquido bastante claro. Lá dentro, a flutuar à superfície, estavam dois minúsculos pedaços de tecido celular.

 

— Agora, vem até aqui ao microscópio — pediu ele.

 

— E quanto a estas pobres criaturas? — inquiriu Marsha, forçando-se a olhar para dentro do prato. Os animais pareciam estar a lutar contra os alfinetes que os prendiam ao fundo do recipiente.

 

— Os empregados limpam isso amanhã de manhã. — Era óbvio que Victor ignorava o verdadeiro sentido da pergunta. Dito isto, acendeu a luz do microscópio.

 

Deitando um último olhar às aplasias, Marsha juntou-se a ele, que, por sua vez, estava bastante ocupado a ajustar o foco do aparelho.

 

Ela inclinou-se e deu uma olhadela. O gânglio tinha a forma de um H e a linha horizontal lembrava um saco transparente cheio de berlindes. Não restavam dúvidas de que os braços do H eram fibras nervosas. Manejando um ponteiro, Victor disse à mulher para contar as células nervosas ou neurónios, à medida que as ia indicando.

 

Ela fez o que ele lhe mandava.

 

— Óptimo — disse ele. — Vamos agora examinar o outro gânglio. O campo visual sofreu uma alteração e acabou por surgir um outro H semelhante ao primeiro.

 

— Volta a contar — pediu ele.

 

— Este tem um número de neurónios duas vezes superior ao primeiro.

 

— Precisamente! — exclamou Victor, endireitando-se e pondo-se de pé. Começou a andar de um lado para o outro. O seu rosto apresentava uma expressão estranha e excitada e Marsha começou a sentir os primeiros indícios de medo. — Há cerca de doze anos, comecei a interessar-me pelo número de células nervosas das aplasias normais. Nessa altura, e quase como toda a gente, acrescente-se, sabia que a proliferação e diferenciação das células nervosas se verificava durante as primeiras fases do crescimento embrionário. Dado que as aplasias eram muito menos complicadas que os outros animais superiores, consegui isolar a proteína responsável por aquele processo, à qual dei o nome de factor do crescimento nervoso, ou FCN. Estás a seguir o meu raciocínio? — Parou de andar de um lado para o outro e fitou-a de frente.

 

— Sim — respondeu ela, devolvendo-lhe o olhar.

 

Victor parecia estar a transformar-se ali mesmo, defronte dos seus olhos. Havia algo de messiânico no seu aspecto. De repente, começou a sentir-se incomodada. Algo lhe dizia que sabia até onde esta palestra aparentemente inofensiva queria chegar.

 

O marido recomeçou a andar de um lado para o outro à medida que a excitação de que estava possuído aumentava.

 

— Servi-me da engenharia genética para reproduzir a proteína e isolar o gene responsável. Então, para terminar... —Fez uma paragem em frente da mulher. Os seus olhos faiscavam. — Peguei num óvulo fertilizado ou zigote de aplasia e depois de ter provocado uma   no seu DNA inseri-lhe o FCN, junto com um promotor. O resultado?

 

— Um maior número de gânglios nervosos — adiantou-se ela.

 

— Exactamente — retorquiu o marido, bastante excitado. — E, mais importante ainda, a faculdade de poder passar esta característica aos seus descendentes. Agora talvez seja melhor voltarmos à sala principal. — Estendeu-lhe a mão e arrastou-a atrás de si.

 

Sem nada dizer, ela seguiu-o até junto de um projector de slides, onde Victor colocou vários diapositivos representando secções microscópicas do cérebro de vários ratos. Mesmo sem se dar ao trabalho de contar, Marsha pôde verificar que uma das fotografias exibia um maior número de células nervosas que a outra. Ainda não conseguira balbuciar fosse o que fosse e já ele a conduzia até à sala onde estavam os animais. Assim que passaram a porta, Victor calçou um par de luvas de pele bastante grossas.

 

Ela fazia os possíveis por não respirar. Aquele lugar deitava um cheiro semelhante ao de um jardim zoológico pouco limpo. Lá dentro estavam centenas de gaiolas contendo macacos, gatos e ratos. Pararam em frente a estes últimos.

 

Quando viu todos aqueles narizes cor-de-rosa e um senwiúmero de caudas peladas, Marsha estremeceu involuntariamente.

 

Victor estava mesmo em frente a uma das gaiolas e acabou por destrancar o fecho. Meteu uma mão lá dentro e agarrou um rato de grandes dimensões, o qual lhe começou a morder os dedos protegidos pelas luvas.

 

— Calma, Charlie! — pediu ele. Levou o animal até junto de uma mesa com um tampo de vidro, levantou uma parte deste e deixou cair o rato naquilo que parecia ser um labirinto em miniatura. O bicho estava encurralado frente ao que dava ideia de ser o portão que fazia as vezes de ponto de partida.

 

— Repara bem — disse, dirigindo-se à mulher, ao mesmo tempo que levantava o portão.

 

Depois de uma pausa que demorou apenas alguns segundos, o rato penetrou no labirinto. Enganando-se apenas algumas vezes, o animal atingiu a saída e recebeu a recompensa que lhe era devida.

 

— Foi depressa, não — perguntou, exibindo um sorriso satisfeito. — Este é um dos meus ratos “espertos”. Trata-se de um daqueles em que inseri o gene FCN. Agora, presta atenção.

 

Através de alguns ajustes que levou a cabo no aparelho, o rato voltou à posição de partida, mas desta vez numa secção que não tinha acesso ao labirinto. Victor foi de novo até junto das gaiolas e pegou num outro rato. Deixou-o cair dentro da mesa, de forma a que os dois animais ficassem voltados um para o outro, apenas separados por uma rede de arame.

 

Depois de alguns minutos de espera, abriu o portão, e o segundo rato atravessou o labirinto sem se enganar uma única vez.

 

— Sabes a que foi que acabaste de assistir? — perguntou Victor. Marsha abanou a cabeça.

 

— Comunicação entre ratos! — exclamou. — Consegui fazer que estes animais explicassem o labirinto uns aos outros. É verdadeiramente inacreditável.

 

— Tenho a certeza que sim — concordou ela, se bem que com muito menos entusiasmo.

 

— Apliquei os meus estudos a respeito da “proliferação de neurónios” em centenas de ratos — continuou Victor.

 

Sem saber bem o que fazia, ela ia acenando com a cabeça.

 

— Também os apliquei em cinquenta cães, seis vacas e uma ovelha — acrescentou o marido. — Tive medo de os tentar com os macacos. Receei que as coisas resultassem bem de mais. Não conseguia tirar da cabeça as imagens do filme O Planeta dos Macacos. — Soltou uma gargalhada que ecoou pelas paredes da sala destinada aos animais.

 

Ela não se riu. Em vez disso, estremeceu.

 

— Exactamente, até onde queres tu chegar? — inquiriu, muito embora a sua imaginação lhe estivesse constantemente a fornecer respostas perturbadoras.

 

Victor não a conseguia encarar.

 

— Por favor! — pediu Marsha, as lágrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos.

 

— Estou apenas a tentar fornecer-te o pano de fundo para que possas compreender o que se passou — foi a resposta que o marido lhe deu, muito embora soubesse à partida que Marsha seria incapaz de o fazer. — Acredita, não planeei o que aconteceu a seguir. Quando começaste a dizer que querias ter outro filho, eu tinha acabado de realizar a tal experiência com a ovelha. Lembras-te de quando decidimos recorrer à Fertility, Inc.?

 

Muito embora as lágrimas lhe começassem a rolar pelas faces, ela ainda teve forças para acenar.

 

— Bom, podemos dizer que lhes forneceste uma boa quantidade de óvulos. Tiraram-te oito.

 

Marsha sentia-se vacilar. Agarrando-se a uma das arestas do labirinto, conseguiu endireitar-se.

 

— Servindo-me dos meus próprios espermatozóides, eu mesmo procedi à fertilização in vitro — continuou ele. — Tu sempre o soubeste. Aquilo que nunca te disse foi que voltei a trazer os óvulos já fertilizados aqui para o laboratório.

 

Ela deixou de se apoiar à mesa e cambaleou até junto de um banco. Queria desmaiar. Sentou-se pesadamente. Tinha a sensação de que não seria capaz de ouvir o resto da história de Victor. Contudo, agora que começara, sabia que, gostasse ou não gostasse, nada seria capaz de fazer o marido parar. Tinha a sensação de que Victor achava poder minimizar o enorme pecado que cometera se confinasse tudo a uma descrição puramente científica. Era mesmo este o homem com quem ela se casara?

 

— Quando aqui voltei com os zigotes — continuou ele —, escolhi uma sequência de DNA no cromossoma seis e procedi a uma   pontual. Depois, servindo-me de uma série de técnicas relacionadas com a microinjecção e também de um vector retroviral, inseri não só o FCN, mas também uma série de promotores, incluindo um antibiótico chamado cefaloclor. Fez uma breve pausa, mas não levantou os olhos. — Foi por isso que insisti para que Mary Millmar” tomasse este antibiótico desde a segunda até à oitava semana de gravidez. Era ele que fazia que o gene continuasse a trabalhar, produzindo o tal factor de crescimento nervoso. Por fim, Victor acabou por levantar os olhos. — Deus é testemunha de que, quando fiz tudo isto, estava convencido de que era uma boa ideia. Só mais tarde é que me apercebi de que estava errado. Vivi aterrorizado até ao momento em que o V J nasceu.

 

Marsha foi invadida por uma súbita raiva. Levantou-se de um salto começou a bater no marido com ambos os punhos. Ele não fez qualquer tentativa para se proteger e esperou que ela baixasse as mãos e ficasse à sua frente, a chorar baixinho. Quando isto aconteceu, tentou abraçá-la, mas Marsha não estava disposta a deixar que ele a tocasse. Dirigiu-se para a sala principal do laboratório e sentou-se. Victor seguiu-a, mas ela recusava-se a olhá-lo.

 

— Desculpa — pediu ele mais uma vez. — Acredita, nunca teria feito o que fiz se não estivesse certo que o resultado seria positivo. Nunca houve problemas com os animais. Para além do mais, a ideia de ter um filho superinteligente era algo que me seduzia... — Calou-se.

 

— Não consigo acreditar que tenhas feito uma coisa tão terrível — soluçou ela.

 

— No passado, os cientistas faziam experiências consigo mesmos — retorquiu, sabendo que isto não era desculpa.

 

— Neles mesmos! — gritou Marsha. — Não em criamças inocentes. — Não conseguia parar de chorar. Contudo, apesar do choque que sentia, ainda havia lugar para o medo. com alguma dificuldade, fez os possíveis para se controlar. O marido fizera uma coisa terrível. No entanto, o que não tem remédio, remediado está. Não podia fazer mais nada. O problema residia agora no modo de agir face à realidade, e os seus pensamentos voltaram-se para o filho, aquele garoto a quem tanto queria, — Tudo bem — conseguiu dizer, abafando as lágrimas que ainda tinha para chorar. — Agora já sei tudo. No entanto, o que ainda não me contaste foi a razão que te levou a querer que o nosso filho faça um outro exame neurológico. De que é que tens medo? Achas que os níveis de inteligência do VJ voltaram a cair?

 

À medida que falava, os pensamentos fizeram-na recuar seis anos e meio. Ainda viviam na pequena casa rural que lhes pertencia, e tanto David como Janice estavam de saúde. Fora uma época feliz, repleta de admiração pela incrível inteligência do garoto. com apenas três anos, VJ conseguia ler quase tudo e fixava a maior parte das informações que obtinha. Por aquilo que conseguira apurar, o coeficiente de inteligência do filho rondava os duzentos e cinquenta pontos.

 

Então, subitamente, tudo mudou. Dirigira-se à firma para ir buscar VJ à creche, para onde ele fora levado depois de passar a manhã no Crocker Preschool. Soube que havia qualquer coisa’ de errado quando viu a cara da directora.

 

Pauline Spaulding era uma mulher maravilhosa. Fora professora de instrução primária e também monitora de ginástica aeróbica até ao dia em que descobrira que a sua vocação estava relacionada com as crianças mais pequenas. Adorava o trabalho que fazia e as crianças, e estas pagavam-lhe da mesma moeda devido ao entusiasmo sem fronteiras por si demonstrado. Contudo, naquele dia parecia estar preocupada.

 

— Passa-se alguma coisa com o VJ — disse, com toda a franqueza.

 

— Ele está doente? Onde é que o posso encontrar?

 

— Está aqui — respondeu Pauline. — E também não está doente. De facto, a sua saúde está óptima. Trata-se de outra coisa.

 

— Diga-me o que se passa! — implorou Marsha.

 

— Tudo começou depois do almoço — explicou a outra. —Sempre que os outros miúdos vão dormir a sesta, o VJ costuma ir para a sala de jogos jogar xadrez com o computador. Há já algum tempo que as coisas se passam desta maneira.

 

— Eu sei. — Depois de o filho lhe ter dito que não precisava de descansar e que detestava perder tempo, Marsha deixara de o obrigar a dormir a sesta.

 

— Na altura, não estava ninguém na sala de jogos — explicou Pauline. —No entanto, de repente, ouvimos um grande estrondo. Quando lá chegámos, o VJ estava a bater no computador com uma cadeira.

 

— Meu Deus! — Os acessos de mau génio não faziam parte do comportamento do filho. —Ele deu alguma explicação para o facto? — perguntou.

 

— Dr.a Frank, ele estava a chorar.

 

— O VJ? A chorar? — Marsha estava espantada. O garoto nunca chorava.

 

— Estava a chorar como qualquer criança de três anos e meio — respondeu a directora.

 

— Que é que me está a tentar dizer?

 

— Aparentemente, o VJ destruiu o computador porque deixou de saber trabalhar com ele.

 

— Isso é um absurdo — retorquiu Marsha. Desde os dois anos e meio que o rapaz brincava com o computador que havia lá em casa.

 

— Espere — pediu Pauline. —Para o acalmar, entreguei-lhe o livro que ele andava a ler, aquele a respeito dos dinossauros. O seu filho rasgou-o.

 

Marsha correu até à sala de jogos. Só lá estavam três crianças. O filho estava sentado a uma das mesas, a pintar um livro próprio para o efeito, exactamente como qualquer criança da sua idade. Quando a viu, deixou cair o lápis de cor e correu para ela. Começou a chorar, dizendo que lhe doía a cabeça.

 

Ela abraçou-o.

 

— É verdade que rasgaste o teu livro sobre os dinossauros? — perguntou.

 

VJ baixou os olhos.

 

— Sim.

 

— Porquê?

 

O garoto voltou a encará-la e respondeu:

 

— Porque já não sei ler.

 

Durante os dias que se seguiram, o rapazinho foi submetido a uma série de exames neurológicos com vista a detectar qualquer possível problema. Os resultados foram negativos, mas quando Marsha repetiu uma série de testes psiquiátricos destinados a medir a inteligência, os resultados foram bastante diferentes. O coeficiente de inteligência de VJ descera para cento e trinta. Apesar de continuar a ser elevado, deixara de se assemelhar ao de um génio.

 

Ao jurar que não havia nada de errado com a inteligência do filho, Victor trouxe-a de volta ao presente.

 

— Nesse caso, qual a razão para querermos repetir os exames?

 

— Porque... porque pensei que talvez fosse uma boa ideia.

 

— Estou casada contigo há dezasseis anos — disse Marsha, depois de uma pausa. — Sei perfeitamente que não me estás a dizer a verdade. — Custava-lhe bastante partir do princípio que havia algo ainda mais terrível para descobrir do que aquilo que o marido já lhe contara.

 

Victor passou uma das mãos pelos cabelos espessos.

 

— É por causa daquilo que aconteceu aos bebés Hobbs e Murray.

 

— Quem são eles?

 

— Tanto William Hobbs como Horace Murray são funcionários da firma — respondeu Victor.

 

— Não me digas que também andaste a fazer experiências com os filhos deles?!

 

— Pior ainda — admitiu ele. Ambos os casais eram estéreis. Precisavam de dadores. Como congelara os outros zigotes que nos pertenciam, e dado que se tratava de duas famílias excelentes, usei dois deles.

 

— Queres tu dizer com isco que estes bebés são geneticamente meus? — perguntou ela como se não acreditasse no que ouvia.

 

— Nossos — corrigiu o marido.

 

— Meu Deus! — exclamou Marsha, abalada com mais esta revelação. Por um momento, ficou sem saber o que dizer, fazer ou mesmo sentir.

 

— É a mesmíssima coisa que doar esperma e óvulos — afirmou ele. — Mas, dado que a união já está feita, é bastante mais eficiente.

 

— Talvez que para ti não seja diferente, isto se tivermos em conta o que fizeste ao nosso filho. No entanto, para mim é completamente diferente. Não consigo conceber a ideia de ver os meus filhos serem criados por estranhos. Já agora, o que é feito dos outros cinco zigotes? Onde é que eles estão?

 

Exausto, Victor levantou-se e atravessou a sala até chegar perto da bancada central. Parou junto a um qualquer instrumento de metal parecido com uma máquina de lavar roupa. Uma série de mangueiras de borracha ligavam a máquina a um enorme cilindro contendo nitrogénio líquido.

 

— Estão aqui. Congelados e em suspensão. Queres dar uma olhadela?

 

Ela fez que não com a cabeça. Estava completamente siderada. Na qualidade de médica, sabia da existência deste tipo de tecnologia, mas, das poucas vezes em que nela pensava, as coisas apresentavam uma feição bastante abstracta. Nunca pensou poder estar envolvida nelas a título pessoal.

 

— Não estava a pensar contar-te tudo isto de uma vez — disse ele—, mas agora já sabes a história toda. Quero que o nosso filho faça um exame neurológico completo para ter a certeza de que não há nada de errado com ele.

 

— Porquê? — perguntou Marsha com amargura. — Aconteceu alguma coisa às outras crianças?

 

— Adoeceram.

 

— Adoeceram como? Adoeceram com o quê?

 

— Ficaram bastante doentes. Morreram de edema cerebral. As razões para o facto são ainda desconhecidas.

 

Marsha sentiu-se dominada por uma grande tontura. Desta vez, e para evitar o desmaio, teve de baixar a cabeça. De cada vez que conseguia recuperar o controlo da situação, Victor revelava-lhe algo pior que o que atrás dissera.

 

— E foi de repente? — acabou ela por perguntar, levantando a cabeça. — Não estariam doentes há já algum tempo?

 

— Não, aconteceu de repente.

 

— Que idade é que eles tinham?

 

— Cerca de três anos.

 

Sem mais nem menos, uma das impressoras computadorizadas deu sinais de vida, emitindo uma série de dados. Depois, um dos frigoríficos começou a funcionar, fazendo um ruído prolongado. Marsha ficou com a sensação de que o laboratório tinha vida própria e que não precisava dos seres humanos para nada.

 

— As crianças que morreram tinham o mesmo FCN que o VJ? Victor fez que sim com a cabeça.

 

— A idade deles era sensivelmente a mesma que o VJ tinha quando se verificou aquela queda de inteligência — comentou ela.

 

— Mais ou menos. É precisamente por isso que quero fazer os exames, para ficar com a certeza de que o nosso filho não está a “chocar” qualquer problema. No entanto, tenho a certeza de que está tudo bem com ele. Se não se tivesse dado o caso dos bebés Hobbs e Murray, nem sequer teria pensado em o mandar examinar. Confia em mim!

 

Se Marsha estivesse em condições de soltar uma gargalhada, era isso que teria feito. Victor acabara de destruir a sua vida e pedia-lhe para ter confiança nele. O motivo que o levara a fazer experiências no próprio filho estava para lá do seu entendimento. No entanto, tratava-se de um facto que não podia mudar. O seu dever era preocupar-se com o presente.

 

— Achas que há hipóteses de vir a acontecer com o VJ o mesmo que aconteceu aos outros? — perguntou, não sem algumas hesitações.

 

— Duvido. Principalmente quando existe uma diferença de idades de sete anos. Penso que o VJ já ultrapassou o ponto crítico, que se deu quando os seus níveis de inteligência baixaram. Talvez que o que aconteceu às outras crianças se tenha ficado a dever ao facto de terem sido congeladas na forma de zigote — disse, mas, ao ver a expressão facial de Marsha, parou. Ela não estava interessada nos aspectos científicos da tragédia.

 

— E quanto à queda do coeficiente de inteligência do nosso filho? — inquiriu ela. —Será que se tratou do mesmo problema, se bem que minimizado? Não nos podemos esquecer de que a idade dele era sensivelmente a mesma destas crianças.

 

— É possível — respondeu o marido —, mas não sei ao certo, Marsha deixou os olhos vaguear pelo laboratório, observando todo aquele equipamento futurista a uma luz diferente. A pesquisa científica podia traduzir-se em esperança para as gerações futuras desde que se limitasse a curar doenças, mas possuía um outro potencial bastante mais perturbador.

 

— Quero ir-me embora! —exclamou ela de repente, ao mesmo tempo que se punha de pé. Os seus movimentos bruscos fizeram que a cadeira em que estivera sentada fosse a girar até ao meio da sala, acabando por atingir o congelador onde os zigotes estavam guardados. Victor agarrou-a e voltou a colocá-la no seu devido lugar. Nessa altura, já Marsha estava ao pé da porta, dirigindo-se para o corredor. Ele fechou a porta o mais depressa que podia e correu atrás dela. As portas do elevador já quase se tinham fechado quando Victor conseguiu entrar. Magoada, Marsha afastou-se dele. No entanto, o sentimento que a dominava era de preocupação. Queria chegar a casa e voltar para junto do filho.

 

Em silêncio, abandonaram o edifício. Victor foi suficientemente inteligente para não a tentar fazer falar. A neve começava a endurecer e foram obrigados a andar com cuidado para não caírem. Marsha sabia perfeitamente que os olhos do marido estavam presos nela. Mesmo assim, continuou calada. Só quebrou o silêncio depois de terem passado o Merrimack.

 

— Julgava que fazer experiências com embriões humanos era contra a lei. — Sabia que o crime de Victor era mais de ordem moral do que outra coisa, mas não estava em condições de enfrentar toda a verdade.

 

— As coisas nunca foram muito claras a esse respeito — retorquiu ele, satisfeito por não ter de discutir comportamentos éticos

 

O Registo Federal publicou qualquer coisa a e:se respeito, mas a proibição apenas se aplicava a instituições que recebiam subsídios federais. Não abrangia as organizações privadas do tipo da Chimera. —Victor não adiantou mais que isto. Sabia que não havia justificação para os seus actos. Voltaram a ficar calados, até que ele quebrou o silêncio. —A razão que me levou a nada te dizer prende-se com o facto de não querer que tratasses o miúdo de maneira diferente.

 

Marsha fitou o marido, observando os efeitos de luz que os faróis dos outros carros produziam no seu rosto.

 

— Não me disseste nada porque sabias que tinhas feito uma coisa terrível — corrigiu.

 

Quando viraram para a Windsor Street, Victor disse:

 

— Talvez tenhas razão. Acho que me senti bastante culpado. Antes de o VJ nascer, achava que ia ter um esgotamento nervoso. Mais tarde, quando os níveis de inteligência dele sofreram uma queda, voltei a ficar sentado em cima de um vulcão. Só durante os últimos anos é que consegui viver em sossego.

 

— Se assim foi, por que razão é que voltaste a usar os zigotes?

 

— Nessa altura, a experiência parecia-me ser um enorme sucesso. E também porque as famílias em questão eram as mais indicadas para educar uma criança excepcional. Contudo, sei que não o devia ter feito. Só agora o sei.

 

— A sério? — perguntou ela.

 

— Oh, meu Deus, claro que sim!

 

À medida que iam subindo o caminho que levava à garagem, Marsha sentiu pela primeira vez, desde que ele lhe mostrara os ratos, que talvez um dia lhe pudesse perdoar. Então, se não houve:se nada de errado com VJ, se as suas preocupações a respeito do desenvolvimento do filho não tivessem qualquer fundamento... então talvez pudessem continuar a ser uma família. Demasiados “ses”. Fechou os olhos e rezou. Depois de já ter perdido um dos filhos, pediu a Deus para lhe poupar o outro. Achava que não seria capaz de sofrer uma perda daquele tipo.

 

A luz do quarto de V J continuava acesa. Ele costumava ficar a pé até tarde, a ler ou a estudar, pois, por muito estranho que fosse o seu comportamento, tratava-se de um bom rapazinho.

 

Victor serviu-se do botão automático para levantar a porta da garagem. Assim que o carro parou, e ansiosa por verificar se estava tudo bem com o filho, Marsha saiu a correr. Sem esperar pelo marido, pegou na chave que lhe pertencia e dirigiu-se para a porta das traseiras. Contudo, quando a tentou abrir, esta não se mexeu. Victor apareceu ao seu lado e fez mais uma tentativa.

 

— Está trancada — explicou ele.

 

— O VJ deve tê-la trancado depois de saírmos. — Marsha levantou a mão e começou a bater na porta. O barulho foi bastante, mas o garoto não respondeu. —Achas que está tudo bem? — perguntou ao marido.

 

—Claro que sim! Ele só te podia ouvir daqui se estivesse na sala. Anda daí! Vamos bater na porta da frente.

 

Com Victor a abrir o caminho, saíram da garagem e dirigiram-se para a entrada de casa. Ele puxou da chave, mas a porta estava igualmente trancada. Tocou à campainha. Não houve resposta. Voltou a tocar, começando já a sentir um pouco da preocupação da mulher. Quando já estavam prestes a tentar outra porta, ouviram a voz clara do filho perguntar quem estava ali.

 

- Assim que a porta se abriu, Marsha tentou abraçar o garoto, mas este fugiu ao seu contacto.

 

— Onde é que estiveram? — perguntou.

 

Victor olhou para o relógio. Faltava um quarto para as dez. Tinham estado fora cerca de hora e meia.

 

— Fomos ao laboratório — respondeu a mãe. Nem parecia dele reparar quando os pais saíam. Era uma criança quase que auto-suficiente.

 

O garoto levantou os olhos para o pai.

 

— Tiveste um telefonema. Mandaram-me dizer-te que, a não ser que reconsideres e te mostres razoável, as coisas tornar-se-ão bastante desagradáveis para ti.

 

— Quem era? — perguntou Victor.

 

— Não deixou o nome.

 

— Era homem ou mulher?

 

— Não sei dizer. Fosse quem fosse, não estava a falar directamente para o bucal. Pelo menos era o que parecia.

 

A olhar ora para um, ora para o outro, Marsha perguntou:

 

— Victor, que quer isto dizer?

 

— Negócios. Não precisas de te preocupar. Ela voltou-se para o filho.

 

— Ficaste assustado? Tinhas as portas trancadas.

 

— Um bocadinho — admitiu o rapaz. — Mas depois compreendi que não me teriam telefonado a dar o recado se estivessem a pensar em vir até aqui.

 

— És capaz de ter razão — comentou a mãe. VJ tinha um modo impressionante de intelectualizar as situações. — Por que razão é que não vamos até à cozinha? Posso muito bem fazer um chá medicinal.

 

— Por mim não, obrigado — disse o garoto. Voltou-se e começou a subir as escadas.

 

— Filho! — chamou Victor.

 

V J ficou parado no primeiro degrau.

 

— Só te queria dizer que amanhã de manhã vamos até Boston, ao Children’s Hospital. Quero que faças uns exames.

 

— Mas eu não preciso de exames — queixou-se ele. — Detesto hospiitais.

 

— Sei como te sentes. No entanto, vais mesmo fazer os exames, tal como eu e a tua mãe queremos.

 

O rapaz olhou para a mãe. Marsha queria abraçá-lo e certificar-se de que o filho não tinha dores de cabeça nem nada semelhante. Contudo, intimidada pelo próprio filho, não se moveu.

 

— Mas eu não tenho nada — insistiu ele.

 

— Assunto encerrado — cortou Victor. — Ficamos por aqui com os lábios apertados, VJ deitou um olhar ao pai, voltou-se e subiu as escadas.

 

De volta à cozinha, Marsha pôs a chaleira ao lume. Sabia que teriam de passar alguns dias até se conseguir habituar a conviver com tudo o que ficara a saber naquela noite. Depois de dezasseis anos de casamento, perguntava-se se conhecia mesmo o marido.

 

O vento continuava a atirar neve de encontro à janela, fazendo que esta fosse bater no caixilho. Dando uma volta sobre si mesma, Marsha olhou para o despertador digital. Era meia-noite e meia, e não havia meio de conseguir dormir. A seu lado, ouvia-se a respiração ritmada do marido.

 

Sentou-se na cama com os pés para fora e começou a procurar os chinelos. Levantou-se, pegou no roupão que estava em cima de uma cadeira, abriu a porta e saiu para o corredor.

 

A casa foi atingida por uma súbita rajada de vento e as velhas árvores gemeram. Era sua ideia descer as escadas e ir para o escritório, mas, em vez disso, continuou a andar pelo corredor, parando em frente do quarto do filho. Abriu a porta. O garoto deixara uma nesga da janela aberta e as cortinas de renda vogavam ao sabor da brisa gelada. Marsha esgueirou-se pela porta e, sem fazer barulho, fechou a janela.

 

Deitou um olhar ao filho adormecido. com aqueles caracóis louros e faces rosadas, tinha uma expressão perfeitamente angélica. Teve de se dominar para não lhe tocar. A aversão que o rapaz sentia pelas manifestações de afecto era bastante estranha. Por vezes, era difícil pensar nele como sendo irmão de David. Perguntou-se se esta não propensão para os abraços e meiguices não teria nada a ver com a introdução de genes estranhos que fora levada a cabo por Victor. Era provável que nunca chegasse a saber. No entanto, compreendeu que a preocupação que sentira pelo filho tinha uma base concreta.

 

Tirou as roupas que estavam em cima da cadeira colocada perto da cama de VJ e sentou-se. Durante a infância, o filho quase que fora bom de mais para ser verdade. Raramente chorava e dormia a noite quase toda de um só fôlego. Para seu espanto, começara a falar mal completara alguns meses.

 

Marsha compreendeu que o orgulho e excitação que sentira pelos feitos do filho haviam sido os responsáveis por nunca os ter questionado. E nunca antes suspeitara que houvesse neles qualquer coisa de artificial. Agora compreendia que tinha sido ingénua. O comportamento do filho fora mais que genial. Lembrou-se de quando um cientista francês, junto com a mulher, estivera entre eles durante seis meses, precisamente na altura em que VJ tinha três anos. A filha de ambos, Michelle, fora instalada na creche da Chimera. Tinha cinco anos, e, ao fim de uma semana, já conseguia dizer uma série de frases em inglês. No entanto, e durante o mesmo período de tempo, VJ tornara-se fluente em francês.

 

E depois houve o caso do terceiro aniversário do filho. Para comemorar o acontecimento, Marsha planeara uma festa surpresa, para a qual convidou a maior parte das crianças da creche. Quando, no domingo, VJ desceu as escadas para ir almoçar, encontrou a sala cheia de mães e de miúdos, todos a gritar “Parabéns”. A coisa não resultou. O rapaz levou a mãe para um canto e perguntou:

 

— Para que é que convidaste estes miúdos? Tenho de os aturar todos os dias. Detesto-os. Dão comigo em doido!

 

O facto chocou-a, mas acabou por dizer para si mesma que o filho era muito mais inteligente do que os outros miúdos e o facto de ser obrigado a conviver com eles devia parecer-lhe um castigo. Mesmo aos três anos, os adultos eram a sua companhia favorita.

 

Sempre a dormir, VJ deu uma volta e murmurou qualquer coisa. O facto fê-la voltar à realidade e a todos os problemas que gostaria de esquecer. Tratava-se de uma criança tão bonita. Era difícil relacionar o seu rosto inocente com a verdade hedionda que lhe fora revelada no laboratório. bom, pelo menos sabia por que razão ele era tão frio e desprendido. Talvez fosse por isso que tinha tantos pontos de contacto com Jasper Lewis, o adolescente com problemas de personalidade. Cem algum pesar, concluiu que o facto de não ter passado muito tempo em casa durante os primeiros anos de vida do rapaz não era assim tão importante.

 

Bem, já que Victor insistia num exame neurológico, Marsha decidiu que levaria o filho a fazer uma série de testes psicológicos. Não lhe fariam mal nenhum.

 

TERÇA-FEIRA DE MANHA

Seguiram para Boston em carros separados, pois Victor estava a planear seguir directamente para a Chimera. VJ optara por viajar com a mãe.

 

A viagem em si mesma não teve nada de relevante. Marsha tentou falar com o rapaz, mas ele respondia a todas as perguntas com um curto sim ou não. Acabou por desistir, voltando à carga quando estavam apenas a alguns minutos de viagem do hospital.

 

— Tens tido dores de cabeça? — perguntou, pondo fim a um silêncio bastante longo.

 

— Não — respondeu VJ. — Já te disse que estou bem. A que se deve essa súbita preocupação com a minha saúde?

 

— Coisas do teu pai. —Era incapaz de encontrar um bom motivo que a impedisse de dizer a verdade. — Ele chama-lhe medicina preventiva.

 

— Acho que é uma perda de tempo.

 

— Tens tido alterações de memória? — voltou a mãe a inquirir.

 

— Já te disse que está tudo bem comigo! — exclamou o garoto com maus modos.

 

— Pronto, VJ. Não há qualquer motivo para te irritares. Ficamos muito felizes por estares bem de saúde e o nosso maior desejo é que continues sempre assim. — Perguntou-se sobre qual seria a reacção do garoto se lhe dissesse que era um ser artificial e que os seus cromocsomas tinham genes animais.

 

— Ainda te lembras do que aconteceu quando tinhas três anos e deixaste de saber ler?

 

— Claro! — disse VJ.

 

— Nunca falámos muito a respeito dessa época — continuou Marsha.

 

VJ deixou de encarar a mãe e pôs-se a olhar pela janela.

 

— O facto perturbou-te muito?

 

O rapaz voltou-se de novo para ela e disse:

 

— Mãe, por favor, não te armes em psiquiatra comigo. Claro que fiquei perturbado. Foi uma frustração terrível deixar de fazer coisas que até então sabia fazer. Contudo, acabei por as reaprender e agora está tudo bem.

 

— Se alguma vez quiseres falar a esse respeito, estou disponível para te ouvir. Lá por nunca ter tocado no assunto, não quer dizer que não me tenha importado. Tens de compreender que também foi uma época difícil para mim. Como mãe, tive um medo incrível de que estivesses doente. Assim que as coisas se resolveram, acho que fiz os possíveis para nunca mais pensar nelas.

 

VJ limitou-se a acenar com a cabeça.

 

Encontraram-se todos na sala de espera do Dr. Clifford Ruddock, chefe do departamento de neurologia. Victor chegara cerca de quinze minutos antes deles. Assim que o rapaz se sentou e pegou numa revista, Victor levou a mulher para um canto.

 

— Falei com o Dr. Ruddock assim que cheguei. Ele não pôs qualquer objecção em comparar os resultados destes testes com os que foram obtidos aquando da queda do coeficiente de inteligência do nosso filho. É certo que não está muito seguro sobre quais são os motivos que nos levaram a trazê-lo hoje aqui. É óbvio que não sabe nada a respeito do FCN, e não estou a planear dizer-lhe.

 

— Como já seria de esperar — comentou Marsha. Ele deitou-lhe uma olhadela rápida.

 

— Espero que estejas a pensar em cooperar.

 

— vou ser muito mais cooperativa do que aquilo que estás a pensar. Assim que o VJ ficar despachado de todos estes exames, estou a planear levá-lo ao meu consultório e submetê-lo a toda uma série de testes psicológicos.

 

— Mas porquê?

 

— O facto de seres obrigado a perguntar significa que talvez não seja capaz de te explicar.

 

Antes de dar início aos exames, o Dr. Ruddock, um homem alto e esguio, de cabelo sal-e-pimenta, convidou todos os membros da família Frank a entrar no seu consultório. Perguntou se o rapaz se lembrava dele. VJ respondeu que sim, principalmente do cheiro.

 

Victor e Marsha soltaram uma gargalhada nervosa.

 

— Lembro-me do seu perfume — continuou o garoto. — Já nessa altura o seu after-shave era Hermes.

 

Algo surpreendido com esta referência pessoal, o médico apresentou-lhes o colega, um indivíduo dedicado à neurologia pediátrica, que dava pelo nome de Chris Stevens.

 

Foi este, precisamente, quem examinou o rapaz. Dado que ambos os pais eram médicos, o Dr. Stevens autorizou-os a permanecer na sala. Tratou-se do exame neurológico mais completo a que tinham assistido. Em cerca de uma hora, todas as facetas do sistema nervoso de Vf haviam sido avaliadas e classificadas como normais.

 

Só depois o médico deu início aos trabalhos de laboratório. Retirou sangue para anállises de rotina e Victor conseguiu que lhe congelassem alguns tubos para que os levasse para a Chimera. Para além disso, o rapaz foi ainda submetido aos testes PET e NMR.

 

O teste PET consistia na inoculação de substâncias radioactivas, muito embora inofensivas, as quais emitiam positrões através do braço do paciente, ao passo que a cabeça do mesmo estava colocada dentro de um enorme aparelho com a forma de um donut. Já no cérebro do doente, os ppositrões entravam em colisão com os electrões, libertando uma determinada quantidade de energia, que por sua vez, se apresentava na forma de dois raios gama. Estes eram captados por uma série de cristais colocados num aparelho próprio para o efeito, sendo a radiação seguida por um computador, que criava uma imagem com todos os dados que ia recebendo.

 

Para o segundo teste, o NMR, o rapaz foi colocado num cilindro com vários pés de comprimento, o qual se encontrava rodeado por enormes magnetos superarrefecidos com hélio líquido. O campo magnético resultante, cerca de sessenta mil vezes superior ao campo magnético da Terra, alinhava os núcleos dos átomos de hidrogénio das moléculas de água existentes no corpo de V J. Quando uma onda de rádio de uma determinada frequência fazia que esses átomos saíssem do alinhamento, estes ressaltavam, emitindo um sinal radiofónico bastante fraco, mas que era captado no monitor destinado a este tipo de testes, sendo depois transformado numa imagem de computador.

 

Quando os exames chegaram ao fim, o Dr. Ruddock voltou a chamar Victor e Marsha ao seu escritório. VJ teve de ficar na sala de espera. Victor mostrava-se bastante nervoso, não parando de cruzar e descruzar as pernas, ao mesmo tempo que passava as mãos pelo cabelo. Enquanto os testes decorreram, nem o Dr. Stevens nem o técnico encarregado de o ajudar haviam feito comentários. Quando tudo chegara ao fim, a tensão quase que paralisava Victor.

 

— Bom — começou o médico, dando uma vista de olhos pelas imagens fornecidas pelos exames —, ainda não temos todos os resultados, nomeadamente as análises ao sangue, mas aqui temos alguns dados que poderemos considerar positivos.

 

Marsha sentiu um aperto no coração.

 

— Tanto o PET como o NMR não se apresentam normais — explicou o médico. com a mão esquerda, pegou numa das imagens coloridas obtidas através do PET. A mão direita segurava uma caneta Mont Blanc. Apontando para algumas áreas, disse: —Os hemisférios cerebrais revelam a presença de enormes quantidades de glicose. — Deixou cair o papel e pegou numa outra imagem colorida. — Aqui, neste estudo obtido através do NMR, podemos ver os ventrículos com bastante clareza.

 

Com o coração aos saltos, Marsha inclinou-se para ver melhor.

 

— É bastante óbvio — comentou o Dr. Ruddock — que estes ventrículos são mais pequenos que o normal.

 

— Que quer isso dizer? — perguntou ela com ansiedade. O médico encolheu os ombros.

 

— Provavelmente, nada. Segundo o meu colega, o exame neurológico do garoto está completamente normal. E estas descobertas, apesar de interessantes, não afectam as funções do cérebro. A única coisa que posso dizer é que, se o cérebro do vosso filho está a dispender demasiada glicose, talvez fosse melhor darem-lhe bastantes doces sempre que ele se veja envolvido num trabalho intelectual desgastante. —Dito isto, o Dr. Ruddock soltou uma gargalhada, rindo-se da sua própria tentativa de fazer humor.

 

Durante alguns momentos, tanto Victor como Marsha deixaram-se ficar quietos, ao mesmo tempo que iam fazendo a transição das tão esperadas más notícias para as boas que tinham acabado de receber. Victor foi o primeiro a recuperar.

 

— Claro que seguiremos o seu conselho — disse, rindo-se de alto. —Algum doce em particular?

 

O médico voltou a rir, satisfeito por ver que a sua piada fora tão bem-aceite.

 

— Recomendo-lhe vivamente alguns chocolates!

 

Marsha agradeceu ao médico e correu para a porta. Apanhando o filho de surpresa, e antes que ele tivesse tempo de se afastar, abraçou-o com força.

 

— Está tudo bem — murmurou-lhe ao ouvido. — Não há nada de errado contigo.

 

VJ libertou-se dos braços da mãe.

 

— Já sabia que estava bem quando ainda cá não tinha vindo. Já podemos ir embora?

 

Victor deu uma palmadinha no ombro da mulher.

 

— Ainda tenho umas coisas para resolver aqui, e depois vou direito para a firma. Encontramo-nos em casa, está bem?

 

— vou fazer um jantar especial — retorquiu ela, voltando-se para o filho. — Já nos podemos ir embora, mas tu, meu menino, ainda não estás despachado. Agora vamos até ao meu consultório. Tenho mais uns testes para ti.

 

— Oh, mãe!—queixou-se ele.

 

Marsha sorriu. O filho parecia-lhe um qualquer outro rapazinho de dez anos.

 

— Faz a vontade à tua mãe — pediu Victor. — Encontramo-nos mais tarde. Fez uma festa no rosto da mulher e despenteou o filho.

 

Victor atravessou os serviços de atendimento ao público e dirigiu-se à zona do hospital destinada à pesquisa, acabando por se meter num elevador, rumo ao departamento de patologia. Foi direito à sala do Dr. Burghofen. Dado que a secretária do médico não estava à vista, espreitou para dentro da sala. Servindo-se apenas dos indicadores, o Dr. Burghofen escrevia à máquina. Bateu à porta.

 

— Entre, entre! — disse o outro, fazendo um gesto com a mão. Continuou a martelar nas teclas durante mais alguns minutos, acabando por desistir. — Não sei por que razão me meto nisto, mas a minha secretária está sempre a dar parte de doente, e eu tenho pena de a despedir. A administração deste departamento ainda vai acabar por me matar.

 

Victor sorriu, ao mesmo tempo que dizia para consigo mesmo que, sempre que se fartasse de todos os problemas que tinha de enfrentar na Chimera, talvez fosse bom recordar que a pesquisa académica também tinha as suas limitações.

 

— Vim até aqui para saber se já concluíram as autópsias das duas crianças que morreram de edema cerebral — disse.

 

O Dr. Burghofen começou a vasculhar o tampo da secretária.

 

— Onde é que está aquela pasta? — perguntou, se bem que em tom retórico. Deu uma volta na cadeira giratória, acabando por descobrir o que procurava na cadeira que estava mesmo por detrás de si. — Vejamos — disse, à medida que ia folheando as páginas. — Aqui está: Maurice Hobbs e Mark Murray. São estes?

 

— Sim — respondeu Victor.

 

— Estão a cargo do Dr. Shryack. É bem provável que, neste preciso momento, ele se esteja a ocupar deles.

 

— Não se importa que vá dar uma vista de olhos?

 

— À vontade — respondeu o médico, vendo qualquer coisa na ficha. — Estão no anfiteatro 3. — Dtpois, quando Victor estava prestes a partir, perguntou: — Disse que era médico, não disse?

 

Ele fez que sim com a cabeça.

 

— Divirta-se — disse o outro, de volta à máquina de escrever. O departamento de patologia, tal como a maior parte do hospital,

 

era novo em folha, equipado com o melhor material existente. Era tudo feito de aço, vidro ou fórmica.

 

As quatro salas destinadas às autópsias eram semelhantes às salas de operação. Dado que só estava uma a funcionar, foi para lá que Victor se dirigiu. A mesa de autópsia era de aço inoxidável, bem assim como o restante material à vista. Quando Victor entrou, os dois homens que se ocupavam do corpo, um de cada lado da mesa, levantaram a cabeça. Em frente a eles estava uma criança de tenra idade, cujo corpo estava aberto como o de um peixe esventrado. Atrás deles, numa maca, estava um outro corpo pequenino, se bem que tapado.

 

Ele estremeceu. Passara muito tempo desde a última vez que assistira a uma autópsia e já se esquecera do impacto, principalmente quando se tratava de uma criança.

 

— Em que lhe posso ser útil? — perguntou o médico que estava à direita. Como qualquer outro cirurgião, usava máscara, mas, ao invés de uma bata, vestia um avental de borracha.

 

— Sou o Dr. Frank — apresentou-se ele, fazendo os possíveis por dominar a náusea que sentia. Para além do impacte visual, havia ainda o problema do cheiro, que nem mesmo o ar condicionado da sala conseguia eliminar. — Estou interessado nos bebés Hobbs e Murray. Foi o Dr. Burghofen quem me mandou.

 

— Se estiver interessado, pode vir até aqui dar uma olhadela— disse o patologista, fazendo-lhe sinal com o bisturi.

 

Aos poucos, Victor foi avançando Fez os possíveis para não olhar para aquele pequeno corpo retalhado.

 

— Estou a falar com o Dr. Shryack? — perguntou.

 

— Sim, sou eu. — O médico tinha uma voz jovem e agradável e os olhos brilhantes. —Este é o Samuel Harkinson — continuou, apresentando o assistente. —Estas crianças eram doentes seus?

 

— Não propriamente. Contudo, estou particularmente interessado no que lhes poderá ter provocado a morte.

 

— Junte-se ao grupo — comentou o patologista. — Trata-se de uma história estranha. Venha até aqui dar uma olhadela a este cérebro.

 

Victor engoliu em seco. O escalpe da criança fora previamente cortado, tendo-lhe sido depois puxado para o rosto. Numa fase posterior, o crânio fora serrado e levantado. Deu por si a olhar para o cérebro do garoto. Aquele estava fora do seu lugar, o que conferia ao rapazinho o ar de uma qualquer criatura vinda do espaço. A maior parte das extremidades dos córtices cerebrais fora esmagada de encontro à parte interior do crânio.

 

— Trata-se do pior caso de edema cerebral que já alguma vez vi — comentou o médico. Fez que ainda saísse um grande bocado de cérebro para fora. — Demorei hora e meia com o outro. — Dito isto, apontou para o corpo que estava embrulhado.

 

— Até teres descoberto como se fazia — disse Harkkison, revelando possuir um certo sotaque cockney.

 

— Tens toda a razão, Samuel.

 

Harkinson segurou a cabeça do garoto e puxou o cérebro para o lado. Depois disto, o Dr. Shryack foi capaz de introduzir a faca entre o cérebro e a base do crânio, cortando assim a parte superior da espinal medula.

 

Só então, e com um estalido seco, o cérebro se soltou. Harkinson cortou os nervos cranianos e o outro levantou o cérebro e colocou-o no prato da balança. O ponteiro começou a andar para trás e para a frente e acabou por parar no ponto em que marcava um quilo e quatrocentos gramas.

 

— Tem cerca de quinhentos gramas mais do que aquilo que deveria ter — comentou o patologista, voltando a pegar-lhe com as mãos enluvadas, transportando-o para um lavatório onde a água não parava nunca de correr. Limpou os coágulos de sangue e todas as outras substâncias estranhas e, depois, colocou-o no bloco de madeira destinado aos cortes.

 

Com mãos experientes, o Dr. Shryack examinou o cérebro com cuidado.

 

— Para além do tamanho, parece estar em ordem — disse. Abriu uma gaveta e, de uma série de facas de trinchar, escolheu uma, começando a cortar o cérebro em pequenas secções de meia polegada. —Não há sinais de hemorragia, de tumores ou de qualquer infecção. Os testes NMR não se enganaram.

 

— Gostaria de lhes pedir um favor — disse Victor. — Haverá alguma hipótese de me darem uma amostra para que a leve para o meu laboratório e a possa examinar?

 

O médico encolheu os ombros.

 

— Acho que sim, mas não gostava nada que se tornasse do conhecimento público. O Boston Globe ficaria bastante satisfeito por poder publicar que andamos a dar amostras de tecido cerebral. Pode calcular por aqui os efeitos que isso teria no nosso departamento.

 

— Juro que não digo nada a ninguém.

 

— Quer ficar com este caso, acho que se trata do bebé Hobbs, ou prefere o outro? — perguntou o patologista.

 

— Se não se importar, quero amostras dos dois.

 

— Acho que não há grande diferença entre o facto de lhe dar duas amostras ou apenas uma — respondeu o outro.

 

— Já examinou os órgãos internos?—perguntou Victor.

 

— Ainda não. É o passo seguinte. Quer ficar a ver? Victor encolheu os ombros.

 

— Por que não? Já que aqui estou...

 

Durante a viagem de regresso a Lawrence, VJ mostrou-se ainda menos comunicativo do que acontecera de manhã, quando haviam seguido para Boston. Era mais que evidente que estava furioso com tudo aquilo e Marsha perguntou-se se o filho se mostraria disposto a colaborar com a realização de uns testes psicológicos aceitáveis.

 

Estacionou o carro mesmo em frente ao consultório. Dado que a porta que dava acesso às escadas estava fechada por dentro, foram obrigados a esperar pelo elevador, muito embora tivessem de subir apenas um andar.

 

— Sei que estás zangado — acabou ela por dizer—, por isso, e por muito grande que seja a vontade que tenho em te fazer os exames, estes só terão algum sentido se estiveres disposto a colaborar. Estou a ser suficientemente clara?

 

— Perfeitamente — disse ele com maus modos, olhando-a com aqueles olhos estonteantes.

 

— bom, nesse caso, parto do princípio que te vais portar bem? — perguntou, à medida que as portas do elevador se iam abrindo.

 

Ele acenou com frieza.

 

Jean ficou felicíssima por os ver. Passara alguns momentos difíceis a tentar acalmar os doentes de Marsha, mas, servindo-se da sua habitual eficiência, acabara por se sair bastante bem.

 

No que respeitava ao garoto, e apesar de este a ter saudado com muito pouco entusiasmo e de ter logo arranjado um pretexto para ir à casa de banho, estava mesmo contente por o ver.

 

— Ele hoje não está nos seus dias — explicou a mãe, começando a contar à outra tudo sobre os exames neurológicos e da vontade que tinha de o submeter a uma bateria de testes psicológicos.

 

— Pela parte que me toca, hoje vai ser bastante difícil — anunciou Jean. — Dado que passaste a manhã fora, o telefone não parou de tocar.

 

— Deixa o telefone por conta da recepcionista. É bastante importante para mim que estes testes sejam feitos.

 

Jean fez que sim com a cabeça e, de imediato, começou a preparar os formulários e o computador, para que este pudesse relacionar e avaliar os resultados obtidos.

 

Quando VJ voltou da casa de banho, a secretária fê-lo sentar-se perto do terminal. Dado que ele já conhecia alguns dos testes, perguntou-lhe se tinha preferência por algum.

 

— É melhor começarmos com os exames de inteligência — disse o garoto com bons modos.

 

Durante a hora e meia que se seguiu, Jean esteve ocupada a dirigir os testes de inteligência, que incluíam seis sub-exames verbais e cinco relacionados com o desempenho. Partindo da sua experiência pessoal, sabia que o rapaz se estava a sair bastante bem, muito embora os seus resultados não se assemelhassem aos que efectuara sete anos antes. Também reparou na tendência que o rapaz revelava para hesitar antes de responder às perguntas ou desempenhar tarefas. Era como se se quisesse certificar da escolha que fizera.

 

— Muito bem! —exclamou Jean assim que chegaram ao fim.— E que tal passarmos agora aos testes de personalidade?

 

— Vais-me dar qual? O MMPI ou o MCMI?

 

— Estou impressionada. Tenho o ligeiro pressentimento de que andaste a estudar o assunto.

 

— Quando um dos nossos pais é psiquiatra, não é difícil saber-se algumas coisas.

 

— bom, estou a pensar utilizar os dois, mas é melhor começarmos com o MMPI. Não precisas que eu esteja ao pé de ti para te desenvencilhares. Só tens de ir pondo cruzes. Se tiveres algum problema, chama.

 

Jean deixou VJ no laboratório e voltou para a recepção. Ligou para a telefonista e tomou nota da enorme quantidade de mensagens que se haviam acumulado. Atendeu tudo aquilo que podia, e, assim que o doente que estava com Marsha saiu, entregou-lhe todo o trabalho que ela tinha de resolver pessoalmente.

 

— Como é que o VJ se está a sair? — perguntou a mãe.

 

— Nada mal.

 

— Tem estado a cooperar?

 

— Está manso como um carneirinho. Para dizer a verdade, tenho o pressentimento de que se está a divertir imenso.

 

Admirada, Marsha abanou a cabeça.

 

— Deves ter poderes para o animar. Achei-o terrível. Jean aceitou o facto como um cumprimento.

 

— Já lhe fiz o WAIS-R e deixei-o em pleno MMPI. Que outro exame lhe queres fazer? O Rorschach ou o teste de percepção temática?

 

Pensativa, Marsha levou o polegar à boca. Depois de um bocado, acabou por dizer:

 

— Por que não fazer-lhe o TPT e deixar o Rorschach para outro dia? Estamos sempre a tempo de o fazer.

 

— Não me importo nada de fazer os dois — respondeu a secretária.

 

— É melhor ficarmo-nos pelo TPT — respondeu Marsha, ao mesmo tempo que pegava numa outra ficha. — O VJ até está bem-disposto, mas por que razão o haveríamos nós de forçar? Para além do mais, talvez seja interessante confrontarmos o TPT com o Rorschach, mas para isso eles precisam de ser feitos em dias diferentes.

 

Chamou o paciente a quem pertencia a ficha que segurava e desapareceu, dando início a outra sessão.

 

Depois de Jean ter despachado o máximo de papelada que podia, voltou ao laboratório. O garoto estava absorvido no teste de personalidade.

 

— Algum problema? — perguntou ela.

 

— Há aqui perguntas que são o máximo — respondeu VJ com uma gargalhada. — Há uma série delas que não têm respostas apropriadas.

 

— Convém escolheres a que te parecer melhor — explicou Jean.

 

— Eu sei. É isso que estou a fazer.

 

Por volta do meio-dia, fizeram uma pausa para o almoço e foram até ao hospital. Comeram na cafttaria. Marsha e Jean mandaram vir sandes de salada de atum, ao passo que VJ optou por um hambúrguer e um batido. Satisfeita, Marsha não pôde deixar de reparar que o comportamento do filho sofrera mesmo uma alteração. Começou a pensar que tinha entrado em pânico sem ter qualquer motivo para isso. O mais provável era que todos aqueles tekes revelassem um perfil psicológico saudável. Ardia de curiosidade para perguntar a Jean quais eram os resultados que já obtivera, mas sabia que não o podia fazer em frente do filho. Meia hora mais tarde, estavam de novo empenhados em resolver as tarefas que lhes competiam.

 

Decorrida mais uma hora, Jean voltou a ligar o telefone e regressou ao laboratório onde decorriam os testes. Mal acabara de fechar a porta quando lhe chegou a voz de VJ.

 

— Pronto! — exclamou ele, assim que deu a última resposta. — Já acabei.

 

— Muito bem — disse ela, impressionada. O rapaz respondera às quinhentas e cinquenta perpuntas que compunham o teste em cerca de metade do tempo que era habitual. —Queres descansar antes de passarmos à próxima tarefa?

 

— Não, obrigado. É melhor avançarmos.

 

Durante noventa minutos, Jean não fez outra coisa senão mostrar-lhe os cartões TPT. Cada um deles continha uma imagem a preto e branco que representava pessoas em circunstâncias tais que obrigavam a um comentário de carácter psicológico. O rapaz tinha de descrever o que pensava a respeito do que se passava na gravura e o modo como as pessoas se sentiam. O fim de tudo isto era fazer que VJ projectasse as suas fantasias, sentimentos, padrões de relacionamento, necessidades e conflitos.

 

Para alguns pacientes, tratava-se de um teste bastante difícil. Contudo, e no caso de VJ, Jean deu consigo a divertir-se com todo o processo. O rapaz não mostrava qualquer problema em arranjar explicações interessantes e as respostas que dava eram lógicas e normais. Quando os exames acabaram, Jean estava certa que VJ era uma criança emocionalmente estável, bem ajustada e algo madura para a idade.

 

Quando Marsha chegou ao fim das consultas, a secretária entrou no seu local de trabalho e entregou-lhe os resultados a que o computador chegara. Apesar de os resultados finais do MMPI só virem a ser conhecidos passado algum tempo, tinham já em sua posse o diagnóstico inicial.

 

À medida que Jean lhe fornecia as suas impressões) pessoais, bastante positivas, diga-se, Marsha ia dando uma olhadela aos papéis.

 

— Acho que se trata de uma criança modelo — dizia a secretária. — Não consigo perceber por que razão estás preocupada com ele.

 

— Isto já me dá alguma confiança — comentou a outra, analisando os resultados do teste de inteligência. A pontuação total era de cento e vinte e oito. Registava-se apenas uma variação de dois pontos desde a última vez que o garoto fora submetido aos mesmos exames, há já alguns anos. O facto queria dizer que o coeficiente de VJ não se alterara, mantendo-se bastante bom, sólido e saudável, e, claro, bastante acima da média. No entanto, havia ali uma discrepância que a preocupava: uma diferença de quinze pontos entre a habilidade verbal e o desempenho do coeficiente de inteligência. Como o primeiro era inferior ao segundo, o facto sugeria uma deficiência cognitiva em relação à linguagem. Dado que o rapaz era fluente no francês, nada disto parecia fazer sentido.

 

— Também reparei no caso — disse Jean, assim que a outra mencionou o assunto—, mas, dado que os resultados totais foram bastante bons, não me preocupei muito com o facto. E tu?

 

— Não sei. Acho que nunca vi um resultado igual a este. bom, talvez seja melhor passarmos ao MMPI.

 

Colocou os resultados do teste de personalidade à sua frente. A primeira parte recebia o nome de escala de validade. Mais uma vez, houve ali algo que lhe chamou a atenção. As colunas F e K eram um pouco mais altas do que o que seria de esperar. Marsha fez uma breve referência ao caso.

 

— Mas estão dentro dos limites da normalidade — insistiu Jean.

 

— É verdade, mas convém não esquecer que tudo isto é relativo. Por que razão é que a escala de validade haveria de estar pouco acima do que é habitual?

 

— Ele fez o teste bastante depressa — explicou a secretária. — Talvez se tenha descuidado um pouco.

 

— O VJ nunca se descuida. Bem, trata-se de algo que não consigo explicar, mas é melhor continuarmos.

 

A segunda parte era constituída pela escala clínica e Marsha verificou que não se registavam anormalidades em nenhuma das colunas. Ficou particularmente feliz por ver que as escalas quatro e oito estavam dentro dos limites normais. Tratava-se das colunas referentes aos desvios psicopáticos e ao comportamento esquizofrénico. Soltou um suspiro de alívio, pois tratava-se de colunas com uma forte correspondência com a realidade clínica, e, devido aos antecedentes do garoto, receava que fossem bastante elevadas.

 

Contudo, acabou por reparar que a terceira coluna era bastante elevada. Isto queria dizer que VJ tinha tendência para a histeria, sempre em busca de afecto e de atenção, facto que não correspondia à sua experiência pessoal com o filho.

 

— Ficaste mesmo com a impressão de que, durante os testes, o VJ estava mesmo a colaborar — inquiriu ela a Jean.

 

— Absolutamente.

 

— Acho que me deveria dar por feliz com estes resultados — comentou Marsha, à medida que juntava todos os papéis que estavam na secretária. Quando se levantou, e numa tentativa de os alinhar, bateu com eles no tampo da mesa.

 

— Acho que sim — concordou a secretária.

 

Depois de ter todos os papéis em ordem, colocou-os dentro da pasta.

 

— Apesar de tudo, tanto o Weohster como o MMPI são algo anormais. bom, talvez que a palavra adequada seja “inesperados”. Preferia que fossem apenas normais. A propósito, qual foi a resposta que ele te deu quando lhe mostraste o cartão do TPT em que se vê um homem debruçado sobre uma criança com um braço levantado?

 

— Disse que lhe estava a dar uma aula.

 

— Quem? O homem ou o garoto? — inquiriu Marsha com uma gargalhada.

 

— O homem, sem qualquer margem para dúvida.

 

— Reparaste se havia ali traços de hostilidade?

 

— Nenhum.

 

— E por que razão tinha ele o braço levantado?

 

— Porque o homem estava a falar sobre ténis e estava a explicar ao rapaz como se faz um serviço.

 

— Ténis? Mas o VJ nunca jogou ténis.

 

À medida que Victor entrava no parque de estacionamento da Chimera, reparou que nada restava da neve que caíra na noite passada. Apesar de continuar a fazer frio, a temperatura subira bastante.

 

Arrumou o carro no local habitual, mas em vez de se dirigir directamente para o edifício da administração, pegou na pasta de cartão que colocara no assento ao lado do seu e foi para o laboratório.

 

— Tenho aqui um trabalho urgente para lhe dar — disse ele ao técnico principal, Robert Crimes.

 

Robert era um indivíduo incrivelmente magro, que usava camisas com colarinhos demasiado largos, facto que lhe enfatizava a magreza. Os olhos apresentavam a expressão de quem está sempre surpreendido.

 

Victor entregou-lhe as amostras congeladas do sangue de VJ, bem assim como as garrafas que continham os pequenos pedaços do cérebro das crianças mortas.

 

— Quero que lhes seja feito um estudo aos cromossomas. Robert começou por pegar nas amostras de sangue e de as abanar,

 

Só depois examinando o tecido cerebral.

 

— Quero que deixe tudo o resto para trás para me ocupar exclusivamente disto?

 

— Exactamente — respondeu Victor. — Quero que comece a trabalhar o mais depressa possível.

 

— Nesse caso, vou ter de pôr de lado o trabalho relativo ao transplante uterino.

 

— Dou-lhe a minha autorização para que o faça.

 

Victor deixou o laboratório e dirigiu-se para o edifício vizinho, onde se encontrava o computador central. O prédio estava colocado no centro do pátio, facto que não podia deixar de ser o mais indicado, pois esta localização permitia o acesso fácil a todas as outras dependências. O escritório principal situava-se no primeiro andar e Victor não teve qualquer trabalho em encontrar Louis Kaspwicz. Havia qualquer problema com uma das peças do computador e Louis supervisionava uma série de técnicos que tinham aberto a máquina, tal como se esta se estivesse a submeter a uma intervenção cirúrgica.

 

— Tem alguma coisa para mim? — perguntou.

 

O outro fez que sim com a cabeça, disse aos técnicos para continuarem a procurar e levou-o até ao escritório, onde acabou por puxar da agenda onde estavam anotados os registos do computador.

 

— Já consegui descobrir a razão por que não consegue encontrar as tais fichas no seu terminal. —Começou por virar as páginas da

 

— Porquê?

 

Louis ainda não parara de procurar.

 

Dado que as suas pesquisas não estavam a ser bem sucedidas, indireitou-se e deu uma olhadela em torno do escritório.

 

— Ah! —exclamou, acabando por detectar uma folha de papel em cima da secretária. — Não podia encontrar as fichas respeitantes aos bebés Hobbs e Murray porque estas foram apagadas no dia 18 de Novembro — disse, abanando o papel em frente do nariz de Victor.

 

— Apagadas?

 

— Receio bem que sim. Tenho aqui o registo do computador relativo a 18 de Novembro e tudo leva a crer que as fichas foram apagadas.

 

— É estranho — retorquiu Victor. — Penso que não será possível descobrir quem as apagou, pois não?

 

— É claro que sim — respondeu Louis. — Basta encontrar a cifra do utente.

 

— E encontrou-a?

 

— Sim.

 

— Nesse caso, quem foi? — perguntou Victor com alguma irritação. Estava com a ligeira impressão de que o outro estava a tornar tudo mais difícil.

 

Este mirou-o de relance, acabando por desviar o olhar.

 

— O senhor, Dr. Frank.

 

— Eu? — perguntou ele, surpreendido. Tratava-se da última coisa que esperava ouvir. Muito embora se lembrasse de ter pensado em apagar as fichas, nada lhe dizia que alguma vez o tivesse chegado a fazer.

 

— Sinto muito — disse Louis, tirando um peso de cima dos ombros. Via-se perfeitamente que não se estava a sentir à vontade.

 

— Não há problema — retorquiu o outro. Agora era a sua vez de se sentir embaraçado. — Muito obrigado por se ter dado ao incómodo de procurar isto para mim.

 

— Sempre às ordens.

 

Completamente siderado com esta informação, Victor abandonou o centro de computadores. Era verdade que, nos últimos tempos, se estava a tornar esquecido, mas seria possível ter sido capaz de eliminar as fichas e de se esquecer de o ter feito? Não se teria tratado antes de um acidente? Perguntou-se sobre o que poderia ter feito no dia 18 de Novembro. Voltou ao edifício da administração e subiu as escadas devagar. Assim que entrou no corredor do segundo andar e se começou a dirigir para a entrada das traseiras do seu gabinete, achou melhor verificar a agenda. Tirou o casaco, pendurou-o e foi até junto de Colleen.

 

— Dr. Frank, o senhor assustou-me! — exclamou ela assim que Victor lhe tocou no ombro. Durante a última hora estivera ocupada a escrever à máquina, servindo-se para isso dos auscultadores que estavam ligados ao gravador para onde o texto era ditado. — Não fazia a mínima ideia de que aqui estava.

 

Ele desculpou-se, dizendo que entrara pelas traseiras.

 

— Como é que foi a visita ao hospital? — perguntou ela. Nessa mesma manhã, recebera um telefonema do patrão, dizendo-lhe que só ali estaria da parte da tarde. — Espero que esteja tudo bem com o VJ.

 

— Graças a Deus — respondeu Victor com um sorriso. — Os testes estavam normais. É claro que ainda estamos à espera do resultado das análises, mas tenho confiança de que hão-de estar bem.

 

— Óptimo!—exclamou a secretária. —Fiquei assustada com o seu telefonema. Um exame neurológico completo não é brincadeira nenhuma.

 

— Eu também andava um pouco preocupado — admitiu ele.

 

— Parto do princípio de que vem buscar as suas mensagens telefónicas — disse Colleen, ao mesmo tempo que espreitava para baixo de um braçado de papéis que estava em cima da sua secretária completamente desordenada. — Tenho para aí mais de uma tonelada delas.

 

— Deixe as mensagens em paz só por mais um bocadinho. É capaz de me descobrir a agenda de 1988? Estou particularmente interessado no dia 18 de Novembro.

 

— Claro. — A secretária afastou-se do gravador e dirigiu-se para os arquivos.

 

Victor voltou ao escritório. Enquanto esperava, veio-lhe à lembrança o telefonema que VJ recebera e pensou no que poderia fazer a esse respeito. com alguma relutância, acabou por concluir que não podia fazer grande coisa. Se perguntasse a qualquer uma das pessoas com quem andava a ter problemas se fora ela, esta de imediato o negaria.

 

Colleen entrou no escritório, trazendo a agenda aberta no dia 18 de Novembro, e colocou-a mesmo por baixo do seu nariz. Fora um dia bastante ocupado. Contudo, ali nada havia que pudesse estar relacionado com as fichas desaparecidas. A última entrada dizia que Victor levara a mulher a jantar ao Another Season, acabando por ir assistir a um concerto da Boston Symphony.

 

Depois de ter despido o roupão, Marsha enfiou-se numa cama deliciosamente aquecida. Rodou o botão do cobertor eléctrico da temperatura máxima para o nível três. Victor afastara-se do calor o mais que podia. O cobertor eléctrico do lado dele nunca era usado. Estava deitado há já cerca de meia hora, ocupado a ler uma série de revistas profissionais.

 

Ela deitou-se de lado, examinando-lhe o perfil. Tudo nele lhe era familiar: a linha do nariz, as maçãs do rosto ligeiramente salientes, os lábios finos. No entanto, tinha a sensação de estar a olhar para um estranho. Ainda não conseguira aceitar aquilo que ele fizera ao filho, oscilando entre a descrença, a raiva e o medo, sendo este último o sentimento que mais a atormentava.

 

— Achas que o resultado dos testes significa que o nosso filho está bem? — perguntou ela.

 

— Eu fiquei mais descansado — respondeu Victor, sem sequer levantar os olhos da revista. —E tu pareceste-me bastante satisfeita no consultório do Dr. Ruddock.

 

Marisha voltou a deitar-se de costas. Isto só queria dizer que estava momentaneamente aliviada por não ter sido detectado nada de grave, como um tumor, por exemplo. Olhou de novo.

 

— Mas nada consegue explicar o que motivou a sua súbita queda de inteligência.

 

— Mas isso foi há seis anos e meio!

 

— Tenho medo que as coisas se possam repetir.

 

— O problema é teu — retorquiu o marido.

 

— Victor! — exclamou ela. — Será que não és capaz de pôr de lado o que estás a ler e conversar um pouco comigo?

 

Deixando cair a revista, Victor respondeu.

 

— Pronto, já estou a falar contigo.

 

— Obrigada. É claro que estou satisfeita com o facto de os exames do nosso filho serem normais. No entanto, os testes psicológicos não o foram. São inesperados e algo contraditórios. — Marsha continuou a falar, explicando o que descobrira, terminando com a pontuação relativamente alta alcançada por VJ na coluna da histeria.

 

— Mas ele não é nada emocional — comentou o marido.

 

— Aí é que está.

 

— Tenho a impressão de que os resultados dizem mais a respeito dos testes psicológicos do que sobre outra coisa. Não se deve confiar muito neles.

 

— Bem pelo contrário — atalhou ela. — Estes testes são considerados da máxima confiança. No entanto, não sei o que fazer com eles. Infelizmente, só vieram contribuir para aumentar a minha preocupação. Não consigo deixar de sentir que vai acontecer alguma coisa terrível.

 

— Ouve — começou ele. — Levei parte do sangue das análises do nosso filho para o laboratório. vou mandar isolar o cromossoma seis. Se este não tiver mudado, ficarei bastante satisfeito. E tu também deves ficar. — Estendeu a mão para lhe acariciar a anca, mas ela afastou a perna. Victor deixou o braço cair ao longo da cama. — Se o VJ tiver problemas psicológicos, isso já é outra coisa; faremos que lhe seja aplicado o tratamento certo, está bem? — Queria confortá-la um pouco mais, mas não sabia o que havia de dizer. Era mais do que certo que não lhe iria falar das fichas desaparecidas.

 

Marsha respirou fundo.

 

— Está bem. vou tentar relaxar. Assim que souberes os resultados, não te esqueças de me contar o que se passa com o DNA.

 

— Claro. — Ao dizer isto, o marido sorriu-lhe. Ela conseguiu retribuir o sorriso com um outro bastante fraco.

 

Victor levantou a revista e tentou ler. No entanto, não conseguia deixar de pensar nas fichas desaparecidas. Voltou a perguntar-se se as teria mesmo eliminado. Era bastante provável. Dado que só ele sabia da sua existência, era bastante difícil que qualquer outra pessoa tivesse apagado as três.

 

— Já descobriste o que provocou a morte dos outros dois bebés?— inquiriu Marsha.

 

Mais uma vez, Victor deixou cair a revista.

 

— Ainda não. As autópsias ainda não estão completas. Falta o trabalho de microscópio.

 

— Poderia ter sido cancro? — perguntou, não sem algum nervosismo, lembrando-se do dia em que David adoecera. Era uma das datas que Marsha nunca seria capaz de esquecer: 17 de Junho de 1984. David tinha dez anos e VJ cinco. A escola acabara há já algumas semanas e Janice planeava levar os garotos para Castle Beach.

 

Ela estava no escritório a preparar as coisas para sair para o trabalho qundo David lhe apareceu à porta. Os seus braços magros pendiam ao longo do corpo.

 

— Mamã, passa-se algo de estranho comigo — disse.

 

Marsha não levantou logo os olhos. Andava à procura de uma pasta que trouxera na véspera do escritório.

 

— Estás preocupado com o quê? — acabou por perguntar, fechando uma gaveta e abrindo outra. Na noite anterior, e antes de ir para a cama, o garoto queixara-se de dores na região abdominal, mas tomara pepto-bismol e acabara por se sentir bem.

 

— Tenho um aspecto esquisito — respondeu ele.

 

— Eu cá acho que és um rapazinho muito bonito—disse, começando a procurar a pasta nas prateleiras que se encontravam atrás da secretária.

 

— Estou a ficar amarelo.

 

Ela parou por um momento e virou-se para encarar o filho, que, por sua vez, correra ao seu encontro e lhe escondera a cabeça no peito. Era uma criança muito carinhosa.

 

— Que é que te leva a pensar que estás a ficar amarelo? — perguntou, sentindo os primeiros indícios de medo. — Deixa-me olhar para ti — pediu, tentando afastá-lo dela. Esperava que ele estivesse enganado e que houvesse uma qualquer explicação pateta para a impressão que sentia.

 

David não a queria largar.

 

— São os olhos — disse. Por estar tão encostado a ela, a voz soava algo abafada. — E a língua também.

 

— A tua língua pode ter ficado amarela por causa de um rebuçado de limão. Vá lá, deixa-me ver.

 

Dado que a luz do escritório não era das melhores, levou-o para a entrada da casa e olhou-o nos olhos, aproveitando a luz que vinha da janela. Ficou sem respiração. Não havia qualquer dúvida, O rapaz sofria de icterícia.

 

Mais tarde, mas ainda no mesmo dia, os exames CAT revelaram um tumor no fígado. Tratava-se de uma espécie de cancro tremendamente agressivo, que destruiu a vida do garoto em apenas alguns dias.

 

— Não há indícios de que as crianças sofressem de cancro — disse Victor, acordando Marsha do seu sonho. — Os exames que até agora foram feitos não revelaram traços de tumores malignos.

 

Ela tentou afastar a imagem dos olhos amarelos de David, que não deixavam de a fitar a partir do seu rosto magro. Até mesmo a pele não demorara muito a ficar amarela. Pigarreou para aclarar a garganta.

 

— Quais são as hipóteses de que as mortes dos bebés tenham sido causadas pelos genes que inseriste?

 

Victor não respondeu imediatamente.

 

— Gostava de pensar que não havia qualquer relação entre ambas as coisas. Ao fim e ao cabo, nenhum dos animais que submeti à experiência revelou problemas de saúde.

 

— Mas será que podes mesmo ter a certeza?

 

— bom, lá isco não posso — admitiu ele.

 

— E quanto aos outros cinco zigotes?

 

— Que queres dizer com isso? Estão guardados no congelador.

 

— São normais ou também trataste de lhes fazer mudanças?

 

— Todos têm o gene FCN.

 

— Quero que os destruas — pediu ela.

 

— Porquê?

 

— Disseste que estavas arrependido por tudo o que tinhas feito! — exclamou Marsha, já bastante zangada. — E agora vens perguntar-me qual a razão por que os deves destruir?

 

— Não os vou implantar. Isso posso eu prometer-te. Contudo, posso precisar deles para descobrir o que aconteceu de errado com os bebés Hobbs e Murray. Não te esqueças que ambos os zigotes foram descongelados. É a única diferença entre eles e o V J.

 

Ela examinou o rosto do marido. Era uma sensação terrível compreender que não sabia se devia acreditar nele. Não gostava nada da ideia de que aqueles zigotes estavam ali, operacionais.

 

Antes de poder dizer mais alguma coisa, o silêncio da noite foi abalado por um estrondo: o som de vidro a quebrar-se. Este ainda não desaparecera por completo quando, vindo do quarto de VJ, um grito ecoou pela casa. Marsha e Victor levantaram-se da cama de um salto e saíram para o corredor a correr.

 

TERÇA-FEIRA À NOITE, JÁ BASTANTE TARDE

VJ estava enroscado à cabeceira da cama, segurando a cabeça com as mãos. Bem no meio do quarto, em cima do tapete, estava um tijolo. Este tinha uma fita vermelha enrolada à volta, a qual segurava um pedaço de papel. Tudo isto conferia ao tijolo o ar de um presente. A janela do quarto fora completamente destruída e o chão estava inundado de pedaços de vidro. Era mais que evidente que alguém atirara o embrulho a partir do caminho que levava a casa.

 

Victor estendeu a mão para impedir a mulher de se precipitar pelo quarto e correr para junto do filho.

 

— Cuidado com os vidros!—gritou.

 

— VJ, estás bem? — perguntou ela.

 

Um aceno de cabeça foi a sua única resposta.

 

Dando uma volta em torno da mulher, Victor agarrou na passadeira oriental que se estendia pelo corredor, puxou-a para o quarto do filho e deixou-a rolar até junto à janela. Depois, atravessou-a a correr e espreitou pela janela. Não viu ninguém. — vou sair — anunciou, passando por Marsha a correr.

 

— Não te armes em herói — gritou ela, mas já o marido ia a meio das escadas. —Não te mexas — pediu ela a VJ. —Há vidros por todo o lado e de certeza que acabavas por te cortar. Volto já.

 

Regressou ao quarto e, o mais depressa que podia, calcou os chinelos e vestiu o roupão. De volta ao quarto do filho, acabou por chegar junto à cama. VJ deixou que ela o abraçasse.

 

— Segura-te bem — gritou, à medida que fazia todos os possíveis por pegar nele ao colo. Para seu espanto, o rapaz pesava mais do que aquilo que seria de esperar. Seguiu para o corredor a passo incerto e ficou feliz por o poder pousar. — Se isto acontecesse daqui a dois meses, já não seria capaz de te pegar ao colo — comentou, soltando um gemido. — Estás a ficar grande de mais para mim.

 

— Hei-de descobrir quem fez isto — disse o rapaz, mal recuperou a voz.

 

— Ficaste assustado, querido? — perguntou a mãe, fazendo-lhe uma festa na cabeça.

 

Ele esquivou-se ao contacto da mão de Marsha.

 

— Hei-de descobrir quem atirou aquele tijolo e depois mato-o.

 

— Mas agora estás a salvo. Já podes sossegar. Sei que estás aborrecido, mas está tudo bem. Ninguém se magoou.

 

— Hei-de matá-lo — insistiu o rapaz. — Vais ver. Hei-de matá-lo.

 

— Está bem. —Tentou atraí-lo para junto de si, mas o filho resistiu-lhe. Fitou-o durante breves instantes. Os seus olhos intensos tinham um brilho estranho, muito pouco infantil. —Vamos até ao escritório — disse ela. —Quero telefonar à polícia.

 

Victor desceu o caminho a correr e acabou por chegar à estrada, onde parou para olhar de um lado para o outro. Dois quarteirões mais abaixo, ouviu alguém ligar o motor de um automóvel. No preciso momento em que estava prestes a correr naquela direcção, viu que os faróis se acendiam, acabando a viatura por se afastar. Não conseguiu vislumbrar a matrícula.

 

Frustrado, e apesar de saber que não seria capaz de atingir o carro, atirou-lhe uma pedra. Deu meia volta e entrou em casa. Foi encontrar a mulher e o filho no escritório. Era mais que óbvio que (tinham estado a conversar, mas calaram-se quando o viram.

 

— Onde está o tijolo? — perguntou, arquejante.

 

— No quarto do VJ — informou Marsha. — Temos estado demasiado ocupados a falar sobre o modo como o VJ está a planear (matar quem o atacou.

 

— E vou matá-lo — prometeu o garoto.

 

Victor gemeu, sabendo que Marsha entenderia isto como mais uma prova de que o filho sofria de uma qualquer perturbação. Voltou ao quarto do rapaz. O tijolo ainda estava no local onde caíra depois de ter partido a janela. Baixando-se, reparou no papel que estava [por baixo da fita. “Não se esqueça do nosso acordo”, dizia uma (mensagem escrita à máquina. Fez uma expressão enjoada. Quem poderia ter feito aquilo?

 

Pegando no tijolo e no bilhete, acabou por voltar ao escritório.

 

Mostrou os objectos à mulher, que lhes pegou com ambas as mãos.

 

Esta preparava-se para dizer qualquer coisa quando se ouviu a campainha da porta.

 

— Que é isto? — perguntou Victor.

 

— Deve ser a polícia—respondeu Marsha, pondo-se de pé. —Chamei-os há já um bocado, quando estavas lá fora.

 

Dito isto, abandonou a sala, começando a descer as escadas. Victor olhou para o filho.

 

— Assustaste-te, não, tigre?

 

— Acho que isso é mais que evidente. Qualquer um teria ficado assustado.

 

— Eu sei. Lamento que tenhas sido tu a aguentar as consequências de tudo isto. Ontem à noite foi o telefonema, hoje o tijolo. Tenho a certeza que não vais compreender, mas tenho tido problemas no escritório. vou tentar fazer os possíveis para que estas coisas deixem de acontecer.

 

— Não há problema — disse o garoto.

 

— Ainda bem que te mostras tão compreensivo. Anda daí, vamos falar com a polícia.

 

— Eles não vão fazer nada — comentou o rapaz. No entanto, levantou-se e desceu as escadas.

 

Os polícias de North Andover eram simpáticos e solícitos. A chamada fora respondida pelo sargento Widdicotnb e pelo guarda O’Coranor. Widdicomb rondava os sessenta e cinco anos, tinha a pele avermelhada e uma enorme barriga. O’Connor era precisamente o oposto: andava na casa dos vinte e tinha a aparência de um atleta. Contudo, era o primeiro quem conduzia a conversa.

 

Quando Victor e VJ chegaram à sala, Widdicomb estava a ler o bilhete, enquanto O’Connor media o tijolo com as mãos. O sargento devolveu o papel a Marsha.

 

— Mas que coisa horrorosa — disse. — Pensava que este tipo de coisas só aconteciam em Boston. — Dito isto, pegou num bloco, colocou a ponta do lápis na boca e começou a tomar notas. Fez as perguntas do costume, nomeadamente a que horas o facto ocorrera e se tinham visto alguém, se as luzes do quarto do rapaz estavam acesas, etc., etc. VJ não tardou a desinteressar-se e foi até à cozinha.

 

Depois de ter esgotado as questões, Widdicomb perguntou se podiam ir dar uma volta pelo pátio.

 

— Por favor — disse Marsha, fazendo um gesto na direcção da porta.

 

Depois de os polícias saírem, ela virou-se para o marido.

 

— A noite passada disseste para não me preocupar com o telefonema, que ias acabar por resolver tudo.

 

— Eu sei...—concordou ele, não sem alguma culpa. Marsha ficou à espera que Victor continuasse, mas ele não o fez.

 

— Um telefonema ameaçador é uma coisa — continuou ela. —Um tijolo atirado pela janela do quarto do nosso filho é algo completamente diferente. Já te disse que não tenho estofo para mais surpresas. Acho melhor que me digas quais são os problemas que tens tido no escritório.

 

É

 

— Acho justo. No entanto, deixa-me preparar uma bebida. Sinto que me está a fazer falta.

 

VJ ligara a televisão, e, com a cabeça apoiada no braço, estava sentado na sala a ver o programa de Johnny Carson. Os seus olhos tinham um brilho estranho.

 

— Filho, estás bem? — perguntou Marsha a partir da porta da cozinha.

 

— Estou óptimo — respondeu, sem sequer virar a cabeça.

 

— Acho que talvez seja bom deixá-lo em paz — comentou ela para o marido, que estava muito ocupado a preparar uma bebida quente feita com rum.

 

Pegaram nas canecas e sentaram-se à mesa da cozinha. À laia de resumo, Victor contou-lhe as suas divergências com Ronald, as negociações com o advogado de Gephardt, as ameaças de Sharon Carver e a situação desagradável que se estabelecera com Hurst.

 

— E pronto — concluiu —, tens aqui o resumo de uma semana de trabalho no escritório.

 

Marsha ficou a pensar em tudo o que acontecera com aqueles quatro agitadores. Exceptuando Ronald, achava que qualquer dos outros podia ser responsabilizado pelo que acontecera.

 

— E quanto ao bilhete? — perguntou. — Que espécie de acordo é este a que ele se refere?

 

Victor bebeu uma golada e pousou a caneca. Estendeu a mão e pegou no bilhete. Analisou-o durante alguns minutos e acabou por dizer:

 

— Não faço a mais pequena ideia. Não fiz acordo nenhum com ninguém. — Atirou o papel para cima da mesa. — Repara, qualquer pessoa capaz de atirar um tijolo a uma janela é capaz de fantasiar um qualquer hipotético acordo. Contudo, vou entrar em contacto com todos eles e certificar-me de que ficarão a saber que não irei ficar quieto, à espera que atirem tijolos às nossas janelas.

 

— Que tal contratarmos um segurança? — inquiriu Marsha.

 

— É uma hipótese. No entanto, deixa-me fazer estes telefonemas amanhã. Tenho o pressentimento de que vou acabar por resolver o assunto.

 

A campainha da porta voltou a tocar.

 

— Eu vou lá — disse ele. Pousou a caneca na mesa e saiu da cozinha.

 

Marsha levantou-se e foi até à sala. A televisão continuava ligada, mas o programa que estava no ar deixara de ser o espectáculo de Johnny Carson e passara a ser David Letterman. Era bastante tarde. VJ dormia profundamente. Desligou o aparelho e ficou a olhar para o filho. Este tinha um ar bastante sereno. Não havia nele qualquer sinal de hostilidade. “Oh, meu Deus”, pensou, “que teriam as experiências de Victor feito ao meu querido filho?”

 

Ouviu a porta da frente bater e o marido entrou na sala, dizendo:

 

— Os polícias não encontraram nada. Disseram apenas que vão tentar vigiar a casa durante a próxima semana. — Dito isto, deitou um olhar a VJ. — Parece que ele já se recompôs.

 

— Espero que sim — disse ela, não sem alguma melancolia.

 

— Vá lá, não quero ouvir nenhum sermão sobre a hostilidade por ele demonstrada, nem sobre outras porcarias que tais.

 

— Talvez que ele se tenha ressentido bastante quando o seu coeficiente de inteligência caiu — continuou Marsha, seguindo a sua própria linha de raciocínio. — És capaz de imaginar as feridas que o facto de saber que as suas habilidades se tinham evaporado provocaram no nosso filho?

 

— Mas o miúdo tinha só três anos e meio!

 

— Sei que não concordas comigo — retorquiu ela, olhando para o garoto adormecido. —Contudo, estou aterrorizada. Não consigo deixar de pensar que as tuas experiências genéticas lhe afectaram o futuro.

 

Na manhã seguinte, por volta das nove, a temperatura era quase estival. O Sol brilhava e Victor tinha ambas as janelas do carro abertas, bem assim como o tejadilho. Pairava no ar o cheiro a terra quente de Primavera. Carregou no acelerador e deixou o carro avançar pela estrada.

 

Deitou uma olhadela a VJ, que parecia estar recuperado dos acontecimentos da noite anterior. Tinha o braço de fora da janela, e, com a mão aberta, brincava com o vento. Tratava-se de um gesto simples, mas absolutamente normal. Victor lembrava-se de o ter feito vezes sem conta quando tinha a idade do filho.

 

Ao olhar para VJ, tinha a impressão de que não seria capaz de se libertar dos medos de Marsha. O garoto parecia estar bem, mas será que o implante não teria afectado o seu desenvolvimento? VJ era um solitário. Pelo menos neste aspecto, não saíra a ninguém da família.

 

— Como é o teu amigo Richie? — perguntou ele, de repente. O filho endereçou-lhe um olhar que era um misto de descrença e de enfado.

 

— Agora até parecias a mãe — disse. Victor riu-se.

 

— Acho que sim. Vá lá, agora a sério, como é o Richie? Por que razão é que ainda não o conhecemos?

 

— É simpático. Estou com ele todos os dias lá na escola. Não sei, mas em casa temos interesses diferentes. Ele farta-se de ver televisão.

 

— Se vocês quiserem ir a Boston esta semana, mando alguém do escritório levar-vos até lá.

 

— Obrigado, pai. vou ver o que o Richie diz a esse respeito. Victor recostou-se no assento. Era óbvio que o miúdo tinha amigos. Mentalmente, tomou nota do facto para o contar a Marsha nessa mesma noite.

 

Assim que o carro entrou no parque de estacionamento, e como que por magia, a enorme figura de Philip apareceu-lhes à frente. Ao ver o garoto, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Agarrou a parte da frente da viatura e deu-lhe um abanão.

 

— Meu Deus! — exclamou Victor.

 

V J saltou do carro e deu um soco no braço do gigante. Este fingiu que caía, recuando alguns passos, ao mesmo tempo que agarrava no braço. O miúdo soltou uma gargalhada e afastaram-se os dois.

 

— VJ, espera um pouco — gritou o pai. —Onde é que vocês vão?

 

O rapaz voltou-se e encolheu os ombros.

 

— Não sei. Ou para o café ou para a biblioteca. Porquê? Queres que faça alguma coisa?

 

— Não. Apenas quero certificar-me de que não vais para junto do rio. Este tempo quente só vai fazer que as águas subam de nível.

 

Como ruído de fundo, Victor ia ouvindo o rugido da água a escorregar pelo vertedouro.

 

— Não te preocupes. Até logo, pai.

 

Viu-os rodear o edifício, dirigindo-se para a cafetaria. Era mais do que evidente que formavam um par bastante estranho.

 

Ao chegar ao escritório, de imediato deitou mãos ao trabalho. Colleen forneceu-lhe um registo actualizado de todos os assuntos que deveriam ser tratados naquele dia. Victor pôs de parte todo o trabalho que podia adiar e ordenou tudo aquilo que não podia deixar de fazer, colocando as notas a esse respeito numa pasta que estava bem no meio da secretária. Feito isto, pegou no bilhete que viera agarrado ao tijolo.

 

— Não se esqueça do nosso acordo — repetiu. — Mas que raio significa isto? — Subitamente furioso, pegou no telefone e ligou para o advogado de Gephardt, para William Hurst e Sharon Carver. Não lhes deu quaisquer hipóteses de abrirem a boca. Assim que soube que estavam do outro lado da linha, gritou que entre eles não existiam acordos de qualquer tipo e que poria a polícia no rasto de quem lhe incomodasse a família.

 

Sentiu-se um pouco idiota depois de ter feito isto, mas esperava que a parte culpada pensasse duas vezes antes de voltar a tentar. Só não telefonou a Ronald, pois não conseguia imaginar o velho amigo a praticar actos de violência.

 

Dado que este assunto já estava arrumado, pegou na primeira anotação de Colleen, dando assim início ao cumprimento dos seus deveres administrativos.

 

O dia de trabalho de Marsha parecia um nunca mais acabar de consultas difíceis, até que. mesmo antes do almoço, um doente cancelou a entrevista, o que lhe deu a oportunidade de rever os testes de VJ. Quando os tirou da pasta lembrou-se da raiva intensa que o rapaz sentira por causa do episódio do tijolo. Deu uma olhadela à coluna onde seria suposto estar representada tanta hostilidade recalcada. A pontuação de VJ era bastante inferior à que aquele tipo de comportamento deixava prever.

 

Levantou-se, espreguiçou-se e olhou para fora da janela. Infelizmente, esta dava para um parque de estacionamento. A única coisa boa é que, para lá deste, existiam alguns campos e colinas. As árvores que conseguia avistar mantinham um ar invernoso e os seus ramos recortavam-se contra o azul do céu como se fossem esqueletos.

 

Chegou à conclusão de que os testes psicológicos não eram tão infalíveis quanto isso. Desejou poder ter conversado um pouco mais com Janice Fay. Esta vivera com eles até 1985, ano da sua morte. Se alguém se pudera aperceber do que acontecera aquando da queda dos níveis de inteligência do filho, essa pessoa era ela. O outro adulto que convivera de perto com VJ durante esse período era Martha Gillespie, a professora da pré-primária. O filho começara a frequentar este tipo de escola ainda antes de completar os dois anos.

 

Seguindo o seu impulso, virou-se para a secretária e disse-lhe:

 

— Acho que hoje não vou almoçar. Podes ir onde quiseres. Não te esqueças de ligar o gravador do telefone.

 

Ocupada a escrever à máquina, Jean acenou como que para dar a entender que compreendera a mensagem.

 

Cinco minutos mais tarde, Marsha seguia pela auto-estrada a uma velocidade considerável. Pouco depois estava a circular numa estrada secundária.

 

A Crocker Preschool era constituída por um agradável conjunto de casinhas amarelas com persianas brancas e ocupava apenas uma parte bastante pequena de toda uma enorme propriedade. Marsha perguntou-se como é que a escola conseguia arranjar dinheiro para sobreviver, mas constava que esta não era mais do que um passatempo para Martha Gillespie. A dona da escola ficara viúva bastante cedo e herdara uma fortuna considerável.

 

— Claro que me lembro do VJ — disse ela, aparentando estar indignada.

 

Marsha fora encontrá-la no gabinete da administração. Rondava os sessenta anos, tinha os cabelos brancos como a neve e as maçãs do rosto eram muito rosadas.

 

— Lembro-me dele desde o primeiro dia que passou entre nós. Era uma criança extraordinária.

 

Marsha também se lembrava do primeiro dia. Levara o filho bastante cedo para a escola e estava preocupada sobre como iria ser a sua reacção, pois o rapaz nunca estivera afastado de casa, a não ser na sua companhia ou na de Janice. Esta iria ser a sua primeira manifestação de independência. Contudo, o período de adaptação provou ser mais duro para ela do que para o filho, que correu para junto das outras crianças sem sequer olhar para trás.

 

— Para falar com franqueza — disse Martha—, lembro-me que, quando o primeiro dia chegou ao fim, já ele fizera que os outros se comportassem segundo os seus desejos. E nem sequer fizera dois anos!

 

— Nesse caso — aproveitou a outra—, deve lembrar-se do que aconteceu quando o seu coeficiente de inteligência sofreu uma baixa.

 

A velha senhora imobilizou-se e fitou-a durante breves minutos.

 

— Sim — acabou por dizer.

 

— Concretamente, do que é que se lembra?

 

— Como é que o garoto está?

 

— Espero que bem.

 

— Há alguma razão particular para que se queira incomodar a reviver todo o processo? Lembro-me que, na altura, o caso a abalou bastante.

 

— Para lhe falar com franqueza, tenho medo que volte a acontecer a mesma coisa. Acho que, se souber mais a respeito do primeiro episódio, talvez venha a conseguir impedir outro semelhante.

 

— Não sei se lhe posso dar uma grande ajuda — informou a directora. — De facto, registou-se uma grande mudança, e esta ocorreu sem se esperar. O VJ deixou de ser uma criança confiante, cuja mente parecia possuir capacidades ilimitadas, para passar a ser um garoto fechado e com poucos amigos. Contudo, não dava a sensação de ser autista. Muito embora nunca se abrisse, tinha uma percepção espantosa sobre tudo o que se passava à sua volta.

 

— Continuou a relacionar-se com crianças da mesma idade?

 

— Não muito. Quando o obrigávamos a participar, não tinha problemas em acompanhar os outros, mas, sempre que o deixávamos à vontade, limitava-se a observar. Aí está algo bastante curioso. De cada vez que insistíamos para que participasse num qualquer jogo, por exemplo, o das cadeiras, o VJ deixava sempre os outros ganhar. Isto era particularmente estranho, pois, antes disto, ele ganhava sempre todos os jogos, fosse qual fosse a idade das outras crianças.

 

— De facto, é bastante curioso — concordou Marsha.

 

Mais tarde, já de volta ao consultório, não conseguia deixar de pensar num VJ de três anos e meio que deixava as outras crianças ganhar. O facto lembrou-lhe o episódio que ocorrera no último domingo, na piscina. Apesar da enorme experiência que possuía a lidar com crianças, nunca encontrara nada assim parecido.

 

— Perfeito!—exclamou Victor, enquanto segurava uma das lâminas do microscópio contra a luz. Agarrada ao objecto que segurava estava uma parte muito fina de tecido cerebral.

 

— O que aqui está é o resultado do teste de Golgi — disse Robert. — Para além disso, estão também aqui os de Cajal e Bielschowsky. Se quiser mais alguma coisa, é só dizer.

 

— Óptimo.

 

Como sempre, Robert conseguira em menos de vinte e quatro horas aquilo que outro técnico não tão competente levaria vários dias a conseguir.

 

— E aqui estão os preparados relativos aos cromossomas — continuou o homem, entregando-lhe um tabuleiro. —Está tudo catalogado.

 

— Perfeito! — repetiu Victor.

 

Pegou nos preparados e atravessou o laboratório, dirigindo-se para a zona dos microscópios. Sentou-se em frente de um dos instrumentos e colocou a primeira lâmina debaixo da lente. Aquela tinha a seguinte etiqueta: “Hobbs, lóbulo frontal direito”.

 

Depois de ter colocado o preparado na posição desejada, corrigiu o foco.

 

— Oh, meu Deus! — exclamou, mal a. imagem se tornou nítida. Não havia qualquer sinal da existência de um tumor maligno, mas o efeito era exactamente o mesmo. As crianças não tinham morrido de edema cerebral, nem mesmo da acumulação de líquidos. Em vez disso, o que Victor viu foram sinais de mitose. As células nervosas que constituíam o cérebro estavam a multiplicar-se ao mesmo ritmo que haviam feito nos dois primeiros meses de desenvolvimento uterino.

 

O mais depressa que podia, Victor analisou as amostras das outras áreas do cérebro da criança, passando depois ao estudo do tecido nervoso do bebé Murray. Os casos eram idênticos. As células nervosas estavam a reproduzir-se a uma velocidade incrível. Dado que os cérebros das crianças já estavam formados, as células mais recentes não tinham outra hipótese senão forçar o cérebro a descer pela coluna, facto que se traduzia por resultados fatais.

 

Simultaneamente horrorizado e surpreendido, pegou no tabuleiro que continha as lâminas e abandonou o microscópio frente ao qual se sentava. Voltou a atravessar o laboratório, mas desta vez dirigiu-se para o compartimento onde se encontrava o microscópio electrónico. O local mais parecia o centro de comandos de um qualquer complexo de armamento electrónico.

 

O instrumento em si diferia bastante de um microscópio normal. Tinha mais ou menos o tamanho de um frigorífico. O corpo era constituído por um cilindro com cerca de um pé de diâmetro e três de altura. No cimo deste cilindro podia observar-se um canal electrónico que servia de fonte aos electrões. Estes eram fixados através de magnetos, os quais actuavam da mesma forma que as lentes de vidro actuam num microscópio óptico. Ao lado deste aparelho encontrava-se um computador de dimensões razoáveis. Tratava-se do computador programado para analisar as imagens dos vários planos fornecidos pelo microscópio electrónico e para construir as chapas tridimensionais.

 

A partir do material que compunha algumas das células cerebrais que estavam em processo de divisão, Robert realizara preparados extremamente finos. Victor colocou um destes preparados no local indicado à observação e começou à procura do cromossoma seis. Aquilo que lhe interessava realmente era a área de   onde inserira os genes estranhos. Demorou mais de uma hora, mas acabou por conseguir.

 

— Meu Deus! — exclamou, ao mesmo tempo que engolia em seco. As histonas que costumavam envolver o DNA ou haviam desaparecido ou mal se notavam, isto justo na área onde inserira os genes. Como se isso não bastasse, o DNA, que normalmemte se apresentava algo’ comprimido, estava espalhado, facto que sugeria a existência de trocas activas. Por outras palavras, os genes estranhos estavam a multiplicar-se!

 

Victor examinou um dos preparados pertencentes à outra criança, obtendo os mesmos resultados. Os genes que inserira estavam a multiplicar-se, produzindo FCN. Não havia quaisquer dúvidas a esse respeito.

 

Agarrando no material que pertencia a VJ e que, dado que as células apropriadas eram mais difíceis de encontrar, devia ter exigido mais paciência da parte de Robert, introduziu-o no microscópio electrónico. Demorou apenas trinta minutos a localizar o cromossoma seis. Depois, fazendo um esforço enorme, analisou os seus aspectos por mais de uma vez. Os genes que inserira não registavam qualquer actividade, estando cobertos com a histona, tal como seria de esperar.

 

Victor afundou-se na cadeira. O filho estava bem, mas as outras duas crianças haviam morrido graças às experiências que fizera. Como é que seria capaz de dizer isto a Marsha? Para falar verdade, ele mesmo não sabia como iria conseguir viver em paz consigo mesmo.

 

Levantou-se de repente e começou a andar de um lado para o outro. Por que razão o gene teria voltado a entrar em actividade? A única razão plausível para o facto seria a ingestão de cefaloclor, o antibiótico que usara durante o desenvolvimento embrional. Contudo, como poderiam aquelas crianças ter tido acesso à droga? Não se tratava de um medicamento comum, e os pais haviam sido avisados de que ambas as crianças eram alérgicas a ele, podendo mesmo morrer se o tomassem. Victor tinha a certeza que nem os Hobbs nem os Murray teriam deixado alguém administrar o antibiótico aos filhos.

 

No entanto, e dado que ambas as crianças tinham morrido quase na mesma altura, o facto não podia ser considerado acidental. Sentindo um arrepio de medo, interrogou-se sobre se a área do cromossoma seis, que escolhera para inserir o gene, não seria tão inofensiva como a maior parte das pessoas pensava. Talvez que este facto, junto com a existência de um qualquer promotor indígena, fizesse que, graças a um qualquer mecanismo desconhecido, o gene voltasse a entrar em actividade. Se assim fosse, então também VJ correria perigo. Talvez que a descida súbita que se verificara no seu nível de inteligência se tivesse ficado a dever a isto.

 

Victor tentou engolir, mas tinha a boca demasiado seca. Pegou em todas as amostras e dirigiu-se ao lavatório, onde acabou por beber um gole de água. Havia uma série de pessoas a trabalhar na sala principal, mas ele não sentia vontade de conversar. Precipitou-se para fora do gabinete de trabalho e fechou a porta. Tentou acalmar-se, mas, assim que as batidas do coração começaram a abrandar, lembrou-se das chapas que tirara há coisa de seis anos e meio ao cromossoma seis do filho.

 

Pôs-se de pé de um salto, correu para o ficheiro, e, com algum frenesim, começou à procura das fotos que tirara quando a inteligência do filho sofrera a tal quebra. Depois de as analisar, soltou um suspiro de alívio. VJ não sofrera qualquer alteração. O cromossoma em questão tinha exactamente o mesmo aspecto que agora. O DNA não revelava quaisquer sinais de estar descoberto ou em extensão.

 

Mais à vontade, Victor saiu do laboratório e foi à procura de Robert. Este estava na sala dos animais a supervisionar a substituição de Sharon Carver. Chamou-o à parte.

 

— Receio bem que tenha mais trabalho extra para si.

 

— Você é o patrão.

 

— As amostras do cérebro revelam uma determinada área do cromossoma seis onde o DNA está descoberto e a estender-se. Assim que lhe seja possível, quero que me entregue a sequência do DNA.

 

— Vai demorar algum tempo — avisou Robert.

 

— Bem sei que se trata de um trabalho moroso. Contudo, tenho algum material radioactivo à sua disposição.

 

— Isso já é outra coisa.

 

Robert seguiu Victor até ao gabinete deste último, onde recolheu todas aquelas amostras minúsculas. Depois de o funcionário ter saído, ele deixou-se ficar no escritório, tentando encontrar outra explicação para além do cefaloclor. Por que razão o FCN logo haveria de entrar em actividade nos dois garotos? Entre os dois e os três anos o crescimento não era muito intenso e as mudanças psicológicas não eram tão monumentais como as que ocorriam na puberdade.

 

O outro facto curioso prendia-se com a ocorrência simultânea do mesmo fenómeno nas duas crianças. Não fazia qualquer sentido. O único ponto comum na vida dos dois rapazes era frequentarem ambos a creche da Chimera. Essa fora uma das razões que o levara a escolher aqueles casais. Queria ter a oportunidade de observar as crianças durante o crescimento. Certificara-se também de que os Hobbs e os Murray não se conheciam, pois não os queria ver a comparar notas e a ficar com suspeitas.

 

Pegou no telefone e ligou para a secção de pessoal, pedindo que lhes fornecessem as moradas de ambas as famílias. Anotou-as num papel, saiu do escritório e avisou Colleen que iria estar fora durante algumas horas.

 

Decidiu ir primeiro à casa dos Hobbs, pois esta ficava mais perto. Estes viviam num rancho construído de tijolos, numa cidade chamada Haverhill. Estacionou em frente à casa e tocou à campainha.

 

— Dr. Frank! —exclamou William Hobbs com alguma surpresa. Escancarou a porta e fez-lhe sinal para que entrasse. — Sheila! — chamou. — Temos visitas!

 

Entrou. Muito embora a decoração da casa fosse agradável e moderna, um silêncio opressivo pairava por sobre os quartos, como se de uma mortalha se tratasse.

 

— Entre, entre — disse William, conduzindo-o até à sala. — Quer tomar um café? Ou prefere chá? — A sua voz ecoava no silêncio.

 

Sheila Hobbs juntou-se-lhes. Tratava-se de uma mulher dinâmica, que usava o cabelo muito curto. Victor já a vira várias vezes, durante as reuniões sociais promovidas pela Chimera, às quais era impossível faltar.

 

Concordou em tomar uma chávena de café e não demorou muito para que estivessem os três sentados na sala, equilibrando pequenas chávenas Wedgwood em cima dos joelhos.

 

— Estava mesmo a pensar telefonar-lhe — disse William. — O facto de aqui ter vindo foi uma coincidência.

 

— Sim?

 

— A Sheila e eu decidimos voltar ao trabalho — explicou, ao mesmo tempo que desviava o olhar para a chávena. —A princípio pensámos que talvez fosse bom afastarmo-nos. No entanto, agora, achamos que talvez seja melhor termos alguma coisa para fazer.

 

— Teremos todo o prazer em os receber de volta, seja quando for.

 

— Obrigado. Victor pigarreou.

 

— Há uma coisa que gostaria de vos perguntar — Começou. — Creio que haviam sido avisados de que o vosso filho era alérgico a um antibiótico chamado cefaloclor.

 

— É verdade — concordou Sheila. —Disseram-nos isso antes mesmo de o termos ido buscar. — Baixou a chávena e esta fez barulho quando a pousou em cima do pires.

 

— Há, por acaso, alguma hipótese de que tenham dado cefaloclor ao vosso garoto?

 

O casal entreolhou-se e respondeu em uníssono:

 

— Não. Depois disto, Sheila prosseguiu:

 

— O Mourice não tinha estado doente ou indisposto. Para além do mais, temos a certeza que esta alergia vinha mencionada na sua ficha clínica. Posso garantir-lhe que ele não tomou o antibiótico. Por que pergunta?

 

Ele levantou-se.

 

— Foi uma ideia que me ocorreu. Já calculava que o garoto não o tivesse tomado, mas lembrei-me da história da alergia...

 

De volta ao carro, dirigiu-se para Boston. Tinha a certeza que os Murray lhe diriam o mesmo que os Hobbs, mas tinha de se certificar.

 

Dado que a tarde ainda ia a meio, conseguiu pôr-se lá depressa. O maior problema que teve de enfrentar assim que chegou à cidade foi onde encontrar lugar para estacionar o carro. Acabou por resolver o problema em Beacon Hill. Uma tabuleta indicava tratar-se de uma zona de estacionamento proibido, mas ele decidiu arriscar.

 

O apartamento dos Murray ficava situado em West Cedar, bem no meio do bloco. Tocou à campainha.

 

A porta foi aberta por um homem que aparentava não ter mais de trinta anos e que usava um corte de cabelo estilo punk.

 

— Os Murray estão? — perguntou Victor.

 

— Estão ambos no emprego — informou o outro. — Sou apenas um dos funcionários do serviço de limpeza.

 

— Pensei que estivessem de licença. O homem soltou uma gargalhada.

 

— Estes viciados no trabalho? Ficaram em casa no dia a seguir à morte do filho e foi tudo.

 

Regressou ao carro, irritado consigo mesmo por não ter telefonado antes de se ter resolvido a fazer a viagem.

 

De volta à firma, dirigiu-se de imediato ao departamento de contabilidade. Foi encontrar Horace Murray sentado à secretária, debruçado sobre uma série de folhas provenientes do computador. Quando o viu, o homem pôs-se em pé, de um salto, dizendo:

 

— Colette e eu queríamos agradecer-lhe o ter ido até ao hospital.

 

— Gostaria de poder ter ajudado mais.

 

— Estava tudo nas mãos de Deus. — Horace Murray parecia resignado.

 

Quando Victor o interrogou a respeito do cefaloclor, o homem jurou que não tinham dado qualquer antibiótico ao rapaz e muito menos aquele.

 

Quando deixou o departamento de contabilidade, Victor foi atingido por um outro medo. E se houvesse qualquer ligação entre a morte das crianças e o desaparecimento das fichas? Tratava-se da mais perturbante das hipóteses, pois significava que os genes haviam sido programados deliberadamente para entrar em actividade.

 

Com o coração aos pulos, voltou ao laboratório o mais depressa que podia. Um dos técnicos que ali trabalhavam à pouco tempo tentou fazer-lhe uma pergunta, mas ele espantou-o dizendo para, e no caso de haver algum problema, ir falar com Crimes.

 

Já dentro do escritório, Victor baixou-se em frente de um cofre que estava na última prateleira da estante. Abriu a pesada porta e estendeu a mão, pronto para agarrar os livros que escrevera em código a respeito do FCN. No entanto, só conseguiu encontrar um espaço vazio.

 

Fechou o cofre e trancou-o com cuidado, muito embora este já não contivesse nada para proteger.

 

“Calma”, disse ele para si mesmo, ao mesmo tempo que tentava dominar uma onda crescente de paranóia. “Estás a deixar-te dominar pela imaginação. Tem de haver uma explicação lógica para o facto.”

 

Levantou-se e foi à procura de Robert. Encontrou-o na unidade de electrónica, a trabalhar naquilo que Victor lhe pedira ainda há pouco.

 

— Não viu por acaso os meus livros sobre o FCN? — perguntou.

 

— Não sei onde possam estar — informou Robert. — Há já seis meses que não os vejo. Pensei que os tivesse tirado do sítio.

 

Murmurando uma qualquer fórmula de agradecimento, Victor afastou-se. Aquilo deixara de se tratar de uma fantasia. As provas iam-se acumulando. Alguém interferira na sua experiência e os resultados haviam sido letais. Decidido a enfrentar o pior, dirigiu-se para o frigorífico de nitrogénio líquido. Colocou uma das mãos no fecho e hesitou. A intuição dizia-lhe aquilo que ia encontrar, mas teve de fazer um esforço para levantar a patilha. Não parava de ouvir a voz de Marsha dizendo-lhe que tinha de destruir os outros zigotes o mais depressa possível.

 

Devagar, olhou lá para dentro. A princípio nada viu, pois um nevoeiro gelado elevou-se do refrigerador e espalhou-se pelo compartimento sem fazer barulho. Quando este se desfez, fitou o prato que continha os embriões. Estava vazio.

 

Por um momento, Victor teve de se encostar ao frigorífico para não cair, incapaz de desviar os olhos do tabuleiro vazio e sem poder acreditar no que via. Só depois deixou a tampa cair. As nuvens de nitrogénio gelado enrolavam-se-lhe às pernas como se estivessem vivas. Voltou para a secretária aos tropeções e deixou-se cair na cadeira. Sempre havia uma outra pessoa a saber do seu trabalho com o FCN! Mas quem poderia ser e qual a razão que a levara a provocar a morte dos bebés? Havia ainda a hipótese de esta não passar de um acidente. Será que havia alguém tão interessado em o destruir que não se importava com o facto de magoar os outros? De repente, as ameaças de Hurst adquiriram uma outra dimensão.

 

Bastante apreensivo, Victor concluiu que tinha de descobrir quem estava por detrás de todos estes acontecimentos. Levantou-se da cadeira e começou a andar de um lado para o outro. Foi então que se lembrou que David morrera pouco depois da luta que travara para conseguir levar a Chimera ao mercado de acções. Seria possível que esta morte estivesse relacionada com o caso? E Ronald, estaria ele envolvido? Não, isso era ridículo. David morrera com um cancro no fígado e não devido a um envenenamento ou a outro acidente que pudesse ter sido provocado por alguém. Até mesmo a ideia que os bebés Murray e Hobbs haviam sido assassinados era algo precipitada. O facto só podia ficar a dever-se a um qualquer fenómeno intercelular. Talvez se tivesse verificado uma segunda devido ao congelamento, facto que seria visível assim que Robert completasse a sequência de DNA.

 

Repetindo para si mesmo que tinha de se acalmar e raciocinar com lógica, dirigiu-se para o centro de informática com vista a encontrar-se com Louis Kaspwicz. A peça onde este estava a trabalhar fora reduzida a uma carapaça de metal sem nada dentro. À sua volta estavam centenas de outras peças mais pequenas.

 

— Detesto voltar a incomodá-lo — disse Victor —, mas preciso de saber em que altura do dia as fichas foram eliminadas. Estou a tentar descobrir como é que as apaguei.

 

— Se lhe serve de consolo, há muita gente que elimina as fichas sem dar por isso. Não se torture mais. Quanto à hora, penso que foi entre as nove e as dez.

 

— Será que posso dar uma olhadela ao registo? — perguntou. Achava que se tivesse utilizado o computador antes ou depois de as fichas terem sido apagadas, talvez encontrasse alguma pista.

 

— Dr. Frank — respondeu o outro com um dos seus tiques nervosos—, esta firma é sua. Pode ver tudo aquilo que quiser.

 

Voltaram ao escritório de Louis e este entregou-lhe o registo correspondente ao dia 18 de Novembro. Victor examinou-o. Não conseguiu descobrir qualquer entrada entre as oito e meia e as dez e meia.

 

— Não vejo nada — acabou por admitir.

 

Louis passou para o outro lado da secretária e espreitou-lhe por cima do ombro.

 

— É estranho — disse, confirmando a data que estava escrita no topo da página. —É mesmo referente ao dia 18 de Novembro! — Voltou a verificar as entradas. — Ora, por amor de Deus! — exclamou. —Não admira que não encontrasse nada. Estava a olhar para a secção correspondente ao período anterior ao meio-dia. — O homem voltou a entregar-lhe o papel, apontando para a entrada em questão.

 

— Quer dizer que foi durante a noite? — perguntou ele, olhando para o lugar certo. — Não pode ser. Às vinte e uma e quarenta e cinco? Eu estava em Boston, no Symphony Hall.

 

— Que mais posso dizer? — inquiriu Louis com uma piscadela de olhos.

 

— Tem a certeza de que isto está certo?

 

— Absoluta. —Dito isto, apontou para as entradas registadas antes e depois. — Está a ver a sequência? Só pode ser a essa hora. Tem a certeza de que estava na sala de concertos?

 

— Sim.

 

— E não usou o telefone?

 

— De que é que está a falar?

 

— Esta entrada não foi feita em directo. Está a ver este número de acesso? É do PC que tem em casa.

 

— Mas eu não estava em casa!

 

Os ombros de Louis estremeceram como que num espasmo.

 

— Nesse caso, só há uma explicação. A entrada só pode ter sido feita por alguém que conhece a sua senha, bem assim como o número de código do telefone do seu computador. Não disse a ninguém qual era a sua senha, pois não?

 

— Nunca — respondeu Victor sem hesitar.

 

— Qual é a frequência com que utiliza o computador a partir de casa?

 

— Quase nunca. Houve uma época em que o fazia com frequência, mas isso foi há muito tempo, quando a companhia estava no início.

 

— Meu Deus! — exclamou o outro, olhando para o registo.

 

— Que se passa?

 

— Detesto ter de lho dizer, mas o computador tem registado uma série de entradas regulares que utilizam a sua senha. Isto só pode querer dizer que um qualquer intruso descobriu o seu número de telefone.

 

— Mas isso não é muito difícil? Louis abanou a cabeça.

 

— O número de telefone é a parte mais fácil. Lembra-se do miúdo dos fogos de Guerra? Qualquer computador pode ser programado para fazer uma lista de chamadas intermináveis servindo-se de um sistema de permutas. As coisas só começam a aquecer quando se entra no sistema de um outro computador.

 

— E este intruso tem usado o computador com frequência?

 

— Bastante. Já tinha reparado nas entradas, mas sempre pensei que fosse você. Repare! — Dito isto, abriu o ficheiro e apontou para uma série de registos que se serviam da senha de Victor. — Isto acontece quase sempre nas noites de sexta-feira. — Virou algumas páginas e mostrou mais entradas. — Deve ser quando o miúdo não tem aulas. Que raiva! Aqui está outra. Repare, o intruso já se introduziu nos departamentos de pessoal e de equipamento. Temos andado a ter problemas com as fichas e talvez seja o garoto a originá-los. Acho que não seria má ideia mudarmos a sua senha.

 

— Mas assim será mais difícil apanhá-lo. Eu só muito raramente me sirvo da senha. Por que não montarmos um sistema de vigilância nas noites de sexta-feira, com vista a localizá-lo? É possível fazê-lo, não é?

 

— É — concordou Louis —, mas só se o rapaz se mantiver em linha o tempo suficiente e o pessoal dos telefones se mantiver atento.

 

— Veja lá se consegue arranjar alguma coisa — pediu Victor.

 

— Vou tentar. Pior que um intruso, só mesmo o vírus dos computadores. Contudo, neste caso, inclino-me mais para um intruso.

 

Depois de ter abandonado o centro de informática, pensou que talvez não fosse má ideia inteirar-se do paradeiro de VJ. Depois de tudo o que acontecera, era melhor dizer-lhe para se manter afastado de Hurst e até mesmo de Ronald Beekman.

 

Começou por procurar no laboratório, mas Robert não o vira durante todo o dia, o mesmo se passando com os outros técnicos. O facto surpreendeu-o, pois o filho costumava passar o tempo a experimentar os microscópios e os outros instrumentos. Victor decidiu tentar a cafetaria. Dado que a tarde já ia avançada, eram poucas as pessoas que ali estavam. O gerente, ocupado a fechar a “caixa”, disse-lhe que vira o garoto à hora do almoço e não depois disso.

 

Assim que abandonou a cafetaria, dirigiu-se para a biblioteca, que ficava no mesmo edifício. As enormes colunas de cimento que haviam sido construídas para tornar a sala mais segura conferiam à área uma espécie de atmosfera gótica. As estantes contendo livros e revistas não eram muito altas, o que permitia abranger todo o compartimento com a vista. A zona reservada à leitura, bastante confortável, diga-se, situava-se à direita e dava para o pátio interno do complexo.

 

Quando perguntou à bibliotecária se vira VJ ou Philip, esta fez que não com a cabeça. Cada vez mais preocupado, foi até ao ginásio e à creche. Nem sinais de VJ ou de Philip.

 

De volta ao escritório e já preparado para chamar o segurança, Victor foi encontrar uma mensagem que lhe fora deixada pelo gerente da cafetaria, dizendo que VJ e Philip se encontravam lá, entretidos a comer um gelado.

 

Sem perder mais tempo, foi ao encontro de ambos. Foi encontrá-los sentados numa mesa perto da janela.

 

— Ora bem, meus caros- senhores — disse, usando um tom de raiva fingida. — Onde foi que estiveram metidos?

 

VJ voltou-se e encarou o pai. Ainda tinha a colher enfiada na boca. Philip, que não duvidava da fúria de Victor e sem saber o que havia de fazer às suas enormes mãos, pôs-se de pé.

 

— Temos andado por aí — respondeu o garoto.

 

— Onde? Procurei-os por todo o lado.

 

— Fomos dar uma volta até ao rio — confessou o rapaz.

 

— Mas eu tinha-vos dito para não se aproximarem do rio.

 

— Vá lá, pai. Não fizemos nada de perigoso.

 

— Eu nunca teria deixado que acontecesse alguma coisa ao VJ — assegurou Philip com a sua voz algo infantil.

 

— Eu sei — concordou ele, subitamente impressionado com o físico imponente do outro. Apesar de formarem um par inverosímil, Victor apreciava bastante a lealdade de Philipe em relação ao filho. —Sente-se — pediu, já com uma maior amabilidade. —Acabe de comer o gelado. Puxou de uma cadeira, sentou-se e voltou-se para o filho. — Durante os tempos mais próximos quero que tenhas muito cuidado quando andares por aí. Depois do episódio do tijolo, tenho a certeza de que já sabes que temos problemas.

 

— Eu fico bem — assegurou o rapaz.

 

— Não é isso que está em causa. Contudo, não te fará mal nenhum ter um pouco de cuidado.

 

— Está bem.

 

— E quanto a si — disse ele para Philip —, pode muito bem fazer de conta que é o guarda-costas secreto do VJ. É capaz de o fazer?

 

— Claro, Dr. Frank — respondeu o outro o mais depressa que podia.

 

— De facto — continuou ele, sabendo que Marsha ficaria satisfeita com a ideia—, por que razão é que não vem passar uns dias connosco, tal como costumava fazer quando o VJ era pequeno? Assim podia estar sempre com ele, até mesmo durante a noite.

 

— Obrigado, Dr. Frank — agradeceu o homem com um sorriso que lhe pôs a descoberto a maior parte dos dentes. — Será um prazer.

 

— Nesse caso, está combinado — disse Victor, ao mesmo tempo que se punha de pé. — Tenho de voltar para o escritório. Não tenho parado durante todo o dia. Vêmo-nos daqui a algumas horas. Depois passamos por casa do Philip para apanharmos algumas roupas que lhe façam falta.

 

Quando se afastou, tanto VJ como Philip acenaram-lhe com as colheres dos gelados.

 

Marsha tinha acabado de tirar as compras do saco quando ouviu o carro do marido subir o caminho. Enquanto Victor esperava que a porta automática da garagem se abrisse, ela reparou na terceira cabeça que vinha no assento de trás e gemeu. Comprara apenas seis costeletas de carneiro.

 

Dois minutos mais tarde e já estavam todos na cozinha.

 

— Convidei o Philip a passar alguns dias connosco — explicou Victor. — Achei que, com toda a confusão que tem havido por aqui, não seria má ideia termos cá em casa um par de braços fortes.

 

— Parece ser uma boa ideia — concordou ela. Contudo, e logo a seguir, acrescentou: — Espero que não seja a título de segurança profissional.

 

Victor riu-se.

 

— Não propriamente. — Em seguida, voltando-se para o filho e para o amigo, disse: — Por que não vão dar um mergulho?

 

Prontos para mudar de roupa, os dois subiram a escada a correr.

 

Ele avançou para dar um beijo à mulher, mas esta já estava de novo ocupada com o saco das compras. Depois foi colocar os produtos na despensa, dando uma volta maior para não passar junto dele. Era fácil de perceber que ela ainda estava zangada, mas, dado os acontecimentos das noites passadas, havia razões para isso.

 

— Desculpa lá ter trazido o Philip. Foi uma ideia de última hora — disse. — De qualquer das formas, acho que hoje não temos de nos preocupar com tijolos. Telefonei a todos os que tinham motivos para nos ameaçar e acho que resolvi tudo.

 

— Nesse caso, de onde te veio a ideia do Philip?

 

— É só uma preocupação. — Depois, para mudar de assunto, acrescentou: —Que é o jantar?

 

— Costeletas de carneiro. e temos de as fazer render — acrescentou, olhando-o de soslaio. — Por que razão continuo com a impressão de que me estás a esconder alguma coisa?

 

— Deve ser porque és desconfiada — disse, apesar de saber que ela não estava com vontade de brincar. — Que mais, para lá das costeletas?

 

— Alcachofras, arroz e salada. — Era mais que evidente que ele lhe estava a esconder alguma coisa, mas não insistiu.

 

— Posso ajudar? — perguntou Victor, enquanto lavava as mãos no lava-louça. Dado que ambos tinham actividades profissionais cansativas, costumavam preparar juntos o jantar. Ela disse-lhe para ir arranjando a salada.

 

— Hoje, de manhã, falei com o VJ a respeito do Richie — anunciou Victor. — Convenci-o a convidar o amigo para irem juntos a Boston ainda durante esta semana, por isso acho que não é justo dizer que o miúdo não tem amigos.

 

— Espero que funcione — retorquiu ela, não muito convencida. Enquanto punha as alcachofras e o arroz ao lume, continuava a observar o marido pelo canto dos olhos. Gostaria que ele lhe desse algumas informações sobre os bebés que tinham morrido, isto sem ter de lhe perguntar, mas ele continuava a preparar a salada em silêncio. Irritada, acabou por o interrogar:

 

— Há alguma novidade sobre o que poderá ter causado a morte das crianças?

 

Victor olhou-a.

 

Examinei os genes que inseri, tanto no V J como nos miúdos Hobbs e Murray. Nos bebés, pareciam estar abertos, o que não é normal, mas, no caso do nosso filho, estava tudo como deve ser. Para além djisso, dei uma olhadela a algumas fotografias do mesmo gene que foram tiradas quando a inteligência do VJ baixou. Até mesmo nessa altura, não tinham qualquer semelhança com as dos outros miúdos.

 

Marsha soltou um suspiro de alívio.

 

— Não há dúvida de que se trata de uma boa notícia. Por que razão é que não me dissestes antes?

 

— Acabei de chegar a casa — ripostou. —E estou a dizer-to, não estou?

 

— Podias ter telefonado — defendeu-se ela, convencida que Victor continuava a esconder-lhe alguma coisa. — Ou mesmo tê-lo mencionado sem eu te perguntar.

 

— Mandei analisar a sequência genética dos garotos — explicou temperando a salada com azeite e vinagre. — Depois disso, talvez esteja em condições para te explicar a razão que os levou a voltarem a multiplicar-se.

 

Marsha foi até ao armário e tirou os pratos necessários para pôr a mesa. Tentou controlar a raiva que voltara a sentir. Como é que ele podia continuar tão frio a respeito de tudo aquilo? Quando o marido lhe perguntou se podia fazer mais alguma coisa, respondeu que ele já fizera o suficiente. Victor tomou-a à letra e sentou-se num dos bancos da cozinha, ficando a vê-la pôr a mesa.

 

— Olha que eu não estava a exagerar quando disse que o VJ te deixou ganhar a corrida de natação que vocês fizeram — disse, tentando com isto espicaçar o marido. — Começou a fazer este tipo de coisas quando tinha três anos. —Marsha começou a contar tudo o que Martha Gillespie lhe dissera sobre o comportamento do filho quando este ainda andava na pré-primária.

 

— Como é que podes ter a certeza de que ele perdeu de propósito?

 

— Por amor de Deus, ainda estás aborrecido com isso — respondeu, ocupada em mexer o arroz. —No domingo, quando vos estava a observar, achei que as coisas só podiam ser assim. Mas agora, depois de ter falado com Martha, tenho a certeza absoluta. É como se o nosso filho não quisesse chamar as atenções.

 

— Às vezes, chama-se mais as atenções quando se faz tudo para perder uma corrida — retorquiu Victor.

 

— Talvez — disse, sem disso estar convencida. — A verdade é que eu dava tudo para saber mais a respeito do que se passou naquela cabeça quando ele teve de passar por aquela baixa dos níveis de inteligência. Talvez pudesse explicar o seu actual comportamento. Naquela altura, estávamos demasiado preocupados com a sua saúde para nos darmos ao trabalho de tentar saber como ele se sentia.

 

— Pois eu cá acho que ele reagiu bastante bem. — Victor abriu o frigorífico e tirou de lá de dentro uma garrafa de vinho branco. — Sei que não concordas comigo, mas eu acho que o nosso filho está óptimo. É um miúdo feliz. Tenho orgulho nele. Tenho a sensação de que vai ser um investigador e pêras. Adora o laboratório.

 

— Desde que não volte a ter quebras de inteligência... Contudo, não estou preocupada com as capacidades de trabalho por ele demonstradas. O que me tira o sono é a ideia de que as tuas experiências tenham interferido nas qualidades humanas do VJ. —Voltou-se para esconder as lágrimas que a emoção lhe fizera brotar. Quando tudo isto acabasse, não fazia a mínima ideia se seria capaz de continuar casada com Victor. Mas será que o filho estaria disposto a deixar o seu querido laboratório e a ir viver com ela?

 

— Vocês, os psiquiatras... — murmurou ele, pegando no saca-rolhas.

 

Marsha abanou o tacho do arroz e deu uma volta às alcachofras. Fez os possíveis para se controlar. Não queria chorar mais. Esteve alguns minutos sem falar. Quando o voltou a fazer, disse:

 

— Quem me dera ter um diário onde tivesse registado o desenvolvimento do garoto. Seria uma ajuda preciosa.

 

— Eu tenho um — anunciou o marido. Nesse momento, a rolha saiu da garrafa e fez um ruído semelhante a um pequeno estalo.

 

— Tens mesmo? Por que razão é que nunca me disseste?

 

— Porque se tratava de material para o projecto FCN.

 

— Posso vê-lo? — inquiriu, engolindo em seco perante a arrogância de Victor, que usara o filho como se de uma cobaia se tratasse.

 

Ele provou o vinho.

 

— Está no meu escritório. Mostro-to assim que o VJ se tiver deitado.

 

Marsha estava sentada no escritório de Victor. Preferira ler o diário sozinha, pois sabia que a presença do marido só serviria para a perturbar ainda mais. Ao reviver o nascimento do filho, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Muito embora a maior parte do diário não fosse mais do que um registo científico, comoveu-a bastante. Já se tinha esquecido de como os olhos de VJ a seguiam por toda a parte logo a seguir ao nascimento, muito antes de as crianças da mesma idade atingirem a capacidade para o fazer.

 

Todos os marcos habituais de crescimento foram atingidos antes do previsto, principalmente os que se relacionavam com a fala. Aos sete meses, quando era suposto não pronunciar mais do que “mamã” e “papá”, já compunha frases inteiras. com apenas doze meses, dominava já uma vasta área vocabular. Aos dezoito meses, a idade em que deveria ter começado a andar, guiava já uma pequena bicicleta que Victor mandara fazer de propósito para ele.

 

O facto de estar a ler tudo isto fê-la lembrar a excitação que sentira ao passar por aquelas experiências. Naquela época, cada dia que passava era assinalado pelo domínio de uma qualquer nova tarefa e pela descoberta de uma novidade inesperada. Só agora compreendia que também ela se podia considerar culpada por se ter deliciado com as proezas do filho. Naquele tempo pouca importância dera às consequências que a precocidade do garoto poderia produzir no seu desenvolvimento pessoal. Deveria ter desempenhado melhor o seu papel de psicóloga.

 

Servindo-se de uma qualquer desculpa a respeito de procurar um qualquer livro, Victor entrou na sala no preciso momento em que ela chegava a uma secção apelidada de “matemática”. Aborrecida com as suas limitações enquanto mãe extremosa, deixou-o ficar, A matemática sempre fora o seu ponto fraco. Na faculdade, precisara de ter aulas extraordinárias para conseguir fazer a cadeira de Cálculo. Quando VJ começou a mostrar grande facilidade em lidar com os números, ficara espantada. Aos três anos, e de uma forma compreensível, o filho conseguira explicar-lhe a base das operações de cálculo. Pela primeira vez na vida, Marsha foi capaz de compreender os princípios que norteavam estas operações.

 

— Aquilo que mais me admirava — disse Victor — era a habilidade que ele tinha em transformar equações matemáticas em música.

 

Ela lembrou-se da época em que pensavam ter um outro Beethoven em casa. “E eu que nunca me dei ao trabalho de pensar que o peso do génio talvez fosse de mais para ele”, pensou, não sem algum desgosto. Um pouco triste, virou as páginas que se seguiam. e foi com alguma surpresa que viu o diário chegar ao fim.

 

— Não me digas que é tudo — perguntou.

 

— Receio bem que sim.

 

Marsha leu as páginas finais. A última entrada dizia respeito ao dia 6 de Maio de 1982. Esta descrevia a experiência porque o garoto passara na creche da Chimera, e que ela tão bem lembrava. Depois, de um modo frio e racional, estava o resumo da súbita queda de inteligência verificada no filho. A última frase dizia o seguinte: “Ficámos com a sensação de que o VJ sofreu uma profunda alteração nas funções cerebrais, a qual parece ter estabilizado.”

 

— Não escreveste mais nada?

 

— Não — admitiu o marido. — Concluí que, apesar do seu sucesso inicial, a experiência fora um fracasso. Sendo assim, não havia qualquer razão para continuar a escrever.

 

Marsha fechou o livro. Esperava encontrar mais pistas para aquilo que considerava serem as deficiências de personalidade do filho.

 

— Quem me dera que houvesse aqui algo a apontar para uma doença psicossomática ou mesmo uma reacção regressiva. Nesse caso, haveria tratamento adequado. Quem me dera ter agido com mais sensibilidade quando tudo isto aconteceu!

 

— Acho que o problema do nosso filho se ficou a dever a um qualquer fenómeno intracelular. Sendo assim, acho que a história clínica não é para aqui chamada.

 

— É precisamente isso que me aterroriza. Fico com medo que o VJ venha a morrer da mesma maneira que os bebés Hobbs e Murray, ou talvez mesmo de cancro, tal como o irmão e a Janice. Já li o suficiente sobre o teu trabalho para saber que o cancro é um dos perigos relacionados com a futura terapia dos genes. As pessoas receiam que os genes estranhos provoquem proto-oncogenes, que, por sua vez, se transformem em oncogenes, o que fará que a célula em questão se transforme num cancro. — Calou-se. Sabia que a emoção estava prestes a submergi-la. — Como é que posso continuar a falar a este respeito? Não se trata apenas de um problema científico, mas sim do nosso filho... e, por aquilo que sei, despoletaste qualquer coisa dentro dele que há-de acabar por o matar.

 

Quando acabou de falar, cobriu o rosto com as mãos. Apesar de fazer os possíveis por se controlar, as lágrimas voltaram. Nada fez para o impedir.

 

Victor tentou passar-lhe um braço por cima, mas ela desviou-se. Frustrado, ele acabou por se endireitar. Observou-a durante alguns minutos. Os seus ombros tremiam em silêncio. Não havia nada que ele pudesse alegar em sua defesa. Em vez disso, saiu do escritório e subiu as escadas. A dor que sentia era indiscritível. E, depois do que hoje descobrira, tinha mais razões do que a mulher para recear pela segurança do filho.

 

QUINTA-FEIRA DE MANHA

Admirado por haver quem conseguisse aguentar aquilo todos os dias, Victor enfrentava as longas filas de trânsito típicas das horas de ponta em Boston.

 

Assim que chegou a Storrow Drive e virou à esquerda, as coisas melhoraram ligeiramente, mas voltaram a parar em Fenway. Já passava das nove quando chegou ao Children’s Hospital. Dirigiu-se directamente para o departamento de patologia.

 

— Por favor, o Dr. Shryack — perguntou.

 

A secretária levantou os olhos e, sem tirar os auscultadores, apontou para o corredor.

 

À medida que andava, Victor ia olhando para as placas que estavam nas portas.

 

— Dr. Shryack, posso entrar? — perguntou, esgueirando-se pela porta entreaberta. Um homem incrivelmente jovem levantou a cabeça do microscópio.

 

— Sou o Dr. Frank. Lembra-se de mim quando passei por aqui para assistir à autópsia do bebé Hobbs?

 

— Claro — respondeu o outro. Levantou-se e estendeu-lhe a mão. — É um prazer revê-lo em circunstâncias bastante mais agradáveis. O meu nome é Stephen.

 

Apertaram as mãos.

 

— Se foi por causa do assunto da última vez que aqui veio, receio bem não ter ainda um diagnóstico definitivo. As lâminas ainda estão a ser processadas.

 

— É certo que também estou interessado nisso. No entanto, a verdadeira razão que me fez passar por aqui foi para lhe pedir um outro favor. Tenho curiosidade em saber se, e por rotina, vocês recolhem as amostras dos fluidos.

 

— Sem dúvida — respondeu Stephen. —Nunca deixamos de fazer toxicologia.

 

— Tinha esperanças de conseguir arranjar uma amostra.

 

— Estou impressionado com o seu interesse. A maior parte dos assistentes não quer saber de nada. Venha daí, vamos ver o que se pode arranjar.

 

Saíram do escritório, desceram o corredor e entraram num enorme laboratório. Aí, o médico parou para falar com uma mulher de meia idade e de vestes austeras. A conversa durou cerca de um minuto, no fim do qual ela apontou para o extremo oposto da divisão. De seguida, o médico guiou-o até uma pequena sala lateral.

 

— Acho que estamos com sorte — disse o homem, abrindo a porta de um enorme frigorífico. Aí, no meio de centenas de balões de Erlenmeyer, encontrou os quatro de que andava à procura e entregou-os a Victor.

 

Este reparou que tinha dois frascos de sangue e dois de urina.

 

— Qual a quantidade de que precisa? — perguntou Stephen.

 

— Só um bocadinho.

 

com todo o cuidado, o outro deitou algumas gotas do conteúdo dos balões nuns tubos de ensaio que fora buscar à prateleira mais próxima. Rolhou-os, escreveu o que continham com um lápis vermelho e gorduroso e só depois os deu a Victor.

 

— Mais alguma coisa? — inquiriu o médico.

 

— bom, detesto estar a aproveitar-me da sua generosidade...

 

— Não há problema.

 

— Há cerca de cinco anos, o meu filho, David, morreu devido a um cancro de fígado bastante raro — começou Victor.

 

— Sinto muito.

 

— Foi tratado aqui. Na altura, os médicos disseram que só tinham conhecimento de meia dúzia de casos semelhantes. A ideia generalizada era que se tratava de um cancro desenvolvido a partir das células de Kupffer.

 

Stephen acenou.

 

— Acho que li qualquer coisa a esse respeito. Para falar com franqueza, tenho a certeza que o fiz.

 

— Dado tratar-se de um tumor tão raro — continuou Victor—, acha que há possibilidades de ainda haver material a esse respeito?

 

— Talvez. É melhor voltarmos ao meu escritório.

 

Mal acabara de se sentar em frente ao terminal do computador, o médico perguntou-lhe o nome completo e a data de nascimento de David. Depois disto, foi fácil obter o número de hospital do garoto, bem assim como a localização do seu registo patológico. com o dedo no écran, leu o que ali estava. Parou.

 

— Isto aqui parece ser de bom augúrio. Trata-se de um número de espécime. Vamos lá averiguar.

 

Desta vez, dirigiram-se para a subcave.

 

— Temos uma cripta onde mantemos os arquivos a longo prazo. Assim que saíram do elevador, entraram num corredor mal

 

iluminado e que se estendia numa série de direcções. O tecto estava cheio de tubos e de canais e o chão era de cimento e não tinha qualquer cobertura.

 

— Não vimos aqui abaixo com muita frequência — explicou o médico, à medida que o conduzia através do labirinto. Acabou por parar em frente de uma pesada porta de metal. Enquanto Victor o ajudava a empurrá-la, o médico estendeu a mão e acendeu a luz.

 

Tratava-se de uma divisão mal iluminada e de grandes dimensões, com algumas, poucas, lâmpadas no tecto. O ar era frio e húmido. A sala estava cheia de prateleiras metálicas que chegavam quase até ao tecto.

 

Dando uma olhadela a um número que anotara previamente num papel, Stephen abriu caminho por entre uma das filas. Victor seguiu-o, sempre a olhar para as prateleiras. A um dado momento, parou, siderado pela imagem de uma cabeça de criança que estava dentro de uma redoma de vidro, embebida num qualquer líquido destinado a conservá-la. Tinha os olhos esbugalhados e a boca aberta como que para soltar um grito. Levantou os olhos para as outras redomas. Todas elas continham um documento horrorizante de uma qualquer desgraça passada. Estremeceu. Só depois se apercebeu de que perdera o médico de vista.

 

Olhou à volta com algum nervosismo, até que ouviu a voz do patologista dizer:

 

— Estou aqui.

 

Victor avançou, deixando de prestar atenção aos espécimes das redomas. Quando chegou à esquina, viu que o médico estava a mexer numa das prateleiras, como se andasse à procura de alguma coisa.

 

— Heureca! — exclamou, endireitando-se. Segurava um pequeno frasco que continha um fígado volumoso suspenso num líquido claro. —Está com sorte — comentou.

 

Mais tarde, quando já se encontrava no elevador, perguntou-lhe a razão que o levava a querer o órgão em questão.

 

— Simples curiosidade — respondeu Victor. — Quando o David morreu, o meu desgosto foi tão grande que não fiz quaisquer perguntas. Agora, ao fim de todos estes anos, quero saber mais sobre as causas da sua morte.

 

Com VJ ao lado, Marsha passou os portões da Chimera. Durante toda a viagem de automóvel, o garoto não fizera outra coisa senão falar de um novo vídeo do Pac-Man, exactamente como qualquer outra criança de dez anos.

 

— Obrigado pela boleia, mãe — disse, saltando do carro.

 

— Avisa a Colleen a respeito dos lugares para onde vais brincar. E não quero que vás para junto do rio. Bem viste o aspecto que este tinha quando passámos pela ponte.

 

Philip apareceu, virado do banco de trás.

 

— Não vai acontecer nada de mal com o VJ — afirmou.

 

— Tens mesmo a certeza de que não preferes fazer uma visita ao teu amigo Richie? — perguntou ela.

 

— Estou óptimo aqui. Não te preocupes comigo, está bem? Ficou a ver o filho afastar-se, seguido de perto por Philip.

 

“Que par”, pensou, lutando para que tudo aquilo que sabia não a fizesse entrar em pânico.

 

Estacionou o carro e dirigiu-se para a creche. Assim que entrou no edifício, chegou-lhe aos ouvidos o som abafado de bolas de ténis. Os campos de squash ficavam no andar de cima, no centro de manutenção.

 

Marsha foi encontrar Pauline Spaulding ajoelhada no chão, a inspeccionar o trabalho de um grupo de crianças que estava a pintar com os dedos. Levantou-se quando a viu. A sua figura esbelta fazia juz aos anos em que fora professora de ginástica aeróbica.

 

Quando ela lhe perguntou se lhe dispensava alguns minutos, Pauline deixou as crianças e foi à procura de outra professora. Regressou passado pouco tempo, acompanhada de uma rapariga nova, e conduziu Marsha para uma outra sala, cheia de berços e divãs desdobráveis.

 

— Aqui podemos estar à vontade — disse. Os seus enormes olhos ovais denotavam algum nervosismo, pois partira do princípio que a outra viera tratar de qualquer assunto oficial a mando do marido.

 

— Não estou aqui na qualidade de mulher de um dos proprietários — informou Marsha, tentando pôr a empregada à vontade.

 

— Compreendo. — Pauline respirou fundo e sorriu. — Pensei que vinha queixar-se de alguma coisa.

 

— Bem pelo contrário. Queria falar-lhe a respeito do meu filho.

 

— É um rapaz maravilhoso — comentou Pauline. — Acho que deve saber que ele vem aqui de vez em quando dar uma ajuda. Para dizer a verdade, esteve aqui no fim-de-semana passado.

 

— Não sabia que o centro estava aberto aos fins-de-semana.

 

— Está aberto todos os dias — explicou a outra com orgulho. — Aqui, na Chimera, há muita gente que nunca descansa. Penso que a isso se chama dedicação.

 

Marsha não tinha a certeza de que dedicação fosse o nome certo para aquela forma de agir e perguntou-se que tipo de pressões essa chamada dedicação provocaria numa vida familiar que não fosse muito estável. Contudo, não fez qualquer comentário. Em vez disso, perguntou a Pauline se se lembrava do dia em que o coeficiente de VJ caíra.

 

— Claro que me lembro. O facto de ter acontecido aqui sempre me fez sentir um pouco responsável a esse respeito.

 

— bom, isso é completamente absurdo — disse Marsha com um sorriso. —Aquilo que quero saber é o comportamento dele depois disso.

 

Pensativa, a directora da creche olhou para o chão. Depois de um ou dois minutos levantou a cabeça.

 

— Acho que aquilo que me impressionou mais foi o facto de ele ter deixado de ser o chefe dos jogos para passar a ser um simples observador. Antes disso, estava sempre pronto para experimentar tudo e mais alguma coisa. Depois, andava sempre aborrecido e tinha de ser forçado a participar. Mais ainda, evitava todo o tipo de competição. Era como se de uma pessoa diferente se tratasse. Nunca o forçámos, tínhamos medo de o fazer De qualquer das formas, depois desse episódio deixámos de o ver com tanta frequência.

 

— Que quer dizer como isso? — inquiriu Marsha. —Até ter entrado para a pré-primária e depois de ter feito todos os exames médicos, passava as tardes aqui.

 

— Não, não passava. Começou a passar a maior parte do tempo no laboratório do pai.

 

— A sério? Pensava que isso só acontecera depois de ele ter entrado na escola. Mas, e que sei eu? Sou apenas mãe!

 

Pauline sorriu.

 

— E quanto aos amigos?

 

— bom, esse nunca foi um dos pontos fortes do VJ — respondeu a directora da creche, tentando ser diplomática. Ele sempre se deu melhor com o pessoal do que com as crianças. Depois do problema por que passou, revelou tendência para se isolar. bom, talvez seja melhor corrigir esta frase. Parecia gostar bastante de um empregado que sofre de problemas mentais.

 

— Penso que seja do Philip que está a falar, não?

 

— Precisamente.

 

Marsha levantou-se, agradeceu a Pauline e dirigiram-se as duas para a entrada.

 

— O VJ pode não ser tão inteligente como foi — disse a directora assim que chegaram à porta —, mas é um bom rapazinho. Gostamos muito dele, aqui no centro.

 

Ela apressou-se a voltar para o carro. Não ficara a saber muito, mas a impressão geral era de que o filho sempre fora mais solitário do que aquilo que suspeitara.

 

Victor sabia que, assim que chegasse à firma, se devia dirigir de imediato para o escritório. Era mais do que certo que Colleen devia estar sufocada com mensagens urgentes. Contudo, e em vez disso, levou as amostras que trouxera do Children’s Hospital directamente para o laboratório. De caminho, parou no centro de computadores.

 

Achava que iria encontrar Louis Kaspwicz às voltas com o computador avariado, mas o problema parecia estar solucionado. A máquina estava de novo a funcionar. Um dos inúmeros técnicos que ali se encontravam disse-lhe que Louis estava no escritório a tentar descobrir a solução para um problema que surgira nos programas do departamento de contabilidade.

 

Quando este o viu, pôs de parte o volumoso programa com que estava ocupado e pegou nas folhas de registo que separara para mostrar a Victor.

 

— Passei os últimos seis meses em revista — explicou, pondo os papéis em ordem para os poder mostrar — e sublinhei as vezes em que o intruso apareceu. Dá a ideia que o miúdo costuma dar sinais de vida às sextas, por volta das oito da noite. E, pelo menos cinquenta por cento das vezes, fica em linha o tempo suficiente para ser localizado.

 

— Por que razão é que diz “miúdo”? — perguntou, endireitando-se.

 

— É apenas uma força de expressão. Não há idade para invadir o sistema privado de um computador.

 

— Não pode dar-se o caso de se tratar de um dos nossos concorrentes?

 

— Ora nem mais. No entanto, a história diz-nos que há uma série de garotos a fazê-lo só porque dá gozo. Para eles não é mais do que um jogo de computadores.

 

— Quando é que poderemos tentar localizá-lo?

 

— O mais depressa possível — respondeu Louis. —Fico aterrorizado só de pensar que isto está a acontecer há imenso tempo. Não faço a mínima ideia do tipo de confusão que este sujeito tem andado a armar. De qualquer das maneiras, falei para a companhia dos telefones e pedi-lhes para nos mandarem alguns técnicos amanhã, à noite, isto se não houver qualquer objecção da sua parte.

 

— Óptimo.

 

Depois de ter resolvido este assunto, seguiu para o laboratório. Foi encontrar Robert entretido a traçar a sequência de DNA dos genes estranhos.

 

— Trago-lhe aqui mais trabalho de última hora. Se for caso disso, peça ajuda a um outro técnico. Contudo, quero que este trabalho seja da sua responsabilidade pessoal.

 

— Se for preciso, acabarei por chamar o Harry. Que mais tenho de fazer?

 

Victor abriu a maleta que trazia e tirou de lá de dentro um pequeno frasco. Estendeu-o na direcção de Robert. A sua mão não parava de tremer.

 

— Trata-se de uma parte do fígado do meu filho.

 

— Do VJ? — O rosto magro de Robert apresentava uma expressão chocada. Os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas.

 

— Não, não, do David. Lembra-se de termos mandado analisar o DNA de todos os membros da minha família?

 

Robert acenou.

 

— Quero que esse tumor seja analisado — disse ele. — Quero que faça os teste H e E, bem assim como um estudo dos cromossomas.

 

— Posso perguntar a razão que o leva a pedir tudo isto?

 

— Limite-se a fazer o que lhe mandei — respondeu Victor, com rudeza.

 

— Está bem — concordou o outro, olhando para o chão com algum nervosismo. — Longe de mim questionar as suas motivações. Limitei-me a partir do princípio de que, se andasse à procura de algo em particular, eu poderia prestar mais atenção ao assunto.

 

Victor passou as mãos pelo cabelo.

 

— Desculpe ter falado daquela maneira. Ando com uma série de problemas.

 

— Não precisa de pedir desculpas. vou já deitar mão ao trabalho.

 

— Espere, ainda há mais. — Pegou nos quatro tubos de ensaio — Tenho aqui amostras de sangue e de urina. Preciso que me descubra se nelas existem sinais de cefaloclor.

 

Robert pegou nas amostras, abanou-as com vista a verificar a sua consistência e só então deu uma olhadela às etiquetas.

 

— Vou encarregar o Harry deste trabalho. Não se trata de nenhuma tarefa transcendente.

 

— E que tal vai a sequência?

 

— Monótona, como sempre.

 

— Já apareceram algumas mutações?

 

— Nem uma para amostra. E, a avaliar pela forma como as coisas estão a correr, tudo indica que os genes sempre se comportaram de maneira normal.

 

— Isso é mau sinal — disse Victor.

 

— Pensei que iria ficar satisfeito com esta notícia — retorquiu Robert.

 

— E, em circunstâncias normais, até talvez ficasse. — Não adiantou qualquer explicação. Ter-lhe-ia sido bastante difícil explicar que esperava poder encontrar provas concretas de que o FCN das crianças mortas era diferente do de VJ.

 

— Ah, então está aqui!—exclamou uma voz, surpreendendo tanto Victor como Robert. Ambos se voltaram e deram de caras com Colleen, que, de pernas ligeiramente afastadas e braços cruzados, os fitava a partir da entrada da porta. — Uma das secretárias disse-me que o tinha visto por aqui. — Dito isto, piscou o olho.

 

— Lá estava quase a ir para o escritório — defendeu-se Victor.

 

— Claro, e eu estou prestes a ganhar a lotaria — riu-se a secretária.

 

— Quer dizer que o escritório está uma desgraça, não? — perguntou, vagamente acabrunhado.

 

— Olhem para ele, a julgar-se indispensável — disse Colleen para Robert, num tom brincalhão. — Por acaso, as coisas até nem vão muito mal. Despachei quase tudo o que apareceu. Contudo, há algo que tem de saber imediatamente.

 

— De que se trata? — quis saber, subitamente preocupado.

 

— Talvez fosse melhor conversarmos em privado. —Ao dizer isto, a secretária sorriu para Robert, como que para dizer que não tencionava ser indelicada.

 

— Claro — concordou Victor, algo desajeitado. Atravessou o laboratório e dirigiu-se para uma das bancadas situadas no extremo oposto. Colleen seguiu-o.

 

— É a respeito do Gephardt. Darryl Webster, a pessoa encarregue da investigação, tem estado a tentar entrar em contacto consigo. Acabou por se abrir comigo. Parece que descobriu uma série de irregularidades. Durante o tempo em que Gephardt foi o responsável pelas compras da companhia, desapareceu uma grande quantidade de equipamento de laboratório.

 

— Nomeadamente?

 

— Coisas bastante importantes. Unidades de cromatografia destinadas ao processamento de proteínas líquidas, processadores de sequências de DNA, espectómetros e outras coisas do mesmo tipo.

 

— Meu Deus!

 

— O Darryl achou que lhe devia dizer — acrescentou Colleen.

 

— Chegaram a encontrar as ordens de encomenda?

 

— Não. É precisamente isso que torna tudo tão estranho. O equipamento foi recebido, só que nunca chegou ao departamento que era suposto tê-lo encomendado. E, dado que nunca chegara a emitir qualquer ordem nesse sentido, o departamento em questão nunca o reclamou.

 

— Então foi assim que ele fez as coisas! — exclamou Victor, espantadíssimo. — Não é para admirar que o advogado tivesse tanta vontade de chegar a um acordo. Já sabia o que acabaríamos por encontrar.

 

Zangado, lembrou-se que o bilhete que viera atado ao tijolo falava num acordo. Era mais do que evidente que era Gephardt quem se encontrava por trás de todas aquelas ameaças.

 

— Posso partir do princípio que temos o número de telefone desse filho da mãe? — inquiriu, bastante irritado.

 

— Acho que sim — respondeu a secretária. — Deve estar na ficha dele.

 

— Quero fazer-lhe um telefonema. Estou farto de comunicar com ele através do advogado.

 

De volta ao edifício da administração, Colleen foi obrigada a correr para o poder acompanhar. Nunca o tinha visto tão irritado.

 

A fúria ainda não lhe passara quando marcou o número do telefone do outro, ao mesmo tempo que fazia sinal à secretária para ficar na sala, pois assim poderia testemunhar a conversa. Contudo, o telefone não parava de tocar.

 

— Raios! — praguejou ele. — Ou o filho da mãe não está, ou não quer atender. Onde é que ele mora?

 

Colleen começou a procurar a morada e acabou por descobrir que o homem morava em Lawrence, não muito longe da Chimera.

 

— Acho que vou passar por lá quando for para casa. Tenho o pressentimento de que este senhor já foi a minha casa. Estava na hora de lhe retribuir a visita.

 

Assim que um dos seus pacientes desistiu da consulta por se encontrar doente, Marsha decidiu aproveitar aquela hora para visitar Pendleton Academy, a escola privada que VJ frequentava desde que abandonara o jardim infantil.

 

Apesar de as árvores continuarem sem folhas e de a erva apresentar uma coloração acastanhada, o jardim estava muito bonito. Os edifícios de pedra estavam cobertos de heras, o que lhes dava o aspecto de fazerem parte de uma qualquer universidade antiga.

 

Estacionou o automóvel perto do edifício da administração e saiu. Não estava tão familiarizado com a escola como deveria estar. Muito embora tanto ela como o marido lá fossem com frequência nos dias destinados a receber os encarregados de educação, só por duas vezes conversara com o director, Perry Remington. Tinha esperanças de que ele a recebesse.

 

Quando entrou no edifício, ficou satisfeita por ver uma série de secretárias ocupadas com o seu trabalho. Ainda bem que aquela semana de folga não se estendera ao pessoal. Mr. Remington encontrava-se no escritório e teve a amabilidade de a receber durante alguns instantes.

 

O director era um homem imponente, que usava uma barba espessa e bem aparada. As sobrancelhas farfalhudas apareciam-lhe por cima dos aros de osso dos óculos.

 

— Ficamos sempre satisfeitos por receber os pais — disse ele, oferecendo-lhe uma cadeira. Sentou-se, cruzou as pernas e ficou a balouçar uma pasta nos joelhos. — Em que lhe posso ser útil?

 

— Ando um pouco curiosa a respeito do meu filho, VJ. Sou psiquiatra e, para lhe ser franca, ando um pouco preocupada com ele! Sei que as suas notas são boas, mas gostaria de saber como vão as coisas no geral. —Fez uma pausa. Não queria pôr as palavras na boca do director.

 

Este aclarou a garganta.

 

— Quando me disseram que estava lá fora, dei uma vista de olhos ao processo do seu filho. — Começou a bater com os dedos na pasta e acabou por mudar de posição, desta vez cruzando a outra perna. — De facto, se não tivesse passado por aqui, era bem provável que tivesse sido eu a telefonar-lhe assim que a escola reabrisse. Apesar das excelentes notas que tira, o seu filho tem qualquer problema de concentração. Os professores dizem que é com frequência que ele parece sonhar acordado, perdido no seu próprio mundo, muito embora admitam que, sempre que é chamado, responde certo.

 

— Nesse caso, por que razão andam eles preocupados?

 

— Acho que é por causa das brigas.

 

— Brigas! — exclamou Marsha. — Nunca ouvi nada a respeito dessas brigas.

 

— Só neste ano, já se verificaram quatro ou cinco episódios.

 

— E por que razão nunca me chamaram a atenção para o facto? — perguntou ela com alguma indignação.

 

— Não a contactámos porque o V J pediu para não o fazermos.

 

— Mas isso é um absurdo! — exclamou, levantando a voz. — Então agora andam às ordens do VJ?

 

— Só um momento, Dr.a Frank — atalhou Mr. Remington. — De todas as vezes que se verificaram acidentes, o membro do pessoal que a eles assistiu disse que era mais do que óbvio que o seu filho foi bastante provocado, limitando-se a usar os punhos como último recurso. De todas as vezes se repetiu a mesma cena: um dos nossos conhecidos brigões reagiu de maneira infantil à... bem, à estranheza do seu filho. O VJ nunca foi apanhado em falta nem foi ele o instigador. Foi só por isso que respeitámos os seus desejos e não a incomodámos.

 

— Mas ele podia ter-se magoado — disse Marsha, voltando a sentar-se.

 

— Aí está outro facto surpreendente. Para um rapaz que quase não pratica desporto, o VJ saiu-se bastante bem. Chegou mesmo a partir o nariz a um dos outros rapazes.

 

— Parece que, nestes últimos dias, tenho aprendido umas coisas acerca do meu filho. E no que diz respeito a amigos?

 

— É bastante solitário — respondeu o director. — Para lhe falar com franqueza, não se dá nada bem com os outros garotos. Na maior parte dos casos, não chega a manifestar-se qualquer tipo de hostilidade. Ele limita-se a “gir como bem lhe apetece.

 

Não era aquilo que Marsha gostaria de ouvir. Tinha esperança de que, na escola, o filho fosse bastante mais sociável do que aquilo que se mostrava em casa. — Era capaz de o descrever como sendo uma criança feliz? — acabou por perguntar.

 

— Trata-se de uma pergunta difícil. Acho que ele não é propriamente infeliz, mas o seu filho esconde bastante bem as emoções que sente.

 

Ela franziu o sobrolho. Em vez de se verificarem melhoras, as coisas estavam a piorar.

 

— Um dos nossos professores de matemática, Raymond Cavendish — prosseguiu Mr. Remington—, interessou-se pelo VJ de um modo especial. Fez um esforço incrível para penetrar naquilo a que ele chamava o seu pequeno mundo”.

 

Marsha inclinou-se para a frente.

 

— É mesmo? E foi bem sucedido?

 

— Infelizmente, não. No entanto, a razão que me levou a mencionar este episódio prende-se com o facto de o objectivo de Raymond ser o de fazer que o seu filho se envolvesse em actividades extracurriculares, como, por exemplo, o desporto. VJ não se mostrou muito interessado, isto apesar de ter revelado grandes aptidões para o basquetebol e para o futebol. Contudo, concordo com a opinião do meu colega quando dizia que o VJ não desenvolve outros interesses.

 

— E que foi que levou Mr. Cavendish a interessar-se pelo meu filho?

 

— Parece que tudo se ficou a dever à habilidade revelada por ele para a matemática. Colocou-o numa classe de crianças sobredotadas, as quais eram provenientes de diferentes níveis. Era-lhes permitido avançar segundo o seu próprio ritmo. Certo dia, quando o meu colega ajudava alguns garotos dos níveis mais avançados a resolver os problemas de álgebra, reparou que VJ sonhava acordado. Chamou-o pelo nome e disse-lhe para voltar ao trabalho. O seu filho pensou que lhe pediam uma resposta, e, para espanto de todos, saiu-se com a solução para um problema bastante complicado.

 

— É inacreditável! — exclamou ela. — Será que me seria possível dar umas palavrinhas a Mr. Cavendish?

 

O director fez que não com a cabeça.

 

— Receio bem que não. O meu colega morreu há já alguns anos.

 

— Oh, lamento muito.

 

— Foi uma grande perda para a escola — concordou Mr. Remington.

 

Seguiu-se uma pausa. Marsha estava prestes a despedirse quando o seu interlocutor disse:

 

— Se quer saber a minha opinião, acho que seria melhor para o seu filho se ele passasse mais tempo aqui na escola.

 

— Está-se a referir às férias de Verão?

 

— Não, estou a falar do período normal. O seu marido escreve bastantes notas a autorizar o VJ a passar mais tempo no seu laboratório. Bem, muito embora eu seja a favor de ambientes alternativos no que se refere à educação de um rapaz, talvez fosse melhor ele participar um pouco mais, principalmente na área extracurricular. Parece-me que...

 

— Espere só um momento — interrompeu ela. —Está a dizer-me que o meu filho falta às aulas para ir para o laboratório?

 

— Sim, com bastante frequência.

 

— Isso para mim constitui novidade. Sei que o VJ passa muito tempo no laboratório, mas não sabia que faltava às aulas por isso.

 

— Na minha opinião — prosseguiu o director —, diria que o seu filho passa mais tempo no laboratório do que aqui, na escola.

 

— Meu Deus! —exclamou.

 

— Se concorda comigo, então talvez seja melhor ter uma conversa com o seu marido.

 

— Pode crer que o farei — disse, pondo-se de pé. — Pode ter a certeza disso.

 

— Quero que fiquem aqui no carro — disse Victor para VJ e Philip, ao mesmo tempo que se inclinava para a frente e olhava para a casa de Gephardt através do pára-brisas. Tratava-se de um edifício de dois andares, com uma fachada de tijolo e falsas venezianas.

 

— Deixa o carro ligado para podermos ouvir rádio. — Era VJ quem pedia. Estava sentado ao lado do condutor. Philip seguia no banco de trás.

 

Victor rodou a chave na ignição. O rádio voltou a emitir a mesma música rock que o filho havia seleccionado. com o motor desligado, o barulho era ainda maior.

 

— Não vou demorar muito — disse, saindo da viatura. Agora que se encontrava na propriedade de Gephardt, já não se sentia tão confiante a respeito do tal confronto. A casa estava situada num grande terreno, escondida dos vizinhos por uma vasta porção de tílias e de carvalhos. À esquerda do edifício existia uma janela algo proeminente e que talvez indicasse a sala. Muito embora o dia começasse a escurecer, não se viam luzes acesas. Contudo, e dado que havia uma carrinha Ford estacionada no caminho, Victor calculou que estivesse alguém em casa.

 

Voltou a enfiar a cabeça no carro.

 

— Não me demoro.

 

— Já o tinhas dito — disse VJ, marcando o compasso da música no tablier com a palma da mão.

 

Embaraçado, Victor acenou. Endireitou-se e começou a andar na direcção da casa. À medida que avançava, começou a perguntar-se se não seria melhor ir-se embora e fazer um telefonema, mas lembrou-se do equipamento que faltava no laboratório, nas falcatruas que haviam sido feitas com os recibos de pagamento de alguns empregados mortos e do tijolo que fora lançado pela janela do quarto do filho. Este último argumento fez que a sua fúria voltasse e devolveu determinação aos seus passos. Quando se aproximou um pouco mais, deu uma olhadela à fachada de tijolo e perguntou-se se o que fora lançado contra a sua casa era proveniente das sobras da construção da vivenda de Gephardt. Ao olhar de novo para a janela da sala, Victor sentiu vontade de atirar contra ela um dos paralelepípedos que pavimentavam o caminho. Foi então que parou.

 

Pestanejou como se os seus olhos não estivessem a ver a verdade. Estava a cerca de vinte pés da janela e podia ver que a maior parte dos vidros estava partida. Era como se a sua fantasia se tivesse tornado realidade de um momento para o outro.

 

Olhou de novo para trás, para o automóvel. Ao ver as silhuetas de VJ e de Philip, sentiu uma terrível vontade de dar meia volta e de se ir embora. Havia ali qualquer coisa de errado. Sentia-o. Voltou a olhar para a janela partida e depois para os degraus da porta da frente. Aquilo ali estava demasiado sossegado, demasiado escuro. Mas foi então que se lembrou que o filho poderia pensar que ele estava com medo. Já que ali chegara, por que não continuar?

 

Subiu os degraus e viu que a porta não estava totalmente fechada.

 

— Está alguém em casa? — gritou. Abriu a porta um pouco mais e entrou.

 

O novo grito que estava prestes a soltar morreu-lhe nos lábios. A cena sangrenta que foi encontrar na sala de Gephardt era bem pior do que aquilo que já alguma vez vira, mesmo durante o tempo em que trabalhara no Boston City Hospital. Sete cadáveres, incluindo o de Gephardt, estavam grotescamente espalhados pelo aposento. Os corpos estavam cravejados de balas e no ar pairava o cheiro a cordite.

 

O assassino devia ter-se retirado há pouco, pois das feridas ainda jorrava sangue. Para além de Gephardt, havia também uma mulher da mesma idade, que Victor calculou tratar-se da esposa, um casal de idade e três crianças. A mais nova aparentava ter cinco anos. Gephardt fora alvejado tantas vezes que a parte de cima da cabeça desaparecera.

 

Depois de, em vão, ter procurado encontrar sinais de vida nos corpos, endireitou-se. Sentia-se fraco e tonto. Foi até junto do telefone, perguntando-se se seria sensato tocar em alguma coisa. Não se deu ao trabalho de chamar uma ambulância, mas marcou o número da polícia, de onde lhe disseram que iriam enviar um carro imediatamente.

 

Ele decidiu ir esperar para o automóvel. Receava que se ficasse ali mais tempo se visse obrigado a vomitar.

 

— Vamos ficar aqui mais um bocado — disse, abrindo a porta e deixando-se cair no assento. Desligou o rádio. Não conseguia tirar da cabeça a imagem de toda aquela gente assassinada. —Aconteceu uma coisa de grave lá em casa e a polícia vem a caminho.

 

— Quanto tempo é que vamos aqui ficar?

 

— Não tenho a certeza. Talvez uma hora.

 

— Também vêm os tanques dos bombeiros? — perguntou Philip com ansiedade.

 

A polícia chegou em força, trazendo consigo quatro carros, provavelmente toda a frota de Lawrence. Victor não voltou a entrar em casa, antes se deixando ficar nos degraus. Meia hora depois, um dos polícias à paisana saiu de casa para lhe falar.

 

— Sou o tenente Mark Scudder — disse. —Penso que já lhe devem ter pedido o nome e a morada.

 

Victor respondeu afirmativamente.

 

Aquilo lá dentro está feio — comentou Scudder. Acendeu um cigarro e atirou o fósforo para a relva do jardim. — Parece tratar-se de uma qualquer vendetta relacionada com a droga... o tipo de cena que se espera encontrar na zona sul de Boston, mas nunca aqui.

 

— Chegaram a encontrar drogas? — quis ele saber.

 

— Ainda não — respondeu o polícia, puxando uma longa fumaça do cigarro. — Contudo, de certeza que não se tratou de um crime passional. Devem ter lá estado duas ou três pessoas ao mesmo tempo

 

— Vocês ainda vão precisar de mim? Scudder abanou a cabeça.

 

— Se já deu o nome e o número de telefone, então pode-se ir embora quando quiser.

 

Aborrecida como estava, Marsha mal se conseguiu concentrar nos doentes que atendeu de tarde e precisou de fazer das tripas coração para mostrar um mínimo de atenção em relação ao último caso. Tratava-se de uma rapariga de vinte anos com uma personalidade narcisista e bastante perturbada. Assim que ela saiu, pegou na mala e foi para o carro. Pela primeira vez na vida, deixou a correspondência para o dia seguinte.

 

Durante o caminho até casa não fez outra coisa senão pensar na conversa que tivera com o director da escola. Ou Victor lhe mentira a respeito da quantidade de tempo que VJ passava no laboratório ou o filho andava a falsificar as autorizações. Ambas as hipóteses eram perturbadoras e ela acabou por compreender que seria incapaz de tentar pôr em ordem os sentimentos que o marido e a experiência que levara a cabo lhe despertavam. Para que isso acontecesse, primeiro precisava de saber em que medida o filho fora afectado. A descoberta das suas mentiras só vinha agravar as preocupações que sentia, pois tratava-se de um sintonia clássico de distúrbios de personalidade, os quais poderiam levar a um comportamento anti-social.

 

Entrou no caminho que levava à garagem e acelerou para subir a pequena inclinação. Escurecera quase completamente e vira-se obrigada a acender os faróis. Deu a volta à casa e estava prestes a carregar nos comandos automáticos da porta da garagem quando as luzes dos faróis lhe revelaram que havia algo pregado nesta. Dado que a superfície branca da porta reflectia a luz, não podia ver do que se tratava. Protegendo os olhos com as mãos, Marsha saiu do carro e deu alguns passos em frente. Pestanejando, levantou os olhos para o objecto, que mais parecia uma bola de farrapos.

 

— Oh, meu Deus!—gritou, quando viu do que se tratava. Tentando afastar a náusea que sentia, olhou mais uma vez. A gata fora estrangulada e pregada contra a porta, tal como se tivesse sido crucificada.

 

Tentando não olhar para os olhos esbugalhados e a língua pendurada, leu o bilhete escrito à máquina que lhe fora preso à cauda: “É MELHOR QUE FAÇA AS COISAS COMO DEVE SER.”

 

Deixando ficar o carro onde estava, mas não sem antes ter desligado as luzes e o motor, precipitou-se para casa, onde acabou por trancar a porta. A tremer de revolta, medo e raiva, tirou o casaco e foi à procura da empregada, Ramona, que estava a arrumar a sala. Perguntou-lhe se ouvira algum ruído estranho.

 

— Por acaso ouvi umas marteladas por volta do meio-dia — respondeu a mulher. — Abri a porta da frente, mas não vi ninguém.

 

— Nem sinais de carro ou de camião?

 

— Nada.

 

Marsha deixou-a voltar às limpezas e foi fazer um telefonema ao marido, mas, assim que obteve ligação, disseram-lhe que este já saíra. Ficou indecisa sobre se havia ou não de chamar a polícia, mas acabou por concluir que Victor estaria em casa dentro de alguns minutos. Decidiu que estava a precisar de um copo de vinho. Mal tinha dado a primeira golada quando viu a luz dos faróis reflectida contra o celeiro.

 

— Raios! — praguejou Victor, quando viu o carro da mulher estacionado em frente da garagem. — Por que razão é que a tua mãe fez aquilo? Pelo menos podia ter-se chegado para um lado.

 

Virou o carro para a porta das traseiras, parou, e só então desligou as luzes e a ignição. Depois do que se passara com Gephardt, era uma pilha de nervos. VJ e Philip não faziam a mínima ideia do que ali se passara, e, muito embora fossem obrigados a esperar durante bastante tempo, não tinham querido saber nada.

 

Acabou por sair do carro e seguir os outros para casa. Assim que fechou a porta, ficou a saber que Marsha não estava nos seus dias. Dizia-o o tom com que ordenara a V] e a Philip para tirarem os sapatos e irem lavar as mãos antes do jantar.

 

Victor pendurou o casaco e só depois entrou na cozinha.

 

— Ah, estás aí! —exclamou ela —Parto do princípio que não viste o presentinho que nos deixaram na porta da garagem?

 

— Do que é que estás a falar? — perguntou, enfrentando o tom provocador da mulher.

 

— Para mim é um mistério que não o tenhas visto — continuou ela, pousando o copo de vinho, ao mesmo tempo que acendia a luz do pátio e passava por Victor como se fosse uma flecha. — Anda daí!

 

Ele hesitou durante alguns instantes, acabando por segui-la. Marsha conduziu-o através da sala e fê-lo sair pela porta das traseiras.

 

— Marsha! — chamou ele, ao mesmo tempo que a tentava acompanhar.

 

Ela parou em frente do carro que lhe pertencia. Victor juntou-se-lhe.

 

— Mas que diabo estás tu... —começou. As palavras morreram-lhe na garganta assim que os seus olhos pousaram em Kissa, brutalmente pregada contra a porta.

 

Marsha, de mãos nas ancas, olhava para o marido e não para a gata.

 

— Pensei que talvez estivesses interessado em ver a excelente forma como “resolveste” as coisas com essa gente que te anda a dar problemas.

 

Ele deu meia volta. Não era capaz de continuar a olhar para o corpo morto e torturado do animal, da mesma forma que não era capaz de encarar a mulher.

 

— Quero saber quais as medidas que vais tomar para acabar com tudo isto. E não penses que me vou contentar com um simples “deixa isso comigo”. Quero saber já, neste momento, quais os passos que estás disposto a dar. Já não aguento mais... —A voz sumiu-se-lhe.

 

Victor também não tinha a certeza do que ainda seria capaz de aguentar. A mulher estava a tratá-lo como se a culpa fosse sua, como se tivesse sido ele a provocar tudo aquilo. No entanto, não fazia a mínima ideia de quem poderia estar por detrás daquilo tudo. Estava tão abalado como ela.

 

Devagar, acabou por ganhar coragem para olhar para a porta da garagem. Não sabia se havia de ficar zangado ou enjoado. Quem poderia ter feito aquilo? Se fora Gephardt, este pelo menos não os incomodaria mais.

 

— Passámos de um telefonema a uma janela partida e de uma janela partida a um animal assassinado — comentou a mulher. — Que virá a seguir?

 

— Vamos chamar a polícia.

 

— Não há dúvida de que da última vez nos deram uma grande ajuda.

 

— Não sei o que esperas de mim — ripostou ele, recuperando alguma dignidade. — Telefonei às três pessoas que suspeitei estarem por detrás de tudo isto. A propósito, a lista dos suspeitos ficou reduzida a dois.

 

— Que quer isso dizer?

 

— Hoje, à tarde, quando vinha para casa, fiz uma visita a George Gephardt. O homem estava...

 

— lac! — A voz de VJ tinha uma expressão enojada.

 

A súbita aparição do rapazinho surpreendeu tanto Marsha como Victor. Ela tinha esperanças de poder poupar o filho a tudo aquilo. Colocou-se entre VJ e a porta da garagem, tentando ocultar aquela cena macabra.

 

— Olha só para a língua dela! — exclamou o garoto, olhando para a mãe.

 

— Já lá para dentro, rapazinho! —ordenou ela, tentando empurrar o filho para casa. Nunca seria capaz de perdoar a Victor por isto.

 

Contudo, VJ não lhe ligou nenhuma. Mostrava-se determinado a dar uma olhadela. Para Marsha, aquele interesse tinha qualquer coisa de mórbido, clínico, mesmo. com bastante desgosto, reparou que a reacção de VJ era desprovida de sentimentos — um outro factor sintomático de desequilíbrio.

 

— VJ! —gritou ela. Quero que vás imediatamente para casa.

 

— Achas que mataram a Kissa antes de a terem pregado à porta? — inquiriu o rapaz, bastante calmo, tentando dar mais uma olhadela ao animal enquanto a mãe o empurrava na direcção da porta de casa.

 

Uma vez lá dentro, Victor dirigiu-se para o telefone, ao passo que Marsha tentava conversar com o filho. De certeza que ele tinha de ter pena do animal. Victor conseguiu contactar com a esquadra de North Andover. A telefonista garantiu-lhe que um carro-patrulha seguiria de imediato para lá.

 

Desligou o aparelho e voltou para a sala. VJ subia os degraus da escada de serviço a dois e dois. Marsha estava sentada no sofá, de braços cruzados e com uma expressão zangada. Era mais do que óbvio que a sua irritação aumentara depois de...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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