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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA PRAIA DE CHESIL / Ian McEwan
NA PRAIA DE CHESIL / Ian McEwan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NA PRAIA DE CHESIL

 

Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível. Estavam sentados a jantar numa sala minúscula no primeiro andar de uma estalagem georgiana. Na sala ao lado, através da porta aberta, via-se uma cama de colunas, bastante estreita, com uma colcha de um branco imaculado e espantosamente lisa, como se tivesse sido esticada por qualquer mão não humana. Edward não referia que, até então, nunca havia ficado num hotel, enquanto Florence, após muitas viagens que fizera com o pai, em criança, já tinha vasta experiência nesse domínio. Superficialmente, estavam bem-dispostos. O seu casamento, na igreja de St. Mary, em Oxford, tinha corrido bem; o serviço religioso foi correcto, a recepção divertida, a despedida dos amigos da escola e da faculdade ruidosa e animada. Os pais dela não tinham tratado os dele com ares de superioridade, como ambos haviam receado, e a mãe dele portara-se razoavelmente, ou esquecera por completo o objectivo da cerimónia. O casal partira num pequeno carro pertencente à mãe de Florence e chegara ao entardecer ao hotel na costa do Dorset com um tempo que não era perfeito para meados de Julho ou para aquelas circunstâncias, mas que era inteiramente adequado: não chovia, mas também não fazia calor suficiente, segundo Florence, para comerem no exterior, no terraço, como haviam esperado. Edward não era da mesma opinião, mas, delicado como era, nunca lhe passaria pela cabeça contradizê-la numa noite como aquela.

E assim estavam a comer nos seus aposentos, diante de uma porta envidraçada entreaberta, que dava para uma varanda de onde se avistava uma parte do Canal da Mancha e a praia de Chesil com os seus seixos a estenderem-se até ao infinito. Dois rapazes de smoking serviam-nos de um carrinho estacionado lá fora, no corredor, e as suas idas e vindas através do que era habitualmente conhecido como suíte da lua-de-mel faziam as tábuas de carvalho do soalho ranger de uma forma cómica no meio do silêncio. Orgulhoso e protector, o jovem observava atentamente em busca de qualquer gesto ou expressão que pudessem parecer satíricos. Não teria tolerado a mais ligeira risadinha. Mas aqueles rapazolas de uma aldeia das imediações desempenhavam a sua tarefa com as costas curvadas e os rostos fechados, e os seus modos eram hesitantes e as suas mãos trémulas ao colocarem coisas sobre a toalha de mesa de linho, engomada. Também eles estavam nervosos.

Aquele não era um momento alto na história da cozinha inglesa, o que na época não importava muito a ninguém, excepto aos visitantes estrangeiros. A refeição formal abriu, como tantas outras na altura, com uma talhada de melão decorada com uma única cereja cristalizada. Lá fora, no corredor, em pratos de prata colocados sobre chapas aquecidas por velas, esperavam fatias de carne assada havia muito, com um molho espesso, legumes tenros cozidos e batatas de uma tonalidade azulada. O vinho era francês, embora o rótulo, embelezado com uma única andorinha num voo vertiginoso, não mencionasse nenhuma região particular. Não teria passado pela cabeça de Edward encomendar um tinto.

Desesperados por que os empregados partissem, ele e Florence agitavam-se de um lado para o outro nas cadeiras a fim de apreciarem a vista: um vasto relvado coberto de musgo e, mais para além, um emaranhado de arbustos floridos e de árvores que trepavam até uma vertente íngreme, quase um penhasco, que, por sua vez, descia até uma vereda que conduzia à praia. Avistavam o início de um carreiro, que formava um declive acentuado junto de degraus enlameados, um caminho ladeado de ervas de tamanho extravagante, semelhantes a ruibarbos e couves gigantescos, com caules intumescidos quase com dois metros de altura, curvados sob o peso de folhas escuras e espessas. A vegetação do jardim erguia-se diante deles, voluptuosa e tropical na sua profusão, efeito este realçado pela luz cinzenta e suave e por uma ténue neblina vinda do mar, cujo constante movimento de avanço e recuo produzia sons semelhantes a uma trovoada à distância, a que se seguia um súbito ciciar contra os seixos. O plano deles era, depois do jantar, calçarem sapatos resistentes e passearem na longa faixa de pedras entre o mar e a lagoa de água salobra conhecida por The Fleet e, caso não tivessem acabado o vinho, levarem a garrafa e beberem por ela como vagabundos.

E tinham tantos planos, planos estonteantes, empilhados à sua frente no futuro envolto em neblina, tão densamente emaranhados como a flora estival da costa do Dorset, e tão belos como ela. Onde e como viveriam, quem seriam os seus amigos íntimos, o trabalho dele na firma do sogro, a carreira musical dela, o que iriam fazer com o dinheiro que o pai dela lhe havia dado, e como não seriam iguais às outras pessoas, pelo menos interiormente. Aquela ainda era a época — que viria a terminar mais tarde naquela famosa década — em que ser jovem era um estorvo social, uma marca de irrelevância, uma situação ligeiramente embaraçosa para a qual o casamento era o início de uma cura. Quase dois desconhecidos, ali estavam eles, estranhamente juntos, num novo pináculo de vida, rejubilantes por o seu novo estatuto prometer promovê-los, permitindo-lhes sair da sua interminável juventude — Edward e Florence, enfim livres! Um dos seus temas de conversa favoritos eram as respectivas infâncias, não tanto os prazeres quanto o cómico nevoeiro de ideias falsas de que tinham saído e os diversos erros parentais e práticas obsoletas que agora podiam perdoar.

Embora não conseguissem descrevê-los um ao outro, destas novas alturas conseguiam ver distintamente certos sentimentos contraditórios: cada um preocupava-se com o momento, a qualquer instante depois do jantar, em que a sua nova maturidade seria posta à prova, quando se fossem deitar juntos na cama de dossel e revelar-se plenamente um ao outro. Há mais de um ano que Edward andava fascinado pela perspectiva de, na noite de uma determinada data do mês de Julho, a parte mais sensível de si mesmo ir residir, ainda que por breves instantes, dentro de uma cavidade formada naturalmente no interior desta mulher alegre, bonita e de uma inteligência excepcional. Perturbava-o pensar como iria isso acontecer sem ser de uma forma absurda, decepcionante. A sua preocupação explícita, baseada numa experiência infeliz, tinha a ver com a excitação excessiva, com o que ouvira alguém descrever como «chegar cedo de mais». Era raro esse assunto não lhe ocupar o pensamento, mas, embora o seu medo do fracasso fosse grande, a sua ansiedade — pelo êxtase, pelo desenlace — era muito maior.

As ansiedades de Florence eram muito mais graves, e houve momentos durante a viagem de Oxford em que ela pensou estar prestes a reunir toda a coragem necessária para dizer o que tinha em mente. Mas o que a perturbava era impossível de pôr em palavras e ela mal conseguia formulá-lo para si mesma. Enquanto ele sofria apenas dos nervos convencionais da primeira noite, ela experimentava um temor visceral, uma repugnância tão palpável como um enjoo no mar. Durante grande parte do tempo, ao longo de todos os meses de alegres preparativos para o casamento, ela conseguiu ignorar essa mancha na sua felicidade, mas sempre que os seus pensamentos se desviavam para um contacto próximo — era essa a sua expressão preferida — sentia o estômago seco e apertado e uma sensação de náusea no fundo da garganta. Num manual moderno e inovador, destinado a auxiliar as jovens noivas com o seu tom jovial, os pontos de exclamação e as ilustrações numeradas, deparou-se com determinadas frases ou palavras que quase a fizeram ficar agoniada: membrana mucosa e a sinistra e reluzente glande. Outras frases ofendiam a sua inteligência, particularmente a obsessão com as entradas: Não muito tempo antes de ele entrar nela... ou, agora, finalmente, ele entra nela, e, felizmente, pouco depois de entrar nela... Naquela noite, seria obrigada a transformar-se para Edward numa espécie de porta de sala de estar que ele pudesse transpor? Quase com igual frequência, aparecia uma palavra que nada lhe sugeria a não ser dor, como carne trespassada por uma faca: penetração.

Em momentos de optimismo tentava convencer-se de que sofria apenas de uma forma exacerbada de repulsa que, por certo, iria passar. Sem dúvida que a ideia dos testículos de Edward, a oscilarem por baixo do seu pénis intumescido — outro termo horroroso — tinha a capacidade de lhe fazer descair o lábio superior; e a ideia de outra pessoa, mesmo sendo alguém a quem amava, a tocar «ali em baixo» era tão repelente como, por exemplo, uma intervenção cirúrgica ao olho. A repulsa que sentia não se estendia aos bebés, dos quais gostava; uma vez por outra tinha tomado conta dos filhos pequenos da prima e isso dava-lhe prazer. Pensava que iria adorar estar grávida de um filho de Edward e, pelo menos em abstracto, não sentia receio do parto. Se ao menos pudesse, como a mãe de Jesus, chegar a esse estado de turgidez por magia. Florence suspeitava de que havia qualquer coisa de profundamente errado com ela, que fora sempre diferente e que, por fim, iria ser descoberta. O seu problema, pensava ela, era maior, mais profundo, do que a pura aversão física; todo o seu ser se rebelava contra a perspectiva de envolvimento carnal; a sua compostura e a sua felicidade essencial estavam prestes a ser violadas. Simplesmente não queria «que entrassem nela» ou que «a penetrassem». O sexo com Edward não podia ser a súmula da sua alegria, mas o preço que tinha de pagar por ela.

Sabia que há muito devia ter falado, mal ele se declarara, muito antes da visita ao pároco sincero e de voz doce e dos jantares com os respectivos pais, do envio dos convites, de terem concebido e entregado a um grande armazém a lista de prendas, alugado a tenda e o fotógrafo, e de todos os preparativos irreversíveis. Mas o que poderia ter dito, que termos poderia ter empregado, quando não era capaz de formular o assunto para consigo mesma? E amava Edward, não com a paixão ardente e húmida sobre a qual tinha lido, mas calorosa e profundamente, por vezes como uma filha, outras com um amor quase maternal. Adorava mimá-lo, sentir o seu enorme braço à volta dos ombros e ser beijada por ele, embora lhe desagradasse a sua língua na boca e, tacitamente, ter tornado isso claro. Achava-o original, diferente de todas as outras pessoas que conhecia. Ele andava sempre com um livro, em geral de história, no bolso do casaco, para o caso de se ver numa fila ou numa sala de espera. Marcava o que lia com um coto de lápis. Era praticamente o único homem que Florence conhecia que não fumava. Nenhuma das suas peúgas tinha par. Só possuía uma gravata, estreita, tricotada, azul-escura, que usava quase todo o tempo com uma camisa branca. Ela adorava o seu espírito curioso, o seu ligeiro sotaque provinciano, a enorme força das suas mãos, os imprevisíveis desvios e flutuações da sua conversa, a sua gentileza para com ela e a maneira como os seus doces olhos castanhos a fixavam enquanto ela falava, fazendo-a sentir-se envolvida numa nuvem de amor afectuosa. Com vinte e dois anos de idade, não lhe restavam dúvidas de que queria passar o resto da vida com Edward Mayhew. Como poderia ter-se arriscado a perdê-lo?

Não havia ninguém com quem pudesse ter falado. Ruth, a irmã, era demasiado nova, e a mãe, sempre maravilhosa à sua maneira, era excessivamente tensa e intelectual, uma sufragista antiquada. Sempre que se confrontava com um problema íntimo, tinha tendência a adoptar a atitude pública de uma sala de conferências, de usar palavras cada vez mais longas e de fazer referência a livros que achava que toda a gente deveria ter lido. Só quando o assunto estava embalado desta maneira e em segurança por vezes ela conseguia descontrair-se e tornar-se gentil, embora isso fosse raro e mesmo então não se ficasse a fazer ideia de que conselho estava a dar. Florence tinha algumas amigas fantásticas da escola e da faculdade de música que punham o problema oposto: adoravam conversas íntimas e deleitavam-se com os problemas mútuos. Todas se conheciam umas às outras e eram demasiado ávidas com os seus telefonemas e cartas. Não era possível confiar-lhes um segredo, e Florence não as censurava, uma vez que fazia parte do grupo. Também não teria confiado em si mesma. Encontrava-se sozinha com um problema que não sabia como havia de começar a abordar, e tudo de que dispunha como sabedoria era o tal livro que lhe servia de guia. Na sua capa de um vermelho berrante viam-se representadas duas figuras sorridentes, de mãos dadas, como que feitas de paus de fósforo ou toscamente desenhadas com giz branco por uma criança.

 

Comeram o melão em menos de dois minutos, enquanto os rapazes, em vez de esperarem lá fora no corredor, se mantinham lá atrás, perto da porta, a ajeitarem os lacinhos e os colarinhos apertados e a brincarem com os punhos das camisas. As suas expressões neutras mantinham-se inalteráveis enquanto observavam Edward a oferecer a cereja cristalizada a Florence, com um floreado irónico. Com ar brincalhão, ela sugou-a dos dedos dele, sem desviar o olhar do seu enquanto a mastigava com determinação, deixando-o ver-lhe a língua, consciente de que, com esses jogos de sedução, estava a tornar as coisas piores para si mesma. Não devia dar início ao que não era capaz de aguentar, mas agradar-lhe de todas as maneiras possíveis era útil: fazia-a sentir-se menos do que completamente inútil. Se ao menos comer uma cereja pegajosa fosse tudo o que era necessário!

Para mostrar que a presença dos empregados não o incomodava, embora ansiasse por que eles partissem, Edward sorriu ao mesmo tempo que se recostava na cadeira com o copo de vinho na mão e que perguntava por cima do ombro:

— Têm mais coisas destas?

— O senhor queira desculpar, mas não há mais nenhumas.

Porém, a mão que segurava a taça de vinho tremia com o esforço de conter a súbita sensação de felicidade e a exaltação que o assaltaram. Ela parecia resplandecer diante dele e era encantadora — bela, sensual, dotada e com um bom feitio incrível.

O rapaz que acabara de falar avançou rapidamente para levantar a mesa. O colega estava mesmo à saída da sala, a transferir o segundo prato, o assado, para os pratos que lhes iria pôr à frente. Não era possível fazer entrar o carrinho na suíte da lua-de-mel, usando o serviço de prata, como se impunha, em virtude de dois degraus de diferença entre essa divisão e o corredor, consequência de um planeamento deficiente aquando da «georgenização» da quinta isabelina, em meados do século XVIII.

O casal ficou por breves momentos sozinho, embora a ouvir o raspar das colheres nos pratos e os jovens a murmurar junto da porta aberta. Edward poisou a mão sobre a de Florence e disse «Amo-te», pela centésima vez nesse dia, num sussurro, e ela respondeu-lhe o mesmo, com sinceridade.

Edward tinha uma licenciatura em História, com uma menção honrosa, do University College de Londres. Em três breves anos estudara guerras, rebeliões, fomes, pestes, a ascensão e queda de impérios, revoluções que consumiam os seus filhos, penúrias agrícolas, miséria industrial, a crueldade das elites no poder — um desfile colorido de opressão, miséria e esperanças goradas. Compreendia como as vidas podiam ser limitadas e parcas, geração após geração. Na perspectiva lata das coisas, estes tempos prósperos e pacíficos de Inglaterra eram agora raros e, dentro deles, a sua alegria e a de Florence era excepcional, e até mesmo única. No último ano fizera um estudo especial da teoria histórica do «grande homem» — teria mesmo passado de moda acreditar que indivíduos vigorosos podiam determinar o destino nacional? Sem dúvida que o seu tutor pensava assim: a História, convenientemente capitalizada, era impelida em frente por forças inelutáveis, em direcção a finalidades inevitáveis, necessárias, e em breve a disciplina seria considerada uma ciência. Mas as vidas que Edward examinava em pormenor — César, Carlos Magno, Frederico II, Catarina, a Grande, Nelson e Napoleão (desistira de Estaline, por insistência do seu tutor) — sugeriam-lhe o contrário. Uma personalidade implacável, oportunismo nu e cru e sorte, podiam mudar o destino de milhões de pessoas, uma conclusão obstinada que valeu a Edward um B menos, pondo quase em perigo a sua menção honrosa.

Uma descoberta acidental foi que mesmo o êxito lendário pouca felicidade trazia, mas apenas uma inquietação redobrada e uma ambição corrosiva. Naquela manhã, enquanto se vestia para o casamento (casaca, chapéu alto, um bom banho de água-de-colónia) decidira que nenhuma das figuras da sua lista poderia ter conhecido aquele tipo de satisfação. O seu júbilo era, em si, uma forma de grandeza. Ali estava ele, um homem magnificamente realizado, ou quase realizado. Com vinte e três anos, já quase os tinha superado a todos.

Agora contemplava a mulher, o fundo dos seus olhos cor de avelã, com um intrincado de manchas, aquele branco puro com um ligeiríssimo toque de azul leitoso. As pestanas eram espessas e escuras, como as de uma criança, e também havia qualquer coisa infantil na solenidade do seu rosto em repouso. Era um rosto encantador, que parecia esculpido e que, a uma determinada luz, evocava o de uma índia, uma squaw de alta estirpe. Ela tinha um maxilar acentuado, e o seu sorriso era rasgado e desprovido de artifícios, em direcção aos vincos ao canto dos olhos. Tinha ossos grandes — certas matronas presentes no casamento haviam feito observações, com ares entendidos, sobre as suas ancas generosas. Os seios, que Edward tocara e até mesmo beijara, embora nem de longe o suficiente, eram pequenos. As suas mãos de violinista eram pálidas e vigorosas, e o mesmo se podia dizer dos braços longos; nos seus tempos de escola, praticara lançamento de dardo nas aulas de desporto.

Edward nunca se interessara por música clássica e agora estava a aprender o seu jargão cheio de vitalidade — legato, pizzicato, con brio. Lentamente, através da repetição bruta, já conseguia reconhecer e até apreciar certas peças. Havia uma peça que ela tocava com os amigos e que o sensibilizava de uma forma especial. Quando ela praticava em casa as escalas e os arpejos, punha uma fita no cabelo, um toque enternecedor que o fazia sonhar com a filha que um dia poderiam ter. A maneira de tocar de Florence era sinuosa e exacta e ela era conhecida pela riqueza do seu timbre. Um professor dizia que nunca havia encontrado um aluno que fizesse uma corda aberta soar de uma forma tão quente. Quando ela se encontrava diante da estante de música na sala de ensaios de Londres, ou no seu quarto em casa dos pais, em Oxford, com Edward estendido na cama, a observá-la e a desejá-la, a postura dela era graciosa, com as costas direitas e a cabeça erguida e inclinada num jeito orgulhoso, e lia a música com uma expressão de mestria, quase de altivez que o emocionava. O ar dela revelava uma enorme segurança, um profundo conhecimento sobre o caminho que conduz ao prazer.

Quando era de música que se tratava, ela estava sempre confiante e era fluida nos seus movimentos — a encerar um arco, a pôr cordas no instrumento, a reorganizar a sala de modo a acomodar os seus três amigos da faculdade, pois o quarteto de cordas era a sua paixão. Ela era a líder indiscutível e tinha sempre a última palavra nos frequentes desentendimentos musicais. Mas nos restantes aspectos da sua vida era surpreendentemente desajeitada e insegura, sempre a dar topadas e a magoar o dedo do pé, a derrubar coisas ou a dar cabeçadas. Os dedos capazes de dominar a corda dupla numa suíte de Bach eram igualmente hábeis a entornar uma chávena de chá sobre uma toalha de linho, ou a deixar cair um copo num chão de pedra. Costumava tropeçar se pensava que estavam a observá-la — confiou a Edward que achava uma provação caminhar na rua em direcção a um amigo que se encontrava à distância. E sempre que se sentia ansiosa ou demasiado constrangida, levava a mão repetidas vezes à testa para afastar uma madeixa imaginária, num movimento suave, esvoaçante, que se prolongava até muito depois de a fonte de enervamento se ter desvanecido.

Como poderia ele não amar uma mulher tão estranha e calorosamente peculiar, tão dolorosamente honesta e consciente de si, que revelava cada pensamento e emoção, difundidos como partículas carregadas através das suas expressões e gestos cambiantes? Mesmo sem a beleza dos seus ossos fortes ele teria de a amar. E ela amava-o com igual intensidade, embora com uma reticência física lancinante. Não só as paixões dele, aumentadas devido à falta de um escape conveniente, mas também os seus instintos protectores eram despertados. No entanto, seria ela assim tão vulnerável? Certa vez ele espreitara o dossier com as informações do seu tempo de escola e vira o resultado dos testes de inteligência: cento e cinquenta e dois, dezassete pontos acima do seu próprio resultado. Estava-se numa época em que se considerava que aqueles quocientes mediam qualquer coisa tão palpável como a altura ou o peso. Quando ele se sentava durante um ensaio do quarteto, e a opinião dela sobre uma frase, tempo ou dinâmica não coincidia com a de Charles, o segundo violinista rechonchudo e seguro, cujo rosto resplandecia com um acne tardio, Edward ficava intrigado por Florence poder ser tão fria. Ela não discutia, ouvia calmamente, e depois declarava a sua decisão. Nessas alturas não havia o menor indício do gesto de afastar o cabelo. Ela sabia do que falava e estava determinada a liderar, como um primeiro violinista deve fazer. Parecia capaz de conseguir que o pai, um homem atemorizante, fizesse o que ela queria. Vários meses antes do casamento, por sua sugestão, este tinha oferecido trabalho a Edward. Se era realmente isso que desejava, ou se não ousara recusar, era outra questão. E, devido a qualquer osmose feminina, ela sabia exactamente o que era necessário para aquela celebração, desde o tamanho da tenda até à quantidade de summer pudding, e quanto era razoável esperar que o pai pagasse.

— Já aí vêm — murmurou ela, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão na sua, dissuadindo-o de qualquer nova intimidade súbita. Os empregados estavam a chegar com os pratos de carne, o dele com o dobro da quantidade do dela. Também colocaram em cima de um aparador pudim de pão e passas, queijo cheddar e chocolates de mentol. Após conselhos tartamudeados sobre a campainha para chamar, junto da lareira — era preciso carregar com força e mantê-la assim — os rapazes retiraram-se, fechando a porta com imenso cuidado. Em seguida ouviu-se o tilintar do carrinho a afastar-se pelo corredor fora e depois, após um silêncio, os recém-casados ficaram sozinhos, como convinha.

Um desvio ou uma intensificação do vento levou até eles o som de vagas mais pequenas a rebentarem com maior frequência, como um estilhaçar de vidros à distância. A neblina dissipava-se e descobria os contornos das colinas baixas e suaves, descrevendo uma curva acima da linha da costa em direcção a leste. Avistavam algo cinzento, liso e luminoso, que podia ser a própria superfície sedosa do mar, a lagoa, ou relâmpagos no céu — seria difícil dizer. A brisa, que mudara de rumo, fazia entrar pela janela entreaberta uma sedução, um odor salgado de oxigénio e de vastidão que parecia contradizer a toalha de linho engomado, o molho engrossado com farinha de trigo e a prata bem polida que tinham nas mãos. Não estavam com fome, pois o almoço do casamento havia sido lauto e prolongado. Teoricamente, era a eles que cabia decidir se iriam abandonar os pratos, agarrar na garrafa de vinho pelo gargalo, correr para a praia, atirar ao ar os sapatos e exultar com a sua liberdade. Não havia ninguém no hotel disposto a detê-los. Finalmente eram adultos, em férias, livres de fazerem o que quisessem. Dentro de poucos anos esse seria o tipo de coisa que jovens banais fariam. Mas por agora, a época impedia-os. Mesmo quando Edward e Florence estavam sozinhos, mil regras não oficiais continuavam em vigor. Era precisamente por serem adultos que não faziam coisas infantis como deixarem a comida que outros se tinham dado ao trabalho de preparar. Aliás, era hora de jantar. Além disso, ser infantil ainda não era respeitável, nem estava na moda.

Mesmo assim, Edward sentia-se perturbado devido ao apelo da praia e, se soubesse como propô-lo ou justificá-lo, teria sugerido saírem imediatamente. Tinha lido em voz alta a Florence uma passagem de um guia a afirmar que milhares de anos de tempestades haviam agrupado as pedras de acordo com o seu tamanho ao longo dos vinte e sete quilómetros de praia, estando as maiores no extremo leste. Constava que os pescadores locais, ao desembarcarem de noite, sabiam exactamente onde se encontravam pelo tamanho dos seixos. Florence sugerira que verificassem com os seus próprios olhos, comparando punhados recolhidos a um quilómetro de distância. Caminhar na areia da praia não era o que ele mais desejava, mas começava a pensar que isso seria melhor do que ficar ali sentado. O tecto, já de si bastante baixo, parecia agora mais perto da sua cabeça e continuar a aproximar-se. A erguer-se do seu prato, fundindo-se com a brisa marítima havia um odor frio e húmido, semelhante ao bafo do cão da família. Talvez não estivesse tão feliz como não parava de dizer a si mesmo que estava. Sentia uma pressão terrível a estreitar-lhe os pensamentos, a embotar-lhe a fala e experimentava um profundo mal-estar físico, como se as calças e a roupa interior tivessem encolhido.

Porém, se um génio tivesse aparecido ali à mesa para conceder a Edward o seu desejo mais ardente, este não lhe teria pedido nenhuma praia do mundo. Tudo o que desejava, a única coisa em que conseguia pensar era em si mesmo e em Florence deitados nus na cama do quarto contíguo, finalmente confrontados com essa experiência atemorizadora que parecia tão distante da vida quotidiana como uma visão de êxtase religioso, ou até a própria morte. A perspectiva — aquilo iria realmente acontecer? A ele? — provocou-lhe mais uma vez arrepios no mais fundo das entranhas e, por instantes, deu consigo num movimento de arrebatamento que disfarçou com um suspiro de satisfação.

Como a maioria dos jovens da sua época, ou de outra qualquer, sem uma maneira ou meios fáceis de expressão sexual, entregava-se constantemente àquilo que uma autoridade esclarecida chamava agora «prazer solitário». Edward ficou contente ao descobrir a expressão. Tinha nascido em 1940, demasiado tarde no século, para acreditar que estava a maltratar o corpo, que ficaria com a vista afectada ou que Deus o observava com uma severa incredulidade enquanto ele se curvava diariamente para levar a cabo a tarefa. Ou mesmo que toda a gente ficaria a saber devido ao seu ar pálido e enfiado. Mesmo assim, uma certa ignomínia pairava sobre os seus esforços, uma sensação de fracasso e de esbanjamento e, como é óbvio, de solidão. E, na realidade, o prazer era um benefício fortuito. O objectivo era o alívio — do desejo premente, limitativo do pensamento, do que não era possível obter de imediato. Como era extraordinário que uma colherada de matéria, criada autonomamente, expelida do seu corpo, lhe libertasse no mesmo instante a mente permitindo-lhe confrontar-se de novo com a determinação de Nelson na baía de Aboukir.

O único contributo importante que Edward dera para os preparativos do casamento fora reprimir-se, durante mais de uma semana. Nunca, desde os seus doze anos, fora tão casto consigo mesmo. Desejava estar em plena forma para a noiva. Não era fácil, sobretudo à noite na cama, de manhã quando acordava, nas longas tardes, nas horas que antecediam o almoço, ou depois do jantar, durante as horas antes de ir para a cama. Agora ali estavam eles, finalmente, casados e sozinhos. Porque não se levantava e deixava o assado, para a cobrir de beijos e levá-la em direcção à cama de colunas no quarto ao lado? Não era assim tão simples combater a timidez de Florence. Passara a respeitá-la, até mesmo a venerá-la, confundindo-a com uma forma de reserva, um véu convencional para uma natureza fortemente sexual. Em resumo, parte da profundidade complexa da sua personalidade e uma prova da sua qualidade. Convenceu-se de que a preferia dessa maneira. Não o dizia nem a si mesmo, mas as reticências dela convinham à sua própria ignorância e falta de confiança; uma mulher mais sensual e exigente, uma mulher desvairada, tê-lo-ia horrorizado.

O seu namoro fora uma pavana convencional, uma progressão majestosa, limitada por protocolos nunca acordados nem expressos de viva voz, mas, de uma forma geral, observados. Nada era nunca discutido e eles também nunca sentiam a falta de uma conversa íntima. Esses eram assuntos que estavam para além das palavras, para além da definição. A linguagem e a prática da terapia, a aceitação de sentimentos diligentemente partilhados, mutuamente analisados, ainda não tinham entrado em circulação generalizada. Embora se ouvisse falar de pessoas abastadas que faziam psicanálise, ainda não era habitual uma pessoa considerar-se em termos de quotidiano como um enigma, como um exercício de narrativa histórica, ou um problema à espera de ser resolvido.

Entre Edward e Florence nada acontecia com rapidez. Os avanços importantes, as permissões concedidas sem palavras para alargar o que estava autorizado a ver ou a acariciar, só eram obtidos gradualmente. O dia de Outubro em que ele viu pela primeira vez os seios dela nus precedeu de muito o dia em que os pôde tocar — 19 de Dezembro. Beijou-os em Fevereiro, embora não os mamilos, que roçou com os lábios uma vez, em Maio. Os avanços que ela se permitia no corpo dele ainda eram mais cautelosos. Movimentos súbitos ou sugestões radicais da parte dele podiam desfazer todo o trabalho favorável. A noite em que foram ao cinema ver Uma Gota de Mel e em que ele lhe pegou na mão e a mergulhou entre as suas pernas fez o processo recuar semanas. Ela tornou-se, não gelada, nem sequer fria — nunca era essa a sua atitude — mas imperceptivelmente distante, talvez desapontada, ou mesmo ligeiramente traída. De certo modo afastou-se dele, sem nunca o deixar em dúvida acerca do seu amor. Depois, por fim, retomaram a sua rota: quando ficaram sozinhos um sábado à tarde no final de Março, com fortes bátegas de chuva a cair fora das janelas e a sala de estar desarrumada da casa minúscula dos pais dele nas Chiltern Hills, ela deixou a mão poisar por breves instantes em cima, ou perto, do pénis dele. Durante menos de quinze segundos, com uma esperança e um êxtase crescentes, ele sentiu-a através de duas camadas de tecido. Mal ela retirou a mão, ele percebeu que não poderia suportar aquilo durante mais tempo. Pediu-lhe para casar com ele.

Não poderia ter sabido o que lhe custou pôr a mão — mais precisamente, as costas da mão — num sítio daqueles. Ela amava-o, desejava agradar-lhe, mas tinha de ultrapassar uma repulsa considerável. Tratava-se de uma tentativa honesta, pois ela podia ser inteligente, mas era desprovida de astúcia. Deixou a mão naquele sítio durante tanto tempo quanto pôde, até se dar conta de algo a palpitar e endurecer por baixo da flanela cinzenta das calças. Ao sentir uma coisa viva, completamente separada do seu Edward, teve um movimento de recuo. Foi então que ele fez a sua proposta de rompante e, com a precipitação da emoção, com o júbilo, a hilaridade, o alívio e com os súbitos abraços, ela esqueceu momentaneamente o pequeno choque que havia sofrido. E ele ficou tão pasmado com a sua própria determinação, bem como mentalmente paralisado pelo desejo não satisfeito, que não poderia ter-se apercebido da contradição que ela começou a viver a partir desse dia, da relação secreta entre repulsa e exultação.

 

Ficaram então sozinhos e, teoricamente, livres de fazerem o que quisessem, mas continuaram a comer o jantar para o qual não tinham apetite. Florence poisou a faca e estendeu a mão para apertar a de Edward. Vindo do andar de baixo, ouviram o som da telefonia e os seis bips que precediam os carrilhões do Big Ben e o início do noticiário das dez. Ao longo dessa faixa da costa a recepção era fraca devido aos montes, mesmo no começo das terras do interior. Os hóspedes mais velhos estavam na sala de estar do andar de baixo, a tomar o pulso ao mundo com a última bebida antes de se deitarem — o hotel tinha uma boa selecção de uísques— e alguns dos homens enchiam os cachimbos pela última vez nesse dia. Reunirem-se à volta da telefonia para ouvirem o noticiário era um hábito do tempo da guerra que nunca quebrariam. Edward e Florence ouviram os destaques abafados e captaram o nome do primeiro-ministro, e depois, um ou dois minutos mais tarde, chegou até eles a sua voz familiar, elevada num discurso. Harold MacMillan tinha estado a dar uma conferência em Washington sobre a corrida aos armamentos e a necessidade de um tratado para banir os ensaios nucleares. Quem poderia discordar de que era uma loucura prosseguir com os ensaios de bombas H na atmosfera e contaminar todo o planeta com radiações? Mas ninguém com menos de trinta anos — principalmente Edward e Florence — acreditava que um primeiro-ministro britânico tivesse grande influência nos assuntos globais. Todos os anos o império se reduzia com alguns dos outros países a adquirirem uma justa independência. Agora já quase nada restava, e o mundo pertencia aos americanos e aos russos. A Grã-Bretanha, a Inglaterra, era uma potência menor e dizê-lo proporcionava um certo prazer blasfemo. Claro que os do andar de baixo tinham um ponto de vista diferente. Qualquer pessoa com mais de quarenta anos havia combatido durante a guerra, ou tinha-a suportado e conhecido a morte a uma escala invulgar e não suportava acreditar que a redução à insignificância era a recompensa por todo o sacrifício.

Edward e Florence iriam votar pela primeira vez nas eleições gerais e estavam entusiasmados com a ideia de uma vitória eleitoral dos trabalhistas tão grande como a famosa vitória de 1945. Dentro de um ano ou dois, a geração mais velha que ainda sonhava com o Império por certo que teria de dar lugar a políticos como Gaitskell, Wilson e Crosland, novos homens com uma visão de um país moderno onde havia igualdade e as coisas eram realmente feitas. Se na América podia haver um presidente Kennedy exuberante e bem-parecido, a Grã-Bretanha podia ter algo de semelhante — pelo menos em espírito, pois não havia ninguém tão atraente no Partido Trabalhista. O tempo dos Blimps1, ainda a travarem a última guerra, ainda nostálgicos da sua disciplina e das suas privações, tinha chegado ao fim. A sensação partilhada por Edward e Florence de que um dia, muito em breve, o país sofreria uma transformação para melhor, de que jovens energias estavam prestes a libertar-se, como vapor sob pressão, fundia-se com o entusiasmo da sua própria aventura juntos. Os anos sessenta eram a sua primeira década de vida adulta e por certo que esta lhes pertencia. Os fumadores de cachimbo do andar de baixo, com os seus blazers de botões de prata, as doses duplas de Caol lla, as recordações das campanhas de África e da Normandia e os seus vestígios cultivados do calão do exército, nada podiam reclamar do futuro. O vosso tempo chegou ao fim, cavalheiros!

 

<INR>1 Referência ao Coronel Blimp, personagem de banda desenhada conservadora, reaccionária e ultranacionalista. (N. da T.)<FNR>

 

A neblina que se levantava continuava a revelar as árvores próximas, os penhascos verdes e nus por trás da lagoa e faixas de um mar de prata, e o ar suave do entardecer rodeava a mesa dos dois jovens, que continuavam a fingir que comiam, encerrados no momento por ansiedades distintas. Florence limitava-se a remexer a comida no prato. Edward comia apenas pedacinhos simbólicos de batata, que cortava com a lâmina da faca. Incapazes de esboçarem um movimento, ouviram o segundo tópico do noticiário, cientes de como era estúpido associarem a sua atenção à dos hóspedes do andar de baixo. Era a sua noite de núpcias, e nada tinham para dizer. As palavras subiam abafadas de baixo dos seus pés, mas distinguiram «Berlim» e perceberam no mesmo instante que se tratava da história que nos últimos tempos cativava toda a gente. Era uma fuga do leste comunista para a zona ocidental da cidade, no Wannsee, num barco a vapor requisitado para fins militares, com os refugiados acocorados junto da cabina do piloto a fim de evitarem as balas dos guardas da Alemanha de Leste. Ouviram isso, e agora, o terceiro tópico, intolerável, da sessão de encerramento de uma conferência islâmica em Bagdad.

Limitados aos acontecimentos mundiais pela sua própria estupidez! Aquilo não podia continuar. Era tempo de agir. Edward alargou o nó da gravata e poisou com firmeza o garfo e a faca, paralelos ao prato.

— Podíamos ir até lá abaixo para ouvirmos como deve ser.

Tinha esperança de estar a fazer humor, dirigindo o sarcasmo contra ambos, mas as suas palavras saíram com uma ferocidade surpreendente, e Florence corou. Pensou que ele estava a criticá-la por dar a sua preferência à telefonia e, antes que Edward pudesse suavizar ou aligeirar a sua observação, apressou-se a dizer, afastando nervosamente um cabelo invisível da testa:

— Ou então podíamos ir deitar-nos na cama.

A fim de demonstrar como Edward estava enganado, Florence propunha o que sabia que ele mais desejava e o que ela mais temia. Na realidade, tê-la-ia feito mais feliz, ou menos infeliz, descer ao átrio e passar o tempo em amena conversa com as matronas nos sofás forrados de tecido às flores, enquanto os esposos se inclinavam com ar grave para ouvir as notícias, para os ventos da história. Tudo menos isto.

O marido sorria, de pé, estendendo cerimoniosamente a mão por cima da mesa. Também ele estava um pouco ruborizado. O guardanapo colou-se-lhe à cintura durante um instante e ficou absurdamente pendurado, como uma tanga, antes de descer a pairar até ao chão, em câmara lenta. Para além de desmaiar, nada havia que pudesse fazer, e ela era uma desgraça a representar. Pôs-se de pé e pegou na mão dele, certa de que o seu próprio sorriso que regressava era rígido e nada convincente. Não a teria ajudado saber que Edward, no estado de sonho em que se encontrava, nunca a achara mais encantadora. Qualquer coisa nos seus braços, recordou-se ele de pensar mais tarde, esguios e vulneráveis, e que não tardariam a estar amorosamente passados à volta do seu pescoço. E os seus belos olhos escuros, a brilharem com uma paixão indesmentível, e o ligeiro estremecimento do seu lábio inferior, que nesse mesmo instante ela humedecia com a língua.

Com a mão livre, tentou agarrar na garrafa de vinho e nos copos meio cheios, mas isso era muito difícil e distraía-o, e os copos entrechocaram-se, fazendo os pés cruzarem-se nas suas mãos e o vinho entornar-se. Optou por pegar apenas na garrafa pelo gargalo. Mesmo no estado de excitação e nervosismo em que se encontrava, pensou que compreendia a habitual reticência dela. Era um motivo de alegria acrescido enfrentarem juntos essa ocasião importante, essa linha divisória de experiência. E o que continuava a ser emocionante era o facto de ser Florence a sugerir deitarem-se na cama. A mudança de estatuto libertara-a. Sem lhe largar a mão, ele contornou a mesa e aproximou-se para a beijar. Convencido de que era indelicado fazê-lo com uma garrafa de vinho na mão, tornou a poisá-la.

— És linda — murmurou.

Ela obrigou-se a recordar quanto amava aquele homem bondoso, sensível, que a amava e que não lhe podia fazer mal. Deixou-se envolver mais no abraço dele, apertada contra o seu peito, e inalou o seu odor familiar, que ressumava a madeira e era tranquilizador.

— Estou tão feliz aqui contigo.

— Eu também estou tão feliz — respondeu ela baixinho.

Quando se beijaram, ela sentiu imediatamente a língua dele, tensa e vigorosa, a empurrar-lhe os dentes, como qualquer brutamontes a forçar a entrada numa sala. A penetrá-la. A sua própria língua dobrou-se e recuou numa repulsa automática, deixando ainda mais espaço a Edward. Ele sabia muito bem que ela não gostava daquele género de beijo, e nunca até então ele fora tão assertivo. Com os lábios firmemente apertados contra os dela, sondou a base carnuda da boca dela e, em seguida, descreveu movimentos circulares no interior dos dentes do maxilar inferior, até ao lugar vazio onde três anos antes um dente de siso havia crescido torto até ser extraído com uma anestesia geral. Essa cavidade era onde a língua de Florence em geral deambulava quando ela estava absorta. Por associação, assemelhava-se mais a uma ideia do que a um sítio, um lugar secreto e imaginário e não um buraco na gengiva, e ela achava peculiar que outra língua também pudesse chegar ali. Era a ponta dura e afunilada desse músculo estranho, vivo e palpitante, que lhe causava aversão. A mão esquerda dele, aberta, apertava-a acima das omoplatas, mesmo por baixo do pescoço, puxando-lhe a cabeça contra a dele. A sua claustrofobia e falta de ar ainda aumentaram quando deliberou que não suportava ofendê-lo. Ele estava sob a língua dela, a empurrá-la contra o palato, e depois em cima, a empurrá-la para baixo, depois ainda a deslizar suavemente ao longo dos lados e à volta, como se ele pensasse que podia dar um nó simples, de uma só volta. Desejava envolver a língua dela em qualquer actividade, convencê-la a tomar parte num dueto mudo abominável, mas tudo o que ela conseguia fazer era retrair-se e concentrar-se em não se debater, não ter vómitos, não entrar em pânico. Se vomitasse na boca dele, o que era uma ideia louca, o casamento terminaria imediatamente e ela teria de ir para casa e de dar uma explicação aos pais. Compreendia perfeitamente que aquela história com as línguas, aquela penetração, era um ensaio a pequena escala, um tableau vivant ritual do que ainda estava para vir, como um prólogo antes de uma velha peça que nos diz tudo o que vai acontecer.

Enquanto continuava à espera de que aquele momento passasse, com as mãos, só pela forma, apoiadas nas ancas de Edward, Florence apercebeu-se de que tinha tropeçado numa verdade vazia, bastante óbvia em retrospectiva, tão primitiva e gasta como o danegeld ou o droit du seigneur, e quase demasiado elementar para poder ser definida. Ao decidir casar, fora exactamente com isso que anuíra. Concordara que era certo fazê-lo e aceitar que lho fizessem. Depois da cerimónia, quando ela, Edward e os pais de ambos tinham desfilado até à sacristia sombria a fim de assinarem o livro de registos, era a isso que haviam dado aval com os seus nomes, e tudo o resto, a suposta maturidade, os confetti e o bolo, tinha sido uma distracção delicada. E se ela não gostava disso, a responsabilidade era apenas sua, pois todas as opções ao longo do último ano tinham-se ido estreitando até darem naquilo, e era tudo por culpa dela, e nesse momento pareceu-lhe mesmo que ia vomitar.

Quando Edward ouviu o seu gemido, percebeu que a sua felicidade era quase completa. Teve a impressão de uma imponderabilidade deliciosa, de estar vários centímetros acima do chão, a pairar agradavelmente acima dela. Havia uma sensação de prazer-dor na maneira como o seu coração parecia bater com um ruído surdo na base da garganta. O ligeiro toque das mãos dela, não muito longe do sexo, a docilidade daquele corpo encantador encerrado nos seus braços e o som apaixonado da respiração dela a processar-se rapidamente pelo nariz excitaram-no. A maneira como a língua dela envolvia docemente a sua quando ele fazia pressão contra ela levou-o até um ponto de êxtase que não lhe era familiar, frio e agudo, mesmo por baixo das costelas. Talvez dentro de poucos dias, ou quem sabe se nessa mesma noite, conseguisse persuadi-la — ou talvez nem fosse preciso fazê-lo — a aceitar o sexo dele na sua boca linda e macia. Mas esse era um pensamento de que precisava de se desembaraçar o mais depressa possível, pois corria o perigo de se vir demasiado cedo. Já sentia isso próximo, a arrastá-lo para a humilhação. Mesmo a tempo, pensou nas notícias, na cara do primeiro-ministro, Harold MacMillan, alto, curvado, fazendo lembrar uma morsa, um herói da guerra, um velho tonto, representava tudo aquilo que nada tinha a ver com sexo, era ideal para o efeito. Balança de Pagamentos, Congelamento dos Salários, Manutenção dos Preços de Revenda. Havia quem o maldissesse por ter entregado o Império, mas no fundo não havia alternativa, com aqueles ventos de mudança a varrerem África. Ninguém teria aceitado essa mesma mensagem de um trabalhista. E ele tinha despedido um terço do seu gabinete na «noite das facas longas», o que exigia coragem. Mac the Knife, chamava-lhe um cabeçalho, Macbeth!, dizia outro. Pessoas sérias lamentavam ele estar a soterrar o país sob uma avalancha de televisões, carros, supermercados e tralha semelhante. Deixara as pessoas terem o que queriam. Pão e circo. Uma nova nação, e agora queria que nos juntássemos à Europa, e quem poderia ter a certeza de que estava enganado?

Finalmente acalmara-se. Os pensamentos de Edward dissolveram-se e ele transformou-se mais uma vez na sua língua, precisamente na ponta, no momento em que Florence decidiu que não conseguia aguentar mais. Sentia-se presa e abafada, a sufocar, com náuseas. E ouvia um som, a aumentar firmemente, não gradualmente como uma escala, mas num lento glissando, e não exactamente como um violino ou uma voz, mas qualquer coisa intermédia, a crescer e a crescer de uma forma insuportável, sem deixar de ser audível, uma voz-violino, mesmo à beira de deixar de fazer sentido, a dizer-lhe qualquer coisa premente em sibilantes e vogais mais primitivas do que palavras. Podia ter sido na sala, ou lá fora no corredor, ou apenas nos seus ouvidos, como um zumbido. Até podia ser ela a produzir esse ruído. Mas não queria saber, tinha de sair daquilo.

Afastou a cabeça com um puxão e libertou os braços. Enquanto ele a olhava surpreendido, ainda de boca aberta, com uma interrogação a começar a formar-se na sua expressão, Florence pegou-lhe na mão e conduziu-o para a cama. Era perverso da sua parte, uma loucura até, quando o que lhe apetecia era fugir do quarto, atravessar os jardins e descer o caminho até à praia, para ficar sentada sozinha. Bastaria um minuto sozinha para a ter ajudado. Mas o seu sentido do dever era dolorosamente forte e ela não conseguia resistir-lhe. Não podia suportar deixar Edward em baixo. E era sua convicção que estava completamente errada. Se todos os convidados e família próxima presentes no casamento se amontoassem invisíveis naquele quarto a observar, todos esses fantasmas tomariam o partido de Edward em relação aos seus desejos prementes, razoáveis. Partiriam do princípio de que havia qualquer coisa errada com ela, e teriam razão.

Florence também sabia que o seu comportamento era deplorável. Para sobreviver, para escapar a um momento odioso, tinha de erguer a fasquia e empenhar-se no seguinte, dar a impressão inútil de que ela própria ansiava por aquilo. O último acto não podia ser eternamente adiado. O momento crescia e avançava ao seu encontro, tal como ela se movia disparatadamente em direcção a ele. Estava enredada num jogo cujas regras não podia questionar. Não podia escapar à lógica que a fazia conduzir, ou rebocar, Edward pela sala fora, em direcção à porta do quarto de dormir aberta e à cama de colunas com a sua colcha branca lisa. Não imaginava o que faria quando lá estivessem, mas pelo menos aquele som crescente tinha cessado e, nos breves segundos que lhe restavam antes de chegar, a sua boca e a sua língua pertenciam-lhe, e ela podia respirar e tentar recompor-se.

 

Como se tinham conhecido e porque eram aqueles amantes de uma época moderna tão tímidos e inocentes? Consideravam-se demasiado sofisticados para acreditarem no destino, embora, mesmo assim, continuasse a parecer-lhes um paradoxo um encontro tão importante ter sido acidental, tão dependente de uma centena de acontecimentos e opções insignificantes. Que possibilidade aterradora isso poder nunca ter acontecido. E, nos primeiros arroubos do amor, era frequente perguntarem-se se os seus caminhos não se teriam cruzado muito perto no início da adolescência, quando Edward descia da casa esquálida onde vivia com a família, em Chiltern Hills, para visitar Oxford. Era excitante pensar que deviam ter roçado um pelo outro num desses famosos eventos juvenis da cidade, na feira de St. Giles na primeira semana de Setembro, ou na May Morning na madrugada do primeiro dia de Maio — um ritual ridículo e sobrestimado, concordavam ambos; ou enquanto alugavam uma barcaça na Cherwell Boat House — embora Edward só o tivesse feito uma única vez; ou, ainda mais tarde, já em plena adoles-cência, a tomarem bebidas ilícitas no Turl. Ele pensava mesmo que era possível ter ido no autocarro da escola, com outros rapazes de treze anos, até Oxford High, para ser esmagado num concurso de cultura geral por raparigas tão misteriosamente informadas e comedidas como adultos. Talvez fosse outra escola. Florence não se recordava de ter feito parte da equipa, mas confessou tratar-se do género de coisa em que gostava de participar. Quando compararam os seus mapas mentais e geográficos de Oxford, descobriram que quase coincidiam.

Depois, as respectivas infâncias e anos de escola tinham chegado ao fim e, em 1958, ambos optaram por Londres — ele pelo University College e ela pelo Royal College of Music — e, como é natural não se encontraram. Edward morava com uma tia viúva em Camden Town e todas as manhãs ia de bicicleta até Bloomsbury. Trabalhava o dia inteiro, jogava futebol aos fins-de-semana e bebia cerveja com os amigos. Até isso o envergonhar, apreciava uma briga ocasional à porta de um pub. O seu único passatempo sério que não era de natureza física consistia em ouvir música, o tipo de electric blues vigorosos que se revelaram o verdadeiro precursor e o motor vital do rock and roll — durante toda a sua vida essa música pareceu-lhe muito superior às efémeras cançonetas de três minutos, oriundas de Liverpool, que iriam cativar o mundo dentro de poucos anos. Muitas vezes saía da biblioteca ao anoitecer e seguia pela Oxford Street até ao Hundred Club para ouvir os Powerhouse Four de John Mayall, Alexis Korner, ou Brian Knight. No decurso dos seus três anos de estudante, as noites no clube representaram o ponto alto da sua experiência cultural e durante anos considerou que tinha sido essa música a educar-lhe o gosto e até a formar-lhe a vida.

As poucas raparigas que conhecia — nesse tempo não havia muitas nas universidades — moravam nos subúrbios e iam até Londres para assistirem a conferências, regressando a casa ao fim da tarde, aparentemente em obediência às instruções dos pais, que as queriam em casa às seis. Sem o dizerem, essas jovens davam a nítida impressão de estarem a «guardar-se» para um futuro marido. Não havia ambiguidade: para fazer sexo com uma delas era necessário casar. Dois amigos dele, ambos jogadores de futebol razoáveis, seguiram essa via; tinham casado no segundo ano e desapareceram de circulação. Um desses infelizes provocou um impacto particular e servia de exemplo daquilo de que se deviam precaver. Engravidou uma rapariga dos serviços administrativos da universidade e, na opinião dos amigos, foi «arrastado até ao altar»; desapareceu durante um ano até ser avistado em Putney High Street, a empurrar um carrinho de bebé, o que naquele tempo ainda era um gesto degradante para um homem.

A pílula era um rumor nos jornais, uma promessa ridícula, uma dessas patranhas da América. Edward tinha a sensação de que, em seu redor, quase ao alcance da vista, homens da sua idade levavam vidas sexuais explosivas e infatigáveis, ricas de recompensas de todo o género. A música pop era insípida, ainda tímida, os filmes eram um pouco mais explícitos, mas no círculo de Edward os homens tinham de se contentar com contar anedotas picantes, com fanfarronadas sexuais constrangidas e com uma camaradagem ruidosa impulsionada pelo consumo furioso de bebidas alcoólicas, que ainda reduzia mais as hipóteses de conhecerem uma rapariga. A mudança social nunca ocorre a um ritmo regular. Corriam boatos de que no departamento de Inglês e, mais adiante, na Escola de Estudos Orientais e Africanos e na Faculdade de Economia, homens e mulheres de jeans pretas, justas, e camisolas pretas de gola alta praticavam constantemente sexo fácil, sem terem de conhecer os pais uns dos outros. Falava-se mesmo de charros. Às vezes Edward experimentava fazer uma passeata do departamento de História até ao de Inglês, na esperança de encontrar indícios do paraíso na terra, mas os corredores, os placards e até as mulheres não lhe pareciam diferentes.

Florence estava do outro lado da cidade, perto do Albert Hall, numa residência fina para alunas, onde as luzes se apagavam às onze, as visitas do sexo masculino eram proibidas em qualquer altura e as raparigas andavam sempre a entrar e a sair dos quartos umas das outras. Florence ensaiava cinco horas por dia e ia a concertos com as amigas. Preferia acima de tudo os recitais de câmara em Wigmore Hall, especialmente os quartetos de cordas, e às vezes chegava a assistir a cinco numa semana, tanto à hora do almoço como ao fim da tarde. Adorava a gravidade sombria daquele local, as paredes pálidas, com a tinta a cair, dos bastidores, as madeiras reluzentes e a carpete vermelha e fofa do átrio, o auditório semelhante a um túnel dourado, a famosa cúpula sobre o palco, a representar, segundo lhe haviam dito, a fome que a humanidade sente pela magnífica abstracção da música, com o Génio da Harmonia representado sob a forma de uma bola de fogo eterno. Venerava os sujeitos idosos, que levavam minutos a sair dos táxis, os últimos vitorianos, a seguirem em passos vacilantes até aos seus lugares, apoiados nas bengalas, para ouvirem num silêncio crítico e atento, às vezes com a manta de xadrez que haviam levado consigo a cobrir-lhes os joelhos. Esses fósseis, com os crânios protuberantes e reduzidos humildemente inclinados para o palco, representavam para Florence a experiência polida e o sábio discernimento, ou sugeriam uma experiência musical que os dedos artríticos já não eram capazes de servir. E havia a simples emoção de saber que tantos músicos famosos do mundo haviam ali actuado, e que grandes carreiras tinham tido início naquele mesmo palco. Fora ali que ouvira a violoncelista Jacqueline du Pré, de dezasseis anos, dar o seu primeiro espectáculo. Os próprios gostos de Florence não eram invulgares, mas eram intensos. O Opus 18 de Beethoven obcecou-a durante um certo tempo e a este seguiram-se alguns dos seus últimos grandes quartetos. Schumann, Brahms e depois, no seu último ano, os quartetos de Frank Bridge, Bartok e Britten. Ouviu todos estes compositores ao longo de um período de três anos no Wigmore Hall. No segundo ano, conseguiu um trabalho a meio-tempo nos bastidores, a fazer chá para os músicos numa sala verde espaçosa e curvada junto do ralo da porta, de modo a poder abri-la quando os artistas saíam do palco. Também virava as folhas aos pianistas nas peças de câmara, e uma noite chegou mesmo a estar ao lado de Benjamin Britten num programa de canções de Hayden, Frank Bridge e do próprio Britten. Havia um rapaz soprano que cantava tão bem como Peter Pears e que lhe meteu na mão uma nota de dez xelins quando ele e o grande compositor iam a sair. Descobriu a sala de ensaios na porta ao lado, debaixo da sala do piano, onde pianistas lendários como John Ogdon e Cherkassky praticavam as suas escalas e arpejos sonoros durante manhãs inteiras, como estudantes do primeiro ano tresloucados. O Albert Hall tornou-se para ela uma espécie de segunda casa: tinha sentimentos de posse em relação a cada canto sombrio e decrépito, até mesmo aos frios degraus de cimento que conduziam às casas de banho. Uma das suas tarefas consistia em limpar a sala verde, e certa tarde viu num cesto de papéis algumas notas desenhadas a lápis que o Amadeus Quartet havia deitado fora. A escrita era rebuscada e ténue, dificilmente legível, e dizia respeito ao movimento de abertura do Quarteto número quinze de Schubert. Emocionou-a decifrar finalmente as palavras «Atacar em Si!». Florence não conseguia parar de brincar com a ideia de que recebera uma mensagem importante, ou uma sugestão especial, e, duas semanas mais tarde, não muito tempo depois do início do seu último ano, convidou três dos melhores alunos da faculdade para formarem um quarteto.

Só o violoncelista, Charles Rodway, era do sexo masculino, mas não despertava nela qualquer interesse romântico. Os homens da faculdade, músicos dedicados, ferozmente ambiciosos, ignorantes de tudo para além do instrumento que haviam escolhido e do seu repertório, não exerciam grande atracção sobre ela. Sempre que uma das raparigas do grupo começava a sair com outro aluno, limitava-se a desaparecer socialmente, tal como os amigos futebolistas de Edward. Era como se a jovem tivesse entrado para um convento. Uma vez que não parecia possível sair com um rapaz e continuar a andar com as amigas, Florence preferia manter-se fiel ao grupo da residência. Agradavam-lhe as graças, a intimidade, a gentileza, a importância que as raparigas atribuíam aos aniversários umas das outras, e a maneira como apareciam simpaticamente com chaleiras, cobertores e fruta se uma amiga estava com gripe. Para ela, os anos de faculdade foram uma época de liberdade.

Os mapas de Londres de Edward e Florence mal se sobrepunham. Ela pouco conhecia os pubs de Fitzrovia e do Soho e, embora tencionasse fazê-lo, nunca visitara a Sala de Leitura do Museu Britânico. Ele desconhecia por completo Wigmore Hall ou as salas de chá da zona dela, e nem uma única vez fizera um piquenique em Hyde Park ou andara de barco no Serpentine. Foi emocionante descobrirem que estavam em Trafalgar Square no mesmo momento, em 1959, juntamente com mais vinte mil pessoas, todas elas decididas a acabar com a bomba nuclear. Só se conheceram depois de terem terminado os cursos, quando regressaram a casa das respectivas famílias e à imobilidade da infância, para ficarem sentados durante uma ou duas semanas de calor, à espera dos resultados dos exames. Mais tarde, o que mais os intrigava era a facilidade com que o seu encontro podia não se ter verificado. Para Edward, esse dia particular podia ter passado como a maioria dos outros — procurar refúgio ao fundo do jardim estreito, sentado num banco coberto de musgo à sombra de um ulmeiro gigantesco, a ler, fora do alcance da mãe. A cinquenta metros de distância, o rosto dela, pálido e indistinto, como uma das suas aguarelas, à janela da cozinha ou da sala de estar, observava-o durante vinte minutos de seguida. Tentava ignorá-la, mas o olhar dela era como uma mão que lhe tocasse nas costas ou num ombro. Depois ouvia-a ao piano no andar de cima, a executar, hesitante, uma das suas peças do Caderno de Anna Magdalena, a única peça de música clássica que ele conhecia na época. Uma hora mais tarde, podia estar de regresso à janela, de novo a fitá-lo. Nunca sairia para falar com ele se o visse com um livro. Anos antes, quando Edward ainda andava na escola, o pai tinha-lhe ensinado, com toda a paciência, a nunca interromper o estudo do filho.

Naquele Verão, depois dos exames finais, o seu interesse concentrara-se nas seitas fanáticas medievais, e nos seus líderes loucos e psicóticos, que se proclamavam regularmente como sendo o Messias. Pela segunda vez num ano andava a ler Na Senda do Milénio, de Norman Cohn. Impelida pelas ideias do Apocalipse do Livro da Revelação e do Livro de Daniel, convencida de que o papa era o Anticristo, que o fim do mundo estava próximo e que só os puros se salvariam, uma turba de milhares de pessoas percorria os campos da Alemanha, de cidade em cidade, massacrando judeus sempre que os encontrava, bem como padres, e por vezes os ricos. As autoridades reprimiam violentamente o movimento, mas, alguns anos mais tarde, outra seita surgia noutro sítio qualquer. Encerrado na insipidez e na segurança da sua existência, Edward lia esses acessos recorrentes de irracionalidade com um fascínio horrorizado, grato por viver numa época em que, de um modo geral, a religião perdera o vigor e se tornara insignificante. Perguntava-se se, no caso de a sua nota de licenciatura ser suficientemente boa, não iria candidatar-se a um doutoramento, cujo tema poderia ser essa loucura medieval.

Em passeios pelos bosques junto à praia, sonhava com uma série de curtas biografias que iria escrever, sobre figuras semiobscuras que viviam perto do centro de acontecimentos históricos importantes. A primeira seria Sir Robert Carey, o homem que cavalgou de Londres a Edimburgo em setenta horas para dar a Isabel I a notícia da morte do seu sucessor, Jaime VI da Escócia. Carey era uma figura interessante, que escrevera as suas próprias memórias, o que era muito útil. Combateu contra a Invencível Armada, era um magnífico espadachim e mecenas da Lord Chamberlain's Men2. A sua árdua viagem para norte devia ter-lhe granjeado as boas graças do novo rei, mas em vez disso caiu numa relativa obscuridade. Nos seus momentos mais realistas, Edward pensava que devia encontrar um bom emprego, a ensinar história numa escola secundária e a garantir que evitava o serviço militar.

 

<INR> 2 Companhia de teatro para a qual Shakespeare trabalhou como actor e dramaturgo durante a maior parte da sua vida. (N. da T.) <FNR>

 

Se não estava a ler, em geral descia o caminho, percorria a avenida de tílias até à aldeia de Northend, onde vivia Simon Carter, um amigo da escola. Mas naquela manhã específica, cansado de livros, de canto de passarinhos e de paz campestre, Edward foi buscar a bicicleta raquítica da sua infância, levantou o selim, encheu os pneus e partiu sem um plano determinado. Tinha no bolso uma nota de libra e duas meias coroas e tudo o que queria era seguir em frente. A uma velocidade imprudente, pois os travões praticamente não funcionavam, atravessou a voar um túnel de verdura, desceu uma colina íngreme, passou pela quinta dos Balham e depois pela dos Stracey e entrou no vale de Stonor; quando transpôs a toda a brida o gradeamento de ferro do parque, tomou a decisão de ir até Henley, que ainda ficava a seis quilómetros. Aí chegado, dirigiu-se à estação de caminho-de-ferro, com a vaga intenção de ir até Londres procurar amigos. Mas o comboio que se encontrava na plataforma seguia noutra direcção, com destino a Oxford.

Uma hora e meia mais tarde vagueava pelo centro desta cidade, no calor do meio-dia, ainda vagamente enfadado, e irritado consigo mesmo por gastar tempo e dinheiro. Aquela era a sua capital local, a fonte de promessas de quase todo o entusiasmo da sua juventude. Mas, depois de Londres, quase parecia uma cidade de brinquedo, enjoativa e provinciana, ridícula nas suas pretensões. Quando um porteiro com um chapéu de feltro o mirou com ares reprovadores da sombra da porta de uma faculdade, quase voltou atrás para lhe dizer qualquer coisa. Em vez disso, decidiu consolar-se com uma caneca de cerveja. Enquanto seguia pela St. Giles em direcção ao Eagle and Child, viu um letreiro escrito à mão a anunciar um encontro da CND3, à hora do almoço, e hesitou. Não lhe agradavam muito essas reuniões sérias, a retórica empolada aí utilizada, nem a integridade tristonha dos participantes. Claro que as armas nucleares eram detestáveis, e deviam ser banidas, mas ele nunca tinha aprendido nada novo numa reunião. Mesmo assim, era membro e pagava quotas, não tinha mais nada para fazer, e sentiu um vago impulso de obrigação. Tinha o dever de ajudar a salvar o mundo.

 

<INR>3 Campaign for Nuclear Disarmament, movimento antinuclear. (N. da T.) <FNR>

 

Seguiu por um corredor com chão de ladrilhos e entrou num átrio mal iluminado com um tecto baixo, com vigas pintadas, e um cheiro a madeira encerada e a poeira que fazia lembrar uma igreja, através do qual se erguia uma dissonância de vozes baixas e ressoantes. Quando os seus olhos se adaptaram, a primeira pessoa que viu foi Florence, de pé junto de uma porta, a falar com um sujeito magro e de rosto amarelo, com uma pilha de panfletos nas mãos. Ela tinha um vestido de algodão branco, rodado, como um vestido de festa, e um cinto estreito, de couro azul, bem apertado na cintura. Por instantes tomou-a por uma enfermeira — de uma maneira abstracta, convencional, considerava as enfermeiras eróticas pois, como gostava de fantasiar, já sabiam tudo sobre o corpo dele e suas necessidades. Ao contrário da maioria das raparigas para quem ficava a olhar na rua ou nas lojas, ela não desviou a vista. A sua expressão era intrigada e divertida, e possivelmente enfadada e desejosa de entretenimento. Tinha um rosto estranho, sem dúvida belo, mas vigorosamente esculpido e de ossos fortes. No átrio sombrio, a qualidade singular da luz que penetrava por uma janela alta à sua direita fazia o rosto dela assemelhar-se a uma máscara esculpida, melancólica, encantadora e difícil de decifrar. Ele não se detivera ao entrar na sala. Caminhava em direcção a ela, sem fazer ideia do que iria dizer. No que tocava a frases introdutórias, era notoriamente inapto.

Quando se aproximou, os olhos dela, de um castanho profundo, fixaram-se nele, e quando Edward ficou suficientemente próximo, ela tirou um panfleto da pilha do amigo e disse: «Queres um? Tem a ver com o lançamento de uma bomba de hidrogénio em Oxford.»

Quando ele pegou no papel, o dedo dela roçou, por certo casualmente, o interior do pulso dele. «Não há nada que eu gostasse mais de ler», respondeu Edward.

O sujeito que estava com ela tinha um ar rancoroso enquanto esperava que ele se fosse embora, mas Edward não se mexeu nem um milímetro.

 

Também ela estava impaciente em casa, uma grande mansão vitoriana em estilo gótico, a quinze minutos a pé de Banbury Road. Violet, a mãe, a ver exames finais durante todo o dia, cheia de calor, não suportava a rotina regular de Florence a praticar — escalas e arpejos repetidos, exercícios com corda dupla, testes de memória. «Chiadeira», era o termo que Violet usava, por exemplo quando dizia «Querida, ainda não acabei o que tenho de fazer hoje. Podias parar essa chiadeira até depois do lanche?»

O que deveria passar por uma graça bem-humorada, para Florence, que, durante essa semana, andava invulgarmente irritada, constituía mais um indício do desagrado que a mãe sentia pela sua carreira, da sua hostilidade para com a música em geral e, por conseguinte, para com a própria Florence. Sabia que devia ter pena da mãe. Tinha tão mau ouvido que era incapaz de reconhecer uma única música, nem sequer o hino nacional, que só pelo contexto distinguia dos Parabéns a Você. Era uma dessas pessoas incapazes de dizer se uma nota era mais baixa ou mais alta do que outra. Isso não era uma incapacidade nem uma infelicidade menor do que ter um pé boto ou lábio leporino, mas depois da relativa liberdade de Kensington, Forence achava cada minuto da vida caseira opressivo e não conseguia pôr-se do lado da mãe. Por exemplo, não se importava da fazer a cama todos os dias — sempre cumprira esse dever—, mas não gostava que lhe perguntassem todos os dias ao pequeno-almoço se a tinha feito.

Como tantas vezes acontecia enquanto tinha vivido longe, o pai despertava nela emoções contraditórias. Havia alturas em que o achava fisicamente repelente e em que mal suportava a sua presença — a sua calva luzidia, as mãos minúsculas e brancas, os seus planos incessantes de desenvolver o negócio e de fazer ainda mais dinheiro. E a sua voz aguda de tenor, simultaneamente persuasiva e autoritária, com os acentos excentricamente distribuídos. Detestava ouvir os seus relatos entusiásticos sobre o barco, a que dera o nome ridículo de Sugar Plum, e que mantinha ancorado no porto de Poole. Irritavam-na as suas explicações sobre um novo tipo de vela, um rádio marítimo, um verniz especial para iates. Ele costumava levá-la quando se fazia ao mar e, uma vez, tinha ela doze anos, fizeram a travessia até Carteret, perto de Cherbourg. Agora nunca a convidava, o que a deixava contente. Mas, outras vezes, movida por uma vaga de sentimentos protectores e de amor culpabilizado, quando ele estava sentado, aproximava-se por trás, passava-lhe os braços à volta do pescoço, beijava-lhe o alto da cabeça e esfregava aí o nariz, sentindo prazer com o seu cheiro a limpo. Mais tarde, desprezava-se por isso.

E a irmã mais nova bulia-lhe com os nervos, com o seu novo sotaque cockney e a estupidez cultivada para tocar piano. Como podiam fazer o que o pai exigia, e tocarem uma marcha de Souza para ele ouvir, quando Ruth pretendia não ser capaz de contar quatro tempos num compasso?

Como sempre, Florence era especialista em ocultar da família os seus sentimentos. Isso não lhe exigia esforço — bastava-lhe sair da sala, sempre que era possível fazê-lo sem manifestar as suas emoções e, mais tarde, ficava contente por não ter dito nada de azedo ou capaz de magoar os pais ou a irmã pois, de outro modo, passaria a noite acordada, roída pela culpa. Recordava constantemente a si mesma como amava a família, confinando-se ainda mais no silêncio. Sabia muito bem que as pessoas se zangam, às vezes violentamente, e que depois fazem as pazes. Mas não sabia como começar, não tinha jeito para isso, para a discussão que desanuviava o ambiente, e não conseguia acreditar que as palavras duras pudessem ficar por dizer ou serem esquecidas. Era preferível não complicar as coisas. Nesse caso, só podia censurar-se a si mesma quando se sentia como uma personagem de uma história aos quadradinhos, com fumo a sair pelas orelhas.

E tinha outras preocupações. Devia procurar um trabalho burocrático com uma orquestra de província — dar-se-ia por muito contente por entrar na Bournemouth Symphony — ou ficar dependente dos pais, ou, melhor, do pai, durante mais um ano e trabalhar o quarteto de cordas até ao primeiro contrato? Isso significaria ir viver para Londres, e sentia relutância em pedir a Geoffrey dinheiro extra. Charles Rodney, o violoncelista, tinha-lhe oferecido o quarto de visitas na casa dos pais, mas ele era um músico meditativo, intenso, que lhe deitava olhadelas fixas e sugestivas sobre a estante de música. Ir morar com ele significava ficar à sua mercê. Ouviu falar de um trabalho a tempo inteiro que lhe seria fácil conseguir, com um trio estilo Palm Court4, para tocar num grande hotel decadente do Sul de Londres. Não tinha escrúpulos sobre o tipo de música que teria de executar — ninguém estaria a ouvir—, mas qualquer instinto, ou mero snobismo, convenceu-a de que não poderia viver em Croydon ou nas suas proximidades. Persuadiu-se de que os resultados da faculdade a ajudariam a tomar uma decisão e, desse modo, como os vinte quilómetros de Edward nas colinas arborizadas a leste, passava os dias numa forma de antecâmara, cheia de impaciência à espera de que a sua vida começasse.

 

<INR>4 Palm Court Trio — conjunto especializado em animar festas e cerimónias, principalmente casamentos. (N. da T.) <FNR>

 

Ao regressar da faculdade, já não uma menina de escola, com uma maturidade em cujos aspectos ninguém em casa parecia reparar, Florence começou a aperceber-se de que os pais tinham opiniões políticas bastante censuráveis e, pelo menos nesse aspecto, permitia-se discordar abertamente deles à mesa do jantar, em discussões que se prolongavam pelas longas noites de Verão. Isso proporcionava-lhe uma espécie de alívio, mas essas conversas também faziam recrudescer a sua ansiedade. Violet estava genuinamente interessada na filiação da filha na CND, embora isso fosse penoso, com uma mãe filósofa. Florence ficava irritada com a calma da mãe, ou, mais precisamente, com a tristeza que esta manifestava ao ouvir a filha, e depois ao dar a sua opinião. Dizia que a União Soviética era cínica e tirânica, um estado cruel e insensível, responsável por um genocídio a uma escala que chegava a ser superior ao da Alemanha nazi. E por uma vasta rede, praticamente desconhecida, de campos de concentração para prisioneiros políticos. Prosseguia falando de julgamentos fantoches, de censura, de ausência de estado de direito. A União Soviética espezinhara a dignidade humana e os direitos básicos dos indivíduos, era uma força de ocupação sufocante nos países vizinhos — Violet tinha húngaros e checos entre os seus amigos académicos —, perfilhava a doutrina expansionista e era necessário combatê-la, tal como havia sido feito com Hitler. Se tal não fosse possível, por não dispormos de tanques nem de homens para defenderem as planícies do Norte da Alemanha, então impunha-se a dissuasão. Uns meses mais tarde, referir-se-ia à construção do Muro de Berlim e reivindicaria ter completa razão — o império comunista era agora uma gigantesca prisão.

No mais fundo de si, Florence sabia que a União Soviética, apesar de todos os seus erros — inépcia, ineficácia, política defensiva, mais do que más intenções — era essencialmente uma força benéfica no mundo. Era e sempre fora a favor da libertação dos oprimidos e contra o fascismo e a devastação produzida pelo capitalismo ganancioso. A comparação com a Alemanha nazi repugnava-a. Reconhecia nas opiniões da mãe um padrão típico de propaganda pró-americana. Ficava desapontada com ela e dizia-lho. E o pai tinha exactamente o tipo de opiniões que são de esperar de um homem de negócios. A sua escolha de palavras podia tornar-se mais acutilante com meia garrafa de vinho: o Harold MacMillan era um parvo por estar a entregar o Império sem dar luta e um idiota chapado por pensar em ir de boné na mão pedir esmola aos Europeus, suplicando-lhes que o deixassem entrar no seu sinistro clube. Florence achava mais difícil contradizer Geoffrey. Nunca conseguia libertar-se de um sentimento de embaraço e de dever para com ele. Entre os privilégios da sua infância contava-se a forte atenção que poderia ter sido dirigida a um irmão, a um filho. No Verão anterior, o pai, depois do trabalho, tinha-a levado regularmente a dar uma volta no Humber, de modo a ela poder tirar a carta de condução mal fizesse vinte e um anos. Chumbou. Lições de violino desde os cinco anos, cursos na Menuhin School, lições de esqui, de ténis e de pilotagem, que ela recusou com rebeldia. E depois as viagens: os dois sozinhos, a passear a pé nos Alpes, na Serra Nevada e nos Pirenéus, e os mimos especiais, as viagens de uma só noite a cidades europeias onde ela e Geoffrey tinham sempre quartos contíguos.

Quando Florence saiu de casa ao fim da manhã, após uma discussão sem palavras com a mãe por causa de qualquer ninharia doméstica — a maneira como ela usava a máquina de lavar não agradava a Violet — disse que ia pôr uma carta no correio e que não lhe apetecia almoçar. Seguiu para sul, pela Banbury Road, e dirigiu-se ao centro da cidade, com a vaga ambição de deambular pelo mercado coberto e talvez de encontrar uma antiga colega de escola. Ou podia comprar um pãozinho e comê-lo no relvado da Christ Church, à sombra, junto do rio. Quando reparou no letreiro de St. Giles, aquele que Edward veria um quarto de hora mais tarde, seguiu distraidamente nessa direcção. Era a mãe que lhe ocupava os pensamentos. Depois de passar tanto tempo com amigas afectuosas na residência de estudantes, ao regressar a casa saltava à vista como a mãe era distante. Nunca beijava nem abraçava Florence, nem sequer quando ela era criança. Praticamente nunca lhe tocara. Talvez isso não fosse mau. Violet era magra e ossuda e Florence não sentia exactamente falta das carícias dela. E agora era demasiado tarde para começar.

Minutos após ter saído do sol e entrado no átrio, tornou-se claro para Florence que tinha cometido um erro. Quando a sua vista se adaptou à obscuridade, olhou em redor com o vago interesse que lhe poderia despertar a colecção de pratas do Museu Ashmolean. De súbito, um rapaz do Norte de Oxford cujo nome esquecera, um jovem esgalgado, de vinte e dois anos, com óculos, saiu da escuridão e encurralou-a. Sem mais preâmbulos, começou a descrever-lhe as consequências de uma única bomba de hidrogénio que caísse em Oxford. Quase uma década atrás, quando ambos tinham treze anos, ele convidara-a para ir a sua casa, em Park Town, apenas a três ruas de distância, a fim de admirar um novo invento, um aparelho de televisão, o primeiro que ela tinha visto na vida. Num ecrã pequeno, cinzento e turvo, enquadrado por portas de mogno trabalhadas, um homem de smoking estava sentado a uma secretária no meio do que parecia ser uma tempestade de neve. Florence pensou que aquilo se tratava de uma engenhoca ridícula, sem futuro, mas a partir daí esse rapaz — John? David? Michael? — pareceu acreditar que ela lhe devia a sua amizade, e ali estava ele de novo, ainda a cobrar a dívida.

O panfleto que ele tinha debaixo do braço, duzentos exemplares, traçava o destino de Oxford. Ele queria que ela o ajudasse a distribuí-lo pela cidade. Quando se inclinou para ela, Florence sentiu um odor de brilhantina envolver-lhe o rosto. Sob aquela luz difusa, a pele dele, semelhante a um pergaminho, tinha um brilho de icterícia e as lentes grossas reduziam-lhe os olhos a estreitas fendas negras. Florence, incapaz de brusquidão, compôs o rosto num trejeito atento. Havia qualquer coisa fascinante nos homens altos e magros, a maneira como os seus ossos e maçãs-de-adão espreitavam tão visíveis por baixo da pele, nos seus rostos semelhantes ao dos pássaros, nas suas costas curvadas numa atitude predatória. A cratera que ele descrevia teria setecentos e cinquenta metros de diâmetro e trinta metros de profundidade. Devido à radioactividade, ninguém se poderia aproximar de Oxford durante dez mil anos. Aquilo começava a parecer uma promessa de libertação. Mas, na realidade, lá fora, a cidade gloriosa explodia com a folhagem do início do Verão, o sol aquecia a pedra de Cotswold, cor de mel, e o prado da Christ Church devia estar em todo o seu esplendor. Ali, no átrio, por cima do ombro estreito do rapaz, avistou silhuetas a murmurar e a moverem-se de um lado para o outro na semiobscuridade, dispondo as cadeiras, e foi então que viu Edward avançar ao seu encontro.

Muitas semanas mais tarde, noutro dia quente, meteram-se numa barcaça no Cherwell, subiram o rio até aos Vicky Arms e, mais tarde, deixaram-se arrastar pela corrente até à casa dos barcos. Pelo caminho, pararam entre um maciço de espinheiros e deitaram-se na margem à sombra, Edward de costas a mastigar um talo de erva, Florence com a cabeça apoiada no braço dele. Numa pausa da conversa, ficaram a escutar a ligeira ondulação a desfazer-se debaixo do barco e o ruído surdo que este fazia ao bater no tronco de árvore que lhe servia de ancoradouro. De quando em quando, uma brisa fresca conduzia até eles o som etéreo e tranquilizador do trânsito na Banbury Road. Um tordo cantava a sua canção intrincada, repetindo cada frase com cuidado para, em seguida, ceder ao calor. Edward tinha vários trabalhos temporários, principalmente um em que se ocupava do campo de um clube de cricket. Florence dedicava o tempo todo ao quarteto. As horas que passavam juntos nem sempre eram fáceis de combinar e, por isso, pareciam-lhes mais preciosas. Aquele era um sábado à tarde roubado ao trabalho. Sabiam que era um dos últimos dias de Verão — já se estava no princípio de Setembro e as folhas e a erva, embora de um verde sem ambiguidade tinham um ar exausto. A conversa regressara àqueles momentos, agora enriquecidos por uma mitologia pessoal, quando tinham poisado pela primeira vez os olhos um no outro. Em resposta à pergunta que Edward fizera havia vários minutos, Florence por fim respondeu:

— Porque tu não levavas casaco.

— E depois?

— Hmm. Camisa branca larga, mangas arregaçadas até aos cotovelos, a fralda quase de fora...

— Que disparate!

— E calças de flanela cinzentas com um remendo no joelho, ténis encardidos a começarem a romper-se nos dedos. E cabelo comprido, quase a tapar as orelhas.

— Que mais?

— Porque parecias um nadinha tresloucado, como se tivesses estado metido numa briga.

— Tinha estado a andar de bicicleta de manhã.

Ela ergueu-se, apoiada num cotovelo, para ver melhor o rosto dele, e depois sustiveram o olhar um do outro. Para eles tratava-se ainda de uma experiência nova e vertiginosa olhar durante um minuto, sem interrupção, para os olhos de outro adulto, sem constrangimento nem inibição. Era o mais perto que chegavam, pensava ele, de fazer amor. Ela puxou o talo de erva da boca dele.

— És um parolo tão desajeitado.

— Vá lá. E que mais?

— Está bem. Porque paraste à entrada e olhaste em volta para toda a gente, como se fosses o dono daquilo. Orgulhoso, não, ousado.

Ele riu ao ouvir aquilo.

— Mas eu estava irritado comigo mesmo.

— Foi então que me viste — prosseguiu Florence. — E decidiste olhar-me fixamente.

— Não é verdade. Tu deitaste-me uma olhadela e decidiste que não valia a pena olhares mais.

Ela beijou-o, não profundamente, mas em ar de brincadeira, ou foi isso que ele pensou. Nesses primeiros dias, ele achava que havia apenas uma pequena hipótese de ela ser uma dessas raparigas de contos de fadas, de boas famílias e que quisesse ir com ele até ao fim, e depressa. Mas por certo que não fora de casa, nessa parte do rio tão frequentada.

Puxou-a mais para junto de si, até os narizes quase se tocarem e os rostos de ambos escurecerem, e perguntou:

— Então pensaste que era amor à primeira vista?

Falava num tom superficial e zombeteiro, mas ela decidiu tomá-lo a sério. As ansiedades que iria enfrentar ainda vinham longe, embora uma vez por outra se perguntasse para onde se estava a dirigir. Um mês antes tinham dito um ao outro que estavam apaixonados e isso foi uma emoção para ambos, para ela, motivo para uma noite mal dormida, devido ao vago receio de ter sido impetuosa e abandonar qualquer coisa importante, de ter abdicado de qualquer coisa de que não deveria abdicar. Mas tudo aquilo era demasiado interessante, demasiado novo, demasiado lisonjeiro, demasiado reconfortante para resistir, era uma libertação estarem apaixonados e dizerem-no e tudo que ela podia fazer era deixar-se afundar mais. Agora, na margem do rio, no calor soporífico de um dos últimos dias daquele Verão, ela concentrou-se nesse momento em que tinha feito uma pausa à entrada da sala de reuniões e no que vira e sentira ao olhar na direcção dele.

A fim de auxiliar a memória, afastou-se dele, endireitou-se e desviou o olhar do seu rosto para o rio verde, lento e lamacento. De súbito, este já não estava tranquilo. A montante, a descer na sua direcção, via-se uma cena familiar, uma batalha entre duas barcaças demasiado carregadas, enganchadas uma na outra formando um ângulo recto, ao mesmo tempo que descreviam uma curva numa zona pantanosa do rio, com os guinchos habituais, os gritos e as chapadas de água dos piratas. O facto de os estudantes universitários, embora tão preocupados com a impressão que causavam, serem tão insensatos fê-la pensar quanto ansiava estar longe dali. Já nos seus tempos de escola considerava-os um estorvo, invasores pueris da sua cidade natal.

Tentou concentrar-se mais. A roupa dele era invulgar, mas no que reparara fora no rosto, pensativo, de um oval delicado, com uma testa alta, sobrancelhas escuras bem arqueadas, e a tranquilidade do seu olhar enquanto percorria a multidão e se fixava nela, como se ele não se encontrasse na sala, mas estivesse a imaginá-la, a sonhar com ela. A memória não conseguia inserir o que ainda não lhe fora dado ouvir: o ténue sotaque provinciano da voz dele, próximo da pronúncia de Oxford, com um ligeiro toque de West Country.

Virou-se para Edward.

— Despertaste a minha curiosidade.

Mas ainda era mais abstracto do que isso. Nessa altura nem lhe ocorrera satisfazer a sua curiosidade. Não pensou que estavam prestes a conhecer-se, ou que havia alguma coisa que ela pudesse fazer para tornar isso viável. Era como se a sua própria curiosidade nada tivesse a ver consigo própria, e fosse ela a estar ausente daquela sala. Apaixonar-se foi revelar a si mesma como era singular, como habitualmente vivia encerrada nos seus pensamentos quotidianos. Sempre que Edward lhe perguntava «Como te sentes?» ou «O que estás a pensar?», dava uma resposta desajeitada. Fora preciso todo esse tempo para descobrir que lhe faltava qualquer aptidão mental que todas as outras pessoas possuíam, um mecanismo tão banal que nunca ninguém o mencionava, uma ligação sensual e imediata com as pessoas e acontecimentos e com as suas próprias necessidades e desejos?

Durante todos esses anos vivera isolada dentro de si e, estranhamente, afastada de si própria, sem querer ou ousar olhar para trás. No átrio de chão de pedra, ressoante, com as traves baixas e pesadas, os seus problemas com Edward já estavam presentes naqueles primeiros segundos, na sua primeira troca de olhares.

 

Ele tinha nascido em Julho de 1940, na semana em que começou a batalha de Inglaterra. Lionel, o pai, dir-lhe-ia mais tarde que durante dois meses daquele Verão a história se manteve de respiração suspensa enquanto decidia se o alemão iria ou não ser a primeira língua de Edward. Por alturas do seu décimo aniversário, ele descobriu que aquilo era apenas uma maneira de falar, pois em toda a França ocupada, por exemplo, as crianças tinham continuado a falar francês. Turville Heath nem chegava a ser um povoado, consistia mais numas quantas casinhas dispersas à volta dos bosques e dos terrenos comunitários, empoleirada num vasto cume acima da aldeia de Turville. No final dos anos 30, a extremidade nordeste dos Chilterns, a que fica do lado de Londres e a quarenta e cinco quilómetros de distância da capital, havia sido invadida por urbanizações e já começava a ser um paraíso suburbano. Mas na ponta sudoeste, a sul de Beacon Hill, por onde um dia iria fluir, através de um corte na greda, uma torrente de carros e camiões em direcção a Birmingham, a paisagem mantinha-se mais ou menos inalterada.

Mesmo ao pé da casa dos Mayhew, por um caminho íngreme e cortado de sulcos, que atravessava um bosque de faias, para lá da Spinney Farm, chegava-se ao vale de Wormsley, uma beleza recôndita, como escrevera um autor que por lá passara, durante séculos pertença de uma família de proprietários, os Fanes. Em 1940 a casa ainda era abastecida pela água de um poço, transportada até ao sótão e daí despejada para um tanque. Corria na família que, quando o país se preparava para enfrentar a invasão de Hitler, a autoridade local considerou o nascimento de Edward uma emergência, uma situação de crise no que dizia respeito à higiene. Apareceram homens com pás e picaretas, homens bastante idosos, e, em Setembro desse ano, a água da rede foi canalizada até à casa a partir da estrada de Northend, precisamente na altura em que tinha início o bombardeamento de Londres.

Lionel Mayhew era director de uma escola primária em Henley. De manhã cedo, percorria de bicicleta os sete quilómetros e meio até ao trabalho e, ao fim do dia, subia a colina íngreme que conduzia ao brejo, com a bicicleta pela mão e os trabalhos de casa dos alunos empilhados num cesto de verga pendurado no guiador. Em 1945, no ano em que as gémeas nasceram, comprou um carro em segunda mão por onze libras em Christmas Common, à viúva de um oficial da marinha desaparecido no Atlântico. Um veículo motorizado a passar rente aos arados puxados por cavalos e às carroças ainda era um espectáculo raro naqueles longos caminhos de greda. Mas havia muitos dias em que o racionamento de gasolina obrigava Lionel a retomar a bicicleta.

No início dos anos 50, a sua rotina depois de chegar a casa não era propriamente característica de um homem com uma formação académica. Levava imediatamente os trabalhos que tinha para corrigir para a salinha minúscula junto da porta da frente, que lhe servia de escritório, e arrumava-os com todo o cuidado. Essa era a única divisão da casa que se encontrava em ordem, e era importante para ele proteger a sua vida de trabalho do ambiente doméstico. Depois ia ver como estavam as crianças — nesse tempo Edward, Anne e Harriet frequentavam a escola da aldeia, situada em Northend, e voltavam para casa a pé, sozinhos. Passava uns minutos sozinho com Marjorie, e a seguir ia para a cozinha, preparar o lanche e arrumar as coisas do pequeno-almoço.

Era só àquela hora, enquanto o jantar estava a fazer, que se ocupava da lida da casa. Mal os filhos ficaram com idade suficiente, ajudavam-no, embora de forma pouco eficiente. Só varriam as partes do soalho que não se encontravam cobertas de tralha e apenas arrumavam os artigos necessários para o dia seguinte — na sua maioria roupa e livros. As camas nunca eram feitas, os lençóis raramente eram mudados e o lavatório na casa de banho atafulhada e gelada nunca era limpo — era possível escrever o nome com uma unha no sarro duro e cinzento. Já era bastante difícil satisfazer as necessidades imediatas — o carvão que era preciso ir buscar para o fogão da cozinha, a lareira da sala a manter acesa durante o Inverno, a roupa semilimpa para as crianças levarem para a escola. A barrela era feita ao domingo à tarde, o que exigia que se acendesse o lume por baixo do caldeirão. Engomar estava para além das possibilidades de Lionel, pelo que a roupa era alisada com as mãos e dobrada. Havia interlúdios durante os quais uma das vizinhas trabalhava lá em casa como mulher-a-dias, mas nenhuma ficava muito tempo. O trabalho era demasiado e essas senhoras das imediações tinham de se ocupar das suas próprias famílias.

Os Mayhews jantavam sentados a uma mesa de pinho desdobrável, metida à força no meio do caos compacto da cozinha. Lavar a loiça ficava sempre para mais tarde. Depois de todos terem agradecido a refeição a Marjorie, esta retirava-se para se entregar a um dos seus projectos, enquanto os garotos levantavam a mesa e depois levavam os livros para cima dela a fim de fazerem os trabalhos de casa. Lionel ia para o seu escritório corrigir trabalhos dos alunos, ocupar-se de tarefas administrativas e ouvir as notícias na rádio enquanto fumava cachimbo. Cerca de hora e meia mais tarde, aparecia a fim de verificar os trabalhos dos filhos e de os preparar para irem para a cama. Lia-lhes sempre uma história, diferente para Edward e para as meninas. Era frequente os pequenos adormecerem ao som do pai a lavar os pratos no andar de baixo.

Lionel era um homem gentil, atarracado, que parecia um trabalhador rural, com olhos azuis, leitosos, cabelo cor de areia e um curto bigode militar. Era demasiado velho para ser recrutado — já tinha trinta e oito anos quando Edward nasceu. Ao contrário da maioria dos pais, era raro levantar a voz, dar uma sova aos filhos ou bater-lhes com o cinto. Esperava que lhe obedecessem, e os miúdos, talvez conscientes das responsabilidades que pesavam sobre ele, cumpriam os seus deveres. Como é natural, achavam a sua situação normal, embora fosse frequente verem nas casas dos amigos aquelas mães simpáticas, de avental, nos seus domínios onde reinava uma ordem inflexível. Nunca se tornou evidente para Edward, Ann e Harriet que eram menos afortunados do que qualquer das outras crianças. Era apenas Lionel a carregar esse peso.

Só aos catorze anos Edward compreendeu plenamente que havia qualquer problema com a mãe; e não se conseguia recordar da altura, teria uns cinco anos, quando ela se modificou abruptamente. Tal como as irmãs, cresceu sem se aperceber do seu desequilíbrio. Ela era uma figura fantasmagórica, um elfo doce e emaciado, com cabelo castanho desgrenhado, que vagueava pela casa tal como vagueava pela infância deles, às vezes comunicativa e até afectuosa, outras distante, absorvida nos seus passatempos e projectos. Era possível ouvi-la a qualquer hora do dia, e até a meio da noite, a praticar sempre as mesmas peças simples para piano, sempre a enganar-se nas mesmas passagens. Era frequente encontrá-la no jardim, a remexer no canteiro informe que havia feito, mesmo no centro do relvado estreito. A pintura, particularmente as aguarelas — cenas de montanhas distantes e igrejas com pináculos, enquadradas por árvores em segundo plano — contribuía muito para a desordem geral. Ela nunca lavava um pincel, não despejava a água esverdeada dos boiões de compota, não arrumava as tintas ou os trapos, nem recolhia os seus diversos esboços — nenhum dos quais terminava. Usava a bata de pintar durante dias e dias, muito tempo depois de a fase de entusiasmo pela pintura ter desaparecido.

Outra actividade — talvez lhe tivesse sido sugerida em tempos como uma forma de terapia ocupacional — consistia em recortar fotografias de revistas e em colá-las em cadernos. Gostava de andar pela casa enquanto trabalhava e havia por toda a parte bocados de papel que deitava fora e que eram pisados, misturando-se com a sujidade que cobria o soalho de tábuas nuas. Pincéis sujos de cola endureciam nos frascos abertos onde ela os deixava, em cima de cadeiras e no parapeito de janelas.

Entre os outros interesses de Marjorie contava-se a observação de aves da janela da sala de estar, o tricô, os bordados e os arranjos florais, tudo empreendido com a mesma intensidade sonhadora e caótica. Ela passava a maior parte do tempo em silêncio, embora por vezes a ouvissem murmurar para consigo enquanto executava uma tarefa difícil, «Vá lá... vá lá...»

Nunca ocorreu a Edward perguntar a si mesmo se ela seria feliz. Era indubitável que tinha momentos de ansiedade, ataques de pânico, durante os quais a respiração lhe saía entrecortada, os seus braços finos subiam e desciam ao lado do corpo, e toda a sua atenção ficava de súbito centrada nos filhos, numa necessidade específica que sabia ter imediatamente de satisfazer. As unhas de Edward estavam demasiado compridas, tinha de coser um rasgão num bibe, ou as gémeas precisavam de tomar banho. Descia das suas alturas para o meio deles, afadigando-se de uma forma ineficaz, a ralhar, ou a abraçá-los, a beijar-lhes o rosto, ou fazendo tudo isto ao mesmo tempo, tentando compensar o tempo perdido. Aquilo quase parecia amor e eles submetiam-se de bom grado. Mas sabiam por experiência que as realidades da lida doméstica eram impeditivas — era impossível encontrar a tesoura das unhas e a linha da cor necessária, e aquecer água para um banho requeria horas de preparativos. E a mãe não tardava a afastar-se, de regresso ao seu próprio mundo.

Esses acessos talvez fossem provocados por qualquer fragmento do seu antigo eu a tentar recuperar o controlo, semiconsciente da natureza do seu estado, dominado por uma recordação vaga de uma existência prévia, e de súbito, aterradoramente, vislumbrando a escala da sua perda. Mas durante a maior parte do tempo Marjorie sentia-se contente com a ideia, que, na realidade, não passava de um conto de fadas elaborado, de que era uma esposa e mãe dedicada, de que em casa tudo funcionava na perfeição graças a todo o seu trabalho e de que merecia um bocadinho de tempo para si mesma depois de cumpridos os seus deveres. E a fim de reduzir os maus momentos ao mínimo e de não alarmar esse pedacinho da sua antiga consciência, Lionel e os filhos conspiravam naquela história imaginária. No começo das refeições acontecia ela erguer o rosto do fruto do trabalho do marido e dizer docemente, ao mesmo tempo que afastava o cabelo despenteado da face: «Espero que gostem disto. É uma coisa nova que me apeteceu experimentar fazer.»

Era sempre uma coisa velha, pois o repertório de Lionel era escasso, mas ninguém a contradizia e, seguindo o ritual, no final de cada refeição, os filhos e o pai agradeciam-lhe. Era uma forma de fingimento reconfortante para todos eles. Quando Marjorie anunciava que estava a fazer uma lista de compras para ir ao mercado de Watlington, ou que tinha tantos lençóis para engomar que nem conseguia contá-los, um mundo paralelo de radiosa normalidade surgia ao alcance de toda a família. Mas a fantasia só podia subsistir se não fosse posta em causa. As crianças cresceram dentro dela, habitando com indiferença todo o seu absurdo, pois este nunca era definido.

De certo modo, protegiam a mãe dos amigos que levavam a casa, tal como protegiam os amigos em relação a ela. A ideia aceite na região — ou pelo menos era o que eles sempre ouviam — era que Mrs. Mayhew era dada às artes, excêntrica e encantadora, provavelmente um génio. As crianças não ficavam embaraçadas ao ouvir a mãe dizer-lhes coisas que elas sabiam não poderem ser verdade. Ela não tinha um dia muito ocupado à sua frente nem passava a tarde inteira a fazer geleia de amoras. Não se tratava de mentiras, mas sim de expressões do que a mãe de facto era, e eles sentiam-se obrigados a protegê-la em silêncio.

Foram, por conseguinte, uns minutos memoráveis quando Edward, com catorze anos, se viu sozinho com o pai no jardim e ouviu pela primeira vez que a mãe sofria de perturbações mentais. A expressão era um insulto, um convite blasfemo à deslealdade. Perturbações mentais. Qualquer problema na cabeça. Se tivesse sido outra pessoa a dizer aquilo acerca da mãe, Edward ter-se-ia visto obrigado a envolver-se numa luta e a dar uma sova a alguém. Mas já enquanto escutava aquela calúnia num silêncio hostil sentia um peso sair-lhe dos ombros. Claro, era verdade, e ele não podia lutar contra a verdade. O que podia fazer de imediato era começar a persuadir-se do que sempre havia sabido.

Ele e o pai estavam à sombra do grande ulmeiro num dia quente e húmido do final de Maio. Depois de dias de chuva, o ar estava denso devido à plenitude do início do Verão: o som estridente de aves e insectos, o odor da erva cortada disposta em filas no prado em frente da casa, o emaranhado premente e ansioso do jardim, quase inseparável da orla do bosque para lá da sebe de estacas de madeira, o pólen a provocar no pai e no filho o primeiro acesso de febre-dos-fenos da estação e, no relvado a seus pés, ladrilhos de luz e sombra a oscilarem movidos por uma ligeira brisa. Foi nesse cenário que Edward escutou o pai, a tentar imaginar um dia agreste de Inverno, em Dezembro de 1944, a azáfama na plataforma da estação de caminho-de-ferro de Wycombe, e a mãe, envolta no casacão, com um saco de compras com os magros presentes de Natal do tempo da guerra. Estava a avançar ao encontro do comboio vindo da estação de Marylebone que a levaria a Princess Risborough, e daí a Watlington, onde Lionel estaria à sua espera. Em casa, era a filha adolescente de uma vizinha que estava a tomar conta de Edward.

Há um certo tipo de viajante confiante que gosta de abrir a porta da carruagem antes de o comboio parar e de descer para a plataforma com um saltinho seguido de uma corrida. Talvez sair do comboio antes de a viagem ter terminado constitua uma afirmação da sua independência — não tem nenhuma massa amorfa a carregar. Talvez evoque alguma recordação de juventude ou simplesmente esteja com tanta pressa que cada segundo conta. O comboio travou, possivelmente com um pouco mais de brusquidão do que o habitual, e o tal viajante escancarou a porta. A pesada aresta de metal atingiu a testa de Marjorie Mayhew com força suficiente para lhe fracturar o crânio e para afectar num instante a sua personalidade, inteligência e memória. Ela permaneceu em coma menos de uma semana. O viajante, descrito por testemunhas oculares como um distinto cavalheiro da City, a rondar os sessenta anos, de chapéu de coco, guarda-chuva enrolado e jornal, retirou-se discretamente de cena — a jovem, grávida de gémeos, ficou estendida no chão por entre uns quantos brinquedos espalhados — e desapareceu para sempre nas ruas de Wycombe, com toda a sua culpa intacta, ou pelo menos era isso que Lionel dizia ser a sua esperança.

Esse momento curioso no jardim — um ponto de viragem na vida de Edward — fixou-lhe na mente uma recordação particular do pai. Este tinha um cachimbo na mão que não acendeu até terminar a história. Agarrava-o com firmeza, com o indicador à volta do forno e o cano a uns trinta centímetros do canto da boca. Como era domingo, não estava barbeado — Lionel não tinha convicções religiosas, embora na escola representasse o seu papel. Gostava de guardar essa manhã da semana para si. Não se barbeando aos domingos de manhã, o que era uma excentricidade para um homem com a sua posição, excluía-se deliberadamente de qualquer forma de compromisso público. Vestia uma camisa branca amarrotada e sem colarinho, nem sequer alisada com a mão. Os seus modos eram cautelosos, mesmo distantes — tratava-se de uma conversa que devia ter ensaiado em pensamento. Enquanto falava, por vezes o seu olhar deslocava-se do rosto do filho para a casa, como que para evocar o estado de Marjorie com mais exactidão, ou para vigiar as filhas. Em conclusão, pôs a mão no ombro de Edward, um gesto invulgar, e percorreu com ele os metros que faltavam para chegar ao fundo do jardim, onde a sebe de madeira desconjuntada desaparecia sob a vegetação rasteira que avançava. Mais além ficava um campo de dois hectares, vazio de carneiros, colonizado por botões-de-ouro dispostos em duas largas faixas divergentes, semelhantes a estradas.

Permaneceram lado a lado, enquanto Lionel finalmente enchia o cachimbo, e Edward, com a capacidade de adaptação própria da sua idade, continuava a fazer a calma transição do choque para o reconhecimento. Claro que sempre soubera. Fora mantido num estado de inocência em virtude da ausência de um termo para designar a doença da mãe. Nunca pensara nela como uma doente e, ao mesmo tempo, sempre aceitara que ela era diferente. Devido a essa simples expressão e à capacidade de as palavras tornarem visível o invisível a contradição estava agora resolvida. Perturbações mentais. O termo dissolvia a intimidade, media friamente a mãe com um padrão público que toda a gente podia entender. Um espaço súbito começou a abrir-se, não só entre Edward e a mãe, mas também entre ele próprio e a sua situação imediata, e sentiu o seu próprio ser, o cerne bem enterrado que até então nunca atingira, adquirir uma existência súbita e acerada, um pontinho reluzente que ele não queria que mais ninguém conhecesse. Ela sofria de perturbações mentais, e ele não. Ele não era a mãe, e também não era a família, e um dia sairia de casa para só regressar de visita. Imaginava-se agora um visitante, a fazer companhia ao pai depois de uma longa ausência no estrangeiro, contemplando na sua companhia as largas estradas de botões-de-ouro do outro lado do campo, a separarem-se imediatamente antes de a terra começar a descer numa vertente suave em direcção aos bosques. Era uma sensação de solidão que experimentava, o que o deixava culpabilizado, embora a sua ousadia também o excitasse.

Lionel pareceu compreender o silêncio de Edward. Disse-lhe que tinha sido maravilhoso com a mãe, sempre gentil e solícito, e que aquela conversa não alterava nada, mas apenas reconhecia que ele já tinha idade para ficar a par dos factos. Nessa altura, as gémeas apareceram a correr, à procura do irmão, e Lionel só teve tempo de repetir: «O que eu disse não altera nada, absolutamente nada», antes de as pequenas chegarem ao pé deles a fazer muito barulho e de puxarem Edward para casa a fim de dar uma opinião sobre qualquer coisa que elas tinham feito.

Mas nessa altura, muito mais coisas estavam a mudar para ele. Andava no liceu de Henley e começava a ouvir vários professores dizer que ele era «material para a universidade». O seu amigo Simon, de Northend, e todos os outros rapazes da aldeia com quem andava, iam para uma escola profissionalizante e em breve estariam a aprender um ofício, ou a trabalhar numa quinta, antes de serem chamados para o serviço militar. Edward tinha esperança de vir a ter um futuro diferente. Já pairava no ar um certo constrangimento quando estava com os amigos, tanto da parte deles como da sua. Com montes de trabalhos de casa para fazer — apesar de toda a sua brandura, nesse aspecto Lionel era um tirano — Edward já não andava a deambular pelos bosques depois da escola com os outros rapazes, a montarem acampamentos ou armadilhas, ou a provocarem os guardas-caça nas propriedades de Wormsley ou de Stonor. Uma pequena cidade como Henley tinha as suas pretensões urbanas, e Edward estava a aprender a dissimular o facto de saber os nomes das borboletas, das aves e das flores silvestres que cresciam nas terras da família Fane no vale que tão bem conhecia abaixo da sua casa — os botões-de-ouro, a chicória, as escabiosas e dez tipos de orquídeas e de heleborina, bem como o raro floco-de-neve do Verão. Na escola, era possível que conhecimentos desse género o rotulassem de campónio.

Saber do acidente da mãe naquele dia nada mudou exteriormente, mas foi como se todos os pequenos desvios e realinhamentos da sua vida se cristalizassem neste novo conhecimento. Era atencioso e gentil para com ela, continuou a ajudar a manter a ficção de que era ela a governar a casa e de que tudo que ela dizia era pertinente, mas agora representava activamente um papel e fazê-lo fortalecia o recém-descoberto, embora pequeno, núcleo do seu eu. Aos dezasseis anos, tomou o gosto pelas longas deambulações melancólicas. Estar fora de casa contribuía para lhe desanuviar o espírito. Muitas vezes seguia ao longo da Holland Lane, um caminho de greda profundamente escavado no terreno, entre ravinas musgosas a esboroarem-se, que descia pelo monte até Turville e em seguida percorria o vale de Hambledon até ao Tamisa, atravessando em Henley para entrar nos Berkshire Downs. O termo «adolescente» fora inventado havia pouco tempo e nunca lhe ocorria que a sua sensação de isolamento, a um tempo pungente e deliciosa, pudesse ser partilhada por outra pessoa qualquer.

Sem pedir autorização nem sequer contar ao pai, um fim-de-semana foi à boleia até Londres, participar numa manifestação em Trafalgar Square contra a invasão do Suez. Enquanto aí estava, num momento de exultação decidiu que não iria candidatar-se a Oxford, que era para onde Lionel e todos os professores queriam que fosse. Essa cidade era demasiado familiar, insuficientemente diferente de Henley. Iria para Londres, onde as pessoas pareciam maiores, mais barulhentas e imprevisíveis e as ruas famosas desdenhavam da sua própria importância. Manteve esse plano secreto, pois não queria provocar nenhuma oposição antecipada. Também tencionava evitar o serviço militar, que Lionel decidira que seria bom para ele. Esses esquemas dissimulados ainda acentuaram mais a sua sensação de um eu oculto, de uma estreita conexão de sensibilidade, anseio e egotismo exacerbado. Ao contrário de alguns rapazes do liceu, não odiava a casa nem a família. Considerava normais as divisões acanhadas e sórdidas e não se envergonhava da mãe. Sentia-se simplesmente impaciente pela sua vida, pela história real, por começar e, da maneira como as coisas estavam dispostas, não poderia fazê-lo antes de ter passado os exames. Por isso esforçava-se, e entregava bons trabalhos escritos, especialmente ao professor de História. Era afável com as irmãs e os pais, e continuava a sonhar com o dia em que sairia da casinha de Turville Heath, o que, num certo sentido, já havia feito.

 

Quando Florence chegou ao quarto, largou a mão de Edward e, apoiando-se a um dos postes de carvalho que sustentavam o dossel da cama, mergulhou, primeiro para a direita, depois para a esquerda, deixando descair um ombro de cada vez, num gesto airoso, a fim de descalçar os sapatos. Eram sapatos elegantes que comprara com a mãe no Debenhams, numa tarde chuvosa e no meio de muita discussão — era raro Violet entrar numa loja e isso punha-a sempre nervosa. Eram de couro azul-pálido, macio, com saltos baixos e um pequeno laço à frente, artisticamente entretecido com couro mais escuro. A noiva não se mostrava apressada nos seus movimentos — esta era também uma dessas tácticas de adiamento que ainda a comprometiam mais. Dava-se conta do olhar enlevado com que o marido a contemplava, mas, de momento, não se sentia tão agitada nem pressionada. Ao entrar no quarto, mergulhara num estado desconfortável, onírico, que agravava o incómodo que sentia, como um fato de mergulho antiquado em águas profundas. Era como se os seus pensamentos não lhe pertencessem, sendo-lhe instilados gota a gota, pensamentos em vez de oxigénio.

E, nesse estado, tomara consciência de uma simples frase musical, grandiosa, que soava e se repetia, da maneira sombria e inatingível própria da memória auditiva, e que a seguiu até à cabeceira da cama, onde voltou a fazer-se ouvir ao mesmo tempo que ela pegava num sapato em cada mão. Essa frase familiar — era possível haver mesmo quem lhe chamasse famosa — consistia em quatro notas ascendentes, que pareciam estar a fazer uma pergunta hesitante. Uma vez que o instrumento era um violoncelo, e não o seu violino, quem interrogava não era ela mesma, mas um observador distante, ligeiramente incrédulo, embora também insistente, pois, após um breve silêncio e uma resposta arrastada e pouco convincente dos outros instrumentos, o violoncelo repetiu a interrogação, em termos diferentes, num acorde diferente, e depois outra e outra vez, recebendo a cada uma delas uma resposta pouco convicta. Não havia agrupamento de palavras que ela conseguisse associar a essas notas e não era como se alguma coisa estivesse a ser dita. A questão era desprovida de conteúdo, tão pura quanto um ponto de interrogação.

Tratava-se da abertura de um quinteto de Mozart, motivo de uma certa discórdia entre Florence e os amigos, pois interpretá-la implicaria contratar uma violetista e os outros preferiam evitar complicações. Mas Florence insistiu, queria alguém para executar aquela peça, e quando convidou uma amiga que habitava no mesmo corredor da residência a juntar-se-lhes para um ensaio, e a interpretaram sem partitura, como é natural, a violoncelista, na sua vaidade, não resistiu e, dentro em pouco, os outros também ficaram fascinados. E como era possível tal não acontecer? Se a frase de abertura punha uma questão difícil sobre a coesão do Ennismore Quartet — assim chamado segundo a morada da residência da jovem — esta foi resolvida pela determinação de Florence face à oposição, um contra três, e à sua convicção obstinada do seu próprio bom-gosto.

Ao atravessar o quarto, ainda de costas para Edward, a tentar ganhar tempo, e ao poisar com todo o cuidado os sapatos no chão, junto do guarda-fatos, as mesmas quatro notas recordaram-lhe outros aspectos da sua natureza. A Florence que dirigia o quarteto, que impunha friamente a sua vontade, nunca se submeteria com docilidade a expectativas convencionais. Não era um cordeiro para ser degolada sem um queixume. Nem penetrada. Perguntaria de si própria o que queria ou não queria exactamente do seu casamento e di-lo-ia a Edward; e ficaria à espera de descobrir qualquer forma de compromisso com ele. Era indubitável que o que cada um deles desejava não devia ser à custa do outro. O importante era amarem e darem liberdade um ao outro. Sim, ela precisava de falar, como acontecia nos ensaios, e ia fazê-lo imediatamente. Já tinha o esboço de uma proposta que poderia fazer. Os seus lábios entreabriram-se e inspirou. Depois, ao ouvir o som das tábuas do soalho, virou-se e, ao vê-lo a caminhar direito a ela, a sorrir, com o rosto belo um pouco ruborizado, a ideia libertadora desvaneceu-se, como se ela nunca a tivesse tido.

O vestido que pusera depois do casamento era de um tecido de Verão, leve, de um azul-linho, a condizer na perfeição com os sapatos e só descoberto após muitas horas a percorrer o passeio entre a Regent Street e o Marble Arch, felizmente sem a mãe. Quando Edward atraiu Florence para si, não era para a beijar, mas primeiro para apertar o corpo dela contra o seu e, em seguida, para lhe pôr a mão na nuca e sentir o fecho do vestido. A sua outra mão estava firme e espalmada contra o fundo das costas dela, e ele murmurava-lhe ao ouvido, numa voz tão sonora, tão perto, que ela ouvia apenas um torvelinho de ar húmido e quente. Mas não era possível correr o fecho com uma só mão ou, pelo menos, não era possível fazê-lo durante os primeiros centímetros. Tinha de agarrar o alto do vestido com uma das mãos, enquanto puxava, pois, de outro modo, o material delicado iria amarfanhar-se e fazer encravar o fecho. Ela podia ter passado a mão por cima do ombro para o ajudar, mas tinha os braços presos e, além disso, não lhe parecia correcto mostrar-lhe o que fazer. Acima de tudo, não queria magoar os sentimentos dele. Com um grande suspiro, ele puxou o fecho com mais força, mas este já tinha atingido o ponto em que não se movia nem para cima nem para baixo. De momento, ela estava aprisionada dentro do vestido.

— Meu Deus, Flo. Fica quieta, está bem?

Obediente, ela imobilizou-se, horrorizada pela agitação da voz dele, automaticamente certa de que a culpa era dela. Afinal, o vestido e o fecho pertenciam-lhe. Teria ajudado, pensou, libertar-se, voltar-se de costas, e aproximar-se da janela onde havia mais luz. Mas isso poderia parecer frieza da sua parte e a interrupção admitiria a gravidade do problema. Em casa confiava na irmã, que era mais hábil de mãos, apesar de tocar piano de uma maneira atroz. A mãe não tinha paciência para pequenas coisas. Pobre Edward — sentiu nos ombros dele tremores provocados pelo esforço, que lhe percorriam os braços quando ele utilizava ambas as mãos, e imaginou os seus dedos grossos a remexerem entre as pregas de tecido preso e o metal obstinado. Sentiu pena, e também um pouco de medo dele. Fazer uma sugestão, por muito tímida que fosse, poderia enraivecê-lo ainda mais. Por isso ficou à espera, paciente, até, por fim, ele se libertar dela com um gemido e recuar.

Na realidade, ele estava contristado.

— Tenho muita pena. Fiz uma trapalhada. Sou desajeitado como um raio.

— Querido, isso acontece muitas vezes comigo.

Foram sentar-se juntos na cama. Ele sorriu para lhe dar a entender que não acreditava nela, mas ficou grato pela observação. Ali, no quarto, as janelas estavam abertas de par em par sobre o mesmo panorama do relvado do hotel, bosques e mar. Uma súbita mudança do vento ou da maré, ou talvez fosse o sulco deixado por um barco que passava, levou até eles o som de várias ondas a rebentarem umas após outras, pancadas duras contra a rocha. Depois, também de súbito, as ondas ficaram como antes, a tinirem e a rasparem suavemente sobre o burgau.

— Queres saber um segredo? — perguntou ela, rodeando-lhe o ombro com o braço.

— Quero.

Ela segurou-lhe o lobo da orelha entre o indicador e o polegar, puxou-lhe suavemente a cabeça para junto da sua e murmurou:

— Para dizer a verdade, estou um bocadinho assustada.

Isso não era estritamente exacto, mas, embora estivesse pensativa, nunca poderia ter descrito a profusão de sentimentos que a assaltavam: uma sensação física seca de aridez, de contracção e de aperto, uma repulsa geral ante o que ele lhe poderia pedir para fazer, vergonha face à perspectiva de o desapontar e de se vir a revelar uma fraude. Sentiu aversão por si própria e quando ele lhe segredou ao ouvido pensou que as palavras lhe sibilavam na boca como as de um vilão de peça de teatro. Mas era preferível dizer que estava assustada do que confessar a repulsa ou a vergonha que sentia. Tinha de fazer tudo o que pudesse para começar a reduzir as expectativas dele.

Edward olhava-a fixamente, e nada na sua expressão revelava que a tinha ouvido. Mesmo no meio da situação difícil em que se encontrava, Florence maravilhou-se com os seus olhos castanhos e doces. Tanta inteligência, bondade e indulgência. Talvez se olhasse para os olhos dele sem ver mais nada fosse capaz de fazer o que quer que ele lhe pedisse. Confiaria totalmente nele. Mas isso era fantasia.

Por fim ele respondeu:

— Acho que eu também estou.

Enquanto falava, pôs-lhe a mão logo acima do joelho e fê-la deslizar, por baixo da fímbria do vestido, até repousar no interior da coxa dela, com o polegar a tocar-lhe ligeiramente nas calcinhas. Ela tinha as pernas nuas e lisas, bronzeadas devido aos banhos de sol no jardim, aos jogos de ténis com as amigas nos courts públicos de Summertown e a dois longos piqueniques com Edward nos downs floridos, acima da bonita aldeia de Ewelme, onde a neta de Chaucer estava sepultada. Continuaram a olhar-se nos olhos — nisso eram exímios. Ela tinha tal consciência do seu contacto, do calor e da pressão pegajosa da mão dele contra a sua pele, que conseguiu imaginar, conseguiu ver, com nitidez, o seu polegar longo e curvo na obscuridade azul por baixo do vestido, pacientemente à espera, como um engenho de ataque diante das muralhas de uma cidade sitiada, a unha bem cortada a roçar ao de leve a seda creme, franzida em pequenas pregas ao longo da linha da orla de renda, e também a tocar — disso estava ela certa, sentia-o claramente — um pêlo desgarrado que se encaracolava, solto.

Estava a fazer tudo o que podia para impedir os músculos da perna de se contraírem, mas isso acontecia sem a intervenção da sua vontade, por si só, tão inevitável e poderoso como um espirro. Não era doloroso, a contracção daquele feixe de músculos traiçoeiro a ir e vir num espasmo suave, mas sentiu que a estava a trair, dando a primeira indicação da amplitude do seu problema. Sem dúvida que ele sentia a pequena tempestade sob a sua mão, pois os seus olhos dilataram-se um tudo-nada e o ângulo formado pelas suas sobrancelhas, bem como a separação silenciosa dos seus lábios sugeriam que estava impressionado, até atemorizado, pois tomou o sobressalto dela por desejo.

— Flo? — Ele pronunciou o nome dela com precaução, num movimento descendente e ascendente, como que a querer serená-la ou dissuadi-la de qualquer acção impetuosa. Mas era necessário pôr cobro a uma pequena tempestade que tinha a ver consigo mesmo. A sua respiração era superficial e irregular e não cessava de afastar a língua do palato, com um som suave e pegajoso.

Por vezes é constrangedor como o corpo não está disposto a mentir sobre as emoções, ou não consegue fazê-lo. Quem, em nome do decoro, conseguiu alguma vez abrandar o coração ou dissimular um rubor? O músculo rebelde de Florence saltava e adejava, como uma borboleta presa sob a sua pele. Por vezes tinha um problema semelhante com as pálpebras. Não estava certa, mas talvez o tumulto estivesse a abrandar. Ajudava-a fixar-se nos aspectos fundamentais, e enumerou-os, de si para consigo, com uma lucidez estúpida: a mão dele encontrava-se ali por ele ser seu marido; ela deixava-o estar por ser sua mulher. Algumas das suas amigas — Greta, Hermione e, especialmente, Lucy — há horas que teriam estado nuas entre os lençóis e consumado aquele casamento — ruidosa e alegremente — muito antes da boda. Com o seu afecto e generosidade, tinham mesmo a impressão de que era isso precisamente que ela tinha feito. Florence nunca lhes mentira, mas também nunca as elucidara. Ao pensar nas amigas, sentiu aquele travo peculiar e não partilhado da sua existência: estava sozinha.

A mão de Edward não avançou — o que ela havia desencadeado talvez o tivesse feito perder a coragem — e, em vez disso, oscilou ligeiramente sem sair do sítio, massajando suavemente o interior da coxa. Talvez fosse por esse motivo que o espasmo se desvanecia, mas ela já não estava a dar atenção. Devia ter sido acidental, pois ele não podia tê-lo sabido quando lhe apalpava a perna, mas a ponta do polegar encontrou um pêlo solitário e encaracolado, que saía por baixo das calcinhas, e fê-lo oscilar para trás e para a frente, estimulando-lhe a raiz, ao longo do nervo do folículo, um simples vislumbre de sensação, um começo quase abstracto, tão infinitamente pequeno como um ponto geométrico que crescia até se transformar numa minúscula mancha de contornos suaves, e continuava a aumentar. Ela duvidou disso, negou-o, mesmo quando se sentiu afundar e interiormente dobrar-se nessa direcção. Como podia a raiz de um pêlo solitário atrair todo o seu corpo? Ao ritmo acariciante da mão dele, em pulsações regulares, aquele simples ponto e fonte de sensação alastrou por toda a superfície da sua pele, pela barriga, e desceu a latejar para o períneo. Essa sensação não lhe era completamente desconhecida — qualquer coisa entre uma dor e uma comichão, mas mais suave, mais quente, e, de certo modo, mais vazia; um vazio agradável e doloroso que emanava de um folículo ritmicamente perturbado e que se estendia em vagas concêntricas a todo o seu corpo e que agora se deslocava mais para o fundo.

Pela primeira vez, o seu amor por Edward associava-se a uma sensação física definida, tão irrefutável como uma vertigem. Até então, só conhecera o caldo reconfortante das emoções mornas, um cobertor espesso e quente de gentileza e confiança. Isso parecera-lhe sempre suficiente, um desfecho em si. Agora ali estavam por fim os primórdios do desejo, precisos e desconhecidos, mas claramente seus; e, mais para além, como que suspenso acima e por trás dela, um nadinha para além do alcance da sua vista, o alívio por ser uma mulher como todas as outras. Quando era uma rapariga de catorze anos, atrasada no desenvolvimento, desesperada por todas as amigas terem seios enquanto ela ainda se assemelhava a uma gigante de nove anos de idade, teve um movimento semelhante de revelação diante do espelho na noite em que descobriu e apalpou pela primeira vez uma nova turgidez à volta dos mamilos. Se a mãe não estivesse no andar de baixo a preparar a sua conferência sobre Espinoza, Florence teria soltado gritos de alegria. Era inegável: não era uma subespécie isolada da raça humana. Triunfante, inseria-se na generalidade.

Ela e Edward continuavam a sustentar o olhar um do outro. Falar parecia fora de questão. Ela simulava que nada estava a acontecer — que a mão dele não se encontrava por baixo do seu vestido, que o polegar dele não empurrava para trás e para a frente um pêlo púbico saído das calcinhas e que ela não estava a fazer uma importante descoberta sensorial. Por trás da cabeça de Edward estendia-se um panorama parcial de um passado distante — a porta aberta, a mesa junto da janela francesa e a devastação à volta do jantar não comido — mas ela não permitiu que o seu olhar captasse tudo isso. Apesar da sensação agradável e do alívio que sentia, a apreensão subsistia, uma muralha alta, não tão fácil de demolir. Nem ela queria vê-la cair por terra. Apesar de toda a novidade, não se encontrava num estado de abandono desvairado, nem queria ser empurrada à pressa em direcção a ele. Desejava atardar-se naquele momento vasto, em que se encontravam completamente vestidos, com a expressão doce daqueles olhos castanhos, a carícia terna e o frémito a alastrar. Mas sabia que isso era impossível e que, como toda a gente dizia, uma coisa teria de levar a outra.

 

O rosto de Edward ainda estava invulgarmente cor-de-rosa, as suas pupilas dilatadas, os lábios ainda apartados, a respiração como antes: superficial, irregular, rápida. A sua semana de preparação para o casamento, de louca contenção, exercia uma forte pressão sobre a química do seu corpo jovem. Florence estava tão preciosa e intensa à sua frente e ele não sabia muito bem o que fazer. Na luz que esmorecia, o vestido azul que ele não conseguira tirar cintilava obscuramente contra a colcha esticada. Quando tocou pela primeira vez no interior da coxa dela sentiu-se surpreendido com a frescura da sua pele e, por qualquer razão, isso excitara-o intensamente. Enquanto a fitava nos olhos, teve a impressão de cambalear em direcção a ela num constante movimento estonteado. Sentiu-se preso entre o vigor da sua excitação e o fardo da sua ignorância. Para lá dos filmes, das piadas obscenas e das anedotas escabrosas, a maior parte do que sabia sobre mulheres derivava da própria Florence. A perturbação sob a sua mão podia facilmente ser um sinal revelador de que qualquer pessoa lhe poderia ter falado sobre a maneira de reconhecer e corresponder a, talvez, uma espécie de precursor do orgasmo feminino. Mas também podiam ser nervos. Não havia maneira de saber, e sentiu-se aliviado quando aquilo começou a abrandar. Recordou um dia, num vasto campo à saída de Ewelme, em que se sentou diante dos comandos de uma máquina de ceifa combinada, depois de se ter vangloriado perante o encarregado de ser competente, sem se atrever a tocar numa única alavanca. Simplesmente não sabia o suficiente. Por um lado, fora ela a conduzi-lo pela mão até ao quarto, a descalçar os sapatos com tamanho abandono, a deixá-lo aproximar a mão. Por outro, a experiência havia muito que lhe ensinara como era fácil um movimento impetuoso deitar tudo a perder. Enquanto a sua mão permanecia no mesmo sítio, a apalpar-lhe a coxa, ela continuou a olhá-lo fixamente, com um ar tão convidativo — os seus traços vigorosos tornaram-se mais doces, os olhos semicerraram-se, depois tornaram a abrir-se para encontrar os dele e agora tinha a cabeça inclinada para trás — que lhe pareceu que a sua precaução era por certo absurda. Essa hesitação era uma loucura da sua parte. Estavam casados, pelo amor de Deus, e ela estava a encorajá-lo, a incitá-lo, desesperada por que fosse ele a tomar as coisas em mãos. Mas mesmo assim não conseguia escapar à recordação daqueles momentos em que tinha interpretado mal os indícios, o mais espectacular dos quais tivera lugar no cinema, durante uma exibição de Uma Gota de Mel, em que ela saltara da cadeira para a coxia como uma gazela assustada. Foram precisas semanas para reparar esse único erro, essa catástrofe que não ousava repetir, e duvidava de que uma cerimónia de quarenta minutos fizesse uma diferença assim tão profunda.

O ar no quarto parecia rarefeito, insubstancial, e era necessário um esforço consciente para respirar. Edward foi acometido por um acesso de bocejos nervosos, que dissimulou franzindo o sobrolho e com um frémito das narinas — não ajudaria se ela pensasse que estava entediado. Sentiu uma pena tremenda por a sua noite de núpcias não ser simples, quando o amor de ambos era tão óbvio. Considerava perigoso o seu estado de excitação, ignorância e indecisão por não confiar em si mesmo. Era capaz de se comportar estupidamente, até de uma forma explosiva. Era conhecido pelos seus amigos da universidade como um desses tipos calmos, de quando em quando propensos a erupções violentas. Segundo o pai, mesmo a sua infância havia sido assinalada por birras espectaculares. Ao longo dos anos de escola e durante o tempo que passou na faculdade uma vez por outra era atraído pela liberdade desenfreada de uma briga. Desde cenas de pancadaria no pátio da escola, com os miúdos a cantarem selvaticamente, formando um círculo de espectadores, até um encontro solene na clareira de um bosque perto da orla da aldeia e às lutas desbragadas à porta dos pubs do centro de Londres, Edward encontrava nas brigas uma imprevisibilidade emocionante e descobriu um eu espontâneo e decisivo que não existia no resto da sua vida tranquila. Nunca procurava essas situações, mas quando surgiam, determinados aspectos — os amigos que o incitavam ou que o continham, os preparativos, a absoluta fogosidade do adversário — eram irresistíveis. Qualquer coisa como visão em túnel e surdez abatiam-se sobre ele e depois, de súbito, estava ali de novo, a entrar num prazer esquecido, como que a mergulhar num sonho recorrente. À semelhança do que acontecia com uma bebedeira de estudante, a dor vinha depois. Não era grande pugilista, mas tinha o dom útil da temeridade física, e estava bem colocado para arriscar. Além disso, era forte.

Florence nunca o vira acometido por essa loucura e ele não tencionava falar-lhe dela. Não tomava parte numa briga havia dezoito meses, desde Janeiro de 1961, no segundo período do seu último ano. Fora um caso unilateral, e também invulgar, na medida em que Edward teve uma certa razão, um certo grau de justiça do seu lado. Seguia ao longo da Old Compton Street em direcção ao French Pub na Dean Street, na companhia de Harold Mather, outro aluno de História do terceiro ano. Era ao princípio da noite e tinham saído da biblioteca em Malet Street para se irem encontrar com uns amigos. No liceu que Edward frequentara, Mather teria sido a vítima perfeita — era baixo, menos de um metro e cinquenta e cinco, usava óculos grossos sobre umas feições esborrachadas e cómicas e era incrivelmente falador e inteligente. Porém, na universidade brilhava e era uma figura de destaque. Tinha uma colecção importante de discos de jazz, editava uma revista literária, escrevera um conto que fora aceite pela revista Encounter, embora ainda não o tivessem publicado, era hilariante em debates formais da Associação de Estudantes e dotado para mímica — imitava o MacMillan, o Gaitskell, o Kennedy, o Khrushchev em falso russo, bem como diversos líderes africanos e comediantes como Al Read e Tony Hancock. Era capaz de reproduzir todas as vozes e sketches de Beyond the Fringe e era considerado de longe o melhor aluno do departamento de História. Edward considerava um progresso na sua vida, indício de uma nova maturidade, prezar a amizade de um homem que em tempos talvez se desse ao trabalho de evitar.

Naquela época, numa noite de Inverno de um dia de semana, o Soho apenas começava a despertar. Os pubs estavam cheios, mas os clubes ainda não tinham aberto e não havia multidões nos passeios. Era fácil reparar no par que avançava em direcção a eles ao longo da Old Compton Road. Eram rockers — ele, um sujeito corpulento, dos seus vinte e tal anos, com longas suíças, um blusão de couro com pregos, jeans e botas justas, e a amiga rechonchuda, pendurada no braço dele e vestida de uma maneira semelhante. Quando se cruzaram, e sem abrandarem o passo, o homem oscilou o braço para dar uma palmada na parte de trás da cabeça de Mather que o deixou a cambalear e fez saltar os seus óculos à Buddy Holly, que deslizaram pela rua fora. Foi um gesto de desprezo pela altura de Mather e pelo seu ar estudioso, ou pelo facto de ele parecer, e ser, judeu. Talvez se destinasse a impressionar ou a divertir a rapariga. Edward não se deteve a pensar no sucedido. Enquanto seguia o par com grandes passadas, ouviu Mather gritar qualquer coisa como «não», ou «isso não», mas nessa altura já se tinha tornado surdo a esse tipo de apelo. Estava de regresso ao seu sonho. Teria achado difícil descrever o estado em que se encontrava: a sua cólera erguera-se e descrevia espirais ao entrar numa espécie de êxtase. Com a mão direita agarrou o ombro do homem e fê-lo dar meia volta e, com a esquerda, segurou-o pela garganta e empurrou-o contra uma parede. Teve a satisfação de ouvir o ruído da cabeça do outro bater num cano de ferro. Sem o largar, Edward desferiu-lhe um murro na cara, apenas um, mas com muita força, com o punho fechado. Depois voltou atrás para ajudar Mather a procurar os óculos, que tinham uma lente partida. Seguiram caminho, deixando o outro sentado no passeio, com as duas mãos a taparem a cara e a namorada debruçada sobre ele.

Só ao fim de bastante tempo nessa mesma noite Edward se deu conta da falta de gratidão de Harold Mather, e depois do seu silêncio, ou do silêncio para com ele; e ainda foi preciso mais tempo, um ou dois dias, para se aperceber de que o amigo não só reprovava o que ele havia feito, mas, pior do que isso, sentia vergonha. No pub, nenhum deles contou aos amigos o sucedido e Mather nunca mais tornou a falar do caso a Edward. Recriminações teriam sido um alívio. Sem dar nas vistas, Mather afastou-se dele. Embora se vissem na companhia de amigos, e ele nunca se mostrasse manifestamente distante em relação a Edward, a amizade nunca mais voltou a ser a mesma. Edward ficou desesperado ao pôr a hipótese de Mather ter rejeitado o seu comportamento, mas não teve coragem para abordar o assunto. Além disso, Mather fez o possível para nunca mais estarem juntos sozinhos. A princípio, Edward pensou que o seu erro fora ferir o orgulho do amigo testemunhando a sua humilhação, que ele aumentara agindo como seu defensor e demonstrando que era duro, enquanto o outro era um fracalhote vulnerável. Mais tarde, apercebeu-se de que, simplesmente, o seu gesto não fora «fixe», e a sua vergonha ainda se tornou maior. As lutas de rua não condiziam com a poesia e a ironia, com o be-bop e a história. Era culpado de falta de gosto. Não era a pessoa que pensara ser. O que supunha tratar-se de uma excentricidade interessante, de uma virtude rude, revelou-se uma vulgaridade. Era um rapaz do campo, um provinciano idiota que pensava que um bom murro podia impressionar um amigo. Isso foi uma constatação humilhante. Estava a fazer um dos avanços característicos do início da idade adulta: a descoberta de que havia novos valores pelos quais ele preferia ser julgado. Desde então, Edward não tornara a envolver-se em brigas.

Mas agora, na sua noite de núpcias, não confiava em si mesmo. Não podia ter a certeza de que a visão em túnel e a surdez nunca mais voltariam a abater-se sobre ele — essa manta espessa que o envolvia como uma neblina de inverno a cair sobre Turville Heath, obscurecendo o seu eu mais recente, mais sofisticado. Estivera sentado ao lado de Florence, com a mão debaixo do vestido dela, a acariciar-lhe a coxa durante mais de um minuto e meio. O seu desejo doloroso estava a tornar-se intolerável e sentia-se assustado com a sua impaciência selvagem, com as palavras ou as acções furiosas que esta pudesse causar, acabando assim a noite. Ele amava-a, mas queria abaná-la para a despertar, ou esbofeteá-la até a fazer sair daquela pose de executante musical de costas direitas, dos seus predicados oxfordianos e fazê-la ver como no fundo tudo era simples, a liberdade sensual de que dispunham, mesmo ali à mão, e até abençoada pelo pároco — com o meu corpo te venero —, uma liberdade escandalosa, rejubilante, de membros nus, que ascendia na sua imaginação como uma vasta catedral etérea, arruinada talvez, sem telhado, com arcos em ogiva a erguerem-se até ao céu, onde eles, imponderáveis, seriam arrastados para cima num vigoroso amplexo, e se possuiriam um ao outro, se afogariam mutuamente em vagas de êxtase que os faziam perder o fôlego e o tino. Era tão simples! Porque não estariam lá no alto agora, em vez se permanecerem ali sentados, entupidos por todas aquelas coisas que não sabiam como dizer, ou não ousavam dizer?

E o que impedia que assim fosse? As suas personalidades, a sua ignorância e medo, a timidez, a repugnância, a falta de competência, de experiência ou de à-vontade, e ainda os últimos resquícios de uma interdição religiosa, o facto de serem ingleses e a classe a que pertenciam, e também a própria história. Nada de muito especial. Edward retirou a mão, puxou Florence para si e beijou-a nos lábios, com toda a contenção de que foi capaz, mantendo a língua recuada. Instalou-a atravessada na cama, com a cabeça apoiada no seu braço. Deitou-se de lado, sustentado pelo cotovelo desse mesmo braço, a olhar para ela. A cama rangeu tristemente quando se mexeram, numa evocação de outros casais em lua-de-mel, por certo mais experientes, que por ali haviam passado. Ele dominou um impulso repentino de desatar a rir perante a ideia de uma fila solene disposta ao longo do corredor e pela escada abaixo até à recepção, ao longo do tempo. Era importante não pensar neles, pois a comédia era um veneno para o erotismo. Também tinha de manter ao largo a ideia de que a sua presença pudesse aterrorizá-la. Se acreditasse nisso, não conseguiria fazer nada. Ela mostrava-se submissa nos seus braços, com os olhos ainda fixos nos dele, e o rosto frouxo e difícil de decifrar. A sua respiração era regular e profunda, como a de quem dorme. Ele murmurou o nome dela e disse-lhe de novo que a amava, e ela pestanejou, entreabriu os lábios, talvez em sinal de assentimento, ou até de reciprocidade. Com a mão livre, ele começou a tirar-lhe as calcinhas. Ela ficou tensa, mas não resistiu e ergueu, ou semiergueu, as nádegas da cama. De novo o som triste das molas do colchão ou da base da cama, como o balido de um cordeiro pascal. Mesmo com o braço livre esticado não era possível continuar a suportar-lhe a cabeça enquanto fazia passar as calcinhas pelos joelhos e à volta dos tornozelos. Ela ajudou-o flectindo as pernas. Um bom sinal. Ele não podia pensar noutra tentativa com o fecho do vestido, pelo que de momento o sutiã — de seda azul-pálida, tinha ele vislumbrado, debruado com uma renda fina — devia também ficar no sítio. Tanto pior para o amplexo imponderável de membros nus. Mas ela estava linda assim, deitada sobre o braço dele, com o vestido arregaçado, à volta das coxas, e com madeixas do cabelo despenteado espalhadas pela colcha. Uma rainha do sol. Beijaram-se de novo. Ele sentia náuseas provocadas pelo desejo e pela indecisão. Para se despir, teria de perturbar aquela disposição promissora dos seus corpos e arriscar-se-ia a quebrar o encanto. Uma ligeira modificação, uma combinação de factores ínfimos, pequenos zéfiros da dúvida, poderiam levá-la a mudar de opinião. Mas ele acreditava firmemente que, para fazer amor — sobretudo pela primeira vez — limitar-se a abrir a braguilha era pouco sensual e grosseiro. Além de indelicado.

Decorridos alguns minutos, deslizou para longe dela e despiu-se à pressa ao pé da janela, deixando uma zona preciosa à volta da cama livre de toda aquela banalidade. Pisou os calcanhares dos sapatos para os descalçar e desembaraçou-se das meias com pequenos puxões com os polegares. Apercebeu-se de que os olhos dela não estavam poisados nele, mas a olhar a direito, para o dossel bambo por cima da sua cabeça. Dentro de segundos estava nu, à excepção da camisa, da gravata e do relógio de pulso. De certo modo, a camisa, que em parte escondia, em parte realçava a sua erecção, como um monumento público coberto por um pano, respeitava delicadamente o código estabelecido pelo vestido dela. A gravata era nitidamente absurda e, quando voltou a ela, arrancou-a com uma só mão, ao mesmo tempo que desapertava o botão de cima com a outra. Foi um movimento arrogante e seguro e, por instantes, recuperou a ideia de si que em tempos tivera, de um sujeito rude, mas fundamentalmente decente e capaz, até que esta se desvaneceu. O fantasma de Harold Mather continuava a perturbá-lo.

 

Florence decidiu não se sentar, nem sequer mudar de posição; estava deitada de costas, a fitar o pano franzido, cor de biscoito, sustentado pelas colunas que pretendiam evocar, supunha ela, uma velha Inglaterra de castelos gélidos e de amor cortês. Concentrou-se na textura irregular do tecido, numa mancha verde do tamanho de uma moeda — como teria aparecido ali? — e num fio pendurado agitado pelo ar em movimento. Tentava não pensar no futuro imediato, nem no passado, e imaginava-se presa àquele momento, ao presente precioso, como um alpinista sem corda se agarra à superfície de um rochedo, encostando o rosto com força contra a rocha, sem ousar mover-se. O ar fresco percorria-lhe agradavelmente as pernas nuas. Ouvia as ondas distantes, os pios das gaivotas e o som de Edward a despir-se. De qualquer modo, ali estava o passado. Era o cheiro do mar que o evocava. Tinha doze anos, estava imóvel como agora, nua e a tiritar num beliche estreito com os lados de mogno polido. Tinha a mente vazia, sentia-se miserável. Depois de uma travessia de dois dias, encontravam-se mais uma vez na calma do porto de Cateret, ao sul de Cherbourg. Já tinha anoitecido havia algum tempo e o pai, a quem ela não via, movia-se de um lado para o outro no camarote a abarrotar e mal iluminado, a despir-se, tal como Edward fazia agora. Recordou o roçagar da roupa, o tinido de um cinto a desapertar-se, ou das chaves, ou dos trocos. Como sempre, fechou os olhos ao ouvir esse som, e manteve-os fechados. Recordou-se do odor adocicado de comida quase podre no ar viciado de um barco depois de uma viagem dura. Em geral, ela enjoava muitas vezes durante a travessia e de pouca utilidade era para o pai como marinheira, o que devia ter aumentado a sensação de vergonha que fazia a sua carne vulnerável encolher-se e o estômago apertar-se enquanto esperava.

Também não era possível evitar encarar o futuro imediato. A sua esperança era que, no que quer que estivesse para vir, ela recuperasse alguma versão daquela sensação agradável, que alastrava, que esta crescesse e a invadisse, tornando-se um anestésico para os seus temores e livrando-a do opróbrio. Isso parecia pouco provável. A verdadeira recordação da sensação, de estar dentro dela, de verdadeiramente saber como ela era, já havia diminuído, tornando-se um facto histórico ressequido. Acontecera uma vez, como a batalha de Hastings. Mesmo assim, era a sua única oportunidade, e por isso era preciosa, como um cristal antigo e delicado, que era fácil deixar cair, e mais uma boa razão para não se mover.

Sentiu a cama afundar-se e estremecer quando Edward subiu para ela, e o seu rosto, substituindo o dossel, lhe preencheu o campo de visão. Obsequiosa, ergueu a cabeça de modo a que ele pudesse inserir de novo o braço debaixo dela, como uma almofada. Ele puxou-a bem para junto de si, ao longo de todo o seu corpo. Ele podia ver a escuridão dentro das suas narinas, e um pêlo curvo e solitário na esquerda, de pé como um homem curvado diante de uma gruta, a tremer a cada expiração. Ela gostava das linhas bem definidas do recorte em forma de emblema do lábio superior dele. À direita do philtrum via-se uma mancha rosada, uma minúscula picadela de alfinete, os primórdios, ou os vestígios de uma borbulha. Sentiu a erecção dele contra a sua anca, dura como um pau de vassoura e a pulsar e, para sua surpresa não se importou muito. O que não queria, ou pelo menos ainda não queria, era vê-la.

Para selar aquela nova união, ele baixou a cabeça e beijaram-se, com a língua dele quase sem roçar a ponta da dela, o que, mais uma vez, a fez sentir-se grata. Conscientes do silêncio no bar do andar de baixo — nem rádio, nem conversas — murmuraram os seus «amo-te». Isso acalmava-a, estar a invocar, ainda que em voz baixa, a fórmula inextinguível que os ligava e que provava sem sombra de dúvida que os seus interesses eram idênticos. Ela perguntou-se se, porventura, poderia superar as suas dificuldades e ser suficientemente forte para pretender, de forma convincente, e em sucessivas ocasiões posteriores, eliminar as suas ansiedades através da pura e simples familiaridade, até conseguir honestamente encontrar e dar prazer. Ele nunca precisaria de saber, pelo menos até ela lho contar, acalentada pela sua nova confiança, como se de uma história divertida se tratasse — em tempos, quando ela era uma rapariga ignorante e infeliz devido aos seus medos patetas. Mesmo agora, não se importava que ele lhe tocasse nos seios, quando antes se teria retraído. Ainda lhe restava esperança, e essa ideia fê-la aproximar-se mais do peito dele. Edward tinha a camisa vestida, calculou ela, porque os contraceptivos estavam no bolso de cima, onde era fácil alcançá-los. A mão dele percorria o seu corpo a todo o comprimento e puxava a orla da saia para a cintura. Sempre fora reservado acerca das raparigas com que tinha feito amor, mas ela não duvidava da riqueza da sua experiência. Sentiu o ar estival entrar pela janela aberta a acariciar-lhe os pêlos púbicos descobertos. Já estava profundamente embrenhada num novo território, demasiado para poder voltar para trás.

Nunca ocorrera a Florence que os preliminares do amor teriam lugar num filme mudo, num silêncio tão atento e vigilante. Mas para além das palavras óbvias que repetiam sem cessar, que poderia ela dizer que não parecesse artificial e pateta? E, uma vez que ele estava em silêncio, ela pensou que devia ser essa a convenção. Teria preferido se eles murmurassem as tontices ternas que usavam quando passavam as tardes deitados no quarto do Norte de Oxford, completamente vestidos. Precisava de se sentir perto dele a fim de controlar o demónio do pânico que sabia estar pronto a dominá-la. Tinha de saber que ele estava com ela, ao seu lado, e que não ia utilizá-la, que era seu amigo, e que era terno e gentil. De outro modo tudo correria mal, de uma maneira muito solitária. Sentia-se dependente dele para conseguir essa segurança, para além do amor, e, finalmente, não pôde impedir-se de proferir a ordem tola:

— Diz-me qualquer coisa.

Um efeito imediato e positivo foi a mão dele parar de súbito, não longe do ponto onde se encontrava antes, centímetros abaixo do umbigo dela. Ele olhou-a surpreendido, com os lábios um pouco trémulos — nervos talvez, um sorriso nascente, ou um pensamento a evoluir para palavras.

Para seu alívio, ele pegou na deixa e, recorrendo a uma forma de estupidez familiar, disse:

— Tens um rosto encantador e uma natureza maravilhosa, ombros e tornozelos sedutores e uma clavícula, um putâmen e um vibrato que todos os homens devem adorar, mas toda tu me pertences e isso faz-me sentir muito contente e orgulhoso.

— Então muito bem, podes beijar o meu vibrato — retorquiu ela.

Ele pegou-lhe na mão esquerda, chupou as pontas dos dedos uma a uma e passou a língua nos calos do violino. Beijaram-se, e foi nesse momento de relativo optimismo que ela sentiu os braços dele tensos e, de súbito, com um movimento atlético hábil, Edward rolou para cima dela e, embora quase todo o seu peso estivesse apoiado nos cotovelos e nos antebraços, plantados de cada lado da cabeça de Florence, esta ficou presa e indefesa, e com um pouco de falta de ar sob o corpo dele. Ficou desapontada por ele não ter passado mais tempo a acariciar-lhe de novo a zona púbica, e sentiu-se mais uma vez percorrida por aquele frémito estranho. Mas a sua preocupação imediata — um melhoramento em relação à repulsa ou ao medo — era manter as aparências, não o decepcionar nem humilhar-se a si mesma, ou parecer uma fraca escolha entre todas as mulheres que ele tinha conhecido. Ia conseguir ultrapassar aquilo. Nunca o deixaria perceber a luta que travava e o que lhe custava aparentar calma. O seu único desejo era agradar-lhe e fazer daquela noite um êxito, sem mais nenhuma sensação que não fosse a consciência da ponta do pénis dele, estranhamente fria, a fazer força e a empurrar dentro e à volta da sua uretra. Pareceu-lhe que o seu pânico e repulsa se encontravam sob controlo, amava Edward, e todos os seus pensamentos estavam centrados em ajudá-lo a ter o que tão ardentemente desejava e em fazê-lo amá-la ainda mais por isso. Foi nesse espírito que deslizou a mão direita, introduzindo-a entre o baixo-ventre de ambos. Ele ergueu-se um pouco para lhe permitir fazê-lo. Florence sentiu-se contente consigo mesma por se recordar de que o manual vermelho advertia que era perfeitamente aceitável a noiva «guiar o homem para dentro de si».

Primeiro encontrou os testículos e agora, sem medo nenhum, arqueou os dedos suavemente à volta desse apêndice eriçado que vira em diferentes formas em bebés, cães e cavalos, mas nunca acreditara que pudesse encaixar-se confortavelmente em seres humanos adultos. Percorrendo a sua superfície inferior com os dedos chegou à base do pénis, que segurou com extremo cuidado, pois não fazia ideia até que ponto era sensível ou resistente. Passou-lhe os dedos a todo o comprimento, registando com interesse a sua textura sedosa, até mesmo à ponta, que acariciou ao de leve; e depois, pasmada com a sua própria ousadia, recuou um pouco, para segurar o pénis com firmeza, mais ou menos a meio, e puxou-o para baixo, num ligeiro ajustamento, até senti-lo tocar-lhe os lábios. Como poderia ter sabido que erro tremendo estava a cometer? Teria puxado a coisa errada? Teria agarrado com força de mais? Ele soltou um lamento, uma série complicada de sons angustiados, de vogais ascendentes, a espécie de som que ela ouvira uma vez num filme cómico, quando um empregado de mesa tentava abrir caminho, quase deixando cair uma pilha de pratos de sopa.

Horrorizada, tirou a mão, erguendo-se com uma expressão intrigada, ao mesmo tempo que, com as costas a arquearem-se em espasmos, ele se esvaziava sobre ela em esguichos, em quantidades vigorosas mas que iam diminuindo, enchendo-lhe o umbigo, cobrindo-lhe a barriga, as coxas e até uma parte do queixo e do joelho de um líquido tépido e viscoso. Era uma calamidade e ela percebeu imediatamente que era tudo por sua culpa, que ela era inábil, ignorante e estúpida. Não devia ter interferido, nunca devia ter acreditado no manual. Não lhe teria parecido mais terrível se tivesse sido a veia jugular dele a rebentar. Como era característico esse seu comportamento, a interferir em assuntos de tremenda complexidade; devia saber de sobra que a sua atitude nos ensaios do quarteto de cordas não tinha a menor relevância neste contexto.

E havia outro elemento, de certo modo muito pior e muito para além do seu controlo, que evocava recordações que há muito decidira não lhe pertencerem. Apenas um minuto atrás, sentira-se orgulhosa por dominar os seus sentimentos e por parecer calma. Mas agora era incapaz de reprimir a sua repugnância primitiva, o seu horror visceral por se sentir encharcada por um líquido viscoso proveniente de outro corpo. Em segundos, devido à brisa marítima, este tinha-se tornado gelado sobre a sua pele, embora, tal como ela sabia que iria acontecer, parecesse queimá-la. Nada na sua natureza poderia ter impedido o grito de repulsa instantâneo que soltou. Sentir aquilo correr-lhe na pele em riozinhos de líquido espesso, a sua consistência leitosa, que lhe era alheia, o seu odor profundo a goma, que arrastava consigo o fedor de um segredo vergonhoso encerrado numa prisão bafienta — não podia deixar de querer livrar-se disso. Enquanto Edward se encolhia diante dela, virou-se e pôs-se de joelhos, tirou uma almofada de baixo da colcha e enxugou-se freneticamente. Enquanto o fazia, já percebia como o seu comportamento era odioso e indelicado, como ele devia sentir-se ainda mais contristado ao vê-la tão desesperada por eliminar da sua pele essa parte de si próprio. E, na verdade, não era tarefa simples. Aquilo colava-se a ela enquanto esfregava e, em certas zonas, já começava a secar e a formar uma película estaladiça. Florence estava dividida em dois eus — o que, num movimento de desespero, atirou a almofada ao chão, e o outro que olhava para si mesma e se odiava pelo que fazia. Era insuportável tê-lo ali a observá-la, à mulher punitiva e histérica com que fizera a tolice de casar. Podia odiá-lo por aquilo que testemunhava e nunca haveria de esquecer. Tinha de se afastar dele.

Num delírio de cólera e de vergonha saltou da cama. E o seu outro eu, que observava, parecia dizer-lhe num tom calmo, embora não propriamente em palavras, Mas a loucura é precisamente isto. Não conseguia encará-lo. Era uma tortura permanecer no quarto com alguém que a conhecia sob aquele aspecto. Agarrou nos sapatos e, a correr, atravessou a sala de estar, passou pelos despojos da refeição, percorreu o corredor, desceu as escadas, atravessou a entrada principal, contornou o hotel e transpôs o relvado coberto de musgo. E nem sequer quando, por fim, chegou à praia, parou de correr.

 

No breve ano entre o seu primeiro encontro com Florence, em St. Giles, e o casamento na igreja de St. Mary, a menos de dois quilómetros de distância, era frequente Edward ficar a passar a noite na grande moradia vitoriana perto de Banbury Road. Violet Ponting atribuiu-lhe aquilo a que a família chamava o «quartinho», no último andar, castamente distante do de Florence, com vista para um jardim com cem metros de comprimento e rodeado por um muro e, mais além, para os terrenos de uma faculdade ou de um lar de idosos — ele nunca se deu ao trabalho de investigar. O «quartinho» era maior do que qualquer dos quartos de dormir da casinha rústica de Turville Heath e possivelmente maior do que a sua sala de estar. Uma parede estava coberta de prateleiras simples, pintadas de branco, com edições Loeb em latim e grego. Edward apreciava a associação com um saber tão austero, embora soubesse que não enganava ninguém ao deixar exemplares de Epicteto ou de Estrabão na mesa-de-cabeceira. Como todo o resto da casa, as paredes desse quarto estavam exoticamente pintadas de branco — não havia uma ponta de papel de parede na mansão dos Ponting, nem às riscas nem às flores — e o chão era nu, de tábuas não tratadas. Ele tinha o alto da casa para si, com uma vasta casa de banho num pequeno patamar, com janelas vitorianas de vitrais e ladrilhos de cortiça envernizados — outra novidade.

A sua cama era larga e invulgarmente dura. A um canto, sob a vertente do telhado, havia uma mesa de jogo, de madeira esfregada, com um candeeiro articulado, e uma cadeira de cozinha, pintada de azul. Não havia quadros, tapetes, ornamentos, nem revistas recortadas ou quaisquer outros vestígios de passatempos ou projectos. Pela primeira vez na vida, Edward fez um certo esforço para ser limpo e arrumado, pois nunca conhecera um quarto como aquele, em que fosse possível ter calma e pensamentos não interrompidos. Foi ali que, numa meia-noite brilhante de Novembro, ele escreveu uma carta formal a Violet e Geoffrey Ponting, a declarar a sua aspiração de casar com a filha e não tanto a pedir-lhes autorização quanto, cheio de confiança, a esperar que aprovassem a ideia.

Não estava enganado. Eles pareceram encantados, e celebraram o noivado com um almoço de família, um domingo, no hotel Randolph. Edward não conhecia suficientemente o mundo para ficar surpreendido por ser recebido de braços abertos em casa dos Ponting. Na sua condição de namorado e depois noivo de Florence, polidamente, aceitou como algo que lhe era devido o facto de, quando vinha à boleia ou apanhava o comboio de Henley para Oxford, ter sempre um quarto à disposição, haver sempre refeições durante as quais as suas opiniões sobre o governo e a situação mundial eram solicitadas, e poder utilizar a biblioteca e o jardim, com o seu terreno para croquet e o campo de badminton devidamente marcado. Sentia-se grato, mas absolutamente nada surpreendido, quando a sua roupa para lavar era junta à da família e uma pilha limpa e engomada aparecia em cima do cobertor aos pés da cama, por gentileza da empregada que ia lá todos os dias da semana.

Parecia-lhe correcto Geoffrey Ponting querer jogar ténis com ele nos courts de Summertown. Edward era um jogador medíocre — fazia um serviço decente, utilizando a sua altura e, ocasionalmente, rebatia o toque vigoroso da linha de base. Mas, junto da rede, era desajeitado e estúpido, e não podia confiar no seu backhand, preferindo enviar as bolas para a esquerda. O pai da namorada assustava-o um nadinha e preocupava-o que Geoffrey Ponting pudesse achá-lo um intruso, um impostor, um ladrão a tentar extorquir a virgindade da filha para a seguir desaparecer — uma parte do que era verdade. Quando iam de carro até aos courts Edward também se preocupava com o jogo — seria indelicado ganhar e seria uma completa perda de tempo para o seu anfitrião se Edward fosse incapaz de representar uma oposição decente. Não precisava de se preocupar com nenhuma das coisas. Ponting estava a outro nível e era um jogador de batidas rápidas e precisas e a correr e a saltar com um vigor surpreendente num jogador de cinquenta anos. No primeiro set fez seis-um, no segundo seis-zero e no terceiro seis-um, mas o que mais importava era a sua fúria sempre que Edward conseguia roubar-lhe um ponto. Enquanto regressava à sua posição, o jogador mais velho resmungava sermões de si para consigo que, tanto quanto Edward conseguia distinguir do sítio onde se encontrava, continham ameaças de violência contra si mesmo. Na realidade, de vez em quando Ponting batia com a raquete com força na nádega direita. Não queria apenas ganhar, nem ganhar com facilidade, mas precisava de obter até ao último ponto. Os dois games que perdeu no primeiro e terceiro sets e os raros erros injustificados que cometeu quase lhe provocaram um ataque de cólera — Oh, pelo amor de Deus, pá! Então?! Ao volante, no regresso a casa, ia tenso e Edward podia pelo menos sentir que os doze pontos que ganhara

em três sets eram uma espécie de vitória. Se tivesse ganho mesmo, talvez nunca mais tivesse autorização para ver Florence.

De uma forma geral, Geoffrey Ponting, com os seus modos nervosos e enérgicos, era afável para com Edward. Se este estava lá em casa quando ele chegava do trabalho, por volta das sete horas, preparava para ambos um gin tónico, com o gin e a água tónica — que tirava do armário das bebidas — em igual proporção, e muitos cubos de gelo. Para Edward, o gelo nas bebidas era uma novidade. Sentavam-se no jardim a falar de política — na maior parte dos casos, Edward ficava a ouvir as opiniões do futuro sogro sobre o declínio do comércio britânico, as controvérsias sobre representatividade nos sindicatos e o disparate de conceder a independência a várias colónias africanas. Mesmo quando Ponting estava sentado não se descontraía — mantinha-se em equilíbrio na ponta da cadeira, pronto a dar um salto, e sacudia o joelho para baixo e para cima enquanto falava, ou remexia os dedos dentro das sandálias ao compasso de um ritmo que tinha na cabeça. Era muito mais baixo do que Edward, mas de compleição vigorosa, com braços musculosos cobertos por pêlos loiros que gostava de exibir usando camisas de manga curta, mesmo para o trabalho. Também a sua calvície parecia mais uma afirmação de poder do que um efeito da idade — a pele bronzeada era lisa e bem esticada, fazendo lembrar uma vela enfunada sobre o grande crânio. O rosto também era grande, com lábios pequenos e carnudos, cuja posição de repouso era um trejeito de amuo resoluto, com um nariz de boneca e olhos bem afastados, o que, de certos ângulos, o fazia assemelhar-se a um feto gigantesco.

Florence nunca dava mostras de desejar reunir-se a eles nestas conversas no jardim, e talvez Ponting não a quisesse lá. Tanto quanto Edward sabia, era raro pai e filha falarem, excepto quando estavam na companhia de outras pessoas, e, quando o faziam, era sobre trivialidades. Mas parecia-lhe que estavam intensamente conscientes da presença mútua e tinha a impressão de que trocavam olhares de relance quando outras pessoas falavam como se partilhassem críticas secretas. Ponting estava sempre a pôr o braço à volta dos ombros de Ruth, mas nunca, diante de Edward, abraçava a filha mais velha. Apesar de tudo isso, enquanto conversavam, fazia muitas referências favoráveis a «Florence e tu» ou a «vocês, os jovens». Foi ele, e não Violet, a ficar entusiasmado com a notícia do noivado, a combinar o almoço no Randolph e a propor meia dúzia de brindes. Passou-lhe pela cabeça, meio a sério meio a brincar, que ele estava muito satisfeito por se desembaraçar da filha. Foi mais ou menos por essa altura que Florence sugeriu ao pai que Edward podia ser um trunfo para a firma.

Num domingo, Ponting levou-o no Humber até à sua fábrica, nos limites de Witney, onde instrumentos científicos cheios de transístores eram concebidos e montados. Ao passarem por entre as bancadas cobertas por um emaranhado de fios, através do cheiro familiar da solda derretida, não pareceu minimamente incomodado por Edward, certamente estupefacto com a ciência e a tecnologia, não conseguir pensar numa pergunta interessante para fazer. Este pareceu um pouco mais animado quando, numa sala dos fundos sem janela, travou conhecimento com o director de vendas, um homem calvo, de vinte e nove anos, que tinha uma licenciatura em História tirada em Durham e escrevera a sua tese sobre o monasticismo medieval no Nordeste de Inglaterra. Nessa noite, enquanto bebiam gin com água tónica, Ponting ofereceu a Edward um emprego a viajar para a firma, a angariar novos negócios. Ia precisar de fazer umas leituras sobre os produtos, um pouquinho sobre electrónica e ainda menos sobre legislação contratual. Edward, que ainda não tinha planos profissionais bem definidos e podia facilmente imaginar-se a escrever livros de história em comboios e em quartos de hotel entre as reuniões, aceitou, movido mais pela delicadeza do que por um interesse real.

Os diversos trabalhos domésticos que se propôs fazer ainda o ligaram mais intimamente aos Pontings. Nesse primeiro Verão de 1961 cortou muitas vezes a relva dos vários relvados — o jardineiro estava doente —, cortou três troncos para arrumar na casa da lenha, conduzia o segundo carro, um Austin 35, invariavelmente a abarrotar de tralha saída da garagem que não era utilizada e que Violet queria converter num prolongamento da biblioteca. Nesse mesmo carro — nunca lhe permitiram conduzir o Humber — ia levar Ruth, a irmã de Florence, a casa de amigos e de primos em Thame, Banbury e Stratford, e depois ia buscá-la. Fazia de motorista de Violet, e uma vez levou-a a um simpósio sobre Schopenhauer em Winchester; pelo caminho ela submeteu-o a um interrogatório sobre o seu interesse por seitas milenares. Que papel desempenhavam a fome e as mudanças sociais na angariação de adeptos? E estes movimentos, com o seu anti-semitismo e os ataques à Igreja e aos comerciantes, não podiam ser encarados como uma forma precoce de socialismo do tipo russo? E em seguida, também como que a querer provocá-lo, pôs a seguinte questão: a guerra nuclear não seria o equivalente moderno do Apocalipse do Livro da Revelação e nós não seríamos sempre levados pela história e pelas nossas naturezas dominadas pela culpa, a sonhar com o aniquilamento?

Ele respondeu com nervosismo, consciente de que o seu valor intelectual estava a ser posto à prova. Enquanto falava, percorria os subúrbios de Winchester. No limite do seu campo de visão, viu-a tirar da bolsa o pó compacto e empoar o rosto branco e chupado. Ficou fascinado pelos seus braços pálidos, finos como varas, e pelos cotovelos pontiagudos, e perguntou-se de novo como era possível ela ser mãe de Florence. Mas agora era obrigado a concentrar-se enquanto conduzia. Disse que estava convencido de que a diferença entre essa época e a actualidade era mais significativa do que a semelhança. Era a diferença entre, por um lado, uma fantasia sinistra e absurda, concebida por um misticismo pós Idade do Ferro, depois embelezada pelos seus crédulos equivalentes medievais e, por outro, o medo racional de uma ocorrência possível e aterradora que estava em nosso poder impedir.

Num tom de reprimenda brusca que pôs um ponto final definitivo na conversa, ela disse-lhe que ele não tinha entendido o que ela dissera. A questão não era se os membros das seitas medievais estavam enganados sobre o Livro da Revelação e o fim do mundo. Claro que estavam errados, mas acreditavam apaixonadamente que tinham razão e actuavam de acordo com as suas convicções. De igual modo, ele próprio acreditava sinceramente que as armas nucleares iriam destruir o mundo, e agia em conformidade. Pouca importância tinha estar enganado e a verdade ser que essas armas mantinham o mundo a salvo da guerra. Afinal era esse o objectivo da dissuasão. Claro que, como historiador, tinha aprendido que, ao longo dos séculos, as ilusões de massas tinham temas comuns. Quando Edward percebeu que ela estava a comparar o seu apoio à CND com a filiação numa seita milenar, retraiu-se delicadamente e percorreram os últimos quilómetros em silêncio. Noutra ocasião foi levar e buscar Violet a Cheltenham, onde ela deu uma conferência às alunas do sexto ano do Ladies College a favor de uma educação oxfordiana.

A sua própria educação ia prosseguindo a passo lento. Durante esse Verão, comeu pela primeira vez uma salada temperada com azeite e limão e, ao pequeno-almoço, iogurte — uma substância tentadora que só conhecia de um romance de James Bond. Os cozinhados feitos à pressão pelo pai e o regime de empadas com batatas fritas dos seus tempos de estudante não o podiam ter preparado para os estranhos vegetais, as beringelas, os pimentos verdes e vermelhos, as curgetes e as ervilhas novas, que lhe punham à frente. Ficou surpreendido, até mesmo um pouco irritado, quando Violet, na primeira vez que os visitou, serviu como primeiro prato uma taça de ervilhas mal cozidas. Teve de ultrapassar a repugnância, não tanto relativamente ao gosto quanto à reputação do alho. Ruth riu sem parar durante minutos, até ter de sair da sala, quando ele chamou baguette a um croissant. Antes disso, já tinha impressionado os Pontings ao afirmar nunca ter estado no estrangeiro, à excepção da Escócia, a fim de subir aos três Munroes da península de Knoydart. Confrontou-se, pela primeira vez na vida, com muesli, azeitonas, pimenta preta acabada de moer, pão sem manteiga, anchovas, borrego mal passado, queijo sem ser cheddar, ratatouille, salpicão, bouillabaisse, refeições inteiras sem batatas e, o mais intrigante de tudo, taramata salata, uma pasta cor-de-rosa a saber a peixe. Muitos destes alimentos tinham apenas um sabor levemente repelente e, de alguma maneira indefinível, eram semelhantes uns aos outros, mas ele estava decidido a não parecer simplório. Às vezes, se comia depressa de mais, quase ficava com vómitos.

A algumas dessas novidades aderiu imediatamente: café recém-moído e filtrado, sumo de laranja ao pequeno-almoço, confit de pato, figos frescos. Não estava em posição de saber como a situação dos Pontings era invulgar, uma chefe de departamento casada com um empresário de sucesso, e Violet, em tempos amiga de Elizabeth David5, a dirigir uma casa na vanguarda da revolução culinária, enquanto ensinava aos alunos as mónadas e o imperativo categórico. Edward absorvia estas circunstâncias domésticas sem reconhecer a sua opulência exótica. Partia do princípio que era assim que viviam os professores universitários de Oxford, e não se deixaria apanhar a mostrar-se impressionado.

 

<INR>5 Famosa escritora culinária de meados do século XX. (N.da T.) <FNR>

 

Na realidade, estava deslumbrado, vivia num sonho. Durante esse Verão quente, o desejo que sentia por Florence era inseparável do enquadramento — as enormes salas brancas com os soalhos de madeira sem um grão de poeira, aquecidas pela luz do sol, o ar fresco e verde do jardim luxuriante respirado pela casa através das janelas abertas, as flores perfumadas da zona norte de Oxford, os livros frescos, encadernados, empilhados em mesas na biblioteca — a nova Iris Murdoch (que era amiga de Violet), o novo Nabokov, o novo Angus Wilson — e o seu primeiro confronto com uma aparelhagem estereofónica. Uma manhã, Florence mostrou-lhe as válvulas cor de laranja, reluzentes e à mostra, de um amplificador que saía de uma elegante caixa cinzenta, e os altifalantes que lhe chegavam à cintura, e pôs, para ele ouvir, a Sinfonia Haffner de Mozart, a uma altura de som implacável. O intervalo de oitava na abertura conquistou Edward devido à sua arrojada limpidez — uma orquestra inteira de súbito disposta à sua frente — e ele ergueu o punho e gritou que a amava, sem se importar que o ouvissem para lá da sala. Era a primeira vez que o dizia, a ela ou a quem quer que fosse. Forence devolveu-lhe as mesmas palavras, em silêncio, apenas movendo os lábios, e riu maravilhada por ele finalmente ter ficado emocionado com uma peça de música clássica. Edward atravessou a sala e tentou dançar com ela, mas a música tornou-se galopante e agitada e detiveram-se bruscamente, deixando-se envolver por ela enquanto se abraçavam.

Como podia pretender, para consigo mesmo, que na sua estreita existência aquelas não eram experiências extraordinárias? Conseguia não pensar no assunto. Por temperamento, não era introspectivo e, andar pela casa dela com uma erecção constante, ou pelo menos assim parecia, de algum modo embotava-lhe ou restringia-lhe os pensamentos. Segundo as regras tácitas da casa, tinha autorização de ficar na cama durante o dia enquanto ela praticava violino, desde que a porta do quarto se mantivesse aberta. Partiam do princípio de que estava a ler, mas tudo o que ele conseguia fazer era observá-la e adorar os seus braços nus, a fita que ela usava no cabelo, as suas costas direitas, a doce inclinação do queixo com o instrumento entalado debaixo dele, a curva dos seios recortada contra a janela, a maneira como a fímbria da saia de algodão oscilava e batia contra as barrigas das pernas bronzeadas com os movimentos que ela fazia com o arco e os pequenos músculos dessas mesmas barrigas das pernas a contraírem-se quando ela deslocava e oscilava o corpo. De quando em quando, ela suspirava devido a qualquer imperfeição imaginária de timbre ou fraseado e repetia a passagem vezes sem conta. Outro indicador do seu estado de espírito era a maneira de virar as páginas na estante, mudando de uma peça para outra com um movimento brusco e repentino do pulso ou, outras vezes, com todo o vagar, finalmente contente consigo mesma, ou antecipando novos prazeres. Ele ficava tocado, quase impressionado pela maneira como ela parecia esquecida da sua presença — Florence tinha o dom da concentração total, enquanto ele era capaz de passar o dia inteiro num crepúsculo de tédio e excitação. Uma hora podia decorrer antes de ela parecer recordar-se da sua presença e, embora se voltasse e sorrisse, nunca ia ter com ele à cama — uma feroz ambição profissional ou outro protocolo familiar mantinham-na junto da estante de música.

Davam passeios por Port Meadow, subiam ao longo do Tamisa até The Perch ou The Trout onde bebiam uma caneca de cerveja. Quando não estavam a falar dos seus sentimentos — Edward começava a ficar saturado dessas conversas — falavam das suas ambições. Ele alargava-se sobre a série de histórias de figuras semiesquecidas que, durante um breve período de tempo, se mantiveram ao lado de grandes homens, ou tiveram os seus breves momentos de glória. Descreveu-lhe a viagem para norte de Sir Robert Carew, a uma velocidade vertiginosa, a sua chegada à corte do rei Jaime com o rosto ensanguentado em virtude de uma queda do cavalo, e como todo esse esforço se revelara vão. Depois da sua conversa com Violet, Edward decidira acrescentar um dos cultistas medievais de Norman Cohn, um Messias flagelante dos anos 60 do século XIV, cuja chegada era anunciada, ou pelo menos ele e os seus seguidores assim proclamavam, nas profecias de Isaías. Cristo não passava de seu precursor, pois ele era o Imperador dos últimos Dias, além de ser também o próprio Deus. Os seus discípulos, praticantes da autoflagelação, obedeciam-lhe cegamente e dirigiam-lhe as suas preces. O seu nome era Konrad Schmid e, provavelmente, foi queimado na fogueira pela Inquisição em 1368, após o que toda a enorme multidão dos seus adeptos pura e simplesmente dissolveu-se. Segundo Edward previa, cada história não teria mais de duzentas páginas e seria publicada, com ilustrações, pela Penguin Books, e talvez quando a série estivesse terminada pudesse ser posta à venda dentro de uma caixa especial.

Como é natural, Florence falava dos seus planos para o Ennismore Quartet. Na semana anterior tinham ido à velha faculdade que ela frequentara e tinham tocado os Quartetos Razumovsky de Beethoven para o professor dela ouvir e este ficara manifestamente entusiasmado. Disse-lhes sem peias que eles tinham um futuro à sua frente e que deviam, a todo o custo, manter-se juntos e trabalharem o mais que pudessem. Aconselhou-os ainda a restringirem o repertório, concentrando-se em Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, e a deixarem para mais tarde Schumann, Brahms e todos os compositores do século XX. Florence disse a Edward que não desejava outra vida e que não suportaria perder os anos num lugar ao fundo de qualquer orquestra, partindo do princípio que conseguia arranjar um lugar. Com o Quarteto, o trabalho era tão intenso, as exigências de concentração tão elevadas quando cada intérprete era como um solista, a música era tão bela e tão rica que, cada vez que interpretavam uma peça, encontravam qualquer coisa nova.

Ela disse tudo isto, ciente de que a música clássica nada significava para ele. Preferia ouvir como música de fundo e com o volume baixo aquele fluxo de miados, arranhadelas e apitos indiferenciados, em geral com a intenção de exprimir gravidade, maturidade e respeito pelo passado, e totalmente desprovidos de interesse ou de sedução. Mas Florence estava convencida de que o grito de triunfo que ele soltara na abertura da Sinfonia Haffner era um início e, por isso, convidou-o a acompanhá-la a Londres para assistir a um ensaio. Ele aceitou com prontidão — claro que queria vê-la trabalhar, mas, mais importante do que isso, tinha curiosidade de descobrir se Charles, o violoncelista, que ela tantas vezes referira, era de algum modo um rival. Se assim fosse, Edward achava que precisava de afirmar a sua presença.

Devido a um abrandamento na venda de bilhetes durante o Verão, a sala dos concertos de piano contígua ao Wigmore Hall permitia que o quarteto tivesse uma sala de ensaios por uma quantia simbólica. Florence e Edward chegaram muito antes dos outros, de modo que puderam da uma volta pelo Hall. A sala verde, o minúsculo vestiário e até o auditório e a cúpula não justificavam a reverência dela pelo local. Florence tinha tanto orgulho do Wigmore Hall que era como se tivesse sido ela mesma a concebê-lo. Conduziu-o até ao palco e pediu-lhe para imaginar a emoção e o terror de o pisar para actuar perante um público esclarecido. Ele não conseguiu, embora não o confessasse. Florence disse-lhe que um dia isso aconteceria, já decidira que o Ennismore Quartet tocaria ali, magnificamente, e seria um êxito. Ele amou-a pela solenidade da sua promessa. Beijou-a e, em seguida, saltou para a plateia e ficou na terceira fila, mesmo ao meio, e prometeu que, o que quer que acontecesse, nesse dia ele estaria ali, naquele mesmo lugar, o 9C, e seria ele a comandar os aplausos e os bravo no final.

Quando o ensaio começou, Edward sentou-se em silêncio a um canto da sala vazia, num estado de felicidade profunda. Começava a descobrir que estar apaixonado não era um estado constante, mas uma questão de novos ímpetos ou vagas, e que era isso que estava agora a sentir. O violoncelista, manifestamente desconcertado pelo novo amigo de Florence, era um sujeito gorducho com uma pele péssima e que gaguejava, e Edward chegou ao ponto de sentir pena dele e, movido por um sentimento de generosidade, perdoar a sua fixação a Florence, de quem ele era escravo e não conseguia despegar os olhos. Ela estava num estado de transe e exultação ao instalar-se para trabalhar com os amigos. Pôs a fita no cabelo e Edward, enquanto esperava que a sessão começasse, caiu num devaneio, não só de sexo com Florence, mas de casamento e da família e da filha que iriam ter. Sem dúvida que pôr tais hipóteses era um sinal de maturidade. Talvez fosse apenas uma variação respeitável de um velho sonho de ser amado por mais de uma rapariga. Ela teria a beleza e o ar grave da mãe, umas costas direitas encantadoras e de certeza que tocaria um instrumento — provavelmente violino, embora ele não excluísse por completo a guitarra eléctrica.

Nessa tarde, Sonia, a jovem que tocava viola e que tinha morado no corredor de Florence, chegou para trabalhar no Quinteto de Mozart. Por fim, ficaram prontos para começar. Houve um brevíssimo silêncio tenso, que podia ter sido o próprio Mozart a incluir na partitura. Mal começaram a tocar, Edward ficou surpreendido pela intensidade do volume, vigor do som e interligação aveludada dos instrumentos e, durante minutos, a música agradou-lhe — até que perdeu o fio à meada e o formalismo, a agitação e a monotonia de tudo aquilo começaram a provocar-lhe um enfado que lhe era familiar. Depois Florence fez sinal para pararem e, calmamente, deu indicações, a que se seguiu um debate geral, após o que recomeçaram. Isto aconteceu diversas vezes, e as repetições começaram a permitir a Edward discernir uma doce melodia, várias interligações entre os intérpretes e intrépidos mergulhos e saltos a que iria estar atento na vez seguinte. Mais tarde, no comboio para casa, pôde dizer-lhe com total honestidade que a música o emocionara e até trauteou passagens para ela ouvir. Florence ficou de tal modo tocada que fez mais uma promessa — de novo, aquela solenidade e entusiasmo que pareciam fazer duplicar o tamanho dos seus olhos. Quando chegasse o grande dia em que o Ennismore Quartet fizesse a sua estreia no Wigmore Hall, tocariam o Quinteto, e seria especialmente para ele.

Como recompensa, ele levou de sua casa para Oxford uma colecção de discos que queria que ela aprendesse a apreciar. Florence sentou-se imóvel e escutou Chuck Berry pacientemente, com os olhos fechados e demasiada concentração. Ele pensou que «Roll over Beethoven» lhe poderia desagradar, mas ela achou-o hilariante. Ele fê-la ouvir interpretações «desajeitadas mas respeitáveis» das canções do Chuck Berry pelos Beatles e pelos Rolling Stones. Ela tentou encontrar quaisquer palavras de apreço para dizer acerca de cada uma delas, mas usava termos como «saltitante», «alegre» ou «sincero», e ele percebeu que ela estava apenas a ser gentil. Quando sugeriu que ela, no fundo, não «apanhava» o rock and roll, não havendo razão para continuar a tentar, Florence admitiu que o que não suportava era a bateria. Quando as melodias eram tão elementares, a maioria em simples compasso quaternário, porquê aquele troar, martelar e retumbar incessante para manter o ritmo? Que sentido fazia, quando já havia uma guitarra e muitas vezes um piano a marcar o ritmo? Se os músicos precisavam de ouvir as batidas, porque não arranjavam um metrónomo? E se o Ennismore Quartet arranjasse um baterista? Ele beijou-a e disse-lhe que em toda a civilização ocidental não havia pessoa mais convencional do que ela.

— Mas tu amas-me — disse ela.

— É por isso que te amo.

No princípio de Agosto, quando um vizinho de Turville Heath adoeceu propuseram a Edward o seu trabalho a meio-tempo, numa base temporária, a ocupar-se dos terrenos de um clube de cricket de Turville. Tinha de cumprir doze horas por semana e podia fazê-las quando quisesse. Ele gostava de sair de casa de manhã cedo, antes de o pai acordar, e de percorrer com todo o vagar a avenida de tílias, por entre o canto das aves, até ao campo de cricket, como se fosse dono de tudo aquilo. Durante a primeira semana preparou o terreno para o derby local, o grande jogo contra Stonor. Cortou a relva, passou o rolo e ajudou um carpinteiro que veio de Hambledon a construir e pintar um novo sightscreen. Sempre que não estava a trabalhar ou que não precisavam dele em casa ia direito a Oxford, não só porque ansiava ver Florence, mas também porque queria adiar a visita que ela teria de fazer à sua família. Não sabia o que Florence e a mãe dele iriam pensar uma da outra, e como iria Florence reagir à sujidade e desarrumação da casa. Pensava que precisava de tempo para as preparar a ambas, mas isso acabou por não ser necessário; ao atravessar o terreno de cricket no início de uma tarde quente de sexta-feira, deu com Florence à sua espera à sombra do pavilhão. Ela estava a par do seu horário e tinha apanhado um comboio de manhã cedo e continuado a pé desde Henley, em direcção ao vale de Stonor, com um mapa à escala de uma polegada por milha na mão e umas laranjas num saco de lona. Durante meia hora tinha estado a vê-lo marcar a delimitação do extremo do terreno. A amá-lo à distância, disse-lhe quando se beijaram.

Aquele foi um desses momentos subtis do início do seu amor, quando seguiam devagar, de braço dado, ao longo da avenida esplendorosa, a caminharem pelo centro da via a fim de afirmarem que eram senhores dela. Agora que isso era inevitável, a perspectiva do confronto de Florence com a mãe na casinha rústica já não parecia importante. As sombras que as tílias lançavam eram tão profundas que, sob a luz intensa, pareciam de um negro azulado e o calor estava denso de erva fresca e flores selvagens. Ele exibiu o seu conhecimento dos nomes campestres e, por sorte, até encontrou à beira da estrada um maciço de gencianas, das quais colheram apenas uma. Viram uma citrinela, um cardeal-verde e depois um falcão-pardal passou por eles como um relâmpago, descrevendo uma curva quase rente a um espinheiro. Ela nem sequer sabia o nome de aves comuns como aquelas, mas disse que estava decidida a aprender. Sentia-se exultante pela beleza do passeio e pelo itinerário inteligente que havia escolhido, deixando o vale de Stonor para seguirem ao longo do caminho estreito da quinta até ao Bix Bottom solitário, para além da igreja de St. James, arruinada e coberta de hera, subindo as vertentes arborizadas até ao prado comunitário de Maidensgrove, onde ela descobriu uma enorme extensão de flores silvestres; em seguida, atravessaram os bosques de faias até Pishill Bank, onde uma pequena igreja de tijolo e sílex, com um adro, estava empoleirada na encosta do monte. Enquanto ela ia descrevendo cada lugar que ele tão bem conhecia, Edward imaginava-a ali, sozinha, a caminhar ao seu encontro durante horas, parando apenas para olhar o mapa de cenho franzido. Tudo aquilo por ele. Que dádiva! Nunca a vira tão feliz, nem tão bonita. Tinha o cabelo preso, atado com um pedacinho de veludo preto, jeans e ténis pretos e uma camisa branca com uma flor de dente-de-leão, atrevida, enfiada na botoeira. Enquanto se dirigiam para casa ela não parava de puxar o braço dele, manchado de erva, para lhe dar mais um beijo, embora ligeiríssimo, e por uma vez ele aceitou de bom grado, ou pelo menos calmamente, que não fossem mais longe. Depois de ela ter descascado a laranja que restava para partilharem pelo caminho, deu-lhe a mão, que estava pegajosa. Sentiam uma emoção inocente causada pela surpresa inteligente que ela havia preparado, as suas vidas pareciam-lhes divertidas e livres e o fim-de-semana inteiro estendia-se à sua frente.

 

A recordação desse passeio desde o terreno de cricket até à casa de Edward espicaçava-o agora, um ano mais tarde, na sua noite de núpcias, ao levantar-se da cama na semiobscuridade. Estava a sentir a acção de emoções contraditórias, e precisava de se agarrar ao que em si havia de melhor, os seus pensamentos mais meigos acerca dela, pois de outro modo parecia-lhe que iria sucumbir, ou simplesmente ceder. Sentia um peso líquido nas pernas quando atravessou o quarto para recuperar as cuecas caídas no chão. Vestiu-as, pegou nas calças e ficou um bocado com elas penduradas da mão a olhar pela janela, a ver as árvores encolhidas pelo vento, agora escuras e reduzidas a uma mancha contínua de um verde acinzentado. Lá no alto havia uma meia-lua fumarenta, praticamente sem brilho. O som das vagas a desfazerem-se na praia a intervalos regulares interferia com os seus pensamentos, como um botão de súbito comutado, e enchia-o de fadiga; as leis e processos incessantes do mundo físico, da lua e das marés, que em geral pouco interesse lhe despertavam, não eram minimamente alterados pela sua situação. Este facto mais que óbvio era duríssimo. Como podia conviver com eles, sozinho e sem ter quem o apoiasse? E como podia descer e enfrentar Florence na praia, onde suspeitava que ela devia estar? Sentiu as calças pesadas e ridículas na mão, esses tubos de tecido paralelos, unidos numa extremidade, uma moda arbitrária de séculos recentes. Parecia-lhe que vesti-las iria devolvê-lo ao mundo social, às suas obrigações e à verdadeira dimensão da sua vergonha. Uma vez vestido, teria de ir procurá-la. E por isso demorava-se.

Como muitas recordações nítidas, a sua evocação do passeio até Turville Heath com Florence criou uma penumbra de esquecimento à sua volta. Provavelmente tinham chegado a casa e encontrado a mãe dele sozinha — o pai e as irmãs ainda deviam estar na escola. Em geral Marjorie Mayhew ficava muito agitada perante uma cara desconhecia, mas Edward não reteve nenhuma reminiscência da sua atitude quando lhe apresentou Forence nem de como esta reagiu às divisões atravacandas e esquálidas, ao fedor dos canos da cozinha, que se agravava sempre no Verão. Só tinha retalhos de recordações dessa tarde, certas imagens, como velhos postais. Uma delas era através da janela da sala, manchada, com grades de madeira, para o fundo do jardim, onde Florence e a mãe estavam sentadas no banco, cada uma delas com uma tesoura e exemplares da Life, a tagarelarem enquanto recortavam páginas. Quando chegaram da escola, as irmãs deviam ter levado Florence a ver um burro recém-nascido, pois outra imagem mostrava as três a percorrerem o prado, de braço dado. Numa terceira, Florence atravessava o relvado, com uma bandeja com o chá para o pai dele. Oh, sim, ele não devia duvidar, ela era uma excelente pessoa, a melhor do mundo, e naquele Verão todos os Mayhews se apaixonaram por ela. As irmãs iam com ele para Oxford e passavam o dia no rio com Florence e a irmã desta. Marjorie estava sempre a perguntar por ela, embora nunca se recordasse do seu nome, e Lionel Mayhew, terra-a-terra como era, aconselhava o filho a casar com «essa rapariga» antes que ela desaparecesse.

Evocou essas recordações do ano anterior, o passeio sob as tílias, o Verão de Oxford, não movido por um desejo sentimental de agravar a tristeza ou de se comprazer nela, mas a fim de a dissipar, de se sentir apaixonado e de suster o avanço de um elemento que inicialmente não se preocupou em admitir, o princípio de um obscurecimento do humor, conjecturas mais sombrias, um ligeiro traço de veneno que mesmo agora invadia todo o seu ser. A cólera. O demónio que conseguira controlar anteriormente, quando pensava que a sua paciência estava prestes a abrir brechas. Como era tentador ceder-lhe, agora que estava sozinho e podia deixá-la arder. Depois de uma tal humilhação, o seu respeito por si mesmo exigia que o fizesse. E que mal havia num mero pensamento? Era preferível acabar com ele agora, enquanto ali estava, meio nu entre os destroços da sua noite de núpcias. A sua capitulação foi auxiliada pela lucidez que acompanha uma súbita ausência de ambição. Com os pensamentos já não amolecidos ou turvados por essa ânsia, foi capaz de registar um insulto com uma objectividade forense. E que insulto fora esse, que desprezo ela manifestara por ele com o seu grito de repulsa e a trapalhada com a almofada, que torção do bisturi, fugir do quarto sem uma palavra, deixando-o com o estigma abjecto da vergonha e todo o peso do fracasso. Ela fizera o que pudera para agravar a situação e para a tornar irrecuperável. Aos seus olhos, ele era desprezível, queria castigá-lo, deixá-lo sozinho a contemplar a sua incapacidade sem nenhum pensamento para o papel que ela desempenhara. Sem dúvida que fora o movimento da sua mão, os seus dedos, a excitá-lo — ao evocar aquele contacto, aquela doce sensação, uma nova e intensa excitação começou a distraí-lo, arrancando-o àqueles pensamentos que o empederniam e tentando começar a perdoá-la. Mas resistiu. Encontrara o seu mote e insistiu nele. Sentiu que havia um assunto de maior peso mesmo à sua frente, e ali estava ele, finalmente possuía-o, irrompia dentro dele, como se fosse um mineiro a escavar as paredes de um túnel mais largo, uma sinistra via suficientemente ampla para a fúria que se ia acumulando.

Isso metia-se pelos olhos dentro e ele fora um idiota por não o ter visto. Durante um ano inteiro tinha sofrido num tormento passivo, a desejá-la até sentir dor e também a querer pequenas coisas, coisas inocentes e patéticas como um beijo a sério, que ela lhe tocasse e que o deixasse tocar-lhe. A promessa de casamento era o seu único alívio. E depois que prazeres ela negara a ambos. Mesmo que não pudessem fazer amor antes de casarem, não havia necessidade de tanta complicação, de tamanho suplício de contenção. Ele havia sido paciente, resignado — um pateta delicado. Outros homens teriam exigido mais, ou ter-se-iam ido embora. E recusava terminantemente arcar com as culpas por, ao fim de um ano de esforço para se conter, não ter sido capaz de se controlar e ter falhado no momento crucial. Rejeitava aquela humilhação, não a reconhecia. Era escandaloso da parte dela gritar de desapontamento, fugir do quarto, quando fora ela a culpada. Devia aceitar o facto de não gostar de beijar e de tocar, de não gostar que os seus corpos se encontrassem próximos, de não sentir interesse por ele. Era destituída de sensualidade, completamente desprovida de desejo. Nunca podia sentir o que ele sentia. Edward deu os passos seguintes com uma facilidade fatal: ela sabia tudo isto — como podia não saber? — e tinha-o enganado. Queria um marido em nome da respeitabilidade, para agradar aos pais ou por ser o que toda a gente fazia. Ou então pensava que aquilo era um jogo maravilhoso. Não o amava, não era capaz de amar como os homens e as mulheres amavam, estava ciente disso e não lho dissera. Desonesta até mais não. Era isso que ela era.

Não é fácil uma pessoa descalça e de cuecas tentar procurar verdades tão duras. Enfiou as calças, apanhou as peúgas e os sapatos e voltou a reflectir em tudo aquilo, alisando as partes ásperas e as transições difíceis, as pontes que se erguiam das suas próprias incertezas, aperfeiçoando assim a sua causa e, enquanto o fazia, sentiu a ira avolumar-se de novo. Estava a aproximar-se de um ponto culminante, e não faria sentido continuar sem falar. Tudo estava prestes a ficar esclarecido. Ela precisava de saber o que ele pensava e sentia, ele precisava de lho dizer e de lho mostrar. Com um movimento brusco, tirou o casaco de cima de uma cadeira e saiu à pressa do quarto.

 

Ela viu-o aproximar-se ao longo da praia, a princípio apenas uma pequena mancha anilada recortada contra o burgau que escurecia, por vezes aparentando estar imóvel a tremeluzir e com os contornos a dissolver-se, outras de súbito mais perto, como que movido à semelhança de uma peça de xadrez uns quantos quadrados na sua direcção. A última claridade do dia estendia-se pela praia e atrás de Florence, para leste, havia pontos de luz em Portland e as nuvens reflectiam a ténue cintilação amarelada dos candeeiros de iluminação pública de vilas distantes. Ela observou-o, desejosa de que avançasse mais devagar, pois sentia-se culpada pelo receio que tinha dele e desesperada por ter mais tempo para si. Fosse qual fosse a conversa que estavam prestes a ter, temia-a. Em sua opinião, não havia palavras para referir o que se tinha passado nem existia uma linguagem partilhada na qual dois adultos em seu perfeito juízo pudessem descrever acontecimentos desses um ao outro. E discutir acerca disso ainda estava mais para além do alcance da imaginação. Não podia haver discussão. Ela não queria pensar no assunto e tinha esperança de que ele sentisse o mesmo. Mas de que poderiam falar a não ser daquilo? Por que outro motivo estavam ali? O assunto encontrava-se entre eles, tão sólido como um acidente geográfico, uma montanha, um promontório. Inominável, inevitável. E ela sentia-se envergonhada. As ondas de choque do seu próprio comportamento vibravam através dela e pareciam mesmo ressoar-lhe nos ouvidos. Era por isso que tinha corrido até tão longe na praia, através dos seixos pesados, com os seus sapatos elegantes, para fugir do quarto e de tudo o que ali havia acontecido, e para escapar de si mesma. Tinha-se portado abominavelmente. Abominavelmente. Deixou a palavra desajeitada, cortês, repetir-se várias vezes nos seus pensamentos. Acabava por ser um termo indulgente — ela jogava ténis abominavelmente, a irmã tocava piano abominavelmente, — e Florence sabia que dissimulava mais do que descrevia o seu comportamento.

Ao mesmo tempo, dava-se conta da humilhação dele — quando se ergueu por cima dela, aquela expressão crispada, perplexa, o estremecimento reptiliano ao longo da sua coluna vertebral. Mas ela estava a tentar não pensar nisso. Atrever-se-ia a admitir que sentia um certo alívio por haver qualquer coisa errada com ambos, e não apenas com ela? Como seria terrível, embora também reconfortante, se ele sofresse de qualquer doença congénita, uma maldição de família, o tipo de enfermidade ao qual só a vergonha e o silêncio estão associados, como acontecia com a enurese, ou com o cancro, uma palavra que, por superstição, nunca proferia em voz alta, com receio que lhe infectasse a boca — uma patetice, claro, que nunca confessaria. Nesse caso poderiam sentir pena um do outro e os seus padecimentos distintos ligá-los-iam no amor. E sentia mesmo pena dele, mas também se sentia um pouco ludibriada. Se ele sofria de algo de invulgar, porque não lhe tinha dito, como uma confidência? Mas compreendia perfeitamente por que motivo Edward não podia fazê-lo. Também ela se calara. Como poderia ele ter começado a trazer à baila o assunto da sua deficiência particular, quais teriam sido as suas palavras iniciais? Estas não existiam. Essa linguagem ainda tinha de ser inventada.

Mesmo enquanto se entregava a estes pensamentos elaborados, sabia muito bem que não havia nada de errado com ele. Absolutamente nada. Era ela, apenas ela. Tinha as costas encostadas a uma grande árvore caída, provavelmente lançada para a praia por uma tempestade, com a casca arrancada pela força das vagas e a madeira lisa e endurecida pela água salgada. Estava confortavelmente apoiada na bifurcação de um ramo, a sentir no fundo das costas, através do vasto perímetro do tronco, o calor residual do dia. Era assim que um bebé devia estar, aninhado em segurança na curva do braço da mãe, embora Florence não acreditasse ter estado alguma vez aninhada contra Violet, cujos braços eram finos e tensos de tanto escrever e pensar. Quando ela tinha cinco anos, havia uma tal Ama Norland, muito rechonchuda e maternal, com uma voz escocesa musical e nós dos dedos vermelhos e em carne viva, mas fora-se embora após qualquer adversidade inominável.

Florence continuou a ver Edward avançar ao longo da praia, certa de que ele ainda não a avistava. Podia descer a ravina inclinada e voltar para trás ao longo da margem de The Fleet, mas, embora sentisse receio dele, fugir parecia-lhe demasiado cruel. Por breves instantes, divisou o contorno dos seus ombros recortados contra uma faixa de água prateada, uma corrente em forma de pluma que se estendia para o largo por trás dele. Agora já ouvia o som das suas passadas nos seixos, o que significava que ele ouviria as dela. Devia ter tomado aquela direcção por ser o que haviam decidido, o seu plano para depois do jantar, um passeio pela famosa faixa de areia coberta de seixos, com uma garrafa de vinho. Iam apanhar pedras para ver se era verdade que as tempestades punham ordem na praia.

Agora, a recordação daquele prazer perdido não a entristecia particularmente pois era imediatamente deslocada por uma ideia, por um pensamento interrompido que tivera mais cedo nesse mesmo dia. Amarem, e darem liberdade um ao outro. Era um argumento que podia invocar, uma proposta ousada, pensou ela, mas a outra pessoa qualquer, a Edward, podia parecer ridícula e idiota, talvez até insultuosa. Ela nunca era capaz de abarcar toda a extensão da sua ignorância, pois em certos assuntos julgava-se bastante sensata. Precisava de mais tempo. Mas ele estaria junto dela dentro de segundos e a terrível conversa teria de começar. Outra das suas falhas consistia em não fazer ideia da atitude que deveria tomar com ele, nada sentir para além do receio do que ele pudesse dizer e do que ela deveria responder-lhe. Não sabia se deveria pedir-lhe perdão, ou ficar à espera de uma desculpa. Não estava apaixonada, nem deixava de estar — não sentia nada. Só queria estar ali sozinha no lusco-fusco, contra aquela árvore gigantesca.

Ele parecia ter um embrulho na mão. Parou a uns bons metros de distância e, aos olhos dela, isso pareceu hostil, despertando, por sua vez, uma sensação de antagonismo. Porque estava ele a persegui-la dentro de tão pouco tempo?

Na realidade, na voz de Edward transparecia exasperação:

— Então estás aqui.

Ela não conseguiu responder a uma observação tão tola.

— Precisavas mesmo de ter vindo até tão longe?

— Precisava.

— Devem ser três quilómetros desde o hotel.

A dureza da voz dela surpreendeu-a:

— Não quero saber quantos quilómetros são. Precisava de sair.

Ele deixou passar aquela resposta. Quando mudou o peso do corpo de uma perna para a outra, as pedras entrechocaram debaixo dos seus pés. Agora ela via que era o casaco que ele tinha na mão. Estava quente e húmido na praia, fazia mais calor do que durante o dia. Ficou arreliada por ele pensar que tinha de levar o casaco. Pelo menos não pusera a gravata! Santo Deus, como estava de súbito irritada, quando minutos antes se sentia tão envergonhada de si própria. Em geral, estava sempre tão desejosa de que ele formasse uma boa opinião a seu respeito, mas agora não queria saber.

Ele estava a preparar-se para lhe dizer o que tinha a dizer, e avançou um passo:

— Olha, isto é ridículo. Foi injusto teres fugido assim.

— Foi?

— Para dizer a verdade, foi muito desagradável.

— Oh, a sério? Bem, o que tu fizeste também foi muito desagradável.

— Que quer isso dizer?

Ela tinha os olhos fechados quando respondeu:

— Sabes muito bem o que quero dizer. — A recordação do seu papel naquela troca de palavras iria torturá-la, mas acrescentou: — Foi absolutamente nojento.

Imaginou ouvi-lo soltar um gemido, como se lhe tivessem dado um murro no peito. Se ao menos o silêncio que se seguiu tivesse sido uns segundos mais longo, talvez a culpa tivesse tido tempo para se erguer contra ela, permitindo-lhe acrescentar qualquer coisa menos desagradável.

Mas Edward replicou sem uma quebra:

— Tu não fazes a menor ideia de como é estar com um homem. Se fizesses, isto nunca teria acontecido. Tu nunca me deixaste aproximar-me de ti. Tu não sabes nada de nada, pois não? Tu procedes como se estivéssemos no século passado. Tu nem sequer sabes beijar.

Ela ouviu-se dizer com suavidade:

— Conheço o fracasso quando o vejo.

Mas não era isso que queria dizer, essa crueldade nada tinha a ver com ela. Era apenas um segundo violino a responder ao primeiro, uma parada retórica provocada pela rapidez e precisão do ataque dele, o desdém que ela ouvia em todos os «tus» que ele repetia. Quantas acusações teria de suportar numa pequena tirada?

Se o tinha magoado, ele nada deixou transparecer, embora mal lhe pudesse ver o rosto. Talvez tivesse sido a escuridão a torná-la ousada. Quando Edward tornou a falar, não ergueu a voz:

–– Não vou permitir que me humilhes.

— E eu não te vou deixar brutalizares-me.

— Não estou a brutalizar-te.

— Estás, sim. Estás sempre.

— Isto é ridículo. Que estás para aí a dizer?

Ela não tinha a certeza, mas sabia que era o caminho que seguia:

— Estás sempre a pressionar-me, a pressionar-me sem parar, a querer qualquer coisa de mim. Nunca podemos estar sossegados. Nunca podemos limitar-nos a estar felizes. Há esta pressão constante. Há sempre qualquer coisa mais que queres de mim. Essa bajulação interminável.

— Bajulação? Não estou a perceber. Espero que não estejas a referir-te ao dinheiro.

Ela não estava. Isso encontrava-se longe do seu pensamento. Que absurdo mencionar o dinheiro. Como se atrevia ele. Por isso retorquiu:

— Muito bem, já que falas no assunto. É isso que tens sempre em mente.

Fora o sarcasmo dele a aguilhoá-la. Ou a sua impertinência. Aquilo a que ela se referia era mais fundamental do que dinheiro, mas não sabia como dizê-lo. Era a língua dele a empurrar mais para o fundo da sua boca, a mão dele a avançar debaixo da saia ou da blusa dela, a mão dele a puxar a dela para o seu sexo, uma certa maneira que ele tinha de desviar os olhos dela e de ficar em silêncio. Era a expectativa amuada de que ela desse mais e, porque não o fazia, decepcionava-o por moderar tudo. Fosse qual fosse a nova fronteira que ela atravessasse, havia sempre uma outra à sua espera. Cada concessão que fazia aumentava a exigência e, em seguida, o desapontamento. Mesmo nos seus momentos mais felizes, havia sempre uma sombra acusatória, a melancolia mal dissimulada da sua insatisfação, a avultar como uma montanha, uma forma de tristeza perpétua que fora aceite por ambos como responsabilidade dela. Florence queria estar apaixonada e ser ela mesma. Mas para ser ela mesma tinha de passar o tempo todo a dizer não. E então deixava de ser ela mesma. Fora lançada para o lado da morbidez, como uma adversária da vida normal. Irritava-a a maneira como ele a perseguira tão rapidamente ao longo da praia, quando lhe devia ter dado tempo para ela mesma. E o que eles tinham ali, nas margens do Canal da Mancha, era apenas um tema menor num padrão mais vasto. Ela já conseguia ver o que estava para vir. Teriam aquela discussão, fariam as pazes, ou quase, ele convencê-la-ia a voltar para o quarto e depois ele infligir-lhe-ia de novo as suas expectativas. E ela falharia mais uma vez. Não conseguia respirar. O seu casamento tinha oito horas e cada uma dessas horas pesava sobre ela, tanto mais quanto não sabia como descrever a Edward esses pensamentos. Então o dinheiro tinha de servir como assunto — na realidade, servia perfeitamente, pois agora ele estava agitado.

— Nunca quis saber do dinheiro, nem do teu nem do de ninguém — disse ele.

Ela sabia que isso era verdade, mas não respondeu. Ele mudara de posição, de modo que agora ela via-lhe a silhueta recortada com nitidez contra a claridade que esmorecia na água atrás dele.

— Então guarda o dinheiro, o dinheiro do teu pai, gasta-o contigo. Compra um violino novo. Não o gastes em nada que eu possa usar.

A voz dele era tensa. Ela tinha-o ofendido profundamente, ainda mais do que tencionara, mas por agora não queria saber, e não ver o rosto dele ajudava. Até então nunca haviam falado de dinheiro. A prenda de casamento do pai fora duas mil libras. Ela e Edward só tinham falado vagamente de isso um dia servir para comprarem uma casa.

— Achas que te bajulei para conseguir esse emprego? A ideia foi tua. Eu não o queria. Estás a perceber? Não quero trabalhar para o teu pai. Podes dizer-lhe que mudei de ideias.

— Diz-lhe tu. Ele vai ficar muito contente. Só lhe arranjaste complicações.

— Então está bem. Eu digo-lhe.

Deu meia volta e afastou-se dela, em direcção à beira de água e, após alguns passos, voltou atrás, aos pontapés às pedras com uma violência impudente, fazendo voar uma nuvem de pedras pequeninas, algumas das quais aterraram perto dos pés dela. A cólera dele atiçou a dela e, repentinamente, Florence pensou que percebia qual era o problema de ambos: eram demasiado bem-educados, demasiado constrangidos, demasiado temerosos, andavam um à roda do outro em bicos de pés, a murmurar, a segredar, a diferir, a concordar. Mal se conheciam um ao outro, e nunca podiam fazê-lo por causa da manta de quase silêncio amigável que abafava as suas diferenças, e os cegava tanto quanto os aprisionava. Tinham sempre tido medo de discordar, e agora a cólera dele estava a libertá-la. Queria magoá-lo, puni-lo, a fim de se distinguir dele. Tratava-se de um impulso tão pouco familiar nela, no sentido da emoção da destruição, que não conseguia resistir-lhe. O seu coração batia com força e queria dizer-lhe que o odiava, e estava prestes a pronunciar essas palavras duras e maravilhosas que nunca proferira na vida, quando ele falou primeiro. Regressara ao ponto de partida e fazia apelo a toda a sua dignidade para a recriminar:

— Porque fugiste? Fizeste mal e magoaste-me.

Mal. Magoaste-me. Que patético!

— Já te disse. Precisava de sair. Não suportava estar ali contigo.

— Quiseste humilhar-me.

— Ah, então está bem. Se é isso que queres. Estava a tentar humilhar-te. Não mereces mais do que isso quando nem sequer consegues controlar-te.

— És uma cabra a falares assim.

As palavras foram uma explosão estelar no céu nocturno. Agora ela podia dizer o que lhe apetecesse.

— Se é isso o que pensas, então vai-te embora. Desaparece, está bem? Edward, por favor, vai-te embora Não compreendes? Vim até aqui para estar sozinha.

Percebeu que ele se deu conta de que fora longe de mais com aquela palavra e que isso o deixara encurralado. Quando lhe virou as costas, tinha consciência de estar a representar, de usar uma táctica que sempre desprezara nas amigas mais exuberantes. Sentia-se cansada daquela conversa. Mesmo o melhor desfecho só a faria regressar a outras daquelas manobras silenciosas. Era frequente, quando se sentia infeliz, perguntar-se o que gostaria mais de estar a fazer. Naquele caso, percebeu imediatamente. Viu-se na estação de caminho-de-ferro de Oxford, na plataforma do comboio com destino a Londres, às nove da manhã, com o estojo do violino na mão, um molho de partituras e uns quantos lápis afiados no velho saco de lona pendurado ao ombro, a dirigir-se para um ensaio do quarteto, ao encontro do confronto com a beleza e a dificuldade, com problemas susceptíveis de serem resolvidos por amigos que trabalhavam juntos. Ao passo que ali, com Edward, não havia solução que pudesse imaginar, a menos que apresentasse a sua proposta, e agora duvidava da sua coragem para o fazer. Como era prisioneira, com a vida enredada na daquele estranho oriundo de um lugarejo nos montes Chiltern, que sabia os nomes das flores e dos frutos silvestres e de todos os reis e papas medievais. E como agora lhe parecia extraordinário ter escolhido aquela situação confusa para si própria.

Sempre de costas voltadas, sentiu que ele se aproximava. Imaginou-o mesmo atrás de si, com as mãos pendentes ao lado do corpo, a fechá-las e abri-las suavemente enquanto ponderava a possibilidade de lhe tocar no ombro. Da escuridão sólida dos montes, do outro lado de The Fleet, chegou até eles o canto de uma única ave, rebuscado e melodioso. Pela beleza do som e pela hora do dia, teria imaginado tratar-se de um rouxinol. Mas haveria rouxinóis à beira-mar? E cantavam em Julho? Edward sabia, mas ela não estava disposta a perguntar.

— Eu amava-te, mas tu tornaste as coisas tão difíceis — disse ele, num tom impassível.

Ficaram em silêncio enquanto as implicações do tempo verbal que ele usara se instalavam em redor deles. Depois, por fim, ela disse, como que fazendo uma pergunta a si mesma:

— Tu amavas-me?

Ele não corrigiu o que dissera. Talvez ele próprio não fosse assim tão mau em táctica. Limitou-se a responder:

— Podíamos ser tão livres um com o outro, podíamos estar no paraíso. Em vez disso, estamos metidos nesta trapalhada.

A simples verdade implícita nas suas palavras desarmou-a, tal como a mudança para um tempo mais auspicioso. Mas a palavra «trapalhada» fê-la recordar de novo a cena desagradável do quarto, a substância tépida na sua pele a secar e a formar uma crosta que estalava. Tinha a certeza de que não ia deixar que tal coisa voltasse a acontecer-lhe.

— Pois é — respondeu num tom neutro.

— Que queres dizer com isso?

— Que é uma trapalhada.

Seguiu-se um silêncio, uma espécie de impasse, de duração indeterminada, durante o qual ficaram a ouvir as ondas e, intermitentemente, a ave, que se afastara mais e cujo canto mais débil se tornara ainda mais nítido. Finalmente, como ela esperava, ele pôs-lhe a mão no ombro. Foi um contacto gentil, que fez alastrar calor pela coluna vertebral dela, até ao fundo das costas. Florence não sabia que pensar. Desagradava-lhe a maneira como estava a calcular o momento em que se devia virar e viu-se como ele devia vê-la, tão desajeitada e susceptível como a mãe, difícil de conhecer, a criar dificuldades quando podiam estar à vontade no paraíso. Então o que devia fazer era simplificar as coisas. Era a sua obrigação, o seu dever conjugal. Quando se virou, pôs-se fora do alcance dele pois não queria ser beijada, pelo menos de imediato. Precisava de ter a mente desanuviada para o pôr a par do seu plano. Mas ainda estavam demasiado próximos para que ela pudesse distinguir uma parte das suas feições com aquela luz fraca. Talvez nesse momento a Lua por trás dela ficasse parcialmente descoberta. Pensou que Edward estava a olhar para ela como tantas vezes fazia — com uma expressão de pasmo — sempre que se preparava para lhe dizer que era linda. Florence nunca acreditava nele, e aborrecia-se quando ele o dizia pois talvez quisesse alguma coisa que ela não lhe pudesse dar. Desarmada por essa ideia, não conseguiu fazer a sua proposta.

— É um rouxinol? — ouviu-se perguntar.

— É um melro.

— À noite? — Não conseguiu esconder o seu desapontamento.

— Deve ser um local excelente. O pobrezinho está a ter um trabalho difícil. — Em seguida acrescentou: — Como eu.

Imediatamente, ela riu. Era como se, em parte, o tivesse esquecido, a sua verdadeira natureza, e agora ele estivesse, nítido, diante dela, o homem a quem amava, o seu velho amigo, a dizer coisas imprevisíveis e enternecedoras. Mas era um riso desconfortável, pois sentia-se um nadinha louca. Não sabia que os seus próprios sentimentos, os seus estados de espírito, tinham aquelas subidas e descidas, aquelas oscilações. E agora estava prestes a fazer uma sugestão que, de um determinado ponto de vista, era totalmente sensata e, de outro, com toda a probabilidade — ela não podia ter a certeza — era completamente escandalosa. Sentiu como se estivesse a tentar reinventar a própria existência. Aquilo não podia deixar de ir correr mal.

Impelido pelo riso dela, ele aproximou-se de novo e tentou segurar-lhe na mão, e mais uma vez ela se afastou. Era fundamental conseguir pensar com clareza. Começou o discurso tal como o havia ensaiado em pensamento, com todas as declarações importantes.

— Sabes que te amo. Muito, muito. E eu sei que tu me amas. Nunca duvidei disso. Adoro estar contigo, e quero passar a minha vida contigo, e tu dizes que sentes o mesmo. Devia ser tudo muito simples. Mas não é. Estamos metidos numa trapalhada, como tu disseste. Apesar de todo este amor, também sei que a culpa é toda minha, e sabemos ambos porquê. Agora deve ser mais do que evidente para ti que...

Hesitou, ele ia falar, mas ela ergueu a mão.

— Que eu sou uma nulidade, uma nulidade absoluta, com o sexo. Não só não sou boa nisso, mas é como se não tivesse essas necessidades como as outras pessoas, como tu. Não é uma coisa que faça parte de mim. Não gosto de o praticar, e não gosto de pensar nele. Não faço ideia do motivo por que isto é assim, mas acho que, por agora, não vai mudar. Pelo menos, não consigo imaginar uma mudança. E se não digo isto agora, vamos sempre estar a debatermo-nos com o assunto, vai causar-te uma data de sofrimento, e a mim também.

Desta vez, quando ela fez uma pausa, ele ficou em silêncio. Estava quase a dois metros de distância, agora não era mais do que uma silhueta, absolutamente imóvel. Florence sentiu-se receosa e forçou-se a prosseguir:

— Talvez tenha de fazer uma psicanálise. Talvez o que eu precise mesmo de fazer seja matar a minha mãe e casar com o meu pai.

Essa graça corajosa, em que pensara anteriormente, a fim de suavizar a sua mensagem, ou de parecer menos espiritual, não provocou nenhuma reacção da parte de Edward. Este permaneceu completamente silencioso, uma forma indecifrável, bidimensional, recortada contra o mar. Com um movimento incerto e esvoaçante, a mão dela ergueu-se até à testa para afastar uma madeixa de cabelo imaginária. No seu nervosismo, começou a falar mais depressa, embora pronunciasse as palavras com crispação. Como uma patinadora sobre gelo fino, acelerou para se salvar do afogamento. Atravessava as frases a toda a brida, como se só a velocidade pudesse criar sentido, como se o pudesse impelir a ele para além das contradições, fazê-lo dobrar tão rapidamente a curva da sua intenção que não fosse possível haver objecções a que ele se pudesse agarrar. Como não arrastava as palavras, parecia calamitosamente brusca, quando, na realidade, estava mais próxima do desespero.

— Pensei nisto com todo o cuidado e não é tão estúpido como parece. A primeira vez que se ouve, quero eu dizer. Amamo-nos um ao outro, isso é um dado de facto de que nenhum de nós duvida. Já sabemos como nos fazemos felizes um ao outro. Agora somos livres de fazer as nossas próprias escolhas, de decidir sobre as nossas próprias vidas. Ninguém pode dizer-nos como havemos de viver. Somos indivíduos livres! E agora as pessoas vivem de todo o género de maneiras, podem viver de acordo com as suas próprias regras e padrões sem ter de pedir licença a ninguém. A mãe conhece dois homossexuais que vivem juntos num apartamento, como marido e mulher. Dois homens. Em Oxford, na Beaumont Street. São muito discretos. Ensinam ambos no Christ Church. Ninguém os incomoda. E nós também podemos fazer as nossas próprias regras. É por saber que me amas que posso dizer isto. A minha ideia é que... Edward, eu amo-te, e não temos de ser como todas as outras pessoas, quero eu dizer, ninguém, ninguém mesmo... ninguém precisava de saber o que fazíamos ou não fazíamos. Podíamos estar juntos, viver juntos, e, se tu quisesses, se quisesses mesmo, quero dizer, sempre que acontecesse, e claro que iria acontecer, eu compreendia, mais do que isso, desejá-lo-ia, porque quero que sejas feliz e livre. Nunca teria ciúmes, desde que soubesse que me amavas. Eu amar-te-ia e tocaria violino, é tudo o que quero na vida. Sinceramente. Só quero estar contigo, olhar por ti, ser feliz contigo, e trabalhar com o quarteto e um dia tocar qualquer coisa, qualquer coisa bela para ti, como o Mozart, no Wigmore Hall.

Deteve-se abruptamente. Não fora sua intenção falar das suas ambições musicais e convenceu-se de que era um erro.

Ele produziu um ruído entre os dentes, mais um silvo do que um suspiro, e quando falou emitiu o som semelhante a um latido. A sua indignação era tão violenta que quase parecia um triunfo.

— Meu Deus, Florence! Eu entendi bem? Queres que eu ande com outra mulher! É isso?

— Não, se tu não quiseres — respondeu ela baixinho.

— Estás a dizer-me que podia fazer isso com qualquer pessoa desde que não fosses tu.

Ela não respondeu.

— Esqueceste-te de que casámos hoje? Não somos dois maricas velhos a viver em segredo na Beaumont Street. Somos marido e mulher!

As nuvens baixas abriram-se de novo e, embora não houvesse luar directo, uma ténue claridade, difundida através das camadas de nuvens mais altas, moveu-se ao longo da praia de modo a abarcar o casal de pé junto da grande árvore caída. Na sua fúria, ele curvou-se para apanhar uma grande pedra lisa e bateu com ela, com toda a força, na palma da mão direita e depois na esquerda.

Agora ele estava quase aos gritos:

— Com o meu corpo te venero! Foi o que prometeste hoje. Diante de toda a gente. Não percebes como a tua ideia é nojenta e ridícula? E como é insultuosa? É um insulto para mim! Quero dizer, quero dizer. — Debatia-se à procura de palavras. — Como te atreves!

Deu um passo direito a ela, com a mão a agarrar a pedra erguida, em seguida girou e, na sua frustração, atirou-a ao mar. Mesmo antes de esta cair, quase à beira de água, ele voltou-se de novo para ela:

— Enganaste-me. A verdade é que és uma fraude. E sei exactamente o que também és. Sabes o que és? És frígida, é o que tu és. Completamente frígida. Mas pensaste que precisavas de um marido, e eu fui o primeiro idiota que apareceu.

Ela sabia que não fora sua intenção ludibriá-lo, mas tudo o mais, mal ele o disse, lhe pareceu completamente verdade. Compreendeu como frígida, essa palavra terrível, se aplicava a ela. Era exactamente o que a palavra significava. Como não tinha percebido que a proposta dela era repugnante e nitidamente um insulto? E, pior do que tudo, quebrara os votos que fizera em público, numa igreja. Mal ele lho disse, tudo encaixou na perfeição. Aos seus próprios olhos, tal como aos dele, era indigna.

Nada mais lhe restava para dizer, e saiu da protecção da árvore fustigada pelas intempéries. Para se dirigir ao hotel, tinha de passar por ele e, ao fazê-lo, parou mesmo à sua frente e disse, em pouco mais do que um murmúrio:

—      Desculpa-me, Edward, lamento imenso.

Por um instante, fez uma pausa, ficou ali, hesitante, à espera da resposta dele; e depois partiu.

 

As palavras dela, a sua particular construção arcaica, iriam persegui-lo durante muito tempo. Acordaria de noite a ouvi-las, ou algo semelhante a um eco, o seu tom de anseio, de pesar, e soltaria gemidos ao recordar aquele momento, o seu próprio silêncio e a maneira como lhe virara a cara, zangado, como ficara na praia mais uma hora, a saborear toda a delícia da afronta, da ofensa, do insulto que ela lhe infligira, exaltada por uma sensação enjoativa de ele próprio estar sadia e tragicamente dentro da razão. Andou para cima e para baixo sobre o burgau fatigante, atirando pedras ao mar e gritando obscenidades. Depois deixou-se cair junto da árvore e mergulhou num sonho acordado de autocomiseração até conseguir atiçar de novo a sua raiva. Ficou de pé à beira-mar, a pensar nela, tão distraído que nem deu pelas ondas a molharem-lhe os pés. Por fim, fez lentamente o caminho de regresso ao longo da praia, devagar e em passos pesados, parando várias vezes para se dirigir mentalmente a um juiz severo e imparcial que compreendia o seu caso completamente. No seu infortúnio, quase se sentia nobre.

Quando chegou ao hotel, ela tinha feito a mala e partido, sem deixar nenhum bilhete no quarto. Na recepção, ele falou com os dois rapazes que lhe tinham levado o jantar no carrinho. Embora não o dissessem, ficaram visivelmente surpreendidos por ele não saber que tinha havido uma doença familiar e que a esposa fora chamada a casa com urgência. O gerente tinha tido a amabilidade de a levar a Dorchester, onde ela tinha esperança de apanhar uma ligação tardia para Oxford. Quando Edward se virou para subir a escada que conduzia à suíte de lua-de-mel, não viu os dois homens trocarem um olhar entendido, mas conseguiu imaginá-lo muito bem.

Ficou acordado o resto da noite na cama de colunas, completamente vestido, ainda furioso. Os seus pensamentos perseguiam-se uns aos outros, numa dança de roda, num delírio de constante regresso. Casar com ele, depois rejeitá-lo, era monstruoso, queria que ele andasse com outras mulheres, talvez quisesse ver, era humilhante, era incrível, ninguém iria acreditar, dizia que o amava, ele praticamente nunca lhe vira os seios, arrastou-o para o casamento, nem sequer sabia beijar, levou-o à certa, vigarizou-o, ninguém podia saber, ela ter casado com ele e a seguir tê-lo rejeitado tinha de continuar a ser o seu segredo vergonhoso, era monstruoso...

Mesmo antes do alvorecer levantou-se, atravessou a sala e, de pé por trás da sua cadeira, raspou o molho solidificado da carne e das batatas do prato e comeu-as. Em seguida, esvaziou o prato, sem querer saber de quem era. Após isso, comeu todos os chocolates de mentol e o queijo. Saiu do hotel ao romper do dia e, ao volante do pequeno carro de Violet Ponting, percorreu quilómetros de estradas estreitas ladeadas de sebes altas, com o cheiro de estrume fresco e de relva cortada a entrar pela janela aberta, até chegar à estrada principal, vazia àquela hora, que conduzia a Oxford.

Deixou o carro à porta da casa dos Pontings com as chaves na ignição. Sem deitar sequer uma olhadela para a janela de Florence, atravessou a cidade em passo estugado, com a mala na mão, para apanhar o primeiro comboio. Aturdido pela exaustão, percorreu o longo caminho de Henley a Turville Heath, com o cuidado de evitar a estrada que ela tomara um ano antes. Porque havia de lhe seguir as pisadas? Uma vez em casa, recusou dar qualquer explicação ao pai. A mãe já se tinha esquecido de que ele casara. As irmãs importunavam-no constantemente com as suas perguntas e especulações inteligentes. Levou-as até ao fundo do jardim e fez Harriet e Anne jurar, solenemente e em separado, com a mão no coração, que nunca mais tornariam a proferir o nome de Florence. Uma semana mais tarde soube pelo pai que Mrs. Ponting tinha conseguido devolver todos os presentes de casamento. Entre eles, Lionel e Violet puseram em movimento um divórcio discreto alegando não consumação do casamento. Instigado pelo pai, Edward escreveu uma carta formal a Geoffrey Ponting, presidente da Ponting Electronics, a lamentar uma «mudança de ideias» e, sem mencionar Florence, a apresentar as suas desculpas, o seu pedido de demissão e uma breve despedida.

Cerca de um ano mais tarde, já a sua ira se havia desvanecido, ainda se sentia demasiado orgulhoso para a procurar ou para lhe escrever. Receava que Florence estivesse com outra pessoa qualquer e, por nada ouvir sobre ela, ficou convencido de que assim era. Nos finais dessa célebre década, quando a sua vida ficou sob pressão devido a todas as novas excitações, liberdades e modas, bem como ao caos de numerosos casos amorosos — finalmente a sua competência nessa matéria tornou-se pelo menos razoável — era frequente pensar na estranha proposta que ela lhe fizera, e isso já não lhe parecia tão ridículo e muito menos nojento ou insultuoso. Nas novas circunstâncias vigentes, parecia livre e muito avançado para a época, inocentemente generoso, um acto de abnegação que ele fora incapaz de compreender. Que proposta, caramba!, teriam dito os amigos, embora ele nunca falasse daquela noite com ninguém. Nessa altura, no final dos anos 60, ele vivia em Londres. Quem poderia prever tais transformações, o súbito incremento do prazer sensual sem culpa, a prontidão e a simplicidade com que se ofereciam tantas mulheres bonitas? Edward atravessou esses breves anos como uma criança aturdida e feliz a quem é levantado um castigo prolongado, incapaz de acreditar na sua sorte. A série de breves livros de história e todos os pensamentos relativos a uma carreira académica séria tinham ficado para trás, embora não tivesse havido um momento particular em que tomara uma decisão firme sobre o seu futuro. Como o pobre Sir Robert Carey, afastou-se simplesmente da história para viver confortavelmente no presente.

Envolveu-se na administração de vários festivais rock, ajudou a arrancar com uma cantina de comida saudável em Hampstead, trabalhou numa loja de discos não longe do canal em Camden Town, escreveu críticas de rock para pequenas revistas, viveu uma sequência caótica e sobreposta de amantes, viajou pela França com uma mulher que, durante três anos e meio, foi sua esposa, e morou com ela em Paris. Acabou por se tornar sócio da loja de discos. Tinha uma vida demasiado ocupada para ler jornais e, além disso, durante algum tempo, a sua atitude era de que ninguém podia honestamente confiar na imprensa convencional, pois toda a gente sabia que era controlada pelo Estado, pelo exército ou pelos interesses financeiros — opinião esta que, mais tarde, Edward repudiou. Mesmo que tivesse lido os jornais, seria pouco provável que se debruçasse sobre as páginas das artes, sobre as críticas de concertos longas e profundas. O seu interesse precário em música clássica desvanecera-se por completo em favor do rock and roll. Por isso nunca ouviu falar da estreia triunfante do Ennismore Quartet no Wigmore Hall em Julho de 1968. O crítico de The Times saudou a chegada de «sangue fresco, de paixão jovem à cena actual». Elogiou «a intuição, a intensidade meditativa, a acutilância da interpretação» que sugeria «uma excepcional maturidade musical em intérpretes com menos de trinta anos. Dominaram com facilidade e mestria toda a panóplia de efeitos harmónicos e dinâmicos e de riqueza polifónica característica do estilo dos últimos anos de vida de Mozart. O seu Quinteto em ré maior nunca foi interpretado com tamanha sensibilidade». No final do artigo salientava a primeira violinista, que dirigia o quarteto. «Seguiu-se um Adágio de uma expressividade ardente, de grande beleza e perfeição e pleno de vigor espiritual. Miss Ponting, na ternura ritmada do seu timbre e na delicadeza lírica do seu fraseado, tocou, se me é permitido usar estes termos, como uma mulher apaixonada, não só por Mozart e pela sua música, mas pela própria vida.»

E mesmo que Edward tivesse lido essa crítica, não poderia ter sabido — ninguém sabia a não ser Florence — que, quando as luzes se acenderam e os jovens músicos, estonteados, se aperceberam dos aplausos arrebatados, a primeira violinista não conseguiu impedir-se de fazer viajar o olhar para o meio da terceira fila, até ao lugar 9C.

Em anos posteriores, sempre que Edward pensava nela e a evocava, ou imaginava escrever-lhe, ou chocar com ela na rua, parecia-lhe que uma explicação da sua existência levaria menos de um minuto, menos de meia página. Que fizera de si mesmo? Vagueara ao sabor da corrente, semi-adormecido, desatento, sem ambição, sem seriedade, sem filhos, confortável. Os seus modestos empreendimentos eram, na maioria, materiais. Possuía um pequeno apartamento em Camden Town, era co-proprietário de uma casinha com dois quartos de dormir em Auvergne e era sócio de duas lojas de discos especializadas em jazz e rock and roll, empreendimentos precários a serem lentamente minados pelas compras na Internet. Supunha que os amigos o consideravam um amigo decente e tinha bons períodos, períodos loucos, especialmente nos primeiros anos. Era padrinho de cinco crianças, embora só começasse a desempenhar esse papel no final da adolescência destas ou quando já tinham vinte e tal anos.

Em 1976, a mãe de Edward faleceu e, quatro anos mais tarde, ele mudou-se para casa dela a fim de tomar conta do pai que sofria de doença de Parkinson em rápida evolução. Harriet e Ann haviam casado e tinham filhos e viviam ambas no estrangeiro. Nessa altura, Edward, com quarenta anos, deixara para trás um casamento fracassado. Ia a Londres três vezes por semana para se ocupar das lojas. O pai morreu em casa, em 1983 e foi sepultado no cemitério da igreja de Pishill, ao lado da mulher. Edward ficou na casinha onde eles tinham habitado como inquilino, pois agora as irmãs eram as proprietárias legais. Inicialmente usava a casa como um refúgio para onde escapava quando saía de Camden Town e, mais tarde, no início dos anos 90, mudou-se para lá e ficou a viver sozinho. Fisicamente, Turville Heath, ou o recanto de Turville Heath onde habitava, não era muito diferente do lugar onde crescera. Em vez de ter por vizinhos trabalhadores agrícolas ou artesãos, havia pessoas que iam trabalhar à cidade, ou proprietários de casas secundárias, mas toda a gente era bastante simpática. E Edward nunca se teria descrito a si mesmo como infeliz — entre os seus amigos de Londres havia uma mulher de quem ele gostava; já bem avançado na casa dos cinquenta, jogava cricket no Turville Park, era activo na sociedade de história de Henley e desempenhava um papel na recuperação dos antigos campos de agriões em Ewelme. Dois dias por mês, trabalhava numa fundação em High Wycombe que ajudava crianças com lesões cerebrais.

Mesmo na casa dos sessenta, um homem alto e corpulento, já com entradas no cabelo branco e um rosto rosado e saudável, continuava a dedicar-se às grandes caminhadas. O seu passeio diário ainda era pela avenida das tílias e, quando fazia bom tempo, seguia um itinerário circular para ver as flores silvestres no prado de Maidensgrove, ou as borboletas na reserva natural de Bix Bottom, regressando através dos bosques de faias até à igreja de Pishill onde, pensava ele, também um dia seria sepultado. De quando em quando, chegava a uma encruzilhada escondida num bosque de faias e detinha-se a pensar que havia sido ali que ela um dia devia ter feito uma pausa para consultar o mapa, naquela manhã de Agosto, e imaginava-a com nitidez, a poucos centímetros e a quarenta anos de distância, decidida a encontrá-lo. Ou parava num sítio de onde se desfrutava do panorama do vale de Stonor e perguntava-se se teria sido ali que ela suspendera a caminhada para comer uma laranja. Por fim, pôde confessar a si mesmo que nunca conhecera ninguém a quem amasse tanto, que nunca encontrara ninguém, homem ou mulher, que a igualasse em seriedade. No caso de ter ficado com ela, talvez se tivesse centrado mais e sido mais ambicioso em relação à sua própria vida e tivesse escrito aqueles livros de história. Não era de modo nenhum o género de coisa por que se interessava, mas sabia que o Ennismore Quartet era importante e que continuava a ser um marco venerado na cena da música clássica. Nunca costumava ir a concertos nem comprava as caixas com conjuntos de discos de Beethoven ou de Schubert, nem sequer olhava para elas. Não queria ver a fotografia dela e descobrir o que os anos tinham destruído, ou ouvir pormenores da sua vida. Preferia guardá-la como era nas suas recordações, com a flor do dente-de-leão na botoeira e o pedacinho de veludo a prender-lhe o cabelo, o saco de lona ao ombro e o rosto belo e de ossos fortes com o seu sorriso rasgado e sem artifícios.

Quando pensava nela, ficava pasmado por ter deixado partir aquela rapariga com o seu violino. Agora, claro, percebia que a proposta abnegada que ela lhe fizera era irrelevante. Tudo de que ela precisava era da certeza do seu amor e de que ele lhe garantisse que não havia pressa, quando tinham a vida inteira pela frente. Amor e paciência — se ao menos ele tivesse possuído os dois ao mesmo tempo — por certo tê-los-iam ajudado aos dois. E então que crianças por nascer teriam tido as suas oportunidades, que menina com uma fita no cabelo se teria tornado a sua filha adorada? É assim, não fazendo nada, que todo o curso de uma vida pode ser alterado. Na praia de Chesil ele poderia ter chamado Florence, poderia ter ido no seu encalço. Não sabia, ou não quis saber que, quando ela fugiu dele, segura na sua angústia de que estava prestes a perdê-lo, ela nunca o amara mais, ou mais desesperadamente, que o som da sua voz teria sido uma libertação, e que ela teria retrocedido. Em vez disso, permaneceu no frio e no silêncio virtuoso do fim daquele dia de Verão, vendo-a caminhar apressada pela praia, com o som do seu avanço penoso abafado pelas pequenas vagas, até se tornar uma mancha indistinta, um ponto a desaparecer contra a imensa estrada de seixos a brilhar na luz pálida do lusco-fusco.

 

                                                                                Ian McEwan  

 

 

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