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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA SOMBRA DO PERIGO
NA SOMBRA DO PERIGO

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo 27
Butch estacionou o Escalade na garagem subterrânea do Commodore e apanhou o elevador interno, subindo pela espinha dorsal do edifício. Não fazia a mínima ideia do
que ia dizer quando chegasse a casa de V, mas era dali que vinha o sinal de GPS, por isso era ali que tinha de ir.
No bolso do blusão de cabedal tinha todas as chaves do espaço privado de Vishous: o cartão com banda magnética para entrar na garagem, o cartão prateado necessário
para ativar o botão do elevador para o último andar, a chave que permitia abrir a fechadura da porta.
O coração saltava-lhe no peito quando se ouviu um tilintar e as portas do elevador se abriram silenciosamente. A noção de ter acesso a tudo estava a tomar proporções
diferentes esta noite e, enquanto saía para o corredor, apetecia-lhe uma bebida. Desesperadamente.
Chegando à porta pegou na chave de cobre, mas primeiro bateu levemente com os nós dos dedos. Várias vezes.
Só passado um bom minuto é que tomou consciência de que não tinha havido resposta.
Que se lixe a delicadeza. Bateu com força com o punho fechado.
- Vishous - gritou. - Responde ou vou entrar!
Começou calmamente a contar alto. Um... Dois...
- Que se lixe!
Enfiou a chave na fechadura e deu a volta, antes de empurrar a porta sólida de metal com o ombro para a abrir.
Entrou de rompante na casa e ouviu soar tranquilamente o alarme. O que queria dizer que V não estava em casa.
- Mas que raio...?
Introduziu o código, desligou o alarme e fechou a porta atrás de si, trancando a fechadura. Não viu quaisquer indícios de velas... nenhum aroma a sangue... nada,
a não ser o ar fresco e límpido.
Acendeu a luz e pestanejou quando o clarão inundou a sala.
Bolas, uau... Tantas memórias que ele tinha dali... chegar e apagar depois de o Ómega o ter apanhado e ter saído da quarentena... V a perder a cabeça, sempre apaixonado,
e a saltar da maldita varanda...
Foi até à parede do «equipamento». Também tinha acontecido ali uma série de outras coisas. Algumas das quais ele nem era capaz de imaginar.
Enquanto verificava o metal e o couro expostos, o som das botas ecoava até ao teto e a mente andava às voltas dentro da cabeça. Especialmente quando chegou à ponta
mais afastada. Na esquina, pendia do teto, preso com correntes grossas, um par de algemas de ferro.
Se prendermos alguém nelas, podemos levantá-lo e deixá-lo pendurado como um naco de carne.
Levantou a mão e passou os dedos pelo interior de uma das algemas. Não estava forrada.
Bicos. Bicos rombos que magoariam a pele como dentes.
Voltando ao que o trazia ali, deu a volta ao espaço todo, verificando cada recanto... e encontrou um chip minúsculo de computador na bancada da cozinha. Era o tipo
de coisa que ninguém, além de V, saberia remover do telemóvel.
- Filho da mãe.
Portanto, não havia maneira de saber onde...
Quando o telefone tocou, verificou o ecrã. Graças a Deus.
- Onde diabo estás tu?
O tom de V era seco:
- Preciso de ti. Na esquina da Ninth com a Broadway. Já.
- Que se lixe. Porque é que o teu GPS está na cozinha?
- Porque era aí que eu estava quando o tirei do telemóvel.
- Mas que diabo, V. - Butch apertou o aparelho com mais força e desejou que existisse uma aplicação que permitisse esbofetear alguém através do telefone.
- Não podes...
- Vem já para aqui. Temos problemas.
- Estás a gozar comigo, não é? Quer dizer, fazes tudo para não sabermos onde estás, e depois...
- Alguém mais anda a matar minguantes, chui. E se é quem eu penso, estamos com problemas.
Pausa. Longa.
- Desculpa? - disse lentamente.
- Esquina da Ninth com a Broadway. Já. Vou chamar os outros.
Butch desligou e saiu apressadamente.
Deixando o SUV na garagem, só demorou cinco minutos a correr para as coordenadas certas no mapa de ruas de Caldwell. Butch soube imediatamente quando se estava a
aproximar, por causa do cheiro doentio no ar e da sensação de formigueiro interior que o inimigo despertava.
Ao virar a esquina, embateu numa parede de mhis e atravessou-a, saindo do outro lado no meio de uma nuvem de tabaco turco, à luz de um pequeno clarão cor de laranja
ao fundo do beco.
Correu para V, apenas diminuindo a velocidade quando chegou ao primeiro corpo. Ou melhor... a um bocado do primeiro corpo.
- Olá, metade.
Quando Vishous chegou ao pé dele e retirou a luva, teve um vislumbre de carne morta e secreções viscerais.
- Que apetitoso.
- Corte perfeito - murmurou V. - Como uma faca a cortar manteiga.
O irmão estava certíssimo. Era quase cirúrgico.
Butch ajoelhou-se e abanou a cabeça.
- Não pode ser uma consequência da política da Sociedade dos Minguantes. Eles nunca deixariam os corpos expostos desta maneira.
Era sabido que os assassinos sofriam regularmente mudanças na liderança, ou porque o Ómega estava entediado, ou por causa de lutas internas de poder. Mas o inimigo
era incentivado a manter os seus assuntos longe dos radares humanos, tanto como os vampiros, pelo que que não teriam deixado aquele espetáculo para que a Polícia
de Caldwell o encontrasse.
Quando Butch pressentiu a chegada dos outros irmãos, levantou-se. Phury e Z foram os primeiros a surgir no éter. Depois Rhage, Tohr e Blay. E era o grupo daquela
noite: Rehvenge lutava frequentemente com a Irmandade, mas naquela noite estava na colónia symphath a armar-se em Rei dos Malditos e era o dia de folga de Qhuinn,
Xhex e John Matthew.
- Diz-me que eu não estou a ver isto - comentou Rhage sombriamente.
- Os teus olhos estão a ver perfeitamente, é verdade. - V apagou a beata na sola da bota. - Também não queria acreditar.
- Pensava que ele estava morto.
- Ele? - indagou Butch, olhando para os dois. - Quem é ele?
- Nem sei por onde começar - resmungou Hollywood, enquanto verificava outro bocado de corpo. - Sabes, se tivesse um pau, podíamos fazer espetadas de minguante.
- Só tu é que pensas em comida numa altura destas - disse alguém, espaçando as sílabas.
- Só estou a dizer.
Se a conversa continuou, Butch deixou de ouvir, porque o seu alarme interno começou subitamente a soar.
- Malta... Estamos prestes a ter companhia.
Virando-se, olhou para a entrada do beco. O inimigo aproximava-se. Depressa.
- Quantos? - perguntou V ao aproximar-se.
- Pelo menos quatro, talvez mais - respondeu Butch, enquanto pensava no facto de não haver outra saída dali.
- Isto pode ser uma armadilha.
No centro de treinos da Irmandade, Manny estava especialmente atento à sua paciente.
Ao acariciar o peito de Payne, ela contorceu-se por baixo da sua mão, mexendo as pernas como se estivesse a andar de bicicleta, impaciente, com a cabeça tombada
para trás, o corpo a brilhar como a Lua numa noite de inverno sem nuvens.
- Não pares, curandeiro - gemeu, enquanto ele lhe rodeava os mamilos com a ponta do dedo. - Consigo sentir... tudo...
- Não te preocupes que não paro.
Ah pois não, ele não queria pôr os travões naquilo tão cedo - não que eles fossem ter sexo. Mas, ainda assim...
- Curandeiro... - sussurrou ela junto aos lábios dele. - Mais, por favor.
Deslizando a língua até à boca dela, beliscou suavemente o mamilo.
- Vamos tirar-te isto - disse ele ao encontrar, com a outra mão, a parte de baixo da túnica. - Vou tratar bem de ti aí em baixo.
Payne ajudou-o enquanto ele a despia e, discretamente, removia o equipamento. Quando ficou absolutamente nua, Manny ficou por instantes com a boca seca e imóvel
a contemplá-la. Os seios tinham uma forma perfeita, com pequenos mamilos cor-de-rosa, e a barriga lisa alongava-se até à abertura que lhe estava a dar dores de cabeça.
- Curandeiro...?
Quando tudo o que ele fez foi engolir em seco, ela puxou o lençol e cobriu o corpo.
- Não... - deteve-a. - Desculpa. Apenas preciso de um minuto.
- Para quê?
Numa palavra, clímax. Ao contrário dela, Manny sabia exatamente onde é que toda aquela nudez ia levar - dentro de um minuto e meio, a sua boca estaria a cobri-la.
- És incrível... e não tens nada do que te envergonhar.
O corpo dela era de enlouquecer, bela, firme, com a pele suave e lustrosa. Considerava-a a fêmea perfeita e nenhuma outra se igualava. Cristo, nunca tinha estado,
nem de longe, entusiasmado com as radiografias ambulantes de mamas falsas duras como pedras e braços ossudos.
Payne era poderosa e isso, para ele, era a verdadeira beleza. Mas não havia dúvidas de que passaria por aquela experiência com a virgindade intacta. Sim, ela queria
o que ele tinha para lhe oferecer, mas não era justo, tendo em conta as circunstâncias, tirar-lhe algo que nunca mais teria de volta. Na senda de conseguir que as
suas pernas voltassem a ter alguma funcionalidade, ela era capaz de ir mais longe do que iria caso se tratasse apenas de sexo pelo prazer do ato.
O que se passava entre eles tinha tudo a ver com um objetivo.
E o facto de isso o deixar vazio era uma coisa que ele não queria agora analisar profundamente.
Manny inclinou-se sobre ela.
- Dá-me a tua boca, bambina. Deixa-me entrar.
Quando ela fez o que lhe era pedido, ele continuou a acariciar o peito perfeito.
- Shh ... calma - gemeu ele, quando os movimentos de prazer quase a atiravam para fora da cama.
Jesus, ela parecia um relâmpago engarrafado e, por momentos, imaginou como seria cavalgar nas ancas ondulantes e tomá-la profundamente.
Acaba já com essa merda, Manello, exortou-se a si próprio.
Separando-se da boca dela, acariciou com o nariz a linha do pescoço e enterrou fugazmente os dentes junto à garganta, só o suficiente para ela sentir e não para
magoar. Enquanto ela enterrava as mãos nos seus cabelos, percebeu pela força que fazia e pela sua respiração ofegante que ela queria que fosse exatamente para onde
se dirigia.
Continuando a acariciar, com a palma da mão, o seu peito, esticou a língua e deslizou pelo seio em direção ao entumecido botão cor-de-rosa. Ao circular o mamilo,
viu-a a morder o lábio inferior, com os caninos a rasgarem a pele e libertarem uma gota de sangue vermelho vivo.
Sem ter consciência do que fazia, ele subiu e capturou o que fora derramado, saboreando e engolindo...
Os olhos dele cerraram-se com o sabor. Rico e escuro, espesso e suave na sua garganta. A boca estremeceu... e estremeceu também o seu íntimo.
- Não - disse ela, com uma voz gutural. - Não podes fazer isso.
Quando forçou as pálpebras a abrirem-se, viu-a passar a língua pelo lábio e limpar o que restara.
- Sim, posso - ouviu-se dizer. Ele queria mais. Muito mais...
Payne levou um dedo nos lábios dele e abanou a cabeça.
- Não. Vais enlouquecer.
Enlouqueceria se não tivesse mais, era isso que aconteceria. O sangue dela era como cocaína e uísque juntos numa solução intravenosa. Só com o pouco que engolira,
o corpo dele transformara-se no super-homem, o peito inchara, todos os músculos latejavam de poder.
Como se lhe conseguisse ler a mente, ela insistiu com mais firmeza.
- Não, não... não é seguro.
Provavelmente teria razão. Mas isso não queria dizer que ele não tentasse outra vez, caso tivesse oportunidade.
Regressou ao mamilo, chupando-o e acariciando. Quando ela voltou a arquear-se, colocou o braço por baixo e puxou-a para si. Não conseguia pensar em mais nada, a
não ser em sugar o meio daquelas pernas... mas não sabia como ela reagiria. Tinha de a manter neste nível agradável de excitação, não assustá-la com o tipo de merdas
que os homens gostam de fazer às mulheres.
Decidiu-se por levar a mão para onde queria levar os lábios, deslizando a palma da mão suavemente pela caixa torácica e pela barriga. Mais baixo, pelas ancas. Mais
baixo, pelas virilhas.
- Abre-te para mim, Payne - pediu-lhe, mudando para o outro mamilo e continuando a lamber.
- Abre-te para eu te poder tocar.
Ela fez o que lhe foi pedido, abrindo graciosamente as pernas.
- Confia em mim - disse ele, com a voz rouca.
E bem podia. Já se sentia suficientemente mal por todos aqueles preliminares estarem a acontecer com ele. Não ia violar as fronteiras que tinha estabelecido.
- Confio - gemeu ela.
Que Deus nos ajude, pensou Manny, quando a palma da mão deslizava pela abertura...
- Humm... - gemeu. Quente e húmida, suave como seda. Inegável.
Subitamente puxou o braço, os lençóis voaram e os olhos fitaram a imagem da mão aninhada próxima da essência dela. O corpo dela arqueou-se e uma das pernas tombou
para o lado.
- Curandeiro... - gemeu. - Por favor, não pares.
- Não fazes ideia daquilo que eu te quero fazer - disse para si.
- Dói-me.
Manny rangeu os dentes.
- Onde?
- Onde me tocaste e resolveste não ir mais longe. Não pares, imploro-te.
A boca de Manny abriu-se e ele soltou uma expiração.
- Faz comigo o que quiseres, curandeiro - gemeu. - O que quer que seja. Sei que te estás a tentar controlar.
Soltou um rugido e moveu-se com tanta rapidez, que a única coisa que o teria impedido seria um «não». E essa palavra não estava, evidentemente, no vocabulário dela.
Rápido como um relâmpago estava entre as pernas dela, com as mãos a abri-la, o sexo dela escancarado, a gritar na cara do macho para ele se despachar a dominar e
a acasalar.
Ele cedeu. Maldito fosse, mas deixou-se ir e beijou-lhe a essência. E não havia nada de gradual ou gentil no ato. Mergulhou com a boca, sugando-a e lambendo-a, enquanto
ela gritava e lhe arranhava os braços.
Manny veio-se. Violentamente. Apesar do número de vezes que já tinha tido orgasmos ali no quarto, a intoxicação no seu sangue, o sabor doce do sexo dela e a forma
como ela lhe atacava os lábios, esfregando-se, à procura de mais... era tudo de mais!
- Curandeiro... estou... à beira de... não sei o quê...
Manny levou a sua língua pelo sexo dela até ao cimo, retirou-a, e depois voltou a fazê-lo lentamente, minuciosamente, com intenção.
- Continua comigo - suspirou junto a ela. - Vou fazer com que te sintas bem.
Agitando a língua suavemente, levou uma das mãos até à abertura e massajou-a, sem a penetrar, dando-lhe exatamente o que ela queria, à velocidade exata para a deixar
impaciente. Mas iria aprender que aquela antecipação antes da libertação era quase tão boa como o orgasmo que estava prestes a ter.
Meu deus, ela era incrível, o corpo firme a arquear-se, os músculos a ficarem mais tensos, o recorte do queixo a aparecer por trás dos seios perfeitos quando ela
deixou cair a cabeça e atirou as almofadas para fora da cama.
Soube exatamente quando o sexo dela estalou. Payne soltou um suspiro e agarrou o lençol que cobria o colchão, rasgando-o com as unhas à medida que ficava hirta da
cabeça aos pés.
A língua dele entrou.
Só tinha de a penetrar um pouco... e o latejar subtil que sentiu deixou-o tonto.
Quando se certificou de que ela tinha terminado apropriadamente, levantou-se - e quase mordeu os seus próprios lábios. Ela estava tão pronta para ele, brilhante
e luminosa...
De repente, saltou da cama e deu alguns passos de um lado para o outro. O seu membro estava duro e parecia ter crescido para dimensões do Empire State Building e
os testículos estavam azuis da cor do 4 de Julho, tão desesperados pela libertação que tinham as suas próprias banda filarmónica e brigada de fogo-de-artifício.
E não era tudo. Alguma coisa no seu interior lamentava-se por não estar dentro dela... e essa necessidade não tinha só a ver com sexo. Queria marcá-la de alguma
forma, o que não fazia sentido nenhum.
Ressacado, ofegante, no limite, acabou por colocar as mãos abertas nas ombreiras da porta para o corredor e inclinou-se até a cabeça se encostar ao metal. De certa
forma, quase desejava que alguém entrasse e o deixasse inconsciente.
- Curandeiro... continua...
Por um momento, fechou os olhos com força. Não sabia se conseguia voltar a passar por isto. Estava quase a matá-lo não poder...
Forçou-se a levantar a cabeça e a olhar por cima do ombro... e depois percebeu que ela não se estava a referir a sexo. Estava sentada à beira da cama, com as pernas
penduradas a tocarem no chão, o seu brilho a iluminá-la desde o interior. Inicialmente, tudo o que realmente viu foram os seus seios e a forma como estavam pendurados,
cheios e redondos, os mamilos duros com o ar frio do quarto. Mas depois apercebeu-se de que ela estava a rodar os tornozelos, primeiro um, depois o outro.
Certo, estás a ver... isto não teve a ver com sexo, mas com a mobilidade dela.
Percebeste, idiota? disse a si próprio. Isto tinha a ver com ela andar. Sexo como terapia... era bom que ele não se esquecesse isso. Isto não tinha que ver com ele,
nem com o seu membro.
Manny cambaleou, esperando que ela não reparasse nos vestígios do orgasmo que tivera. Mas ele não tinha de se preocupar. Os olhos dela estavam fixos nos pés, intensamente
concentrada.
- Espera... - Teve de aclarar a garganta. - Deixa-me ajudar-te a levantar.
Capítulo 28
As presas de Vishous alongaram-se quando o círculo de assassinos se formou, cercando a entrada do beco. Estes números eram do antigamente, pensou. Pelo menos meia
dúzia, e os colegas matadores tinham-lhes dado as coordenadas. De outro modo, o mhis teria impedido que eles conseguissem ver a carnificina.
Tendo em consideração a sua disposição, a sequência de «olá-como estás?» devia ter sido uma coisa boa.
Problema: a disposição do beco implicava que só havia uma saída - além de dizimar as fileiras dos inimigos - que era a desmaterialização. Regra geral, isso não seria
problema, já que os guerreiros experientes conseguiam, mesmo no auge da batalha, acalmar-se o suficiente para se concentrarem e se desmaterializarem, mas era necessário
que não houvesse ferimentos extensos e não se podiam levar os camaradas que tombavam.
Portanto, Butch estava lixado se aquela merda se descontrolasse. Como era híbrido, estava preso ali, era literalmente incapaz de dispersar as suas moléculas para
local seguro.
V resmungou.
- Não te armes em herói, chui. Deixa que tratemos disto.
- Estás a gozar, não estás? - O olhar furioso foi imediato e seguro. - Preocupa-te contigo próprio.
Não ia acontecer. Não ia perder na mesma noite os dois únicos pontos de referência que tinha.
- Olá, malta - gritou Hollywood para o inimigo. - Vão ficar aí especados ou vamos a isto?
E esse foi o tocar do sino para o início do combate. Os minguantes avançaram e enfrentaram a Irmandade frente-a-frente, punho-a-punho. Para garantir que tinham a
privacidade de que precisavam, V reforçou a sua barreira visual, criando a miragem de que nada acontecia, no caso de algum humano passar por ali.
Enquanto enfrentava um dos inimigos, manteve um olho em Butch. O filho da mãe, naturalmente, estava na posição certa, a dar conta de um caloiro alto e magricela
só com as mãos. Adorava lutar e as cabeças eram os seus sacos de boxe preferidos, mas Vishous queria mesmo que o sacana tivesse aulas de esgrima ou, melhor ainda,
que aprendesse a lançar foguetes dos telhados. Assim, não estaria nem sequer perto da luta. Detestava que o chui estivesse tão perto, porque quem sabia o que podia
saltar de um bolso ou que mal é que fariam a alguém com uma arma ou uma extensão de...
O pontapé veio do nada, voando pelo ar como uma bigorna, acertando mesmo a meio do tronco de V. Enquanto recuava e se encostava de um dos lados, colado à parede
de tijolo do beco, lembrou-se daquilo que ensinavam aos formandos, quando os tinham: regra número um de luta? Tomar atenção ao adversário.
Afinal de contas, podes ter a melhor adaga do mundo mas, e se não a souberes usar? Acabas como uma bola de pingue-pongue. Ou pior.
V encheu os pulmões de ar inspirando profundamente e aproveitou a entrada de oxigénio para saltar em frente e apanhar o segundo pontapé pelo tornozelo com as mãos.
No entanto, o minguante tinha capacidades espetaculares e saiu-se com um movimento à Matrix, apoiando-se nas mãos de V como âncora e rodando no ar. A bota de combate
atingiu V mesmo na orelha, obrigando a sua cabeça a virar-se para o lado, à medida que uma série de tendões e músculos eram fustigados.
Ainda bem que a dor o ajudava sempre a concentrar-se.
Sendo a gravidade o que é, a acrobacia do minguante atingiu o ponto máximo do arco e depois caiu, obrigando-o a pôr as mãos no alcatrão, para evitar bater com a
cara no solo. E, claramente, o sacana esperava que o adversário lhe largasse o pé, devido à dor de cabeça enorme que latejava agora no crânio de V.
Nem pensar. Lamento, querido.
Mesmo com as terríveis pancadas e ruídos sibilantes que resultaram do ataque, V fechou a mão com mais força no tornozelo e virou-o na direção oposta à da pirueta.
Estalo!
Houve qualquer coisa que se partiu ou ficou deslocada e, uma vez que V tinha bem seguros o pé e os ossos inferiores, sabia que era provavelmente o joelho, o perónio
ou a tíbia.
O Sr. Voltas No Ar soltou um grito, mas V ainda não tinha acabado quando o sacana se estatelou no chão. Libertando uma das suas adagas negras, cortou o músculo da
parte traseira da perna e depois pensou em Butch. Acompanhando o corpo que se contorcia, agarrou numa mecha de cabelo, puxou a cabeça para trás e ofereceu ao filho
da mãe um pequeno colar com a sua lâmina.
Virando-se rapidamente, com a adaga a pingar sangue, avaliou os combates à sua volta. Z e Phury estavam a tratar da saúde a um par de minguantes... Tohr estava a
segurar um outro... Rhage estava a brincar com um dos inimigos... Onde estava Butch...
Perto da esquina, o chui tinha deitado um assassino no alcatrão e estava inclinado sobre o rosto dele. Olhavam-se fixamente e a boca aberta e ensanguentada do minguante
estava ativa como a de um peixinho de aquário, abrindo e fechando, como se soubesse que o que estava para acontecer não podia ser bom para si.
A bênção e maldição de Butch entrou em ação, enquanto o chui inspirava profundamente. A transferência começou com um fio de fumo retinto que passou da boca do matador
para a boca de Butch, mas que em breve se transformou num rio daquela merda, a essência de Ómega afunilando-se de um para outro numa corrente doentia.
Quando terminasse, o assassino ficaria reduzido a um mero resíduo de cinzas. E Butch ficaria doente como um cão e tornar-se-ia relativamente indefeso.
V correu, baixando-se para evitar uma estrela de arremesso e atacando violentamente um minguante e devolvendo-o à zona de ataque de Hollywood a rolar pelo chão como
se fosse um pino de bowling.
- O que diabo estás a fazer? - repreendeu Butch, enquanto o levantava da estrada e o arrastava para longe da zona de absorção. - Espera por daqui a um bocado, certo?
Butch enrolou-se para o lado e tentou vomitar, mas sem sucesso. Já estava contaminado, o fedor do inimigo a sair-lhe pelos poros, o corpo a lutar contra a carga
de veneno. Tinha de ser curado ali e agora, mas V não podia correr o risco de...
Mais tarde, admirar-se-ia por ter sido apanhado de surpresa duas vezes na mesma luta.
Mas essa reflexão ainda estava a horas de distância.
O taco de basebol acertou-lhe de lado no joelho e a queda que se seguiu ao embate deixou-o esparramado no chão. Bateu com força no solo, a perna ficou presa debaixo
do seu considerável peso num ângulo que lhe transformava a anca numa bola gritante de agonia sugerindo que o karma podia não ser sobre vingança desde que lutasse
com o pensamento independente. Enquanto sofria um ferimento semelhante ao que infligira a alguém, amaldiçoou-se a si e ao sacana com a Tacada de Louisville e a pontaria
de Johnny-desleal-Damon.
Estava na altura de pensar depressa. Estava caído no chão de costas com uma perna que latejava como um motor em sobreaquecimento. E aquele taco podia causar muitos
estragos...
Butch apareceu vindo do nada, cambaleando com toda a graciosidade de um búfalo ferido, o corpo pesado do sacana a tombar para cima do matador no momento exato em
que o taco já estava acima do ombro, apontado à cabeça de V. Estatelaram-se os dois nos tijolos e, após um segundo de imobilidade, foda-se-aquilo-era-um-míssil,
o minguante foi elevado por Butch no ar como um haltere e arquejou.
Foi como ver ovos a escorregar pelas paredes da cozinha. Os ossos do matador ficaram líquidos e aquela pasta desfez-se na estrada, fazendo com que Butch caísse de
costas com o punhal preto ensanguentado nas mãos.
Tinha esventrado o filho da mãe.
- Estás... bem... - gemeu o chui.
V ficou estupefacto a olhar para o melhor amigo.
Enquanto os outros continuavam a lutar, ficaram os dois a olhar fixamente um para o outro, ouvindo gemidos e sons de metal a bater em metal e insultos criativos
como banda sonora. V pensou que deviam dizer alguma coisa. Mas havia tanto... para ser dito.
- Quero que mo dês - remordeu V - Preciso disso!
Butch assentiu.
- Eu sei.
- Quando?
O chui abanou a cabeça ao ver a perna lixada de V.
- Primeiro curas-te - gemeu Butch e levantou-se. - E com esta, vou buscar o Escalade.
- Tem cuidado. Leva um dos irmãos con...
- Que se lixe isso. Fica quieto.
- Não vou a lado nenhum com o joelho assim, chui.
Butch afastou-se, com passos apenas um pouco mais seguros do que V poderia ter dado com a perna naquele estado. Virando o pescoço, olhou para os outros. Estavam
a vencer. Lenta mas seguramente, a maré virava a seu favor.
Até cinco minutos depois.
Claramente, a segunda vaga tinha chamado reforços e estes também eram novos recrutas, inseguros a lidar com o mhis. Era óbvio que os colegas lhes tinham fornecido
a morada, mas os seus olhos não conseguiam ver nada, a não ser um beco vazio.
Contudo, eles acabariam por ultrapassar o mas-que-raio depressa e penetrar na barreira.
Movendo-se tão depressa quanto podia, V colocou as palmas das mãos no chão e arrastou-se até uma porta embutida na parede. A dor era tão forte que a sua visão ficou
momentaneamente nublada, mas isso não o impediu de tirar a luva e a guardar no bolso.
Desejava como tudo que Butch não voltasse para trás para lutar. Iam precisar de transporte assim que aquilo estivesse terminado.
Quando a vaga seguinte de inimigos avançou, baixou o queixo para o peito e respirou tão suavemente que a caixa torácica mal mexia. Com os cabelos a caírem para o
rosto, os olhos ficavam encobertos e ele conseguiu concentrar-se além do véu negro da investida de assassinos. Considerando o incrível número de novos caloiros,
sabia que a Sociedade estava a recrutar psicopatas e sociopatas de Manhattan. A quantidade possível de recrutas não era suficientemente grande em Caldwell para justificar
este aumento nas forças.
O que funcionaria a favor da Irmandade.
E ele tinha razão.
Quatro dos minguantes foram direitos ao grosso da luta, mas um buldogue com ombros robustos e braços pendurados como os de um gorila veio em direção a V, provavelmente
para verificar se tinha armas.
Vishous esperou pacientemente, sem se mexer, dando a completa aparência de estar pronto para o caixão.
Mesmo quando o sacana se inclinou sobre ele, V ficou imóvel onde estava... um pouco mais perto... mais... perto...
- Surpresa, filho da mãe - rosnou.
Depois agarrou no pulso do inimigo e torceu-o com força.
O assassino caiu como uma pilha de pratos mesmo em cima da perna ferida de V. Mas não tinha importância. A adrenalina era um fantástico analgésico e deu-lhe a força
não só para aguentar a agonia, como também para manter o filho da mãe no sítio.
Levantando a mão brilhante, Vishous abateu a sua maldição sobre o rosto do minguante. Não era necessário esbofeteá-lo ou esmurrá-lo. O simples contacto era suficiente.
E, antes de aterrar, os olhos da presa saltaram-lhe das órbitas e a iluminação tornou os brancos fluorescentes.
- Sim, isto vai doer - rugiu V.
O zumbido e os gritos eram igualmente estridentes, mas só o primeiro permaneceu. Os berros foram substituídos por um fedor horrível, como queijo queimado disperso
no ar com fumo e fuligem. Não demorou mais de um minuto para o poder da sua mão consumir o rosto do assassino, corroendo a carne e os ossos enquanto as pernas do
sacana davam um espasmo e os braços pendiam.
Quando já se tratava de um Cavaleiro Sem Cabeça, V largou-o e deixou-se cair sem forças. Seria excelente tirar o peso do seu joelho magoado, mas simplesmente não
tinha forças.
O seu último pensamento, antes de desmaiar, foi que esperava que os colegas acabassem com aquilo depressa. O mhis não duraria muito se ele não pudesse mantê-lo...
e isso significava que eles iam ficar a lutar em grande escala expostos ao público...
Luzes. Apagadas.
Capítulo 29
Com os pés pendurados da borda da cama, Payne fletiu um e depois o outro vezes sem conta, assombrada com o milagre de pensar em alguma coisa e de ter os membros
a obedecerem-lhe à ordem.
- Toma, veste isto.
Erguendo o olhar, por momentos ficou distraída com a visão da boca do curandeiro. Nem acreditava que eles tinham... que ele tinha... até que ela...
Sim, uma vestes seriam bem-vindas, pensou.
- Não te vou deixar cair - garantiu ele, ao ajudá-la a vestir-se. - Podes apostar a vida.
Acreditava nele.
- Obrigada.
- Tudo bem. - Avançou o braço. - Anda lá... vamos embora.
Mas a gratidão que ela sentia era tão complexa que não podia deixá-la por exprimir.
- Por tudo, curandeiro. Tudo.
Ofereceu-lhe um breve sorriso.
- Estou aqui para te ajudar a melhorar.
- É verdade.
Com isso, Payne ergueu-se cuidadosamente.
A primeira coisa que sentiu foi no chão frio nos seus pés... e depois o peso foi transferido e as coisas descontrolaram-se. Os músculos entraram em convulsão com
a carga que tiveram de suportar e as pernas arquearam-se como penas empurradas. Mas o curandeiro estava pronto para tudo, passando-lhe o braço em torno da cintura
e segurando-a.
- Estou de pé - arquejou ela. - Estou... de pé.
- Podes crer que estás.
A zona inferior do corpo não estava nem de longe como antes, com as coxas e as barrigas das pernas a tremerem a ponto de lhe fazerem bater os joelhos. Mas estava
de pé.
- Agora vamos andar - declarou, cerrando os dentes enquanto sentia pontadas geladas e ferventes a percorrer-lhe os ossos.
- Talvez nas calmas seja...
- Para casa de banho - ordenou ela. - Onde farei as minhas necessidades sem auxílio.
A independência era essencial. Dispor da dignidade simples e profunda de tratar das necessidades do corpo parecia-lhe maná do céu, prova de que certas bênçãos, como
o tempo, eram relativas.
Mas quando tentou avançar, não foi capaz de levantar o pé.
- Muda o peso - sugeriu-lhe o curandeiro enquanto a virava e avançava atrás dela - e eu trato do resto.
Quando ele lhe segurou a cintura, Payne fez o que lhe era ordenado e sentiu uma das mãos dele a agarrarem-lhe a coxa e a erguer-lhe a perna. Sem que lho dissessem,
ela soube como se chegar à frente e assentar suavemente o peso enquanto colocava o joelho na posição correta, limitando a flexão da articulação ao endireitar a perna.
Era um milagre de expressão mecânica, mas não deixava de ser comovente graças à sua lentidão. Caminhou até à casa de banho.
Quando o objetivo foi cumprido, o curandeiro deixou-a em paz na sanita e ela serviu-se do suporte aparafusado à parede como apoio.
Nunca deixou de sorrir, algo profundamente ridículo.
Quando terminou, levantou-se com o auxílio da barra e abriu a porta. O curandeiro estava logo ali, e Payne estendeu-lhe os braços no preciso momento em que ele fez
o mesmo por ela.
- Outra vez para a cama - disse ele, o que era uma ordem. - Vou examinar-te e depois vou arranjar-te umas muletas.
Payne assentiu e depois dirigiu-se lentamente ao colchão. Arquejava quando se deitou, mas estava mais do que satisfeita. Conseguia viver com isso. Estar dormente,
fria e sem se mexer? Era uma sentença de morte.
Fechando os olhos, engoliu em seco entre as golfadas de ar enquanto ele lhe confirmava os sinais vitais com desembaraço.
- A tensão arterial subiu - indicou, enquanto largava o objeto que lembrava uma amarra e que ela bem conhecia. - Mas isso pode ter sido por causa daquilo que nós...
aaa... fizemos. - Pigarreou. Algo que parecia andar a fazer com frequência nos últimos tempos. - Vamos ver as tuas pernas. Quero que te descontraias e que feches
os olhos. Nada de espreitar, se fizeres favor.
Quando ela lhe obedeceu, o curandeiro perguntou:
- Consegues sentir isto?
Franzindo o cenho, Payne vasculhou as várias sensações que lhe percorriam o corpo, desde a suavidade do colchão à brisa fresca no rosto e ao lençol onde apoiava
a mão.
Nada. Ela não sentia...
Sentando-se em pânico, fitou as pernas - e descobriu que ele não lhe estava a tocar. Tinha as mãos ao lado do corpo.
- Enganaste-me.
- Não. Só não estou a partir do princípio de nada... é isso que estou a fazer.
Quando voltou à posição original e mais uma vez fechou os olhos, Payne sentia vontade de praguejar, mas entendia onde ele queria chegar.
- Então e agora?
Abaixo do joelho verificou-se um leve pressionar. Sentia-o na perfeição.
- A tua mão... está na minha perna... - entreabriu uma pálpebra e viu que estava correta. - Sim, estás a tocar-me aí.
- Alguma diferença entre há pouco?
Franziu o sobrolho.
- É um pouco... mais fácil de sentir.
- A melhoria é boa.
Apalpou-lhe o outro lado. Depois subiu quase até à anca. Depois baixou até ao pé. Depois na coxa... no joelho.
- E agora? - perguntou uma última vez.
Esforçou-se por sentir algo na escuridão.
- Agora... não sinto nada.
- Ótimo. Acabámos.
Quando abriu os olhos, Payne fitou-o e sentiu um arrepio estranho a percorrer-lhe o corpo. O que lhes reservaria o futuro? Interrogou-se. Depois daquele período
de sequestro em que se encontrava em convalescença? A incapacidade dela simplificava bastante as coisas, mas isso terminaria se ficasse bem.
Será que depois ele a quereria?
Payne procurou e agarrou-lhe a mão.
- Foste uma bênção que me aconteceu.
- Por causa disto? - Abanou a cabeça. - Isto és tu, bambina. O teu corpo está a curar-se sozinho. É a única explicação. - Inclinando-se para ela, alisou-lhe o cabelo
solto e depositou-lhe um beijo casto na testa. - Agora tens de dormir. Estás exausta.
- Não te vais embora, pois não?
- Não. - Olhou para a cadeira que usara para chegar ao aparelho no teto. - Vou ficar ali.
- Esta cama... é grande o suficiente para nós dois.
Quando o viu hesitar, Payne ficou com a impressão de que algo se modificara nele. Mas acabara de a tratar com tal perfeição erótica e o cheiro dele intensificara-se,
pelo que sabia que ainda estava excitado. Mesmo assim... agora havia uma distância subtil.
- Juntas-te a mim? - pediu ela. - Por favor?
O curandeiro sentou-se na cama ao lado dela e afagou-lhe lenta e ritmadamente o braço. A gentileza demonstrada deixou-a nervosa.
- Não me parece que seja boa ideia - murmurou.
- Mas por que não?
- Acho que será melhor para todos se a forma como estás a ser tratada ficar entre nós.
- Oh.
- O teu irmão trouxe-me até cá porque ele faria qualquer coisa para que melhorasses. Mas há uma grande diferença entre a teoria e a prática. Se ele chegar e nos
vir juntos na cama vamos estar a acrescentar mais um problema ao monte.
- E se eu te disser que não me interessa aquilo que ele pensa?
- Pedia-te que fosses com calma com ele. - O curandeiro encolheu os ombros. - Vou ser muito sincero contigo. Não sou grande fã dele... mas por outro lado, o teu
irmão sofre contigo.
Payne respirou fundo e pensou, Oh, se fosse só isso.
- A culpa é minha.
- Não pediste para ser lesionada.
- Não me refiro à lesão... a consternação do meu irmão. Antes da tua chegada solicitei-lhe algo que não deveria ter pedido, e depois juntei a isso... - Trespassou
o ar com a mão. - Sou uma maldição que se veio interpor entre ele e a companheira. Por minha fé, sou uma maldição.
O facto de não ter fé na benevolência do destino talvez fosse compreensível, mas o que fizera ao pedir a Jane que a ajudasse era imperdoável. O interlúdio com o
curandeiro fora uma revelação e uma bênção sem par, mas agora só conseguia pensar no irmão e na shellan dele... e nas repercussões da sua cobardia egoísta.
Estremeceu, praguejando.
- Preciso de falar com o meu irmão.
- Está bem. Vou chamá-lo.
- Por favor.
O curandeiro levantou-se e dirigiu-se à saída. Fez uma pausa com a mão na maçaneta.
- Preciso de saber uma coisa.
- Pergunta e dir-te-ei tudo.
- O que aconteceu imediatamente antes de ter sido trazido outra vez até ti. Porque é que o teu irmão me foi buscar.
Nenhuma das duas frases tinha sido entoada como questão, o que a levava a pensar que ele poderia bem imaginar.
- Isso é um assunto entre min e o meu irmão.
O curandeiro semicerrou os olhos.
- O que fizeste?
Payne suspirou e remexeu no cobertor.
- Diz-me, curandeiro, se não tivesses esperança de voltares a levantar-te da cama e não fosses capaz de encontrar uma arma, o que farias?
Fechou as pálpebras por um breve instante. Depois abriu a porta.
- Vou à procura do teu irmão.
Quando Payne ficou sozinha com as suas lamentações, resistiu ao impulso de praguejar. De atirar coisas. De gritar às paredes. Naquela noite da sua ressurreição deveria
estar extasiada, mas o curandeiro dela estava distante, o irmão estava exasperado e ela receava bastante o futuro.
Mas esse estado não durou muito.
Enquanto a mente fervilhava, a exaustão física em breve lhe dominou o raciocínio e foi arrastada para um buraco negro sem sonhos que a consumiu, de corpo e alma.
O derradeiro pensamento antes de tudo ficar negro e de os sons deixarem de se fazer ouvir, foi que esperava poder reparar tudo.
E, de alguma forma, ficar para sempre com o seu curandeiro.
No corredor, Manny encostou-se à parede e esfregou o rosto.
Não era idiota, por isso, no fundo, imaginava o que teria acontecido. Apenas o vislumbre do verdadeiro desespero teria levado aquele vampiro de mau-feitio a ir buscá-lo
ao mundo humano. Mas, Cristo... e se ele não tivesse sido encontrado a tempo? E se o irmão dela tivesse esperado ou...
- Que porra.
Afastando-se da parede, dirigiu-se à sala de materiais e vestiu roupas lavadas, deixando as outras no cesto de roupa suja. A sala de observações foi a sua primeira
paragem, mas Jane não se encontrava aí, pelo que avançou um pouco mais, até ao escritório com a porta de vidro.
Ninguém.
No corredor ouviu as mesmas pancadas que já escutara na sala de treino, e espreitou lá para dentro, sendo brindado com a visão de um tipo de cabelo quase rapado
que corria numa passadeira como se a vida dele dependesse disso. O suor pingava literalmente do filho da puta, que tinha um corpo tão escanzelado que quase doía
olhar para ele.
Manny recuou. Não valia a pena fazer perguntas àquele cabrão.
- Estás à minha procura?
Manny virou-se na direção de Jane.
- Na altura certa... a Payne precisa de falar com o irmão. Sabes onde ele está?
- Saiu para combater, mas regressa imediatamente antes da alvorada. Passa-se alguma coisa?
Sentiu-se tentado a responder, Diz-me tu, mas resistiu.
- Isso é entre eles. Basicamente, só sei que ela quer falar com o irmão.
Jane desviou o olhar.
- Está bem. Bem, eu digo-lhe. Como é que ela está?
- Andou.
Jane virou a cabeça.
- Sozinha?
- Com pouca ajuda. Tens equipamento? Muletas? Esse tipo de coisas?
- Vem comigo.
Levou-o pelo ginásio de dimensão profissional e depois até uma sala de equipamento. No entanto, não encontraram aí bolas de basquete ou de voleibol ou cordas para
saltar. Em prateleiras viam-se centenas de armas: facas, estrelas de arremesso, espadas, matracas.
- Mas que raio de aulas de ginástica vocês devem ter.
- É para o programa de treino.
- Formação das gerações seguintes, hein?
- Eram... até às incursões.
Passaram pelo material digno de Bruce Willis e do Arnaldo e ela abriu uma porta assinalada com TF, onde lhe mostrou uma sala de fisioterapia dotada de tudo o que
um atleta profissional precisaria para se manter em topo de forma.
- Incursões?
- A Sociedade dos Minguantes chacinou dezenas de famílias - explicou ela -, e o que restou da população fugiu de Caldwell. Estão a regressar aos poucos, mas as coisas
ultimamente têm corrido mal.
Manny franziu o cenho.
- O que raio é a Sociedade dos Minguantes?
- A verdadeira ameaça não vem dos humanos. - Jane abriu um armário e mostrou-lhe vários tipos de muletas, bengalas e suportes. - O que procuras?
- É isso que o teu homem passa as noites a combater?
- Sim. É isso. Agora, o que é que precisas?
Manny fitou-lhe o perfil e somou dois mais dois.
- Ela pediu-te que a ajudasses a matar-se, não foi?
Jane fechou os olhos.
- Manny... sem ofensa, mas não tenho forças para essa conversa.
- Foi isso que aconteceu.
- Em parte. Grande parte.
- Ela já está melhor - indicou Manny bruscamente. - Vai ficar bem.
- Então está a resultar. - Jane esboçou um sorriso. - O toque mágico e isso tudo.
Manny pigarreou e resistiu ao impulso de bater o pé como um adolescente apanhado aos beijos.
- Pois. Imagino. Ah, acho que vou levar um par de aparelhos e outro de muletas... acho que serve para ela.
Enquanto Manny retirava o equipamento, os olhos de Jane não o largaram. A tal ponto que ele teve de resmungar:
- Antes que perguntes, não.
Jane riu-se baixinho.
- Não sabia que tinha uma pergunta.
- Não vou ficar. Vou deixá-la de pé e a andar e depois regresso.
- Por acaso não estava a pensar nisso. - Franziu o sobrolho. - Mas podias ficar por aí, sabes? Já aconteceu. Eu. O Butch. A Beth. E pensei que gostasses dela.
- «Gostar» nem sequer começa a descrever o que sinto - disse Manny, entredentes.
- Então não faças planos até isto acabar.
Manny abanou a cabeça.
- Tenho uma carreira prestes a ir por água abaixo... por culpa, já agora, das coisas que vocês têm andado a fazer ao meu cérebro. Tenho uma mãe que não gosta por
aí além de mim, mas que mesmo assim vai ficar inquieta por não ter notícias minhas nas datas especiais. E tenho um cavalo que não está em grande forma. Estás a dizer-me
que o teu menino e os companheiros dele não se importam que eu tenha um pé em cada mundo? Não me parece. Além disso, o que raio é que eu ia fazer comigo? Estar ao
serviço dela é um prazer, a sério... mas não gostava de fazer disso uma profissão, nem queria que ela acabasse com alguém como eu.
- O que se passa de errado contigo? - Jane cruzou os braços sobre o peito. - Não é por nada, mas és uma pessoa espetacular.
- Isso é que é fugir aos pormenores.
- As coisas podem resolver-se.
- Está bem, imaginemos que sim. Agora responde-me a uma coisa... durante quanto tempo é que vivem?
- Desculpa?
- A esperança de vida dos vampiros. Qual é?
- Depende.
- Por décadas ou por séculos? - Não tendo uma resposta da parte dela, Manny aquiesceu. - É o que eu pensava... talvez eu seja útil durante mais, o quê, quarenta
anos? E a decadência vai começar daqui a uns dez. Já tenho dores todas as manhãs e o início de artrite na anca. Ela precisa de alguém da própria espécie por quem
se apaixonar, e não de um humano que num abrir e fechar de olhos se vai tornar um doente geriátrico. - Volto a abanar a cabeça. - O amor vence tudo menos a realidade,
que acaba sempre por ser a vencedora.
O riso dela tinha agora um toque de nervosismo.
- Pois, não tenho argumentos contra isso.
Manny olhou para os aparelhos.
- Obrigado por isto.
- Não tens de quê - respondeu Jane lentamente. - E vou informar o V.
- Boa.
De regresso ao quarto de Payne, Manny entrou silenciosamente e parou na entrada. Ela estava a dormir à luz débil, já sem brilho na pele. Voltaria a acordar paralisada?
Ou será que as melhoras continuariam com ela?
Parecia que teria de o descobrir.
Encostando as muletas e os aparelhos à parede, dirigiu-se à cadeira junto à cama e sentou-se, cruzando as pernas e tentando encontrar uma posição confortável. Nem
pensar em dormir. Só queria vê-la...
- Junta-te a mim - disse ela, quebrando o silêncio. - Por favor. Preciso do teu calor.
Permanecendo onde estava, Manny apercebeu-se de que a vigilância sentado nada tinha que ver com o irmão. Era um mecanismo que lhe permitia ficar separado dela sempre
que possível. Iam de certeza voltar a juntar-se, provavelmente em breve. E se fosse preciso, ele trabalhá-la-ia durante horas. Mas não podia dar-se ao luxo de se
perder na fantasia de que poderia haver algo de permanente entre eles.
Dois mundos diferentes.
Ele não podia ficar com ela.
Manny chegou-se à frente, agarrou-lhe a mão e afagou-lhe o braço.
- Shiu... estou aqui.
Quando Payne virou a cabeça na direção dele tinha os olhos fechados, e Manny teve a impressão que ela estaria a falar durante o sono.
- Não me deixes, curandeiro.
- O meu nome é Manny - murmurou. - Doutor Manuel Manello.
Capítulo 30
O assobio soou forte e agudo e, quando ecoou pelo átrio da mansão, Qhuinn percebeu que fora feito por John Matthew.
Já o ouvira vezes suficientes ao longo dos últimos três anos.
Detendo-se com um pé no primeiro degrau da grande escadaria, limpou o rosto suado com a camisola amarfanhada e depois apoiou-se na impressionante balaustrada entalhada.
Depois do treino tinha a cabeça leve como uma almofada - algo que contrastava grandemente com o resto do corpo. As pernas e o rabo pareciam pesar-lhe tanto como
a malfadada mansão...
Quando o assobio voltou a fazer-se ouvir, pensou que havia alguém que queria falar com ele. Dando meia volta foi brindado com a visão de John Matthew de pé, entre
as ombreiras ornamentadas da porta da sala de jantar.
O que é que andaste a fazer contigo, gesticulou o tipo, antes de apontar para a própria cabeça.
Ora, vejam só esta merda, pensou Qhuinn. No passado, uma pergunta daquelas abrangeria muito mais do que uma mudança de penteado.
- Chama-se aparar.
De certeza? Quer-me parecer que se chama grande confusão.
Qhuinn esfregou a cabeça com o corte rente que fizera.
- Nada de mais.
Pelo menos sabes que os chinós são uma opção. John semicerrou os olhos azuis. E onde está o teu metal?
- No armário das armas.
Não estou a falar das tuas armas, mas sim das merdas que tinhas na cara.
Qhuinn limitou-se a abanar a cabeça e deu meia volta, fazendo menção de sair dali, sem qualquer vontade de discutir os piercings que tinha tirado. Tinha o cérebro
às voltas e o corpo exausto, dorido por causa das corridas diárias...
O assobio soou outra vez e quase o fez mandar o outro à merda por cima do ombro. No entanto, refreou-se, pois isso pouparia tempo. Quando estava com aquele espírito,
John nunca desistia.
Olhando para trás, resmungou:
- O que foi?
Tens de comer mais. Quer seja às refeições ou sozinho. Estás a transformar-te num esqueleto...
- Estou bem...
...por isso, ou começas a comer, ou então mando fechar o ginásio e não te dou a chave. A escolha é tua. E mandei chamar a Layla. Ela está à tua espera no teu quarto.
Qhuinn virou-se completamente. Má ideia. O átrio transformou-se num carrossel. Voltando a agarrar-se à balaustrada, cuspiu:
- Eu podia ter feito isso.
Mas não ias fazer, por isso fi-lo por ti. É a minha boa ação da semana, já que não matei uma dúzia de minguantes.
- Se queres ser a Madre Teresa, mais vale praticares essas merdas com outro gajo.
Desculpa. Saíste tu na rifa e é melhor despachares-te... não vais deixar uma senhora à espera. Ah, e enquanto eu e a Xhex estávamos na cozinha, pedi ao Fritz que
te preparasse uma refeição e a levasse lá acima. Até logo.
Quando o tipo se afastou na direção da copa do mordomo, Qhuinn gritou-lhe:
- Não quero que me salvem, palerma. Sei bem cuidar de mim.
A resposta de John foi um dedo médio levantado acima da cabeça.
- Ah, pelo amor de Deus - resmungou Qhuinn.
Não queria de todo ter de lidar com Layla naquele momento.
Não tinha nada contra a Escolhida, mas a ideia de estar num espaço fechado com alguém interessado em sexo deixava-o de pé atrás. O que era uma ironia do caraças.
Até àquela altura, o sexo não se limitara a fazer parte da sua vida, era algo que praticamente o definia. Mas durante a última semana... Pensar em estar com alguém
deixava-o nauseado.
Cristo, se continuasse assim, a última pessoa com quem estaria na vida teria sido um ruivo. Mas que grande piada. Era óbvio que a Virgem Escrivã tinha um sentido
de humor fodido.
Enquanto se obrigava a subir as escadas, sentia-se pronto a dizer a Layla de forma tão educada quanto possível que ela tinha de ir à sua vida...
A tontura que sentiu no segundo patamar fê-lo parar.
Ao longo das últimas sete noites, habituara-se à sensação de cabeça a pairar trazida tanto por correr muito como por comer pouco, e estava sempre à espera desse
desinteresse de viciado. Era mais barato do que beber e nunca desaparecia, pelo menos até comer.
Aquilo era algo diferente. Sentia-se como se o tivessem empurrado pelas costas e arrebatado as pernas. Mas a sua linha de visão dizia-lhe que ainda estava de pé,
a par do facto de ter as ancas contra a balaustrada...
De repente, um dos joelhos cedeu e Qhuinn foi ao chão como um livro a cair de uma estante.
Estendeu a mão e içou-se sobre o corrimão, até ficar praticamente lá pendurado. Lançou um olhar furioso à perna e estendeu-a algumas vezes enquanto respirava fundo,
à espera que o corpo voltasse a funcionar.
Isso não aconteceu.
Em vez disso, deixou-se escorregar e teve de se virar, pelo que parecia que estava apenas a fazer um agachamento no tapete vermelho-sangue. Parecia incapaz de respirar...
ou melhor, estava a respirar, mas isso não lhe servia de nada. Raios... partam... Recompõe-te...
Grande merda.
- Meu senhor? - ouviu, acima dele.
Grande merda duas vezes.
Ao fechar os olhos, pensou que o facto de Layla ter aparecido naquele preciso momento era a puta da Lei de Murphy em toda a sua glória.
- Meu senhor, posso ajudar?
Claro que talvez isso tivesse um lado positivo. Antes ela do que um dos Irmãos.
- Sim. Tenho o joelho lesionado. Magoei-o a correr.
Olhou para cima enquanto a Escolhida se aproximava, as vestes brancas num contraste profundo com a cor do tapete e o brilho dourado da decoração presente no átrio.
Sentindo-se um idiota quando ela estendia as mãos na sua direção, tentou levantar-se... mas não foi a lado nenhum.
- Eu, aaa... deixa-me avisar-te que sou pesado.
Aquela mão graciosa segurou na dele e Qhuinn ficou espantado ao descobrir que tinha os dedos a tremer quando aceitou a ajuda. Também ficou espantado por ser levantado
de uma vez só.
- És forte - comentou quando o braço dela lhe contornou a cintura e o ergueu.
- Vamos juntos.
- Desculpa estar transpirado.
- Não me importo.
E com essas palavras partiram. Deslocando-se lentamente, subiram as escadas e dirigiram-se ao corredor do primeiro andar, passando por uma série de portas abençoadamente
fechadas. A do estúdio de Wrath. A do quarto de Tohrment. A do quarto de Blay, não ia olhar para lá. A do quarto de Saxton, não ia derrubá-la e atirar o primo pela
janela. A do quarto John Matthew e Xhex.
- Vou abrir o caminho - disse a Escolhida quando pararam à frente do seu quarto.
Por causa do tamanho dele tiveram de se virar de lado para passar pelas ombreiras, e ficou grato quando ela fechou a porta e o levou até à cama. Ninguém precisava
de saber o que se passava e era possível que a Escolhida aceitasse aquela desculpa esfarrapara que ele apresentara.
O plano era sentar-se. Mas assim que ela o largou, Qhuinn caiu de costas sobre o colchão. Ao olhar para o corpo, interrogou-se por que não seria capaz de ver o carro
que tinha estacionado em cima. Garantidamente não era um Mini. Mais parecia a porra de um Chevy Tahoe.
Pois, era mais uma Suburban.
- Aaa... olha, importas-te de ir ao meu blusão de cabedal? Tenho lá uma barra de proteínas.
De repente, junto à porta ouviu-se o raspar de porcelana em metal. E depois sentiu-se o cheiro de algo comestível.
- Talvez queiras um pouco desta carne assada?
Sentiu o estômago a contrair-se como um punho.
- Cristo... não...
- Há arroz.
- Só... uma daquelas barras...
Um chiar discreto sugeriu que ela estaria a aproximar o tabuleiro, e logo a seguir foi brindado com muito mais do que um travo daquilo que Fritz prepara.
- Para... não, porra... - Inclinou-se e vomitou em seco para um balde de lixo. - A comida... não...
- Tens de comer - ouviu ele a resposta, surpreendentemente forte. - E eu vou alimentar-te.
- Nem te atrevas...
- Toma. - Em vez de carne ou arroz, foi oferecido um pequeno naco de pão. - Abre. Precisas de comida. John Matthew assim o disse.
Recostando-se contra as almofadas, Qhuinn tapou o rosto com o braço. Tinha o coração aos pulos atrás do esterno e a um certo nível obscuro, percebeu que se continuasse
assim ainda acabava por morrer.
Era engraçado, mas a ideia não lhe parecia má de todo. Especialmente quando se lembrou do rosto de Blay.
Tão belo. Tão profundamente belo. Parecia tolo e efeminado chamar isso ao tipo, mas era assim que ele era. O problema eram aqueles lábios... agradáveis e macios.
Ou talvez os olhos? Tão azuis.
Beijara aquela boca e adorara-o. Vira aqueles olhos a perderem a razão.
Podia ter tido Blay primeiro... e só. Mas em vez disso? Aquele seu primo...
- Ah... Jesus... - gemeu.
- Meu senhor. Coma.
Sem energia para lutar contra o que quer que fosse, fez o que lhe mandavam, abrindo a boca, mastigando mecanicamente, engolindo com a sua garganta seca. E depois
repetiu. E outra vez. Afinal de contas, os hidratos de carbono acalmaram-lhe a zona de turbulência no estômago, e mais depressa do que julgara ser possível, começou
a desejar algo um pouco mais substancial. No entanto, na ementa seguiu-se apenas um pouco de água, com Layla a segurar-lhe a garrafa, enquanto ele dava pequenos
goles.
- Talvez devêssemos fazer uma pausa - aventou Qhuinn, impedindo mais um pedaço de pão, para o caso de a maré vir a mudar.
Quando rebolou para ficar de lado, sentiu os ossos das pernas a baterem uns nos outros e apercebeu-se de que o braço pendia de forma diferente sobre o peito. Tinha
menos peitoral a incomodar. Os calções da Nike também estavam largos na cintura.
Fizera todos esses estragos em sete dias.
Àquele ritmo, rapidamente deixaria de parecer ele.
Que se lixasse isso, pois já não parecia. Tal como John Matthew fizera questão de apontar, não só rapara a cabeça, como retirara o piercing que tinha na sobrancelha,
o do lábio inferior e a dúzia, mais ou menos, que tinha nas orelhas. Também retirara as argolas nos mamilos. Ainda tinha o piercing na língua e as tretas lá mais
em baixo, mas tudo quanto era visível desaparecera de vez.
Estava farto de si próprio a muitos níveis. Estava farto de ser o excêntrico de serviço. Estava farto da sua reputação de puta.
E perdera o interesse em rebelar-se contra um monte de mortos. Pelo amor de Deus, não precisava de um psiquiatra para lhe explicar o subconsciente por trás daquilo.
A família sempre fora perfeita e conservadora, à imagem da glymera e o pagamento fora uma puta bissexual com um guarda-roupa gótico e um fetiche por agulhas. Mas
quanta dessa merda era mesmo ele e quanto se baseava num motim por causa de olhos desemparceirados?
Quem é que ele era, afinal de contas?
- Mais um pouco? - perguntou Layla.
A questão era exatamente essa.
Quando a Escolhida avançou com a baguete, Qhuinn decidiu acabar com as merdas. Abrindo a boca, armou-se em forte e comeu aquela treta. E depois mais um pouco. Então,
como se lhe estivesse a ler os pensamentos, Layla levou-lhe um garfo de prata com um pouco de carne aos lábios.
- Vamos experimentar isto, meu senhor... Mas mastiga devagar.
Nem pensar. De repente, o importante era não morrer à fome e armou-se em T-Rex com a carne, quase fazendo faíscas com a pressa. Mas Layla estava atenta, dando-lhe
mais uma garfada assim que ele estava a postos para a receber.
- Espera... para - resmungou Qhuinn, receando poder vomitar.
Voltou a recostar-se e pousou uma mão no peito. Foi a respiração superficial que o salvou. Qualquer coisa um pouco mais profunda e ia despejar em tecnicolor por
cima de si.
O rosto de Layla surgiu por cima do dele.
- Senhor... talvez devêssemos parar.
Qhuinn semicerrou os olhos e observou-a devidamente pela primeira vez desde que ela aparecera.
Cristo, ela era uma maravilha, todo aquele cabelo louro claro apanhado no cimo da cabeça, o rosto de uma perfeição espantosa. Com lábios de morango e olhos verdes
luminosos à luz do candeeiro, era tudo o que a raça valorizava a nível de ADN... nem um defeito à vista.
Levantou a mão e tocou-lhe no cabelo. Tão macio. Nada de laca, era como se as ondas do cabelo soubessem que o seu dever era enquadrar-lhe as feições e estivessem
ansiosas por dar o seu melhor.
- Senhor? - disse, ao retesar-se.
Qhuinn sabia o que estava debaixo daquelas vestes. Os seios eram absolutamente espantosos e a barriga lisa como uma tábua... e as ancas e o sexo macio como seda
entre as coxas eram o tipo de coisas pelas quais um macho nu andaria sobre vidros partidos.
Sabia desses pormenores pois já os vira a todos, tocara em muito e levara a boca a alguns pontos selecionados.
Mas não a tomara. Também não fora muito longe. Enquanto ehros, ela fora treinada para o sexo, mas sem um Primacho que servisse as Escolhidas dessa forma, ela só
tinha conhecimentos académicos, sem prática no «terreno», por assim dizer. Durante algum tempo, ele não se importara de lhe mostrar alguns princípios.
O problema era que não lhe parecera adequado.
Para ela muito daquilo estava bem, mas os seus olhos tinham demasiado e o coração dele muito pouco para que as coisas continuassem.
- Tomas a minha veia, senhor? - murmurou ela, num tom rouco.
Qhuinn limitou-se a fitá-la.
Aqueles lábios vermelhos entreabriram-se.
- Senhor, vais... tomar-me?
Fechando os olhos, viu mais uma vez o rosto de Blay... mas não como era agora. Não o estranho frio que Qhuinn criara. O antigo Blay, com os olhos azuis que pareciam
estar sempre virados na direção dele.
- Senhor... sou tua para que me tomes. Ainda. Sempre.
Quando finalmente voltou a olhar para Layla, os dedos dela estavam nas lapelas das vestes e afastara as duas partes, mostrando-lhe o pescoço comprido e elegante,
as pontas das clavículas e todo o decote glorioso.
- Senhor... quero servir-te. - Afastando ainda mais o tecido acetinado, ofereceu-lhe não só a veia, mas todo o corpo. - Toma-me.
Qhuinn deteve-lhe as mãos a caminho do laço à cintura.
- Para.
Os olhos dela baixaram até ao edredão e pareceu transformar-se em pedra. Pelo menos pareceu libertar-se daquele encanto e ajeitou grosseiramente as vestes.
- Então vais tomar a minha veia. - Tinha a mão a tremer quando puxou a manga e estendeu o braço. - Toma do meu pulso aquilo de que obviamente precisas.
Não o olhou. O mais provável era que não conseguisse.
Ainda assim, ali estava ela... silenciada por uma desonra que não merecera e que ele nunca pretendera causar-lhe... ainda assim a oferecer-se, não de uma forma patética,
mas por ter nascido e sido criada para cumprir um objetivo que nada tinha a ver com o que ela queria e tudo a ver com as expectativas sociais... e estava determinada
a manter esse padrão. Mesmo que não fosse desejada por quem era.
Cristo, ele bem sabia como era isso.
- Layla...
- Não te desculpes, senhor. Isso menospreza-me.
Segurou-lhe no braço, pois teve a impressão de que ela estava prestes a levantar-se.
- Olha, a culpa disto é minha. Nunca devia ter avançado sexualmente contigo...
- E eu digo-te «para». - Tinha as costas hirtas e a voz estridente. - Larga-me, por favor.
Qhuinn franziu o cenho.
- Porra... estás fria.
- Estou?
- Sim. - Percorreu-lhe o braço com a mão. - Precisas de te alimentar? Layla? Estás a ouvir?
- Estive no Outro Lado, no Santuário, por isso, não.
Bem, era de acreditar. Se uma Escolhida lá estivesse, existia sem existir, tendo as necessidades de sangue suspensas e aparentemente saciadas. Durante os últimos
anos, Layla fora a única a servir os Irmãos que não podiam alimentar-se das suas shellans. Era a Escolhida que todos procuravam.
Depois ocorreu-lhe.
- Espera, não tens ido ao norte?
Agora que Phury libertara as Escolhidas da sua existência rígida e limitada, a maioria deixara o Santuário onde tinham passado uma eternidade presas e foram para
o grande campo nas Adirondack, para aprenderem sobre as liberdades da vida deste lado.
- Layla?
- Não, já lá não vou.
- Porquê?
- Não posso. - Ignorou a conversa e voltou a arregaçar a manga. - Senhor? Vais tomar-me a veia?
- Porque é que não vais lá?
Os olhos deles cruzaram-se finalmente e os dela estavam claramente irritados. O que era um alívio estranho. O facto de ela aceitar tudo sem o questionar fazia-o
pôr em causa a inteligência dela. Mas agora com aquela expressão? Havia muita coisa por baixo daquelas vestes que envergava, e ele não se referia apenas ao seu corpo
perfeito.
- Layla. Responde-me. Porque não?
- Não posso.
- Diz quem? - Qhuinn e Phury não eram muito chegados, mas conhecia o Irmão o suficiente para ir até ele com um problema. - Quem?
- Não é um quem, e não te preocupes. - Apontou para o pulso. - Toma-me para que possas ficar tão forte quanto precisas e depois deixar-te-ei em paz.
- Está bem, se é uma questão de palavras... o que é?
A frustração encheu-lhe o rosto.
- Isso não é uma questão para ti.
- Eu decido o que são questões para mim. - Não era adepto da brutalização de fêmeas, mas ao que parecia, o cavalheiro adormecido no seu interior tinha acordado maldisposto.
- Fala comigo.
Seria a última pessoa a pôr na mesa a carta do partilhar/cuidar, mas ali estava ele a apresentá-la. O que se passava era que não suportaria que algo magoasse aquela
fêmea.
- Está bem. - Ergueu as mãos ao céu. - Se me dirigir para norte, não vos posso saciar a necessidade de sangue. Por isso, vou para o Santuário até recuperar e espero
que me convoquem. Depois venho a este lado para vos servir e, em seguida, preciso de regressar. Por isso, não, não posso ir para as montanhas.
- Jesus... - Que bando de aproveitadores eles eram. Deviam ter antecipado esse problema, ou pelo menos Phury devia tê-lo previsto. A menos que... - Já falaste com
o Primacho?
- E sobre o quê, ao certo? - redarguiu ela. - Diz-me, senhor, terias pressa de apresentar ao teu rei os fracassos sofridos no campo?
- Como raios estás tu a falhar? Estás a manter quatro de nós.
- Exatamente. E estou a servi-los a todos com uma capacidade muito limitada.
Layla levantou-se de repente e dirigiu-se à janela. Quando olhou para o exterior, Qhuinn desejou poder querê-la. Naquele momento, daria tudo para sentir por ela
o que a Escolhida sentia por ele, afinal de contas, ela era tudo o que a família dele valorizava, o auge social de uma fêmea. E queria-o.
Mas quando olhava para o seu íntimo, havia outro no coração. E nada alteraria isso. Nunca... segundo receava.
- Não sei quem ou o que sou, ao certo - continuou Layla, como se falasse para consigo.
Bem, nesse ponto, parecia que ambos estavam no mesmo barco sem rumo.
- Só o vais descobrir se deixares o Santuário.
- É impossível, pois estou ao serviço...
- Usamos outra. Tão simples quanto isso.
Ouviu uma inalação profunda e depois:
- Mas é claro. Farão como desejarem.
Qhuinn fitou a linha dura do queixo dela.
- Isto era para te ajudar.
A Escolhida lançou um olhar gelado sobre o ombro.
- Não ajuda... pois assim deixar-me-ão sem nada. É a vossa escolha, mas as minhas consequências.
- A vida é tua. Podes escolher.
- Não falaremos mais acerca disto. - Levantou as mãos. - Querida Virgem Escrivã, não fazes ideia do que é desejar uma coisa que o destino não quer que tenhas.
Qhuinn soltou uma gargalhada dura.
- Uma porra é que não sei. - Quando as sobrancelhas dela se ergueram, Qhuinn revirou os olhos. - Tu e eu temos muito mais em comum do que imaginas.
- Dispões de toda a liberdade do mundo. O que poderias querer?
- Acredita.
- Bem, eu quero-te a ti e não te posso ter. A escolha não é minha. Pelo menos ao servir-te e aos outros, tenho algum objetivo que não o lamentar a perda de algo
com que sonhei.
Qhuinn respirou fundo, com a plena consciência de que tinha de respeitar a fêmea. O que se passava junto à janela não era um ato de autocomiseração. Estava unicamente
a constatar factos.
Porra, ela era exatamente o tipo de shellan com que sempre sonhara. Mesmo quando andava a foder tudo o que se mexia, no fundo sempre se imaginara com uma fêmea a
longo prazo. Uma com uma ascendência impecável e muita classe, o tipo de fêmea que os pais dele não só aprovariam, mas que também os levariam a mostrar-lhe um pouco
de respeito por a ter conseguido.
Fora esse o seu sonho. Mas agora que essa fêmea lhe aparecera... agora que a tinha ali no seu quarto, a olhá-lo no rosto... queria outra coisa completamente diferente.
- Quem me dera sentir alguma coisa profunda por ti - admitiu ele, retribuindo-lhe a sinceridade. - Faria quase tudo para sentir por ti aquilo que devia. Tu és...
a minha fêmea de sonho. Tudo o que sempre quis, mas pensei que nunca poderia ter.
Os olhos dela arregalaram-se como duas luas, belas e luminosas.
- Então porque é que...
Qhuinn esfregou o rosto e interrogou-se que porra estaria a dizer.
Que porra estaria a fazer.
Quando baixou as mãos, ficou para trás algo húmido, algo em que se recusou a pensar muito.
- Estou apaixonado - disse, num tom rouco. - Por outra pessoa. É por isso.
Capítulo 31
Agitação no corredor. Passos apressados... palavrões... a pancada seca esporádica.
Todo esse barulho acordou Manny, e ele passou do sono dos justos para a plena consciência num ápice, quando a parada de sons passou pelo corredor. O distúrbio continuou
a avançar até ser abruptamente interrompido, como se alguém tivesse fechado a porta do espetáculo. O que quer que ele fosse.
Endireitou-se, levantando a cabeça da cama de Payne, e olhou para a sua paciente. Linda. Simplesmente linda. E a dormir tranquilamente.
O raio de luz acertou-lhe em cheio no rosto.
A voz de Jane estava tensa quando ela se postou na ombreira da porta, uma silhueta negra dela.
- Preciso de outro par de mãos aqui fora. Já.
Não foi preciso dizer duas vezes. Manny saltou para a porta, e o cirurgião aprontou-se para o trabalho, sem fazer perguntas.
- O que temos aqui?
Ao avançarem rapidamente, Jane esfregou a bata tingida de vermelho.
- Trauma múltiplo. Muitas facadas, um tiro. E vem aí mais outro.
Entraram de rompante na sala de observações e raios... partam... havia homens feridos por todo o lado, de pé ao canto, apoiados na mesa, inclinados sobre a bancada,
praguejando a cada passo. Elena ou Elaina, a enfermeira, estava ocupada a procurar bisturis e fio em grandes quantidades, e havia um velhote que trazia água para
toda a gente num tabuleiro de prata.
- Ainda não fiz a triagem - disse Jane. - São demasiados.
- Onde é que há um estetoscópio e medidor de tensão?
Ela dirigiu-se a um armário, puxou uma gaveta, e atirou ambos.
- A tensão arterial é muito mais baixa do que estás habituado. Tal como o ritmo cardíaco.
O que significava que, como profissional clínico, ele não tinha uma forma válida de perceber se alguém estava em sarilhos ou não.
Pôs de parte o equipamento.
- Tu e a enfermeira que façam as avaliações. Eu trato dos preparativos.
- Se calhar é melhor - concordou Jane.
Manny foi ter com a enfermeira loura que estava a trabalhar eficientemente com os materiais.
- Agora tomo eu conta disto. Ajuda a Jane com as observações.
Ela assentiu e foi logo recolher sinais vitais.
Manny abriu gavetas e sacou instrumentos cirúrgicos, alinhando-os nas bancadas. Os analgésicos estavam num armário ao alto, as seringas logo em baixo. Ao passar
por tudo, ficou impressionado pela qualidade profissional. Não sabia como Jane tinha conseguido, mas era tudo de qualidade hospitalar.
Dez minutos depois, Jane, ele, e a enfermeira encontraram-se no meio da sala.
- Temos dois em mau estado - indicou Jane. - O Rhage e o Phury estão ambos a perder muito sangue... tenho medo que as artérias deles tenham rompido porque aqueles
malditos cortes são demasiado fundos. O Z e o Tohr precisam de radiografias, e julgo que o Blaylock tem um traumatismo craniano além daquele golpe enorme na barriga.
Manny foi até ao lavatório e começou a esfregar as mãos.
- Vamos lá tratar disto. - Olhou em redor e apontou para o sacana louro gigantesco com uma poça de sangue por baixo da bota esquerda. - Fico com aquele.
- Okay, eu trato do Phury. Ehlena, vai tirando fotos a esses ossos partidos.
Dado que esta era uma situação de improviso, Manny levou os materiais até ao seu paciente que estava estendido no chão, no mesmo sítio em que tinha caído antes.
O enorme cabrão estava vestido de cabedal preto da cabeça aos pés, e estava com imensas dores, a cabeça atirada para trás e os dentes cerrados.
- Vou tratar de ti - disse Manny. - Algum problema com isso?
- Nenhum, se fizeres com que eu não me esvaia em sangue.
- Já estou a resolver isso. - Manny agarrou uma tesoura. - Vou começar por cortar as tuas calças e retirar a bota.
- Biqueira de aço - reclamou o fulano.
- Também pode ser. Seja lá o que for que lhe chames, vai ter de sair.
Nada de desapertar, cortou a direito pelo emaranhado de cordões e fê-la deslizar de um pé do tamanho de uma mala. E depois as calças de cabedal rasgaram sem dificuldade
pela costura exterior até à anca.
- Então, o que temos aí, doutor?
- Um peru de Natal, meu amigo.
- Assim tão fundo?
- É. - Não viu razão para referir que o osso estava à mostra e o sangue jorrava sem parar. - Tenho de lavar as mãos outra vez. Volto já.
Depois de usar o lavatório, Manny agarrou um par de luvas, baixou-se novamente, e procurou um frasco de lidocaína.
O gigante loiro a sangrar deteve-o.
- Não te preocupes com a dor, doutor. Cose-me e trata dos meus irmãos... eles precisam mais do que eu. Eu tratava de mim próprio, mas a Jane não me deixa.
Manny parou.
- Cosias-te sozinho?
- Já o faço há mais décadas do que tu tens de vida, doutor.
Manny abanou a cabeça e murmurou entredentes.
- Desculpa lá, valentão. Não corro o risco de esperneares comigo a trabalhar na tua fuga.
- Doutor...
Manny apontou a seringa para o rosto espantosamente atraente do paciente.
- Cala-te e deita-te. Devias ficar a dormir à conta disto, portanto não te preocupes... vai haver razões de sobra para te armares em herói.
Outra pausa.
- Está bem, doutor. Não fiques fodido. Mas despacha-te comigo... e ajuda-os.
Era difícil não simpatizar com a lealdade do tipo.
Trabalhando rapidamente, Manny adormeceu a zona o melhor que conseguiu, espetando a agulha na carne num círculo controlado. Cristo, aquilo levava-o de volta à faculdade
e, de uma maneira estranha, fê-lo sentir-se vivo como as operações que vinha fazendo habitualmente já não conseguiam.
Aquilo era... a realidade ao vivo e a cores. E raios o partam se ele não adorava isso.
Pegou numa pilha de toalhas limpas, meteu-as por baixo da perna, e lavou a ferida. O paciente bufou e contraiu-se, pelo que ele disse:
- Calma, matulão. Só estou a limpar a ferida...
- Sem... problema...
O tanas que não tinha problema, e Manny desejou ter podido fazer mais no domínio da gestão da dor, mas não havia tempo. Havia fraturas múltiplas para consertar.
Estabilizar. Prosseguir.
Alguém gemeu e mais um chorrilho de palavrões se fez escutar à sua esquerda. Manny cuidou de um pequeno rasgão na artéria, depois fechou o músculo e passou para
os tendões e a pele.
- Estás a portar-te muito bem - murmurou, ao aperceber-se dos punhos contraídos.
- Não te preocupes comigo.
- Claro, claro... os teus irmãos. - Manny parou um segundo. - És um gajo porreiro, sabes disso.
- Uma... merda... - O lutador sorriu, mostrando as presas. - Sou... perfeito.
Então o fulano fechou os olhos e recostou-se, com a boca tão firmemente fechada que era inacreditável que conseguisse engolir.
Manny trabalhou tão depressa quanto pôde sem pôr em causa a qualidade do serviço. E quando estava a passar uma compressa sobre os sessenta pontos que tinha acabado
de suturar, ouviu Jane gritar por si.
Rodando a cabeça, resmungou entredentes:
- Puta que pariu.
Na entrada da sala de observações, o marido de Jane estava suspenso nos braços do Red Sox, e parecia ter sido atropelado por um carro. Tinha a pele pastosa, os olhos
revirados, e... porra, a bota - biqueira de aço - dele apontava na direção errada.
Manny chamou pela enfermeira.
- Podes fazer o penso? - Olhando para o ainda seu paciente, disse: - Tenho de ir ali dar uma olhada...
- Vai. - O tipo deu-lhe uma palmada no ombro. - E obrigado, doutor. Não me vou esquecer.
Aproximando-se do mais recente ingresso, Manny interrogava-se sobre se aquele linguarudo de barbicha o iria deixar operar. Porque aquela perna? Parecia absolutamente
destruída, mesmo à distância.
Vishous ia perdendo e recuperando a consciência quando Butch o alcançou na sala de observações. Aquela sua combinação de joelho e anca estava bem para lá do reino
da agonia e num território totalmente distinto, e as sensações esmagadoras iam-lhe bombardeando a força e o pensamento.
Ele não era, contudo, o único em mau estado. Quando Butch passou devagar pela porta, empurrou sem querer a cabeça de V contra a ombreira.
- Foda-se!
- Merda - desculpa!
- Gota... no oceano... - ofegou V, com o seu novo galo a encetar uma versão à capela de «Welcome to the Jungle».
Para calar o concerto do inferno, abriu os olhos e procurou uma distração.
Jane estava mesmo à sua frente, com a agulha de suturar ensanguentada na mão enluvada, e o cabelo apanhado por um elástico.
- Ela não - rosnou. - Ela... não...
Os profissionais de saúde nunca devem tratar os seus parceiros: é receita para o desastre. Se o joelho ou anca dele estivessem permanentemente fodidos, ele não queria
isso na consciência dela. Sabia Deus que já tinham problemas de sobra para resolver.
Manny pôs-se à frente da shellan dele.
- Então sou a tua única opção. Não tens de quê.
Vishous revirou os olhos. Fantástico. Que grande escolha.
- Consentes? - exigiu saber o humano. - Ou talvez prefiras pensar nisso algum tempo enquanto a tua perna desaparece como a de um flamingo. Ou fica gangrenosa e cai.
- Olha lá que... essas falinhas mansas... convencem qualquer um...
- E a resposta é?...
- Certo. Sim.
- Põe-no na mesa.
Butch teve cuidado com os movimentos, mas ainda assim, V quase vomitou por cima de ambos só por redistribuir o seu peso.
- Filho da puta. - Mal isto lhe tinha saído dos lábios, já o rosto do cirurgião estava sobre o dele.
- Aviso, Manello: tu não queres... estar assim tão perto de mim...
- Queres dar-me um soco? Okay, mas espera até depois de eu ter dado conta da tua perna.
- Não, fico... enjoado.
Manello abanou a cabeça.
- Preciso de um analgésico aqui. Alguém me traga Demer...
- Demerol não - disseram V e Jane em uníssono.
Os olhos de V fixaram-se nela. Atravessara a sala e estava no chão, debruçada por cima de Blaylock, e cosendo um lanho com mau aspeto. As mãos dela estavam firmes
e o seu trabalho estava a sair perfeito, tudo nela era a imagem da competência. A não ser as lágrimas que lhe escorriam no rosto.
Com um gemido, ele olhou para o candeeiro por cima dele.
- Morfina pode ser? - perguntou Manello ao cortar a manga do blusão de cabedal de V. - E não te dês ao trabalho de armar em duro. A última coisa que eu preciso é
que desates a torcer-te todo enquanto eu estou a mexer aqui em baixo.
Jane não respondeu dessa vez, portanto V tratou disso.
- Sim, isso serve.
A seringa estava a ser preparada e Butch avançou até junto do cirurgião. Ainda que incapacitado por causa das inalações, o polícia foi fatalmente direto ao falar.
- Não preciso de te dizer para não foderes o meu amigo, certo?
O cirurgião desviou os olhos do seu número de frasquinho-e-agulha.
- Não estou a pensar em sexo neste momento, obrigado. Mas se estivesse, podes estar certo que não seria com ele. Portanto, em vez de te preocupares com quem eu ando
a comer, que tal fazeres um favor a toda a gente e ires tomar um duche? Cheiras mal como a merda.
Butch pestanejou. Esboçou um sorriso.
- Tens tomates.
- E são feitos de bronze. Grandes como sinos de igreja.
V deu-se conta de qualquer coisa fria a ser esfregada no braço, depois houve uma picada e, pouco depois, deu início a uma viagem, o seu corpo transformando-se numa
bola de algodão, leve e arejada. De tempos a tempos, a dor lá se fazia sentir, saída das suas entranhas e atingindo-o no coração. Mas não estava relacionado com
nada que Manello estivesse a fazer no seu ferimento. V não conseguia tirar os olhos da companheira enquanto ela ia tratando os seus irmãos.
Através do toldo enevoado da sua visão, observou enquanto ela lidava com Blay e depois trabalhava com Tohrment. Não conseguia ouvir o que ela lhe estava a dizer
porque os seus ouvidos não estavam a funcionar lá muito bem, mas Blay estava visivelmente grato e Tohr parecia tranquilizado pela sua simples presença. De vez em
quando Manello fazia-lhe uma pergunta, ou Ehlena interrompia-a com uma questão, ou Tohr contorcia-se e ela parava para o acalmar.
Era esta a vida dela, não era? Aquelas curas, esta busca da perfeição, a devoção inabalável para com os seus pacientes.
O seu dever para com eles definia-a, não era?
E vê-la daquela maneira fazia-o repensar no que se tinha passado entre ela e Payne. Se Payne tivesse ficado obstinada em acabar com a própria vida, Jane teria sem
dúvida tentado impedi-la. E quando se tornou evidente que não conseguia...
De repente, como se soubesse que a estava a olhar fixamente, os olhos de Jane encontraram os dele. Estavam tão sombrios que ele quase nem lhes conseguia ver a cor,
e, por instantes, ela perdeu a sua forma corpórea, como se ele lhe tivesse sugado a vontade de viver.
O rosto daquele cirurgião meteu-se no caminho.
- Precisas de mais analgésicos?
- Quê? - perguntou V, com dificuldade por causa da boca seca.
- Gemeste.
- Não foi... por causa... do joelho.
- Não é só o teu joelho.
-... Hã...?
- Acho que deslocaste a anca. Vou tirar-te as calças.
- Faz como entenderes...
V voltou a olhar fixamente para Jane, apenas vagamente ciente da tesoura que lhe cortou as calças, mas soube exatamente quando o cirurgião lhe tirou o cabedal todo.
O fulano deixou escapar um assobio... que foi prontamente abafado.
Certo como a merda que a reação não tinha sido causada pelos avisos tatuados na Língua Antiga.
- Desculpe, doutor - murmurou V, inseguro quanto ao motivo pelo qual se estava a desculpar pela confusão que reinava abaixo da sua cintura.
- Eu, hã... vou tapar-te. - O humano saiu disparado e regressou com um cobertor que usou para cobrir o baixo-ventre de V. - Só preciso de examinar as tuas articulações.
- Trata... disso.
Os olhos de Vishous regressaram mais uma vez a Jane e deu por si a imaginar... se ela não tivesse morrido e sido trazida de volta como fora, teriam eles tentado
ter filhos? Era de duvidar que ele conseguisse ser pai de mais do que um orgasmo, com todo o estrago que o pai lhe tinha causado. E ele nunca tinha querido ter filhos.
Nem queria agora.
Mas ela teria sido uma mãe espetacular. Era boa em tudo o que fazia.
Será que ela sentia falta de estar viva?
Porque é que ele nunca lhe tinha perguntado isso?
O regresso do rosto do cirurgião cortou-lhe o raciocínio.
- Tens a anca deslocada. Vou ter de a pôr no lugar antes de trabalhar no joelho, porque estou preocupado com a tua circulação.
- Limita-te a pôr-me em ordem - gemeu V. - Faz o que for preciso.
- Bom. Prendi o teu joelho a uma tala temporária. - O humano olhou para Butch que, sem querer saber da exigência de um chuveiro, se tinha encostado contra a parede
a meio metro de distância. - Preciso da tua ajuda. Não há mais ninguém aqui com as mãos livres.
O polícia não hesitou, reunindo as forças e aproximando-se.
- Que queres que eu faça?
- Segura-o pela bacia. - O humano saltou para a mesa de aço inoxidável por cima das pernas de V, agachando-se para evitar bater com a cabeça no candeeiro. - Isto
vai ser um trabalho de força... não há outra maneira de o fazer. Quero que fiques virado para mim, e eu mostro-te onde metes as mãos.
Butch alinhou completamente, aproximando-se e baixando as mãos.
- Onde?
- Aqui. - V teve uma vaga sensação de peso quente em ambos os lados das suas ancas. - Um bocado mais para fora... isso. Está bem assim.
Butch olhou por cima do ombro para V.
- Pronto para isto?
Pergunta parva. Era como perguntar a alguém se estava preparado para uma colisão frontal.
- Entusiasmadíssimo - murmurou V.
- Concentra-te em mim.
E V assim fez... vendo os laivos de verde nos olhos castanhos-claros do polícia, e os contornos daquele nariz espalmado, e a barba por fazer.
Quando o humano agarrou a parte de baixo da coxa de V e começou a puxar, V contorceu-se contra a mesa, a sua cabeça bateu para trás, e todo o seu rosto ficou em
esforço.
- Calma aí - disse o polícia. - Concentra-te em mim.
Oh sim, pois claro. Havia dor, e depois havia dor. Aquilo era DOR.
Vishous debateu-se para respirar, com os circuitos nervosos em sobrecarga, e o corpo prestes a explodir mesmo com a sua pele intacta.
- Diz-lhe que respire - indicou alguém. Provavelmente tinha sido o humano.
Claro, isso ia já acontecer. Ou então não.
- Certo, aos três vou forçar a articulação de volta ao lugar... pronto?
V não fazia ideia com quem estava ele a falar, mas se fosse consigo, não havia como responder. O coração estava acelerado, os pulmões endurecidos e o cérebro parecia
Las Vegas à noite e...
- Três!
Vishous gritou.
A única coisa que se ouviu mais alto foi o estalido da anca a voltar ao lugar. E a última coisa que ele viu antes de dar saída da Estalagem da Consciência foi a
cabeça de Jane a olhar em redor, em pânico. Nos olhos dela estava pintado o terror puro, como se a coisa pior que ela pudesse imaginar fosse ele em agonia...
E foi então que ele soube que ainda a amava.
Capítulo 32
No quarto de Qhuinn, não havia senão silêncio, o que era típico de quando se largava uma bomba, real ou metafórica.
Cristo, nem podia acreditar que tinha pronunciado as palavras. Ainda que somente ele e Layla ali estivessem, sentiu-se como se tivesse trepado ao topo de um prédio
na baixa de Caldwell e anunciado por um megafone.
- O teu amigo - sussurrou Layla -, Blaylock.
O coração de Qhuinn gelou. Mas, logo a seguir, forçou-se a assentir.
- Sim. É ele.
Esperou que surgisse alguma expressão de repulsa ou de desaprovação ou... até choque. Vindo de onde ele vinha, estava bastante habituado à homofobia. E Layla era
uma Escolhida, pelo amor de Deus, o que fazia toda aquela treta da glymera da velha guarda parecer absolutamente iluminada e esclarecida.
O bonito olhar pairou sobre o rosto dele.
- Acho que sabia. Vi a forma como ele olhava para ti.
Bem, isso já não acontecia. E...
- Não te incomoda? Que ele seja outro macho?
Houve uma ligeira pausa. E, então, a resposta que ela lhe deu transformou-o de um modo curioso:
- Nem um pouco. Porque é que havia de incomodar?
Qhuinn teve de desviar o olhar. Porque estava preocupado com o que lhe rebrilhava nos olhos.
- Obrigado.
- Obrigado por quê?
Ele só conseguiu encolher os ombros.
Quem iria imaginar que a aceitação fosse, curiosamente, tão dolorosa como toda a rejeição tinha sido antes dela.
- Acho que é melhor ires embora - disse ele, com aspereza.
- Porquê?
Porque ele estava a ponderar seriamente um novo emprego como aspersor para relvados, e não queria chorar como uma madalena à frente de ninguém. Nem sequer dela.
- Senhor, está tudo bem... - A voz dela mostrava firmeza. - Não te julgo pelo género de quem amas... mas pela maneira como amas.
- Então devias odiar-me. - Cristo, por que raio é que a boca dele não se calava? - Porque eu lhe quebrei a merda do coração.
- Então... ele não sabe como te sentes?
- Não. - Qhuinn fitou-a. - E não vai saber, entendido? Ninguém vai saber.
Ela meneou a cabeça.
- O teu segredo está seguro comigo. Mas eu bem sei a maneira como ele te queria. Quiçá lhe devas dizer...
- Deixa-me poupar-te a uma lição que eu aprendi às minhas custas. Há ocasiões em que é demasiado tarde. Ele agora está feliz... e merece isso. Porra, eu quero que
ele sinta amor, mesmo estando apenas a assistir da bancada.
- Mas e então tu?
- Que tem? - Começou a passar os dedos pelo cabelo e apercebeu-se de que o tinha cortado todo. - Escuta, já chega disto... eu só te contei porque preciso que saibas
que esta merda entre ti e mim não tem nada a ver com ser bom que chegue ou atraente o bastante. Francamente estou farto de estar com outras pessoas, sexualmente
falando. Não faço mais isso. Não me leva a lado nenhum e... isso. Acabei com isso tudo.
Que irónico. Agora que ele não estava com Blay, estava a ser fiel ao cabrão.
Layla acercou-se e sentou-se na cama, ajeitando as pernas e o vestido com as mãos pálidas e elegantes.
- Estou contente por me teres contado.
- Sabes... também eu. - Esticou-se e pegou na mão dela. - E tenho uma ideia.
- A sério?
- Amigos. Tu e eu. Vens cá, eu alimento-te, e passamos tempo juntos. Como amigos.
O sorriso dela foi de uma tristeza incrível.
- Tenho de dizer... sempre soube que nunca quiseste saber de mim dessa maneira especial. Tocaste-me com grande contenção e mostraste-me coisas que me cativaram...
mas por baixo desse banho de paixão que eu senti, eu sabia...
- Também não estás apaixonada por mim, Layla. Simplesmente não estás. Sentiste muitas merdas físicas, e isso fez-te pensar que era emocional. O problema é que o
corpo precisa de bastante menos do que a alma para estabelecer ligação.
Ela pôs a sua mão livre sobre o coração.
- O aperto está aqui.
- Tiveste uma paixoneta por mim. Isso passa. Especialmente quando conheceres o tipo certo.
Deus, olhem-me para esta merda. De galdéria a conselheiro sentimental, numa semana. Já a seguir: convite para aparecer no programa da manhã.
Ele estendeu o antebraço.
- Suga-me a veia para que possas ficar mais tempo neste lado e perceber o que é que queres da tua vida... não o que é suposto seres ou fazeres, mas o que tu queres.
Eu até te ajudo, se conseguir. Deus sabe que estou bem treinado nisso de andar à toa.
Seguiu-se uma pausa prolongada. E depois os olhos verdes dela viraram-se para ele.
- O Blaylock... não sabe o que está a perder.
Qhuinn abanou a cabeça, de modo sombrio.
- Oh, ele está bem ciente. Acredita.
A limpeza não foi pera doce.
Jane arrastou um balde e uma esfregona do armário das limpezas, e reviu mentalmente as requisições que iria ter de fazer para repor todo o material. Usaram uma centena
de pacotes de gaze, o seu rácio de agulhas por metro era de rir, tinham-se acabado as ligaduras...
Abriu a porta para a sala de observações com o rabo, movimentou o balde com a cabeça da esfregona, e depois respirou fundo. Havia sangue por todo o chão, e também
nas paredes. Montes de gazes ensanguentadas eram o equivalente ao cotão num filme de terror. Três sacos de lixo hospitalar estavam a abarrotar a ponto de precisar
de um antiácido para ficar menos inchados.
E uma perdiiiiiiiiiz numa pereeeeeeeeira...
Fazendo o balanço do sucedido, deu-se conta de que se Manny não tivesse estado consigo, podiam ter perdido um dos Irmãos. Rhage, por exemplo, podia ter-se esvaído
em sangue. Ou Tohr... porque aquilo que parecera um simples ferimento no ombro se tinha revelado ser muito, e quão muito, mais do que isso.
Manny tinha acabado por ter de o operar. Depois de ter terminado a cirurgia de Vishous.
Fechou os olhos e apoiou a cabeça pesada no pau da esfregona. Como fantasma, ela não ficava cansada da mesma maneira que antes: nada de dores, nada daquela sensação
de arrasto como se alguém lhe tivesse acorrentado os tornozelos. Agora era a sua mente que ficava esgotada, a ponto de ela ter de fechar os olhos e não ver nem fazer
rigorosamente nada, como se os circuitos do seu cérebro precisassem de ser desligados e arrefecidos.
E então dormia. E sonhava.
Ou... como provavelmente ia ser o caso hoje... não. A insónia sobrevinha de tempos a tempos.
- Primeiro vais precisar de varrer tudo.
Levantando a cabeça, tentou sorrir para Manny.
- És capaz de ter razão.
- E se me deixasses tratar disto?
Nem pensar. Ela não tinha pressa nenhuma para se ir fechar na outra sala de recobro e olhar para o teto. Além disso, Manny tinha de estar tão cansado quanto ela.
- Há quanto tempo é que não comes? - perguntou-lhe ela.
- Que horas são?
Espreitou o relógio.
- Uma.
- Da tarde?
- Sim.
- Há umas doze horas. - Pareceu surpreendido com isso.
Jane pegou no telefone que estava na secretária.
- Eu ligo ao Fritz.
- Escuta, não tens de...
- Deves estar quase a cair para o lado.
- Para dizer a verdade, sinto-me ótimo.
Olha se isso não era mesmo de homem. A menos que... bem, que raio, ele até parecia cheio de vida em vez de esgotado.
Pouco importava. Ela ia alimentá-lo à mesma.
O pedido não demorou mais de um minuto, e Fritz ficou encantado com a solicitação. Normalmente, depois da última refeição, o mordomo e a sua equipa retiravam-se
para um curto descanso antes de darem início à limpeza diária, mas preferiam estar a trabalhar.
- Onde é o armário das limpezas? - perguntou Manny.
- No corredor. Ao teu lado esquerdo.
Foi enchendo o balde com detergente e água, e ele encontrou uma vassoura, voltou, e deu conta do recado.
Enquanto estavam a trabalhar, lado a lado, ela só conseguia pensar em Vishous. Na pressa de tratar os Irmãos, tinha havido imenso em que se concentrar, mas agora,
esfregando o chão de mosaicos de um lado para o outro, era como se toda a angústia latente no seu cérebro se libertasse e lhe assaltasse as reservas mentais.
Qualquer pessoa que não ela.
Ela ouvia-o dizer isso uma e outra vez, via o seu rosto pálido, os seus olhos gélidos e a forma como ele a tinha excluído.
Engraçado... a eternidade que lhe tinha sido concedida sempre lhe tinha parecido a maior das bênçãos. Até ela imaginar atravessar as eras sem o homem que amava.
Era agora uma maldição.
Para onde iria ela? Não podia simplesmente continuar no complexo. Não, se estivessem assim afastados. Era demasiado duro para todos...
- Toma.
Jane deu um salto quando um lenço lhe surgiu à frente do rosto. O pequeno quadrado de papel branco pendia das pontas dos dedos de Manny, e ele agitou-o novamente
enquanto ela se limitava a olhar para o objeto.
- Estás a chorar - ouviu-o dizer.
Passou o cabo da esfregona para a dobra do braço, aceitou o que ele ofereceu e ficou surpreendida por dar conta de que estava certo. Quando o levou aos olhos e deu
uma espreitadela, o lenço estava húmido.
- Sabes - refletiu Manny -, ao ver-te assim quase que desejo ter-lhe amputado aquela maldita perna.
- Isto só em parte é culpa dele.
- Isso é o que tu dizes. Eu posso encarar as coisas como bem entender.
Ela espreitou.
- Tens mais outro destes?
Apresentou-lhe uma caixa e ela arrancou mais uns quantos. Limpa. Limpa. Fungadela delicada. Limpa. Ela deu por terminado o surto de choradeira com um... dois...
três... lançamentos para o caixote do lixo.
- Obrigada pela ajuda. - Ao olhar para cima, viu que ele estava com um ar sério e não conteve um sorriso. - Senti falta disso.
- Falta de quê?
- Dessa expressão tramada que tens de vez em quando. Lembra-me dos bons velhos tempos. - Olhou para ele sem vacilar. - O V vai ficar bem?
- Se eu não o encher de porrada por te foder... sim.
- Que cavalheiro. - E ela não estava a ser irónica. - Foste fantástico esta noite.
Também estava a dizer aquilo sentidamente.
Pousou os lenços na bancada.
- Também tu. Acontece muitas vezes?
- Nem por isso. Mas tenho a impressão que isso pode estar prestes a mudar.
Voltando ao trabalho, ela passou a esfregona umas quantas vezes, não melhorando por aí além o estado do chão, mas limitando-se a mudar o sangue de sítio. Nesta altura,
provavelmente teria mais sorte se lavasse o lugar à mangueirada.
Alguns minutos mais tarde, ouviu-se bater à porta e Fritz espreitou.
- O seu repasto está pronto. Onde pretende jantar?
- Ele vai comer no escritório - respondeu Jane. - À secretária. - Deitou uma olhadela ao antigo colega. - É melhor ires antes que fique frio.
A expressão nos olhos de Manny era o equivalente ocular de um dedo em riste, mas ela limitou-se a acenar boa viagem.
- Vai. E trata de descansar um bocado.
Só que ninguém dizia o que fazer a Manny Manello.
- Eu fico por aqui - disse ele ao mordomo.
Quando Fritz se foi embora, o seu antigo patrão levou as mãos às ancas. E antes que ela se preparasse para uma discussão, tudo o que ele disse foi:
- Onde está a minha pasta? - Quando Jane pestanejou, ele encolheu os ombros. - Não te vou apertar para que fales comigo.
- Ou seja, voltaste a página.
- Parabéns para mim. - Fez sinal para o telefone preso à parede. - Vou ter de verificar as minhas mensagens, e quero o meu maldito telemóvel de volta.
- Ah... está bem, o teu carro tem de estar na garagem. Segue pelo corredor. Talvez esteja no teu Porsche?
- Obrigado...
- Estás a pensar ir-te embora?
- O tempo todo. - Virou-se e avançou para a porta. - Só consigo pensar nisso.
Bem... com isso já eram dois. Mas afinal, Jane nunca tinha imaginado não estar lá.
Prova provada que não ajuda nada ter imensas ideias brilhantes para o futuro.
Capítulo 33
Tradicionalmente, no seio da glymera, quando alguém entrava na casa de outro, dever-se-ia depositar um cartão-de-visita numa travessa de prata que era apresentada
pelo mordomo doggen do anfitrião. O cartão deveria indicar o nome atribuído e a ascendência, e o objetivo era anunciar a visita, ao mesmo tempo que se prestava homenagem
aos costumes sociais que moldavam e definiam as classes superiores.
Contudo, quando alguém não sabia ler nem escrever... ou, mais concretamente, quando se preferiam métodos de comunicação mais viscerais e menos polidos?
Bem, nesse caso deixava-se os corpos dos mortos num beco para que o «anfitrião» os encontrasse.
Xcor levantou-se da mesa onde estava e levou a caneca de café consigo. Os outros dormiam lá em baixo e ele sabia que se devia juntar a eles, mas não seria capaz
de descansar. Pelo menos naquele dia. Nem, provavelmente, no seguinte.
Deixar os minguantes esventrados, mas ainda a contorcerem-se, fora um risco calculado. Se os humanos os encontrassem haveria problemas. Contudo, valia a pena. Wrath
e a Irmandade governavam naquele continente há demasiado tempo, e com que resultados? A Sociedade dos Minguantes ainda existia. A população vampira espalhara-se.
E os humanos arrogantes e miseráveis estavam um pouco por todo o lado.
Xcor fez uma pausa no corredor do andar térreo e olhou em seu redor, para as suas acomodações permanentes. A casa adquirida por Throe era deveras adequada. Feita
de pedra, era velha e ficava nos arredores, duas valorizações bastante adequadas aos seus objetivos. A dada altura na sua existência teria sido magnífica, mas essa
altura já passara, tal como a sua nobreza. Agora era uma sombra do que fora e representava tudo aquilo de que ele precisava: paredes sólidos, telhado seguro, e com
uma dimensão mais do que suficiente para albergar todos os seus machos.
Não que alguém fosse com muita frequência àquelas divisões térreas, ou aos sete quartos no primeiro andar. Mesmo com cortinados pesados corridos em todas as janelas,
as inúmeras vidraças teriam de ser encerradas com tijolos antes de serem seguras durante as horas de sol.
Com efeito, todos ficavam abaixo do nível da terra, na cave.
Era o regresso dos bons velhos tempos, pensou, pois só na modernidade é que o conceito de acomodações separadas se instalara. Antes, tinham comido juntos, fodido
juntos e dormido juntos.
Tal como deviam fazer os soldados.
Talvez ordenasse que permanecessem abaixo da terra. Juntos.
E, contudo, ele não se encontrava lá em baixo com eles, nem ainda tinha estado. Agitado, pronto para a perseguição mas sem presas de momento, fora de sala em sala,
levantando pó ao mesmo tempo que fervia com desejo de conquistar aquele novo mundo.
- Já os tenho. A todos.
Xcor parou. Bebeu um gole. Virou-se.
- Mas que inteligente.
Throe entrou no que em tempos tinha sido uma sala de visitas grandiosa, mas que agora era apenas fria e vazia. O guerreiro continuava com o seu cabedal, mas conseguia
denotar um aspeto elegante. Não era de surpreender. Ao contrário dos outros, a sua linhagem era tão perfeita como o seu cabelo dourado e os olhos azul-céu. O mesmo
se passava com o corpo e o rosto. Não tinha defeitos, quer interiores quer exteriores.
No entanto, não deixava de ser um dos bastardos.
Xcor sorriu quando o macho pigarreou. Mesmo depois de tantos anos juntos, Throe sentia-se desconfortável na sua presença. Que bizarro.
- E... - incitou Xcor.
- Neste momento existem restos de duas famílias em Caldwell. O que resta das outras quatro linhagens principais dispersou-se por aquilo que é chamado de Nova Inglaterra.
Portanto, alguns podem estar entre oitocentos e mil e cem quilómetros daqui.
- Tens ligações com quantos?
Mais pigarrear.
- Cinco.
- Cinco? Isso enche-te a agenda social num instante... estás a pensar fazer alguma visita?
- Sabes que não posso.
- Ah... é verdade. - Xcor terminou o café. - Esquecia-me que foste condenado. Imagino que tenhas de ficar aqui com os pagãos.
- Sim. Ficarei.
- Mmm. - Xcor saboreou por um instante o silêncio embaraçoso.
Mas depois o outro macho estragou-o.
- Não tens bases para avançar - indicou Throe. - Não pertencemos à glymera.
Xcor exibiu as presas num sorriso.
- Preocupas-te excessivamente com as regras, meu amigo.
- Não podes convocar uma reunião do Conselho. Não deténs posição.
- É verdade. Claro que será outra história se lhes apresentarmos um motivo para se reunirem. Não foste tu que mencionaste desagrados em relação ao rei na sequência
das incursões?
- Sim. Mas estou bem ciente daquilo que pretendes, e o objetivo final é traição na melhor das hipóteses, suicídio na pior.
- Tão limitado que tu és, Throe. Mesmo com toda a tua educação, falta-te muita visão.
- Não podes depor o rei... e por certo não estás a pensar em tentar matá-lo.
- Matá-lo? - Xcor arqueou uma sobrancelha. - Não lhe desejo um caixão como cama. De todo. Desejo-lhe uma vida longa... para que possa chafurdar no suco do seu fracasso.
Throe abanou a cabeça.
- Não sei por que o odeias tanto.
- Por favor. - Xcor revirou os olhos. - Não tenho nada contra ele pessoalmente. Só lhe cobiço o estatuto, nada mais. O facto de ele continuar vivo quando eu me sentar
no trono apenas serve para apimentar a refeição.
- Por vezes... receio que estejas louco.
Xcor semicerrou os olhos.
- Garanto-te... não estou furioso nem insano. E tu devias ver bem onde pisas com comentários desse género.
Era perfeitamente capaz de matar o velho amigo. Naquele dia. Naquela noite. Amanhã. O pai ensinara-lhe que os soldados não eram diferentes de uma qualquer outra
arma - e quando corriam o risco de disparar pela culatra? Tinham de ser descartadas.
- Perdoa-me. - Throe fez uma breve vénia. - A minha dívida para contigo permanece. Tal como a minha lealdade.
Grande idiota. Claro que, a bem da verdade, o assassinato por parte de Xcor do macho que conspurcara a irmã de Throe fora um muito bom investimento de tempo e de
lâmina, pois isso ligara a si aquele guerreiro forte e sincero. Para sempre.
Throe vendera-se a Xcor para que a vingança fosse feita. Na altura, o macho era demasiado dândi para o assassinar com as próprias mãos, pelo que se obrigara a mergulhar
nas trevas para encontrar o que nunca convidaria para a sua mansão, nem pela entrada de serviço. Ficara chocado quando o dinheiro oferecido fora recusado, e começara
a afastar-se assim que Xcor apresentou a sua exigência.
A breve recordação do estado em que a irmã fora encontrada chegara para lhe arrancar o juramento.
E o treino que se seguira fizera maravilhas. Sob a orientação de Xcor, Throe endurecera com o tempo, qual aço forjado com o calor. Agora era um assassino. Agora
era útil para algo mais do que servir de estátua social em jantares e bailes.
Uma pena que a sua ascendência não encarasse a transformação como sendo uma melhoria, e isso apesar do facto de o pai dele ter sido um Irmão. Seria de esperar que
a família se mostrasse grata. Infelizmente, tinham deserdado o miserável.
Trazia lágrimas aos olhos de Xcor de cada vez que se lembrava disso.
- Vais escrever-lhes. - Xcor voltou a sorrir, com as presas a formigar, e o membro a imitá-las. - Vais escrever a todos eles a anunciar a nossa chegada. Vais frisar
as perdas deles, recordando-os das crias e das fêmeas que foram abatidas naquela noite de verão. Vais lembrar-lhes as audiências que não tiveram com o rei deles.
Vais expressar o ultraje sentido em seu nome e vais fazê-lo para que compreendam... pois em tempos foste um deles. E depois vamos esperar... que nos convoquem.
Throe fez uma vénia.
- Sim, meu líhder.
- Entretanto, vamos caçar minguantes e manter o registo das nossas mortes. Para que quando nos perguntarem pela nossa saúde e bem-estar, algo que se espera que a
aristocracia faça, possamos informá-los que, embora os garanhões de puro-sangue fiquem muito bonitos nos estábulos, alcateia de lobos é o mais indicado para nos
vigiar a porta.
A glymera era inútil a muitos níveis, mas eram tão previsíveis como um relógio de bolso. Era a sua própria preservação que fazia com que os ponteiros, grandes e
pequenos, andassem às voltas, vezes sem conta.
- É melhor ires descansar - aventou-lhe Xcor, num tom arrastado. - Ou será que já andas à caça de uma das tuas diversões? - Com o silêncio, Xcor franziu o cenho
à resposta contida na falta de reação. - Tens um objetivo mais elevado do que o que aconteceu horas antes do nosso combate. Os mortos humanos são menos importantes
do que os nossos inimigos vivos.
- Sim.
Ou melhor: não.
- Não te prendas com outros esforços que prejudiquem os nossos objetivos.
- Alguma vez te deixei ficar mal?
- Ainda há tempo, meu velho amigo. - Xcor fitou o macho através das pálpebras entreabertas. - Há sempre tempo para a tua natureza sensível se meter em apuros. E
antes que te esqueças, deixa-me recordar-te das circunstâncias em que te encontras desde há dois séculos.
Throe ficou hirto.
- Não. Não é preciso. Tenho perfeita consciência da minha posição.
- Ótimo. -Xcor aquiesceu. - Isso é muito importante nesta vida. Prossegue.
Throe fez nova vénia.
- Desejo-te um bom sono, meu líhder.
Xcor observou o macho a afastar-se e, quando deu consigo outra vez sozinho, o ardor que sentia no corpo incomodava-o. A necessidade sexual era um desperdício de
tempo, pois nem matava nem alimentava mas, de vez em quando, o membro e as bolas precisavam de algo mais do que uma breve sessão manual.
Quando nessa noite as trevas caíssem, Throe teria de encontrar mais uma coisa para o bando de bastardos, e desta vez, Xcor seria obrigado a ter o seu quinhão.
E iam também precisar de sangue, de preferência que não fosse humano, mas se a isso fossem obrigados por agora?
Bem, teriam de se ver livres dos corpos, não era?
Capítulo 34
No centro de treinos, Manny acordou na cama do hospital e não na cadeira. Depois de se sentir confuso por um instante, memórias enevoadas fizeram-no lembrar-se:
tinha comido no escritório, como Jane lhe pedira, e foi aí, e não no interior do carro, que ele encontrou o telemóvel, a carteira, as chaves e a pasta. A pequena
coleção de Manellomentos tinha estado sempre ali à vista, em cima de uma cadeira, e a falta de segurança surpreendeu-o, uma vez que tudo o resto estava fechado a
sete chaves.
Só que nessa altura, ao ligar o telemóvel, percebeu que não tinha o cartão SIM.
E ele era capaz de apostar que seria necessária uma bomba atómica para entrar ou sair da garagem sem autorização. Por isso, as chaves não tinham importância.
A pasta? Não tinha mais do que uma barra energética e alguma papelada, que não tinha absolutamente nada que ver com instalações subterrâneas, vampiros ou Payne.
Achou que o que-se-lixe explicava o estar-tudo-à-vista.
Estivera prestes a desistir de verificar o correio de voz, mas depois resolvera arriscar e tentou a rede fixa do escritório que tinha mesmo ali à mão. Levantando
o auscultador, marcou 1... e ouvir o toque de chamada foi uma surpresa. Contudo, vendo bem, qual seria a probabilidade de deixarem alguém ali em baixo durante muito
tempo sem supervisão? Muito baixa.
Exceto num dia em que noventa por cento deles tinham sido feridos em batalha e os outros dez por cento estavam preocupados com os irmãos.
Em pouco tempo, Manny correra três correios de voz: casa, telemóvel e gabinete. O primeiro tinha duas mensagens da mãe. Nada de concreto, eram precisas obras em
casa e tinha conseguido superar o temido nono buraco. O telemóvel tinha uma do veterinário, que teve de ouvir duas vezes. E quanto ao gabinete... tinha sido tão
deprimente como cagar um pé, sete mensagens de colegas de todo o país e era tudo tão incrivelmente normal. Queriam que ele viajasse com eles para dar consultas ou
fazer conferências ou arranjar espaço nos programas de residência para os filhos ou amigos de família.
A triste realidade era que aqueles pedidos comezinhos atrasavam a verdadeira direção que a sua vida estava a tomar, como se tivesse feito uma curva apertada e tivesse
enganado os pobres desgraçados que lhe estavam a ligar. Além disso, quando estes vampiros lhe mexessem no cérebro outra vez, não fazia ideia se sobraria alguma coisa
que lhe permitisse contar até dez, quanto mais operar um paciente ou dirigir um departamento de cirurgia. Não havia maneira de saber em que condições estaria quando
tudo aquilo chegasse ao fim...
O som repentino de um autoclismo fê-lo endireitar-se.
Quando a porta da casa de banho se abriu, viu a silhueta de Payne iluminada por trás, com a bata descartável a transformar-se numa simples película que mal se via.
Minha... Nossa... Senhora...
A ereção da manhã começou a latejar e isso fê-lo desejar ter dormido na maldita cadeira. O problema foi que, quando finalmente regressara para a ver, não tinha tido
coragem de dizer que não quando ela lhe pediu para se deitar na cama.
- Estás acordado? - perguntou ela, com a voz rouca.
- E tu estás de pé. - Esboçou um sorriso. - Como é que sentes as pernas?
- Fracas. Mas funcionam. - Olhou por cima do ombro. - Gostava de tomar um duche...
Merda, da maneira que as coisas estavam a ir, ela quereria ajuda e a sua mente saltou imediatamente para a imagem dos dois juntos, separados apenas pelo sabão.
- Acho que há um banco para te sentares. - Levantou-se do lado oposto da cama, para poder enfiar a ereção para dentro das calças.
Caminhando na sua direção, tentou manter a máxima distância possível, enquanto entrava no duche.
- Sim, aqui está.
Esticou o braço e abriu a água, depois deu a volta ao banco.
- Vou preparar isto...
Imobilizou-se ao olhar sobre o ombro. Payne soltara os laços da bata de hospital e estava lenta e inexoravelmente... a deixar a frente... cair-lhe pelos ombros...
Quando o esguicho atingiu o braço e começou a ensopar a parte de cima da camisa, ele engoliu em seco e sentiu vontade de gritar quando as mãos dela agarraram a manga
e a levaram aos seios.
Ela ficou assim, como se estivesse à espera para ver o que ele ia dizer e fixaram o olhar um no outro, o membro dele tão duro, que até admirava que não lhe saltasse
da porra das calças.
- Larga-me, bambina - ouviu-se a si próprio.
E ela largou-o.
Nunca antes tinha desejado louvar a lei da gravidade, mas queria agora. Queria prostrar-se no altar de Newton e chorar de gratidão pela bênção de todas as coisas
caírem para o chão.
- Olha para ti - rosnou, vendo os mamilos rosados ficarem entumecidos.
Sem ter consciência disso e sem qualquer aviso prévio, o braço molhado esticou-se e agarrou-a, puxando-a para sua boca, apertando-a com força enquanto chupava o
mamilo e a acariciava com a língua. Mas não tinha de se preocupar com o facto de a poder ter ofendido. As mãos de Payne mergulharam-lhe no cabelo enquanto ele a
embalava contra si e a lambia, curvando-lhe as costas até a endireitar. Aí estava uma fêmea toda pronta para ser devorada.
Virando-a, tapou a luz e levou-a para debaixo dos salpicos quentes do chuveiro. Quando o corpo dela se iluminou desde o interior, ele ajoelhou-se, apanhando com
a língua a água quente que escorria por entre os seios dela e descia pela barriga.
Quando ela esticou a mão para se equilibrar, ele segurou-a, baixando-a até ela estar sentada no banco. Arqueando-se, acariciou-lhe a nuca com a palma da mão e beijou-a
profundamente, enquanto alcançava o sabão e se preparava para garantir que ela ficava muito, muito limpinha. Quando a língua dela encontrou a sua, ele estava tão
embrenhado na sensação dos mamilos a roçarem-lhe o peito e dos lábios dela nos seus, que nem reparou ou quis saber que o cabelo estivesse a ficar colado à cabeça
ou que a camisa se tivesse colado ao corpo.
- Curandeiro... - Payne estava ofegante, quando ele lhe começou a ensaboar a pele.
A parte de cima do seu corpo ficou húmida e quente quando as palmas das mãos lhe percorreram o seu corpo, do pescoço às pontas dos ossos da anca. E depois foi para
as pernas, massajou os pés e tornozelos delicados e foi subindo, pelas barrigas das pernas e depois a parte de trás dos joelhos.
Havia água por todo o lado, caindo entre eles, lavando-a, enquanto ele espalhava a espuma por aquele corpo e o som da água a cair no ladrilho só era abafado pelos
gemidos.
E ainda se ouviriam mais.
Sugando-lhe o pescoço, afastou-lhe cada vez mais os joelhos, encaixando-se entre eles.
- Eu disse-te - mordiscou-a um pouco - que ias gostar da altura do banho.
Em resposta, ela deitou-lhe as mãos aos ombros, com as unhas a cravarem-se e levando-o a interrogar-se se não estaria na altura de começar a pensar em estatísticas
de basebol, em códigos postais... preços de carros.
Em Eleanor Roosevelt.
- Tinhas razão, curandeiro - arquejou ela. - Estou a adorar... mas tu estás demasiado vestido.
Manny fechou os olhos com um arrepio. E depois conseguiu controlar-se o suficiente para falar.
- Não... estou bem assim. Descontrai-te e deixa-me tratar do resto.
Antes de ela poder responder, as bocas colaram-se e empurrou-a contra a parede com o peito. Para a manter afastada do assunto de ele se despir, deslizou as duas
mãos pelo interior das ancas dela e passou os dedos pelo sexo.
Ao sentir quão molhada ela estava, e era o tipo de molhada que nada tinha a ver com água e tudo com o que ele estava a pensar fazer com a língua, ele afastou-se
um pouco e olhou para baixo.
Deus... do... céu... ela estava tão pronta para ele. E, porra, ela era uma beleza, toda curvada para trás, a água a fazer os seios cintilarem, os lábios entreabertos
e um pouco magoados por ele a ter beijado, as pernas abertas.
- Vais tomar-me agora? - gemeu ela, com os olhos a brilhar e as presas a alongarem-se.
- Sim...
Segurou-lhe os joelhos e desceu, colocando a boca onde os olhos tinham estado. Enquanto ela gritava de prazer, ele aumentou a força e a velocidade, abarcando o seu
sexo, conduzindo-a ao auge, sem arranjar desculpas para o quanto a queria. Quando ela explodiu, ele penetrou-a com a língua e sentiu tudo, aquele pulsar, a maneira
como ela se contorcia contra o queixo e o nariz dele, as mãos a apertarem-lhe com força a cabeça.
Não havia motivo para parar por ali.
Com ela tinha um vigor interminável e sabia que, desde que a roupa não lhe deixasse o corpo, podia continuar a fazer aquilo... para sempre.
Vishous acordou numa cama que não era a sua, mas não demorou mais de uma fração de segundo para perceber onde estava: na clínica. Num dos quartos de recobro.
Depois de esfregar os olhos, olhou em volta. A luz da casa de banho estava acesa e a porta estava encostada, permitindo ver bastante... e a primeira coisa que lhe
saltou à vista foi o saco desportivo no chão, no meio do caminho.
Era um dos seus sacos. Especificamente, o que tinha dado a Jane.
No entanto, ela não estava ali. Pelo menos, não estava no quarto.
Erguendo-se, sentiu-se como se tivesse tido um acidente de automóvel, com dores a explodir-lhe por todo o corpo, como se ele fosse uma antena e todos os sinais de
rádio do mundo estivessem a ser canalizados para o seu sistema nervoso. Gemendo mudou de posição para pendurar as pernas para fora da cama, e depois teve de perder
um momento a recuperar o fôlego.
Agora restava-lhe saltar para o chão e rezar. Levantou o peso do colchão e esperou que...
Bingo. As pernas aguentaram-se.
O lado que tinha sido tratado por Manello ainda não estava propriamente apto a correr a maratona mas, quando V tirou as ligaduras e se fletiu, ficou impressionado.
As cicatrizes da cirurgia ao joelho já estavam completamente saradas, pouco restando a não ser uma pálida linha rosada. E, mais importante ainda, o que estava por
dentro era pura magia. A articulação estava fantástica. Apesar de ainda estar hirta, apercebia-se que estava a funcionar perfeitamente.
A anca também parecia nova.
O maldito cirurgião humano era um milagreiro.
A caminho da retrete, os olhos detiveram-se no saco. Surgiram-lhe memórias da viagem com a morfina, muito mais claras do que a própria experiência. Cristo, Jane
era uma médica espetacular. Não se tinha esquecido disso, mas há já algum tempo que não o testemunhava em primeira mão. Ela dava tudo por tudo pelos doentes. Sempre.
E não tratava assim os irmãos por estarem ligados a ele. Não tinha nada que ver com a sua pessoa. Naqueles momentos, cada indivíduo pertencia-lhe a ela. Ela teria
tratado civis, membros da glymera... até humanos, exatamente da mesma maneira.
Foi tomar um duche, mal cabendo no chuveiro. Enquanto pensava em Jane e na irmã, teve a terrível sensação de que simplificara demasiado o que enfrentara na outra
noite. Não tinha parado para pensar na possibilidade de existir alguma outra relação entre as duas fêmeas. Tinha sido tudo sobre ele e a irmã... nada sobre o laço
entre doutor/paciente.
Com a cabeça baixa e a água a bater-lhe no pescoço, olhou fixamente para o ralo a seus pés.
Não tinha jeito para pedir desculpas. Nem para falar.
Mas também não era nenhum fraco.
Dez minutos depois, vestiu uma bata de hospital e coxeou pelo corredor em direção ao escritório. Se a sua Jane aqui estivesse, ele desconfiava que estaria a dormir
em cima da secretária, tendo em conta a quantidade de camas que estariam, sem dúvida, ocupadas de Irmãos em convalescença.
Ainda não fazia ideia do que lhe diria sobre as calças de cabedal, mas pelo menos podia tentar falar sobre Payne.
Mas o escritório estava vazio.
Sentado ao computador, não demorou mais de quinze segundos a encontrar a sua shellan. Quando tinha instalado o sistema de segurança digital na mansão, no Fosso e
naquelas instalações, colocara câmaras em todos os quartos - exceto na suíte da Primeira Família. Naturalmente era fácil desligar o equipamento puxando uma simples
ficha e, ora vejam lá, os quartos dos irmãos revelavam todos ecrãs pretos.
O que era bom. Não tinha necessidade de ver todo aquele sexo.
Contudo, o quarto de hóspedes em tons de azul, na casa grande, ainda estava a ser monitorizado e, à luz do candeeiro de cabeceira que tinha ficado aceso, viu a figura
enrolada da sua companheira. Jane estava morta para o mundo, mas era óbvio que não estava a descansar tranquilamente. As sobrancelhas estavam franzidas, como se
o cérebro estivesse desesperadamente a tentar agarrar-se ao sono que tinha conseguido. Ou talvez sonhasse com coisas que a magoavam, em vez de lhe dar prazer.
O seu primeiro instinto foi caminhar até lá, mas quanto mais pensava nisso, mais percebia que a coisa mais certa que podia fazer era deixá-la descansar. Ela e Manello
tinham estado a trabalhar horas seguidas. Além disso, nessa noite ficaria em casa. Wrath dispensara todos por causa dos ferimentos.
Cristo... aquela Sociedade dos Minguantes. Não via tantos matadores há anos, e não estava só a pensar na dúzia que tinha aparecido na véspera. Nas duas semanas anteriores,
ele era capaz de apostar que Ómega transformara uma centena de filhos da mãe. E eram como baratas, por cada uma que se via havia mais dez ocultas.
Ainda bem que os Irmãos eram mortíferos como o diabo. E Butch tinha sarado com relativa facilidade depois de ter feito a sua cena Dhestroyer. Até o ajudara na operação.
Não que ele se lembrasse muito disso, mas ainda assim.
Asfixiado com tudo isto, apalpou o bolso à procura das mortalhas e do tabaco... e apercebeu-se que estava de bata, não havia bolsos para o material.
Fora da cadeira. De volta ao corredor. A caminho de onde tombara.
A porta do quarto de Payne estava fechada e ele nem hesitou ao abrir a porta e entrar. Havia uma grande probabilidade de o médico humano estar lá com a irmã, mas
não havia hipótese de ele não ter adormecido de imediato. Tinha suado as estopinhas.
Quando Vishous entrou, devia ter sentido mais claramente o aroma no ar. E talvez devesse ter prestado atenção ao facto de o chuveiro estar a correr. Mas ficou tão
chocado ao ver a cama vazia... e com o facto de haver aparelhos de apoio e muletas num canto.
Uma paciente paralisada? Era necessária uma cadeira de rodas, não equipamento de apoio à mobilidade. Então... ela estava a andar?
- Payne?
Levantou a voz.
- Payne?
A resposta que obteve foi um gemido. Um gemido muito profundo, de grande satisfação...
O que não seria o conseguido, mesmo com o melhor duche de sempre.
V disparou pelo quarto e quase mandou a porta abaixo ao irromper na casa de banho quente e húmida. E, que grande merda, a cena que se desenrolava era muito pior
do que imaginara.
No entanto, a ironia foi que aquilo que eles estavam... Cristo, nem conseguia traduzir em palavras o que se estava a passar... salvou a vida do cirurgião. V ficou
horrorizado, teve de olhar para o outro lado e só a posição de avestruz evitou que abrisse um buraco do tamanho de um cano de esgoto no pescoço de Manello.
Ao recuar aos tropeções, Vishous ouviu todo o tipo de ruídos vindos do duche. E então chegou a altura de destroçar. Foi contra a cama, fez ricochete, galgou uma
cadeira, bateu na parede.
A continuar assim, só encontraria o caminho para a saída dali a uma semana. Ou coisa do género.
- Vishous...
Enquanto Payne se aproximava dele, manteve os olhos no chão e acabou por lhe ver os pés descalços. Então, ela já conseguia mesmo sentir as pernas.
Boa.
- Por favor, não me venhas com explicações - rosnou, antes de olhar para Manello. O sacana estava todo molhado, com o cabelo colado à cabeça e a roupa colada ao
corpo. - E não te habitues a ela. Só aqui estás até eu não precisar mais de ti... e tendo em conta as melhorias, não será por muito mais tempo...
- Como te atreves... eu é que decido com quem quero acasalar.
Abanou a cabeça para a irmã.
- Então escolhe outra coisa qualquer, que não seja um humano com metade do teu tamanho e um quarto da tua força. A vida aqui não é como nas nuvens, querida... e
a Sociedade dos Minguantes desenhou-te um alvo nas costas igual ao que todos nós temos. Ele é fraco, é um risco para a segurança e tem de voltar ao sítio onde pertence...
e ficar lá.
E não é que isto deixou a sua gémea furiosa. Os olhos gelados ficaram em brasa, as sobrancelhas castanhas franzidas.
- Sai daqui
- Pergunta-lhe o que é que ele esteve a fazer toda a manhã - exigiu V. - Espera, eu digo-te. Andou a coser-me e ao resto da Irmandade porque estávamos a tentar defender
as nossas fêmeas e a nossa raça. Este humano? Não é mais nem menos do que um minguante à espera de ser induzido.
- Como te atreves? Não sabes nada sobre ele.
V aproximou-se da irmã.
- Nem tu. Que é exatamente o que eu quero dizer.
Antes que as coisas se descontrolassem totalmente, virou-se para sair e viu os três refletidos no espelho do corredor. Mas que bela imagem. A irmã, nua e sem pudor,
o humano, molhado e carrancudo, ele, com um olhar enfurecido e prestes a matar alguma coisa.
A raiva cresceu tão depressa e com tanta violência que se libertou ainda antes de ele reconhecer a emoção.
Vishous deu dois passos, puxou a cabeça atrás e bateu com o rosto no vidro, desfazendo o reflexo em pedacinhos.
Enquanto a irmã gritava e o cirurgião berrava, deixou-os entregues a si próprios e saiu indignado.
No corredor, sabia perfeitamente para onde ia.
No túnel, estava bem ciente do que ia fazer.
Enquanto caminhava, o sangue escorria-lhe pelo rosto e pingava-lhe do queixo, as lágrimas vermelhas a caíam-lhe no peito e nos abdominais.
Não sentia qualquer dor.
Mas, com um pouco de sorte, sentiria. Muito em breve.
Capítulo 35
Quando Payne se acabou de vestir e saiu para o corredor, o seu gémeo já se tinha ido embora.
Contudo, o sangue no chão indicava o rumo tomado e ela seguiu o rasto ao longo do corredor em direção ao espaço revestido a vidro assinalado como escritório. Lá
dentro, as pequenas manchas vermelhas marcavam um trilho à volta da secretária e desapareciam junto a uma porta. Foi até lá e abriu-a...
Era apenas um armário. Não tinha nada, além de resmas de papel e materiais de escrita.
Contudo, havia mais qualquer coisa. Tinha de haver. O rasto de sangue terminava numa parede com prateleiras. Apalpando com a mão, procurou uma alavanca ou alguma
tranca que fizesse deslizar a prateleira, sempre a repetir na sua cabeça a cena do espelho. Estava receosa, não por si própria, mas por Vishous e por aquilo que
o levara a fazer. Outra vez.
Queria ter um relacionamento com o irmão. Mas não assim.
Nunca este tipo de interação tóxica.
- Descobriste alguma coisa?
Olhou por cima do ombro e viu o seu curandeiro. Parado à entrada do escritório, ainda estava molhado, mas já não pingava e tinha uma toalha branca enrolada à volta
do pescoço. O cabelo escuro e curto estava despenteado, como se o tivesse esfregado com a toalha para o secar e o tivesse deixado assim mesmo.
- Não consigo encontrar a passagem. - E não era isso tão adequado a tantos níveis.
Payne perdeu algum tempo só a olhar para as prateleiras impecavelmente alinhadas com blocos, caixas de canetas e filas ordenadas de coisas cujo propósito ela só
podia imaginar. Quando finalmente desistiu e saiu, o curandeiro ainda estava à entrada do escritório, olhando-a fixamente. Tinha os olhos escuros de emoção, os lábios
cerrados... e, por alguma razão, a sua expressão fê-la aperceber-se de como ele estava todo vestido.
Como tinha estado sempre vestido quando se deitava com ela.
Ele não tinha deixado que ela lhe tocasse, pois não?
- Concordas com o meu irmão - afirmou sombriamente. - Concordas.
Não era uma pergunta. E não ficou surpreendida quando ele assentiu.
- Isto não é uma coisa a longo prazo - disse ele com uma gentileza horrível. - Não para ti.
- Então é por isso que ainda não tive o prazer do teu sexo.
As sobrancelhas dele levantaram-se brevemente, como se a candura lhe causasse desconforto.
- Payne... isto entre nós não pode funcionar.
- Quem é que diz? É nossa a escolha com quem é que...
- Tenho uma vida para a qual voltar.
Enquanto a sua respiração ficava mais pesada, ela pensou... mas que arrogante de sua parte. Nunca lhe tinha ocorrido que ele tinha outro sítio para onde ir. Mas,
vendo bem, tal como o irmão salientara, o que sabia ela sobre ele?
- Tenho família - continuou. - Um emprego. Um cavalo que tenho de ir ver.
Payne aproximou-se de cabeça erguida.
- E porque é que assumes que se trata de uma coisa ou outra? E antes de começares a tentar, não gastes palavras a dizer-me que não me queres. Eu sei que me queres...
o teu cheiro não mente.
Ele aclarou a garganta.
- O sexo não é tudo, Payne. E, no que te diz respeito, até isso só quer dizer fazer-te chegar onde estás agora.
Com isto, outro arrepio percorreu-a, com tanta intensidade como se houvesse uma corrente de ar no quarto. Mas então abanou a cabeça.
- Querias-me, curandeiro. Quando voltaste aqui e me viste na cama... o teu cheiro não tinha nada que ver com a minha condição física e és um cobarde se estiveres
a fingir o contrário. Esconde-te, se quiseres, curandeiro...
- O meu nome é Manny - atalhou. - Manuel Manello. Trouxeram-me para aqui para te ajudar... e, caso não tenhas reparado, já consegues andar. Por isso, ajudei-te.
Agora? Só estou à espera que a tua raça me desfaça o cérebro outra vez e me abandone para tentar distinguir o dia da noite e a realidade dos sonhos. Este é o teu
mundo, não o meu e só há uma coisa ou outra.
Os olhares deles prenderam-se um no outro e, nesse momento, se as instalações tivessem pegado fogo, ela não se teria apercebido... e sentiu que ele também não.
- Se pudesse resultar - disse ela com dificuldade -, se te permitissem entrar e sair à vontade, ficavas comigo?
- Payne...
- É uma pergunta simples. Responde. Agora. - As sobrancelhas dele subiram, mas ela não conseguia perceber se de excitação ou de repulsa pela sua ousadia, e também
não lhe interessava naquele momento. - A verdade é o que é, dita ou não. Por isso, o melhor é pormos tudo cá para fora.
Ele abanou lentamente a cabeça.
- O teu irmão acha que não...
- Que se foda o meu irmão - contrapôs. - Diz-me o que tu pensas.
No silêncio tenso que se seguiu, ela apercebeu-se do que tinha acabado de dizer e queria praguejar outra vez. Baixando a cabeça, olhou fixamente para o chão, não
com doçura, mas com frustração. As fêmeas de valor não diziam coisas assim e não pressionavam as pessoas para lavar a louça, quanto mais para estas coisas.
De facto, uma fêmea a sério ficaria sossegada enquanto o macho mais velho da família tomava as grandes decisões na vida, dando forma ao curso de todas as coisas,
desde onde viveria até com quem desposaria.
Explosões. Sexo. Palavrões. Se ela continuasse com isto acabaria por fazer a vontade a Vishous, por que o curandeiro - ou seja, Manuel - achá-la-ia tão pouco atraente
que pediria para não estar com ela e para lhe limparem as memórias do tempo que tinham passado juntos.
Será que nunca encaixaria no padrão de perfeição feminina de Layla?
Esfregando as frontes, murmurou:
- Tens toda a razão... mas pelos motivos errados. Tu e eu nunca poderíamos ficar juntos, porque eu não sou o par perfeito para nenhum macho.
- O quê?
Cansada de tudo... dele e do irmão, dela própria, de fêmeas e machos em geral... Acenou com a mão e virou-se.
- Dizes que este é o meu mundo? Estás muito enganado. Não pertenço aqui mais do que tu.
- De que diabo é que estás a falar?
Na verdade, podia aproveitar para ficar a saber como as coisas realmente eram antes de se ir embora. Que diabo.
Olhou por cima do ombro.
- Sou filha de uma deusa, Manuel. Uma divindade. Aquele brilho que vês crescer dentro de mim? É a verdadeira essência da divindade. É isso que ela é. Quanto ao meu
pai? Não passava de um bastardo que me impingiu a vontade de matar... era esse o seu «dom». E sabes o que fiz com ele? Sabes? - Estava ciente de que o tom da voz
subia, mas curiosamente não tinha vontade de se acalmar. - Matei-o, Manuel. E por esse crime contra os laços de sangue, por essa ofensa contra os padrões de conduta
das fêmeas, fui aprisionada e estive detida séculos. Por isso, tens toda a razão. Vai... vai-te já embora. É o melhor. Mas não penses que eu encaixo aqui melhor
do que tu.
Praguejando novamente, empurrou-o e caminhou a passos largos para o corredor, imaginando que muito em breve Manuel se sentiria livre...
- Foi o teu irmão, não foi?
As palavras calmas e em tom de voz baixo ecoaram pelo corredor vazio, fazendo-a deter e parando-lhe também o coração.
- Eu vi o estado em que ele se encontra - disse Manuel com uma voz profunda. - Por acaso foi o teu pai que lhe fez aquilo?
Payne virou-se lentamente. Parado a meio do corredor, o curandeiro não mostrava nem choque, nem horror, apenas uma inteligência que ela já esperava que ele tivesse.
- Porque é que pensaste isso? - perguntou ela, num tom neutro.
- Quando o operei, vi as cicatrizes e é bastante óbvio que alguém o tentou castrar. Estou a extrapolar? Do pouco contacto que tive com ele, diria que é demasiado
sensível e agressivo para alguém levar a melhor sobre ele. Portanto, ou foi um grupo de pessoas ou alguém que o apanhou quando ele estava verdadeiramente, profundamente
vulnerável. Acho que a última hipótese é mais provável, porque... bem, digamos apenas que me espantaria muito se a vossa raça não tivesse também pais abusivos.
Payne engoliu em seco e demorou muito, muito tempo até conseguir falar.
- O nosso pai... prendeu-o no chão. Foi ordenado a um ferreiro que lhe fizesse uma tatuagem... e depois que fosse buscar um alicate.
Manuel fechou os olhos brevemente.
- Lamento muito. Lamento mesmo... mesmo muito.
- O nosso pai foi escolhido como progenitor pela sua agressividade e por ser implacável e o meu irmão foi-lhe entregue quando era mesmo muito novo... ao passo que
eu fiquei no Santuário com a nossa mahmen. Como não tinha nada com que passar o tempo, observava o que se passava aqui na Terra nas taças de visão e... ao longo
dos anos no campo de guerra, o meu irmão foi abusado. Falei disto à minha mãe vezes sem conta, mas ela insistiu em manter-se fiel ao acordo que fizera com o Derramador
de Sangue.
Cerrou os punhos.
- Aquele macho, aquele macho desgraçado e sádico... Ele não era capaz de gerar machos, mas ela garantiu que tivesse um, para ele acasalar com ela. Três anos depois
de termos nascido, ela abandonou Vishous à crueldade do nosso pai, enquanto fazia todos os possíveis para me moldar numa forma em que eu nunca encaixaria. E, por
fim, aquele último episódio em que Vishous foi...
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Não podia continuar sem fazer nada. Vim até cá... e persegui o Derramador de Sangue. Deitei-o por terra e queimei-o até ser um monte de cinzas. E não me arrependo.
- Quem é que te pôs na prisão?
- A minha mãe. Mas o cativeiro só parcialmente teve que ver com a morte dele. Às vezes acho que tinha mais a ver com a sua colossal desilusão comigo.
Esfregou a cara rapidamente e limpou as lágrimas das faces.
- Mas já chega. Chega de... tudo. Vai-te embora... Falarei com o rei para te mandar embora. Adeus, Manuel.
Em vez de esperar que ele respondesse, começou a afastar-se novamente...
- Sim, eu quero-te.
Payne estacou e voltou a olhar por cima do ombro. Um pouco depois, disse:
- És um excelente curandeiro e fizeste o teu trabalho, como tão bem fizeste questão de frisar. Não há mais motivos para continuarmos a falar.
Quando recomeçou a andar, os passos dele aproximaram-se depressa e ele apanhou-a, virando-a para si.
- Se não tivesse mantido as calças vestidas, não teria conseguido evitar de te possuir.
- A sério?
- Dá-me a tua mão.
Sem olhar, ela estendeu-lhe uma mão.
- Mas porque é que...
Ele foi rápido, colocando a palma da mão dela entre as pernas e pressionando-a contra a extensão dura e quente entre as ancas.
- Tens razão.
Encostou-se a ela, a pelve a formigar, a ereção a embater com força na sua mão, à medida que ele ia respirando mais profundamente.
- Apesar de me ter tentado convencer do contrário, sabia que, se ficasse nu, só continuarias virgem o tempo suficiente para eu te saltar para cima. Não é romântico,
mas é a mais pura das verdades.
Enquanto os lábios dela se abriam, os olhos dele desceram até à sua boca e ele gemeu.
- Consegues sentir a verdade, não consegues? Está na tua maldita mão.
- Não te interessa o que eu fiz...
- Queres dizer, ao teu pai? - Parou de se esfregar e franziu o cenho. - Não. Só para que fique claro, sou um tipo do género lex talionis. O teu irmão podia ter morrido
por causa daqueles ferimentos... não importa quão rápido a tua raça sara. Mas indo direto ao assunto, aposto que aquela relação pai/filho lhe lixou a cabeça para
o resto da vida... por isso, sim, não tenho qualquer problema com o que fizeste.
Justiça retaliatória, pensou ela, enquanto interpretava o significado das palavras dele.
Apertando-o com mais força, ela recomeçou o que ele travara, explorando-lhe o sexo para cima e para baixo, friccionando.
- Fico feliz por pensares assim.
E era verdade a tantos níveis. A sua ereção era deliciosa, tão dura e convexa na ponta. Queria explorá-lo como ele a explorara... com os dedos... com a boca... com
a língua...
Os olhos de Manuel rolaram para trás brevemente, enquanto ele rangia os dentes.
- Mas... o teu irmão continua a ter razão.
- Tem? - Ela inclinou-se e passou a língua nos lábios dele. - Tens a certeza?
Quando ela se afastou, uma onda de calor percorreu-o quando os olhares se cruzaram... e depois, com um rugido, virou-a e empurrou-a contra a parede.
- Tem cuidado - rosnou.
- Porquê? - Mergulhou os lábios no pescoço dele, e lenta e inexoravelmente arrastou um canino ao longo da jugular.
- Oh... Foda-se... - Com um palavrão desesperado, ele prendeu a mão na dela, deixando-a alojada entre as suas ancas, tentando claramente concentrar-se.
- Ouve-me. Por muito bom que isto seja entre nós... - Engoliu em seco. - Por muito bom... Merda, olha, o teu irmão sabe o que está a fazer. Não posso cuidar de ti
apropriadamente e...
- Eu sei tomar conta de mim própria.
Empurrou a boca dela contra a dele e ficou com a certeza que já o tinha, quando a sua pelve começou a contrair-se e descontrair-se. Podia-lhe ter travado a mão,
mas o seu corpo estava mais do que a compensar a paragem da fricção frontal.
- Mas que merda - gemeu. - Queres que me venha aqui mesmo?
- Sim, quero. Quero saber como é.
Mais beijos. E, apesar de ser ele que a estava a agarrar e a pressionar contra a parede, era ela a agressora.
Manuel afastou-se, mas, aparentemente, só depois de uma grande luta interna consigo próprio. Depois de respirar fundo várias vezes, disse:
- Perguntaste-me se eu ficaria se pudesse? Nem pensava duas vezes. És linda, maravilhosa, sensual e não faço ideia o que diabo a tua mãe ou qualquer outra pessoa
estão a fazer quando te comparam seja ao que for. Nada se aproxima de ti... ao teu nível.
Enquanto falava, estava totalmente sério e a ser absolutamente sincero, a aceitação que oferecia era tão generosa quanto única. Nunca a tinha recebido de ninguém.
Até o próprio irmão lhe queria negar a escolha de um companheiro.
- Obrigada - sussurrou ela.
- Não é um elogio. É só o que é. - Manuel beijou-a suavemente na boca e demorou-se no contacto. - Mas continuo a achar que o Peras Odioso tem razão, Payne.
- Peras... Odioso?
- Desculpa. É só uma pequena alcunha que imaginei para o teu gémeo. - Estremeceu. - Mas ainda assim, acho realmente que ele está, do fundo do coração, a tentar defender
os teus interesses e tu precisas de alguém que não eu a longo prazo... que eu possa ficar aqui ou não, é apenas parte do problema.
- Não para mim.
- Então tens de analisar melhor a situação. Eu estarei morto daqui a quatro décadas. Se tiver sorte. Queres mesmo ficar a ver-me envelhecer? Morrer?
Só de pensar na morte dele, teve de fechar os olhos e desviar o rosto.
- Pelas Parcas... não.
No silêncio que se seguiu, a energia entre eles alterou-se, mudando de um caráter sexual... para uma ânsia de outro tipo. E, como se ele sentisse o mesmo, encostou-a
ao corpo, abraçando-a com toda a força dos seus braços poderosos.
- Se houve uma coisa que aprendi enquanto médico - disse -, foi que a biologia prevalece. Tu e eu podemos decidir tudo o que quisermos, mas não podemos mudar as
diferenças biológicas. A minha esperança de vida é uma fração da tua... quando muito, temos dez anos até eu ter de me render ao mundo do Cialis.
- O que é isso?
- Um mundo castrado muito, muito murcho - disse ele secamente.
- Bem... eu irei para lá contigo, Manuel. - Afastou-se para poder olhar para os seus belos olhos castanhos. - Onde quer que seja.
Instalou-se um silêncio desconfortável. E depois ele sorriu tristemente.
- Adoro a forma como dizes o meu nome.
Suspirando, ela encostou a cabeça no ombro dele.
- E eu adoro dizê-lo.
Enquanto estavam ali, abraçados, ela pensou se aquela seria a última vez. E isso fê-la lembrar o irmão. Estava preocupada com Vishous e precisava de falar com ele,
mas o gémeo preferira deixá-la sem qualquer hipótese de o contactar.
Seja. Apesar de difícil, ela deixaria Vishous afastar-se temporariamente, por agora.
- Queria pedir-te uma coisa - disse ao curandeiro.
- Diz.
- Leva-me ao teu mundo. Mostra-me... se não tudo, pelo menos alguma coisa.
Manuel ficou tenso.
- Não sei se essa é uma ideia muito boa. Só recomeçaste a andar há cerca de doze horas.
- Mas sinto-me forte e tenho formas de lidar com a viagem. - Na pior das hipóteses, ela podia desmaterializar-se de volta ao complexo. Ela sabia pelas taças da visão
que o irmão tinha rodeado as instalações com mhis e isso era um farol que facilmente podia seguir.
- Confia em mim, não correrei qualquer perigo.
- Mas como é que saímos juntos?
Payne soltou-se do abraço.
- Vestes-te enquanto eu trato de tudo.
Quando parecia que ele ia argumentar, ela abanou a cabeça.
- Dizes que a biologia vence sempre? Muito bem. Mas eu digo-te, temos esta noite... por que havemos de a desperdiçar?
- Quanto mais tempo estivermos juntos, mais difícil se torna a separação.
Oh, aquilo doía.
- Disseste que satisfazias o meu pedido. Já pedi. Não honras a tua palavra?
Os lábios dele ficaram mais finos. Mas depois inclinou a cabeça.
- Tens razão. Vou trocar de roupa.
Enquanto ele regressava ao quarto, ela voltou ao escritório e pegou no telefone, como Jane e Ehlena lhe tinham ensinado. A marcação correu bem e o mordomo doggen
atendeu com uma voz alegre.
Isto tinha de funcionar, disse a si própria. Isto tinha mesmo de funcionar.
Na Língua Antiga disse: Fala Payne, irmã de sangue do Irmão da Adaga Negra Vishous, filho do Derramador de Sangue. Gostaria de falar com o rei, se ele me concedesse
a honra.
Capítulo 36
Vishous entrou de rompante pelo Fosso, vindo do túnel, e teve de limpar o rosto coberto de sangue com a palma da mão para conseguir continuar até aos quartos. Supôs
que tivesse vindo a calhar o espelho ter-se estilhaçado, porque desse modo ficou com poucas lascas, mas para ser franco, estava-se borrifando.
Quando se aproximou da porta de Butch e Marissa, bateu. Com força.
- Só um minuto.
Butch levou algum tempo a abrir a porta, e ainda estava a vestir o roupão.
- O que é... - Não passou daí. - Cristo... V.
Por cima do ombro do chui, pôde ver que Marissa se sentou na cama, com as faces coradas, o longo cabelo loiro desalinhado, os lençóis puxados para lhe cobrir o peito.
A satisfação embriagada deu rapidamente lugar ao choque.
- Eu devia ter-me limitado a telefonar. - V ficou impressionado com o tom de voz calmo, e sentiu o sabor a cobre ao falar. - Mas não sei onde tenho o telefone.
O olhar fixou-se no do melhor amigo, e sentiu-se como um diabético desesperado por insulina. Ou talvez fosse mais como um viciado em heroína mortinho por espetar
uma agulha. Qualquer que fosse a metáfora, tinha de se libertar ou ia acabar por perder a cabeça e fazer algo estupidamente criminoso.
Como por exemplo dar uso às suas lâminas e fazer picadinho daquele cirurgião.
- Apanhei-os juntos - ouviu-se a dizer. - Mas não te preocupes. O humano ainda respira.
E então, limitou-se a ficar ali de pé, com a pergunta que tinha vindo fazer tão óbvia como o sangue que lhe cobria a cara.
Butch espreitou a sua shellan. Sem hesitar, ela fez-lhe sinal com a cabeça, com olhos tão tristes, bondosos e compreensivos que por momentos V se sentiu comovido
- mesmo naquele estado dormente.
- Vai - disse ela. - Toma conta dele. Amo-te.
Butch também lhe fez sinal com a cabeça. Provavelmente também lhe terá dito «Amo-te».
Olhou então para V e murmurou maldisposto:
- Vais esperar no pátio. Vou buscar o Escalade... e pega numa toalha na casa de banho, sim? Pareces o Freddy Krueger.
O chui afastou-se na direção do armário e largou o roupão para se vestir. V olhou para a shellan dele.
- Está tudo bem, Vishous - disse ela. - Vai ficar tudo bem.
- Não desejo isto. - Mas ele precisava, antes de se tornar um perigo para si e para os outros.
- Eu sei. E também te amo.
- És uma bênção desmedida - pronunciou ele na Língua Antiga.
E então fez-lhe uma vénia e afastou-se.
Quando o mundo voltou a ficar nítido, algum tempo mais tarde, V deu por si sentado no lugar do pendura do Escalade. Butch estava ao volante, e a condução temerária
do chui significava que já tinham andado uns bons quilómetros. As luzes da baixa de Caldwell não estavam apenas à distância, estavam por todo o lado, cintilando
pelas janelas da frente e dos lados.
O silêncio no interior do SUV era tenso como as cordas de um violino e denso como um tijolo. E, mesmo estando a chegar ao seu destino, V debatia-se para compreender
a viagem que estavam a fazer. Contudo, não havia como voltar atrás. Para nenhum deles.
Desceram para a garagem do Commodore.
O motor foi desligado.
Abriram-se duas portas... fecharam-se duas portas.
E então subiram no elevador. Que foi como a viagem do complexo para o Commodore: nada que ficasse gravado na mente de V.
Quando deu por si, Butch estava a usar a chave de cobre para abrir caminho até à cobertura.
V entrou primeiro e fez acender as velas negras nos seus castiçais. Assim que as paredes e chão preto ficaram iluminados, ele passou de zombie a fio eletrificado,
tendo os seus sentidos despertado de tal maneira que as suas próprias passadas lhe soaram como bombas a rebentar, e o som da porta a fechar-se atrás deles parecia
o edifício a implodir.
Cada vez que respirava, era uma rajada de vento. Cada batida do seu coração era um soco de boxe. Cada vez que engolia era um sorvedouro na sua garganta.
Era assim que se tinham sentido os seus subordinados? Aquele formigueiro demasiado nítido?
Parou ao pé da mesa. Não havia casaco para tirar. Nada a não ser a agora ensanguentada bata hospitalar que vestira.
Junto dele, a presença de Butch fazia-se sentir como uma montanha.
- Posso usar o teu telefone? - pediu V com rispidez.
- Toma.
V girou nos calcanhares e apanhou com a mão enluvada o Blackberry que lhe foi atirado. Começou a escrever uma mensagem, escolhendo Doc Jane na lista de endereços.
Os dedos imobilizaram-se nesse momento. O seu cérebro estava entupido com emoções, os gritos que ele precisava de soltar estavam a atrapalhar e a transformar a sua
habitual reserva num conjunto de barras de aço que o trancavam dentro de si mesmo.
Mas vendo bem as coisas, era por isso que ali estavam.
Com um pequeno impropério, cancelou a mensagem.
Quando foi devolver o telefone, Butch estava junto à cama, tirando um dos seus casaquinhos amaricados de camurça. Nada de merdas de motard, cheias de espigões, para
o chui usar nas folgas. O casaco caía pela cintura e tinha sido perfeitamente ajustado ao seu peito do tamanho de um barril, o material de que era feito era mais
suave do que manteiga, e macio como nuvens. E isso V sabia porque já tinha passado o casaco um par de vezes.
Não era coisa em que se andasse à porrada.
E ele estava a tirá-lo pelas razões certas.
Não havia motivo para encher de sangue objetos assim.
V pousou o telefone na cama e recuou, Butch dobrou o casaco com mãos cuidadosas e precisas, e ao pousá-lo foi como se estivesse a aconchegar um bebé no edredão preto.
Então aqueles dedos fortes puxaram para cima as calças negras e alisaram a camisa de seda preta.
Silêncio.
Mas não um silêncio tranquilo.
Vishous olhou para as prateleiras de vidro que havia por toda a casa, e viu o reflexo do seu melhor amigo.
Ao fim de alguns instantes, a cabeça do chui voltou-se.
Os olhares cruzaram-se no vidro.
- Vais deixar aquilo ali? - perguntou Butch num tom sombrio.
Vishous levou as mãos ao nó que tinha atrás do pescoço e desapertou a bata. E depois fez o mesmo na cintura. Quando o tecido lhe caiu do corpo, o chui observou-o
cair no chão desde a outra ponta do quarto.
- Tenho de tomar a merda duma bebida - disse Butch.
No bar, o macho serviu-se com um shot de Lagavulin. E outro. E depois afastou o copo, pegou na garrafa, e bebeu de golada.
Vishous ficou onde estava, de boca aberta, com a respiração acelerada enquanto se tentava manter concentrado na imagem do seu melhor amigo.
Butch baixou a garrafa mas não a pousou, e a cabeça pendeu-lhe para a frente como se tivesse fechado os olhos.
- Não tens de fazer isto - disse V com voz rouca.
- Pois... mas tenho.
A cabeça escura do chui ergueu-se e depois deu meia volta.
Quando finalmente avançou, deixou ficar a garrafa no bar, e parou quando estava mesmo atrás de Vishous. Estava perto... perto o bastante para conseguir sentir o
calor do seu corpo.
Ou talvez fosse o próprio sangue de V a começar a ferver.
- Quais são as regras? - quis saber o chui.
- Não há. - Vishous firmou os pés e preparou-se. - Faz o que quiseres... mas rebenta comigo. Tens de me partir todo.
De volta ao complexo, Manny trocou mais uma vez de bata. Se as coisas continuassem daquela maneira ia acabar por comprar ações da lavandaria. Ou de uma empresa de
máquinas de lavar.
No corredor, assentou arraial contra a parede de betão e olhou para os Nike. Ele não achava de todo que as solas deviam ficar excitadas. Tinha a sensação que ele
e Payne não iam a lugar algum. Pelo menos, não iriam juntos.
Filha de uma divindade.
Eeeeeee... não queria saber. Ela podia ser descendente de uma avestruz, tanto lhe fazia.
Esfregou o rosto, sem conseguir decidir se estava impressionado consigo mesmo ou aterrorizado por ter encarado tão bem aquela novidade. Era provavelmente mais saudável
ficar chocado e descrente. Só que o seu cérebro limitou-se a ir na onda, o que significava que ou ele estava a ficar realmente mais flexível com aquilo que considerava
a realidade, ou a sua massa cinzenta tinha caído num estado de incapacidade esclarecida.
Talvez fosse o primeiro caso. Porque, bem vistas as coisas, ele sentia-se com... Merda, ele sentia-se melhor do que nunca, apesar de ter operado dez horas seguidas,
e de ter dormido numa cadeira durante parte da noite - ou dia, ou lá o que fosse - a sua combinação corpo/mente estava forte e saudável e aguçada como um alfinete.
Mesmo quando se esticava, não sentia qualquer rigidez... nem rangidos, nem estalidos. Era como se ele tivesse estado de férias um mês, a receber massagens e a fazer
ioga à frente ao oceano.
Não que ele alguma vez tivesse experimentado a Posição do Cão.
Eeeeeeeeee nesse mesmo registo veio-lhe à cabeça uma verdadeiramente fabulosa e tremendamente imprópria visão de Payne. O membro ergueu-se para se manifestar, e
ele achou que seria sem dúvida boa ideia não a levar numa visita guiada ao seu quarto, por exemplo. Na verdade, atendendo aos acontecimentos mais recentes, que o
tinham envolvido ajoelhado, a casa de banho estava também provavelmente fora de questão. Talvez ele devesse evitar divisões com azulejos? Portanto, a cozinha também
não podia ser frequentada. O átrio de entrada, também não...
Payne praticamente saltou do escritório, e trazia a pasta dele e outras coisas.
- Estamos livres!
Com toda a graça de uma atleta, correu para ele com o cabelo a esvoaçar, a sua passada tão fluida como aquelas ondas escuras na cabeça.
- Estamos livres! Estamos livres!
Saltou para os braços dele. Manny agarrou-a e fê-la rodopiar.
- Vão deixar-nos ir? - perguntou.
- Nem mais! Temos autorização para retirar o teu automóvel. - Enquanto lhe entregava as coisas, sorria de forma tão entusiasmada que as suas presas brilhavam. -
Pensei que pudesses precisar disto. E o telefone já funciona.
- Como é que sabes que essas coisas são minhas?
- Têm o teu cheiro. E Wrath contou-me acerca daquele cartãozito que o meu gémeo tinha retirado.
O facto de ela o reconhecer pelo cheiro deixou-o excitado, lembrando-o exatamente de quão perto tinham ficado...
Ok, tempo de parar o filme.
Payne levou a mão ao rosto dele.
- Sabes que mais?
- O quê?
- Gosto da maneira como olhas para mim, Manuel.
- Ai sim?
- Faz-me lembrar quando a tua boca estava dentro de mim.
Manny suspirou e quase perdeu a compostura. E, para impedir que as coisas lhe fugissem ao controlo, pôs-lhe o braço em redor da cintura.
- Anda. Vamos embora antes que seja tarde.
O riso dela foi tão despreocupado que, por uma qualquer razão, lhe rasgou o peito e expôs o coração que batia por trás das costelas. E isso foi ainda antes de ela
se inclinar para diante e lhe beijar a face.
- Estás excitado.
Ele relanceou-a.
- E tu estás a brincar com o fogo.
- Gosto de estar quente.
Manny deu uma gargalhada.
- Bem, não te preocupes... és escaldante.
Caminharam até à porta, e ele apoiou a palma da mão na barra de emergência.
- Isto vai mesmo abrir?
- Tenta e já descobres.
Ele fez força... e quem diria, o trinco saltou e a pesada porta metálica escancarou-se.
Como não lhes caíram em cima vampiros brandindo armas e catanas, ele abanou a cabeça.
- Como é que conseguiste isto.
- O rei não ficou satisfeito. Mas eu não sou prisioneira, sou maior de idade, e não há motivo para não poder sair do complexo.
- E para voltarmos... como é? - Como a alegria dela diminuiu, ele pensou, uh-oh, foi assim que ela conseguiu. Tecnicamente, ela estava a levá-lo a casa... isto era
a sua despedida.
Alisou-lhe o cabelo.
- Está tudo bem. Está... tudo bem, bambina.
Ela pareceu engolir em seco.
- Não vou pensar no futuro, e tu também não o deves fazer. Há horas e horas para tirar partido.
Horas. Não dias nem semanas nem meses... nem anos. Horas.
Deus, não se sentia nem um pouquinho livre.
- Anda - disse ele, saindo e pegando-lhe na mão. - Vamos fazer com que isto valha a pena.
O Porsche estava estacionado nas sombras do lado direito e, quando o alcançou, deu com o veículo destrancado. Mas vamos lá, não é que alguém lá quisesse entrar.
Abriu a porta do passageiro.
- Deixa-me ajudar-te a entrar.
Pegando no seu braço como um cavalheiro, instalou-a e esticou então o cinto de segurança por cima do peito dela, encaixando-o no lugar.
Os olhos da fêmea observaram para todos os pormenores do interior e com as mãos pressionou os lados do banco desportivo. Manny pressentiu que esta podia ser a primeira
vez que ela andava de carro. E isso não era fixe?
- Já andaste de carro? - perguntou ele.
- Na verdade, não.
- Bem, então vou conduzir devagar.
Pegou-lhe na mão quando ele se sentou.
- Isto anda rápido?
Ele riu um bocado.
- É um Porsche. É para andar depressa.
- Então tu irás levar-nos com o vento! Vai ser como no tempo em que eu tomava as rédeas!
Manny formulou uma imagem mental da felicidade selvagem no rosto dela. Estava a brilhar, e não num sentido etéreo, mas sim com simples alegria de viver.
Debruçou-se e beijou-a.
- És tão bonita.
Ela agarrou-lhe a cabeça.
- E eu agradeço-te por isso.
Oh, mas ele não tinha mesmo nada que ver com isso. O que a estava a iluminar era a liberdade, a saúde e o otimismo... e ela não merecia menos da vida.
- Há alguém que eu quero que conheças - disse.
Payne sorriu-lhe.
- Então conduz, Manuel. Leva-nos para a noite.
Olhou para ela mais um instante... e ligou o carro.
Capítulo 37
Nu no apartamento de cobertura, Vishous esperava por alguma coisa... qualquer coisa.
Em vez disso, Butch recuou e desapareceu na cozinha. Sozinho, V fechou os olhos e praguejou. Aquilo não era boa ideia. Não se pedia a um rapaz católico que brincasse
com o tipo de brinquedos que V...
A pancada surgiu-lhe pelas costas.
Era um encontrão corporal modificado, e executado na perfeição. Dois braços enormes envolveram-no pelo peito e pelas ancas, e foi girado e atirado contra a parede
junto à bancada. Que foi onde entrou a parte do «encontrão». Cada centímetro quadrado do corpo esteve envolvido no impacto. Mas não houve ressalto. Nada de ricochete.
Estava imobilizado pela nuca e pelo rabo.
- Braços sobre a cabeça.
O rosnido foi como uma arma contra o crânio e V esforçou-se por obedecer, debatendo-se contra a pressão que lhe prendia os braços à frente do peito. O lado direito
foi o primeiro a libertar-se e, assim que o pulso saiu debaixo do corpo, foi agarrado e preso numa algema. O lado esquerdo foi imobilizado com a mesma rapidez.
Claro que os chuis eram bons a trabalhar com aço.
Seguiu-se uma breve acalmia em que pôde recuperar o fôlego. Depois, o som de elos de correntes metálicas a serem movimentadas anunciou o próximo destino. Para cima.
Gradualmente, o peso saiu-lhe dos pés, sendo transferido para as articulações e ao longo do comprimento dos braços. A subida deteve-se logo que os dedos dos pés
deixaram o chão... e depois ficou ali pendurado, virado para a janela, o ar a entrar-lhe e a sair-lhe com dificuldade dos pulmões enquanto ia ouvindo Butch a mexer-se
atrás dele.
- Abre a boca.
V escancarou a boca ao ouvir a ordem, com as articulações do maxilar a estalarem, os olhos a serem repuxados pelos cantos, os golpes que tinha no rosto a ganharem
vida com um coro de uivos.
A mordaça foi-lhe puxada pela cabeça abaixo e encaixada no lugar correto, com a bola a espremer-se entre as presas e a abrirem tudo ainda mais. Com um puxão rápido,
a correia de cabedal esticou-se por trás do crânio e a fivela foi apertada até se enterrar no couro cabeludo.
Era a disposição perfeita. A suspensão e a restrição a que estava sujeito cumpriam a sua missão, fazendo-lhe o corpo retesar-se de muitas formas diferentes.
Seguiu-se um espartilho barbado, com a coisa a passar-lhe não por cima dos ombros, mas à volta do tronco, e as pontas metálicas no interior da estrutura de cabedal
a morderem-lhe a pele. Butch começou por apertar sobre o esterno e depois seguiu-se uma série de apertos sequenciais, cada vez mais para baixo... até que, desde
as costelas de V até à barriga e ao topo das ancas, os círculos concêntricos de dor percorreram-lhe a coluna, subindo até aos recetores no cérebro e descendo até
ao membro duro como pedra.
O oxigénio assobiou-lhe pelas narinas quando se verificou uma breve acalmia sem toques, e depois Butch regressou com quatro pedaços de borracha. Tinha bons instintos,
para um amador. Tanto a mordaça com a bola como o arnês peitoral tinham argolas de inox um pouco por todo o lado, separadas por dois dedos, e era óbvio que o chui
lhes ia dar bom uso.
Butch foi passando ganchos pelas argolas da mordaça e esticou os tubos de borracha, prendendo-os à frente e às costas do espartilho.
Algo que imobilizou a cabeça de Vishous numa posição frontal.
Depois Butch girou-o, deixando-o num carrossel improvisado. No seu estado de imobilização foi uma viagem e tanto, e rapidamente ficou sem saber se estava a mexer-se
ou se a sala estava às voltas. As coisas passaram-lhe à frente uma a seguir à outra, o bar, a porta, a bancada... Butch... a cama, a janela... depois voltava o bar,
a porta, a mesa... e Butch...
Que se acercara dos chicotes e correntes pendurados.
O chui ali ficou, de olhos fitos em Vishous.
Qual comboio a chegar à estação, a rotação foi abrandando cada vez mais, até que por fim se imobilizou... ficando o par a olhar-se.
- Disseste que não havia regras - atirou-lhe Butch. - Continua a ser assim?
Sem maneira de assentir ou de abanar a cabeça, V fez o que pôde com os pés, levantando-os e voltando a baixá-los.
- De certeza?
Quando repetiu o movimento, os olhos de Butch cintilaram à luz das velas, como se tivessem lágrimas.
- Então está bem - disse, num tom rouco. - Se é para ser assim.
Butch limpou o rosto, virou-se para a parede e depois percorreu a exibição de brinquedos. Quando se aproximou dos chicotes, V imaginou a franja com espigões a rasgar-lhe
as costas e as coxas... mas o chui prosseguiu. Depois vinha o chicote de nove pontas, e V quase as sentia a fustigarem-lhe a carne... mas Butch não parou. Depois
os clipes de mamilos e as algemas barbadas de aço inoxidável que podiam ser aplicadas nos tornozelos, nos antebraços, no pescoço...
À passagem por cada secção, Vishous franzia o cenho, interrogando-se se o chui estava apenas a provocá-lo, algo profundamente desprovido de interesse...
Mas Butch acabou por parar. E estendeu a mão...
V gemeu e começou a debater-se contra as grilhetas que o mantinham erguido. De olhos arregalados, esforçou-se por suplicar, mas não tinha como mover a cabeça, nem
conseguia falar.
- Disseste que não havia limites - balbuciou Butch. - Portanto é por aí que vamos.
As pernas de V sofreram espasmos e o peito começou a gritar com a falta de oxigénio.
A máscara escolhida pelo chui não tinha orifícios, nem para os olhos, nem para os ouvidos, nem para a boca. Feita de cabedal e cosida com um fio fino de inox, a
única entrada para o oxigénio era através de dois painéis laterais com rede, afastados o suficiente para não haver entrada de luz - e o ar circularia primeiro sobre
a pele quente e em pânico, antes de entrar pela boca para chegar aos pulmões. A máscara fora algo que V comprara mas nunca chegara a usar. Só a guardava porque o
aterrorizava, razão mais do que suficiente para ter aquilo.
Ficar sem visão nem audição era a única coisa que garantidamente lhe fazia perder o juízo. Exatamente por isso, Butch escolhera a máscara. Sabia ao certo o que fazer.
A dor física era uma coisa... mas a pressão psicológica era muito pior.
E, logo, muito mais eficaz.
Butch contornou-o lentamente e desapareceu de vista. Debatendo-se furiosamente, V tentou posicionar-se de modo a encarar o amigo, mas os dedos dos pés não conseguiam
firmar-se no chão, outra razão para o êxito da estratégia do chui. Debater-se sem resultados só servia para amplificar o terror.
Com um movimento, as luzes desapareceram.
Debatendo-se descontrolado, Vishous tentou opor-se, mas essa era uma batalha perdida à partida. Com um puxão rápido, a máscara foi apertada à volta do pescoço, para
já não sair.
A hipoxia mental instalou-se de imediato. Não tinha oxigénio, nem onde o ir buscar, nada...
Sentiu qualquer coisa na perna. Uma coisa comprida e estreita. E fria.
Como uma lâmina.
Imobilizou-se. A tal ponto que os esforços anteriores o deixaram a balançar nas correntes, o corpo era agora uma estátua suspensa por finos elos metálicos.
As inspirações e exalações de V dentro do capuz ribombavam-lhe aos ouvidos enquanto se concentrava na sensação abaixo da cintura. A faca deslocava-se com lentidão,
cada vez mais para cima, e ao mexer-se aproximou-se do interior da coxa...
Um rasto líquido começou a escorrer-lhe sobre o joelho.
Nem sequer sentia a dor do corte enquanto a lâmina se encaminhava para o seu sexo. As implicações eram demasiado fortes para o seu sistema de autodestruição.
De súbito, passado e presente misturaram-se. Uma alquimia desencadeada pela adrenalina que lhe percorria cada centímetro das veias. Foi de imediato levado a percorrer
os muitos anos que o separavam da noite em que os machos do pai o tinham segurado contra a terra, às ordens do Derramador de Sangue. As tatuagens não tinham sido
o pior.
E estava a acontecer outra vez. Só que desta vez sem os alicates.
Vishous gritou em torno da bola da mordaça... e não parou.
Gritou por tudo o que perdera... gritou pelo meio macho que era... gritou por Jane... gritou por quem eram os pais e por aquilo que desejava para a irmã... gritou
pelo que obrigara o melhor amigo a fazer... Gritou e gritou até perder o fôlego, a consciência, tudo.
O passado e o presente.
Até mesmo a ele próprio.
E, no meio do caos, estranhamente, tornou-se livre.
Butch percebeu o momento exato em que o seu melhor amigo desfaleceu. Não foi só pelo facto de os pés irrequietos terem ficado imóveis. Foi a descontração repentina
de toda a musculatura. Já não havia tensão nos enormes braços e nas coxas massivas. Já não havia bombear no peito largo. Já não havia músculos retesados nos ombros
e pelas costas.
Butch afastou de imediato a colher, que fora buscar à cozinha, da perna de V e parou também de despejar a água morna do copo que trouxera do bar.
As lágrimas que tinha nos olhos não ajudavam a soltar o capuz e a retirá-lo. Nem simplificaram a remoção dos preparos de imobilização. Teve especial dificuldade
com a mordaça de bola.
O espartilho foi uma merda para soltar, mas por mais desesperado que estivesse para baixar V, era muito mais fácil podendo trabalhar a toda a volta. Daí a pouco,
o irmão estava ensanguentado, mas desimpedido.
Chegando-se à parede, Butch libertou o guincho e baixou lentamente o corpo tremendo e inanimado de Vishous. Não houve sinais de ter dado conta da alteração na altitude,
e o soalho só teve impacto por ter feito ceder as pernas frouxas de V, com os joelhos a erguerem-se quando o mármore recebeu o traseiro e o tronco.
Houve mais sangue quando Butch soltou as grilhetas.
Cristo, o amigo estava bem maltratado. As correias da mordaça tinham deixado vergões encarnados nas faces; os danos causados pelo espartilho eram ainda mais do que
muitos e havia ainda os pulsos feridos.
Juntava-se a tudo isso o estado do rosto do tipo, cortesia daquilo contra o qual o estampara.
Por um momento, nada mais foi capaz de fazer do que afastar o cabelo negro de V com mãos que tremiam como varas verdes. Depois olhou para o corpo do amigo, para
as tatuagens abaixo da cintura e para o sexo flácido... e para as cicatrizes.
O Derramador de Sangue era um merdas inominável por ter torturado o filho daquela maneira. E a Virgem Escrivã era uma inútil por o ter permitido.
E Butch ficara devastado por ter usado esse passado horrível para vergar o amigo.
O problema era que não quisera agredir fisicamente V. Não era um cobardolas, mas não tivera estômago para isso. Além do mais, a mente era a mais poderosa arma que
se podia ter contra alguém.
Mesmo assim, as lágrimas escorriam-lhe dos olhos quando pegara na colher e a encostara àquela perna - pois soubera à partida qual a extrapolação que seria feita.
E tivera consciência de que a água morna consolidaria a deslocação do presente.
Os gritos tinham sido abafados pela mordaça e pelo capuz... contudo, o não-som trespassara os ouvidos de Butch como nada mais seria capaz.
Precisaria de muito, muito tempo para conseguir ultrapassar o que acontecera. Sempre que fechava os olhos só via o melhor amigo a contorcer-se, cheio de espasmos.
Esfregando o rosto, Butch levantou-se e dirigiu-se à casa de banho. De uma prateleira no armário tirou um molho de toalhas pretas. Algumas deixou secas, outras molhou
com água morna no lavatório.
De regresso para junto de Vishous, deitado no chão, limpou o sangue e a transpiração do corpo do amigo, virando-o de lado para não falhar nada.
A limpeza demorou uma boa meia hora. E precisou de várias viagens, ida e volta, até ao lavatório.
A sessão demorara uma fração desse tempo.
Quando acabou, levantou o tremendo peso de V nos braços e levou-o até à cama, deitando-o com a cabeça nas almofadas de cetim preto. O banho de esponja, por assim
dizer, deixara V com pele de galinha, pelo que Butch enrolou o irmão, soltando os lençóis e envolvendo-o com eles.
A cura estava já a ter lugar, com a carne que fora raspada ou cortada a selar-se e a eliminar as marcas feitas.
Isso era bom.
Ao recuar, parte de Butch queria deitar-se naquela cama e abraçar o amigo. Mas não fizera aquilo por si. Além disso, se não saísse rapidamente dali para se embebedar,
iria perder a porra do juízo.
Depois de se certificar que V estava bem instalado, pegou no blusão, que atirara para o chão...
Espera, as toalhas ensanguentadas e a confusão por baixo do guincho.
Movendo-se rapidamente, limpou o chão e depois pegou nas toalhas molhadas, levando-as para o cesto na casa de banho, o que o levou a interrogar-se de quem trataria
das coisas por ali. Talvez fosse Fritz... ou então seria V a armar-se em mulher-a-dias.
De volta ao quarto principal, perdeu um segundo a confirmar que os indícios tinham desaparecido, salvo o copo e a colher... e depois foi ver se V continuava a dormir...
naquela espécie de coma.
Apagado. Completamente.
- Vou tratar daquilo que precisas mesmo - disse Butch em voz baixa, interrogando-se se conseguiria voltar a respirar devidamente. O peito parecia-lhe tão oprimido
como o de V estivera mesmo. - Aguenta-te aí, mano.
A caminho da porta pegou no telemóvel para marcar um número, e deixou cair a porcaria do aparelho.
Pois. Parecia que ainda tinha as mãos a tremer. Vá-se lá saber porquê.
Quando finalmente conseguiu ligar, rezou para que a chamada fosse...
- Já está - balbuciou. - Podes vir. Não, a sério... ele vai precisar de ti. Isto foi por vocês os dois. Não... pois. Não, estou de saída. Está bem. Certo.
Quando desligou, Butch trancou V e chamou o elevador. Enquanto aguardava, tentou vestir o blusão e debateu-se de tal maneira com a camurça que acabou por desistir
e pendurar a coisa ao ombro. Quando as portas retiniram e se abriram, Butch entrou, pressionou o botão com um E... e desceu, desceu, desceu, caindo de uma forma
controlada graças à pequena caixa metálica que era o elevador.
Enviou uma mensagem à sua shellan em vez de lhe ligar por dois motivos. Não confiava na voz e, verdade fosse dita, não estava preparado para as questões que ela
inevitável e justificadamente teria.
Tudo ok. Vou p casa descansar. Amo-te xxx B
A resposta de Marissa foi tão rápida que se tornou óbvio que ela teria o telefone na mão, à espera de notícias suas: Também te amo. Estou no Lugar Seguro mas posso
ir para casa.
O elevador abriu-se e o cheiro doce a gasolina disse-lhe que chegara ao seu destino. Ao dirigir-se ao Escalade, respondeu à mensagem: Não, estou bem. Fica e trabalha,
estou à tua espera quando te despachares.
Estava a tirar as chaves quando o telefone deu sinal. Está bem, mas se precisares, és o mais importante.
Cristo, mas que fêmea de valor.
Tu também xxx, escreveu.
Desligou o alarme do SUV e destrancou a porta do passageiro. Entrou, fechou a porta e voltou a trancar o carro.
Devia começar a conduzir. Em vez disso, apoiou a testa no volante e respirou fundo.
Ter uma boa memória era uma competência demasiado sobrevalorizada. E por mais que não invejasse Manello e o constante apagar de recordações, daria quase tudo para
se livrar das imagens que tinha na cabeça.
Mas não de V. Essa... relação não.
Nunca abandonaria o macho. Nunca.
Capítulo 38
-Toma, pensei que te soubesse bem um café.
José de la Cruz depositou o venti latte do Starbucks na secretária do parceiro e instalou-se na cadeira à frente do jovem.
Tendo em conta que ainda vestia as mesmas roupas com que imitara a Missão Impossível na véspera, Veck devia estar com o aspeto de qualquer coisa manhosa. Em vez
disso, o filho da puta parecia robusto, em vez de ranhoso.
Por isso, José estava disposto a apostar que os outros seis copos de java meio bebidos à volta do computador tinham sido levados por várias senhoras da esquadra.
- Obrigado, meu. - Quando Veck agarrou na oferta de líquido quente, os olhos não se desviaram do monitor do Dell - deveria estar a pesquisar os ficheiros de desaparecidos
e a abrir os que se referiam a mulheres entre os dezassete e os trinta anos de idade.
- Que estás a fazer? - perguntou José, não obstante.
- Desaparecidos. - Veck esticou-se na cadeira. - Reparaste quantos indivíduos entre os dezoito e os vinte e quatro entraram ultimamente no sistema? Homens, não mulheres.
- Sim. O presidente da câmara está a reunir uma equipa para investigar.
- Também há muitas raparigas, mas bolas, isto mais parece uma epidemia.
Um par de agentes fardados passou pelo corredor e cumprimentaram-nos com acenos de cabeça. Quando os passos se desvaneceram, Veck pigarreou.
- O que disseram os Assuntos Internos. - Não era uma pergunta. E os olhos azuis-escuros mantiveram-se fitos na base de dados. - É por isso que aqui estás, não é?
- Bom, também vim trazer o café. Mas parece que já estás abastecido.
- A receção, lá em baixo.
Ah, sim. As duas Kathy, a Brittany que se escreve Britnae, e a Theresa. Provavelmente todas a pensar que o tipo era um herói.
José tossicou.
- Parece que o fotógrafo já tinha algumas acusações pendentes de assédio por ter o hábito de aparecer onde não é bem-vindo. Ele e o advogado querem esquecer tudo,
porque mais uma intrusão em cena de crime não vai jogar a favor dele. Os Assuntos Internos pediram declarações a todos e o que interessa é que foi uma simples agressão
de tua parte... nada de grave. Além disso, o fotógrafo disse que se recusa a colaborar com o PG contra ti, caso chegue a esse ponto. O mais provável deve ser porque
acha que isso lhe será útil.
Os olhos desviaram-se finalmente.
- Graças a Deus.
- Mas não fiques muito entusiasmado.
Veck semicerrou os olhos, mas não por estar confuso. Sabia exatamente o que se passava.
E ainda assim, nem sequer perguntou, limitou-se a esperar.
José olhou em volta. Às dez da noite, o departamento de homicídios estava vazio, embora os telefones continuassem a tocar, com breves trinados a deixarem-se ouvir
aqui e ali até que o voice mail atendia. No corredor, a equipa de limpeza dedicava-se às carpetes, com vários aspiradores a gemer à distância.
Assim sendo, não havia motivo para não ser direto.
Mesmo assim, José fechou a porta. Regressando a Veck, voltou a sentar-se e pegou num clipe desgarrado, começando a desenhar uma imagem invisível no tampo de formica
da secretária.
- Perguntaram-me o que pensava de ti. - Bateu na fronte com o clipe. - Mentalmente. Até que ponto és estável.
- E tu respondeste...
José limitou-se a encolher os ombros e a ficar em silêncio.
- Aquele cabrão estava a tirara fotografias a um cadáver. Em busca de lucro...
José levantou a mão para atalhar o protesto.
- Aí, ninguém diz o contrário. Que porra, todos nós queríamos dar-lhe uma tareia. Mas a questão é: se eu não te tivesse afastado... até onde é que ias, Veck?
A pergunta teve como resposta mais um franzir de cenho.
E depois o mundo mergulhou no silêncio. Um silêncio profundo. Bem, à exceção dos telefones.
- Sei que leste o ficheiro sobre mim - disse Veck.
- Pois foi.
- Pois, sabes, eu não sou o meu pai. - As palavras foram debitadas num tom baixo e lento. - Nem sequer cresci com ele. Mal o conheci e não sou de todo como ele.
Pois, às vezes tinha-se sorte.
Thomas DelVecchio tinha muito a seu favor. Notas máximas na formação de direito criminal... primeiro lugar na academia... os três anos no giro foram imaculados.
E era tão bem-apessoado que nunca pagava cafés.
Mas era filho de um monstro.
E essa era a base do problema que tinha. Não era justo condenar o filho pelos pecados do pai. E Veck tinha razão: a avaliação psicológica dava-o como sendo tão normal
como qualquer um.
Por isso, José aceitara-o como parceiro sem pensar duas vezes no pai dele.
Isso mudara desde a véspera e o problema fora a expressão no rosto de Veck quando investira contra o fotógrafo.
Tão frio. Tão calmo. Com tanta emoção como se estivesse a abrir uma lata de refrigerante.
Tendo passado quase toda a vida adulta nos Homicídios, José vira muitos assassinos. Havia quem cometesse crimes por paixão, perdendo a cabeça por um homem, ou por
uma mulher; havia os idiotas, que para ele pertenciam aos casos relacionados com drogas e álcool, bem como a violência de gangues; e depois havia os doentes sádicos,
que tinham de ser abatidos como cães raivosos.
Todas essas variações de criminosos provocavam tragédias inimagináveis nas famílias das vítimas e na comunidade. Mas não eram esses que tiravam o sono de José.
O pai de Veck assassinara vinte e oito pessoas em dezassete anos... e esses tinham sido os corpos encontrados. O sacana estava naquele momento no corredor da morte,
a meros duzentos quilómetros dali, em Somers, no Connecticut, e estava prestes a receber a injeção, apesar do número de recursos apresentados pelo advogado. O mais
doente no meio de tudo aquilo? Thomas DelVecchio tinha um clube de fãs a nível mundial. Com cem mil amigos no Facebook, tralhas dele à venda no CafePress, e canções
escritas sobre ele por bandas de death-metal, o tipo era uma celebridade infame.
Sabia Deus que essas merdas davam a volta à cabeça de José. Os idiotas que idolatrizavam o cabrão deviam passar uma semana consigo no trabalho. Para ver se continuavam
a gostar de assassinos na vida real.
Nunca chegara a conhecer o DelVecchio-pai pessoalmente, mas assistira a bastantes vídeos de entrevistas levadas a cabo por vários procuradores e esquadras. À superfície,
o tipo era tão lúcido e calmo como um instrutor de ioga. Ainda por cima era afável. Não importava quem tinha à frente ou o que lhe era dito para o provocar, ele
nunca vacilava, nunca cedia, nunca deixava transparecer que aquilo tivesse alguma importância.
Só que José vira algo naquele rosto, bem como alguns dos outros profissionais: de vez em quando havia um brilho nos olhos que levava José a agarrar na cruz. Era
o tipo de coisa que um miúdo de dezasseis anos poderia sentir ao ver um carrão a passar ou uma rapariga com um belo traseiro e barriga à mostra. Era como o sol a
refletir-se numa lâmina afiada, um breve lampejo de luz e prazer.
Mas nunca deixara ver mais nada. Tinham sido as provas a condená-lo, nunca o seu testemunho.
E era esse tipo de assassino que deixava José a olhar para o teto enquanto a esposa dormia a seu lado. DelVecchio Sénior era suficientemente esperto para se manter
controlado e apagar o rasto. Era confiante e engenhoso. E era tão implacável como a mudança de estação... Era o Halloween num universo paralelo. Em vez de um Zé
qualquer com uma máscara, ele era um monstro com um rosto amigável e atraente.
Veck era tal e qual o pai.
- Ouviste o que eu disse?
Ao som da voz do miúdo, José voltou a concentrar-se.
- Sim, ouvi.
- Quer dizer que acabou entre nós - atirou Veck. - Estás a dizer que já não queres trabalhar comigo? Partindo do princípio de que ainda tenho trabalho.
José voltou aos rabiscos com o clipe.
- Os Assuntos Internos vão dar-te uma advertência.
- A sério?
- Disse-lhes que tinhas a cabeça centrada - adiantou José, passado um instante.
Veck pigarreou.
- Obrigado, meu.
José continuou a movimentar o clipe, com o raspar a soar muito alto.
- A pressão neste trabalho é uma merda. - Fitou os olhos de Veck. - E não vai melhorar.
Seguiu-se uma pausa. Depois, o parceiro murmurou:
- Não acreditas naquilo que lhes disseste, pois não?
José encolheu os ombros.
- O tempo o dirá.
- Então, porque é que salvaste o meu emprego?
- Acredito que tens o direito de corrigir os erros... mesmo não sendo teus.
José repetia para consigo que não era a primeira vez que ficara com um parceiro com problemas a resolver no trabalho, por assim dizer.
Pois, e o que acontecera a Butch O’Neal? Desaparecido. Presumivelmente morto. Isso, apesar do que José pensara ter ouvido na gravação do 112.
- Não sou o meu pai, detetive. Juro. Lá porque estava a ser profissional quando bati no gajo...
José chegou-se à frente, prendendo o olhar do miúdo.
- Como é que sabes que foi isso que me incomodou no ataque. Como é que sabes que foi a questão da calma?
Quando Veck empalideceu, José voltou a recostar-se. Passado um momento, abanou a cabeça.
- Isso não quer dizer que sejas um assassino, filho. E lá porque receias uma coisa, não quer dizer que seja verdade. Mas acho que tu e eu temos de ser muito sinceros
um com o outro. Tal como te disse, não me parece justo que te olhem de maneira diferente por causa do teu pai... mas se tiveres outra explosão como aquela, seja
sobre o que for... e estou a falar de multas - acenou com a cabeça na direção da caneca do Starbucks -, café reles, muita goma na camisa... a porra da fotocopiadora...
acabou-se. Estamos entendidos? Não vou deixar alguém perigoso andar com crachá... nem armado.
De repente, Veck voltou a olhar para o monitor. Nele estava o rosto bonito de uma loura de dezanove anos que desaparecera havia duas semanas. Ainda não havia corpo,
mas José estava disposto a apostar que já estaria morta.
Depois de assentir, Veck pegou no café e recostou-se na cadeira.
- Combinado.
José suspirou e devolveu o clipe ao seu lugar, a pequena caixa transparente com a borda magnética.
- Ótimo. Porque temos de encontrar este tipo antes que ele leve mais alguém.
Capítulo 39
Viajando para sul na «Northway», como Manuel lhe chamava, os olhos de Payne iam sorvendo o mundo à sua volta. Tudo era fonte de fascínio, das filas serpenteantes
do trânsito em cada lado da estrada ao vasto céu negro lá em cima, passando pela brisa gélida da noite que tomava de assalto o habitáculo do carro sempre que ela
abria a janela.
E isso acontecia mais ou menos a cada cinco minutos. Adorava a mudança de temperatura, quente para frio, quente para frio... era tão diferente do Santuário, onde
tudo era monoclimático. E ainda havia o grande sopro de ar a bater-lhe no rosto, a emaranhar-lhe o seu cabelo e a fazê-la rir.
E depois, claro, de cada vez que fazia isso, olhava para Manuel e via que ele estava a sorrir.
- Não perguntaste aonde vamos - disse ele, quando ela fechou mais uma vez a janela.
Na verdade, não interessava. Estava com ele e estavam livres e sós e isso era mais do que suficiente...
Tu deixa-lo. No final da noite, deixa-lo e voltas para cá. Sozinha.
Payne escondeu o seu esgar de preocupação. Wrath, filho de Wrath, tinha o tipo de voz que imaginamos ligada a coisas como tronos e coroas e adagas negras penduradas
ao peito. E o tom de voz régio não foi fachada. Ele esperava obediência, e Payne não tinha qualquer dúvida que, mesmo sendo filha da Virgem Escrivã, estava sujeita
às suas ordens. Enquanto ela estivesse cá em baixo, este era o mundo dele e ela estava de visita.
Quando o rei tinha pronunciado essas palavras horríveis, ela fechara os olhos e, no silêncio que reinara depois, compreendera de imediato que ela e Manuel não iriam
a lado nenhum a menos que ela concordasse.
E por conseguinte... tinha-o feito.
- Queres saber? Oi? Payne?
Ela olhou e forçou um sorriso.
- Acho que prefiro a surpresa.
Agora ele sorria de orelha a orelha.
- Ainda mais divertido - bem, como eu disse, quero apresentar-te a alguém. - O sorriso dele diminuiu um pouco. - Acho que vais gostar dela.
Dela? Uma mulher?
Gostar?
Na verdade, isso só iria acontecer se a «ela» em questão tivesse cara de cavalo e um rabo enorme, pensou Payne.
- Que maravilha - disse.
- Aqui é a nossa saída. - Escutou-se um ténue clique-clique-clique e então Manuel rodou o volante, saindo da estrada grande para uma rampa descendente.
Pararam numa fila de outros veículos, e ela vislumbrou no horizonte muito longínquo uma cidade enorme, cujos contornos os seus olhos se debateram para compreender.
Grandes edifícios pontuados por um número incalculável de luzinhas erguiam-se de um manto térreo de estruturas mais pequenas, e não era um lugar estático. Luzes
vermelhas e brancas serpenteavam dentro e à volta dos seus bordos... sem dúvida centenas de carros em estradas parecidas com aquela em que eles tinham acabado de
viajar.
- Estás a olhar para a cidade de Nova Iorque - anunciou Manny.
- É... linda.
Ele riu um bocado.
- Algumas partes são, sem dúvida. E a escuridão e a distância são grandes maquilhadoras.
Payne esticou-se e tocou o vidro do para-brisas.
- Onde eu estive suspensa, lá em cima, não havia grandes vistas. Nenhuma grandeza. Nada a não ser o céu branco leitoso e a fronteira sufocante da floresta. Isto
é tudo tão maravilhoso...
Um som ríspido soou por trás deles, e depois outro.
Manny deitou uma olhada pelo pequeno espelho retrovisor.
- Calminha, ó maior. Já ando...
Acelerou, encurtando a distância que o separava do carro da frente, e ela sentiu-se mal por tê-lo distraído.
- Desculpa - murmurou. - Não pretendo continuar.
- Podes falar sem parar que eu fico feliz de te ouvir.
Bem, isso era bom de se saber.
- Não estou totalmente alheia a algumas das coisas que estou a ver aqui, mas na sua maioria são uma revelação. As taças de visão que temos no Outro Lado não dão
mais do que retratos do que se passa na Terra, e concentram-se em pessoas, não em objetos... a menos que algo inanimado faça parte do destino de alguém. Com efeito,
só conhecemos o destino, não como lá chegar... a vida, não a paisagem. Isto é... tudo aquilo que me fez querer ser livre.
- Como é que conseguiste sair?
De qual das vezes? pensou ela.
- Bem, da primeira vez... apercebi-me que quando a minha mãe concedia audiências a gente de cá de baixo, havia uma pequena janela em que a barreira entre os dois
mundos ficava... como que entrelaçada. Descobri que conseguia movimentar as minhas moléculas através dos pequenos espaços que eram criados... e foi assim que o fiz.
- O passado atraiu-a, com memórias a regressar à vida e a queimar-lhe não só a mente mas também a alma. - A minha mãe ficou furiosa e avançou para mim, exigindo
que eu regressasse ao Santuário... e eu respondi que não. Estava em missão e nem sequer ela podia desviar-me. - Payne abanou a cabeça. - Depois de eu... fazer o
que era preciso... julguei que ia simplesmente viver a minha vida, mas surgiram coisas que eu não antecipei. Aqui em baixo, preciso de me alimentar e... há outras
preocupações.
A sua necessidade sexual, mais concretamente, ainda que ela não fosse explicar a forma como o seu período fértil a tinha atingido e debilitado. Tinha surgido como
um choque. Lá em cima, as fêmeas da Virgem Escrivã estavam prontas a conceber praticamente o tempo todo e, por conseguinte, as grandes oscilações hormonais não as
dominavam por completo. Mas uma vez cá em baixo, e ao fim de um ou dois dias, o período manifestava-se. Ainda bem que era apenas uma vez a cada dez anos, ainda que
Payne tivesse julgado que iria ter dez anos até se preocupar com isso.
Infelizmente dera-se o caso de já se terem passado dez anos desde o início do ciclo menstrual. A sua necessidade tinha surgido não mais de um mês depois de ela abandonar
o Santuário.
Quando recordou a enorme vontade de acasalar que a tinha deixado indefesa e desesperada, concentrou-se no rosto de Manuel. Iria ele ajudá-la na sua hora de necessidade?
Cuidar das suas exigências violentas e acalmá-la com a sua semente? Podia um humano sequer fazer isso?
- Mas acabaste novamente lá em cima? - quis ele saber.
Ela pigarreou.
- Sim, acabei. Tive alguma... dificuldade, e a minha mãe veio novamente ter comigo. - Na verdade, a Virgem Escrivã tinha ficado aterrorizada com a ideia de machos
com cio se atirarem à sua única filha, que tinha já «arruinado» tanto da vida que lhe tinha sido dada. - Ela contou-me que me iria ajudar, ainda que só do Outro
Lado. Eu concordei ir com ela, pensando que iria ser como antes... e conseguiria encontrar novamente a saída. Mas não foi isso que sucedeu.
A mão de Manny afagou a dela.
- Mas agora já estás fora disso tudo.
Estaria? O Rei Cego estava a tentar traçar o destino dela, tal como a mãe. Era verdade que as razões dele eram menos egoístas. Afinal, ele tinha a Irmandade e as
suas shellans e uma criança a viver sob o seu teto, e isso era muito merecedor de proteção. Só que ela temia que a visão que o seu irmão tinha dos humanos fosse
partilhada por Wrath. Ou seja, que eles não passavam de minguantes à espera de serem convocados para servir.
- Sabes que mais? - disse ela.
- O quê?
- Acho que podia ficar contigo neste carro para sempre.
- Engraçado... sinto exatamente a mesma coisa.
Mais uns quantos clique-clique-clique, e viraram à direita.
Ao avançarem, iam vendo cada vez menos carros e mais edifícios, e ela percebeu o que ele dissera sobre a noite melhorar o rosto de uma cidade. Não havia grandeza
de qualquer espécie naquele bairro. Janelas partidas estavam enegrecidas como dentes em falta, e a humidade que escorria pelas paredes dos armazéns formava rugas.
Podridão, acidente ou vandalismo turvavam o que outrora tinham sido, sem dúvida, fachadas lisas e brilhantes. A tinta estava desbotada e o vigor da juventude perdido
há muito para os elementos e para a passagem do tempo.
E, com efeito, os humanos que povoavam as sombras não estavam em melhor estado. Envergavam roupas desalinhadas de cores pardas como o chão, e pareciam carregar um
peso enorme, como se uma barra invisível os tivesse forçado a ajoelhar e os mantivesse nesse estado.
- Não te preocupes - disse Manuel. - As portas estão trancadas.
- Não sinto medo. Sinto... tristeza, por qualquer razão.
- A pobreza urbana provoca isso.
Passaram por mais outra caixa quase destelhada e a apodrecer, onde dois humanos partilhavam um único sobretudo. Ela nunca pensou vir a dar qualquer valor à perfeição
opressiva do Santuário. Mas quiçá a sua mãe tivesse criado o céu para proteger as Escolhidas de visões destas. Vidas... como aquelas.
Porém, a paisagem foi começando a melhorar. E, pouco depois, Manuel enfiou o carro num terreno adjacente a umas instalações recentes, que aparentavam cobrir um lote
enorme. A toda a volta, luzes em candeeiros altos davam um tom amarelado aos edifícios baixos, aos tejadilhos brilhantes dos dois veículos estacionados e aos arbustos
aparados que ladeavam os passeios.
- Chegámos - afirmou ele, parando o carro e voltando-se para ela. - Vou apresentar-te como colega, está bem? Alinha no que eu for dizendo.
Ela sorriu.
- Tentarei fazer isso.
Saíram juntos e... oh, o ar. Um leque tão complexo de bom e mau, de metálico e doce, de sujo e divino.
- Adoro isto - disse ela. - Adoro isto!
Estendeu os braços e rodopiou num círculo, apoiada num pé que tinha sido calçado com uma bota imediatamente antes de terem saído do complexo. Ao deter a sua rotação
e baixar os braços ao longo do corpo, deu por ele a olhar para ela e não conteve o riso envergonhado.
- Lamento. Eu...
- Anda cá - murmurou ele, fechando ligeiramente as pálpebras, e com um olhar quente e possessivo.
Sem mais, o sexo dela ficou excitado, e o seu corpo corou. E de alguma maneira, ela soube que devia demorar-se ao aproximar-se dele, soube alongar o momento e fazê-lo
esperar, mesmo que fosse por pouco tempo.
- Desejas-me - disse ela com a voz arrastada, quando ficaram cara a cara.
- Sim. Sim. - As mãos dele agarraram-na pela cintura e apertaram-na contra si. - Dá-me a tua boca.
Ela fez isso mesmo, envolvendo o pescoço dele nos seus braços e aconchegando-se ao seu corpo sólido. O beijo transmitia propriedade, e quando terminou, ela não conseguia
parar de sorrir.
- Gosto quando me exiges coisas - disse ela. - Leva-me de volta ao chuveiro, onde tu...
Ele deixou sair um grunhido e interrompeu-a, pondo-lhe suavemente a mão sobre a boca.
- Sim, eu lembro-me. Acredita em mim. Lembro-me.
Payne lambeu-lhe a palma da mão.
- Vais fazer-me aquilo outra vez. Esta noite.
- Quem me dera.
- E vai ser.
Ele riu-se.
- Sabes que mais? Vou ter de vestir uma das minhas batas.
Manuel abriu novamente a sua porta e debruçou-se no carro. Ao sair, trouxe um casaco branco engomado que tinha o nome dele em cursivo na lapela. E ela percebeu pela
forma como ele fechou as duas abas que estava a tentar ocultar-lhe a resposta do seu corpo ao dela.
Que pena. Ela gostava de o ver naquele estado, todo orgulhoso e hirto.
- Anda... vamos entrar - disse ele, pegando-lhe na mão. E depois, entredentes, pareceu acrescentar. - Antes que eu me venha cá dentro...
Como ele não terminou a frase, Payne manteve o sorriso bem vincado no rosto.
Sob exame mais atento, as instalações pareciam estar fortificadas para resistir a um cerco, com discretas barras nas janelas e uma vedação alta que se estendia à
distância. As portas de que se aproximaram tinham também barras, e Manuel não tentou abri-las.
Era lógico proteger o edifício, pensou ela. Dado aquilo que havia visto nas redondezas.
Manuel pressionou um botão e de imediato uma vozinha disse:
- Hospital Equino Tricounty.
- Doutor Manuel Manello. - Voltou a cabeça na direção de uma câmara. - Vim cá ver...
- Olá, doutor. Vá entrando.
Escutou-se um zumbido e Manuel abriu então a porta para ela.
- Depois de ti, bambina.
O espaço em que entraram era espaçoso e muito limpo, com um chão liso de pedra e filas de cadeiras, como se as pessoas passassem muito tempo nessa antecâmara. Nas
paredes, imagens de cavalos e de gado estavam emolduradas, e muitos desses animais envergavam fitas ou grinaldas vermelhas e azuis. Do lado oposto havia um painel
de vidro com a palavra receção gravada em sóbrias letras douradas, e portas... tantas portas. Aquelas com um símbolo masculino e um símbolo feminino... outras com
placas como diretor veterinário... e contabilidade... e direção.
- Que lugar vem a ser este? - quis ela saber.
- Um lugar para salvar vidas. Anda... vamos por aqui.
Ele abriu caminho por uma porta dupla e foi ter com um macho humano de farda branca que estava sentado a uma secretária.
- Olá, doutor Manello. - O homem pousou um jornal que tinha escrito New York Post em grandes letras no cabeçalho. - Já não o vemos há algum tempo.
- Esta é uma colega minha, Pa... Pamela. Vamos só ver a minha menina.
O humano focou o rosto de Payne. E então pareceu estremecer.
- Hã... está onde a deixou. O doutor passou bastante tempo com ela hoje.
- Sim, ele ligou. - Manuel deu umas pancadinhas na secretária com os nós dos dedos. - Volto daqui a pouco.
- Com certeza, doutor. Prazer em conhecê-la... Pamela.
Payne inclinou a cabeça.
- Foi igualmente um prazer conhecer a sua pessoa.
Houve um silêncio estranho quando ela se endireitou. O humano estava absolutamente vidrado nela, com a boca entreaberta, os olhos esbugalhados... e muito contemplativo.
- Calma aí, grandalhão - disse Manuel, em tom sombrio. - Pode voltar a piscar os olhos em qualquer altura... como, sei lá, agora. A sério. Mesmo.
Manuel interpôs-se entre os dois e agarrou a mão dela ao mesmo tempo, tapando simultaneamente a vista e marcando o seu domínio. E isso não foi tudo. Emanaram dele
aromas sombrios, um cheiro que era um aviso para o outro homem que a fêmea admirada estaria apenas disponível por cima do cadáver de Manuel.
E isso fê-la sentir como se houvesse um sol escaldante no seu peito.
- Vamos, Pay... Pamela. - Quando Manuel lhe deu um puxão e os dois começaram a caminhar, ele acrescentou num sussurro: - Antes que ali o bacano deixe cair o queixo
na secção desportiva.
Payne deu um saltinho. E depois outro.
Manuel olhou para ela.
- Aquele pobre diabo ali atrás quase teve uma experiência às portas da morte com o distintivo a ser-lhe enfiado pela goela abaixo, e tu estás contente?
Payne beijou Manuel na face, vendo à transparência através do falso negrume no rosto dele.
- Tu gostas de mim.
Manuel revirou os olhos e puxou-a pelo pescoço, devolvendo o beijo.
- Daa.
- Daa - imitou ela.
Um deles tropeçou no pé do outro, sem se perceber bem quem fez o quê, e Manuel amparou a queda de ambos.
- É melhor estarmos atentos - disse o macho dela. - Antes de sermos nós a precisar de ser reanimados.
Ela deu-lhe uma cotovelada.
- Uma extrapolação sensata.
- Deste-me uma palmada no rabo?
Payne espreitou por cima do ombro dele. E depois deu-lhe uma palmada no rabo com força. Ele deixou escapar um protesto abafado, e ela piscou-lhe o olho.
- De facto. Com efeito. Dei. - Semicerrou os olhos e baixou o tom de voz, sussurrando: - Queres que o faça mais uma vez, Manuel. Talvez... do outro lado?
Ela fez-lhe sinal com as sobrancelhas, e o som do riso dele encheu o corredor vazio, ecoando bastante. E quando chocaram um contra o outro outra vez, ele agarrou-a
para a parar.
- Espera, temos de fazer isto melhor. - Prendeu-a debaixo do braço, beijou-lhe a testa, e alinhou-se ao lado dela. - Aos três, começamos com a direita. Pronta? Um...
dois... três.
Aos três, ambos esticaram a perna direita, depois a esquerda... e direita... e esquerda...
Perfeitamente sincronizados.
Lado a lado.
Avançaram pelo corredor. Juntos.
* * *
Manny nunca tinha dado conta de que a sua sensual vampira poderia ter sentido de humor. E não é que isso lhe completava os atributos?
Ah, bolas, não era só isso. Era o seu maravilhamento, a sua alegria e a sensação de que ela estava pronta para tudo. Não era nada com aquelas socialites frágeis
e quebradiças ou as modelos lingrinhas que ele tinha namorado.
- Payne?
- Sim?
- Se eu te dissesse que esta noite queria escalar uma montanha...
- Oh! Eu ia adorar! Ia gostar de ver o panorama de...
Bingo. Se bem que, Jesus, ele ficasse espantado perante a crueldade de finalmente ter encontrado a sua parceira ideal... em alguém tão fundamentalmente incompatível.
Quando chegaram à segunda porta dupla, que dava passagem para a parte clínica do hospital equino, ele empurrou um dos lados, e sem hesitar viraram-se de lado para
passar... e foi então que aconteceu.
Foi aí que ele ficou completamente apaixonado por ela.
Foi a conversa despreocupada, e os saltinhos na passada dela, e o olhar gélido que brilhava como cristal. Foi a história de vida que ela tinha partilhado e a dignidade
que ela mostrara, o facto de a ter julgado por um padrão que ele antes namorava e agora seria incapaz de suportar do outro lado da mesa. Foi a força no seu corpo
e a perspicácia da sua mente e...
Cristo... ainda nem tinha pensado no sexo.
Irónico. Ela tinha-lhe dado os melhores orgasmos da sua vida e nem por isso eles foram parar ao topo da lista das coisas de que gostava nela.
Ela era tão espetacular a esse ponto.
- Estás a sorrir porquê, Manuel? - indagou Payne. - Talvez a antecipar uma das próximas vezes em que a minha mão vá parar ao teu traseiro?
- Nem mais. É exatamente isso.
Ele puxou-a para mais um beijo e tentou ignorar a dor que o consumia. Não valia a pena estragar o tempo que ainda lhes restava com o adeus que os esperava. Isso
iria chegar cedo de mais.
Além disso, tinham alcançado o destino.
- Ela está aqui - disse voltando à esquerda e passando para as baias de recobro.
No instante em que a porta se abriu, Payne hesitou, e franziu o sobrolho quando ouviu resfolegar e bater de cascos no chão por entre o cheiro de feno.
- Mais à frente. - Manny puxou-lhe a mão. - Ela chama-se Glory.
Glory era a última do lado esquerdo mas, no momento em que ele pronunciou o nome, o seu pescoço longo e elegante esticou-se e a sua cabeça perfeita surgiu por cima
da divisória.
- Olá, garota - disse ele. Como resposta, ela deixou sair uma saudação espetando as orelhas, e resfolegando.
- Destino misericordioso - suspirou Payne, largando a mão dele e passando-lhe à frente.
Quando ela se acercou da baia, Glory atirou a cabeça, fazendo esvoaçar a crina negra, e ele teve uma súbita visão de Payne a ser mordida.
- Tem cuidado - disse ele, acelerando o passo. - Ela não gosta...
No momento em que Payne pôs a mão naquele focinho sedoso, Glory quis logo mais, indo contra a palma da mão dela, pedindo um carinho bem feito.
- ...de gente nova - terminou Manny, num fio de voz.
- Olá, minha querida - murmurou Payne, olhando para a égua ao debruçar-se na baia. - És tão linda... e grande e forte... - As mãos pálidas encontraram um pescoço
negro e fizeram festas num ritmo lento. - Porque é que ela tem as pernas da frente ligadas?
- Partiu a direita. E com violência. Há coisa de uma semana.
- Posso ir lá dentro?
- Ah... - Deus, ele não queria acreditar, mas Glory parecia estar apaixonada, revirando os olhos quando foi coçada atrás das orelhas. - Sim, acho que não há problema.
Ele soltou o trinco da porta e entraram os dois. E quando Glory recuou, vacilou... naquele que tinha sido o seu lado bom.
Tinha perdido tanto peso que as suas costelas estavam à mostra como uma cerca de estacas debaixo da pelagem.
Ele sabia que, quando a novidade das visitas se atenuasse, o seu surto de energia se ia esgotar num instante.
A mensagem de voz do médico tinha sido bastante lacónica. Ela estava a fraquejar. O osso partido estava a sarar, mas demasiado devagar, e a redistribuição de peso
tinha feito as camadas do outro casco enfraquecer e desagregar-se.
Glory estendeu o focinho para o peito dele e deu-lhe um empurrãozinho.
- Olá, linda.
- Ela é extraordinária. - Payne deu umas palmadinhas na égua. - Simplesmente extraordinária.
E agora Manny tinha mais uma coisa a pesar-lhe na consciência. Talvez ter trazido Payne não tivesse sido uma prenda, mas sim uma crueldade. Para quê apresentá-la
a um animal que provavelmente ia ser...
Credo, ele nem se atrevia a pensar nisso.
- Não és só tu que és possessivo - disse Payne num fio de voz.
Manny espreitou por cima da cabeça de Glory.
- Desculpa?
- Quando me disseste que eu ia conhecer uma fêmea, eu... tive esperança que ela tivesse cara de cavalo.
Ele riu-se e fez uma festa na testa de Glory.
- Bem, lá isso ela tem.
- O que lhe vai acontecer?
Enquanto ele tentava formular as palavras, ajeitou a crina que caiu por cima dos olhos quase negros da égua.
- O teu silêncio é resposta bastante - disse Payne com tristeza.
- Não sei porque te trouxe cá. Quer dizer... - Pigarreou. - Na verdade, até sei... e é bastante patético. Só tenho o meu emprego... a Glory é a única coisa que não
é o emprego. É pessoal, é minha.
- Deves estar de coração partido.
- Estou. - Abruptamente, Manny olhou sobre o dorso da sua égua moribunda para a vampira de cabelos negros que tinha encostado a face contra o flanco de Glory. -
Estou... totalmente de rastos com esta perda.

 

 

CONTINUA