Biblio VT
Capítulo 13
Qhuinn entrou na mansão pelo vestíbulo, o que se revelou um erro.
Devia ter entrado pela garagem, mas a verdade era que os caixões empilhados ao canto o perturbavam. Estava sempre à espera que as tampas se abrissem e que uma espécie
de Noite dos Mortos Vivos o fizesse borrar de medo.
Mas precisava desesperadamente de deixar de ser maricas.
Graças ao seu ataque de nervos, assim que entrou no átrio deparou-se com Blaylock e Saxton a descerem a escadaria, ambos elegantes como qualquer modelo da GQ para
a última refeição. Ambos usavam calças de fato, e não de ganga, camisolas, e não sweatshirts, e mocassins, e não botifarras. Estavam bem escanhoados, perfumados
e penteados, mas não, nem de longe, gays.
Muito sinceramente, isso teria tornado as coisas muito mais fáceis.
Pelo amor de Deus, quem lhe dera que um dos sacanas se efeminasse e adotasse plumas e vernizes. Mas não. Continuavam a parecer dois machos atraentes que sabiam como
gastar dinheiro na Saks... enquanto ele, por outro lado, se embrulhava com calças de cabedal e T-shirts justas - e, naquela noite específica, tivesse um penteado
fruto de sexo duro e usasse uma água-de-colónia, por assim dizer, da mesma linha de produtos promíscuos.
Claro que apostava que aquilo que os separava do estado em que ele próprio se encontrava era um duche quente e ensaboado e uma visita à retrete. De certeza que tinham
passado a noite naquilo. Tinham um ar demasiado satisfeito enquanto se dirigiam a uma refeição pela qual estariam esfomeados.
Quando chegaram ao soalho com a representação de uma macieira em flor, os olhos azuis de Blay miraram Qhuinn de alto a baixo. A expressão dele não mostrou qualquer
reação. Isso acabara.
A antiga dor desaparecera completamente, e não por o divertimento de Qhuinn não ser mais do que óbvio.
Saxton disse qualquer coisa e Blay desviou o olhar... e lá estava. Um rubor naquela tez pálida adorável quando os olhos azuis se cruzaram com os cinzentos.
Não aguento isto, pensou Qhuinn. Hoje, não.
Evitando o que se passava na sala de jantar, dirigiu-se à porta por baixo das escadas e entrou. Assim que se fechou atrás dele, a algaraviada de conversas foi interrompida
e as trevas silenciosas correram a recebê-lo. Assim era melhor.
Degraus abaixo. Mais uma porta com código. Túnel subterrâneo que ligava o edifício central ao centro de treino. E agora que estava sozinho, perdeu as energias, dando
apenas dois passos até que as pernas deixaram de lhe obedecer e ele teve de se encostar à parede lisa. Permitindo que a cabeça se recostasse, fechou os olhos...
e teve vontade de encostar uma arma à cabeça.
Tivera aquele ruivo no Iron Mask.
Tivera bem aquele hetero.
E tudo acontecera exatamente como previra, começando com o par a trocar dois dedos de conversa junto ao bar e a mirar as raparigas. Pouco depois, um par de copas
D passara nas suas botas de plataforma. Falara com ela. Bebera com ela... e com a amiga. Uma hora depois? Estava os quatro numa casa de banho, bem apertadinhos.
O que fora a segunda parte do plano. Mãos eram mãos em sítios apertados, e quando havia muitas movimentações e toques, nunca se tinha a certeza de quem mexia em
quem. De quem acariciava. De quem apertava.
Qhuinn passara o tempo todo com as duas a planear como se ver livre das fêmeas, e isso demorara muito mais do que o pretendido. Depois do sexo, as raparigas quiseram
passar mais algum tempo com eles - trocar números, conversar, saber se queriam ir comer qualquer coisa.
Pois, certo. Ele não precisava dos números, pois não lhes ia telefonar; não apreciava conversar, nem com pessoas de quem gostava; e o tipo de dentada que lhes podia
oferecer nada tinha que ver com comida rápida untuosa.
Depois de arquivar os pedidos na zona do Pelo Amor de Deus da sua cabeça, vira-se obrigado a forçá-las mentalmente a irem-se embora - o que o levou a sentir um raro
momento de piedade pelos machos humanos que não podiam dar-se a esse luxo.
Depois, ele e a sua presa tinham ficado sozinhos, com o macho humano a recuperar apoiado ao lavatório. Qhuinn fingiu fazer o mesmo contra a porta. Acabou por haver
uma troca de olhares, casual do lado do humano, muito sério por parte de Qhuinn.
- O que foi? - perguntara o homem. Mas ele sabia... porque as pálpebras tinham baixado ao leve.
Qhuinn levara a mão atrás de si e trancara a porta, para que não fossem incomodados.
- Continuo esfomeado.
O ruivo olhara de repente para a porta, como se quisesse sair... mas o membro dele tinha outras ideias. Atrás do botão da braguilha... ficou duro.
- Ninguém vai saber - dissera Qhuinn, num tom sombrio. Que raios, podia fazer com que o ruivo não se lembrasse, embora conquanto o tipo não se apercebesse da história
dos vampiros, não houvesse motivo para puxar da esfregona mental e limpar tudo.
- Pensava que tinhas dito que não eras gay... - O tom era lamentoso, como se o homem não estivesse totalmente à vontade com aquilo que o corpo queria.
Qhuinn reduzira a distância entre os dois, encostando o peito ao do ruivo. E depois agarrara na nuca do tipo e puxara-o contra a sua boca. O beijo cumprira o objetivo:
expulsar o pensamento da casa de banho, deixando ficar apenas a sensação.
O que se seguiu partiu daí. Duas vezes.
Quando acabou, o tipo não lhe oferecera o número. Saíra-se muitíssimo bem, mas era óbvio que se tratava de uma experiência única do lado dele - o que para Qhuinn
era perfeito. Separaram-se sem trocar uma única palavra, indo cada um à sua vida, com o ruivo a voltar ao bar... e Qhuinn a sair para vaguear sozinho pelas ruas
de Caldwell.
Só a chegada iminente da alvorada o obrigara a regressar.
- Que raios... - disse para consigo.
A noite fora uma longa lição sobre como se coçar com ortigas - sim, havia alturas na vida em que os substitutos resultavam. Numa reunião, por exemplo, quando alguém
nos representava durante uma eleição. Ou quando se precisava de alguma coisa do supermercado e entregávamos a lista a um doggen. Ou quando se prometia jogar bilhar,
mas se estava demasiado bêbado para agarrar no taco e se pedia a outra pessoa para bater nas bolas.
Infelizmente, a teoria do substituto não funcionava quando se queria ficar com a virgindade de alguém, mas isso não acontecera, e em vez disso se ia a um clube,
encontrava-se uma pessoa com uma característica física semelhante, sei lá... como a cor do cabelo... e fodia-se uma criatura em vez da outra.
Nesse exemplo concreto de substituição, acabávamos por nos sentirmos vazios, e não por nos termos vindo até à exaustão e estarmos a flutuar na nuvem pós-coital do
ena, pá.
De pé naquele túnel, sozinho, Qhuinn sentia-se absolutamente vazio por baixo da pele. Como se todo o seu âmago fosse uma cidade fantasma.
Uma pena que a luxúria não estivesse, de todo, desprovida de ideias brilhantes. No silêncio, começou a imaginar como seria ser ele, e não o primo, a descer com Blay
para o jantar. Se fosse ele a partilhar não só uma cama, mas todo um quarto com ele. Se encarasse toda a gente e dissesse: Ei, este é o meu parceiro...
O bloqueio mental que se seguiu a esse breve devaneio foi tão absoluto que se sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
E o problema era esse, não era?
Enquanto esfregava os olhos desemparceirados, pensou no quanto a família o odiara. Crescera acreditando que o defeito genético de ter uma íris azul e outra verde
fazia dele uma aberração, e todos o tratavam como se fosse um embaraço para a ascendência.
Bem, até fora pior do que isso. Tinham acabado por o expulsar de casa e por enviar uma guarda de honra para lhe dar uma lição, razão pela qual acabara como cahminhante.
E pensar que nunca tinham ficado a saber das outras «anormalidades» que albergava dentro de si.
Como, por exemplo, querer estar com o melhor amigo.
Não precisava de um espelho para se ver como o cobarde e a fraude que era... mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Estava preso numa jaula para a qual
não encontrava a chave, com todos os anos passados a sofrer o desprezo da família a fechá-lo e a oprimi-lo. A verdade por trás do seu lado estouvado era que se tratava
de um cobarde. Blay, por outro lado, era o forte. Farto de esperar, assumira quem era e encontrara alguém com que estar.
Grande porra, isso doía...
Praguejando, deu por encerrada a conversa e obrigou-se a mexer. Fortalecia-se a cada passo, remendando o interior desfeito e fortificando a canalização rota.
A vida tinha tudo que ver com mudança. Blay mudara. John mudara.
E, pelo vistos, ele seria o próximo na lista, pois não era capaz de continuar assim.
Ao entrar no centro de treino, pelos fundos do escritório, decidiu que se Blay podia virar uma página nova, ele faria o mesmo. A vida era o que cada um decidia.
Independentemente do ponto onde o destino nos deixava, a lógica e o livre arbítrio ditavam que podíamos criar a nossa horta onde quiséssemos.
E não queria estar ali. Não queria o sexo anónimo. Nem a estupidez desesperada. Nem os ciúmes ardentes ou os remorsos incómodos que não o levavam a lado nenhum.
O balneário estava vazio, já que não haviam aulas, e por isso mudou de roupa sozinho, ficando nu antes de vestir calções pretos de corrida e de calçar uns Nike pretos.
A sala de treino estava igualmente solitária, o que era uma bênção.
Ligou o sistema sonoro e percorreu a lista com o comando remoto. Quando chegou a «Clint Eastwood», dos Gorillaz, dirigiu-se a uma passadeira e subiu para a máquina.
Detestava treinar sozinho... abominava a natureza de hamster dos exercícios. Era melhor foder ou lutar, tal como sempre dissera.
Contudo, quando se estava retido entre quatro paredes por causa da luz do sol e se estava determinado a experimentar o celibato, correr sem ir a lado nenhum parecia
uma rotina absolutamente viável para consumir energias.
Ligou a máquina, começou a correr e foi acompanhando a letra da música.
Concentrando-se na parede pintada de branco à sua frente, foi batendo com um pé a seguir ao outro, até na sua mente não restar nada além das passadas repetitivas,
da batida do coração e do suor que se acumulava na barriga, nas costas e no peito nus.
Para variar, não chegou a uma velocidade vertiginosa. Calibrou o ritmo para se manter constante, algo que seria capaz de aguentar durante horas a fio.
Quando alguém pretende fugir de si próprio, aproxima-se do exagerado e do irritante, dos extremos, do impetuoso, pois isso obriga a que se segure com unhas e dentes
às falésias das invenções pessoais.
Tal como Blay era quem era, Qhuinn era o mesmo. Mesmo desejando poder estar com o... macho... que amava, não era capaz de o fazer.
Mas por Deus, ia deixar de fugir dessa cobardia. Tinha de se encontrar, mesmo que se ficasse a odiar a si próprio. Pois se o fizesse, talvez deixasse de se tentar
distrair com sexo e com bebida, e percebesse o que realmente queria.
Além de Blay, é claro.
Capítulo 14
Sentado ao lado de Butch no Escalade, V não passava de um hematoma de quase dois metros e cento e dez quilos.
Enquanto regressavam rapidamente ao complexo, cada palmo do seu corpo latejava, e a dor formava uma névoa que acalmava a gritaria na sua alma.
Portanto, tinha conseguido algo de que precisava.
O problema era que o alívio já estava a dissipar-se, e isso só o ia fazendo ficar mais lixado com o Bom Samaritano ao volante. Não que o chui parecesse fazer caso
disso. Tinha estado a marcar um número no telemóvel, depois desligava e voltava a ligar e desligar.
Estava provavelmente a ligar a Jane e a pensar duas vezes. Pois ainda bem.
- Estou, queria dar conta dum cadáver - ouviu o chui dizer. - Não vou dizer o meu nome. Está num contentor, num beco junto à Tenth Street, a dois quarteirões do
Commodore. Parece uma mulher caucasiana, jovem, princípio dos vintes... Não, não digo o meu nome... E que tal apontar a morada e perder menos tempo comigo.
Enquanto Butch ia falando com a telefonista, V deslocou o traseiro no lugar e sentiu as costelas fraturadas do seu lado direito a gemer. Nada mau. Se precisasse
de mais porrada para se acalmar, podia simplesmente fazer uns quantos abdominais e voltar ao carrossel da agonia.
Butch atirou o telemóvel para cima do tabliê. Praguejou. Praguejou outra vez.
Decidiu então partilhar o que lhe ia na alma:
- Até onde planeavas deixar ir a coisa, V? Até te esfaquearem? Ficavas caído até nascer o sol? Qual seria o limite?
V falou, tentando não mexer muito os lábios inchados.
- Esquece a fachada, sim?
- Fachada? - Butch virou a cabeça, com os olhos a destilar violência. - Desculpa?
- Não finjas... não sabes como isto é. Já te vi num aperto... Já vi... - tossiu. - Já te vi bêbado que nem um cacho e com um copo em cada mão. Portanto, não venhas
armar-te em santinho comigo.
Butch voltou a atenção para a estrada.
- Não passas de um cabrão miserável.
- Pois.
E a conversa resumiu-se a isso.
Quando Butch se equipou em frente à mansão, ambos estavam a franzir a cara e a pestanejar como se tivessem sido atingidos na cara com gás pimenta: o sol ainda estava
enterrado atrás do horizonte, mas encontrava-se já perto o suficiente para corar o céu de uma forma quase fatal para vampiros.
Não entraram na casa grande. Nem pensar nisso. A última refeição estava prestes a ter início, e tendo em conta as suas disposições naquele momento, não havia razão
para alimentar ainda mais os mexericos.
Sem dizer uma palavra, V avançou para o Fosso e foi direto para o quarto. Nem pensar em ver Jane ou a sua irmã naquela figura, claro. Que raios, da maneira que sentia
o rosto, podia nem sequer as ver depois de um duche.
No banho, abriu a torneira e desarmou-se no escuro - o que envolveu tirar a sua adaga do cinturão e pô-la em cima da bancada. Tinha as roupas imundas, cobertas com
sangue, cera e outras cenas, e deixou-as cair no chão, sem saber o que fazer com elas.
Meteu-se então debaixo do jato de água antes de estar quente. Quando a água fria lhe atingiu o rosto e os músculos peitorais, ele silvou e o choque chegou-lhe ao
membro, endurecendo-o - não que pretendesse fazer alguma coisa quanto à ereção. Limitou-se a fechar os olhos enquanto o seu sangue e o sangue dos inimigos lhe escorriam
do corpo e eram sugados pelo ralo.
Depois de se lavar ia vestir uma camisola de gola alta. Tinha o rosto desgraçado, mas talvez conseguisse explicar isso por ter entrado numa luta com o inimigo. Mas
ter-se transformado numa tela de negro e roxo da cabeça aos pés?
Nem por isso.
Com a cabeça baixa e deixando a água escorrer-lhe pelo nariz e pelo queixo, tentou desesperadamente regressar ao estado de dormência que tinha sentido no carro,
mas com a dor a desvanecer-se, a sua droga de eleição estava a abandoná-lo e o mundo estava novamente a ficar muito nítido.
A sensação de não ter o controlo da situação estava a esganá-lo tão bem como se fossem duas mãos à volta do pescoço. Estava furioso.
Cabrão do Butch. Filho da puta bem-intencionado e metediço.
Dez minutos depois saiu, agarrou numa toalha preta e enrolou-se no turco ao entrar no quarto. Abriu o armário, acendeu uma vela negra e... deu de caras com um montão
de camisolas de alças. E cabedais. Era o que acontecia ao guarda-fatos quando se tinha por ocupação andar à luta e se dormia nu.
Nem uma camisola de gola alta à vista.
Bem, talvez os danos não fossem assim tão maus.
Uma rápida espreitadela ao espelho nas costas da porta e até ele teve de parar. Parecia que tinha sido arranhado pelo dragão de Rhage, com grandes vergões vermelhos
em volta do tronco que lhe chegavam aos ombros e peito. O rosto era uma piada de mau gosto, com um olho tão inchado que a pálpebra quase não se mexia. O lábio inferior
estava rasgado e o maxilar parecia o de um esquilo a esconder nozes na boca.
Fantástico. Mais parecia um dos lutadores do Dana White.
Depois de ter pegado nas roupas sujas e de as ter enfiado no fundo do armário, espreitou o corredor com a cara inchada, e pôs-se à escuta. Um canal de desporto estava
ligado na televisão, para o lado esquerdo. Uma coisa líquida estava a escorrer do lado direito.
Dirigiu-se ao quarto de Butch e Marissa em pelota. Não havia motivo para esconder os hematomas de Butch. O sacana tinha visto tudo a acontecer.
Ao passar pela porta, viu o chui sentado na borda da cama, de cotovelos nos joelhos, copo de cerveja na mão, e garrafa entre os mocassins.
- Sabes em que estou a pensar agora mesmo? - perguntou, sem olhar para ele.
V imaginava que fosse uma lista dos diabos.
- Diz-me lá.
- Na noite em que te vi atirares-te da varanda do Commodore. Na noite em que pensei que tinhas morrido. - Butch deu um golo. - Julguei que já tínhamos deixado isso
para trás.
- Se servir de consolo... também eu.
- E se fosses ter com a tua mãe. Fala desta merda com ela.
Como se houvesse alguma coisa que aquela fêmea pudesse dizer nesta ocasião.
- Eu matava-a, chui. Não sei como o ia fazer... mas matava a cabra por isto. Ela deixou-me com aquele pai sociopata... estando bem ciente de como ele era. Sim, porque
ela vê tudo. Depois resolve esconder-me um segredo por trezentos anos, antes de aparecer no meu aniversário e querer fazer de mim o garanhão da sua religião de meia-tigela.
Mas eu podia ter apostado nessa merda, certo? A minha irmã, a gémea, essa? Ela mandou a Payne para longe, chui. Durante séculos. E nunca sequer me disse que eu tinha
uma irmã? Isso é de mais. Para mim chega desta merda. - V olhava fixamente para o Lag. - Posso cravar um golinho?
Butch fechou a garrafa e atirou-a. Quando V a agarrou em voo, o antigo polícia disse:
- Acordar morto não é solução. Nem levar porrada dessa maneira.
- Estás a oferecer-te para o fazer no meu lugar, é? Porque eu estou a ficar maluco e preciso disso, Butch. A sério. Eu sou perigoso... - V deu uma golada na bebida
e deixou escapar um palavrão, quando o golpe no lábio o fez sentir como se tivesse dado uma passa do lado errado de um cigarro. - E não consigo lembrar-me de nenhuma
maneira de tirar isto do sistema... porque garanto que não volto aos meus velhos hábitos.
- Nem um bocadinho tentado?
V preparou-se e depois deu outra golada. No meio do esgar, disse:
- Quero a libertação, mas não vou estar com ninguém a não ser com a Jane. Nem pensar que volto para a nossa cama com o fedor de uma badalhoca qualquer na piça...
ia arruinar tudo, não só para ela, mas para mim também. Além disso, o que eu preciso agora é de uma Dom, não de uma submissa... e não há ninguém em quem eu possa
confiar. - A não ser em Butch, talvez, mas isso seria ultrapassar demasiados limites. - Assim sendo, estou preso. Tenho uma harpia aos gritos na minha cabeça e não
posso ir com ela para lado nenhum... está a deixar-me doido.
Cristo... tinha-o dito. Tudo.
Boa para ele.
E a recompensa foi mais um golo.
- Foda-se, doem-me os lábios.
- Sem ofensa, mas ainda bem... mereceste. - Os olhos cor de avelã de Butch ergueram-se e depois de um instante esboçou um sorriso, mostrando a coroa do dente da
frente e as presas. - Sabes, estava a começar a odiar-te, a sério que estava. E antes que perguntes, as camisolas de gola alta estão na outra ponta dessa prateleira.
Leva também umas calças de fato de treino. As tuas pernas parecem que levaram com um martelo pneumático, e essa tua cara parece que vai rebentar.
- Obrigado, pá. - V avançou no meio das roupas alinhadas que estavam suspensas em cabides de fino cedro. Uma coisa que se podia dizer de Butch é que o seu armário
estava cheio de alternativas. - Nunca pensei ficar satisfeito por seres uma puta da moda.
- Creio que o termo correto é bem vestido.
Com aquele seu sotaque de Boston, as vogais saíram muito arrastadas e os «rrr» quase mudos, o que levou V a dar por si a pensar se alguma vez não tinha escutado
aquela pronúncia do sul.
- O que vais fazer quanto à Jane?
V pousou a garrafa no chão, puxou uma camisola de gola alta de caxemira e enfiou-a pela cabeça, e ficou irritado ao verificar que mal lhe cobria o umbigo.
- Ela já tem com que se entreter. Nenhuma shellan precisa de saber que o seu macho foi à rua para levar uma valente carga de porrada... e não quero que lhe contes.
- Como é que vais explicar a fronha, ó génio?
- O inchaço vai diminuir.
- Não tão rápido assim... se fores ver a Payne neste estado...
- Ela também não precisa do regalo para a vista. Vou simplesmente ficar fora de circulação por um dia. A Payne está em recuperação e estável... pelo menos foi o
que a Jane me disse, portanto vou à minha vida.
Butch estendeu o copo.
- Se não te importares?
- Entendido. - V serviu o copo do amigo, deu mais uma golada, e depois enfiou umas calças. Com os braços abertos, deu uma volta. - Está melhor?
- Eu só vejo tornozelos e punhos e, para tua informação, com essa barriga à mostra estás a dar uma de Miley Cyrus. Não te fica bem.
- Bardamerda. - Enquanto V dava mais uma golada da garrafa, decidiu que ficar bêbado era o seu novo plano. - Não tenho culpa que sejas a porra de um anão.
Butch deu uma gargalhada e voltou a ficar sério.
- Se voltares a fazer uma merda destas...
- Disseste-me para usar as tuas roupas.
- Não é disso que eu estou a falar.
V tentou esticar as mangas da camisola, mas não teve sorte.
- Não vais ter de intervir, chui, e eu não pretendo deixar-me matar. Não é disso que se trata. Eu conheço os limites.
Butch praguejou, com uma expressão carregada.
- Tu dizes isso, e acredito que julgues que é verdade. Mas as situações podem ficar descontroladas... especialmente as deste tipo. Podes estar na crista dessa onda
de... seja lá o que precisas... e a maré pode virar-se contra ti.
V fletiu a sua mão enluvada.
- Não é possível. Não com isto... e eu não quero mesmo que fales à minha fêmea sobre isto, está bem? Promete. Tens de ficar de fora.
- Então tens tu de falar com ela.
- Como é que eu lhe posso dizer... - A voz falhou-lhe e teve de pigarrear. - Como é que lhe posso explicar isto?
- Como podes não o fazer. Ela ama-te.
V limitou-se a abanar a cabeça. Não podia imaginar-se a contar à sua shellan que quisera ficar fisicamente magoado. Iria matá-la. E ele não queria, de maneira nenhuma,
que ela o visse naquele estado.
- Olha, eu vou tratar disto sozinho. De tudo.
- É disso que eu tenho medo, V. - Butch engoliu o resto do uísque de um trago. - Esse... é o nosso maior problema.
Jane observava a paciente a dormir, quando o telemóvel lhe vibrou no bolso. Não era uma chamada, mas sim uma mensagem de V: cs. vou trab. cm est P? e tu?
O suspiro não foi de alívio. Ele regressara dez minutos antes de o nascer do sol, e não ia vê-la nem à irmã?
Que se dane, pensou. Levantou-se e saiu da sala de recobro.
Depois de passar o turno para Ehlena, que estava na sala de exames da clínica a atualizar os ficheiros dos Irmãos, Jane marchou pelo corredor, virou à esquerda no
escritório, e escapuliu-se pelas traseiras do armário. Não havia motivo para perder tempo com os códigos das fechaduras, limitou-se a sair como um fantasma...
E lá estava ele, uns vinte metros mais à frente no túnel, afastando-se dela... tendo passado pelo centro de treinos para se afundar ainda mais dentro na montanha.
As lâmpadas fluorescentes do teto iluminavam-no por cima da cabeça, cobrindo-lhe os ombros largos e a estrutura pesada. A julgar pelo brilho, o seu cabelo parecia
estar molhado, e o aroma latente do sabonete que sempre usara era a confirmação de que acabara de tomar um duche.
- Vishous.
Disse o nome apenas uma vez, mas o túnel era uma câmara de eco que fazia ressoar as sílabas para trás e para diante, multiplicando-as.
Ele parou.
Foi a única resposta que teve.
Depois de aguardar que ele dissesse qualquer coisa, que se virasse... que reconhecesse a sua presença, Jane descobriu algo novo acerca do seu estado fantasmagórico.
Ainda que ela não estivesse tecnicamente viva, os pulmões ainda podiam sentir o ardor como se estivessem a sufocar.
- Onde foste esta noite? - perguntou, não esperando resposta.
E não a teve. Mas ele tinha parado mesmo por baixo de uma lâmpada, pelo que mesmo à distância, conseguiu ver os seus ombros a retesarem-se.
- Por que não te viras, Vishous?
Por Deus... o que tinha ele feito no Commodore? Ó, Jesus...
Há uma razão pela qual as pessoas «constroem» vidas juntas. Ainda que as escolhas feitas enquanto marido e mulher não sejam tijolos, e o tempo não seja argamassa,
ainda assim se constrói algo real e tangível. E naquele instante, quando o seu hellren se recusou a vir até ela - que diabos, a mostrar sequer o rosto - um terramoto
ia fazendo estremecer aquilo que julgara ser terra firme.
- O que fizeste esta noite? - insistiu, com a voz embargada.
Perante isso, ele rodou nos calcanhares e deu duas passadas na direção dela. Mas não foi para ficar mais próximo. Foi para sair debaixo da luz. Mesmo assim...
- A tua cara - espantou-se ela.
- Entrei numa briga com alguns minguantes. - Quando ela se dispôs a avançar, V ergueu a mão aberta. - Estou bem. Só preciso de algum espaço neste momento.
Havia alguma coisa de errado nisto, pensou ela. E detestava a questão que lhe assaltava a mente - a ponto de se recusar pronunciá-la.
Só que nesse momento tudo o que houve foi silêncio.
- Como está a minha irmã? - indagou ele, de repente.
- Está ainda a recuperar - respondeu Jane, com um aperto na garganta. - A Ehlena está com ela.
- Devias tirar umas horas e descansar.
- E vou. - Com este assunto por resolver, ela nunca mais ia conseguir dormir.
V arrastou no ar a mão enluvada.
- Não sei o que dizer agora.
- Estiveste com outra pessoa?
Ele nem sequer hesitou.
- Não.
Jane fitou-o... e depois expirou devagar. Uma coisa que era verdade sobre o seu hellren, uma coisa que se podia confiar, era que Vishous nunca mentia. De todos os
defeitos que ele tinha, esse não fazia parte da lista.
- Está bem - disse ela. - Sabes onde me encontrar. Vou estar na nossa cama.
Foi ela que virou costas e começou a andar no sentido contrário. Ainda que a distância entre eles lhe partisse o coração, não o ia massacrar até fazer algo que não
era capaz, e se ele precisava de espaço... bem, ia dar-lho.
Mas não para sempre, isso era certo.
Mais tarde ou mais cedo, aquele macho ia ter de falar com ela. Tinha de o fazer, ou então ela ia... Deus, nem sabia bem o que ia fazer.
O seu amor, contudo, não ia sobreviver para sempre naquele vácuo. Não podia.
Capítulo 15
O facto de José de la Cruz ter passado pelo drive-through de um Dunkin’ Donuts a caminho da baixa de Caldwell era um cliché tremendo. A sabedoria popular punha todos
os detetives de homicídios a beber café e a comer donuts, mas isso nem sempre era verdade.
Às vezes, pura e simplesmente não havia tempo para parar.
E que se lixassem as séries de televisão e os romances policiais, a verdade era que ele trabalhava melhor com cafeína e um pouco de açúcar no sangue.
Além disso, adorava bolos. Portanto, que se danasse.
O telefonema que o acordara e à mulher tivera lugar perto das seis da manhã, algo que, tendo em conta o número de chamadas noturnas que recebia, era quase civilizado.
Os cadáveres, tal como os corpos vivos com problemas clínicos, não seguiam um horário de expediente - por isso, a hora quase decente fora uma novidade agradável.
E não era só isso que tinha a seu favor. Sendo domingo de manhã, as ruas e as autoestradas estavam vazias e o carro à paisana fez um excelente tempo desde os subúrbios,
pelo que o café ainda estava bem quente enquanto se dirigia ao bairro dos armazéns, ignorando os semáforos vermelhos.
O alinhamento de carros-patrulha indicava melhor o local onde se encontrara o corpo do que a fita amarela espalhada um pouco por todo o lado como a embrulhar um
qualquer presente alucinado de Natal. Praguejando, estacionou paralelamente à parede do beco e saiu do carro, beberricando o café enquanto se aproximava do grupo
de fardas azuis de expressão sombria.
- Então, detetive.
- Como vai, detetive.
- Bom dia, detetive.
Cumprimentou os rapazes com acenos de cabeça.
- Bom dia a todos. Como estão as coisas?
- Não lhe tocámos. - Rodriguez acenou com a cabeça na direção do contentor. - Está ali dentro e o Jones já tirou as primeiras fotografias. O legista e os tipos do
CSI estão a caminho. E a «homem-sógina» também.
Ah, sim, a sempre presente fotógrafa.
- Obrigado.
- Onde está o seu novo parceiro?
- A chegar.
- Será que ele está pronto para isto?
- Veremos. - De certeza que aquele beco imundo costumava ter por ali muita gente maldisposta, pelo que se o caloiro decidisse vomitar as proverbiais tripas, não
seria por aí que viria grande mal ao mundo.
José passou por baixo da fita e dirigiu-se ao contentor. Como acontecia sempre que se aproximava de um corpo, apercebeu-se de que a audição ficava quase insuportavelmente
aguçada. O leve tagarelar dos homens atrás dele, o som das solas dos seus sapatos no alcatrão, a brisa que assobiava vinda do rio... era tudo tão sonoro, como se
o volume do mundo tivesse sido aumentado até ao máximo.
É claro que a grande ironia era que aquilo que o trouxera ali, naquela manhã, àquele beco... o que trouxera todos os carros, todos os homens e a fita... estava absolutamente
silencioso.
José apertou o copo de esferovite enquanto espreitava sobre a borda enferrujada do contentor. A primeira coisa que viu foi a mão dela, um alinhamento de dedos pálidos,
com unhas partidas que tinham qualquer coisa castanha por baixo.
Fosse quem fosse, tinha dado luta.
Ao olhar para mais uma rapariga morta, desejou que o seu trabalho tivesse um mês, mais calmo, ou pelo menos uma semana... ou nem que fosse uma noite, que porra.
O que ele gostava mesmo era de uma carreira encalhada. Quando se tinha aquela profissão, era difícil gostar do que se fazia. Mesmo quando se resolvia um caso, havia
sempre alguém a enterrar um ente querido.
O polícia a seu lado pareceu estar a falar através de um megafone:
- Quer que abra a outra metade?
José quase disse ao homem que baixasse o volume, mas o mais provável seria que estivesse a falar como numa biblioteca.
- Sim. Obrigado.
O agente usou uma lanterna para levantar a tampa o suficiente para que a luz entrasse, mas não olhou lá para dentro. Deixou-se ali ficar, como uma das estátuas à
frente do Palácio de Buckingham, a fitar o outro lado do beco, sem focar nada.
Ao pôr-se em bicos de pés para espreitar, José não o censurou pela reticência mostrada.
Jazendo num leito de aparas de metal, a fêmea esta nua, com a pele acinzentada e manchada a libertar uma estranha luminosidade à luz difusa da madrugada. A julgar
pelo rosto e pelo corpo, estaria nos finais da adolescência, início da casa dos vinte anos. Caucasiana. O cabelo fora cortado pelas raízes, em certos pontos tão
rente que o couro cabeludo ficara dilacerado. Os olhos... tinham sido removidos das órbitas.
José tirou uma caneta do bolso, esticou-se e entreabriu ligeiramente os lábios rígidos. Sem dentes - nem um restara nas gengivas irregulares.
Chegando-se para a direita, levantou uma das mãos para poder ver a ponta dos dedos. Cortadas.
E a mutilação não se limitava à cabeça e às mãos... Tinha lanhos na carne, um no topo da coxa, outro junto ao cotovelo e dois no interior dos pulsos.
Praguejando entre dentes, teve a certeza de que fora deixada no contentor. Não havia ali privacidade suficiente para aquele tipo de trabalho - uma merda daquelas
exigia tempo e ferramentas... e algo com que a imobilizar.
- O que temos aqui, detetive? - indagou o novo parceiro atrás dele.
José olhou sobre o ombro para Thomas DelVecchio, Jr.
- Já tomaste o pequeno-almoço?
- Não.
- Ótimo.
Recuou para que Veck pudesse dar uma vista de olhos. Como ele tinha uns bons quinze centímetros a mais, não precisou de se esticar para olhar para o interior; bastou-lhe
curvar um pouco as ancas. E depois deixou-se fitar. Sem correr para a parede para vomitar. Sem arquejar. Sem grande mudança de expressão.
- O corpo foi deixado aqui - adiantou Veck. - Teve de ser.
- Ela.
Veck mirou o parceiro, os olhos azuis-escuros vivos e inalterados.
- Desculpe?
- Ela foi deixada aqui. É uma pessoa. Não é uma coisa, DelVecchio.
- Certo. Desculpe. Ela. - O tipo voltou a dobrar-se. - Acho que temos aqui um colecionador de troféus.
- Talvez.
Sobrancelhas escuras ergueram-se.
- Há muita coisa em falta... nela.
- Tens visto a CNN ultimamente? - José limpou a caneta a um lenço de papel.
- Não tenho tempo para televisão.
- No último ano foram encontradas onze mulheres neste estado. Chicago, Cleveland e Philly.
- Pooooorra. - Veck estalou um balão de pastilha dentro da boca e mascou com força. - Então está a pensar se isto será o início na nossa zona?
José esfregou os olhos com as recordações invocadas pelo ranger dos molares do parceiro.
- Quando é que deixaste?
Veck pigarreou.
- De fumar? Há coisa de um mês.
- E como é que está a correr?
- É uma merda.
- Aposto que sim.
José levou as mãos às ancas e voltou a concentrar-se. Como é que iriam descobrir quem era aquela rapariga? Havia um sem fim de jovens desaparecidas no estado de
Nova Iorque - e isso partindo do princípio de que o assassino não o fizera em Vermont ou em Massachusetts ou em Connecticut, trazendo-a depois para ali.
Uma coisa era certa: impensável permitir que um cabrão qualquer começasse a eliminar raparigas dali de Caldie. Não ia acontecer no turno dele.
Quando se virou deu uma palmada no ombro do parceiro.
- Dou-te dez dias, camarada.
- Para quê?
- Para voltares a falar com o Homem da Marlboro.
- Não subestime a minha força de vontade.
- Não subestimes o que vais sentir quando esta noite chegares a casa e quiseres dormir.
- Também já não durmo muito.
- Este trabalho não ajuda.
Nesse momento chegou a fotógrafa, carregada de máquinas, flashes e mau feitio.
José acenou com a cabeça na direção oposta.
- Vamos sair daqui e deixá-la trabalhar.
Veck olhou para ela e ficou estarrecido quando recebeu um olhar gelado em troca. O alerta para desaparecer de certeza que era uma novidade para o tipo. Veck era
um daqueles homens à volta dos quais as mulheres andavam sempre a pairar, tal como as últimas duas semanas tinham mostrado. Na sede, as fêmeas estavam todas em cima
dele.
- Anda lá, DelVecchio, vamos dar início a isto.
- Entendido, detetive.
Regra geral, José talvez lhe pedisse que o tratasse por de la Cruz, mas nenhum dos seus parceiros «novos» tinham durado muito mais do que um mês, por isso não valia
a pena. É claro que «José» estava fora de questão - só uma pessoa o tratara assim durante o horário de serviço, e o sacana desaparecera há três anos.
Ele e Veck precisaram de quase uma hora para dar a volta a tudo e não apuraram nada de concreto. Não havia câmaras de segurança no exterior dos edifícios, nem houve
testemunhas que dessem a cara, mas os agentes do CSI iam esquadrinhar tudo com os seus aparelhos, os saquinhos de plástico e as pinças. Talvez encontrassem alguma
coisa.
O legista apareceu às nove e fez o que tinha a fazer, tendo o corpo recebido autorização para ser removido cerca de uma hora depois disso. E, quando foi precisa
uma mãozinha com o cadáver, José ficou surpreendido ao ver Veck calçar um par de luvas especiais e saltar para dentro do contentor.
Imediatamente antes de o médico-legista ter saído da cena com o corpo, José perguntou a hora da morte, ao que lhe responderam por volta do meio-dia da véspera.
Que maravilha, pensou ele, quando os carros e as carrinhas começaram a afastar-se. Morta quase vinte e quatro horas antes de ter sido encontrada. Podia perfeitamente
ter sido trazida de fora do estado.
- Vamos à base de dados - disse a Veck.
- A caminho.
Quando o parceiro se virou e se dirigiu a uma moto, José disse-lhe:
- A pastilha não é um grupo alimentar.
Veck parou e olhou sobre o ombro.
- Estás a convidar-me para tomar o pequeno-almoço, detetive?
- Só não quero que desmaies durante o trabalho. Era uma vergonha para ti e mais um corpo aos meus pés.
- É um querido, detetive.
Talvez em tempos tivesse sido. Naquele momento só tinha fome e não queria comer sozinho.
- Encontramo-nos no Vinte e Quatro daqui a cinco minutos.
- Vinte e Quatro?!
É verdade; ele não era dali.
- O Riverside Diner, na Eighth Street. Aberto vinte e quatro horas por dia.
- Entendido. - Enfiou um capacete preto e passou a perna sobre um aparelho que era, em grande medida, motor. - Sou eu que pago.
- Como queiras.
Veck ligou a moto com um empurrão do pé e acelerou o motor.
- É sempre, detetive. Sempre.
Quando arrancou, deixou atrás dele um rasto de testosterona no beco, e José sentiu-se, em comparação, um suburbano de meia-idade quando se dirigiu ao carro à paisana
cor de papas de aveia. Sentando-se ao volante, pousou o café quase vazio e absolutamente gelado do Dunkin’ Donuts no porta-copos e olhou para o contentor atrás da
fita.
Tirou o telemóvel do casaco do fato e marcou o número da sede.
- É o de la Cruz. Podes ligar-me à Mary Ellen? - Esperou menos de um minuto. - ME, estás boa? Ótimo... ótimo. Escuta, quero ouvir a chamada que fizeram por causa
do corpo junto ao Commodore. Sim. Isso... reprodu-la. Obrigado... e estás à vontade. - José enfiou a chave na ranhura junto ao volante. - Certo, obrigado, ME.
Respirou fundo e ligou o motor...
Estou, queria dá conta dum cadáver. Nã vou dizer o mê nome. Tá num contentor, num beco juntá Tenth Street, a dôs quarteirões do Commadore. Parece uma mulher caucasiana,
jovem, princípio dos vintes... Nã, não digo o mê nome... E que tal apontar a morada e perder menes tempo comigo.
José agarrou o telefone com força e começou a tremer.
O sotaque da zona sul de Boston era tão nítido e familiar que quase parecia que o tempo tinha saltado para trás.
- Detetive? Quer ouvir outra vez? - escutou Mary Ellen a perguntar-lhe ao ouvido.
Fechou os olhos e gemeu:
- Sim, obrigado...
Quando a gravação chegou ao fim ouviu-se a agradecer a Mary Ellen e sentiu o polegar a desligar a chamada.
Qual água pelo ralo, sentiu-se sugado para um pesadelo com cerca de dois anos... quando entrara num apartamento miserável, cheio de garrafas vazias de Lagavulin
e de caixas de piza. Lembrava-se de levar a mão à porta fechada da casa de banho, a tremer desde a palma da mão à ponta dos dedos.
Convencera-se de que ia encontrar um cadáver do outro lado. Pendurado do telefone do duche por um cinto... ou talvez deitado na banheira, ensopado em sangue, em
vez de um banho de espuma.
Butch O’Neal fizera da vida dura um objetivo profissional equiparado à carreira no departamento de homicídios. Fora um grande bebedor aos serões e não só tinha fobia
às relações, como era incapaz de criar ligações.
Mas ele e José tinham sido chegados. Mais chegados do que Butch alguma vez fora com outra pessoa qualquer.
Mas não tinha havido suicídio. Nada de corpo. Nada. Numa noite andava por ali, na seguinte... tinha desaparecido.
Durante o primeiro ou segundo mês, José esperara saber de alguma coisa - quer por parte de Butch quer por terem encontrado um cadáver com o nariz partido e um dente
da frente com uma coroa manhosa.
No entanto, os dias tinham-se transformado em semanas, as quais, por sua vez, tinham passado a estações do ano. E imaginou que se tornara uma espécie de médico com
uma doença terminal. Finalmente sabia, em primeira mão, como se sentiam as famílias das pessoas desaparecidas. E Cristo, nunca esperara ter de percorrer aquela fria
e temida extensão do Não Saber... mas com o desaparecimento do antigo parceiro não só a percorrera, como tinha comprado um terreno, feito casa e mudado para lá.
No entanto, agora, depois de ter perdido a esperança, depois de ter deixado de acordar a meio da noite com as dúvidas... aparecia aquela gravação.
Era verdade que havia milhões de pessoas com pronúncia do sul. Mas O’Neal tinha uma rouquidão reveladora na voz que não podia ser imitada.
De repente, José perdeu a vontade de ir ao Vinte e Quatro, ficou sem vontade de comer. Mas engrenou a primeira no carro à paisana e pisou o acelerador.
Assim que olhara para dentro do contentor e vira os olhos e os dentes desaparecidos, percebera que teria de procurar um assassino em série. Mas nunca imaginaria
que se depararia com uma outra busca.
Chegara a altura de encontrar Butch O’Neal.
Se conseguisse.
Capítulo 16
Uma semana depois, Manny acordou na sua cama com uma ressaca terrível. A boa notícia é que pelo menos essa dor de cabeça tinha explicação: quando chegara a casa
atirara-se com ganas ao Lag e este retribuíra, batendo-lhe de volta e derrubando-o.
A primeira coisa que fez foi estender a mão e agarrar no telefone. Com os olhos enevoados, ligou para o telemóvel do veterinário. Andavam os dois com um ritual madrugador
e dava graças a Deus por o tipo também ser insone.
O veterinário atendeu ao segundo toque.
- Estou?
- Como está a minha menina? - A pausa que se seguiu disse-lhe tudo o que precisava de saber. - Assim tão mal?
- Bem, os sinais vitais continuam bons e ela está a recuperar, tanto quanto possível, na suspensão. Mas estou preocupado com a falta de força. Veremos.
- Mantenha-me informado.
- Sempre.
Nesse momento, nada mais havia a fazer se não desligar. A conversa tinha chegado ao fim e ele não era, de todo, alguém que gostasse de desperdiçar palavras - e mesmo
que fosse, a conversa fiada não ia ajudá-lo a conseguir o que queria, o seu cavalo saudável de volta.
Antes de o alarme disparar, às seis e meia, e de acabar com a rotina do tiro na cabeça, desligou o sistema do rádio e programou o dia. Exercício. Café. Hospital.
Espera. Café. Exercício. Hospital.
Precisava de cafeína primeiro. Não estava capaz de correr ou de levantar pesos naquele estado - e também não devia operar maquinaria pesada, como um elevador, por
exemplo.
Quando pôs os pés no chão e se colocou na vertical, a cabeça tinha um latejar exclusivo, mas Manny recusou a ideia de que talvez, quem sabe, a dor não se devesse
ao álcool. Não estava doente, nem estava a desenvolver um tumor cerebral - embora se estivesse, não deixaria de ir para St. Francis. Fazia parte da sua natureza.
Que raios, mesmo em novo, fazia o possível por ir à escola quando estava doente - mesmo quando tivera varicela e mais parecia um desenho para ligar os pontos, insistira
em apanhar o autocarro.
A mãe vencera essa discussão. E queixara-se de que ele era igualzinho ao pai.
Não se tratava de um elogio e foi algo que passou a vida a ouvir - também não era algo que significasse grande coisa, pois nunca chegara a conhecer o tipo. Só tinha
uma fotografia desbotada, a única coisa que alguma vez pusera numa moldura...
Por que estaria a pensar nisso naquela manhã?
O café era o Starbucks Breakfast Blend. Vestiu o fato de treino enquanto o café fazia e depois engoliu duas canecas junto ao lava-louças ao mesmo tempo que observava
o trânsito, mais do que madrugador, a serpentear pelas curvas da Northway à luz ténue da alvorada. A última coisa que fez foi pegar no iPod e enfiar os auscultadores.
Não era muito conversador e Deus o livrasse de apanhar alguma jovenzinha com vontade de dar à língua.
Quando chegou ao ginásio encontrou-o quase vazio, o que foi um grande alívio, mas sabia que não iria durar muito. Saltou para a passadeira mais próxima da porta,
ligou o televisor por cima de si nas notícias da CNBC e começou a correr.
Deixou que os Judas Priest lhe dessem o ritmo aos pés, desligou a mente e deu ao corpo rígido e dorido aquilo de que precisava. Bem vistas as coisas, estava melhor
do que o fim de semana anterior. As dores de cabeça ainda persistiam, mas não interrompera o trabalho nem acumulara pacientes e estava a funcionar bem.
Mas isso deixava-o pensativo. Antes de bater naquela árvore, Jane também andava com dores de cabeça. Se lhe tivessem feito uma autópsia, teriam encontrado um aneurisma?
Por outro lado, qual seria a probabilidade de ambos sofrerem do mesmo...
Porque é que o fizeste? Para quê forjares a tua morte?
Não tenho tempo para explicar agora. Sei que isto não é justo mas tenho alguém com um problema e há mais de uma hora que ando à tua procura, por isso o tempo está
a esgotar-se...
- Porra... - Manny assentou rapidamente os pés nos apoios laterais e cerrou os dentes contra a agonia. Apoiou o corpo sobre o painel de instrumentos da máquina e
respirou lenta e ritmadamente - na medida do que era possível a alguém que estivera a correr depressa.
Através de tentativas e erros, nos últimos sete dias descobrira que quando era acometido pela dor, o melhor que tinha a fazer era esvaziar a mente e não pensar em
nada. E o facto de esse simples truque cognitivo funcionar era um bom descanso em relação à teoria do aneurisma. Quando se tinha qualquer coisa prestes a rebentar
numa artéria cerebral, não havia tretas de ioga que ajudassem.
Mas havia um padrão. O início da dor parecia surgir na sequência de pensamentos sobre Jane... ou sobre o sonho húmido que tivera.
Que raios, já tinha tido orgasmos suficientes durante o sono para envergonhar até a sua libido. E, como era quase garantido que voltaria a estar com essa mulher
nas suas fantasias, era depravado a ponto de, pela primeira vez na vida, mal poder esperar por chegar à cama.
Embora não fosse capaz de explicar o motivo que levava certos pensamentos a desencadear as dores de cabeça, o lado positivo era que estava a melhorar. A cada dia
que passava, desde aquele grande buraco negro que fora o fim de semana, sentia-se um pouco melhor.
Quando pouco restava, além de um leve latejar, Manny voltou à passadeira e terminou o exercício. A caminho da saída cumprimentou os madrugadores, mas desapareceu
dali antes que alguém o conseguisse importunar, caso tivessem assistido ao ataque.
De volta a casa tomou duche, vestiu as roupas de serviço e a bata branca, depois pegou na pasta e dirigiu-se ao elevador. Para evitar o trânsito seguiu pelas estradas
secundárias. A Northway estava sempre engarrafada àquela hora do dia e fez uma boa média enquanto ouvia My Chemical Romance.
Por algum motivo, não se conseguia fartar da canção «I’m Not Okay».
Ao virar para o complexo do Hospital St. Francis, a primeira luz da manhã ainda não aparecera por completo, o que sugeria que o tempo estaria nublado. Não que isso
lhe interessasse. Uma vez nas entranhas do monstro, as condições atmosféricas não o incomodavam de todo, salvo se fosse um tornado, algo que nunca acontecera em
Caldwell. Na maior parte dos dias chegava ao trabalho ainda de noite e saía de lá já noite, mas nunca sentia que estava a desperdiçar a vida, pois não era homem
de pensar Vi o sol, vi a chuva...
Era engraçado. Agora sentia-se fora do esquema.
Chegara ali vindo da Faculdade de Medicina de Yale, depois do internato, e pretendera transferir-se para Boston, Manhattan ou Chicago. Em vez disso, deixara ali
a sua marca e agora, mais de dez anos depois, ainda se encontrava no ponto de partida. Era verdade que estava no topo da cadeia alimentar, por assim dizer, e salvara
e melhorara muitas vidas, e ensinara a geração seguinte de cirurgiões.
O problema era que ao descer a rampa de acesso ao parque de estacionamento, tudo isso lhe parecia vão.
Tinha quarenta e cinco anos, com pelo menos metade da sua vida útil já passada, e o que tinha para mostrar? Um condomínio cheio de tretas da Nike e um trabalho que
lhe ocupara cada recanto da vida. Não tinha mulher. Não tinha filhos. Os natais, os anos novos e as restantes épocas festivas eram passados no hospital - com a mãe
a ter de se desenvencilhar nessas alturas e, sem dúvida, a suspirar por netos pelos quais seria melhor esperar sentada.
Cristo, quantas mulheres aleatórias é que ele tivera ao longo dos anos? Centenas. De certeza.
A voz da mãe ecoou-lhe na cabeça. És tal e qual o teu pai.
Era bem verdade. O pai também fora cirurgião. Com tendência para desaparecer ocasionalmente.
Por acaso fora por isso que Manny escolhera Caldwell. A mãe estivera em St. Francis como enfermeira da Unidade dos Cuidados Intensivos, trabalhando para lhe pagar
os vários anos de formação. E quando ele acabara a faculdade de medicina? Em vez de orgulho, o rosto dela mostrara distância e reserva... Quanto mais perto ele ficava
de imitar o pai, mais frequente era o olhar distante dela. Manny imaginara que se estivessem na mesma cidade, talvez começassem a relacionar-se, ou assim. Mas as
coisas não tinham corrido como o previsto.
Mas ela estava bem. Vivia agora na Florida, numa casa com campo de golfe paga por ele, onde jogava charadas com as senhoras da idade dela, jantava com a brigada
do bridge e discutia quem recebia pior no circuito de festas. Ele ficava mais do que satisfeito por lhe pagar as despesas e a relação ficava por aí.
O pai estava numa cova no cemitério de Pine Grove. Morrera em 1983, num acidente de viação.
Eram coisas perigosas, os carros.
Estacionou o Porsche, saiu e subiu as escadas, em vez de usar o elevador, para fazer exercício. Seguiu pela passagem coberta para entrar no hospital no segundo andar.
Cumprimentou os médicos, as enfermeiras e os outros funcionários por quem passou e seguiu em frente. Regra geral ia primeiro ao gabinete, mas por mais que o dissesse
aos pés, naquele dia não foi para aí que eles se dirigiram.
Encaminhou-se para as salas de recobro.
Disse para consigo que ia confirmar doentes, mas era mentira. E, à medida que a sua cabeça foi ficando cada vez mais nublada, ignorou deliberadamente que estava
atordoado. Bolas, era melhor do que a dor - e provavelmente estava apenas hipoglicémico, por ter feito exercício sem comer nada em seguida.
Doente... estava à procura do seu doente... Sem nome. Não sabia o nome, mas sabia qual era o quarto.
Ao chegar à sala mais próxima da saída de emergência ao fundo do corredor, sentiu o corpo afogueado e deu consigo a confirmar se a bata branca lhe assentava bem
nos ombros e depois a passar a mão pelo cabelo para o alisar.
Pigarreou, preparou-se, entrou e...
O octogenário na cama estava a dormir, mas não estava descansado, com tubos a entrar-lhe e a sair-lhe do corpo como se fosse um carro a que se estivesse carregar
a bateria.
Ao fitar o homem, Manny sentiu uma forte dor na cabeça.
- Doutor Manello?
A voz de Goldberg atrás dele foi um alívio, pois isso deu-lhe algo de concreto a que se agarrar... a borda da piscina, por assim dizer.
Deu meia volta.
- Então? Bom dia.
As sobrancelhas do médico ergueram-se e depois franziu o cenho.
- Aaa... o que estás aqui a fazer?
- O que te parece? A confirmar um doente. - Cristo, parecia que andava toda a gente a perder o juízo.
- Pensei que fosses tirar uma semana de folga.
- Desculpa?
- Foi... aaa... foi o que me disseste quando saíste daqui, esta manhã. Depois de... te termos encontrado aqui.
- Estás a falar do quê? - Mas depois Manny fez um gesto com a mão, ignorando a conversa. - Olha, deixa-me tomar o pequeno-almoço primeiro...
- São horas de jantar, Manello. Seis da tarde? Saíste daqui há doze horas.
O calor que sentira antes deixou-o, sendo imediatamente substituído por uma onda fria como nunca sentira.
Um pânico gelado preencheu-o e deixou-o zonzo.
O silêncio incómodo que se seguiu era quebrado pela azáfama no corredor, pessoas a passar com o seu calçado de sola macia, apressando-se a caminho de doentes, ou
com cargas de roupas sujas, ou levando refeições... jantares, claro... de quarto em quarto.
- Eu... vou então para casa - anunciou Manny.
A voz continuava forte como sempre, mas a expressão no rosto do colega revelava a verdade que o rodeava. Por mais que dissesse para consigo que se sentia melhor,
ele já não era o que era. O aspeto era o mesmo. Soava ao mesmo. Caminhava da mesma maneira.
Chegou mesmo a tentar convencer-se de que era o mesmo.
Mas naquele fim de semana havia qualquer coisa que tinha mudado, e receava que já não houvesse volta a dar.
- Queres que alguém te leve? - indagou Goldberg, a medo.
- Não. Eu estou bem.
Precisou de invocar todo o seu orgulho para não começar a correr assim que se virou. Com um enorme autodomínio levantou a cabeça, endireitou a coluna e deu calmamente
um passo a seguir ao outro.
Por estranho que parecesse, ao sair por onde entrara pensou no seu antigo professor de cirurgia... o que fora «reformado» pela administração da faculdade ao fazer
setenta anos de idade. Na altura, Manny era aluno de medicina de segundo ano.
O doutor Theodore Benedict Standford III.
O fulano fora do pior nas aulas, o tipo de besta que preferia que os alunos dessem uma resposta errada na aula, pois isso dava-lhe a oportunidade de humilhar as
pessoas. Quando a faculdade anunciara a sua partida no final do ano, Manny e os colegas de turma organizaram uma festa de despedida para o desgraçado, tendo-se embriagado
ao festejar o facto de serem a última geração a ser sujeita às tretas daquele homem.
Nesse verão, Manny trabalhara como guarda da faculdade para ganhar algum dinheiro extra e estava a lavar o corredor quando os carregadores levaram as últimas caixas
do gabinete de Standford... e o velhote dobrou a esquina pela última vez.
Saíra de cabeça erguida, descendo os degraus de mármore e saindo pela majestosa entrada principal com uma pose altaneira.
Manny rira-se da arrogância do homem, presente até face à idade e à obsolescência.
Agora, ao andar da mesma maneira, interrogava-se se aquilo teria sido real.
O mais provável era que Standford se tivesse sentido como Manny naquele momento.
Descartado.
Capítulo 17
Jane ouviu o som de algo a rasgar no escritório do centro de treino. O som acordou-a, arrancando-lhe a cabeça da almofada formada pelos antebraços e endireitando-lhe
a coluna que estivera curvada sobre a secretária.
Rasgar... e agitar...
Começou por pensar que se tratasse de uma rajada de vento, mas depois o cérebro começou a funcionar. Não havia janelas ali em baixo, e seria preciso uma tempestade
para criar tanta perturbação.
Saltando da cadeira e contornando a secretária, saiu a correr da sala e dirigiu-se ao quarto de Payne. As portas estavam todas abertas porque só tinha uma paciente,
e embora Payne, regra geral, estivesse sossegada, se acontecesse alguma coisa...
Mas que raios era aquele barulho? Também ouvia gemidos...
Jane contornou a ombreira da porta da sala de recobro e quase gritou. Cristo... o sangue.
- Payne! - Correu para a cama.
A gémea de V agitava os braços desesperadamente, com os dedos a cravarem-se no lençol e também no corpo, as unhas afiadas a trespassar a pele dos braços, dos ombros
e das clavículas.
- Não sinto! - gritou a fêmea, as presas a faiscar, os olhos tão arregalados que o branco se via a toda a volta. - Não sinto nada!
Jane saltou em frente e agarrou um dos braços, mas perdeu o contacto assim que lhe tocou, escorregando nos arranhões húmidos.
- Payne! Para com isso!
Enquanto Jane se debatia para imobilizar a paciente, o sangue brilhante salpicava-lhe o rosto e a bata branca.
- Payne! - Se continuasse assim, os ferimentos iriam abrir-se até exibirem osso. - Para...
- Não sinto!
A caneta Bic surgiu na mão de Payne vinda de nenhures - mas não, não fora magia... Era a caneta de Jane, a que tinha no bolso da bata branca. Assim que a viu, o
esbracejar furioso transformou-se numa câmara lenta irreal à medida que a mão de Payne se erguia.
O golpe foi tão forte e certeiro que não havia como o deter.
A ponta aguçada trespassou em cheio o coração da fêmea, e o tronco ergueu-se, com um arquejo de morte a sair-lhe pela boca aberta.
Jane gritou
- Nããããão...
- Jane... acorda!
O som da voz de Vishous não fazia sentido. Salvo quando ela abriu os olhos... nas trevas. A clínica, o sangue e a respiração arrastada de Payne foram substituídos
por um manto visual negro que...
As velas ganharam vida e a primeira coisa que ela viu claramente foi o rosto duro de Vishous. Estava a seu lado, pesasse embora o facto de não terem dormido juntos.
- Jane, foi só um sonho...
- Eu estou bem - balbuciou ela, afastando o cabelo do rosto. - Eu...
Enquanto se erguia apoiada nos braços e arquejava, já não tinha a certeza do que era sonho e do que era real. Especialmente tendo em conta que Vishous estava a seu
lado. Não só não andavam a deitar-se juntos, como também não acordavam lado a lado. Jane partia do princípio de que ele dormia na oficina, mas talvez não fosse esse
o caso.
Pelo menos esperava que não.
- Jane...
No silêncio obscurecido, ouviu naquela palavra toda a tristeza que V nunca deixaria transparecer em qualquer outra situação. E ela sentia o mesmo. Os dias sem falarem
muito, o stresse provocado pela recuperação de Payne, a distância... a maldita distância... tudo isso era profundamente triste.
Ali, contudo, à luz das velas, na cama do casal, tudo isso acabava por se desvanecer um pouco.
Com um suspiro, Jane virou-se e aninhou-se no corpo quente e pesado, e o contacto físico alterou-a. Sem ter de se solidificar, tornou-se corpórea, com o calor a
fluir entre eles, a amplificá-la e a deixá-la tão real como ele. Olhou para cima e fitou-lhe o rosto belo e feroz, com a tatuagem na fronte, o cabelo preto que ele
puxava sempre para trás, as sobrancelhas fartas e os olhos claros gelados.
Ao longo da última semana, ela remoera a noite em que as coisas tinham endurecido. E, embora o comportamento dele a desiludisse e a deixasse ansiosa, havia uma coisa
que não fazia qualquer sentido.
Quando se tinham encontrado no túnel, Vishous usava uma camisola de gola alta. E ele nunca vestia golas altas. Detestava-as porque as considerava constrangedoras
- o que era irónico, tendo em conta o que por vezes o excitava. Regra geral usava camisolas de cavas ou andava nu, e ela não era parva. Ele podia ser duro como pedra,
mas a pele dele ficava marcada com tanta facilidade como a de qualquer outro.
Dissera que tinha entrado numa luta, mas era mestre em combate corpo a corpo. Por isso, se estava com nódoas roxas da cabeça aos pés, isso só tinha uma justificação:
ele permitira-o.
E tinha de se saber quem o teria feito.
- Estás bem? - perguntou V.
Jane levou a mão à face dele.
- E tu? - E eles?
V nem sequer pestanejou.
- Estavas a sonhar com o quê?
- Vamos ter de falar, V.
Os lábios dele cerraram-se. E apertaram-se ainda mais enquanto ela aguardava.
- A Payne está bem - acabou V por dizer. - Só passou uma semana e...
- Não estou a falar dela. Refiro-me ao que aconteceu na noite em que saíste sozinho.
V recostou-se na cama, deitando-se sobre as almofadas e cruzando as mãos sobre os abdominais firmes. À luz débil, os músculos duros e as veias salientes que lhe
subiam pelo pescoço lançavam sombras escuras.
- Estás a acusar-me de ter estado com alguém? Pensava que já tínhamos ultrapassado isso.
- Para de desconversar. - Lançou-lhe um olhar firme. - E se queres brigar, vai à procura de minguantes.
Com qualquer outro macho, a réplica seria garantia de uma discussão, com todo o dramatismo envolvente.
Em vez disso, Vishous virou-se para ela e sorriu.
- Gostava que te ouvisses.
- Eu preferia ouvir-te.
O brilho sexual com que ela estava tão familiarizada, mas que não via há uma semana, iluminou os olhos de V quando ele se virou na direção da fêmea. Depois as pálpebras
dele baixaram e olhou para os seios por baixo da simples T-shirt Hanes com que ela adormecera.
Jane escondeu o rosto, mas também ela sorria. As coisas tinham andado tão tensas entre eles. Aquilo era mais normal.
- Não vou deixar que me distraias.
À medida que o calor se desprendia do seu corpo em ondas, o parceiro afagou-lhe o ombro com a ponta dos dedos. E depois abriu a boca, com as presas a surgirem e
a alongarem-se à medida que humedecia os lábios.
O lençol que o cobria ia sendo puxado ao longo do abdómen musculado. Mais para baixo. Cada vez mais. Era a mão enluvada que o puxava e a cada centímetro exposto,
os olhos dela iam tendo mais dificuldade em afastar-se. Parou imediatamente antes de a imensa ereção ser revelada, mas não deixou de lhe oferecer um espetáculo:
as tatuagens à volta do baixo-ventre contraíram-se e esticaram-se enquanto as ancas se contorciam.
- Vishous...
- Sim?
A mão enluvada mergulhou por baixo do cetim preto e ela não precisou de ver para onde se dirigia para ter noção de que ele se agarrara. O facto de ele se ter arqueado
dava-lhe toda a informação necessária. Isso e a forma como mordia o lábio inferior.
- Jane...
- Sim?
- Vais ficar só a ver?
Cristo, ela lembrava-se da primeira vez que o vira assim, deitado numa cama, ereto, pronto. Ela estivera a lavá-lo com uma esponja e ele lera-a como a um livro aberto.
Por mais que Jane não quisesse admitir, estava ansiosa por vê-lo a libertar-se.
E certificara-se de que ele o fazia.
Sentindo-se ela própria quente, inclinou-se sobre ele, baixando a boca até quase tocar os lábios do macho.
- Continuas a fugir...
Num abrir e fechar de olhos, a mão livre de V saltou e agarrou-lhe a nuca, aprisionando-a. E não era que o poder demonstrado lhe tinha descido de imediato até entre
as coxas?
- Pois continuo. - A língua dele apareceu e percorreu o lábio de Jane. - Mas sempre podemos falar depois de acabarmos. Sabes que eu nunca minto.
- Pensava que era mais na linha do... nunca estás errado.
- Pois, isso também é verdade. - Deixou escapar um rosnido. - E neste momento... nós dois precisamos disto.
A última parte foi dita sem paixão, mas com toda a sinceridade que ela precisava de ouvir. E verdade fosse dita, ele tinha razão. Tinham passado os últimos sete
dias às voltas, a pisar com cuidado, evitando o terreno minado no centro da relação. A ligação estabelecida daquela maneira, pele contra pele, ia ajudá-los com as
palavras que tinham de ser ditas.
- Então, o que me dizes? - murmurou V.
- Estás à espera de quê?
A gargalhada soltada foi grave e satisfeita, e o antebraço contraiu-se e descontraiu-se à medida que ele a acariciava.
- Desvia o lençol, Jane.
A ordem fora rouca, mas clara, e chegara-lhe bem. Como sempre.
- Fá-lo, Jane. Vê-me.
Levou-lhe a mão ao peito e fê-la deslizar para baixo, sentindo as formas do peito e as depressões duras dos abdominais, ouvindo-o a sibilar enquanto inspirava por
entre os dentes. Levantando o lençol, Jane teve de engolir em seco quando a cabeça do membro se deixou ver no centro do punho, libertando-se e oferecendo-se com
uma única lágrima de cristal.
Quando ela fez menção de estender a mão, ele segurou-lhe o pulso e reteve-a.
- Olha para mim, Jane... - disse num gemido. - Mas não me toques.
Filho da mãe. Detestava que ele fizesse aquilo. Também o adorava.
Vishous não a largou enquanto se dedicava à ereção com a mão enluvada, o corpo belo ao se encontrar com o ritmo do bombear da mão. A luz das velas transformava a
cena em algo misterioso, mas... era sempre assim com V. Com ele, Jane nunca sabia o que esperar, e não só por ser filho de uma deusa. Era sempre sexo no limite,
encurralado e artístico, distorcido e exigente.
E ela sabia que só tinha a versão mais diluída do macho.
O labirinto subterrâneo daquele corpo tinha grutas mais profundas, locais que ela nunca visitara e onde nunca poderia entrar.
- Jane - disse ele, num tom rouco. - Esquece aquilo em que estás a pensar... Fica comigo no momento e não vás por aí.
Jane fechou os olhos. Sabia com quem estava a acasalar e aquilo que amava. Quando se entregara para toda a eternidade, tinha perfeita noção de todos os homens e
mulheres, e da forma como ele os tivera. Mas nunca imaginara que o passado se viesse intrometer entre eles...
- Não estive com ninguém. - A voz dele soou forte e segura. - Naquela noite. Juro.
Jane ergueu as pálpebras. Ele deixara de se tocar e estava deitado, imóvel.
De repente, a visão dele foi turvada pelas lágrimas.
- Desculpa - gemeu Jane. - Só precisava de ouvir isso. Eu confio em ti, a sério, mas eu...
- Shiu... está tudo bem. - A mão enluvada foi limpar a lágrima que ela tinha na face. - Está tudo bem. Por que não haverias de te interrogar quanto ao que ando a
fazer?
- É errado.
- Não, eu é que estou errado. - Respirou fundo. - Passei a última semana a tentar esconder as palavras. Detestei andar assim, mas não sabia o que dizer que não fosse
piorar a situação.
A um determinado nível, ela ficou surpreendida com a compassividade e com a compreensão. Eram ambos muito independentes, e era por isso que a relação funcionava
bem. Ele era reservado e ela não precisava de grande apoio emocional e, regra geral, essa combinação era perfeita.
Mas não naquela altura.
- E também te quero pedir desculpa - murmurou V. - Quem me dera ser um tipo diferente de macho.
De alguma forma, ela sabia que V se referia a muito mais do que à sua natureza reservada.
- Não há nada sobre o qual não possas falar comigo, V. - Tendo como única resposta um «Mmm», ela continuou: - Neste momento andas com muito stresse. Sei disso. E
faria tudo para te ajudar.
- Eu amo-te.
- Então, tens de falar comigo. A única coisa que garantidamente não resulta é o silêncio.
- Eu sei. Mas é como estar a olhar para um quarto escuro. Quero contar-te tanto, mas não consigo... não vejo nada do que sinto.
Jane acreditava nisso e reconhecia-o como sendo algo com que as vítimas de abusos na infância se costumavam debater na idade adulta. A compartimentação era o primeiro
mecanismo de sobrevivência que as ajudava a ultrapassar tudo. Quando havia demasiado com que lidar, dispersavam o eu interior e guardavam as emoções bem lá no fundo.
Claro que o grande risco era a pressão que acabava sempre por se acumular.
Mas, pelo menos, o gelo entre eles tinha-se quebrado. E agora encontravam-se naquele espaço silencioso e semipacífico.
Os olhos de Jane baixaram por vontade própria para a ereção do macho, deitada sobre a barriga dele, ultrapassando até o umbigo. De repente desejou-o tanto que nem
conseguia falar.
- Toma-me, Jane - gemeu ele. - Faz o que quiseres comigo.
O que ela queria era sugá-lo, e assim fez, inclinando-se sobre as ancas dele, enfiando-o na boca, até ao fundo da garganta. O som que emitiu foi animalesco, e as
ancas ergueram-se, empurrando a sua extensão quente bem para dentro dela. Depois, um dos joelhos ergueu-se de súbito, pelo que deixou de ficar apenas deitado, mas
esparramado, ao entregar-se completamente, segurando-lhe a nuca enquanto ela assumia um ritmo que o deixava...
A mudança de posição do corpo dela foi simultaneamente rápida e gentil.
Com a sua força tremenda, V reposicionou-a num abrir e fechar de olhos, girando-a e desviando os lençóis do caminho, para que lhe pudesse passar as ancas sobre o
seu tronco. As coxas abriram-se sobre o rosto dele e...
- Vishous - exclamou ela, em torno da ereção do macho.
A boca dele estava molhada e quente, e acertou no alvo, fundindo-se com o sexo dela, prendendo-se e sugando antes de a língua se libertar para explorar o interior
da fêmea. O cérebro de Jane não só se desligou, mas antes explodiu e, sem nada com que pensar, deixou-se perder no que estava a acontecer e não no que tivera lugar
antes. Imaginava que com V fosse o mesmo... Deliciava-se a acariciá-la, a lambê-la e sugá-la, com as mãos a apertarem-lhe as coxas enquanto gemia o nome dela contra
o mais íntimo da fêmea. E era difícil concentrar-se no que ele estava a fazer ao mesmo tempo que o fazia a ele, mas que todos os problemas fossem esses. A ereção
dele na sua boca era quente e dura e ela era puro veludo entre as pernas e as sensações eram prova de que, embora fosse um fantasma, as reações físicas continuavam
a ser as mesmas de quando estava «viva»...
- Porra, preciso de ti - praguejou ele.
Com outro jorro rápido de força, Vishous ergueu-a como se não pesasse mais do que um lençol e a mudança não a surpreendeu. Ele sempre preferira vir-se dentro dela,
bem no fundo, pelo que lhe abriu as pernas antes de a pousar em cima das ancas, com a cabeça do membro a tocar-lhe... e a entrar profundamente.
A invasão não era apenas sexo, mas sim ele a marcar o seu território, e ela adorava isso. Era assim que devia ser.
Tombando para a frente e apoiando-se nos ombros dele, fitou-lhe os olhos enquanto se moviam juntos, com o ritmo a bombear até que se vieram ao mesmo tempo, ambos
a ficarem hirtos enquanto ele ejaculava dentro dela e o sexo de Jane o ordenhava. E depois V deitou-a de costas e percorreu-lhe o corpo até ao ponto de partida,
fundindo a boca com o corpo dela, as mãos a segurarem-lhe as coxas enquanto a devorava.
Não houve paragem nem pausas quando ela se veio com força. V saltou em frente, abrindo-lhe as pernas e invadindo-a de uma estocada só para a dominar. O corpo era
uma máquina imensa a bombear em cima dela, o odor de acasalamento a preencher o quarto enquanto o orgasmo chegava com potência, com a semana de abstinência a ser
eliminada numa única sessão gloriosa.
Enquanto o orgasmo lhe percorria o corpo, Jane observou-o a vir-se, adorando cada pedaço dele, até mesmo os que por vezes ela tinha dificuldade em compreender.
E depois ele continuou. Mais sexo. E ainda mais.
Quase uma hora depois, ficaram por fim saciados e deixaram-se ficar deitados, a respirar profundamente à luz das velas.
Vishous fê-los virar, mantendo-se unidos, e os seus olhos demoraram-se no rosto dela.
- Não tenho palavras. Dezasseis línguas, mas não tenho palavras.
A voz dele deixava transparecer amor e desespero. Era mesmo incapacitado no que dizia respeito às emoções, e o facto de se ter apaixonado não mudara isso em nada...
pelo menos quando as coisas estavam tão tensas como naquele momento. Mas não fazia mal - depois daqueles momentos juntos, não fazia mal.
- Está tudo bem. - Jane beijou-lhe o peito. - Eu compreendo-te.
- Só gostava que não fosse preciso.
- Tu percebes-me a mim.
- Pois, mas tu és fácil.
Jane ergueu-se.
- Caso não tenhas reparado, sou um fantasma, pelo amor de Deus. Não é algo fácil de entender por muitos homens.
V puxou-a para um beijo rápido e fugidio.
- Mas tenho-te para o resto da vida.
- Isso é verdade. - Afinal de contas, os humanos não duravam nem um décimo do tempo que os vampiros tinham de vida.
Quando o despertador começou a tocar ao lado deles, V lançou um olhar furioso.
- Já sei porque é que durmo com uma arma debaixo da almofada.
Quando ele se estendeu para silenciar o relógio, Jane viu-se obrigada a concordar.
- Podias dar-lhe um tiro.
- Não, o Butch aparecia logo e se ele alguma vez te vir nua, não quero estar com uma arma na mão.
Jane sorriu e depois recostou-se enquanto ele se levantava e se dirigia à casa de banho. Fez uma pausa junto à porta e olhou para trás.
- Vim ter contigo, Jane. Passei todas as noites desta semana a vir ter contigo. Não queria que estivesses sozinha. E não queria dormir sem ti.
Com essas palavras, entrou na casa de banho e, momentos depois, Jane ouviu o duche a correr.
V era melhor com as palavras do que julgava.
Espreguiçando-se, satisfeita, sabia que também tinha de se levantar - era hora de substituir Ehlena no turno do dia na clínica. Mas como gostaria de poder ali ficar
toda a noite. Talvez só mais um bocadinho...
Vishous saiu dez minutos depois, ao encontro de Wrath e da Irmandade, e beijou-a a caminho da porta. Duas vezes.
Levantando-se, Jane passou algum tempo na casa de banho e depois foi até ao roupeiro, abrindo as portas duplas. Nos cabides estavam penduradas calças de cabedal
- dele; T-shirts brancas simples - dela; batas brancas - dela; blusões de cabedal - dele. As armas estavam todas num cofre; o calçado estava no chão.
A vida dela era incompreensível a muitos níveis. Um fantasma casado com um vampiro? Pelo amor de Deus.
Mas ao olhar para o roupeiro, bonito e arrumado com as suas vidas bizarras no meio das roupas e calçado bem arrumados, sentiu-se bem com o que tinham. «Normal» não
era algo mau naquele mundo alucinado. Não era mesmo.
Pouco interessava a sua definição.
Capítulo 18
Na clínica do centro de treino, Payne ia fazendo os seus exercícios, tal como os passara a encarar.
Deitada na cama do hospital com as almofadas chegadas para o lado, cruzava os braços sobre o peito e firmava a barriga, endireitando o tronco numa ascensão lenta.
Ao ficar perpendicular em relação ao colchão, estendia os braços para o lado e mantinha-os assim enquanto voltava a deitar-se. Depois de uma única vez, o coração
batia-lhe com força e estava quase ofegante, mas apenas se permitia um breve instante para recuperar e depois repetia. E repetia. E repetia.
O esforço foi-se intensificando, até que a testa ficou orlada com gotas de suor e os músculos da barriga começaram a doer. Jane mostrara-lhe como o fazer e para
todos os efeitos seria benéfico - embora, atendendo ao que já fora capaz de fazer, aquilo não passasse de uma faúlha comparada com uma fogueira.
Com efeito, Jane tentara levá-la a fazer muito mais... chegara mesmo a levar-lhe uma cadeira de rodas para se sentar e ambular, mas Payne não suportou ver o objeto,
nem pensar que passaria o resto da vida a deslocar-se assim de um lado para o outro.
Durante a última semana fechara sumariamente qualquer forma de acomodação, na esperança de receber um milagre singular... que nunca se concretizou.
Parecia que já tinham passado séculos desde que lutara com Wrath... desde que tivera consciência da força e da coordenação dos membros. Havia tanto que tomara como
garantido, e agora sentia a falta de quem fora com uma mágoa que julgara só existir para com os mortos.
Por outro lado, era como se tivesse morrido. O problema era que o corpo não tinha a inteligência necessária para deixar de funcionar.
Praguejando na língua antiga, deixou-se cair para trás e assim ficou. Quando conseguiu procurou a faixa de cabedal com que cingira as coxas. Estava tão apertada
que sabia que estaria a prender-lhe a circulação, mas ela não sentia nada, tal como não sentiu qualquer alívio ao soltar o cabedal.
Fora assim desde a noite em que regressara àquele sítio.
Nenhuma alteração.
Fechando os olhos, regressou à guerra interior onde os seus receios se digladiavam com a mente, com resultados cada vez mais trágicos. Após sete ciclos de noite
e dia, o exército da racionalidade sofria de uma fadiga profunda e de falta de munições entre as tropas. Assim, a maré estava a virar. Começara por estar sustentada
pelo otimismo, mas isso desvanecera-se. Seguira-se um período de paciência decidida, que não durara muito. Desde então debatera-se naquele ermo de esperança infundada.
Sozinha.
Por sua fé, a solidão era deveras o pior do ordálio. Apesar de todos os que tinham a liberdade de entrar e sair do quarto, ela estava à margem, mesmo quando se sentavam
e falavam com ela, ou quando tratavam das suas necessidades básicas. Limitada àquela cama, encontrava-se num plano diferente de realidade, separada por um vasto
deserto invisível para o outro lado do qual conseguia olhar, mas que era incapaz de percorrer.
E era estranho. Tudo o que ela perdera tornava-se mais nítido sempre que pensava no seu curandeiro humano - algo tão frequente que já perdera a noção das vezes.
Ah, como sentia a falta daquele homem. Muitas tinham sido as horas passadas a recordar a voz dele, o seu rosto, e o último momen-to juntos... até que as recordações
se tornaram num cobertor com que se aquecer durante os vastos e frios períodos de preocupação.
Infelizmente, muito à semelhança do seu lado racional, esse cobertor estava a ficar puído com o excesso de uso, e não havia como o remendar.
O curandeiro não pertencia ao mundo dela e não mais voltaria - não passava de um sonho breve e nítido que se desintegrara em fragmentos agora que ela despertara.
- Para - ordenou em voz alta a si própria.
Com a força do tronco que tentava manter, virou-se para o lado para agarrar nas duas almofadas, lutando contra o peso morto que era a parte inferior do corpo enquanto
se esforçava por...
De repente perdeu o equilíbrio e tombou com o braço a derrubar o copo de água que tinha na mesa a seu lado.
Infelizmente, não se tratava de um objeto adequado a um impacto.
Quando se desfez, Payne fechou a boca, a única forma de manter os gritos nos pulmões. Caso contrário, eles quebrariam o selo que eram os lábios e não cessariam.
Quando achou que chegava de autocontrolo, olhou para a confusão no soalho ao lado da cama. Em situações normais seria tão simples - algo entornado que se limparia.
Antes, bastar-lhe-ia baixar-se e limpá-lo.
Agora? Tinha duas opções. Ficar ali deitada e pedir ajuda como uma inválida. Ou pensar numa estratégia e tentar ser independente.
Precisou de algum tempo para identificar os pontos de apoio para as mãos e depois para avaliar a distância até ao chão. Felizmente já fora libertada de todos os
tubos que lhe tinham estado presos ao braço, mas ainda restava um cateter... portanto, talvez procurar fazer aquilo sozinha fosse uma má ideia.
No entanto, não suportava a indignidade de se limitar a permanecer ali deitada. Já não era um soldado. Agora, não passava de uma criança, incapaz de cuidar de si
própria.
Já não era suportável.
Munindo-se de quadrados de Kleenex, tal como as pessoas dali lhes chamavam, baixou a grade da cama, segurou-se ao topo e curvou-se para o lado. A torção fez com
que as pernas se abanassem como as de um boneco, toda ela movimento sem qualquer graciosidade, mas pelo menos era capaz de alcançar o soalho liso com o material
branco na mão.
Ao esticar-se tentando manter um equilíbrio precário na borda da cama, sentiu-se farta de ser tratada, lavada e envolvida como um recém-nascido acabado de chegar
ao mundo...
O corpo seguiu o destino do copo.
Sem aviso, a mão escorregou-lhe da grade lisa e, tendo as ancas tão afastadas do colchão, caiu de cabeça na direção do soalho, com a força da gravidade demasiado
intensa para ser vencida. Estendeu as mãos e bateu no chão molhado, mas as palmas escorregaram-lhe e a face direita suportou o impacto, fazendo-a perder o fôlego.
E depois ficou parada.
Estava encurralada, com a cama a prender-lhe os membros inúteis, diretamente por cima da cabeça e do tronco, imobilizando-a contra o chão.
Inspirou e chamou:
- Socorro... Socooorro...
Com o rosto pressionado, os braços a ficarem dormentes e os pulmões a arder por estarem a sufocar, dentro do corpo começou a formar-se uma raiva que cresceu até
sentir o corpo a tremer...
Começou como um chiar. Depois o som transformou-se em movimento quando a face começou a deslizar no mosaico, a pele a esticar-se até parecer estar a ser-lhe arrancada
do crânio. E depois a pressão começou a aumentar na nuca, com a trança grossa a puxar-lhe a cabeça numa direção, ao mesmo tempo que a posição estranha a impulsionava
em frente.
Reunindo toda a sua força, Payne concentrou a fúria e posicionou os braços de modo a ter as palmas mais uma vez contra o chão. Após uma inalação profunda, empurrou
com força, erguendo-se e virando-se de costas...
A corda que era o seu cabelo caiu entre as barras da grade e aí se prendeu, com a extensão grossa a imobilizá-la, ao mesmo tempo que lhe dobrava o pescoço contra
o ombro. Presa e sem conseguir sair dali, apenas era capaz de ver as pernas, os membros compridos e elegantes em que até então nunca pensara propriamente.
À medida que o sangue lhe descia para o tronco, observou a pele da barriga das pernas ficar cada vez mais branca.
Cerrando os punhos, ordenou aos dedos dos pés que se movessem.
- Malditos sejam... mexam-se... - Teria fechado os olhos para se concentrar, mas não queria perder o milagre, caso este tivesse lugar.
Não teve.
Não tivera.
E começava a consciencializar-se de que... não teria.
Quando o sabugo das unhas dos pés passou de rosa a cinza, percebeu que teria de se conformar com o ponto a que chegara. Uma excelente analogia para a sua presente
posição física.
Quebrada. Inútil. Um peso morto.
O colapso que, por fim, se seguiu não foi acompanhado por lágrimas nem por soluços. Em vez disso, a quebra foi marcada por uma decisão sombria.
- Payne!
Fechou os olhos ao ouvir a voz de Jane. Não era aquela a salvadora que queria. O seu gémeo... precisava que o seu gémeo a ajudasse.
- Vai buscar o Vishous, por favor - pediu, num tom rouco. - Por favor.
A voz de Jane aproximou-se.
- Vamos levantar-te do chão.
- Vishous.
Ouviu-se um clique e percebeu que o alarme ao qual não conseguira chegar fora ativado.
- Por favor - gemeu. - Vai buscar o Vishous.
- Vamos...
- Vishous.
Silêncio. Até que a porta se escancarou.
- Ajuda-me, Ehlena - ouviu Jane a dizer.
Payne tinha noção de que a sua boca se mexia, mas ficou surda quando as duas fêmeas a ergueram de volta à cama e voltaram a dispor-lhe as pernas, alinhando-as paralelamente
uma à outra antes de as taparem com os lençóis brancos.
Enquanto decorriam vários esforços de limpeza na cama e no chão, Payne concentrou-se na parede branca do outro lado do quarto, a qual fitara durante uma eternidade
desde que fora deslocada para aquela sala.
- Payne? - Não tendo resposta, Jane repetiu. - Payne. Olha para mim.
Dirigiu os olhos para Jane e não sentiu nada ao fitar o rosto preocupado da shellan do seu gémeo.
- Preciso do meu irmão.
- É claro que o vou buscar. Neste momento ele está numa reunião, mas eu trago-o antes que saia para os assuntos da noite. - Uma longa pausa. - Posso perguntar-te
o que desejas dele?
As palavras calmas mostraram-lhe que a boa da curandeira não era imbecil.
- Payne?
Payne fechou os olhos e ouviu-se a dizer:
- Quando tudo isto começou, ele fez-me uma promessa. Preciso que ele a cumpra.
Apesar de ser um fantasma, o coração de Jane ainda lhe parava no peito.
E quando se sentou na borda da cama, não tinha nada a mover-se por baixo do esterno.
- Que promessa foi essa - perguntou à sua paciente.
- É um assunto entre nós dois.
Uma treta é que era, pensou Jane. Isso, partindo do princípio de que acertara no que imaginara.
- Payne, talvez possamos fazer mais alguma coisa.
Embora não fizesse ideia do quê. As radiografias mostravam que os ossos tinham sido corretamente alinhados, reparados na perfeição pela competência de Manny. No
entanto, aquela espinal-medula - era essa a incógnita. Esperara que fosse possível uma regeneração dos nervos. Ainda estava a aprender sobre as capacidades do corpo
dos vampiros, muitas das quais pareciam pura magia quando comparadas com aquilo de que os humanos eram capazes em termos de cura.
Mas neste caso não havia essa sorte.
E não era preciso ser um Einstein para imaginar aquilo por que Payne ansiava.
- Sê sincera comigo, shellan do meu gémeo. - Os olhos de cristal de Payne fixaram-se nos dela. - Sê sincera para contigo.
Uma das coisas que Jane odiava na sua profissão era ter de optar. Havia muitos incidentes em que as decisões eram óbvias. Aparecia um tipo nas urgências com a mão
numa caixa refrigeradora e um torniquete à volta do braço? Cosia-se a extremidade e voltava a ligar-se os nervos ao sítio certo. Uma mulher em trabalho de parto
com prolapso do cordão? Cesariana. Fratura exposta? Abre-se e repara-se.
Mas nem tudo era assim tão «simples». Era habitual surgirem zonas cinzentas e obscuras, e ela tinha de observar o nebuloso...
Quem é que ela queria enganar?
O lado clínico daquela operação chegara à soma correta. Ela só não queria acreditar na resposta.
- Payne, deixa-me ir chamar a Mary...
- Não desejava conversar com a fêmea conselheira há duas noites e voltarei a não falar com ela agora. Para mim acabou, curandeira. E por mais que me custe chamar
o meu gémeo, peço-te que o vás buscar. És uma boa fêmea e não deverás ser tu.
Jane olhou para as mãos. Nunca as usara para matar. Nunca. Não era ético, não só em relação à sua vocação e ao seu empenho na profissão, mas também enquanto pessoa.
E mesmo assim, ao pensar no seu hellren e nos momentos passados juntos quando acordara com ele, sabia que não poderia deixar que ele fizesse o que Payne queria.
Recuara um breve passo do precipício do qual estava prestes a saltar, e não havia nada que Jane não fizesse para o afastar dessa beira.
- Não o posso ir buscar - lamentou-se. - Sinto muito. Não o posso pôr nessa posição.
O gemido que deixou a garganta de Payne era o desespero do seu coração com asas e libertado.
- Curandeira, é essa a minha escolha. A vida é minha. Não é tua. Se desejas ser uma verdadeira salvadora, faz com que pareça acidental, ou então fornece-me uma arma
e eu tratarei disso. Mas não me deixes neste estado. Não o suporto e se assim continuar, não terás sido útil à tua paciente.
A um certo nível, Jane sabia que aquilo teria de acontecer. Vira-o com toda a clareza nas sombras ténues nas radiografias, as que lhe diziam que tudo deveria estar
a funcionar na perfeição - e se não estivesse, a espinal-medula teria sido irremediavelmente danificada.
Fitou as pernas imóveis por baixo do lençol e pensou no juramento de Hipócrates que fizera há anos: «Jamais causar malefícios», dizia o primeiro mandamento.
Era difícil não ver Payne como tendo sido lesada se permanecesse assim - especialmente porque nunca quisera ser submetida à intervenção. Fora Jane que insistira
na salvação, forçando-a à fêmea pelos seus motivos próprios - e V fizera o mesmo.
- Encontrarei maneira - declarou Payne. - De alguma forma, encontrarei maneira.
Era difícil não acreditar nisso.
E haveria maiores hipóteses de êxito se Jane a ajudasse. Payne estava fraca, e qualquer arma na sua mão era um desastre à espera de acontecer.
- Não sei se consigo fazer isto. - As palavras deixaram lentamente a boca de Jane. - És irmã dele. Acho que ele nunca me perdoaria.
- Ele não precisa de saber.
Cristo, que embrulhada. Se fosse ela presa àquela cama, sentir-se-ia exatamente como Payne, e quereria que alguém a ajudasse a concretizar o desejo final. Mas o
fardo de ocultar tal coisa de V? Como o poderia fazer?
Mas... a única coisa pior seria que ele não regressasse do seu lado negro. E matar a irmã? Bem, seria um bilhete de ida para essa zona do bairro, não era?
A mão da paciente encontrou a sua.
- Ajuda-me Jane. Ajuda-me...
Quando Vishous saiu da reunião habitual com a Irmandade e se dirigiu à clínica do centro de treino, já se sentia mais ele próprio - e não num mau sentido. A sessão
de sexo com a sua shellan fora benéfica para ambos, uma espécie de reinício que não se limitara a ser físico.
Cristo, fora bom voltar a estar com a sua fêmea. Pois, ainda tinha problemas à sua espera... e, porra, quanto mais se aproximava da clínica, mais o oprimia o manto
do stresse, pesando-lhe sobre os ombros como um par de carros. Estivera com a irmã ao início de cada noite e depois à alvorada. Durante os primeiros dias houvera
muita esperança, mas agora... já desaparecera quase toda.
Mas pronto. Payne tinha de sair daquele quarto, e era isso que ele ia fazer nessa noite. Não fora destacado para nenhuma missão e ia levá-la à mansão, para lhe mostrar
que havia mais coisas pelas quais viver além daquela jaula branca que era a sala de recobro.
Não estava a melhorar fisicamente.
Assim sendo, tinha de ser a parte mental a suportá-la. Tinha de ser.
Sinceramente? Não estava preparado para a perder naquele momento. Estivera toda aquela semana junto dela, mas isso não queria dizer que a conhecia melhor do que
quando tudo começara - e acreditava que precisavam um do outro. Mais ninguém era descendente daquela maldita deusa que era mãe deles, e talvez juntos pudessem chegar
a alguma conclusão acerca da treta que era o seu direito de nascimento. Que grande porra, não era como se tivesse um guia sobre como ser filho da Virgem Escrivã:
Olá, sou o Vishous. Sou filho dela há já trezentos anos.
Olá, Vishous.
Voltou a dar-me cabo do juízo e estou a tentar não ir ao Outro Lado com ganas assassinas.
Nós compreendemos, Vishous.
Já agora, gostava de poder desenterrar o meu pai e voltar a matá-lo, mas não posso. Por isso vou tentar manter a minha irmã viva mesmo estando paralisada, e vou
tentar resistir ao impulso de encontrar dor para poder lidar com Payne.
És um grande maricas, Vishous, mas damos-te o nosso apoio.
Abrindo caminho desde o túnel ao escritório, passou pela porta de vidro e depois desceu o corredor. Ao passar pela sala de exercícios, havia alguém a correr como
se tivesse os Nike a arder mas, de resto, não havia mais ninguém por ali. E imaginava que Jane ainda estivesse na cama, a relaxar depois de ele ter tratado dela.
Algo com que o macho acasalado nele se sentia muito satisfeito. A sério.
Não bateu quando chegou à sala de recobro, mas...
Ao entrar, a primeira coisa que viu foi a agulha hipodérmica. A segunda foi que a seringa estava prestes a mudar de mãos, da sua shellan para a sua gémea.
Não havia quaisquer motivos terapêuticos para estarem a fazer isso.
- O que estão a fazer? - perguntou, repentinamente aterrorizado.
A cabeça de Jane virou-se de imediato, mas Payne não olhou para ele. Fitava a agulha como se fosse a chave da fechadura da sua cela.
E era garantido que a ajudaria a sair daquela cama... para dentro de um caixão.
- Mas que porra é que estão a fazer? - Não era uma pergunta. Ele já sabia.
- A opção é minha - declarou Payne, num tom sombrio.
A sua shellan cruzou o olhar com o dele.
- Desculpa, V.
Sentiu a visão a toldar-se, mas isso não o abrandou quando saltou em frente. Quando chegou à cama, os olhos clarearam e viu a mão enluvada a agarrar o pulso da shellan.
O seu aperto era a única coisa que afastava a gémea da morte. E foi a ela que se dirigiu, não à sua parceira.
- Nem te atrevas.
Os olhos de Payne debitavam violência quando se cruzaram com os dele.
- Nem tu não te atrevas!
V recuou por um instante. Olhara para o rosto de inimigos vencidos, submissos descartados e amantes esquecidos, tanto machos como fêmeas, mas nunca vira um ódio
tão profundo.
Nunca.
- Não és o meu deus! - bradou-lhe ela. - És meramente o meu irmão! E não me vais acorrentar a este corpo, tal como a nossa mahmen não o vai fazer!
A fúria de cada um era tão equilibrada que, pela primeira vez na vida, ele ficou sem reação. Afinal de contas, não fazia sentido entrar em conflito quando o adversário
era igual.
O problema era que se saísse naquele momento, quando regressasse seria para um funeral.
V queria andar para se acalmar, mas nem pensar em desviar a atenção por um segundo que fosse.
- Quero duas horas - disse-lhe. - Não te posso impedir, mas posso pedir-te que me dês cento e vinte minutos.
Payne semicerrou os olhos.
- Com que objetivo?
Ia fazer algo que teria sido inconcebível quando tudo começara. Mas aquilo era uma espécie de guerra e, logo, não se podia dar ao luxo de escolher as armas. Tinha
de se servir do que tinha à mão, mesmo que o odiasse.
- Vou explicar-te exatamente porquê. - V tirou a agulha da mão de Jane. - Vais fazê-lo para que isto não me persiga durante o resto da minha vida. Que tal essa razão?
Chega?
As pálpebras de Payne baixaram e seguiu-se um silêncio profundo, que foi interrompido quando ela disse:
- Vou dar-te o que me pedes, mas se continuar nesta cama, não mudarei de ideias. Define bem as tuas expectativas antes de partires... e fica de sobreaviso se tentares
falar com a nossa mahmen. Não iria trocar esta prisão por outra ao lado dela, no mundo dela.
Vishous enfiou a seringa no bolso e desembainhou a faca de mato que estava permanentemente no cinto das calças de cabedal.
- Dá-me a tua mão.
Quando lha ofereceu, V cortou-lhe a palma com a lâmina e fez o mesmo com a sua própria carne. Depois juntou os ferimentos.
- Jura. Pelo nosso sangue partilhado, jura-me agora.
A boca de Payne contorceu-se, como se, mais uma vez, em circunstâncias diferentes ela pudesse ter sorrido.
- Não confias em mim?
- Não - respondeu ele, com brusquidão. - Nem um bocadinho, minha querida.
Momentos depois, a mão dela apertou a do irmão e nos seus olhos formou-se um véu de lágrimas.
- Assim o juro.
Os pulmões de Vishous descontraíram-se e o macho respirou fundo.
- É justo.
Soltou-a, deu meia volta e dirigiu-se à porta. Assim que chegou ao corredor, não perdeu tempo a encaminhar-se para o túnel.
- Vishous.
Ao ouvir a voz de Jane virou-se e teve vontade de praguejar.
- Não me sigas - disse-lhe, abanando a cabeça. - Não me telefones. Neste momento não me vai sair nada de agradável da boca.
Jane cruzou os braços sobre o peito.
- Ela é minha paciente, V.
- Ela é do meu sangue. - Trespassou o ar num gesto de frustração. - Não tenho tempo para isto. Vou-me embora.
E dito isso saiu a correr, deixando-a para trás.
Capítulo 19
Quando Manny chegou a casa, fechou a porta, trancou-a... e ficou ali parado. Como uma peça de mobiliário. Com a pasta na mão.
Era espantoso como, quando se perdia a cabeça, a modos que se ficava sem opções quanto ao que fazer a seguir. A sua vontade não tinha mudado, ele ainda queria controlar-se
e depois isto... o que quer que fosse que se estava a passar com a sua vida. Mas não havia nada onde se agarrar, o animal não tinha rédeas.
Porra, isto tinha de ser o que os doentes com Alzheimer sentiam. A personalidade estava intacta, tal como o intelecto... mas estavam rodeados por um mundo que já
não faz sentido porque não conseguem reter as suas memórias e associações e extrapolações.
Estava tudo ligado àquele fim de semana - ou pelo menos tinha começado aí. Mas o que tinha mudado, ao certo? Perdera pelo menos parte de uma noite, tanto quanto
se recordava. Lembrava-se do hipódromo, da queda de Glory e do veterinário. E finalmente da viagem de regresso a Caldwell, aonde tinha ido a...
O aviso de outra dor de cabeça explosiva fê-lo praguejar e desistir.
Ao caminhar para a cozinha, deixou cair a pasta e acabou a olhar fixamente para a máquina de café. Tinha-a deixado ligada ao sair para o hospital. Fantástico. Portanto,
o seu java matinal tinha acabado por se transformar num java noturno, e era milagre não ter pegado fogo à merda do condomínio em peso.
Sentando-se num dos bancos à frente da bancada de pedra, olhou pela janela à sua frente. A cidade do outro lado da varanda brilhava como uma mulher que vai ao teatro
com todos os seus diamantes, as luzes dos arranha-céus tremeluziam e faziam-no sentir-se realmente sozinho.
Silêncio. Vazio.
O prédio parecia quase um caixão.
Cristo, se ele não pudesse operar, o que poderia...
A sombra surgiu do nada na varanda. Só que não era uma sombra... Não havia nada de translúcido naquela coisa. Era como se as luzes e as pontes e os arranha-céus
fossem uma pintura na qual tivesse sido cortado um buraco.
Um buraco com a forma de um homem corpulento.
Manny levantou-se do banco, com os olhos fitos na figura. Bem lá no fundo, ele sabia que isto era a causa de tudo, o seu «tumor» de pé e a andar... para o apanhar.
Como que convidado aproximou-se e fez deslizar a porta envidraçada, deixando o vento bater-lhe no rosto, afastando-lhe com brusquidão os cabelos da testa.
Estava frio. Ah, tanto frio... mas o choque térmico não foi apenas devido à fria noite de abril. Uma emanação gélida saía da figura tão quieta e mortífera apenas
a alguns centímetros de si. Teve a distinta impressão de a lufada ártica se dever ao facto de aquele cabrão de cabedal preto o odiar até ao tutano. Mas Manny não
teve medo. A resposta para o que se estava a passar consigo estava ligada àquele vulto enorme que tinha surgido do nada, uns vinte andares acima da rua...
Uma fêmea... com cabelo escuro entrançado... ela era...
A dor de cabeça regressou com violência, mordendo-o na nuca e disparando para a frente através do crânio, para lhe martelar sem piedade o lobo frontal.
Quando vacilou, tropeçou na calha e perdeu a paciência.
- Grande cabrão, não fiques aí sem fazer nada. Explica-te ou mata-me, mas faz alguma coisa.
Mais vento no rosto.
E então uma voz grave.
- Não devia ter cá vindo.
- Devias sim senhor - rosnou Manny por entre a dor. - Porque eu estou a perder a puta da cabeça e tu sabes isso, não sabes? Que merda é que me fizeste?
O sonho... sobre a mulher que ele queria, mas não conseguia ter...
Os joelhos de Manny começaram a ceder, mas isso que se lixasse.
- Leva-me até ela... e não me fodas. Eu sei que ela existe... vejo-a em sonhos todas as noites.
- Não estou a gostar nada disto.
- Pois, e eu estou aqui a fazer uma grande festa. - O filho da puta ficou por dizer. Tal como o facto de se este sacana de preto se decidisse a agir com toda a agressividade
em que ele estava a marinar, Manny ia dar trabalho aos punhos e fazer danos à sua conta. Ia ficar feito em papa com toda a certeza, mas tendo perdido ou não o juízo,
não se ia deixar ir abaixo sem luta.
- Anda lá - cuspiu Manny. - Vá!
Ouviu-se uma risadinha.
- Lembras-me um amigo meu.
- Queres dizer que há outro filho da puta perdido na sua própria vida por tua causa? Boa. Vamos fundar um grupo de apoio.
- Porra...
O tipo ergueu a mão e depois... as memórias explodiram na cabeça de Manny e fluíram-lhe pelo corpo, fazendo regressar com violência todas as imagens e sons do fim
de semana perdido.
Cambaleando para trás, levou as mãos à cabeça.
Jane. Instalações secretas. Operação.
Vampiro.
Um punho de ferro a agarrar-lhe o bíceps era tudo o que o impedia de lamber o soalho. O irmão da sua paciente estava a agarrá-lo.
- Tens de vir ver a minha irmã. Ela vai morrer se não vieres.
Manny respirou pela boca e engoliu bastante. A paciente... a sua paciente.
- Ela ainda está paralisada? - gemeu.
- Sim.
- Leva-me - redarguiu. - Já.
Se se tratasse de um caso em que a espinal-medula tivesse sido danificada permanentemente, não havia nada que pudesse fazer por ela em termos clínicos, mas isso
não importava. Tinha de a ver.
- Onde está o teu carro? - perguntou o sacana de pera.
- No parque.
Manny libertou-se e foi direito à pasta e às chaves que tinha deixado na bancada da cozinha. Enquanto ia tropeçando e caindo pela casa, o cérebro parecia-lhe desfocado
de uma forma que o assustava. Mais um bocado daquela merda liga-e-desliga com os seus circuitos e ele ia ficar com danos permanentes. Mas isso era discussão para
outra altura.
Tinha de ver a sua fêmea.
Quando chegou à porta da frente, o vampiro estava mesmo atrás de si, e Manny mudou as coisas para a mão esquerda.
Rodopiou rapidamente e lançou o punho direito, num arco perfeitamente calculado para acertar em cheio no queixo do tipo.
Pum. O impacto foi em cheio e a cabeça do cretino saltou para trás.
Enquanto o vampiro se recompunha e erguia o canto da boca com desprezo, Manny não se deixou ficar.
- Isto foi por te meteres comigo.
O macho passou as costas da mão pela boca ensanguentada.
- Bom gancho.
- De nada - disse Manny ao sair de casa.
- Eu podia ter parado isso a qualquer instante. Só para que saibas.
Não havia dúvida de que isso era verdade.
- Pois, mas não paraste, pois não? - Manny avançou para o elevador, carregou no botão, e olhou por cima do ombro. - Por isso, ou és um palhaço ou um masoquista.
Tu é que sabes.
O vampiro aproximou-se.
- Cuidado, humano... só estás vivo porque tens utilidade para mim.
- Ela é tua irmã?
- Não te esqueças disso.
Manny exibiu um sorriso rasgado.
- Então há uma coisa que precisas de saber.
- O quê?
Manny pôs-se em bicos de pés e olhou o sacana nos olhos.
- Se julgas que me queres matar agora, isto não é nada comparado com o que vais sentir quando eu a vir outra vez.
Estava praticamente ereto só de pensar na fêmea.
As portas do elevador abriram-se com um toque de campainha, e ele entrou, saiu, voltou a entrar, e deu meia volta. Os olhos do vampiro eram dardos à procura de um
alvo, mas Manny ignorou a agressividade.
- Só estou a informar-te da minha posição. Agora entra ou flutua como um fantasma até à rua, e eu já lá vou ter contigo.
- Deves pensar que eu sou um idiota, não? - rosnou o vampiro.
- Nem por isso.
Pausa.
Depois de mais um instante, o vampiro resmungou entredentes e deslizou para o elevador, mesmo quando as portas se começavam a fechar. E então o par ficou simplesmente
de pé, lado a lado, vendo os números regredir no mostrador por cima das portas...
Cinco... quatro... três... dois...
Tal como a contagem decrescente para uma explosão.
- Tem cuidado, humano. Não vais querer abusar da minha paciência.
- E eu não tenho nada a perder. - A não ser a irmã deste brutamontes. - Parece que vamos ter de esperar para ver no que isto vai dar.
- Podes crer.
Payne estava convertida num enorme bloco de gelo enquanto fitava o relógio ao pé da porta do seu quarto. O mostrador circular era tão liso como a parede branca que
tinha por trás, e só tinha marcados doze números pretos, separados por linhas também pretas. Os ponteiros, dois pretos e um vermelho, iam rodopiando como se estivessem
tão aborrecidos com a sua função como ela estava de os ver a trabalhar.
Vishous tinha de ter ido ver a mãe deles. Para onde mais se haveria ele de virar?
Portanto, aquilo seria era uma enorme perda de tempo. De certeza que regressaria de mãos vazias. Era a mais pura arrogância pensar que Aquela Que Não Pode Ser Persuadida
se deixaria afetar um pouco que fosse ante os perigos corridos pela sua prole.
Mãe da Raça. Que piada...
Payne franziu o sobrolho. O som começou por se fazer ouvir como um ritmo esbatido, mas foi rapidamente crescendo em intensidade. Passos. Passadas pesadas num soalho
duro, e com um ritmo rápido, e havia dois conjuntos. Talvez fossem apenas os Irmãos do seu gémeo a vir verificar tudo...
Quando a porta se abriu, tudo o que ela conseguiu ver foi Vishous, de pé com uma expressão carregada.
- Trouxe-te uma coisa.
O homem foi praticamente empurrado para o lado...
- Santíssima Virgem Escrivã... - exclamou Payne, com as lágrimas a aflorarem-lhe os olhos.
O seu curandeiro entrou de rompante no quarto, e oh, era tal e qual como ela se recordava... de peito tão largo e membros compridos, com barriga lisa e queixo forte.
O seu cabelo escuro estava espetado, como se por ele tivesse passado os dedos muitas vezes, e estava ofegante, de lábios entreabertos.
- Eu sabia que eras real - disse ele. - Porra, eu sabia!
Os olhos dele trespassaram-na, com a energia a surgir-lhe no interior e a deixá-la num remoinho de emoções.
- Curandeiro - disse ela com voz rouca. - O meu curandeiro...
- Que porra - ouviu ela da boca do irmão.
O seu humano voltou-se para Vishous.
- Dá-nos alguma privacidade. Já.
- Morde a puta da língua
- Sou o médico dela. Trouxeste-me aqui para lhe fazer uma avaliação clínica.
- Não sejas ridículo.
Seguiu-se uma pausa.
- Então porque é que aqui estou?
- Precisamente pela razão que eu te odeio!
Isso provocou um silêncio pesado e um soluço da parte de Payne. Sentia-se tão feliz por ver novamente o seu curandeiro em carne e osso. E esse soluço isolado fê-los
voltar as cabeças na direção dela, com a expressão do rosto do curandeiro a mudar de repente, passando de uma fúria incontida para preocupação.
- Fecha a porta ao sair - berrou por cima do ombro ao aproximar-se dela.
Passando as mãos pelos olhos, Payne limpou as lágrimas e olhou de lado para o curandeiro, enquanto ele se sentava ao pé dela na cama. Vishous tinha dado meia volta
e dirigia-se à saída.
Ele sabia, pensou Payne. Mais do que qualquer coisa que a mãe pudesse ter feito por ela, V trouxera-lhe a única coisa que garantidamente a faria querer viver.
- Obrigada, meu irmão - disse ela, de olhos fixos nele.
Vishous deteve-se. A tensão nele era tão grande, que ambos os punhos estavam cerrados com força, e quando girou lentamente a cabeça, os olhos gélidos cintilavam.
- Faria qualquer coisa por ti. Qualquer coisa.
Com isso saiu sem hesitar... e quando a porta se fechou lentamente, ela apercebeu-se de que Amo-te podia de facto ser dito sem ter de se entoar essas palavras.
Os atos significavam, na realidade, muito mais do que as palavras.
Capítulo 20
Quando ficaram sós, Manny não se cansava de olhar para a sua paciente. Mirava-lhe o rosto, o pescoço e as mãos compridas e adoráveis. Jesus, ela tinha o mesmo cheiro,
esse perfume a entrava-lhe pelas narinas e a chegava-lhe diretamente ao membro.
- Eu sabia que eras real - repetiu. Provavelmente teria sido melhor dizer outra coisa, qualquer coisa, mas era óbvio que não tinha mais nada. O alívio por não estar
a enlouquecer era avassalador.
Pelo menos até se aperceber do brilho das lágrimas nos olhos dela... a par da inconsolável falta de esperança no olhar.
Fizera o possível por ela e mesmo assim fracassara. Absolutamente.
Claro que já tinha imaginado qual seria o estado dela. Aquele vampiro não voltara ao mundo humano por as coisas estarem a correr às mil maravilhas por ali.
- Como estás? - perguntou-lhe.
Payne abanou lentamente a cabeça enquanto ele lhe fitava os olhos.
- Infelizmente... eu...
Não tendo terminado a frase, Manny procurou-lhe a mão e segurou-a. Por Deus, tinha a pele tão macia.
- Fala comigo.
- As minhas pernas... não estão melhores.
Manny praguejou entredentes. Queria fazer-lhe um exame e ver as radiografias mais recentes... talvez tratar das coisas para a levar ao St. Francis, para um novo
RMi.
Mas por mais crítico que fosse todo esse material, isso podia esperar. Naquele momento, ela estava emocionalmente debilitada e primeiro, ele tinha de a ajudar a
lidar com isso.
- Continuas sem sentir? - indagou.
Quando ela acenou com a cabeça, uma lágrima escorreu-lhe pela face. Detestava que ela estivesse a chorar, mas louvado fosse Deus, nunca vira nada tão belo como aqueles
olhos.
- Eu... vou ficar para sempre assim - disse ela, com um arrepio.
- E «assim» referes-te a quê?
- Aqui. Nesta cama. Presa. - Os olhos dela não se limitaram a suster os dele, tendo, isso sim, ido agarrá-los. - Não sou capaz de suportar esta tortura. Nem mais
uma noite.
Ela estava a falar muito a sério e, por uma fração de segundo, Manny sentiu um terror que lhe trespassou a alma. Talvez vinda de outra fêmea... ou macho, já agora...
uma declaração daquelas pudesse ser uma libertação emocional de desespero. Para ela era um plano.
- Tens internet por aqui? - perguntou Manny.
- Internet?
- Um computador com acesso à rede.
- Ah... creio que está um na outra sala maior. Por aquela porta.
- Volto já. Fica aqui.
Isso obteve-lhe o esboço de um sorriso.
- Para onde poderia ir, curandeiro?
- É o que eu te vou mostrar.
Quando se levantou teve de resistir ao impulso de a beijar, pelo que se apressou para garantir que não o fazia. Não demorou nada a encontrar o Dell em questão e
acedeu à rede com a ajuda de uma enfermeira loura bastante atraente que se apresentou como Elena. Dez minutos depois regressou ao quarto de Payne e fez uma pausa
à entrada.
Estava a arranjar o cabelo, as mãos a tremer enquanto alisava o cimo da cabeça e percorria a restante trança, como se procurasse defeitos.
- Não precisas de fazer isso - murmurou ele. - Para mim estás perfeita.
Em vez de responder, ela enrubesceu e ficou agitada, o que era o melhor que ela podia não dizer.
- Por minha fé, deixas-me de língua presa.
Ora, ora, isso levava-lhe a mente para sítios onde não devia ir.
Obrigou a cabeça a mudar de sintonia enquanto a fitava.
- Payne, sou o teu médico, correto?
- Sim, curandeiro.
- Isso quer dizer que vou sempre dizer-te a verdade. Sem artifícios, sem esconder nada. Vou dizer-te exatamente o que penso e deixo que te decidas... e preciso que
me ouças, está bem? Só te vou dizer a verdade, nem mais, nem menos.
- Nesse caso, não precisas de me adiantar nada, pois sei muito bem onde me encontro.
Manny olhou em sua volta.
- Já saíste daqui depois da operação?
- Não.
- Portanto, há uma semana que andas a olhar para estas quatro paredes vazias, presa a uma cama, com outras pessoas a alimentar-te, a lavar-te e a tratar das tuas
funções corporais.
- Não preciso que mo recordem - replicou ela, num tom seco. - Agradeço-te encarecidamente...
- Nesse caso, como é que sabes onde estás?
Payne ostentou uma expressão sombria... e sensual como tudo.
- Isso é ridículo. Estou aqui. - Apontou para o colchão por baixo dela. - Tenho estado aqui.
- Exatamente. - Quando ela lhe lançou um olhar gélido, Manny reduziu a distância entre ambos. - Se não te importares, vou pegar em ti e levar-te.
Payne ergueu as sobrancelhas.
- Para onde?
- Para fora desta malfadada gaiola.
- Mas... não posso. Tenho um...
- Eu sei. - Era óbvio que estaria preocupada com o cateter e, para obstar qualquer embaraço, Manny pegou numa toalha branca lavada da mesa-de-cabeceira. - Eu tenho
cuidado com ele e contigo.
Depois de se certificar de que o equipamento estava seguro, desviou o lençol que a cobria e levantou-a. Sentiu o peso dela bem firme contra o seu tronco e perdeu
um momento unicamente a segurá-la, a cabeça no seu ombro, as pernas tão compridas sobre o braço. O perfume dela, ou sabonete ou lá o que era, recordava-o de sândalo
e de mais alguma coisa.
Ah, pois era... orgasmos.
Os que ele tivera quando sonhara com ela.
Que maravilha, agora era ele que corava.
Payne tossicou.
- Peso muito? Sou grande, para fêmea.
- És perfeita para fêmea.
- Não de onde venho - resmungou ela.
- Então servem-se do padrão errado.
Manny levou a carga preciosa que tinha ao colo até à sala de observações. A seu pedido, a sala estava vazia. Pedira à enfermeira - Elina? Elaina? - que lhes dessem
um pouco de privacidade.
Não fazia ideia como aquilo iria correr.
Sentou-se ao computador sempre agarrado a ela e posicionou-se de modo a que pudessem ver o monitor. Não se importou de todo que ela parecesse mais interessada em
olhar para ele - embora não fosse propriamente útil para a concentração. Nem o motivo por que a tirara daquela cama.
- Payne - disse ele.
- O que foi?
Cristo, aquela voz rouca. Conseguia rasgá-lo como uma faca e fazê-lo gostar da dor que acompanhava o ferimento. Querê-la como queria e refrear-se era um prazer agonizante
que, de alguma forma, era superior ao melhor sexo que já fizera.
Nunca tinha vivido essa sensação.
- Devias estar a olhar para o monitor - disse-lhe, roçando-lhe na face.
- Prefiro olhar para ti.
- Ah sim...? - Quando ficou com a voz tão rouca como a dela, percebeu que estava na altura de um breve diálogo interno, algo do estilo nem-penses-rapazinho.
Mas porra.
- Fazes-me sentir qualquer coisa no corpo todo. Até nas pernas.
Bem, a atração sexual conseguia fazer isso a uma pessoa. Era verdade que os seus próprios circuitos estavam iluminados como Manhattan à meia-noite.
Mas aquele colo do Pai Natal tinha um objetivo mais profundo, algo mais importante do que uma rapidinha... ou mesmo do que uma sessão que durasse uma semana, ou
um mês, ou, Deus os livrasse e guardasse, um ano. Tinha de ver com uma vida. A dela.
- E se olhasses um bocadinho para o monitor e depois podes olhar-me o tempo que quiseres?
- Está bem.
Vendo que ela não desviava o olhar do seu rosto, Manny pigarreou.
- O computador, bambina.
- Italiano?
- Do lado da minha mãe.
- E quanto ao teu pai?
Manny encolheu os ombros.
- Nunca o conheci, por isso não te sei dizer.
- Tiveste um progenitor desconhecido?
- Sim, basicamente. - Manny levou o indicador ao queixo dela e virou-lhe a cabeça na direção do monitor. - Olha.
Deu um toque no rato e percebeu quando ela se concentrou, pois franziu o cenho, com as sobrancelhas escuras a baixarem sobre os olhos de diamante.
- Este é um amigo meu... o Paul. - Manny nem tentou disfarçar o orgulho na voz. - Também foi meu paciente. Ele é do caraças... e há anos que está numa cadeira de
rodas.
Ao início, Payne não sabia ao certo do que se tratava a imagem... Estava a mover-se, isso era óbvio. E parecia estar... Espera. Era um humano, sentado num qualquer
aparelho que rolava pelo chão. Para se ambular, servia-se dos grandes braços, o rosto num esgar de concentração tão feroz como o de um guerreiro no auge da batalha.
Atrás dele estavam outros três homens, com aparelhos semelhantes, que o fixavam como se tentassem reduzir a distância entre eles e o seu líder.
- É... uma corrida? - indagou ela.
- É a Maratona de Boston, secção de cadeira de rodas. O Paul está a subir Heartbreak Hill, a parte mais difícil.
- Está à frente dos outros.
- Espera um bocadinho... ainda só está a aquecer. Ele não se limitou a vencer a corrida... Partiu-a ao meio com o joelho e deitou-lhe fogo.
Observara o homem a vencer por uma margem estrondosa, os braços enormes a voar como o vento, o peito a bombear, a multidão de ambos os lados da estrada a bradar
o seu apoio. Quando atravessou uma fita, uma mulher espantosa correu até ele e o par abraçou-se.
E nos braços da fêmea humana? Uma cria com o mesmo tom do homem.
O curandeiro de Payne chegou-se à frente e deslocou um pequeno instrumento preto sobre a secretária para alterar a imagem no ecrã. A imagem em movimento desapareceu...
No seu lugar surgiu um retrato estático do homem a sorrir. Era muito bem-apessoado e irradiava saúde, e a seu lado estava a mesma mulher ruiva e a criança de olhos
azuis.
O homem continuava sentado, agora numa cadeira bastante mais substancial do que aquela onde competira, na verdade, era muito parecida à que Jane trouxera. As pernas
eram desproporcionais em relação ao resto do corpo, sendo pequenas e estando empurradas para debaixo do assento, mas não se reparava nisso, nem sequer no aparelho
de deslocação. Apenas se via a força e a inteligência do macho.
Payne levou a mão ao ecrã e tocou no rosto do homem.
- Há quanto tempo...? - perguntou, num tom rouco.
- É que ele está paralisado? Há uns dez anos, por aí. Estava a andar de bicicleta quando um condutor bêbado o atropelou. Operei-lhe a coluna sete vezes.
- Ele continua na... cadeira.
- Estás a ver aquela mulher ao lado dele?
- Sim.
- Apaixonou-se por ele depois do acidente.
Payne virou de repente a cabeça e fitou o rosto do curandeiro.
- Ele... foi pai de crias?
- Sim. Pode conduzir... pode fazer sexo, como é óbvio... e tem uma vida mais completa do que a maior parte das pessoas com duas pernas funcionais. É empreendedor,
atleta e um grande homem, e eu tenho o orgulho de lhe chamar amigo.
Enquanto falava, o curandeiro deslocava a coisa preta e as imagens mudavam. Havia mais imagens do homem em outras competições desportivas, imagens dele a sorrir
junto à construção de um grande edifício, e depois sentado à frente de uma fita vermelha, com uma grande tesoura dourada na mão.
- O Paul é o presidente da câmara de Caldwell. - O curandeiro virou-lhe gentilmente o rosto outra vez para o dele. - Escuta-me... e quero que te lembres disto. As
tuas pernas são parte de ti, mas não são tudo o que és. Portanto, aconteça o que acontecer depois desta noite, quero que saibas que não ficaste diminuída por essa
lesão. Mesmo que tenhas de ficar numa cadeira de rodas, continuas tão erguida como sempre. A altura é só uma medição vertical... não significa nada quanto ao teu
caráter, à pessoa que és ou ao tipo de vida que tens.
Ele falava com toda a seriedade e, para ser absolutamente sincera para consigo, Payne apaixonou-se um pouco por ele naquele momento.
- Podes mudar o... essa coisa? - murmurou. - Para poder ver mais?
- Toma... usa tu o rato. - Pegou-lhe na mão e assentou-a sobre o aparelho quente e sobre o comprido. - Para a esquerda e para a direita... cima e baixo... Estás
a ver? Desloca a seta no ecrã. Carrega aqui quando quiseres ver alguma coisa.
Precisou de algumas tentativas, mas depois apanhou-lhe o jeito... e era absurdo, mas o simples facto de percorrer as diferentes zonas do ecrã e de escolher o que
queria dava-lhe uma sensação bizarra de liberdade.
- Consigo fazer isto - exclamou. Mas depois sentiu-se embaraçada. Tendo em conta a facilidade do gesto, era uma vitória demasiado pequena sobre a qual se gabar.
- É exatamente aí que eu quero chegar - disse-lhe o curandeiro ao ouvido. - Podes fazer tudo.
Sentiu um arrepio ao ouvir as palavras. Ou talvez fosse por algo mais.
Voltando a concentrar-se no computador, as suas preferidas foram as imagens das corridas. A expressão de esforço agonizante e de força de vontade indomável era algo
que há muito sentia a arder no próprio peito. Mas a da família junta também se encontrava entre as suas preferidas. Eram humanos, mas os laços pareciam tão fortes
entre eles. Havia ali tanto amor.
- O que dizes? - murmurou o seu curandeiro.
- Acho que chegaste na altura exata. É isso que eu digo.
Moveu-se nos braços fortes dele e fitou-o. Sentada no colo dele, desejou poder sentir mais. Tudo. Mas da cintura para baixo só sentia uma espécie de calor, algo
que era muito melhor do que o frio que persistira desde a operação, era verdade...mas havia tão mais a sentir.
- Curandeiro... - murmurou, com os olhos a dirigirem-se à boca dele.
As pálpebras dele baixaram e pareceu deixar de respirar.
- Sim...?
- Posso... - Humedeceu os lábios. - Posso beijar-te?
Pareceu fazer um esgar, como se estivesse em sofrimento, mas o cheiro que libertava foi mais forte, pelo que ela soube que queria o mesmo.
- Jesus... Cristo - balbuciou.
- O teu corpo quer - disse ela, levando a mão ao cabelo macio da nuca do macho.
- E o problema é esse. - Vendo a confusão dela, olhou diretamente para os seios de Payne. - Quer muito mais do que apenas um beijo.
De repente houve uma mudança no interior do corpo dela, algo tão subtil que era difícil de identificar. Mas sentiu algo diferente no tronco e nos membros. Um formigueiro?
Sentia-se demasiado envolvida pela energia sexual entre os dois para se preocupar com definições.
Passando o outro braço à volta do pescoço, Payne disse:
- O que mais ele quer?
O curandeiro soltou um gemido rouco, e o som transmitiu a Payne a mesma sensação de poder que tinha quando empunhava uma arma. Voltar a sentir isso? Era como uma
droga.
- Diz-me, curandeiro - exigiu. - O que mais ele quer?
Os olhos de mogno do macho estavam em chamas quando fitaram os dela.
- Tudo. Quer cada palmo de ti... por fora... e por dentro. A tal ponto que não sei se estás pronta para o quanto ele quer.
- Eu decido - contrapôs ela, com a necessidade a fustigar-lhe as entranhas. - Eu decido o que posso ou não aguentar, sim?
O esboço de sorriso que ele lhe ofereceu foi absolutamente maléfico. No bom sentido.
- Sim, ‘nha senhora.
Payne ficou surpreendida ao perceber que o som grave e ritmado que preenchia o ar vinha dela. A ronronar.
- Tenho de te pedir outra vez, curandeiro?
Seguiu-se uma pausa. E depois ele abanou lentamente a cabeça.
- Não. Eu dou-te... exatamente o que queres.
Capítulo 21
Quando Vishous abriu a porta da sala de observações, foi brindado com um tipo de disposição de lugares que o fez pensar com agrado em castração.
O que, tendo em conta a sua experiência com facas em certas zonas, era dizer muito.
Claro que tinha a irmã praticamente escarrapachada em cima do senhor Feliz, daquele humano miserável, com os braços do homem à volta dela e as cabeças quase aninhadas
uma na outra. Mas não estavam a trocar o olhar, o único motivo que o levou a não interromper a festa. Observavam o ecrã do computador onde estava um homem de cadeira
de rodas a correr com uma série de outros tipos.
- A altura é só uma medição vertical... não significa nada quanto ao teu caráter, à pessoa que és ou ao tipo de vida que tens.
- Podes mudar o... essa coisa?
Sem saber porquê, o coração de V bateu com força quando o humano mostrou à irmã como trabalhar com um rato. E depois ouviu algo que lhe deu motivos para ter esperança:
- Consigo fazer isto - disse ela.
- É exatamente aí que eu quero chegar - respondeu-lhe Manello baixinho. - Podes fazer tudo.
Ora, que grande porra, a aposta saíra melhor do que o esperado. V estivera disposto a juntar o humano à equação só para a fazer ultrapassar os instintos suicidas.
Mas nunca esperara que o tipo lhe desse mais do que pena.
Contudo, ali estava o cabrão... a mostrar-lhe muito mais do que como beijar.
V quisera ser ele próprio a salvá-la e imaginava que o estaria a fazer ao trazer Manello, mas por que não fizera ele isso antes? Por que não o tinha feito Jane?
Deviam tê-la retirado daquele sítio, tê-la levado para a mansão... tomado as refeições e falado com ela.
Deviam ter-lhe mostrado que o futuro existia, seria diferente, mas existia.
V esfregou o rosto enquanto sentia a fúria a assoberbá-lo. Raios partam a Jane... como poderia ela não saber que os pacientes precisavam de muito mais do que analgésicos
e banhos de esponja? A sua gémea tinha precisado de um malfadado horizonte. Qualquer um daria em louco enfiado naquele quarto.
Que raios.
Voltou a olhar para a irmã com o humano. Os dois trocavam olhares e parecia ser necessário um pé-de-cabra para lhes separar as cabeças.
V quase que voltava a querer matar o desgraçado.
Quando a mão enluvada entrou no bolso em busca de um cigarro, esteve à beira de pigarrear bem alto. Ou isso ou atirar a adaga contra a cabeça do humano. O problema
era que o cirurgião era uma ferramenta que teria de ser usada até perder a utilidade - e ainda não tinham chegado a esse ponto.
V obrigou-se a sair da entrada...
- Como é que eles estão?
Deixou cair o maldito cigarro quando deu meia volta.
Butch apanhou-o.
- Precisas de lume?
- Talvez de uma adaga. - Aceitou o cigarro de volta e sacou do Bic novo, que por acaso até funcionou. Depois da passa, deixou que o fumo lhe saísse pela boca. -
Vamos beber um copo?
- Ainda não. Acho que tens de ir falar com a tua fêmea.
- Acredita. Não tenho. Pelo menos agora.
- Ela está a fazer as malas, Vishous.
O macho ficou desvairado mas, não obstante, forçou-se a permanecer ali no corredor e a continuar a fumar. Louvado fosse Deus pelo vício de nicotina. Só não estava
a praguejar por estar a sugar aquela coisa.
- V, meu caro. O que é que se passa?
O grito que lhe soava dentro da cabeça mal o deixou ouvir o outro macho. E não era capaz de formar uma explicação.
- A minha shellan e eu tivemos uma divergência de opiniões.
- Então desabafa.
- Agora, não. - Apagou a ponta do cigarro na sola da bota e deitou fora a beata. - Vamos embora.
Exceto... bom, bem vistas as coisas, ele não conseguia afastar-se na direção do estacionamento onde tinham estado a mudar o óleo ao Escalade. Era literalmente incapaz
de sair dali, como se os pés estivessem colados ao chão.
Ao olhar para o escritório, lamentou o facto de apenas há uma hora, tudo parecer estar outra vez bem. Mas não. Era quase como se a merda anterior tivesse sido apenas
os preliminares para o ponto em que se encontravam agora.
- Não tenho nada para lhe dizer, a sério. - Como sempre.
- Talvez te ocorra alguma coisa.
Duvidava.
Butch deu-lhe uma palmada no ombro.
- Ouve o que te digo. Tens o sentido de moda de um banco de jardim e as competências interpessoais de um cutelo...
- Isso devia estar a ajudar?
- Deixa-me acabar...
- E o que é que vem agora? O tamanho do meu mangalho?
- Olha aqui, até um lápis serve para tratar do assunto... os gemidos que ouço vindos do teu quarto são prova disso. - Butch abanou-o. - O que eu estou a dizer é
que tu precisas daquela fêmea na tua vida. Não fodas essa merda. Nem agora... nem nunca, topas?
- Ela ia ajudar a Payne a matar-se. - Quando o chui franziu o cenho, V assentiu. - Pois. Portanto, isto não é uma discussão sobre quem deixou a pasta de dentes destapada.
Passado um instante, Butch murmurou:
- Ela deve ter tido uma boa razão.
- Não há razão. A Payne é a única familiar de sangue que tenho e ela ia tirar-ma.
Com a situação assim resumida, a vibração no cérebro de V intensificou-se de tal maneira que ficou na dúvida sobre se iria tornar-se violento e, nesse momento, pela
primeira vez na vida, ficou com medo de si próprio e daquilo que seria capaz de fazer. Não por poder magoar Jane, é claro, por mais alucinado que estivesse nunca
lhe magoaria...
Butch recuou e levantou as mãos.
- Ei. Calma lá, bacano.
V olhou para baixo. Nas mãos tinha ambas as adagas... e tinha os punhos cerrados com tanta força que se interrogou se teriam de lhe retirar cirurgicamente os punhos
das palmas.
- Fica com isto - pediu, num estado de dormência -, e afasta-as de mim.
Entregou rapidamente todas as armas ao melhor amigo, ficando desarmado. E Butch aceitou a carga com uma eficiência célere e sombria.
- Pois... Talvez tenhas razão - resmungou o amigo. - Fala com ela depois.
- Não é com ela que tens de te preocupar, chui. - Pois ao que parecia, naquela noite os impulsos suicidas eram uma coisa de família.
Butch agarrou-lhe o braço quando V fez menção de se virar.
- O que é que eu posso fazer para ajudar?
V passou um rápido filtro de imagens chocantes pela mente.
- Nada que possas aguentar. Infelizmente.
- Não penses por mim, cabrão.
V aproximou-se, deixando o seu rosto a dois dedos dos olhos do amigo.
- Não tens estômago para isso. Acredita.
Os olhos cor de avelã sustiveram os seus sem pestanejar.
- Ficavas espantado com aquilo de que eu seria capaz de fazer para te manter vivo.
De repente, a boca de V abriu-se e teve dificuldade em respirar. Peito contra peito teve consciência imediata de cada palmo do seu corpo.
- O que estás tu a dizer, chui?
- Será que achas que os minguantes são uma melhor opção? - resmungou Butch, num tom rouco. - Pelo menos assim posso certificar-me de que não chegas ao fim morto.
Pela mente correram-lhe imagens, com pormenores de uma perversão aterradora. E em todas elas detinha o papel principal.
Passado um momento de silêncio, Butch afastou-se.
- Vai falar com a tua fêmea. Estou à tua espera no Escalade.
- Butch. Não estás a falar a sério. Não podes.
O melhor amigo lançou-lhe um olhar gelado.
- Uma merda é que não estou. - Deu meia volta e afastou-se pelo corredor. - Vem ter comigo quando estiveres pronto.
Enquanto observava o tipo a afastar-se, V interrogou-se se ele estaria a referir-se às bebidas... ou aos dois a entrarem pela porta perigosa que o chui tinha acabado
de abrir.
Bem no fundo, sabia que se referia aos dois casos.
Grande porra.
* * *
Na sala de observações, quando Manny olhava os olhos de Payne, teve a vaga noção de que alguém nas proximidades estava a fumar. Tendo em conta a sua sorte, seria
o cabrão do irmão dela, e o sacana do matulão estaria a ingerir nicotina antes de entrar por ali adentro para varrer o chão com a cara de Manny.
Pouco importava. A boca de Payne estava a centímetros da dele, e o corpo dela estava quente contra o seu, e o seu membro estava prestes a rebentar. Era um homem
com bastante força de vontade e decisão, mas parar com o que estava a acontecer ali ficava muuuuito além das suas capacidades.
Levantou a mão e tomou-lhe a face. Quando se estabeleceu contacto, os lábios dela entreabriram-se e ele percebeu que deveria dizer alguma coisa, mas a sua voz tinha
feito as malas e apanhado um expresso para longe, acompanhada pelo cérebro.
Mais perto. Aproximou-a e encontraram-se a meio caminho, com as bocas a fundirem-se. E mesmo estando o corpo dele com a paciência de um tigre esfaimado, teve cuidado
quando o contacto se estabeleceu. Cristo, ela era tão macia... ah, tão macia... de uma forma que o fez querer possui-la com tudo o que tinha, os dedos, a língua,
o sexo.
Mas nada disso ia acontecer naquele momento. Nem naquela noite. Nem no dia seguinte. Nunca tivera grande experiência com virgens, mas tinha quase a certeza de que
mesmo que ela estivesse a ter uma reação sexual, a forma de a concretizar poderia ser avassaladora...
- Mais - exigiu ela, num tom rouco. - Mais...
O coração parou-lhe por uma fração de segundo e Manny teve de reformular toda a sua rotina de calma. Aquele não era o tom de voz de uma menina perdida. Era a de
uma mulher, pronta a receber um amante.
E pronto, segundo a teoria do não-precisas-de-pedir-duas-vezes, ele assumiu o controlo, afagando-lhe a boca com a sua, antes de lhe sugar o lábio inferior. Quando
as mãos dele lhe envolveram a nuca, só queria desfazer aquela trança... mas isso seria muito próximo de a despir e não estavam, de todo, num local privado.
Além disso, já estava perto quanto bastasse de se vir, obrigadinho.
Enfiou-lhe a língua na boca e gemeu, com os braços a apertarem-na - até que lhes ordenou que afrouxassem, caso contrário iria parti-los abaixo dos ombros. Meu, ela
parecia octanas a correrem-lhe pelo sangue, deixando-lhe o corpo a rugir com uma potência absoluta. E ele que pensara que aqueles sonhos tinham sido quentes. A realidade
fazia com que os acontecimentos oníricos parecessem uma comparação entre a temperatura ambiente e a superfície de Mercúrio.
Mais língua, mais entrar e sair dela, mais de tudo, até ter de se obrigar a recuar. As ancas dele roçavam no traseiro firme que tinha ao colo, algo que não parecia
de todo justo, já que ela não o sentia.
Respirando fundo, Manny não perdeu muito tempo até começar a sugar ao longo do pescoço dela...
As unhas dela cravaram-se-lhe nos ombros e percebeu que teria sangrado caso estivesse nu... e como isso o excitava. Porra, pensar que poderia haver mais do que apenas
sexo, que ela podia prender-se à sua garganta e tê-lo dentro dela de mais do que uma maneira...
Com um silvo forte, Manny largou-lhe a pele e deixou a cabeça pender para trás, com a respiração a entrar-lhe e a sair-lhe com força dos pulmões.
- Acho que temos de abrandar.
- Porquê? - indagou ela, sem que os olhos deixassem de o devorar. Aproximando-se, declarou num tom arrastado: - Tu quere-lo.
- Ah, porra... se quero.
Payne levou as mãos à frente da camisa do macho.
- Nesse caso, vamos continuar...
Manny segurou-lhe os pulsos no momento em que um orgasmo começou a formigar-lhe na ponta da ereção.
- Tens de parar com isso. Já.
Cristo, mal conseguia respirar.
De repente, Payne libertou-se e baixou a cabeça.
- Por minha fé, lamento - queixou-se, pigarreando.
O embaraço por ela demonstrado deixou Manny com o peito a arder.
- Não, não... não és tu.
Não tendo uma resposta, ergueu-lhe o queixo e teve de se interrogar se ela saberia o que fazia o corpo masculino quando chegava àquele ponto de excitação. Cristo,
será que ela sabia sequer o que era uma ereção?
- Escuta com atenção - disse-lhe, praticamente num rosnido. - Eu quero-te. Aqui. No teu quarto. No chão do corredor. Contra a parede. Sempre, onde quer que seja
e de todas as maneiras. Entendeste?
Os olhos dela chamejaram.
- Mas então por que não...
- Para começar, acho que o teu irmão está ali no corredor. Por outro lado, disseste-me que nunca tinhas estado com ninguém. Agora, eu sei exatamente onde é que isto
pode dar, e garanto-te que a última coisa que eu quero é assustar-te por ir demasiado depressa.
Mantiveram o olhar fito. Depois, passado um instante, os lábios dela ergueram-se num sorriso tão rasgado que lhe deixou com uma covinha num dos lados da face e exibiu
o brilho dos dentes brancos e perfeitos...
Jesus... as presas dela estavam mais compridas. Muito mais compridas. E tão afiadas.
Manny não teve como evitar. Só imaginava como seria ter uma daquelas presas a percorrer-lhe a parte debaixo do membro.
O orgasmo à espera na sua haste fez mais uma tentativa para se libertar.
E isso foi antes de a língua cor-de-rosa de Payne se esticar e passar lentamente pelas pontas aguçadas.
- Gostas?
O coração de Manny ribombava-lhe no peito.
- Sim. Porra, sim...
As luzes apagaram-se todas ao mesmo tempo, fazendo o espaço mergulhar na escuridão. E depois ouviram-se dois cliques... fechaduras? Poderiam ser as portas a trancar-se?
Viu o rosto dela modificar-se à luz do ecrã. A paixão tímida e inocente desaparecera sem deixar qualquer vestígio... No seu lugar surgia uma fome básica e envolvente
que o recordou de que ela não era humana. Era uma predadora linda, um animal maravilhoso e poderoso que se mostrava humano o suficiente para que ele se esquecesse
de quem e do que era na verdade.
Movendo-se sem pensar, Manny levou uma das mãos à bata branca. Quando se sentara com Payne, as lapelas rígidas tinham-se levantado e agora puxava-as para baixo,
expondo o pescoço.
Estava a arquejar. Arfava profundamente.
- Toma-me - conseguiu dizer. - Fá-lo... quero saber como é.
Agora era ela que assumia o controlo, levando as mãos fortes ao rosto dele, percorrendo-lhe depois o pescoço até à clavícula. Não precisou de lhe inclinar a cabeça
para trás. Manny fê-lo sem precisar de ordens, exibindo a garganta convidativa.
- Tens a certeza? - indagou ela, com o sotaque a arrastar-lhe o R.
Manny respirava com tanta força que nem tinha a certeza de ser capaz de pronunciar uma resposta, pelo que se limitou a assentir. Depois, receando que tal não bastasse,
levou as mãos às dela, pressionando-a.
Payne assumiu o controlo a partir daí, concentrando-se na jugular dele, os olhos parecendo iluminar-se como estrelas na noite. Quando se aproximou, fê-lo com lentidão,
percorrendo os centímetros entre as presas e a carne dele com uma demora torturante.
O roçar dos lábios era puro veludo, mas a antecipação do que estava para vir deixava-o tão concentrado que tudo foi amplificado. Sabia exatamente onde ela se encontrava...
O raspar quando se roçou nele foi de uma leveza maléfica.
Depois a mão dela chegou-lhe à nuca e agarrou-o, firmando-o com tanta força que Manny se apercebeu de que ela lhe poderia partir o pescoço, se fosse essa a sua vontade.
- Ai, meu Deus - gemeu, entregando-se completamente. Ah... porra!
O golpe foi forte e decidido, duas pontas a penetrá-lo, com uma doce dor a roubar-lhe a visão e a audição, até nada mais sentir além do sugar na sua veia.
Isso e o orgasmo potente que lhe percorreu os testículos e saltou da cabeça do membro, ao mesmo tempo que as ancas saltavam e se debatiam... sem parar.
Não sabia quanto tempo durara a libertação. Dez segundos? Dez minutos? Ou teriam sido horas? Só sabia que a cada sugar, ele vinha-se mais, com um prazer tão intenso
que o destroçava...
Pois sabia que nunca encontraria nada assim com mais ninguém se não com ela. Fosse vampiro ou humano.
Levou a mão à nuca dela, pressionou-a com mais força, firmando-a contra si, sem se preocupar se ela o sugaria até ficar seco. Mas que bela maneira de morrer...
Payne quis libertar-se demasiado cedo, mas ele estava desesperado para que continuasse e tentou obrigá-la a permanecer ali no pescoço. Mas era uma luta desigual.
Payne era tão forte que foi como se ele não se tivesse oposto de todo. E como isso o fez vir-se outra vez.
Por mais assoberbado que estivesse o seu sistema nervoso, não deixou de sentir as presas a retirarem-se do seu pescoço e teve plena consciência do momento em que
ela saiu dele. Depois, a dor penetrante foi substituída por um afagar húmido, como se ela o estivesse a selar.
Deixando-se entrar num estado de quase transe, as pálpebras de Manny baixaram e a cabeça pendeu no extremo da coluna como um balão esvaziado. Espreitou-lhe o perfil
perfeito pelo canto do olho, com a iluminação do monitor a garantir-lhe luz suficiente para a ver a lamber o lábio inferior...
Mas não era o computador.
O protetor de ecrã ativara-se, mostrando apenas um fundo negro com o logótipo do Windows.
Era ela que brilhava. Toda. Da cabeça aos pés.
Imaginou que eles o fizessem e era... extraordinário. Mas ela estava a franzir o cenho.
- Estás bem? Talvez tenha retirado demasiado...
- Estou... - Engoliu em seco. Duas vezes. Sentia a língua dormente na boca. - Estou...
O rosto belo foi acometido pelo pânico.
- Ó, pelas Parcas, o que fiz eu...
Manny obrigou-se a erguer a cabeça.
- Payne... só podia ter sido melhor se me tivesse vindo dentro de ti.
A vampira ficou momentaneamente aliviada. E depois perguntou:
- O que é vir?
Capítulo 22
No Fosso, Jane estava em frenesim no seu quarto. Abriu as portas do armário e desatou a tirar camisas brancas e a lançá-las por cima do ombro para a cama. Na sua
pressa, os cabides saltavam do varão e iam bater no chão, ou entrelaçavam-se uns nos outros e ficavam entalados contra o fundo do armário. E ela nem queria saber.
Não houve lágrimas. O que a deixou orgulhosa.
Por outro lado, o corpo tremia-lhe tanto que ela só conseguiu ir fazendo aquilo para manter as mãos ocupadas.
Quando o estetoscópio lhe escorregou do pescoço e foi parar ao tapete, ela parou apenas para não o pisar.
- Raios... partam...
Endireitou-se depois de apanhar o instrumento, espreitou a cama e pensou, está bem, talvez já esteja na hora de parar com as camisas brancas. Havia um montão delas
por cima dos lençóis de cetim preto.
Afastou-se do armário, sentou-se ao lado da montanha gelada que criara, e olhou para o armário. As camisolas justas e as calças de cabedal de V ainda permaneciam
arrumadas. O lado dela era um desastre.
Se não era uma metáfora perfeita.
Tirando o facto de... ele também não estar em bom estado, não era?
Cristo... que raio estava ela a fazer? Mudar-se para a clínica, ainda que a título temporário, não era solução. Quando as pessoas se casavam, não se fugia e resolviam-se
as coisas. Era assim que as relações sobreviviam.
Se ela saísse agora? Quem sabe onde iam acabar.
Cristo, eles tinham gozado quê, umas boas duas horas de regresso ao normal? Espetáculo. Grande espetáculo.
Sacou do telemóvel e ficou a olhar para o ecrã sem saber o que escrever na mensagem. Dois minutos depois desligou o aparelho. Era difícil escrever tudo o que ela
tinha para dizer em apenas 160 caracteres. Ou sequer em seis páginas de 160 caracteres.
Payne era sua paciente e tinha um dever para com ela. Vishous era o seu companheiro, e não havia nada que ela não fizesse por ele. E a gémea de V não tinha sido
preparada para lhe dar qualquer espécie de tempo.
Ainda que, aparentemente, isso fosse algo que ela estivesse disposta a conceder ao irmão. E, obviamente, Vishous tinha ido ter com a mãe.
Só Deus sabia o que podia sair dali.
Olhando para a confusão que tinha feito com o armário, Jane reviu a situação, uma e outra vez, e foi sempre chegando à mesma conclusão. O direito de Payne a escolher
o seu destino sobrepunha-se ao direito de quem fosse a acorrentá-la na sua própria vida. Isso era duro? Sim. Era justo para os que a amavam? Claro que não.
Ter-se-ia a fêmea magoado mais ainda se não tivesse havido uma forma humana de o fazer? Sim a cem por cento.
Jane não concordava com o raciocínio da fêmea ou com a sua escolha. Mas tinha a certeza da ética da situação, por mais trágica que ela fosse.
E estava determinada a fazer Vishous escutar a sua perspetiva sobre o assunto.
Em vez de fugir, ia ficar quieta, ia esperar que ele chegasse a casa, e iam resolver os dois o que ainda restava da sua vida em comum. Não se ia enganar a si mesma.
Só que aquilo podia bem ser algo que eles não conseguissem ultrapassar, e ela não o culparia se fosse esse o caso. Família era família, bem vistas as coisas. Mas
ela tinha feito o que era necessário dadas as circunstâncias, cumprindo o dever que tinha para com a sua paciente. Era o que os médicos faziam, mesmo quando lhes
custava... tudo o que tinham.
Levantou-se e foi pegando nos cabides que jaziam no chão até chegar ao armário. Havia uma grande quantidade deles dentro e em redor de botas e sapatos, pelo que
ela teve de se dobrar, esticando-se para o fundo do armário...
A mão atingiu uma coisa mole. Cabedal. Mas não eram botas.
Pôs-se de cócoras e puxou o que quer que aquilo fosse.
- Mas que raio? - As calças de cabedal de combate de V não tinham nada que estar enfiados atrás dos sapatos...
Havia qualquer coisa na pele de vaca. Espera. Era cera. Era cera preta. E...
Jane levou a mão à boca e deixou escorregar as calças de cabedal.
Já lhe tinha dado orgasmos suficientes para saber como ficavam as calças dele no fim. E essa não era a única mancha. Havia sangue. Sangue vermelho.
Com uma enorme sensação de inevitabilidade, esticou-se mais uma vez para o interior do armário e tateou até encontrar uma camisola. Puxou-a para fora, e deu com
mais sangue e cera.
A noite em que ele tinha ido ao Commodore. Só podia ser essa a explicação. Estas não eram relíquias velhas e esquecidas, os despojos empoeirados de uma vida anterior.
O cheiro da cera ainda estava entranhado nas fibras e no cabedal.
Deu logo conta da entrada de Vishous, mesmo estando de costas.
Sem erguer o olhar, disse:
- Pensei que não tinhas estado com mais ninguém.
A resposta dele demorou algum tempo.
- Não estive.
- Então como é que consegues explicar isto? - Pegou nas calças de cabedal, mas vamos lá, não é que houvesse mais o que quer que fosse no quarto.
- Não estive com mais ninguém.
Atirou-as novamente para o armário e fez o mesmo com a camisola justa.
- Para usar uma frase tua, não tenho nada a dizer neste momento. Não tenho mesmo.
- Julgas mesmo que eu podia andar a foder alguém?
- Então que raio são estas roupas?
V não respondeu. Limitou-se a ficar ali acima dela, tão alto e forte... e surpreendentemente estranho, ainda que ela conhecesse o seu corpo e rosto tão bem como
os seus.
Esperou que ele falasse. Esperou mais um pouco. E, para passar o tempo, lembrou-se de que ele tinha tido uma vida terrível, e que permanecer estóico e inflexível
tinha sido o único modo de sobreviver.
Só que essa explicação era simplesmente insuficiente. A dada altura, o amor que eles tinham iria merecer mais do que o silêncio justificado pelo passado.
- Foi o Butch? - perguntou ela, na esperança de ter sido o caso. Pelo menos se tivesse sido o melhor amigo de V, ela sabia que qualquer orgasmo teria sido acidental.
Butch era um tipo absolutamente fiel à sua companheira e só se dedicaria a ser dominante por esse ser o remédio estranho e obscuro de que V precisava para se manter
equilibrado. Por mais bizarro que fosse, isso ela ia conseguir entender e ultrapassar. - Foi? - insistiu. - Porque com isso eu consigo lidar.
Vishous pareceu surpreendido por um instante, mas depois abanou a cabeça.
- Não aconteceu nada.
- Então estás a dizer-me que eu sou cega? - protestou. - Porque a menos que me dês uma explicação melhor, o que tenho são estas calças... e as imagens na minha cabeça
que me estão a deixar agoniada.
Silêncio, apenas silêncio.
- Meu Deus... como pudeste? - disse entredentes.
V limitou-se a abanar a cabeça, e a dizer no mesmo tom:
- Olha quem fala.
Bem, pelo menos ela tinha uma razão para o que se tinha passado com Payne. E não tinha mentido acerca disso.
Depois de um momento, V entrou no quarto e pegou numa sacola de ginástica vazia.
- Toma. Vais precisar disto.
E com essas palavras, atirou-a... e foi-se embora.
Capítulo 23
Na sala de observações, o curandeiro de Payne parecia estar meio morto, mas absolutamente contente com essa situação.
Ao esperar que respondesse à sua pergunta, ela estava mais preocupada com o seu estado do que ele próprio. O sangue dele tinha-lhe sido surpreendentemente saboroso,
o néctar escuro escorrera-lhe para o fundo da garganta e depois mergulhara nas suas entranhas, não só as inundando, mas sim a todo o corpo.
Tinha sido a primeira vez que ela usara uma veia do pescoço. As Escolhidas, quando estavam no Santuário, não precisavam do sustento conferido pelo sangue, nem eram
cativas do ciclo das necessidades. E isso era quando não estavam sequer em animação suspensa, como tinha sido o seu caso.
E mal se recordava de se alimentar do pulso de Wrath.
Estranho... os dois sangues tinham-lhe sabido quase ao mesmo, ainda que o do rei tivesse um sabor um pouco mais forte.
- O que é isso de vir?
O curandeiro pigarreou.
- É... aaa, o que acontece quando desejas alguém e estás com essa pessoa.
- Mostra-me.
A gargalhada que ele libertou era aveludada e rouca.
- Com todo o gosto. Acredita.
- É coisa que... eu consiga fazer em ti?
Ele tossicou.
- Já fizeste.
- A sério?
O curandeiro abanou um pouco a cabeça, deixando semicerrar os olhos.
- Oh, se fizeste. E por isso eu preciso de tomar um duche.
- E depois mostras-me. - Não era um pedido, era uma ordem. E, quando os braços dele se apertaram em torno dela, sentiu que estava excitado. - Sim - disse, num rosnido.
- Tu vais mostrar-me tudo.
- Diabos me levem se não vou mesmo - garantiu ele, num tom misterioso. - Tudinho.
Quando a encarou como se conhecesse segredos que ela nem podia sequer imaginar, Payne apercebeu-se, mesmo com a paralisia, que valia a pena viver para aquilo. Tal
ligação e excitação valiam mais do que as pernas dela, e ficou meio aterrorizada ante a perspetiva de, por pouco, não ter perdido tal sensação.
Tinha de agradecer devidamente ao seu gémeo. Mas como iria conseguir retribuir tal dádiva?
- Deixa-me levar-te de volta ao teu quarto. - O curandeiro levantou-se com agilidade, apesar do peso dela. - Depois de eu me lavar, vamos preparar um banho de esponja
para ti.
O nariz dela retorceu-se com repulsa.
- Que clínico.
O sorrisinho secreto dele surgiu novamente.
- Não da maneira que eu o vou fazer. Acredita. - Deteve-se. - Olha, há hipótese de acenderes as luzes por mim para não tropeçar em nada no escuro? Estás a brilhar,
mas não sei se chega para eu me orientar.
Payne ficou confusa por um instante... até levantar o braço. O curandeiro tinha razão. Ela emanava um brilho leve, a sua pele estava ligeiramente fosforescente...
talvez aquela fosse a sua resposta sexual?
Lógico, pensou. Porque a maneira como ele a fizera sentir por dentro era tão irresistível como a felicidade e tão luminosa como a esperança.
Quando acendeu as luzes e destrancou as portas com a mente, ele abanou a cabeça e começou a andar.
- Que raios. Tens aí uns truques fenomenais, miúda.
Talvez, mas não os que ela queria. Adoraria devolver-lhe aquilo que ele tinha partilhado... mas não tinha segredos para lhe ensinar nem sangue para lhe oferecer,
pois não só os humanos não precisavam disso, era ainda por cima bem capaz de os matar.
- Gostava de te poder retribuir - murmurou.
- Retribuir o quê?
- Teres vindo e teres-me mostrado...
- O meu amigo? Pois, ele é uma inspiração.
Em abono da verdade, tratava-se mais do homem de carne e osso do que do outro no ecrã.
- Deveras - ronronou Payne.
De volta à sala de recobro, ele levou-a para a cama e deitou-a com cuidado, arranjando os lençóis e cobertores para que nenhuma parte do seu corpo ficasse exposta...
levou o seu tempo para compor o equipamento que lidava com as funções corporais... ajeitou-lhe as almofadas por trás da cabeça.
Enquanto o fazia, estava sempre a cobrir as ancas com qualquer coisa. Parte da roupa de cama. Duas metades da sua bata. E então foi pôr-se aos pés da mesa.
- Confortável? - quando ela assentiu, ele disse: - Volto já. Grita se precisares de mim, está bem?
O curandeiro desapareceu na casa de banho e a porta ficou entreaberta. Uma linha de luz passava para a cabina do duche e ela viu claramente o braço com a manga branca
esticar-se, rodar um manípulo, e convocar a chuva morna.
As roupas foram retiradas. Todas elas.
E então houve um breve vislumbre da carne gloriosa quando ele entrou para a névoa e fechou a divisória de vidro. Como o ritmo audível da água se alterou, ela soube
que a sua forma desnuda estava a bloquear a queda livre.
Com que se pareceria ele, coberto de água, escorregadio, quente e tão macho?
Empurrando-se sobre as almofadas, inclinou-se para o lado... e um pouco mais... mais ainda, até ficar praticamente suspensa no ar...
Ah, siiiiim. O corpo dele estava de perfil, mas ela via que chegasse: esculpidos com músculos, o seu peito e braços pendiam sobre ancas firmes e pernas longas e
poderosas. Alguns pelos negros polvilhavam os seus peitorais e formavam uma linha que passava por cima do abdómen e descia, descia... descia tanto...
Pelas Parcas, não conseguia ver que chegasse, e a sua curiosidade era demasiado desesperada e compulsiva para poder ser ignorada.
Com o que se parecia o seu sexo? Como seria ao toque...
Com uma imprecação, deslocou-se de forma estranha a ponto de ficar no fundo da cama. Estendendo a cabeça, ela tirou o máximo partido possível daquela frincha na
porta. Só que quando ela se mexeu, ele fez o mesmo, e agora estava de costas voltadas...
Payne engoliu em seco e esticou-se mais para conseguir ver melhor. Ele retirou a esponja da frente, deixando a água escorrer-lhe pelas omoplatas e engrossar ao longo
das costas, fluindo até às nádegas e daí para as coxas. E então a mão apareceu por trás da nuca, trazendo bolhas de espuma que se esvaíram na água com que ele ia
lavando o corpo.
- Vira-te... - pediu ela. - Deixa-me ver-te todo.
O desejo para que os seus olhos conseguissem maior acesso só pôde aumentar enquanto ele se ia esfregando com espuma abaixo da cintura. Levantou uma perna, depois
a outra, e as suas mãos eram de uma eficiência trágica ao passar sobre as coxas e barrigas das pernas.
Ela soube quando ele se concentrou no membro, porque a cabeça dele pendeu e as ancas retesaram-se.
Ele estava a pensar nela. Tinha a certeza.
E então ele deu meia volta.
Aconteceu tão depressa que, quando os seus olhares se cruzaram, ambos se retraíram.
Ainda que ela tivesse sido apanhada com a boca na botija, atirou-se de novo contra a almofada, e regressou à posição inicial, endireitando os cobertores com os quais
ele tinha tido tantos cuidados. Com o rosto a arder, só queria esconder-se...
Um guincho ecoou pelo quarto, e ela olhou para cima. Ele tinha saído de rompante da casa de banho, deixando o chuveiro ainda aberto, com espuma ainda agarrada aos
abdominais e a pingar da...
O membro foi um choque magnífico. Destacando-se do corpo, o varão dele estava duro, grosso e orgulhoso.
- Tu...
Ele disse mais qualquer coisa, mas Payne estava demasiado cativada para se importar, demasiado entusiasmada para dar conta. No seu âmago, um manancial tinha-se aberto,
o seu sexo estava intumescido e a preparar-se para o aceitar.
- Payne - disse ele, cobrindo-se com as mãos.
Sentiu-se imediatamente envergonhada e levou as palmas das mãos às faces quentes.
- Por minha fé, desculpa ter-te espiado.
O seu humano agarrou o bordo da porta.
- Não é isso... - Ele abanou a cabeça como que para a clarificar. - Deste conta do que estás a fazer?
Ela teve de se rir.
- Sim. Acredita, meu curandeiro... eu estava totalmente a par daquilo que examinava com tanta atenção.
- Estavas em pé, Payne. Estavas apoiada nos joelhos ao fundo da cama.
O coração dela parou. De certeza que não o tinha ouvido bem.
De certeza.
Payne franziu o sobrolho e Manny deslizou para diante... e então deu-se conta de que estava nu. E essa era uma condição que advinha quando um tipo não só tinha o
traseiro ao léu, mas estava também total e completamente teso no seu fatinho de pai Adão. Pegou numa toalha da casa de banho e enrolou-a na cintura, e então dirigiu-se
à cama.
- Eu... não, deves estar enganado - tartamudeou Payne. - Eu não posso...
- Tu pudeste...
- Mas eu só me estiquei...
- Como é que chegaste ao fundo da cama, então? E como é que voltaste para onde estás?
Os olhos dela desviaram-se para os pés da cama, e as sobrancelhas contraíram-se no seu estado confuso.
- Não sei. Eu estava... a olhar para ti e só prestei atenção a isso.
O homem que havia nele ficou espantado e... estranhamente transformado. Ser assim tão desejado por alguém como ela?
Mas então a parte do médico nele assumiu as rédeas.
- Bom, então deixa-me ver o que se está a passar, está bem?
Desentalou os lençóis e o cobertor do fundo da cama e enrolou-os para cima até às coxas dela. Passou o dedo pela sola do lindo pé.
- Alguma coisa? - perguntou.
Quando ela abanou a cabeça, Manny repetiu do outro lado. Depois subiu, pondo as palmas das mãos em redor dos tornozelos esguios.
- Alguma coisa?
Os olhos dela tinham uma expressão trágica quando se cruzaram com os dele.
- Não sinto nada. E não compreendo aquilo que pensas que viste.
Ele subiu ainda mais, até às barrigas da perna.
- Estavas de joelhos. Posso jurá-lo.
Ainda mais para cima, para as suas coxas firmes.
Nada.
Cristo, pensou ela. Tinha de ter tido algum controlo sobre as pernas. Não havia outra explicação. A não ser... que ele tivesse imaginado coisas.
- Não compreendo - repetiu.
Nem ele compreendia, mas tinha a porra da certeza que ia descobrir.
- Vou ver outra vez os teus exames. Já volto.
Na sala de observações, teve a ajuda da enfermeira e acedeu ao registo médico de Payne no computador. Com eficiência trazida por anos de prática, reviu tudo: sinais
vitais, relatórios de exames, radiografias - até encontrou as coisas que tinha feito com ela em St. Francis, o que o surpreendeu. Não fazia ideia de como tinham
conseguido acesso ao RMi original. Ele tinha apagado o ficheiro praticamente assim que dera entrada no sistema do centro médico. Mas ficou contente por vê-lo outra
vez, isso era certo.
Quando terminou, recostou-se na cadeira e a sensação de frio que lhe percorreu as costas recordou-o de que não tinha mais nada a cobri-lo a não ser a toalha.
Isso explicava o ar embasbacado da enfermeira quando tinham falado.
- Mas que raio - murmurou ele, fitando as últimas radiografias.
A espinal-medula estava perfeitamente em ordem, e as vértebras absolutamente alinhadas, dando-lhe o brilho fantasmagórico do seu contorno em fundo negro uma perfeita
visão do que se estava a passar nas costas dela.
Tudo, desde os registos médicos ao exame que ele tinha acabado de lhe fazer em plena cama, sugeria que a sua conclusão original ao vê-la de novo tinha estado correta.
Ele tinha feito o melhor trabalho de toda a sua carreira, mas a medula tinha ficado danificada de forma irreparável e isso era o fim.
E, de repente, recordou a expressão no rosto de Goldberg quando se tinha tornado óbvio que a diferença entre noite e dia lhe tinha passado ao lado.
Esfregou os olhos e interrogou-se se não estaria a ficar louco, mais uma vez. Só que ele sabia o que tinha visto... não sabia?
E foi então que se fez luz.
Rodando a cabeça, olhou para o teto. Exatamente, lá estava no canto um aparelho agarrado ao painel. O que significava que a câmara de vigilância no interior podia
observar integralmente o lugar.
Tinha de haver uma na sala de recobro. Tinha de haver.
Levantou-se e dirigiu-se à porta, espreitando para o corredor, na esperança de que aquela enfermeira loirinha e simpática estivesse por perto.
- Está aí alguém?
A voz dele ecoou pelo corredor, mas não houve resposta, portanto não teve escolha a não ser andar por ali descalço. Sem noção de qual o caminho a tomar escolheu
ir para a direita e avançou rápido. Em todas as portas, bateu e depois tentou abri-las. A maior parte estava fechada, mas as que não estavam revelaram... salas de
aula. E mais salas de aula. E um ginásio enorme, quase profissional.
Quando chegou à sala identificada como Sala de Pesos, escutou as passadas de alguém que estava a tentar vencer a passadeira rolante com umas Nike e decidiu prosseguir.
Era um humano seminu num mundo de vampiros e, por algum motivo, duvidou que aquela enfermeira estivesse a correr a maratona se estivesse de serviço.
Além disso, a julgar pela força e peso daquela passada, sujeitava-se a uma sessão de porrada, se abrisse aquela porta e, apesar de ele ser suficientemente suicida
para lutar com qualquer coisa que se metesse consigo, agora queria ajudar Payne, não inchar o ego ou treinar boxe.
Deu meia volta e continuou a bater às portas. Abria-as quando conseguia. Quanto mais longe chegava, o aspeto de sala de aula ia dando lugar ao ar de sala de interrogatório
policial. Lá para o fundo havia uma enorme porta que parecia tirada dum filme, com os seus painéis de aço reforçado e rebitado.
O mundo exterior, pensou.
Avançando para lá, fez força sobre a barra e... surpresa! Foi dar por si na garagem, onde o seu Porsche estava estacionado junto ao passeio.
- Que porra pensas tu que estás a fazer?
Os olhos dele saltaram para um Escalade. Janelas, jantes, grelha, tudo era negro. Ao pé do carro estava o tipo que tinha visto na primeira noite, aquele que julgara
ter reconhecido...
- Já te vi em qualquer lado - disse Manny quando a porta se fechou atrás de si.
Do bolso, o vampiro retirou um boné de basebol e pô-lo na cabeça. Red Sox. Claro, dado o sotaque de Boston.
Mas a grande questão era, como raio é que um vampiro soava como se viesse do sul?
- Bonita peça - murmurou o fulano, apontando para a cruz de Manny. - Andas à procura das tuas roupas?
Manny revirou os olhos.
- Sim. Alguém as roubou.
- Para se fazer passar por médico?
- Talvez seja o vosso Carnaval... como raio queres que eu saiba?
Debaixo da pala, um sorriso foi tomando forma, deixando entrever uma coroa no dente da frente... bem como um par de presas.
O cérebro de Manny contorceu-se perante uma conclusão inevitável: aquele tipo tinha outrora sido humano. E como é que isso tinha acontecido?
- Faz um favor a ti mesmo - sugeriu o macho. - Para de pensar, volta à clínica, e veste-te antes que o Vishous apareça.
- Sei que já te vi antes e, mais tarde ou mais cedo, vou lembrar-me onde. Mas que se dane... neste momento, preciso de ter acesso aos vídeos de segurança daqui.
O sorrisinho esfumou-se.
- E para que raio queres isso?
- Porque a minha paciente acaba de se sentar... e não estou a falar de ela ter levantado o tronco das almofadas. Eu não estava lá quando ela o fez e preciso de ver
como aconteceu.
O Red Sox pareceu parar de respirar.
- O que... desculpa. O que raio estás a dizer?
- Queres que eu te faça a porra de um desenho?
- Dispenso isso... não preciso de te ver abaixado à minha frente só com uma toalha.
- Já somos dois.
- Mas espera lá, estás a falar a sério?
- Sim. Também não te quero fazer o gostinho.
Pausa. E então o desgraçado rebentou a rir.
- Tens uma boca atrevida, lá isso tens... e sim, posso ajudar-te, mas tens de te ir vestir, pá. Se o V te apanha dessa maneira perto da irmã vais precisar de operar
as tuas próprias pernas.
O tipo dirigiu-se à porta e Manny juntou as peças. Não era do hospital?
- Saint Patrick’s. Foi lá que eu te vi. Sentas-te nos bancos de trás nas missas da meia-noite, sozinho, e tens sempre esse chapéu.
O macho abriu a porta e afastou-se para dar passagem. A pala escondia-lhe os olhos, mas Manny estava capaz de apostar que não estavam a olhar para ele.
- Não sei do que estás a falar, pá.
O tanas, pensou Manny.
Capítulo 24
Bem-vindos ao Novo Mundo.
Quando Xcor saiu para a noite, tudo estava diferente. O cheiro não era o dos bosques à volta do castelo, mas o almíscar de poluição e o esgoto da cidade, e os sons
não eram os dos passos suaves dos veados nos bosques cerrados, mas de carros, sirenes e vozes alteradas.
- A sério, Throe, encontraste-nos acomodações espantosas - disse ele, arrastando as palavras.
- A propriedade deve estar pronta amanhã.
- E posso esperar que seja uma melhoria? - Olhou para a casa geminada na qual tinham estado escondidos. - Ou vais surpreender-nos com ainda menos grandiosidade?
- Vais achar adequada. Garanto.
Na verdade, tendo em conta as variáveis para ali chegar, o vampiro tinha feito um excelente trabalho. Tinham realizado dois voos noturnos, para evitarem qualquer
problema relacionada com a luz do dia e, depois de finalmente terem chegado a Caldwell, Throe tinha conseguido arranjar sítio para ficarem. Aquela casa decrépita
tinha, contudo, uma cave sólida e até havia um doggen para lhes servir as refeições. A solução permanente quanto à residência ainda tinha de esperar, mas acabaria
por ser aquilo de que precisavam.
- É bom que seja fora desta porcaria urbana.
- Não se preocupem, sei aquilo de que gostam.
Xcor não gostava de estar em cidades. Ali, os humanos não passavam de ovelhas estúpidas, mas um rebanho sem cérebro era mais perigoso do que um inteligente - quem
não tem consciência é imprevisível. Apesar de haver um lado positivo: ele queria conhecer os cantos todos à cidade antes de anunciar a sua chegada à Irmandade e
ao «rei», e não havia proximidade maior do que aquela que tinham.
A casa ficava na zona mais densa da baixa.
- Vamos por este lado - indicou, dando passadas largas, com o bando de bastardos em formação atrás de si.
Caldwell, Nova Iorque, certamente não teria grandes revelações para oferecer. Como já aprendera, tanto nos tempos passados como naquele presente bem iluminado, as
cidades à noite eram todas iguais, independentemente da geografia. Aqueles que a frequentavam não eram os alheados cumpridores da lei, mas os vadios, os inadaptados
e os descontentes. E, para confirmar a sua teoria, enquanto avançavam quarteirão a quarteirão, viu humanos sentados no passeio, no meio da sua própria imundície,
ou grupos de bandidos agressivos dando passadas largas e confiantes, ou mulheres mal vestidas à espera de homens ainda mais maltrapilhos.
No entanto, ninguém se atreveu a abordar o grupo dos seis matulões - e ele quase desejou que abordassem. Uma luta dissiparia a energia apesar de, com sorte, estarem
quase a encontrar o inimigo e enfrentarem um adversário à altura pela primeira vez em duas décadas.
Quando ele e os restantes machos viraram a esquina, depararam-se com uma praga de humanos. Vários estabelecimentos, essencialmente bares, estavam alinhados dos dois
lados da rua e tinham filas de pessoas semivestidas à espera para penetrarem nas suas entranhas. Não conseguia ler os cartazes pendurados nas entradas, mas pela
forma como os homens e as mulheres batiam os pés, se contorciam e falavam, era óbvio que, do outro lado da desafortunada paciência, os esperava o esquecimento temporário.
Sentia vontade de os massacrar a todos e tinha profunda consciência da gadanha. A arma descansava nas suas costas, dobrada em dois, aninhada na proteção do cabedal
e escondida por baixo do casaco de pele comprido a roçar o chão.
Para a manter no sítio, tranquilizou-a com a promessa de mortes.
- Tenho fome - disse Zypher.
Como era habitual, o macho não se referia a comida, e o momento da observação era perfeito. O comentário sexual tinha tudo a ver com a fila de fêmeas humanas pela
qual acabavam de passar. De facto, as mulheres puseram-se a jeito, com os olhos pintados fixos nos machos que, erroneamente, pensavam ser da sua raça.
Bem, a olharem fixamente para todos menos Xcor. Para ele bastou olharem uma vez, para afastarem a vista com alacridade.
- Mais tarde - afirmou. - Assegurar-me-ei de que têm aquilo de que precisam.
Apesar de ter dúvidas quanto à sua participação, estava ciente de que os soldados precisavam de sustento sexual e ele não se importava nada de o permitir. Os guerreiros
lutavam melhor com as necessidades satisfeitas. Aprendera isso há muito tempo. E, quem sabe, talvez ele até participasse, se alguém lhe chamasse a atenção, partindo
do princípio de que a fêmea conseguiria ultrapassar a sua aparência. Vendo bem, era assim que elas ganhavam dinheiro. Muitas vezes tinha pago a mulheres para o suportarem
dentro delas. Era muito melhor do que forçá-las a submeterem-se, coisa para a qual não tinha jeito, apesar de não admitir essa fraqueza a ninguém.
Contudo, esses galanteios teriam de ficar para o fim da noite. Primeiro, tinham de pesquisar o novo ambiente.
Depois de passarem pelo amontoado sufocante de clubes e bares, foram dar com aquilo que ele estava mesmo à espera de encontrar... o vazio urbano. Quarteirões inteiros
de edifícios desocupados à noite ou até por mais tempo, estradas sem qualquer trânsito, ruelas escuras e cheias de excelentes recantos para lutar.
O inimigo estaria ali. Sabia-o. A única coisa que ambos os lados daquela guerra tinham em comum era o secretismo. E ali as lutas podiam decorrer com menos probabilidade
de interrupção.
Com o corpo a ansiar por um conflito e o som das botas do bando de bastardos a fustigarem o chão atrás de si, ele sorriu na noite. Isto vai ser...
Dando a volta a mais uma esquina, estarreceu. Um quarteirão adiante, do lado esquerdo, via-se um ajuntamento de carros pretos e brancos, estacionados num círculo
imperfeito à volta da entrada de uma rua... como se fossem uma gargantilha à volta do pescoço de uma fêmea. Não conseguia ler os padrões nas portas, mas as luzes
azuis nos tejadilhos indicavam que eram a polícia humana.
Inspirando, detetou o aroma da morte.
Uma morte bastante recente concluiu, mas não tão saborosa como uma morte imediata.
- Humanos! - Fez um esgar de desprezo. - Se ao menos fossem mais eficientes e se matassem uns aos outros de uma vez.
- Isso é que era - concordou alguém.
- Continuemos - ordenou, avançando.
Ao passarem pela cena do crime, Xcor olhou para o beco. Homens humanos, com expressões nauseadas e mãos inquietas, rodeavam uma grande espécie de caixa, como se
esperassem que alguma coisa saltasse de lá de dentro a qualquer momento e lhes prendesse os testículos com uma garra.
Tão típico. Os vampiros estariam a examinar e a dominar a situação - pelo menos, qualquer vampiro digno desse nome. Pelo contrário, os humanos só pareciam ganhar
coragem quando o Ómega intercedia.
Ao lado de uma caixa de cartão manchada e suficientemente grande para nela caber um frigorífico, José de la Cruz movimentou a lanterna e percorreu com o feixe de
luz o corpo mutilado. Era difícil tirar quaisquer conclusões a partir do cadáver, uma vez que a gravidade exercera a sua força e sugara a sua vítima, transformando-a
num emaranhado de membros, mas a cabeça selvaticamente rapada e o remendo que saltava à vista na parte superior do braço sugeriam que aquele seria o número dois
da sua equipa.
Endireitando-se, olhou em volta para o beco vazio. Estava disposto a apostar que o procedimento era o mesmo do anterior. Matar noutro local, despejar o corpo na
baixa de Caldwell, dar início à caça de outra vítima.
Tinham de apanhar aquele filho da mãe.
Apagando a lanterna, verificou as horas no relógio digital. A equipa forense já tinha feito o seu trabalho inútil e a fotógrafa já tinha tirado as fotografias, por
isso era altura de observar atentamente o corpo.
- O médico-legista está pronto para a ver - disse Veck, atrás dele - e precisa de ajuda.
José virou-se.
- Tens luvas...
Fez uma pausa e olhou por cima dos ombros largos do parceiro. Na rua, por trás dele, um grupo de homens caminhava em formação triangular, um à cabeça, dois atrás
dele e três a encerrar a procissão. A disposição era tão exata e os passos estavam tão sincronizados que, inicialmente, José só reparou no seu estilo de marcha militarizado
e no facto de todos estarem vestidos de cabedal preto.
Depois apercebeu-se do tamanho deles. Eram absolutamente enormes e imaginou que tipos de armas trariam escondidas nos casacos compridos, todos idênticos. Contudo,
a lei impedia os polícias de revistar civis só por terem um aspeto mortífero.
O líder virou a cabeça e José registou mentalmente as suas feições, de que só uma mãe poderia gostar. Rosto magro e angular, faces cadavéricas, o lábio superior
deformado por uma fenda no palato que não tinha sido reparada.
O homem olhou outra vez em frente e a companhia prosseguiu.
- Detetive?
José estremeceu.
- Desculpa. Estava distraído. Tens luvas?
- Estou a tentar dar-lhas.
- Certo. Obrigado. - José agarrou no par de luvas e calçou-as. - Tens...
- O saco? Claro.
Veck estava sombrio e concentrado. José tinha aprendido que este era o modo de cruzeiro do homem. Ainda era jovem, na casa dos vinte e muitos anos, mas tratava das
coisas como se fosse um veterano.
Veredicto até ao momento: não era mau de todo como parceiro.
Mas ainda só passara uma semana e meia desde que tinham começado a trabalhar juntos a sério.
Numa cena de crime, quem movimenta o corpo depende de uma série de variáveis. Por vezes, é a equipa de busca e salvamento. Outras vezes, como no caso daquela mutilação,
juntava-se quem estivesse por perto e tivesse estômago para aguentar.
- Vamos cortar a parte da frente da caixa - sugeriu Veck. - Já foram tiradas impressões digitais e fotografias a tudo, e será melhor do que tentar pegar na caixa
e rebentar-lhe o fundo.
José olhou para o especialista em investigação criminal.
- Tens a certeza que tens tudo?
- Missão cumprida, detetive. E eu também estava a pensar fazer o mesmo.
Os três homens trabalharam juntos, Veck e José segurando na parte da frente, enquanto o outro usava um x-ato. Em seguida, José e o parceiro baixaram a parte da frente
com cuidado.
Era outra rapariga jovem.
- Merda - resmungou o médico-legista. - Outra vez.
É mais ficou na merda, pensou José. A pobre rapariga tinha sido despachada da mesma maneira que as outras, o que queria dizer que tinha sido torturada primeiro.
- Foda-se, que inferno! - murmurou Veck.
Foram os três muito cuidadosos com ela, como se, mesmo morta, o seu corpo torturado registasse a posição em que colocavam os membros. Deslocando-a menos de um metro,
colocaram-na no saco preto aberto, para que o médico-legista e a fotógrafa pudessem fazer o seu trabalho. Veck ficou acocorado junto dela. Tinha uma expressão completamente
impassível, mas emanava dele uma aura que denunciava que se sentia enfurecido com o que via...
O clarão brilhante de um flash iluminou a ruela escura com tanta intensidade como um grito numa igreja. Ainda antes de se ter desvanecido, José virou violentamente
a cabeça para ver quem estava a tirar fotografias, e não foi o único. Todos os outros agentes que se encontravam ali parados se concentraram no que estava a acontecer.
Mas foi Veck quem explodiu e começou a correr.
O dono da máquina fotográfica não tinha qualquer hipótese. Com um grande descaramento, o sacana tinha passado por baixo da fita da polícia e aproveitara-se do facto
de estarem todos concentrados na vítima. Quando estava a fugir, tropeçou na fita que tinha violado e caiu, depois conseguiu levantar-se e correr em direção à porta
aberta do carro.
Veck, pelo contrário, tinha pernas de atleta e conseguia elevar-se mais do que o rapaz branco típico. Não precisou de passar por baixo da faixa amarela. Mergulhou
em direção ao carro e aterrou no capô do carro, firmando-se na borda. Depois, pareceu tudo acontecer em câmara lenta. Enquanto os outros polícias se apressavam a
tentar ajudar, o fotógrafo pisou o acelerador e os pneus derraparam ruidosamente quando entrou em pânico e tentou arrancar...
Direitinho à cena do crime.
- Foda-se! - berrou José, questionando-se como diabo iam proteger o corpo.
Veck esperneava, tentando agarrar-se, enquanto o carro acelerava através da fita amarela e seguia em linha reta em direção à caixa. Mas aquele sacana do DelVecchio
não só se manteve firme, como conseguiu esticar o braço pelo vidro aberto, segurar no volante e forçar o carro a ir embater num caixote do lixo a um metro da maldita
vítima.
Quando os airbags dispararam e o motor soltou um silvo ominoso, Veck foi projetado para a frente, por cima do caixote de lixo. José soube que se lembraria daquela
imagem do homem pelo ar para o resto da vida, o casaco do fato completamente aberto, a arma de um dos lados e o distintivo do outro, brilhando enquanto voava sem
asas.
Aterrou desamparado de costas. Com força.
- Agente ferido! - gritou José, enquanto corria para o parceiro.
Mas não havia maneira de dizer àquele filho da mãe para ficar quieto, nem qualquer hipótese de o ajudar a levantar-se. Veck ficou de pé de um salto, como o maldito
coelhinho da Duracell, e avançou repentinamente em direção ao grupo de agentes que tinham rodeado o condutor de arma em punho. Desviando os outros do caminho, abriu
furiosamente a porta do condutor e arrancou cá para fora o fotógrafo ilegal, meio inconsciente e à beira de um ataque cardíaco. O sacana era tão gordo como o Pai
Natal e tinha a tez vermelha de um bêbado.
Também estava com dificuldade em respirar, apesar de não se perceber se era por ter inalado o pó do airbag ou por ter cruzado o olhar com o de Veck, e saber que
estava prestes a ser espancado violentamente.
Mas Veck apenas o deixou cair e entrou para o carro, apalpando os sacos vazios. Antes de conseguir deitar a mão à máquina fotográfica e de a atirar ao chão para
a desfazer, José interrompeu-o.
- Precisamos disso como prova - rosnou, enquanto Veck saía do carro e levantava o braço sobre a cabeça como se fosse esmagar a Nikon no passeio. - Ei! - José cerrou
as duas mãos em volta do pulso do parceiro, atirando o peso contra o peito dele. Cristo, o cabrão era um sacana enorme, não era só alto, mas também encorpado, e,
por um segundo, achou que não ia conseguir ser bem-sucedido a tentar controlá-lo.
Não obstante, o seu ímpeto venceu a batalha e as costas de Veck embateram no carro de lado.
José manteve a voz calma, apesar de ter de usar toda a sua força para imobilizar o homem.
- Pensa bem. Se deres cabo da máquina, não podes usar a fotografia que tirou como prova contra ele. Estás a ouvir-me? Pensa, porra... pensa.
Os olhos do Veck desviaram-se e foram fixar-se no perpetrador e, sinceramente, a falta de um pingo de loucura era um pouco perturbadora. Mesmo depois de tal aventura,
DelVecchio estava estranhamente descontraído, concentrado... e inegavelmente mortífero. José ficou com a sensação de que, se deixasse o outro detetive, a máquina
fotográfica não era a única coisa que ficaria irremediavelmente danificada.
Veck parecia perfeitamente capaz de matar de um modo muito calmo e competente.
- Veck, companheiro, acalma-te lá.
Durante um segundo ou dois não aconteceu nada, e José teve perfeita noção de que ninguém ali no beco sabia como iria acabar tudo aquilo. Incluindo o fotógrafo.
- Pá, olha para mim, homem!
Os olhos azuis de Veck desviaram-se lentamente e pestanejou. Pouco a pouco, a tensão no braço começou a descontrair-se e José ajudou-o a baixá-lo o suficiente para
lhe tirar a Nikon. Era impossível saber se a tempestade já tinha realmente acabado.
- Estás bem? - perguntou José.
Veck assentiu e voltar a ajeitar o casaco. Quando anuiu uma segunda vez, José deu um passo atrás.
Grande erro.
O parceiro foi tão rápido que não houve maneira de o agarrar. Esmurrou com tanta força o fotógrafo que provavelmente partiu o queixo ao desgraçado.
Enquanto o perpetrador desfalecia nos braços do outro polícia, ninguém disse nada. Todos gostariam de o ter feito mas, tendo em conta a voltinha que Veck dera no
carro, conquistara esse direito.
Infelizmente, o desabafo levaria, muito provavelmente, a que o detetive fosse suspenso e talvez a um processo contra a Polícia de Caldwell.
Abanando a mão com que esmurrara o homem, Veck murmurou:
- Alguém me dê um cigarro.
Merda, pensou José. Não valia a pena continuar à procura de Butch O’Neal. Era como se o seu antigo parceiro estivesse mesmo ali à sua frente.
Assim sendo, talvez não valesse a pena continuar a tentar localizar a origem da chamada do 112 da semana passada. Mesmo com todos os recursos disponíveis na esquadra,
não tinha conseguido chegar a lado nenhum e, provavelmente, até era bom que o rasto tivesse acabado num beco sem saída.
Arriscar a sorte com um doido destrutivo era mais do que suficiente para ele, muito obrigado.
Capítulo 25
No centro de treinos do complexo, Butch até gostaria de odiar o cirurgião por lealdade para com V. Especialmente tendo em conta o hábito do humano de fazer danças
eróticas seminu, só com uma toalha. Só a ideia de que aquele pedaço de carne tinha estado todo nu à frente de Payne. Que ideia tão aterradora a tantos níveis.
Seria diferente se ele tivesse a constituição de um jogador de xadrez, por exemplo. Mas a verdade é que Butch se sentia como se John Cena se andasse a fazer à irmãzinha
de V. Como diabo é que um cirurgião tinha aquele aspeto?
Não obstante, havia duas coisas que o salvavam. O sacana tinha vestido as roupas lavadas que Butch lhe dera, logo acabavam-se as festas para mulheres. E, enquanto
estavam sentados à frente do Dell na sala de observações, ele parecia honestamente preocupado com Payne e o seu bem-estar.
Não que fossem chegar a algum lado nesse aspeto. Estavam ambos sentados a olhar fixamente para o ecrã de computador, como dois cães a verem um documentário sobre
vida animal, muito concentrados, incapazes de levantar o som ou mudar de canal.
Numa situação normal, Butch telefonaria ou enviaria um sms a Vishous. Mas isso não ia acontecer, tendo em conta o confronto que estava a ter lugar no Fosso.
Ele esperava que V e Jane voltassem ao normal.
- Então e agora? - perguntou o cirurgião.
Butch tentou concentrar-se e levou a mão ao rato.
- Rezamos para eu consiga sacar os ficheiros da segurança. É isso que fazemos.
- E estavas tu a queixar-te da minha toalha.
Butch esboçou um sorriso.
- Chico esperto!
Como se tivessem recebido a deixa certa, inclinaram-se os dois para mais perto do ecrã como se isso fosse, por magia, ajudar o rato a encontrar aquilo que procuravam.
- Sou péssimo nesta merda - lamentou-se o cirurgião com um resmungo. - Sou muito melhor com as mãos.
- Também eu.
- Vai para o menu Iniciar.
- Estou a ir, estou a ir...
- Merda - disseram em uníssono, quando apareceram montes de ficheiros e programas ou o que quer que aquilo fosse.
Claro que não havia nada a dizer «Segurança», «Câmaras» ou «Pressionar aqui, seus idiotas, para encontrarem aquilo que dois atrasos de vida andam à procura».
- Espera, será que está em «Vídeos»? - sugeriu o cirurgião.
- Talvez.
Aproximaram-se os dois ainda mais, até as pontas dos narizes estarem a rasar o maldito monitor.
- Posso ajudá-los?
Butch virou a cabeça.
- Graças a Deus, Jane. Ouve, temos de encontrar os ficheiros digitais da câmara de segurança... - Calou-se. - Estás bem?
- Ótima, ótima.
Pois, certo. Ali parada à porta, via-se que ela não estava bem. Nem sequer estava perto de estar bem. De tal modo que soube que não devia perguntar onde estava V
- nem esperar que o Irmão aparecesse tão cedo.
- Olha lá, doutora - disse Butch, levantando-se casualmente -, posso falar contigo um minuto?
- Ah...
Ele interrompeu o protesto que ela ia esboçar.
- Obrigado. Ali fora, no corredor. Manello, descobre como nos movimentarmos no computador.
- Vou já tratar disso - replicou o homem secamente.
Quando ele e Jane saíram da sala, Butch baixou a voz.
- O que é que se passa? E sim, não tenho nada a ver com isso. Mas quero saber na mesma.
Pouco depois, Jane cruzou os braços por cima da bata branca e olhou fixamente em frente. Mas não estava a repeli-lo. Parecia mais estar a lembrar-se de alguma coisa.
- Fala comigo - murmurou ele.
- Sabes porque é que ele foi ter com o Manny, certo?
- Não sei os pormenores. Mas... posso adivinhar. - Francamente, a fêmea aparentava andar com tendências suicidas.
- Como médica, sou levada para diferentes direções. Se conseguires extrapolar...
Por Deus, era pior do que o que ele pensava.
- Consigo. Merda.
- E não é tudo - continuou. - Quando fui arrumar as coisas, descobri calças de cabedal no fundo do armário. Há cera preta por todo o lado. A par de sangue e... -
Estremeceu enquanto respirava fundo. - Outra coisa.
- Jesus - gemeu Butch.
Quando a Jane se calou, ele percebeu que a fêmea não queria que ele se envolvesse e não estava para pedir em voz alta. Mas também não precisava.
Que merda dos diabos... lá se ia a promessa que fizera quando V exigira que ele não se metesse. Mas ele não podia ficar a vê-los destruírem-se.
- Ele não te traiu - garantiu. - Naquela noite, há uma semana, ele deixou que lhe dessem uma tareia, Jane. Minguantes. Encontrei-o cercado por três e estavam a chicoteá-lo
com correntes.
Ela soltou um gemido e levou as mãos à boca.
- Oh... meu Deus...
- Não sei o que é que encontraste, mas ele não estava com mais ninguém. Ele próprio mo disse.
- Mas e então a cera? E...
- Nunca te ocorreu que pode ter sido ele próprio a fazê-lo?
Jane ficou sem palavras por um momento.
- Não. Além disso, porque é que ele não me disse?
Pois, era essa a banda sonora da noite.
- Nenhum homem quer confessar à mulher que está a bater uma sozinho. É demasiado patético... e ele deve ter pensado que, de certa forma, é uma traição. Ele é suficientemente
dedicado a ti para pensar assim.
Quando as lágrimas afloraram os olhos verdes de Jane, Butch ficou um momento sem saber o que dizer. A boa da doutora era tão reservada como o seu hellren - e era
essa força discreta que a tornava a danada numa médica tão útil. Mesmo assim, isso não queria dizer que ela não tinha sentimentos, e ali estavam eles.
- Jane... não chores.
- Eu só não sei é como é que vamos ultrapassar isto. Não sei mesmo. Ele está perturbado. Eu estou perturbada. E depois há a Payne. - Subitamente, ela levou a mão
ao ombro dele e apertou. - Por favor, podes... podes ajudá-lo? Com aquilo de que ele precisa. Talvez seja o quebrar o gelo de que precisamos.
Quando se fitaram, Butch interrogou-se se estariam a pensar no mesmo. Mas como é que ele podia tocar no assunto discretamente. Então, queres que seja eu a tratar
dele, em vez dos minguantes?
E se eles não estivessem a falar do mesmo? E ela estivesse a começar a ir-se abaixo?
- Não consigo - disse Jane severamente. - E não é só por estarmos atualmente com problemas. Não tenho o que é preciso. Ele confia em ti... eu confio em ti... e ele
precisa disso. Tenho medo de que, se ele não conseguir ultrapassar este muro que ele construiu, nós não conseguiremos ultrapassar isto... ou pior. Por favor, leva-o
ao Commodore.
Bem, isso resolvia um problema. Aclarou a garganta.
- Sinceramente, tenho estado a pensar no mesmo. E, na verdade, acabei de... lhe dizer que me oferecia para o fazer.
- Obrigada. - Ela praguejou e limpou os olhos. - Conhece-lo tão bem quanto eu. Ele precisa de ser descongelado... de algum modo, de alguma maneira.
- Pois. - Butch estendeu a mão e acariciou-lhe a face. - E vou tomar conta dele. Não te preocupes.
Jane segurou-lhe na mão.
- Obrigada.
Abraçaram-se por um momento e, enquanto o abraço durou, ele pensou que não haveria nada que não fizesse para manter Jane e V juntos.
- Onde é que ele está agora? - perguntou.
- Não faço ideia. Deu-me um saco e eu arrumei as minhas coisas e saí. Não o vi no Fosso, mas também não estava à procura dele.
- Eu trato disso. Ajudas o Manello?
Ela assentiu. Butch abraçou-a durante uns instantes e depois foi-se embora, embrenhando-se pelo túnel e correndo para a última saída: o Fosso.
Sem fazer ideia daquilo em que se estava a meter, introduziu a palavra-passe e espreitou pela porta reforçada. Não havia fumo, portanto nada estava a arder. Não
havia gritos. Não havia cheiros, para além do pão fresco que a sua Marissa tinha cozinhado anteriormente.
- V? Estás aqui? - Não houve resposta.
Cristo, estava tudo demasiado calmo.
Ao fundo do corredor encontrou o quarto de V e Jane vazio e desarrumado. A porta do armário estava aberta e faltava roupa nos cabides, mas não foi isso que lhe chamou
a atenção.
Foi até às calças de cabedal deixadas no chão e observou-as. Um rapaz simpático e católico como ele não sabia muito sobre sadomasoquismo, mas parecia que estava
prestes a descobrir em primeira mão.
Retirando o telemóvel do bolso, carregou na tecla para ligar a V, mas não estava à espera de ter resposta. O GPS teria de se tornar útil uma vez mais.
- Parecem os velhos tempos.
Manny concentrou-se no ecrã de computador enquanto falava. Era difícil dizer qual a parte mais embaraçosa de estar sentado ao lado da sua antiga colega. Com tantas
coisas por onde escolher, o silêncio entre eles era como uma caça infantil ao ovo de Páscoa, com tudo muito mal escondido e prestes a ser descoberto e apanhado.
- Porque é que queres rever os ficheiros digitais? - perguntou ela.
- Já vês quando lá chegarmos.
Jane não teve qualquer problema em encontrar o programa certo e, pouco depois, a imagem do quarto de Payne surgiu no monitor. Mas a cama estava vazia... à exceção
de um saco desportivo.
- Quarto errado. Aqui está - murmurou Jane.
E ali estava ela. A sua Payne. Encostada às almofadas, com a ponta da trança nas mãos, os olhos fitos na casa de banho, como se, talvez, o imaginasse ainda no banho.
Porra... ela era linda.
- Achas - disse ela suavemente.
Ok, esta era uma boa altura para a sua boca parar de ter vida própria. Pigarreou.
- Podemos recuar cerca de meia hora?
- Sem problemas.
A imagem andou para trás, enquanto o pequeno contador no lado inferior direito recuava em milissegundos.
Ao ver-se a si próprio a observá-la de toalha, era demasiado óbvio que estavam atraídos um pelo outro. Jesus... aquela maldita ereção era razão suficiente para não
olhar para Jane.
- Espera... - Endireitou-se na cadeira. - Mais devagar. Aqui está.
Por momentos, viu-se outra vez no banho...
- Olha-me... isto - sussurrou Jane.
E ali estava: Payne de joelhos ao fundo da cama, o corpo alongado e elegante, perfeitamente equilibrado, enquanto os olhos se fixavam na porta da casa de banho.
- Ela está a brilhar?
- Sim - murmurou -, está.
- Espera... - Jane pressionou a «Play», deixando as imagens correr na ordem certa. - Aqui, estás a testar as sensações dela?
- Nada. Ela não sentiu nada. E, no entanto... volta atrás... obrigado. - Apontou para as pernas da Payne. - Contudo, aqui ela tem claramente controlo muscular.
- Isto não faz sentido. - Jane andou para a frente e para trás, revendo o ficheiro. - Mas ela levantou-se... ó meu Deus... ela levanta-se. É um milagre.
Não havia dúvidas de que parecia um milagre. Exceto...
- Qual é o estimulante? - murmurou ele.
- Talvez sejas tu.
- Nem pensar. A minha operação claramente não resultou, ou ela teria conseguido ajoelhar-se antes desta à noite. Os teus próprios exames mostraram que ela continuava
paralisada.
- Não estou a falar do teu bisturi.
Jane andou para trás até ao momento em que Payne se levantou e parou a imagem.
- És tu.
Manny olhou fixamente para a imagem e tentou ver algo mais do que o óbvio. Parecia mesmo que, quando Payne tinha olhado para ele, o seu brilho tinha ficado mais
intenso e ela se tinha mexido.
Jane andou com o ficheiro para a frente fotograma a fotograma. Assim que ele saiu da casa de banho e ela se deitou, o brilho desapareceu... e ela deixou de ter sensação.
- Isto não faz sentido - murmurou.
- Na verdade, acho que faz. É a mãe dela.
- Quem?
- Meu Deus, nem sei por onde começar. - Jane apontou para o seu próprio corpo. - Sou aquilo que sou por causa da Virgem Escrivã.
- Quem?
Jane esboçou um sorriso.
- Não tens de perceber. Está a acontecer. Só tens de ficar com a Payne e... observar as mudanças.
Manny voltou a fitar o ecrã. Bem, que merda, parecia que o Doido de Pera tinha tomado a decisão certa. De alguma maneira, o filho da mãe sabia que aquilo ia acontecer.
Ou talvez tivesse apenas esperança que acontecesse. De qualquer das formas, parecia que Manny era uma espécie de cura para a extraordinária criatura deitada na cama.
Bem podiam ter a certeza que ele ia ficar por ali.
Mas não se estava a enganar a si próprio. Aquilo não teria nada a ver com amor nem sequer com sexo. Era apenas ajudá-la a levantar-se e locomover-se para poder voltar
a ter uma vida outra vez... a todo o custo. E sabia que não lhe seria permitido ficar com ela no fim. Ver-se-iam livres dele como de um frasco de comprimidos da
farmácia. E sim, claro, ela até podia apegar-se a ele, mas era uma virgem que não sabia nada de nada.
E havia um irmão que a ia obrigar a fazer as escolhas acertadas.
Quanto a si? Nem sequer se ia lembrar de nada daquilo, pois não?
Gradualmente apercebeu-se de que Jane estava a observar atentamente a sua expressão.
- O que foi? - perguntou ele, sem tirar os olhos do monitor.
- Nunca te vi assim por causa de uma fêmea.
- Nunca conheci ninguém como ela. - Levantou a mão para acabar com a conversa. - E podes poupar-me o sermão do não vás por aí. Sei bem o que vai acontecer no fim
disto tudo.
Que raios, talvez os sacanas até o matassem e atirassem o corpo para o rio. Fazer com que parecesse um acidente.
- Na verdade, não ia dizer isso. - Jane mudou de posição na cadeira. - E acredita... Sei como te sentes.
Olhou-a.
- Ai sim?
- É como quando eu conheci o Vishous. - Os olhos encheram-se de lágrimas, mas ela aclarou a garganta. - Voltando a ti e à Payne...
- O que se passa, Jane? Fala comigo.
- Não se passa nada...
- O tanas é que não se passa. Nunca te vi assim antes. Pareces desfeita.
Jane inspirou.
- Problemas conjugais. Pura, mas não simplesmente.
Era óbvio que ela não queria falar mais sobre o assunto.
- Está bem. Se precisares, estou aqui... enquanto me permitirem estar.
Esfregou o rosto. Era uma completa perda de tempo estar a preocupar-se com o tempo que aquilo ainda ia demorar, com quanto tempo ainda teria. Mas não conseguia evitá-lo.
Perder Payne ia matá-lo, mesmo que mal a conhecesse.
Espera um pouco. Jane tinha sido humana. E agora estava aqui. Talvez houvesse...
Mas. Que. Merda. Esta.
- Jane...? - perguntou debilmente, enquanto olhava para a sua amiga de longa data. - O que...
Não conseguiu continuar a falar. Ela continuava sentada na mesma cadeira, na mesma posição, vestindo as mesmas roupas... mas ele conseguia ver a parede atrás dela...
e os armários de metal... e a porta lá ao fundo. E não era «ver» sobre os ombros dela. Era ver através dela.
- Oh, desculpa.
Mesmo à frente dos olhos dele, ela passou de translúcida a... normal.
Manny saltou da cadeira e deu vários passos atrás até o canto da mesa lhe morder o rabo e o obrigar a parar.
- Tens de falar comigo - disse ele num tom rouco. - Jesus... Cristo...
Enquanto segurava na cruz que ele tinha pendurada ao pescoço, Jane baixou a cabeça e com a mão prendeu o cabelo trás das orelhas.
- Oh, Manny... há tantas coisas que tu não sabes.
- Então... diz-me. - Como ela não respondeu, as vozes na sua cabeça ficaram ensurdecedoras. - O melhor é contares-me, porque estou farto de me sentir como um louco.
Fez-se um grande silêncio.
- Eu morri, Manny, mas não no acidente de automóvel. Isso foi encenado.
Os pulmões de Manny contraíram-se.
- Como?
- Um ferimento de bala. Fui alvejada. Morri... nos braços de Vishous.
Ok, ele já nem conseguia continuar a respirar.
- Quem te alvejou?
- Os inimigos dele.
Manny acariciou o crucifixo e, subitamente, a sua parte católica acreditou nos santos como muito mais do que exemplos de bom comportamento.
- Não sou quem antes conheceste, Manny. A muitos níveis. - Havia tristeza na sua voz. - Nem sequer estou realmente viva. Foi por isso que não voltei para te ver.
Não teve a ver com a cena vampiro/humano... é porque eu já não estou realmente aqui.
Manny pestanejou. Várias vezes.
Bem... a boa notícia no meio disto tudo, achava ele, era descobrir que a sua anterior cirurgiã de traumatismos era um fantasma? Não o impressionava por aí além.
Já tinha ficado surpreendido vezes de mais com coisas inacreditáveis a dar-lhe cabo da cabeça e, como uma articulação que tivesse sido deslocada, ela tinha agora
total e completa liberdade de movimentos.
Claro que a sua funcionalidade estava fodida.
Mas quem é que estava a reparar?
Capítulo 26
Sozinho na baixa de Caldwell, Vishous percorria a noite por sua conta, atravessando a extensão rasteira por baixo das pontes da cidade. Começara na sua cobertura,
mas isso não durara mais de dez minutos, sendo uma profunda ironia que todas aquelas janelas de vidro parecessem tão limitadoras. Depois de se lançar no ar a partir
do terraço, ganhara forma junto ao rio. Os outros Irmãos estariam em becos à procura de minguantes e a encontrá-los, mas ele não queria ficar na audiência. Queria
combater. A solo.
Pelo menos era isso que dizia para consigo.
Contudo, depois de cerca de uma hora a vaguear sem rumo, apercebeu-se de que não estava realmente em busca de um qualquer confronto. Na verdade, não estava à procura
de nada.
Estava absolutamente vazio, a ponto de se sentir curioso quanto à origem dessa deambulação, pois não estava de todo a fazer nada conscientemente.
Parando e olhando as águas lentas e imundas do Hudson, soltou uma gargalhada gelada.
Ao longo da sua vida acumulara um corpo de conhecimentos que rivalizavam com a porra da Biblioteca do Congresso. Parte era útil como, por exemplo, lutar, fazer armas,
obter informação e mantê-la secreta. Havia depois outros conhecimentos com uma utilidade diária relativa como, por exemplo, o peso molecular do carbono, a teoria
da relatividade de Einstein e as tretas políticas de Platão. Existiam igualmente pensamentos em que ruminava uma vez, sem nunca mais a eles voltar, e os seus opostos,
as ideias que formava a intervalos regulares e às quais se dedicava quando estava aborrecido. Havia também coisas nas quais nunca se permitia pensar.
Entre essas variadas ilhas cognitivas encontrava-se uma vasta extensão de cerebelo que não passava do depósito das tretas em que não acreditava. E, tendo em conta
que era um cínico, eram quilómetros e quilómetros de sacos de lixo metafórico apodrecido que versavam temas como... os pais deviam amar os filhos... as mães eram
a melhor dádiva... e blá, blá, blá.
A haver um equivalente mental da ASAE, essa zona do seu cérebro seria citada, multada e encerrada.
Mas era engraçado. O breve passeio dessa noite pelas zonas degradadas junto ao rio tinham-no levado a ruminar sobre esse aterro e a retirar de lá uma das máximas.
Os machos acasalados não eram nada sem as suas fêmeas.
Que bizarro. Sempre soubera que amava Jane, mas sendo introvertido como era, alinhavara os seus sentimentos sem se aperceber de que tinha agulha e linha na mão.
Que raio, mesmo quando ela voltara para ele depois de ter morrido, nesse breve instante soubera não só o significado de enlevado, mas também o que era senti-lo...
não se entregara verdadeiramente.
É verdade que o gelo eterno se estreitara no topo graças ao calor que ela lhe dera, mas o interior, o seu âmago mais profundo, continuava na mesma. Jesus, nem sequer
se tinham acasalado devidamente. Limitara-se a mudá-la para o seu quarto e a adorar cada momento passado com ela, enquanto cada um ia à sua vida durante a noite.
Desperdiçara completamente essas horas.
O que fizera fora um crime.
E agora ali estavam, separados por abismos que, pesasse embora a sua inteligência, não fazia ideia como atravessar.
Cristo, quando ela estivera com aquelas calças de cabedal na mão, à espera que ele falasse, era como se alguém lhe tivesse agrafado os lábios... talvez por se sentir
culpado com o que fizera no apartamento, e por ter noção de quão depravado isso fora? A sua própria mão não podia ser vista como uma amante com quem enganara a fêmea.
O problema, contudo, era como lhe parecia errado o facto de ter sido atraído pelo tipo de libertação de que já desfrutara tanto. Mas isso era porque o sexo sempre
fizera parte do pacote.
Como era óbvio, isso fê-lo pensar em Butch. A solução que o tipo aventara era tão óbvia que V se surpreendia por não ter pensado nisso mais cedo. Mas claro que pedir
ao melhor amigo que o espancasse não era, de todo, uma ideia normal a ter.
Gostaria de ter tido essa opção há uma semana. Talvez tivesse ajudado... Só que a cena no quarto não era o único problema entre ele e Jane, pois não? Ela devia tê-lo
procurado para dizer o que se passava com a irmã. Devia ter sido informado e decidido o que fazer com a situação.
Quando a fúria lhe cresceu no íntimo como um fedor, receou o que estaria do outro lado do seu vazio. Não era como os outros machos, nunca fora, e não só por causa
das tretas deíficas da Mãe Querida. Com a sua sorte, seria o único macho acasalado à face da terra a ultrapassar aquelas dormências inúteis por ter perdido a shellan...
e chegava a um sítio muito mais negro.
À insanidade, por exemplo.
Espera, ele não seria o primeiro, pois não? Murhder enlouquecera. Total e absolutamente.
Talvez pudessem fundar um clube. E o aperto de mão secreto poderia envolver adagas.
Já que eram uns cabrões estilo emo...
Com um rosnido, V virou-se na direção do vento e teria agradecido caso não odiasse tanto a mãe. Por entre as gavinhas da neblina, cavalgando os vapores de humidade
cinzenta e branca, o cheiro doce do inimigo garantia-lhe um objetivo e uma definição de que o estado de dormência em que se encontrava não só carecia, como também
seria provável que rejeitasse.
Os pés começaram a andar, depois a trotar e, finalmente, a correr. E quanto maior a velocidade, melhor se sentia. Ser um assassino desalmado era muito, muito melhor
do que ser um vazio a respirar. Queria estraçalhar e assassinar; queria desfazer com as presas e rasgar com as mãos; queria o sangue dos matadores sobre ele e dentro
dele.
Queria que os gritos dos que matasse lhe soassem aos ouvidos.
Seguindo o fedor enjoativo, virou ruas e serpenteou por becos e vielas, acompanhando o cheiro à medida que ia ficando mais forte. E quanto mais se aproximava, maior
o alívio que sentia. Tinham de ser vários... o que era ainda melhor. Não havia sinais dos seus irmãos, pelo que seria o primeiro a chegar... o primeiro a servir-se.
Ia guardar aquilo para si.
Ao dobrar a última esquina da demanda entrou numa breve extensão de axila urbana e estacou. O beco não tinha saída pelo outro lado mas, tal como um corredor para
gado, os edifícios de ambos os lados redirecionavam o vento que chegava do rio, com a manada de moléculas a misturar-se e a prender os cheiros com os cascos, galopando
direitinhos às suas narinas.
Mas... que... raios...?
O fedor era tão forte que o seu nariz pediu transferência - mas não havia um bando de idiotas pálidos ali à espera, a afagarem as facas uns dos outros. O beco estava
vazio.
Mas depois apercebeu-se do som de algo a pingar. Como se uma torneira tivesse ficado mal fechada.
Depois de criar um mhis, descalçou a luva da mão brilhante e serviu-se dela para iluminar o caminho. Avançando, a luz criou uma zona de visibilidade à sua frente,
e a primeira coisa com que se deparou foi com uma bota... ligada a uma barriga de perna camuflada... e a uma coxa e anca...
E pronto.
O corpo do matador fora cortado ao meio, como se tivesse saído do talho, com o corte a deixar escorrer partes dos intestinos e o coto da coluna de um branco brilhante
no meio de todo aquele preto viscoso.
Um raspar vigoroso atraiu-o para a direita.
Desta vez começou por ver uma mão... uma mão pálida que raspava com as unhas no alcatrão húmido, recuando como se tentasse escavar um buraco.
O minguante não passava de um tronco, mas ainda estava vivo, embora isso não fosse um milagre. Era assim que funcionavam: até que fossem trespassados no coração
com algo feito de aço, continuavam a andar por aí, fosse qual fosse o estado do corpo.
Ao erguer lentamente a palma da mão, V avistou o rosto da coisa. Tinha a boca escancarada, com a língua a estalar como se tentasse dizer alguma coisa. Tal como era
habitual na mais recente safra de assassinos, tratava-se de um recruta novo, com a pele e o cabelo escuros ainda por mudar para um branco deslavado.
V passou por cima do desgraçado e continuou a andar. Alguns metros mais à frente encontrou as duas metades de um segundo.
Enquanto na nuca parecia ter um carreiro de formigas em alerta, deslocou a mão brilhante num arco que se afastou dos corpos num círculo concêntrico.
Ora, ora, ora... mas que recordação.
E não num bom sentido.
No complexo da Irmandade, Payne estava deitada na cama, à espera.
Mesmo nas melhores alturas já não era detentora de grande paciência, e pareceu-lhe esperar uma eternidade até que, finalmente, o seu curandeiro se acercou. Quando
o fez, vinha acompanhado por um painel fino que lembrava um livro.
Ao sentar-se na cama, o rosto forte e atraente denotava uma grande tensão.
- Desculpa ter demorado tanto. A Jane e eu estávamos a preparar este portátil.
Não fazia ideia do que aquilo poderia querer dizer.
- Diz-me apenas o que tens a dizer.
Com gestos rápidos e ágeis, ele abriu a metade superior do objeto.
- Na verdade, tens de ver com os teus próprios olhos.
Sentindo-se como se quisesse começar a praguejar com toda a força, Payne dirigiu os olhos ao ecrã. Reconheceu de imediato a imagem do espaço onde se encontrava.
Mas era um momento anterior, pois estava deitada na cama a olhar para a casa de banho. O fotograma estava imobilizado como um quadro, mas depois uma pequena seta
moveu-se quando ele tocou em alguma coisa, e a imagem animou-se.
Olhou para si própria com um franzir de cenho. Estava a brilhar. Todas as extensões de carne expostas brilhavam a partir do interior. Por que motivo seria...
Primeiro endireitou-se na almofada, com o pescoço inclinado para poder espiar o curandeiro. Mais uma inclinação para o lado. E depois chegou-se mais para o fundo
da cama...
- Levantei-me - arquejou. - Fiquei de joelhos!
Com efeito, a sua forma luminescente erguera-se na perfeição e equilibrara-se enquanto o observava no duche.
- É verdade - confirmou ele.
- E também estou a brilhar. Mas, por que motivo?
- Esperávamos que nos pudesses esclarecer quanto a isso. Alguma vez o tinhas feito?
- Que eu me apercebesse, não. Mas estive tanto tempo aprisionada que me sinto como se não me conhecesse. - O ficheiro terminou. - Podes mostrá-lo outra vez?
À falta de resposta do seu curandeiro, e não vendo as imagens a repetirem-se, Payne olhou para ele e, se pudesse, teria recuado. O rosto dele exibia uma fúria imensa,
tão profunda que praticamente lhe enegrecera os olhos.
- Aprisionada como? - quis saber. - E por quem?
Estranho, pensou Payne vagamente. Sempre lhe tinham dito que os humanos eram criaturas muito mais brandas do que os vampiros. No entanto, a reação protetora do seu
curandeiro era tão mortífera como a da sua própria espécie.
A menos, é claro, que não se tratasse de proteção. Era absolutamente possível que o facto de ter estado em cativeiro não fosse, de todo, algo atraente para ele.
E quem o poderia censurar por isso?
- Payne?
- Ah... Perdoa-me, curandeiro... talvez a minha seleção de termos não tenha sido a melhor, já que o inglês não é a minha língua nativa. Estive sob os cuidados da
minha mãe.
Foi quase impossível afastar a repulsa da voz, mas a camuflagem deveria ter resultado, pois a tensão abandonou-o completamente quando libertou o fôlego.
- Ah, está bem. Pois, essa palavra não tem o significado que julgas.
Com efeito, também os humanos tinham padrões de comportamento, não era verdade. O alívio por ele mostrado foi tão grande como a tensão. Claro que não era errado
procurar moralidade e decência nas fêmeas ou nos machos.
Quando ele lhe repetiu as imagens, Payne dirigiu a atenção ao milagre que tivera lugar... e deu consigo a abanar a cabeça com o que via.
- Por minha fé, não tive noção. Como... como é isto possível?
O curandeiro tossicou.
- Falei sobre isto com a Jane... e ela... bem, nós... temos uma teoria. - Levantou-se e foi inspecionar um aparelho no teto. - É de loucos, mas... talvez o Marvin
Gaye soubesse o que estava a dizer.
- Marvin?
Com um movimento rápido, o curandeiro pegou numa cadeira e colocou-a por baixo da câmara.
- Era um cantor. Talvez um dia te mostre uma canção dele. - O curandeiro firmou o pé no assento e ergueu-se até ao teto, onde desligou qualquer coisa com um puxão
e depois voltou a descer. - É boa música para se dançar.
- Não sei dançar.
Olhou sobre o ombro, com as pálpebras a baixarem um pouco.
- Mais uma coisa para te ensinar. - Aproximou-se da cama com o corpo dela a aquecer. - E vou gostar de te mostrar como se faz.
Quando se baixou, os olhos dela colaram-se aos lábios do curandeiro e respirou com dificuldade. Ele ia beijá-la - pelas Parcas, ele ia...
- Querias saber o que era vir - praticamente rosnou, com as bocas quase juntas. - E se em vez de te dizer o que é, eu te mostrasse?
Com essas palavras, pressionou um interruptor, fazendo o quarto mergulhar numa escuridão quebrada apenas pela luz da casa de banho e pela linha brilhante na base
da porta do corredor.
- Queres que te mostre? - perguntou, num tom baixo.
Nesse momento, o vocabulário de Payne resumiu-se a uma palavra:
- Sim...
Mas então ele recuou.
No momento em que o protesto estava prestes a sair-lhe da garganta, Payne apercebeu-se de que ele se encontrava na linha de iluminação vinda da casa de banho.
- Payne...
O som do seu nome a sair da boca dele ainda a deixou mais ofegante.
- Sim...
- Eu quero... - Levando as mãos ao fundo da camisola larga, o curandeiro levantou-a devagar, expondo os músculos definidos da barriga. - ... que me queiras.
Ah, querido destino, como o queria.
E ele estava a falar a sério. Quanto mais ela olhava, mais aqueles abdominais se retesavam e descontraíam, como se também ele estivesse a ofegar.
Baixou a mão até à cintura.
- Vê o que tu me fazes. - Baixou o tecido largo pelas ancas e...
- É tremehndo - murmurou ela. - Oh... pelas Parcas, é mesmo.
- Diz-me que isso é bom.
- É...
Payne fitou a extensão rígida que estava confinada e forçava a frente das calças dele. Tão grosso e liso. Tão grande. A mecânica do sexo não lhe era desconhecida,
mas até então, não fazia ideia como isso poderia atrair uma fêmea. Mas agora que olhava para ele... Se não o tivesse dentro de si, o coração iria parar-lhe e o sangue
transformar-se-ia em pedra.
- Queres tocar-me? - perguntou-lhe vagarosamente o curandeiro.
- Por favor... - Engoliu com a garganta constrangida. - Oh, sim...
- Primeiro, olha para ti, bambina. Levanta o braço e olha para ti.
Baixou o olhar só para lhe fazer a vontade, para que pudessem continuar a...
A pele brilhava-lhe a partir do interior, como se o calor e as sensações que ele lhe provocara se tivessem manifestado através da iluminação.
- Eu não sei... o que é isto...
- Por acaso, acho que é a solução. - Sentou-se junto aos pés dela. - Diz-me se sentes isto. - Tocou-lhe suavemente com a mão na barriga da perna...
- Quente - titubeou ela. - O teu toque é quente.
- E aqui?
- Sim... sim!
Quando ele mostrou intenção de subir até à coxa, Payne arrancou furiosamente o cobertor de cima do corpo, para que ele não tivesse obstáculos. O coração ribombava-lhe
no peito e...
O curandeiro pousou a mão na outra perna.
Desta vez, ela... não sentiu nada.
- Não, não... toca-me, toca-me outra vez! - A exigência era dura, a concentração maníaca. - Toca-me...
- Espera...
- Para onde é que foi... fá-lo outra vez! Por tudo quanto é sagrado para o teu Deus, repete-o...
- Payne. - Segurou-lhe as mãos frenéticas. - Payne, olha para ti.
O brilho tinha desaparecido. A pele, a carne... estavam normais.
- Maldita seja...
- Ei, linda. Ei... olha para mim. - Os olhos conseguiram cruzar-se. - Respira fundo e descontrai-te... Vá lá, respira comigo. Isso mesmo. Muito bem... Eu vou trazer-to
de volta...
Quando se inclinou para ela, Payne sentiu o toque gentil dos dedos no pescoço.
- Sentes isto?
- Sim... - A impaciência debatia-se com o efeito da voz grave e do toque lento e aleatório.
- Fecha os olhos...
- Mas...
- Fecha-os para mim.
Quando fez o que lhe dizia, as pontas dos dedos desapareceram... e foram substituídas pela boca dele. Os lábios roçaram-lhe pelo pescoço e depois sugaram-lhe a pele,
com o puxão subtil a inflamar-lhe o entrepernas.
- Sentes isto? - perguntou ele num tom arrastado.
- Pelas Parcas... sim...
- Então deixa-me continuar. - Com uma leve pressão, ele deitou-a sobre as almofadas. - A tua pele é tão macia...
Enquanto a beijava, a boca dele fazia leves estalidos deliciosos por baixo do ouvido de Payne, e os dedos percorreram-lhe a clavícula... e depois baixaram. Em resposta,
um calor curioso e lânguido percorreu-lhe o tronco e entumeceu-lhe os mamilos, ficando Payne com total consciência do corpo... de cada palmo. Até das pernas.
- Vês, bambina, voltou... Olha.
Tinhas pálpebras pesadas como pedras quando as abriu, mas ao olhar para baixo, o brilho foi um alívio enorme - e fê-la agarrar-se às sensações que ele extraía.
- Dá-me a tua boca - pediu ele. - Deixa-me entrar.
A voz dele era gutural, mas o beijo foi gentil e provocante, puxando-lhe os lábios e acariciando-os antes de usar a língua. Depois sentiu a mão dele na perna.
- Sinto-te - disse ela contra o beijo, de lágrimas nos olhos. - Sinto-te.
- Ainda bem. - Recuou um pouco, com uma expressão séria. - Não te vou mentir... não sei o que é isto. A Jane também não o sabe ao certo.
- Não me interessa. Só quero as minhas pernas de volta.
O curandeiro fez uma breve pausa. Mas depois aquiesceu, como se lhe estivesse a fazer um juramento.
- E eu vou fazer tudo o que puder para tas devolver.
Os olhos dele desceram-lhe até aos seios e a reação foi imediata. A cada fôlego que inspirava, o tecido que lhe cobria os mamilos parecia acariciá-la e deixá-la
ainda mais excitada.
- Deixa-me fazer-te sentires-te bem, Payne. E veremos onde isso te leva.
- Sim - Ergueu as mãos até ao rosto dele e voltou a puxá-lo para a sua boca. - Por favor.
Por sua fé, tal como retiraria alimento de uma veia, absorvia agora o calor dos lábios dele, a entrada húmida da língua e a energia que ele fazia com que libertasse.
Gemendo, Payne deixou-se submergir em sensações, desde o peso do seu corpo na cama, ao sangue que lhe percorria as veias, ao pulsar da necessidade entre as pernas
e à deliciosa dor nos seios.
- Curandeiro. - Arquejou ao sentir a coxa a ser acariciada pela mão dele.
Ele moveu-se e Payne ficou satisfeita por também ele estar a arquejar.
- Payne, quero fazer uma coisa.
- Tudo.
Ele sorriu.
- Posso soltar-te o cabelo?
Verdade fosse dita, a trança seria a última coisa de que se lembraria, mas a expressão dele era tão arrebatada e intensa que não lhe poderia recusar tal pedido -
nem qualquer parte de si própria.
- Mas é claro.
Os dedos dele tremeram ao de leve quando lhe chegou ao fim da trança.
- Desde a primeira vez que te vi que queria fazer isto.
Gradualmente, centímetro a centímetro, ele libertou o peso das ondas pretas que ela mantinha compridas simplesmente por não ter qualquer interesse em cuidar delas.
Contudo, tendo em conta a profunda admiração que ele revelava, começou a interrogar-se se, porventura, teria subestimado o seu significado.
Quando acabou, o curandeiro espalhou as madeixas sobre a cama e limitou-se a recostar-se.
- És... de uma beleza indescritível.
Como nunca se considerara sequer feminina, e muito menos «bela», foi espantoso ouvir a reverência não só nas palavras, mas também na voz dele.
- Com efeito... prendes-me a língua - voltou a dizer-lhe.
- Deixa-me dar-te algo mais para fazeres com ela.
Quando se deitou ao lado dela na cama, ela virou-se para a almofada que eram aqueles peitorais e a vastidão da barriga. Payne era grande, quando comparada com outros
elementos do seu género, tendo o corpo recebido o poder do seu progenitor a tal ponto que muitas vezes se sentia deselegante em comparação com outras fêmeas. Não
tinha a graciosidade esbelta da Escolhida Layla. A bem da verdade, tinha uma constituição adequada ao combate e não a serviços espirituais ou sensuais.
Todavia, ali com o seu curandeiro, ela sentia-se com proporções perfeitas. Ele não tinha a imponência do irmão gémeo, mas era maior e mais encorpado do que ela em
todos os sítios que convinha a um macho. Ali deitada com ele naquele quarto escurecido, com os corpos tão juntos e a temperatura a subir um pouco por todo o lado,
ela não era algo que não devia existir, uma malformação de contornos e tamanho, mas sim um objeto de desejo e de paixão.
- Estás a sorrir - murmurou-lhe ele junto à boca.
- Estou?
- Sim. E eu adoro isso.
Na sua anca, as mãos dele procuraram por baixo da camisa de noite e ela sentiu tudo, desde o leve roçar do mindinho à pele macia da palma da mão e ao rasto quente
que o toque deixava atrás dele enquanto subia lentamente. Fechando os olhos, ela arqueou-se contra o outro corpo, plenamente consciente de que pedia algo, mas sem
saber ao certo o que procurava. Sabia apenas que ele lho daria.
Sim, o curandeiro dela sabia exatamente aquilo de que ela precisava. Aquela mão que lhe percorreu a pele e fez uma pausa abaixo dos seios pesados e delicados.
- Isto não faz mal? - ouviu-o a perguntar de muito longe.
- Tudo - arquejou Payne. - Tudo para sentir as minhas pernas.
Mas ainda as palavras lhe estavam a deixar a boca e já sentia que aquilo que a movia não era tanto a paralisia, mas sim a ânsia por ele e pelo sexo dele...
- Curandeiro!
A sensação de ter o seio capturado numa carícia gentil foi um choque maravilhoso, e ela arqueou-se, com as coxas a abrirem-se, os calcanhares a pressionarem o colchão
por baixo de ambos. E depois o polegar passou-lhe sobre o mamilo, com a carícia a libertar-lhe um jorro de fogo no seu íntimo.
As pernas dela esfregaram a cama, com uma sensação ardente no seu sexo a impulsioná-las.
- Estou a mexer-me - disse, num tom rouco - e quase como um acrescento secundário. O que lhe parecia essencial naquele momento era juntar-se a ele e tê-lo a... vir-se...
dentro dela.
- Eu sei, bambina - garantiu-lhe ele. - E vou certificar-me de que continuas.