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Capítulo 8
PAÍS ANTIGO
PRESENTE
O sonho era antigo. Tinha séculos. Mesmo assim, as suas imagens eram frescas e nítidas como a noite em que tudo mudara, havia tanto tempo.
Nas profundezas do seu sono, Xcor viu à sua frente a aparição de uma fêmea furiosa, com a névoa a rodopiar-lhe em torno das vestes brancas e a fazê-las pairar no
ar frio. Ao vê-la surgir, Xcor percebeu de imediato por que tinha ela saído da floresta cerrada - mas o alvo dela continuava alheio à sua presença e ao seu objetivo.
O pai de Xcor estava demasiado ocupado a cavalgar para arrebatar uma mulher humana.
Mas foi então que o Derramador de Sangue viu o fantasma.
A partir desse momento, a sequência de acontecimentos desenrolou-se de forma tão vincada como as rugas na fronte de Xcor. Gritou em alarme e lançou a montada enquanto
o progenitor largava a fêmea humana que agarrara e investia contra o espírito. Xcor nunca chegava a tempo. Observava sempre horrorizado a fêmea saltar do chão e
derrubar o pai.
E depois o fogo... o fogo que a fêmea criava em torno do corpo do Derramador de Sangue era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o progenitor de Xcor numa
questão de instantes, com o fedor da carne incinerada...
Xcor sentou-se muito direito, com a mão da adaga a agarrar o peito, os pulmões a bombear, sem contudo inspirar qualquer fôlego.
Firmando as palmas das mãos na enxerga de cobertores, levantou-se e ficou profundamente satisfeito por estar sozinho nos seus aposentos. Não precisava que ninguém
o visse naquele estado.
Ao tentar regressar à realidade, o som da sua respiração ecoou e ressaltou nas paredes vazias, multiplicando-se até parecer que gritava. Fez com que a vela no chão
a seu lado se acendesse. Isso ajudava. Depois levantou-se para esticar o corpo. O processo de estender os ossos e os músculos e voltar a alinhá-los era também de
grande ajuda para o cérebro.
Precisava de comida. E de sangue. E de um combate.
Voltaria então a estar bem.
Depois de vestir as suas roupas de cabedal trabalhado e de enfiar uma adaga no cinto, saiu do quarto para o corredor frio. As vozes graves e o retinir de pratos
de peltre à distância indicavam que a primeira refeição já fora servida no grande salão.
O castelo onde ele e o seu bando de bastardos viviam era o que encontrara na noite em que o pai fora morto, o baluarte sobranceiro ao vilarejo medieval adormecido
que se tornara uma aldeia pré-industrial e depois, no período moderno, crescera para dar origem a uma pequena cidade de cerca de cinquenta mil humanos.
Algo que, tendo em conta a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma agulha no imenso palheiro do planeta.
O baluarte era ideal - e pelos motivos que originalmente o tinham atraído. As robustas muralhas de pedra e o fosso com ponte levadiça continuavam praticamente intactos
e mantinham os intrusos afastados. A juntar a essas defesas havia muitas ficções sanguinolentas e verdades absolutas que lançavam uma mortalha sobre as suas terras,
a sua casa e os seus machos. Com efeito, ao longo do último século, ele e os seus soldados tinham-se dedicado a espalhar os absurdos mitos vampíricos «assombrando»,
de tempos a tempos, as estradas da zona.
Algo fácil de concretizar quando se era um assassino com a capacidade de desmaterialização.
Nunca um simples Buu! fora tão eficaz.
Mas é claro que havia problemas. Depois de terem eliminado a população de minguantes no Velho Mundo, tinham de encontrar maneira de manter as competências assassinas
em alerta. Felizmente, os humanos tinham entrado na equação - embora, claro, ele e os seus irmãos tivessem de permanecer incógnitos, com as suas verdadeiras identidades
protegidas.
Surgia então a necessidade humana de retaliação.
Os humanos apresentavam uma única característica louvável, a sua fúria contra aqueles que cometiam atrocidades. Como os vampiros só caçavam violadores, pedófilos
e assassinos, os seus «crimes» eram mais tolerados. O destino bem sabia que quando se visava os inocentes, os humanos pareciam abelhas a sair de uma colmeia para
defender o seu território, mas com os transgressores?
Olho por olho, já dizia a Bíblia deles.
E assim, o bando de bastardos podia levar a cabo o seu treino.
Há duas décadas que tal acontecia, sempre na esperança de que o seu verdadeiro inimigo, a Sociedade dos Minguantes, lhes proporcionasse inimigos mais adequados.
No entanto, não tinham surgido inimigos, pelo que Xcor chegava à conclusão que não restavam minguantes na Europa, nem deveriam esperar por mais. Afinal de contas,
ele e os seus machos viajavam centenas de quilómetros em todas as direções a cada noite, durante a sua caça por vilões humanos, pelo que se teriam deparado com matadores,
algures.
Infelizmente, já não havia mais.
No entanto, tal ausência era lógica. Há muito que a guerra mudara de continente. Quando a Irmandade da Adaga Negra partira para o Novo Mundo, a Sociedade dos Minguantes
tinha-a seguido como cães, deixando ficar os restos para que fossem limpos por Xcor e seus bastardos. Durante algum tempo isso revelara-se um bom desafio, com os
matadores disponíveis e as batalhas a proporcionarem bons combates. Mas isso acabara e os humanos não estavam à altura.
Sentiu-se invadido por uma profunda insatisfação ao descer a escadaria, com as botas a esmagar um antigo degrau gasto que deveria ter sido substituído há gerações.
Lá em baixo, o espaço vasto que se abria era uma caverna de pedra, sem nada além de uma tremenda mesa de carvalho à frente de uma lareira imensa como uma montanha.
Os humanos que tinham construído aquela fortaleza forraram as paredes grosseiras com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em garanhões de valor não tinham
envelhecido melhor do que qualquer dos tapetes. As fibras desbotadas e puídas pendiam das suas fixações, com as bainhas inferiores cada vez mais compridas, até que
viriam, sem dúvida, a tornar-se igualmente coberturas para o chão.
À frente do fogo intenso, o bando de bastardos ocupava cadeiras entalhadas, comendo veado e faisão caçado nos terrenos da propriedade, amanhados no campo e cozinhados
na lareira. Bebiam cerveja que eles próprios faziam nas adegas subterrâneas e comiam nos pratos de peltre com facas de caça e garfos compridos.
Havia pouca eletricidade na edificação - Xcor não via qualquer necessidade para tal modernice, mas Throe pensava de outra maneira. O macho insistira na criação de
um espaço para os seus computadores, o que exigia ligações incómodas que não eram nem interessantes, nem de grande confiança. Claro que essa modernização tinha razão
de ser. Embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia, e os humanos não eram apenas grandes difusores de sangue e depravação; sentiam-se fascinados por isso - sendo
assim que os bastardos localizavam as suas presas um pouco por toda a Europa.
O lugar à cabeceira da mesa estava à espera dele, e assim que se sentou, ou outros pararam de comer e baixaram as mãos.
Throe estava à sua direita, no lugar de honra, e os olhos claros do vampiro brilhavam.
- Como estás?
Aquele sonho, aquele malfadado sonho. Verdade fosse dita, sentia-se perdido no interior da sua pele, embora ninguém o viesse a saber.
- Bem o suficiente. - Xcor estendeu o garfo e trespassou uma coxa. - Pela tua expressão, diria que tens algum objetivo em mente.
- Sim. - Throe apresentou uma data de papéis que pareciam ser artigos de jornal. Em cima estava uma fotografia a preto e branco, para a qual apontou. - Quero-o.
O macho humano representado era um indivíduo de aspeto duro, com cabelo escuro, nariz partido e a fronte baixa e carregada de um primata. A legenda por baixo da
fotografia e as colunas impressas não passavam de meros padrões aos olhos de Xcor. Contudo, percebia bem a malevolência presente naquela expressão.
- Porquê este homem em particular, instruhtor? - Mesmo sabendo-o perfeitamente.
- Matou mulheres em Londres.
- Quantas?
- Onze.
- Então não chegou à dúzia certa.
A expressão de Throe denotava a sua aversão. Algo delicioso, a bem da verdade.
- Esquartejou-as ainda vivas e depois esperou que morressem para... as tomar.
- Para as foder, queres tu dizer? - Xcor arrancou a carne do osso com as presas e depois, não tendo resposta, arqueou uma sobrancelha. - Queres dizer que as fodeu,
Throe?
- Sim.
- Ah. - Xcor exibiu um sorriso perigoso. - Tolo porco.
- Foram onze mulheres.
- Sim, já o disseste. Portanto, ele é um tolo pervertido com bastante desejo.
Throe recuperou os papéis e folheou-os, fitando os rostos das mulheres humanas desprezíveis. Sem dúvida, naquele momento estaria a rezar à Virgem Escrivã, para que
lhe fosse dada a oportunidade de executar um serviço público a uma raça que estava à distância de uma indução de ser inimiga deles.
Patético.
E não viajaria sozinho - razão por que parecia tão desconsolado. Infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos tinham feito na noite da incineração do Derramador
de Sangue prendia-os a Xcor com laços de aço. Não iam a lado nenhum sem o seu consentimento e aprovação.
Embora, no caso de Throe, o macho estivesse já ligado a Xcor há mais tempo.
No silêncio que se seguiu, as gavinhas do sonho de Xcor voltaram a percorrer-lhe a mente - a par da consciência de que nunca encontrara aquela fêmea maldita. E isso
não estava bem. Embora estivesse mais do que disposto a dar forma aos mitos presentes nas mentes humanas, ele próprio não acreditava em fantasmas, assombrações,
feitiços e maldições. O pai fora destruído por algo de carne e osso, e o predador que vivia no seu íntimo queria encontrá-la e matá-la.
- O que dizes? - quis saber Throe.
Era mesmo dele. Que grande herói.
- Nada. Caso contrário teria falado, não?
Os dedos de Throe começaram a tamborilar no tampo da velha mesa de madeira manchada, e Xcor ficou satisfeito por deixá-lo armar-se em tamborileiro. Os outros limitaram-se
a comer, esperando que a batalha se resolvesse, fosse como fosse. Ao contrário de Throe, os restantes não queriam saber dos alvos selecionados - conquanto tivessem
comida, bebida e sexo com fartura, não se importavam de lutar quando e com quem quer que fosse escolhido.
Xcor trespassou mais um naco de carne e recostou-se na impressionante cadeira de carvalho, com os olhos atraídos pelas tapeçarias decrépitas. As imagens de humanos
a partirem para a guerra em montadas que ele aprovava e com armas que apreciava que se viam nas paredes deixavam-no aborrecido.
A sensação de se encontrar no lugar errado deixava-lhe os ombros a formigar, o que o tornava tão irritado como o seu número dois.
Vinte anos sem minguantes, a eliminar meros humanos para manterem as capacidades despertas, não era uma existência decente nem para ele nem para os seus bastardos.
Mesmo assim, ainda havia vampiros que tinham permanecido no País Antigo, e ele estava naquele continente na esperança de encontrar entre eles aquilo que apenas via
em sonhos.
Aquela fêmea. Que lhe levara o pai.
Mas o que lhe dera essa espera?
A decisão com que há muito se debatia voltou a assomar-lhe a mente, ganhando forma e estrutura, ângulos e arcos. E, embora antes o ímpeto sempre se tivesse desvanecido,
agora o pesadelo garantia-lhe uma permanência que transformava a simples ideia em ação.
- Vamos a Londres - declarou.
Os dedos de Throe estacaram de imediato.
- Obrigado, meu senhor.
Xcor meneou a cabeça e sorriu para consigo, pensando que Throe talvez tivesse a oportunidade de eliminar aquele humano. Ou... talvez não.
Contudo, os planos para uma viagem estavam, deveras, em andamento.
Capítulo 9
HOSPITAL ST. FRANCIS
CALDWELL, NOVA IORQUE
Os complexos clínicos eram como puzzles. Salvo pelo facto de as peças não se encaixarem tão bem.
Claro que isso não era mau numa noite como aquelas, pensou Manny enquanto se preparava.
A um certo nível, sentia-se espantado por tudo ter corrido tão bem. Os brutamontes que o tinham levado, e à paciente, estacionaram num dos inúmeros cantos escuros
em torno de St. Francis, e depois Manny ligara ao chefe da segurança, dizendo que tinha uma paciente VIP a chegar pelas traseiras, que exigia discrição absoluta.
A chamada seguinte fora para a sua equipa de enfermagem e a desculpa fora a mesma: paciente especial a chegar. Preparem a SO do segundo andar ao fundo e os técnicos
de RMi que estejam prontos para uma rapidinha. O derradeiro telefonema tinha sido para o transporte, e vejam só, num abrir e fechar de olhos já lá estavam com uma
maca.
No espaço de quinze minutos depois do RMi, a paciente encontrava-se na SO VII, a ser preparada.
- Então e quem é ela?
A pergunta fora colocada pela enfermeira-chefe, algo pelo qual Manny estivera à espera.
- Uma cavaleira olímpica. Da Europa.
- Bem, está explicado. Ela estava a resmungar qualquer coisa e ninguém percebeu a língua. - A mulher folheou alguns papéis, os quais ele faria desaparecer assim
que aquilo estivesse despachado. - Para quê tanto secretismo?
- Ela pertence à realeza. - E não estava a fugir à verdade. Durante a viagem passara o tempo todo a admirar-lhe as feições reais.
Estúpido. Grande simplório.
A enfermeira-chefe olhou para o corredor, com um ar desconfiado.
- Isso explica o destacamento de segurança... até parece que somos ladrões de bancos.
Manny recuou ligeiramente para espreitar enquanto esfregava as unhas com uma escova rígida. Os três indivíduos que o tinham acompanhado estavam no corredor, a três
metros dali, os corpos enormes vestidos de preto com muitas saliências.
Armas, sem dúvida. Talvez facas. Possivelmente um lança-chamas ou dois, vá-se lá saber.
Quase que servia para eliminar a ideia que se tinha de que o governo estava cheio de burocratas.
- Onde estão as autorizações? - quis saber a enfermeira. - Não há nada no sistema.
- Sou eu que as tenho - mentiu. - Tem os RMi?
- Estão no ecrã... mas o técnico diz que têm erros. Ele gostava de repetir o exame.
- Deixe-me ver primeiro.
- De certeza que quer ficar como responsável por isto? Ela não tem dinheiro?
- Tem de permanecer anónima, e depois reembolsam-me. - Pelo menos assim imaginava - embora não estivesse preocupado com isso.
Manny enxaguou o castanho do Betadine das mãos e dos antebraços e sacudiu-os. Mantendo os braços levantados, abriu a porta giratória com as costas e entrou na SO.
Estavam na sala duas enfermeiras e um anestesista, com aquelas a confirmar os instrumentos dispostos sobre os tecidos cirúrgicos azuis e este a calibrar os gases
e o equipamento que seriam usados para manter a paciente adormecida. O ar estava fresco para desencorajar as hemorragias e cheirava a adstringente, e o equipamento
informático gemia baixinho a par das luzes do teto e do holofote de operação.
Manny dirigiu-se aos monitores - e assim que viu o RMi, sentiu o coração a dar um salto. Analisou lentamente as imagens digitais com todo o cuidado até já não o
suportar mais.
Olhando para as janelas nas portas giratórias, voltou a avaliar os três homens de pé no exterior da sala, cujos rostos duros e olhos frios estavam colados a si.
Não eram humanos.
Olhou para a paciente. E ela também não.
Manny voltou ao RMi e aproximou-se do ecrã, como se isso lhe fosse resolver, como por magia, todas as anomalias que estava a ver.
Meu, e pensava ele que o coração de seis câmaras do idiota de pera era estranho.
Quando as portas duplas se abriram e fecharam, Manny fechou os olhos e respirou fundo. Depois virou-se e enfrentou a segunda médica que entrara na sala.
Jane estava equipada de tal maneira que só deixava ver os olhos verdes atrás da máscara cirúrgica, e ele justificara a presença dela dizendo à equipa que se tratava
da médica privada da paciente - o que não era mentira. Guardou para si próprio o pormenor de que ela conhecia todos os presentes tão bem como ele. E ela também não
o referiu.
Quando os olhos dela se fixaram nos dele sem qualquer apologia, Manny teve vontade de gritar, mas tinha um trabalho a realizar. Voltando a concentrar-se, afastou
tudo o que não fosse imediatamente útil e analisou os danos nas vértebras para programar a sua intervenção.
Via a zona que voltara a fundir-se na sequência de uma fratura. A coluna mostrava um padrão adorável de zonas ósseas magnificamente dispostas entre discos escuros...
salvo a T6 e a T7. O que explicava a paralisia.
Não conseguia ver se a espinal-medula estava comprimida ou completamente separada, e só teria absoluta noção dos danos durante a operação. Mas não parecia bom. As
compressões espinais eram mortíferas para aquele túnel delicado de nervos, podendo haver danos irreparáveis numa questão de minutos ou de horas. Porquê a pressa
em encontrá-lo?, interrogava-se.
Olhou para Jane.
- Há quantas semanas é que ela se lesionou?
- Foi há... quatro horas - respondeu ela num tom tão baixo que mais ninguém o poderia ter ouvido.
Manny recuou.
- O quê?!
- Quatro horas.
- E não houve lesões anteriores?
- Não.
- Tenho de falar contigo. Em privado. Espera um pouco, Max - disse ao anestesista, ao levá-la para um canto da sala.
- Claro, doutor Manello.
- O que é que se passa aqui? - sibilou Manny, encostando-se a Jane.
- O RMi fala por si.
- Aquilo não é humano, pois não? - Jane limitou-se a fitá-lo, com os olhos fixos nos dele. - Onde é que tu te meteste, Jane? - indagou, entredentes. - O que é que
me estás a fazer?
- Escuta com atenção, Manny, e acredita em tudo o que te vou dizer. Vais salvar-lhe a vida e, por acréscimo, a minha. Aquela é a irmã do meu marido e se ele... -
A voz fraquejou-lhe. - Se ele a perder antes de ter oportunidade de a conhecer, isso vai matá-lo. Por favor, para de fazer perguntas às quais não posso responder
e faz aquilo que melhor sabes fazer. Sei que não é justo e faria tudo para mudar isso... salvo perdê-la.
De repente pensou nas dores de cabeça lancinantes de que padecera ao longo do último ano, sempre que pensara nos dias anteriores ao acidente de carro. A dor voltava
sempre que a via... passando em seguida e deixando-lhe as camadas de recordações que sentira, mas que fora incapaz de evocar.
- Vais fazer com que não me lembre de nada - concluiu Manny. - E vais fazer o mesmo com eles. Não vais? - Abanou a cabeça, consciente de que tudo aquilo era muito
mais complicado do que uma simples questão de espiões do Governo americano. Outra espécie? A coexistir com os humanos?
Mas ela não ia ser sincera, pois não?
- Raios te partam, Jane. A sério.
Quando fez menção de se virar, Jane segurou-lhe o braço.
- Fico em dívida. Se fizeres isto por mim, fico em dívida para contigo.
- Boa. Então nunca mais me procures.
Deixou-a ao canto e dirigiu-se à paciente, que fora voltada de barriga para baixo. Inclinou-se ao lado dela e disse:
- É o... - Por algum motivo queria usar o nome próprio com ela, mas ao pensar no resto da equipa, decidiu manter o tratamento estritamente profissional. - É o doutor
Manello. Vamos começar agora, está bem? Não vais sentir nada, prometo.
- Obrigada, curandeiro - disse ela debilmente, passado um instante.
Fechou os olhos ao ouvir a voz dela. Cristo, o efeito sobre ele daquelas duas palavras na boca desta mulher era verdadeiramente épico. Mas ao certo, o que o atraía
nela? Quem era ela?
Uma imagem das presas do irmão percorreu-lhe a mente, e foi obrigado a ignorá-la. Depois da operação teria tempo para se armar em Vincent Price.
Praguejando baixinho, afagou-lhe o ombro e fez sinal ao anestesista.
Estava na hora do espetáculo.
As costas da paciente tinham sido desinfetadas pelas enfermeiras e Manny apalpou-lhe a coluna com os dedos, enquanto as drogas faziam efeito e a adormeciam.
- Alergias? - perguntou a Jane, mesmo estando a repetir-se.
- Nenhuma.
- Alguma questão específica que precisemos de saber enquanto ela estiver inconsciente?
- Não.
- Muito bem. - Estendeu a mão e aproximou o microscópio, mas ainda não diretamente por cima dela.
Primeiro tinha de a abrir.
- Quer música? - perguntou a enfermeira.
- Não. Não quero distrações neste caso. - Ia operar como se a vida dele estivesse em jogo, e não só por ter sido ameaçado pelo irmão daquela mulher.
Embora isso não fizesse sentido, perdê-la... fosse lá quem ela fosse... seria uma tragédia que não sabia como descrever.
Capítulo 10
A primeira coisa que Payne viu quando acordou foi um par de mãos masculinas. Era óbvio que estava sentada direita num tipo de mecanismo que lhe apoiava a cabeça
e o pescoço. E as mãos em questão estavam na beira da cama a seu lado. Eram belas e capazes, com as unhas cortadas até ao sabugo e seguravam documentos, que folheavam
calmamente.
O macho humano a que pertenciam franzia o cenho enquanto lia e servia-se de um utensílio de escrita para tomar notas ocasionais. Tinha a barba mais cerrada do que
da última vez que a vira, o que a fez imaginar que se teriam passado algumas horas.
O curandeiro parecia tão exausto como ela.
À medida que foi ficando mais consciente, teve noção de um apito discreto ao lado da cabeça... e de uma dor ténue nas costas. Imaginava que lhe tivessem dado poções
para adormecer a sensação, mas não queria isso. Era melhor estar alerta - naquele momento sentia-se como se estivesse envolta por um casulo macio, algo que lhe parecia
aterrorizador.
Olhou em volta, ainda incapaz de falar. Ela e o macho humano estavam sozinhos, e não fora naquela sala que se encontrara antes. Lá fora, uma série de vozes com aquela
estranha pronúncia humana competiam por se fazerem destacar contra o som constante de passos.
Seria Jane? A Irmandade...
- Ajuda-me...
O curandeiro ficou de imediato alerta e atirou os papéis para cima de uma mesa. Levantou-se sem demoras e inclinou-se sobre ela, com o cheiro dele a invadir-lhe
de forma gloriosa as narinas.
- Então? - perguntou ele.
- Não sinto... nada...
Segurou-lhe na mão e, quando ela não sentiu nem calor nem o seu toque, ficou absolutamente assoberbada. Mas ele estava ali.
- Shh... não, não, estás bem. São os analgésicos. Estás bem e eu estou aqui. Shh...
A voz dele acalmou-a tanto como o faria uma mão que a acariciasse.
- Diz-me - exigiu ela, num tom aflautado. - O que... aconteceu?
- As coisas correram satisfatoriamente na SO - garantiu ele, lentamente. - Restabeleci as vértebras e a espinal-medula não estava completamente comprometida.
Payne endireitou os ombros e tentou acomodar a cabeça pesada e que lhe doía, mas o que a envolvia manteve-a imóvel.
- O teu tom... diz mais do que as tuas palavras.
Não obteve uma resposta imediata. Ele limitou-se a continuar a acalmá-la com as mãos que ela não sentia. Mas os olhos conversaram com os dela - e as notícias não
eram boas.
- Diz-me - pediu-lhe. - Mereço saber.
- Não foi um fracasso, mas não sei qual será o resultado. O tempo vai ser a melhor resposta.
Payne fechou os olhos por um instante, mas a escuridão assustou-a. Abrindo as pálpebras, agarrou-se à imagem do seu curandeiro... e detestou a culpa que viu no rosto
atraente e carregado.
- A culpa não é tua - disse, num tom arrastado. - É o que teve de ser.
Pelo menos disso ela tinha a certeza. Ele tentara salvá-la e dado o seu melhor. A frustração era óbvia na sua expressão.
- Como te chamas? - perguntou Manny. - Não sei o teu nome.
- Payne. Chamo-me Payne.
Quando ele voltou a franzir o sobrolho, Payne ficou com a certeza de que a nomenclatura não lhe agradava e deu consigo a desejar ter vindo ao mundo com outras sílabas.
Mas havia outro motivo para o desagrado dele, não era verdade? Vira o interior do seu corpo pelo que sabia que era diferente dele.
Sabia que ela era uma «outra».
- Aquilo que imaginas ser verdade - murmurou Payne -, não está errado. - O curandeiro inspirou fundo e pareceu suster o fôlego durante todo um dia. - O que corre
pela tua mente? Diz-mo.
Ele esboçou um sorriso, e era adorável. Tão adorável. Mas era uma pena que não contivesse humor.
- Neste momento... - Passou a mão pelo cabelo grosso e escuro. - Estou a pensar se devo ignorar tudo e fingir que não sei o que se passa. Ou se devo encarar a realidade.
- A realidade - disse Payne. - Não posso dar-me ao luxo de um momento de falsidade.
- É justo. - Fixou os olhos nos dela. - Acho que tu...
A porta da sala entreabriu-se e uma figura oculta pelas vestes espreitou. A julgar pelo aroma delicado e agradável, tratava-se de Jane, escondida por baixo dos trajes
e da máscara azul.
- Está quase na hora - informou.
A expressão do curandeiro de Payne tornou-se absolutamente vulcânica.
- Não concordo com isto.
Jane entrou e fechou-os a todos lá dentro.
- Payne, estás acordada.
- Com efeito. - Tentou sorrir e esperou que os lábios se tivessem mexido. - É verdade.
O curandeiro colocou-se entre elas.
- Não a podes deslocar. É demasiado cedo para isso.
Payne olhou para as cortinas que iam desde o teto ao chão. Tinha quase a certeza de que havia janelas de vidro do outro lado do tecido claro e sabia que se fosse
esse o caso, cada raio de sol entraria naquele espaço assim que a alvorada chegasse.
O coração começou a bater com força e sentia-o atrás das costelas.
- Tenho de ir. Quanto tempo?
Jane olhou para o relógio que tinha no pulso.
- Cerca de uma hora. E o Wrath está a caminho daqui, o que vai ajudar.
Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Tinha de se alimentar.
Como o curandeiro parecia estar a fazer menção de falar, ela atalhou-o e dirigiu-se à shellan do seu gémeo.
- Eu lidarei com esta situação. Deixa-nos, por favor.
Jane assentiu e saiu, embora de certeza tivesse ficado por perto.
O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que o gesto lhe mudasse a perceção... ou talvez a realidade em que se encontravam.
- Que nome gostarias que eu tivesse? - perguntou ela baixinho.
O curandeiro baixou as mãos e olhou-a por um instante.
- Que se lixe o nome. Podes ser sincera comigo?
Por sua fé, duvidava que lhe pudesse fazer tal promessa. Embora a técnica de reprimir recordações fosse simples, não sabia ao certo quais as repercussões de tal
gesto, e receava que quanto mais ele soubesse, mais houvesse a esconder e, logo, maiores os danos que poderiam ser provocados.
- O que desejas saber?
- Quem és tu?
Devolveu os olhos às cortinas fechadas. Por mais resguardada que tivesse passado a vida, tinha plena consciência dos mitos que a raça humana criara em torno da sua
espécie. Mortos-vivos. Assassinos de inocentes. Sem alma e sem moral.
Não era de todo algo de que se gabar. Ou algo com o qual desperdiçar os derradeiros momentos preciosos.
- Não posso ser exposta à luz do sol. - Devolveu-lhe o olhar. - Curo-me muito mais depressa do que tu. E tenho de me alimentar antes de ser deslocada... depois disso,
estarei estável o suficiente para viajar.
Quando ele olhou para as mãos, Payne interrogou-se se estaria arrependido de a ter operado.
E o silêncio que se instalou entre eles tornou-se tão traiçoeiro como um campo minado, e igualmente arriscado de atravessar. Mesmo assim, Payne ouviu-se a dizer:
- Existe um nome para aquilo que sou.
- Pois. E não o quero dizer em voz alta.
Payne sentiu uma dor bizarra no peito e com um esforço supremo, levantou o antebraço até que a mão assentou sobre a dor. Era estranho que tivesse o corpo adormecido,
mas que sentisse aquilo...
De repente, a imagem dele ficou enevoada.
A expressão dele suavizou-se de imediato e levou a mão para lhe afagar a face.
- Porque estás a chorar?
- Estou?
Assentiu e ergueu o indicador para que ela o pudesse ver. No dedo cintilava uma única gota de cristal.
- Tens dores?
- Sim. - Pestanejando rapidamente, tentou voltar a focá-lo, mas fracassou. - Estas lágrimas são um tudo-nada irritantes.
O som da gargalhada dele e a visão dos dentes brancos e direitos elevaram-na, mesmo continuando confinada à cama.
- Quer dizer que não és mulher de chorar - murmurou ele.
- Nunca.
Ele chegou-se para o lado e apresentou um lenço de papel quadrado de que se serviu para secar o que lhe escorria pelas faces.
- Porquê as lágrimas?
Payne precisou de algum tempo para o dizer. E depois teve de o fazer:
- Vampira.
Ele recostou-se na cadeira ao lado dela e demorou-se a dobrar o quadrado e depois a deitá-lo para um balde de lixo atarracado.
- Deve ter sido por isso que a Jane desapareceu há um ano, não? - comentou.
- Não pareces chocado.
- Sabia que havia qualquer coisa de importante por trás disso. - Encolheu os ombros. - Vi o teu RMi. Estive dentro de ti.
Por alguma razão, a frase excitou-a.
- Sim. Pois estiveste.
- Mas és semelhante quanto baste. A tua coluna não era assim tão diferente que eu não soubesse o que estava a fazer. Tivemos sorte.
A bem da verdade, ela não partilhava essa opinião. Depois de anos sem qualquer interesse por machos, sentia-se misticamente atraída por aquele, algo que gostaria
de explorar, caso não se encontrassem naquela posição.
Mas tal como aprendera havia muito, o destino raramente se preocupava com aquilo que ela queria.
- Bem - declarou ele -, vais tratar de mim, certo? Vais fazer com que tudo isto desapareça. - Acenou com o braço num gesto vago. - Não me vou lembrar de nada disto.
Tal como aconteceu quando o teu irmão cá esteve, há um ano.
- É possível que venhas a ter sonhos. Nada mais.
- É assim que a tua raça se tem conseguido esconder?
- Sim.
Ele assentiu e olhou em volta.
- Vais fazê-lo agora?
Queria mais tempo com ele, mas não havia motivo para que a visse a alimentar-se de Wrath.
- Em breve.
Ele olhou para a porta e depois fitou-a.
- Fazes-me um favor?
- Mas é claro. Seria um prazer servir-te.
Uma das sobrancelhas dele ergueu-se e Payne podia jurar que o corpo dele libertara mais daquele cheiro delicioso. Mas depois ele ficou absolutamente sério.
- Diz à Jane... que percebo. Compreendo o motivo que a levou a fazer o que fez.
- Ela ama o meu irmão.
- Pois, eu vi. Lá... onde quer que tenhamos estado. Diz-lhe que está tudo bem entre eu e ela. Afinal de contas, não escolhemos por quem nos apaixonamos.
Sim, pensou Payne. Sim, era uma grande verdade.
- Já estiveste apaixonada? - perguntou ele.
Como os humanos não liam as mentes, Payne apercebeu-se de que falara em voz alta.
- Ah... não. Eu... não. Nunca estive.
Embora mesmo aquele breve tempo passado com o seu curandeiro fosse instrutivo. Ele fascinava-a, desde a forma como se movia até à maneira como enchia a bata branca
e os preparos azuis, ao seu cheiro e à voz.
- És acasalado? - perguntou, temendo a resposta dele.
Ele soltou uma gargalhada breve e abrupta.
- Cristo, não.
O fôlego deixou-a num suspiro de alívio, mesmo sendo estranho que o estado civil dele fosse assim tão importante. Depois seguiu-se o silêncio.
Ah, a passagem do tempo. Que lamentável. E o que lhe deveria dizer naqueles derradeiros minutos que tinham?
- Obrigada por cuidares de mim.
- O prazer foi meu. Espero que recuperes bem. - Fitou-a, como se tentasse memorizar-lhe as feições, e ela quis dizer-lhe que parasse de o fazer. - Estarei aqui sempre
que precisares, está bem? Se precisares que te ajude... vem à minha procura. - O curandeiro pegou num pequeno cartão rígido, onde escreveu qualquer coisa. - É o
meu telemóvel. Liga-me.
Chegou-se à frente e enfiou o cartão na mão fraca que lhe repousava sobre o coração. Quando segurou o que lhe fora dado, Payne pensou nas repercussões. E nas implicações.
E nas complicações.
Resmungando, tentou virar-se.
O curandeiro levantou-se de imediato.
- Precisas de mudar de posição?
- O meu cabelo.
- Está preso?
- Não... por favor, desfaz-me a trança.
Manny imobilizou-se e fitou o rosto da paciente. Sem saber porquê, a ideia de soltar aquele cabelo farto parecia muito como despi-la, e o seu impulso sexual despertou
logo.
Cristo... estava com a porra de uma ereção. Mesmo por baixo da bata cirúrgica.
Estás a ver, pensou, é a imprevisibilidade da lei da atração a funcionar neste momento. Candace Hanson oferecera-se para lhe fazer um broche e ele mostrara-se tão
interessado como em usar um vestido. Mas aquela... fêmea?... mulher?... pedia-lhe para lhe soltar a trança e a ele só lhe faltava arfar.
Vampira.
Na sua mente, ouviu a palavra a ser dita na voz e na pronúncia dela... e o que mais o chocava era a sua falta de reação à notícia. Pois, se pensasse nas implicações,
o seu processador central ia começar a soltar faúlhas e fumo. As presas já não eram exclusivas do Halloween e dos filmes de terror?
E, contudo, o bizarro ali parecia vulgar.
Isso e a atração sexual que estava a sentir.
- O meu cabelo? - lembrou ela.
- Pois... - murmurou Manny. - Eu trato disso.
As mãos dele não tremiam de todo. Não. Nada.
Abanavam como varas verdes.
A extremidade da trança estava presa com um pedaço do tecido mais macio que alguma vez sentira. Não era algodão, não era seda... era qualquer coisa que nunca vira,
e os seus dedos ágeis de cirurgião pareceram desastrados e demasiado ásperos enquanto tentava desatar o nó. E o cabelo dela... Louvado fosse Deus, aquele cabelo
preto ondulado fazia com que o tecido parecesse uma ortiga, em comparação.
Centímetro a centímetro, Manny foi separando a trança tripartida, com as ondas a um tempo escorregadias e presas. E como ele era um sacana, só conseguia pensar na
coisa a tombar-lhe sobre o peito nu... os abdominais... o membro...
- Já chega - disse ela.
Podes crer que já chegava. Voltando a prender o depravado interior na terra da conversação educada, obrigou as mãos a parar. Mesmo meio desfeita, a revelação foi
espantosa. Se já era linda com o cabelo todo preso, ficava absolutamente resplandecente com aquelas ondas a envolverem-lhe a cintura.
- Volta a entrançá-lo, por favor - indicou ela, estendendo o cartão na mão frouxa. - Assim, ninguém o vai encontrar.
Manny pestanejou e pensou, Pois, nem pensar que o Peras Odioso fosse gostar que a irmã tocasse no cirurgião...
Tocar, não, corrigiu-se.
Bem, talvez tocar um pouco. Tal como ele podia tratar dela. Aaa... tocar-lhe.
É melhor calares-te, Manello, mesmo que não estejas a falar alto.
- Brilhante - disse. - Que grande inteligência.
Isso fê-la sorrir, algo que merecia ser arquivado em Santa Mãe. Aqueles incisivos eram afiados, brancos e compridos... e concebidos para atacar o pescoço.
Sentiu um orgasmo a titilar-lhe a ponta do membro excitado...
E nesse momento, ficou com a expressão carregada.
Oh...
- Ah... consegues ler mentes?
- Quando estiver mais forte, sim. Mas o teu cheiro ficou mais intenso.
Portanto, ela estava a fazê-lo suar e sabia-o.
Só que... Manny sentia que ela não fazia ideia do porquê, e isso era tão inebriante como tudo o resto nela. Não havia maldade nenhuma no olhar que ela lhe lançava.
Claro que poderia não estar a pensar sexualmente nele por ser humano. E já agora, ela tinha acabado de sair da SO, o que não eram propriamente umas férias de verão
na praia.
Manny interrompeu a discussão interior e dobrou o cartão-de-visita ao meio. A boa notícia em relação a todo aquele cabelo era que passado um momento, a informação
sobre ele estava camuflada no meio da trança. Quando acabou, voltou a enrolar o tecido e fez um laço; depois dispôs cuidadosamente a trança ao lado dela na cama.
- Espero que o uses - disse. - A sério.
O sorriso dela foi tão triste que Manny percebeu que não tinha grandes hipóteses, mas pelo amor de Deus, era óbvio que o contacto entre as duas espécies não fazia
parte das prioridades deles, caso contrário, o termo banco de sangue teria conotações absolutamente díspares.
Mas pelo menos ela tinha os seus dados.
- O que achas que vai acontecer? - indagou Payne, acenando com a cabeça na direção das pernas.
Os olhos dele seguiram a deixa.
- Não sei. É óbvio que as regras contigo são diferentes... portanto, tudo é possível.
- Olha para mim - pediu ela. - Por favor.
Manny esboçou um sorriso.
- Nunca pensei dizê-lo... mas, não quero. - Esforçou-se, mas ainda não era capaz de desviar o olhar para o rosto dela. - Promete-me uma coisa.
- O que posso conceder?
- Telefona-me, se puderes.
- Assim farei.
Contudo, ela não falava a sério. Não tinha a certeza de como o sabia, mas estava mais do que certo. Mas então, para que estaria ela a guardar o cartão? Não fazia
ideia.
Olhou para a porta e pensou em Jane. Devia pedir-lhe desculpas por ter sido tão chato em relação a tudo aquilo.
- Antes de o fazer, tenho de...
- Gostava de poder deixar algo meu. Contigo.
Manny deu meia volta e fixou-lhe os olhos.
- Qualquer coisa. Quero tudo o que me possas dar.
As palavras não passavam de um resmungo, e Manny teve noção de que estava a falar num tom sexual - e isso transformava-o em que tipo de porco?
- Exceto alguma coisa tangível... - Ela abanou a cabeça. - Ser-te-ia prejudicial.
Manny fitou aquele rosto forte e belo... e parou nos lábios.
- Tenho uma ideia.
- O que gostarias? - A inocência naquele olhar fê-lo deter-se. E incendiou-lhe a libido como uma fogueira.
Não que precisasse de ajuda.
- Que idade tens? - perguntou de repente. Talvez ele fosse tarado, mas não fazia nada que não fosse legal. Era verdade que ela tinha a constituição de um adulto,
mas qual seria o ritmo de maturidade deles...
- Tenho trezentos e cinco anos.
Silêncio. E mais uma por via das dúvidas. De certeza que já é maior, pensou Manny.
- Quer dizer que és núbil?
- Sou. Mas, contudo, não tenho macho.
Sempre havia um Deus.
- Nesse caso, sei o que quero. - A ela. Nua. Em cima dele. Mas iria contentar-se com muito, muito menos.
- O quê?
- Um beijo. - Levantou as mãos. - Não tem de ser uma coisa sensual e profunda. Apenas... um beijo.
À falta de resposta, Manny teve vontade de se bater. E pensou seriamente em entregar-se ao irmão dela para a tareia que merecia.
- Mostras-me como? - murmurou ela.
- A tua raça não... se beija? - Só Deus sabia o que faziam. Mas se houvesse alguma verdade nas lendas, o sexo estava em grande destaque.
- Beija-se. Mas nunca o fiz... Estás bem? - Estendeu a mão. - Curandeiro?
Manny abriu os olhos... que obviamente se tinham cerrado.
- Deixa-me perguntar-te uma coisa. Alguma vez estiveste com um homem?
- Nunca com um humano. E... também nunca estive com um macho.
O membro de Manny praticamente rebentou. O que era de loucos. Nunca se importara se uma mulher já estivera com alguém... ou não. Na verdade, as miúdas com quem normalmente
andava tinham perdido a virgindade ainda adolescentes - e nunca pensava duas vezes.
Os olhos claríssimos de Payne fitaram-no.
- O teu odor ficou ainda mais forte. - Provavelmente porque ele começara a transpirar numa tentativa de conter o orgasmo. - Gosto dele - acrescentou, numa voz mais
grave.
Houve um momento tenso entre eles, algo que ele nem queria acreditar viria a ser apagado por um truque da mente sobre a matéria. E depois os lábios dela entreabriram-se
e a língua cor-de-rosa surgiu para lhe humedecer a boca... como se estivesse a imaginar alguma coisa que a deixasse sedenta.
- Acho que te quero provar - disse-lhe.
Pois. Que se danassem os beijos. Se ela o quisesse comer cru, estava disposto a deixar. E isso foi antes de ter visto as pontas das presas brancas baixarem ainda
mais.
Manny sentia-se a arquejar, mas não ouvia nada com o sangue a ribombar-lhe nos ouvidos. Que raios, estava prestes a perder o controlo - e não era metaforicamente.
Estava literalmente a um passo de lhe arrancar os cobertores de cima do corpo e de a montar. Mesmo estando ela imobilizada. E nunca tendo estado com ninguém. E mesmo
não sendo da raça dele.
Precisou de toda a força de vontade para se erguer e recuar.
Manny pigarreou duas vezes.
- Acho que é melhor adiarmos.
- Adiarmos?
- Fica para depois.
O rosto dela mudou instantaneamente, com as feições adoráveis a endurecerem e a ocultarem a frágil paixão que deixara transparecer.
- Mas... é claro. Com certeza.
Detestava ter de a magoar, mas não sabia como lhe explicar o quanto a queria sem soar pornográfico. E pelo amor de Deus, ela era virgem. Merecia melhor do que ele.
Olhou-a uma derradeira vez e ordenou ao cérebro que não a esquecesse. De alguma forma, precisava de não a perder.
- Faz o que tens a fazer. Agora.
Os olhos dela percorreram-no e fizeram uma pausa à altura das ancas. Quando Manny se apercebeu de que ela lhe estava a olhar para o sexo, que estava mais do que
em sentido, ocultou discretamente com as mãos o que se estava a passar por baixo da bata.
A voz assumiu-lhe um tom mais rouco.
- Estás a dar cabo de mim. Não respondo por mim aqui contigo. Por isso tens de o fazer. Por favor, faz...
Capítulo 11
Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.
A palavra gatilho percorreu o crânio de V em todas as línguas de que se lembrou, com o cérebro a incentivar o vocabulário só pelo gozo - ou era isso, ou a coisa
canibalizava-se a ela própria.
Enquanto dava largas ao seu Google Translate, os pés levavam-no a percorrer vezes sem conta o apartamento de cobertura no Commodore, com o caminhar incessante a
transformar a casa no equivalente a uma roda de hamster multimilionária.
Paredes pretas. Teto preto. Soalho preto. Nunca lá ia para ter um panorama noturno de Caldwell.
Pela cozinha, pela sala, pelo quarto e de volta ao início.
Uma vez. E outra.
À luz de velas pretas.
Comprara o condomínio há cerca de cinco anos, quando o edifício ainda estava a ser construído. Assim que o esqueleto se erguera junto ao rio, decidira-se a adquirir
metade do topo do arranha-céus, mas não para morar - sempre tivera um local seu para além do sítio onde dormia. Mesmo antes de Wrath ter instalado de vez a Irmandade
na antiga mansão de Darius, V já tinha o hábito de manter o lugar onde passava o dia e guardava as armas separado das suas... outras atividades.
Sentindo-se como se sentia naquela noite, o facto de lá ter ido era, a um tempo, lógico e ridículo.
Ao longo das décadas e dos séculos desenvolvera não só uma reputação no seio da raça, mas também uma reserva de machos e de fêmeas que precisavam daquilo que ele
tinha para oferecer. E assim que se apoderara daquele apartamento, começara a levá-los para aquele buraco negro para um tipo muito específico de sexo.
Ali derramava-lhes o sangue.
E fazia-os gritar e chorar.
E fodia-os ou mandava-os foder.
V fez uma pausa junto à mesa de trabalho, com a velha madeira marcada não só pelas ferramentas do seu ofício, mas também por sangue, orgasmos e cera.
Por vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha ido era regressar ao ponto de partida.
Estendeu a mão enluvada e agarrou as correias de cabedal grosso que usava para manter os subordinados onde os queria.
Tinha usado, corrigiu-se. Mais do que passado. Agora que tinha Jane, já não fazia aquelas coisas - já não sentia o impulso.
Olhou para a parede e apreciou a sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Grampos, mordaças e lâminas. Açoites. Mais correntes.
As folias que praticava - tinha praticado - não eram adequadas a pessoas sensíveis, iniciantes ou meros curiosos. Para os submissos mais duros, havia uma linha muito
ténue entre a libertação sexual e a morte - ambas atraentes, esta era a última jogada. Literalmente. E ele era o derradeiro mestre, capaz de levar os outros aonde
precisavam de ir... e sempre um dedo mais além.
Razão pela qual vinham por ele.
Tinham vindo por ele...
Até ele, corrigiu-se.
Porra.
E era por isso que a sua relação com Jane fora uma revelação. Com ela na sua vida, não sentira a necessidade ardente de nada daquilo. Nem do anonimato relativo,
nem do controlo que exercia sobre os submissos, nem da dor que gostava de infligir a si próprio, nem da sensação de poder e das libertações pujantes.
Depois de tanto tempo, imaginara que se tivesse transformado.
Erro.
Aquele interruptor interno ainda o acompanhava e tinha sido ligado.
Claro que o impulso de cometer matricídio era de um stresse profundo - quando não se podia fazer nada quanto a isso.
V chegou-se à frente e passou com os dedos pelo chicote de cabedal com bolas de aço inoxidável presas às pontas. Quando as várias fiadas foram caindo entre os dedos
da mão sem luva, teve vontade de vomitar... pois agora que ali estava, daria tudo por um pouco do que já tivera...
Não, espera. Reformulou a ideia enquanto fitava a mesa. Queria ser o que em tempos tivera. Antes de Jane, fizera sexo como Dom porque era a única maneira de se sentir
suficientemente seguro para chegar ao fim do ato - e parte dele sempre se interrogara, especialmente quando fazia estalar o chicote, por assim dizer, por que quereriam
os submissos aquilo que ele lhes dera.
Agora já fazia uma ideia mais acertada. Aquilo que andava às voltas por baixo da sua pele interior era tão tóxico e violento que precisava de uma válvula de escape
que fosse aberta em si próprio...
Dirigiu-se a uma das velas pretas sem ter noção de que as botas percorriam o soalho.
E depois tinha-a na mão antes mesmo de saber que a estava a agarrar.
O desejo inflamou a vela... e depois inclinou a chama na direção do peito, fazendo a cera preta quente cair-lhe na clavícula e escorrer por baixo da camisola preta.
Fechando os olhos, deixou a cabeça inclinar-se para trás ao mesmo tempo que sugava o ar entre as presas.
Mais cera na pele nua. Mais dor.
Enquanto endurecia, metade de si entregara-se ao que fazia e a outra metade sentia-se pior do que um esquizofrénico. Mas a mão enluvada não tinha problemas em lidar
com uma personalidade dividida. Dirigiu-se aos botões das calças e soltou o pénis.
À luz da chama, viu-se a baixar a vela e a segurá-la sobre a ereção... e depois a inclinar o pavio aceso na direção do soalho.
Uma lágrima negra libertou-se da fonte de calor e iniciou uma queda livre...
- Porra...
Quando as pálpebras afrouxaram o suficiente para as abrir, olhou para baixo e viu a cera endurecida na orla da cabeça do membro, com uma pequena linha a indicar
o caminho percorrido até cair.
Desta vez gemeu no fundo da garganta quando baixou a extremidade da vela - pois sabia o que se seguiria.
Mais gemidos. Mais cera. Uma praga em voz alta, seguida por mais um silvo.
Não havia necessidade de se tornar pneumático. A dor bastava, com o pingar ritmado sobre o pénis a lançar-lhe choques elétricos até aos testículos e aos músculos
das coxas e do traseiro. Deslocava periodicamente a chama ao longo do membro para obter zonas de carne limpas, com a ereção a saltar sempre que era atingida... até
que lhe bastou de preliminares.
Levou a mão livre abaixo do escroto e colocou o sexo na vertical.
A cera acertou em cheio no lugar ideal e a agonia foi tão intensa que quase tombou - mas foi o orgasmo que lhe salvou as pernas de ficarem bambas, com a potência
da libertação a deixá-lo hirto enquanto se vinha com força.
Cera preta por todo o lado.
Esperma em cima da mão e das roupas.
Tal como nos velhos tempos... salvo um pormenor: só sentia um grande vazio. Ah, espera. Também fora assim NVT. A diferença era que na altura, não sabia que havia
algo mais à sua espera. Algo como Jane...
O som do telefone a tocar fê-lo sentir-se como se tivesse sido alvejado na cabeça, e mesmo não sendo muito alto, o silêncio estilhaçou-se como um espelho, com os
fragmentos a mostrar-lhe uma imagem sua que não queria ver. Mesmo estando bem acasalado, encontrava-se naquela câmara de perversão, a masturbar-se.
Puxou a mão atrás e arremessou a vela para o outro lado da sala, com a chama a extinguir-se em pleno voo - o único motivo para que a casa não se incendiasse.
E isso antes de ver quem lhe estava a ligar.
A sua Jane. Sem dúvida com informações do hospital. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria à porta da SO, à espera que a sua irmã despertasse, a apoiar a sua
fêmea. Em vez disso, ele fora expulso por estar descontrolado e dirigira-se ali para passar algum tempo de qualidade com a cera preta e a sua ereção.
Atendeu a chamada enquanto devolvia o membro ainda duro às calças de cabedal.
- Sim.
Pausa. Durante a qual se obrigou a recordar-se de que ela não era capaz de ler mentes, e sentiu-se agradecido por isso. Cristo, o que é que tinha acabado de fazer?
- Estás bem? - perguntou ela.
De todo.
- Sim. Como está a Payne? - Por favor, que não fossem más notícias.
- Ah... ela safou-se. Estamos a caminho do complexo. A operação correu bem e o Wrath alimentou-a. Os sinais vitais estão estáveis e ela parece estar relativamente
confortável, embora não façamos ideia dos resultados a longo prazo.
Vishous fechou os olhos.
- Pelo menos está viva.
E depois seguiu-se muito silêncio, quebrado apenas pelo gemido suave do veículo em que ela se deslocava.
- Pelo menos ultrapassámos o primeiro obstáculo - acabou Jane por dizer -, e a operação correu tão bem quanto possível... o Manny foi brilhante.
V ignorou assisadamente o comentário.
- Algum problema com os funcionários do hospital?
- Nenhum. O Phury fez a sua magia. Mas talvez fosse boa ideia monitorizar os sistemas de registo durante algum tempo, para o caso de nos ter escapado alguém.
- Eu trato disso.
- Quando é que vens para casa?
Vishous teve de cerrar os dentes enquanto abotoava as calças. Dali a uma meia hora estaria profundamente dorido: uma vez nunca lhe chegava. Numa noite normal precisava
de cinco ou seis vezes para conseguir o que queria e, naquele momento, nem perto estava de chegar a essa média.
- Estás na cobertura? - perguntou Jane num tom baixo.
- Sim.
Seguiu-se uma pausa tensa.
- Sozinho?
Bem, a vela era um objeto inanimado.
- Sim.
- Não faz mal, V - murmurou ela. - Tens o direito de pensares no que estás a pensar agora.
- Como sabes o que me vai na mente?
- Por que haveria de ser diferente?
Jesus... que fêmea de valor.
- Eu amo-te.
- Eu sei. E digo o mesmo. - Pausa. - Gostavas... de estar aí com mais alguém?
A dor na voz dela quase foi abafada pela compostura, mas para ele a emoção era mais do que óbvia.
- Isso pertence ao passado, Jane. Confia em mim.
- Eu confio. Implicitamente. Mais depressa cortavas fora a tua mão boa.
Então porque é que perguntaste, pensou ele, enquanto cerrava os olhos e baixava a cabeça. Pois, ela conhecia-o perfeitamente.
- Cristo... eu não te mereço.
- Mereces, sim. Vem para casa. Vem ver a tua irmã...
- Tinhas razão em querer que eu saísse de lá. Desculpa ter-me armado em idiota.
- Podes ser. É uma situação complicada...
- Jane?
- Sim?
Tentou formar palavras, mas fracassou, voltando o silêncio a interpor-se mais uma vez entre eles. Que raios, por mais que tentasse ordenar frases, descobria que
não havia uma combinação mágica de sílabas que servisse para dizer o que lhe ia na alma.
Claro que talvez não fosse tanto uma questão de vocabulário e mais um caso do que acabara de fazer. Sentia que tinha algo a confessar-lhe, mas não era capaz de o
fazer.
- Vem para casa - atalhou Jane. - Vem vê-la, e se eu não estiver na clínica, procura-me.
- Está bem. Eu vou.
- Vai tudo correr bem, Vishous. E tens de te lembrar de uma coisa.
- Do quê?
- Eu sei com quem me casei. Sei quem tu és. Não há nada que me choque... agora desliga e vem para casa.
Quando se despediu e desligou a chamada, V não tinha a certeza de a poder chocar. Ele próprio se surpreendera nessa noite, e não de uma forma positiva.
Depois de guardar o telefone, enrolou um cigarro e procurou nos bolsos por um isqueiro, antes de se lembrar que deitara fora a porcaria do Bic no centro de treino.
Virou a cabeça e olhou para uma das malditas velas pretas. Sem outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.
Regressar ao complexo foi uma boa ideia. Foi um excelente plano.
Só era pena que isso o fizesse ter vontade de gritar até perder a voz.
Depois de acabar o cigarro pretendia apagar as velas e voltar para casa. A sério que pretendia.
Mas não o fez.
Manny estava a sonhar. Tinha de ser.
Tinha a vaga noção de que se encontrava no gabinete, deitado de barriga para baixo no divã de pele onde compensava regularmente o REM. Como sempre, tinha um conjunto
de batas cirúrgicas enroladas debaixo da cabeça a servirem de almofada e tinha descalçado os Nike.
Tudo uma situação normal.
Mas depois, a sesta distorceu-se... e de repente já não estava sozinho. Estava em cima de uma mulher...
Quando recuou, surpreendido, ela fitou-o com olhos gelados que ferviam.
- Como é que entraste aqui? - perguntou, num tom rouco.
- Estou na tua mente. - Tinha um sotaque estrangeiro sensual como o raio. - Estou dentro de ti.
E depois Manny apercebeu-se de que por baixo do corpo dele, ela estava nua e muito quente - e Cristo, mesmo no seu estado de confusão, ele desejava-a.
Era a única coisa que fazia algum sentido.
- Ensina-me - pediu ela, num tom sombrio, os lábios entreabertos, as ancas a rebolarem por baixo das dele. - Toma-me.
A mão dela procurou entre os dois corpos e encontrou a ereção, esfregando-a e fazendo-o gemer.
- Sem ti estou vazia - disse ela. - Preenche-me. Já.
Com um convite daqueles, nem sequer pensou duas vezes. Procurou e empurrou as calças coxas abaixo e depois...
- Ah... - gemeu, quando o membro duro tocou no íntimo escorregadio da mulher.
Com mais um movimento estaria lá dentro, mas obrigou-se a não a penetrar. Primeiro ia beijá-la e, mais concretamente, ia fazer isso bem, porque... ela nunca tinha
sido beijada...
Por que saberia isso?
O que interessava?
E a boca dela não seria o único sítio onde iria com os lábios.
Afastando-se um pouco, baixou o olhar pelo pescoço comprido dela até à clavícula... e ainda mais baixo - ou pelo menos tentou.
O que era o primeiro indício de que algo não estava bem.
Embora fosse capaz de ver cada pormenor do rosto belo e forte e do longo cabelo preto entrançado, a visão dos seios estava enevoada e assim continuava. Por mais
que se esforçasse, não conseguia ver com clareza. Pouco importava, para ele era perfeita, fosse qual fosse o seu aspeto.
Perfeita para ele.
- Beija-me - sussurrou ela.
As ancas de Manny saltaram ao ouvir-lhe a voz e quando a ereção roçou no mais íntimo dela, a fricção fê-lo gemer. Cristo, senti-la contra ele, com a cabeça do membro
a entreabri-la e a entrar, em busca do ponto mais doce...
- Curandeiro - gemeu ela, enquanto se arqueava, com a língua a surgir e a percorrer o lábio inferior...
Presas.
Aquelas duas pontas brancas eram presas e Manny imobilizou-se. O que estava por baixo dele, à espera, não era humano.
- Ensina-me... toma-me...
Vampira.
Devia ter ficado chocado e aterrorizado. Mas não ficou. Quanto muito, aquilo que ela era fazia-o querer tomá-la com um desespero que o fazia transpirar. E ainda
mais... fazia-o querer marcá-la.
Fosse lá o que isso queria dizer.
- Beija-me, curandeiro... e não pares.
- Eu não paro - gemeu Manny. - Não vou parar nunca.
Quando Manny baixou a cabeça para levar os lábios aos dela, o membro rebentou, com o orgasmo a jorrar dele e a cobrir toda a...
Manny acordou com um arquejo suficientemente alto para acordar os mortos.
E, que porra, estava a vir-se com força, com as ancas a esfregarem-se no sofá enquanto as deliciosas recordações turvas da sua amante virgem o faziam pensar que
ainda tinha as mãos dela na pele. Assim era. Mesmo tendo o sonho claramente terminado, o orgasmo continuou a florescer até se ver obrigado a cerrar os dentes e a
fletir um joelho, com o membro a bombear e a retesar-lhe os músculos fortes das coxas e do peito até não ser capaz de respirar.
Quando tudo terminou, deixou-se cair nas almofadas e esforçou-se por inspirar algum oxigénio, pois tinha a sensação que o segundo assalto teria início em breve.
Os restos do sonho provocavam-no e levavam-no a querer regressar ao momento que não existia, mas que parecia tão real como a consciência em que se encontrava agora.
Tentando aceder aos bancos de memória, procurou os filamentos do lugar onde estivera, trazendo a fêmea outra vez para...
A dor que lhe trespassou as frontes quase o derrubou - se não estivesse na horizontal, era garantido que teria aterrado no chão.
- Pooorra...
A dor era espantosa, como se alguém lhe tivesse batido no crânio com um cano de chumbo, e precisou de algum tempo até ter força para se virar de costas e tentar
sentar-se.
A primeira tentativa para se pôr na vertical não correu bem. A segunda só teve êxito porque firmou os braços de ambos os lados do tronco para se impedir de voltar
a cair. Com a cabeça vazia a estalar sobre os ombros, fitou o tapete oriental e esperou até se achar capaz de chegar à casa de banho e engolir algum Motrin.
Já tivera muitas enxaquecas assim. Imediatamente antes de Jane ter morrido...
Pensar na antiga chefe da traumatologia trouxe-lhe uma nova onda de deem-me-um-tiro-no-meio-dos-olhos.
A respiração compassada e o facto de ter pensado propositadamente em absolutamente nada ajudaram-no a ultrapassar a crise. Quando a agonia chegou ao fim, levantou
a cabeça a medo... para o caso de a mudança mínima de altitude trazer com ela um novo ataque.
O relógio antigo que tinha atrás da secretária marcava quatro e dezasseis.
Quatro da manhã? Mas o que é que ele fizera durante toda a noite desde que saíra do hospital?
Lembrava-se de ter saído de Queens depois de Glory ter despertado e a sua intenção fora regressar a casa. Era óbvio que isso não acontecera e não fazia ideia de
quanto tempo dormira no gabinete. Olhou para a bata cirúrgica e viu gotas de sangue aqui e ali... e os Nike que descalçara tinham as coberturas azuis com as quais
operava sempre. Ao que parecia, tinha operado um paciente...
Um novo clarão de dor atravessou-lhe a mente, levando-o a retesar cada músculo do corpo e a esforçar-se por retomar o controlo. Sabendo que o biofeedback era a sua
única hipótese, deixou que os processos cognitivos se desvanecessem, enquanto respirava lenta e calmamente.
Concentrando-se no relógio, viu os ponteiros apontarem para os dezassete... depois os dezoito... depois os dezanove...
Vinte minutos depois conseguiu finalmente levantar-se e dirigir-se a custo para a casa de banho. Lá dentro, o espaço privado era de um requinte máximo, com mármore,
cristal e latão suficiente para ser digno de um castelo - embora naquela noite, ele maldissesse todo o brilho.
Chegou-se à porta de vidro do duche, abriu as torneiras e depois dirigiu-se ao lavatório, onde abriu o armário de espelho e pegou no frasco de Motrin. Cinco comprimidos
era mais do que a dose recomendada, mas que porra, ele era médico e estava a recomendar a si próprio que tomasse mais do que dois.
A água quente foi uma bênção, eliminando não só os restos da incrível libertação, mas também a tensão das últimas doze horas. Cristo... Glory. Esperava que ela estivesse
a recuperar bem. E aquela fêmea que ele op...
Ao sentir outra pontada a aproximar-se, largou de imediato os seus pensamentos como se fossem venenosos e concentrou-se apenas na forma como o jorro de água lhe
batia na nuca e lhe escorria pelos ombros, caindo-lhe pelas costas e pelo peito.
O membro continuava duro.
Como pedra.
A ironia de ter a porra da coisa ainda acordada, mesmo tendo a outra cabeça completamente alterada, não tinha piada. A última coisa que lhe apetecia fazer era uma
nova sessão de aeróbica manual, mas imaginava que aquela ereção não desapareceria, a menos que tratasse do assunto.
Quando o sabonete escorregou da saboneteira de latão e lhe aterrou em cima do pé como uma bigorna, Manny praguejou e começou a saltitar... depois baixou-se e apanhou
o sabonete.
Escorregadio. Tão escorregadio.
Depois de devolver o Dial ao seu lugar, baixou a mão e agarrou o membro. Enquanto fazia subir e descer a mão, a rotina da água quente e do sabonete escorregadio
revelou-se eficaz, mas mesmo assim era um substituto medíocre para aquilo que sentira com aquela mulher...
Pontada. Aguda. Mesmo no lóbulo frontal.
Cristo, era como se houvesse guardas armados a rodear qualquer pensamento sobre ela.
Praguejando, esvaziou o cérebro, pois sabia que tinha de acabar o que começara. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça pender enquanto se
bombeava. Sempre tivera um tremendo impulso sexual, mas aquilo era completamente diferente, uma fome que atravessava qualquer película de civilidade e lhe chegava
a uma zona no seu âmago que lhe era completamente nova.
- Merda... - Quando atingiu o orgasmo, Manny cerrou os dentes e jorrou contra as paredes molhadas da cabine de banho. A libertação foi tão forte como a do divã,
percorrendo-lhe o corpo até que o membro já não era a única coisa que latejava. Parecia que cada músculo estava envolvido na libertação e teve de morder o lábio
para não gritar.
Quando finalmente regressou ao mundo real, tinha o rosto pressionado contra o mármore e ofegava como se tivesse corrido de uma ponta à outra de Caldwell.
Ou talvez até ao Canadá.
Virando-se para o jorro de água, voltou a lavar-se e saiu, pegando numa toalha e...
Manny olhou para as ancas.
- Deves estar a gozar.
O membro estava tão ereto como da primeira vez. Destemido. Orgulhoso e forte, como só uma barra estúpida poderia estar.
Não interessava. Não voltaria a fazer-lhe a vontade.
Na pior das hipóteses, podia esconder a coisa nas calças. Era óbvio que o método de «alívio» não estava a resultar e ainda por cima, já não tinha energia. Que raios,
talvez estivesse a ficar engripado, ou assim? Sabia Deus que quem trabalhava num hospital podia apanhar um sem fim de doenças.
Incluindo amnésia, segundo parecia.
Manny enrolou uma toalha à volta do corpo e dirigiu-se ao gabinete - onde se imobilizou. Havia um odor estranho a pairar... especiarias?
Não era a sua água-de-colónia, isso era certo.
Percorreu descalço o tapete oriental, abriu a porta e espreitou. A zona administrativa estava vazia e às escuras, e o cheiro não se sentia em mais lado nenhum.
Franziu o cenho e olhou para o divã. Claro que sabia que não podia pensar no que lá acontecera.
Dez minutos depois vestira uma bata cirúrgica lavada e barbeara-se. O Sr. Feliz, que ainda estava a imitar o Monumento de Washington, estava enfiado no cós das calças
e preso como o animal que era. Quando pegou na pasta e no fato que usara na pista, estava mais do que pronto a esquecer o sonho, a dor de cabeça e a malfadada noite.
Saindo pelos gabinetes do departamento cirúrgico, apanhou o elevador para o segundo andar, onde se situavam as SO. Os elementos da sua equipa estavam ocupados a
operar casos urgentes, a tratar da preparação ou do transporte de pacientes, a limpar. Foi trocando cumprimentos com acenos de cabeça, mas não disse grande coisa
- para todos os efeitos, estava tudo normal. O que era um alívio.
E quase chegou ao parque de estacionamento sem problemas de maior.
Contudo, a estratégia de saída foi interrompida quando chegou à zona de recuperação. Fazia tenção de passar diretamente pelas salas, mas os pés estacaram e a mente
começou às voltas e, de repente, sentiu-se obrigado a entrar num dos quartos. Ao seguir o impulso, a dor de cabeça voltou de imediato a dar um ar da sua graça, mas
Manny deixou-a aparecer enquanto entrava na zona de isolamento junto à saída de emergência.
A cama encostada à parede estava impecável, com os lençóis tão lisos que pareciam ter sido engomados diretamente sobre o colchão. Não havia anotações da equipa no
quadro branco; nada de apitos das máquinas; o computador estava desligado.
Mas o cheiro de desinfetante pairava no ar. E aquela espécie de perfume também...?
Alguém estivera ali. Alguém que ele operara. Naquela noite.
E ela tinha...
Sentiu-se assoberbado pela agonia e Manny teve de voltar a agarrar-se, desta vez à ombreira da porta, para se manter de pé. Quando a enxaqueca, ou lá o que era,
piorou, teve de se baixar...
E foi assim que o viu.
Franzindo o rosto com a dor, aproximou-se da mesa-de-cabeceira e acocorou-se. Estendeu a mão e foi tateando até encontrar o cartão dobrado.
Sabia o que era antes mesmo de olhar para ele. E, por algum motivo, quando o segurou contra a palma sentiu o coração a partir-se.
Alisou a dobra e fitou a gravação do seu nome e título, e da morada, telefone e fax do hospital. No espaço em branco ao lado do logotipo do St. Francis, ele próprio
escrevera o número do telemóvel.
Cabelo. Cabelo escuro numa trança. As mãos dele a desfazerem...
- Filha... da puta. - Estendeu a mão, mas acabou por cair à mesma, batendo com força no linóleo antes de rolar e ficar de costas. Ao segurar a cabeça e resistir
à agonia, sabia que tinha as pálpebras abertas, mas raios o partam se conseguia ver alguma coisa.
- Chefe?!
Ao ouvir o som da voz de Goldberg, o massacre nas frontes abrandou um pouco, como se o cérebro tivesse pegado no salva-vidas auditivo, afastando-se ligeiramente
dos tubarões. Temporariamente, pelo menos.
- Então - gemeu.
- Estás bem?
- Estou.
- Dor de cabeça?
- Enorme.
Goldberg soltou uma gargalhada breve.
- Olha, anda por aí qualquer coisa. Já tive quatro enfermeiras e duas administrativas que se atiraram ao chão como tu. Pedi funcionários adicionais e mandei os outros
para casa.
- Fizeste bem.
- E sabes que mais?
- Não digas. Estou a ir. Estou a ir. - Manny obrigou-se a sentar-se e depois, quando se sentiu pronto, levantou-se servindo-se das grades da cama de hospital.
- Devias ter passado o fim de semana fora, chefe.
- Voltei. - Felizmente, Goldberg não perguntou pelos resultados da corrida. Claro que ele não sabia que não havia resultados a partilhar. Ninguém tinha ideia daquilo
que Manny fazia fora do hospital, em grande medida porque não o considerava importante, quando comparado com o trabalho que ali levavam a cabo.
Porque seria que, de repente, a sua vida parecia tão vazia?
- Precisas de boleia? - indagou o chefe de traumatologia.
Sentia saudades de Jane.
- Ah... - Qual era a pergunta? Ah, certo. - Já tomei Motrin... fico bem. Manda-me uma mensagem se precisares de mim. - Ao sair, deu uma palmada no ombro de Goldberg.
- És o responsável até amanhã às sete.
Não percebeu a resposta de Goldberg.
E continuou sem dar conta de nada. Manny estava praticamente em piloto automático quando chegou aos elevadores e entrou num até ao parque de estacionamento. Era
quase como se os últimos massacres tivessem apagado tudo, salvo o tronco cerebral. Ao sair do elevador foi pondo um pé à frente do outro até chegar ao seu lugar
de estacionamento reservado...
Onde estava a merda do carro?
Olhou em volta. Os chefes dos vários serviços tinham lugares reservados, e o seu Porsche não estava no espaço respetivo.
Também não tinha as chaves no bolso do fato.
E a única boa notícia era que enquanto ficava irritado, a dor de cabeça desaparecera completamente, embora isso fosse resultado do Motrin, obviamente.
Onde. Raios. Estava. A. Porcaria. Do. Carro.
Pelo amor de Deus, não se podia partir um vidro, empurrar o carro com a primeira engatada até pegar e sair dali. Era preciso o cartão de acesso que ele tinha na...
A carteira também tinha desaparecido.
Que maravilha. Era só o que lhe faltava. Uma carteira roubada, um Porsche a caminho de se tornar peças, e uma visita à polícia.
O segurança encontrava-se junto à cancela de saída, por isso começou a andar em vez de lhe ligar porque, vejam só, o telemóvel também tinha sido levado, e...
Abrandou. Depois parou. A meio caminho da saída, na zona onde os pacientes e as famílias estacionavam, estava um Porsche 911 Turbo metalizado. Do mesmo ano do dele.
O mesmo autocolante da Associação de Corridas de NI no vidro traseiro.
A mesma matrícula.
Aproximou-se do carro como se tivesse uma bomba instalada no motor. As portas estavam destrancadas e abriu a porta do condutor com cuidado.
A carteira, as chaves e o telemóvel estavam debaixo do banco da frente.
- Doutor? Está bem?
Ceeerto. À primeira vista, havia dois temas comuns para aquela noite: nada de recordações e pessoas a fazerem a única pergunta a que ele garantidamente não responderia
com sinceridade.
Ergueu o olhar, interrogando-se o que haveria de dizer ao segurança: Olhe, alguém deixou os meus parafusos nos Perdidos e Achados?
- O que está a fazer aqui estacionado? - perguntou o indivíduo da farda azul.
- O meu lugar estava ocupado. - Não faço ideia...
- Bolas, devia ter-me chamado, chefe. Resolvíamos o assunto num instante.
- Você é do melhor. - Pelo menos isso não era mentira.
- Bem, cuide-se... e vá descansar. O doutor está com um ar cansado.
- Excelente conselho.
- Devia ter ido para médico. - O guarda ergueu a lanterna à laia de despedida. - Noite.
- B’noite.
Manny entrou para o Porsche fantasma, ligou o motor e engrenou a marcha atrás. Ao chegar à saída do estacionamento, pegou no cartão de acesso e usou-o sem problemas
para abrir a cancela. Depois, na avenida St. Francis virou à esquerda e encaminhou-se para a baixa, em direção ao Commodore.
Enquanto conduzia, só tinha uma certeza.
Estava a perder o juízo.
Capítulo 12
V já devia estar em casa, pensou Butch, enquanto fitava o vazio no Fosso.
- Já cá devia estar - disse Jane atrás dele. - Falei com ele há quase uma hora.
- Grandes mentes, grandes mentes - resmungou Butch ao olhar para o relógio. Outra vez.
Levantou-se do divã de pele, contornou a mesa de apoio e dirigiu-se ao sistema informático do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, tal como chamavam àqueles meninos
de alta tecnologia, valiam pelo menos cinquenta mil - e era tudo o que Butch sabia acerca deles.
Bem, isso e como usar o rato para localizar o chip do GPS no telefone de V.
Não valia a pena ir aos pormenores. A morada dizia-lhe tudo o que precisava de saber... e também lhe fez o estômago dar um salto.
- Ainda está no Commodore.
Não tendo resposta de Jane, olhou para os monitores. A shellan de Vishous estava de pé, junto à mesa de matraquilhos, os braços cruzados sobre o peito, o corpo e
o perfil translúcidos, o que lhe permitia ver a cozinha do outro lado dela. Passado um ano, ele já se habituara às várias formas que Jane assumia e, regra geral,
aquela significava que estaria a pensar em alguma coisa, com a concentração ocupada em outras coisas que não tornar-se corpórea.
Butch até apostava que estariam a pensar na mesma coisa. Era estranho que V tivesse ficado até tarde no Commodore quando sabia que a irmã tinha sido operada e já
estava em segurança no complexo - especialmente tendo em conta o estado de espírito do irmão.
E os seus extremismos.
Butch dirigiu-se ao roupeiro e tirou o casaco de camurça.
- Será que podias... - Jane calou-se e sorriu-se levemente. - Leste-me os pensamentos.
- Eu trago-o de volta. Não te preocupes.
- Certo. Está... bem. Acho que vou ficar com a Payne.
- Boa ideia. - A resposta célere de Butch não se prendia unicamente com os benefícios clínicos de ter a médica da irmã de V por perto e interrogou-se se Jane teria
noção disso. Mas era óbvio que ela não era tonta.
E só Deus sabia o que iria encontrar na casa de V. Detestava pensar que o tipo estivesse a enganar a fêmea com uma vadia qualquer, mas as pessoas cometiam erros,
especialmente quando cediam ao stresse. E era melhor que fosse outra pessoa que não Jane a ver o que ele poderia estar a fazer.
Ao sair abraçou-a rapidamente - o que ela retribuiu de imediato, solidificando-se e abraçando-o também.
- Espero... - Jane não concluiu a frase.
- Não te preocupes - descansou-a Butch, mentindo com quantos dentes tinha na boca.
Minuto e meio depois estava ao volante do Escalade, a conduzir como se voasse baixo. Embora os vampiros se pudessem desmaterializar, sendo ele mestiço, esse truque
tão útil não fazia parte do seu repertório.
Ainda bem que não tinha problemas em ultrapassar o limite de velocidade.
Aos bocadinhos.
A baixa de Caldwell continuava a dormir quando lá chegou e, ao contrário dos dias de semana, quando as carrinhas de entregas e os primeiros trabalhadores a caminho
dos transportes públicos começavam a aparecer antes do nascer do sol, a zona ia continuar a ser uma cidade fantasma. O domingo era um dia de descanso - ou de colapso,
dependendo do quanto se trabalhava. Ou bebia.
Quando fora detetive de homicídios da polícia de Caldwell familiarizara-se com os ritmos diários - e noturnos - daquele labirinto de becos e edifícios. Sabia onde
os corpos costumavam ser despejados ou escondidos. E os elementos criminosos que faziam da morte a sua profissão, ou o seu passatempo.
Entrara tantas vezes na zona assim, a abrir, sem fazer ideia daquilo em que se iria meter. Embora... visto por esse prisma, o seu novo trabalho a inalar minguantes
com a Irmandade era basicamente o mesmo no que dizia respeito à pica de adrenalina e à consciência de que a morte o esperava.
E por falar nisso, estava a meros dois quarteirões do Commodore quando a sensação de uma qualquer coisa iminente se tornou algo específico... minguantes.
O inimigo estava próximo. E eram vários.
Não se tratava de instinto. Era conhecimento. Desde que o Ómega fizera o seu trabalhinho nele que passara a ser um detetor de inimigos e, embora detestasse saber
que tinha o mal no seu interior e evitasse remoer sobre isso com frequência, era verdade que se tratava de uma excelente mais-valia na guerra.
Era a profecia do Dhestroyer tornada real.
Estava assim dividido entre dois extremos: a guerra e o irmão. Depois de um longo período em que a Sociedade dos Minguantes se acalmara, havia outra vez matadores
a aparecer um pouco por todo o lado na cidade, com o inimigo a armar-se em Lázaro e a ressuscitar com novos membros. Assim sendo, era perfeitamente possível que
alguns dos irmãos andassem a brincar com o inimigo - pelo que provavelmente seria convocado em breve para dar uso à sua especialidade.
Porra, e se fosse o V? Isso explicaria o atraso.
Merda, talvez os receios que tinham não se justificassem. Estava suficientemente próximo do Commodore para explicar a leitura do GPS e quando entrávamos num corpo
a corpo não era propriamente simples fazer uma pausa para enviar um sms a dizer que íamos chegar atrasados.
Quando Butch contornou a esquina, os faróis do Escalade iluminaram um beco comprido e estreito que representava o equivalente urbano de um cólon. Os prédios de tijolo
que formavam as paredes eram sujos e húmidos, e o alcatrão estava marcado por poças imundas...
- Mas que raios...? - exclamou entre dentes. Tirou o pé do acelerador e chegou-se ao volante... como se isso pudesse talvez alterar o que estava a ver.
Lá ao fundo tinha lugar um combate, com três minguantes a enfrentar um único adversário.
Que não se estava a defender.
Butch deixou o carro em ponto morto e saiu, começando a correr pela estrada fora. Os matadores tinham cercado Vishous e o idiota ia-se virando lentamente no interior
do círculo - mas não para atacar nem para se defender. Permitia que cada um o atacasse... e tinham correntes.
À luz da cidade, via-se sangue vermelho a escorrer sobre o cabedal preto enquanto o corpo impressionante de V absorvia os impactos do aço que voava à volta dele.
Se quisesse poderia ter agarrado a ponta das correntes, puxado os matadores para junto dele e dominado os atacantes - não passavam de recrutas novos que ainda tinham
a cor original do cabelo e dos olhos, vermes das ruas que teriam sido induzidos há pouco mais de uma hora.
Com o autocontrolo de que V gozava, se quisesse podia ter-se concentrado e desmaterializado para fora do círculo.
Em vez disso, deixava-se ali ficar, de braços esticados à altura dos ombros, para que não houvesse barreiras entre os impactos e o tronco.
Se aquilo continuasse, o desgraçado ia ficar a parecer uma vítima de um acidente de viação. Ou pior.
Aproximando-se do massacre, Butch correu e saltou contra o matador mais próximo. Quando o par tombou ao chão, agarrou numa mancheia de cabelo escuro, puxou para
trás e cortou-lhe a garganta. Sangue preto jorrou da jugular do matador e espalhou-se, mas não havia tempo para o virar e inspirar-lhe a essência para o interior
dos pulmões.
Mais tarde trataria da limpeza.
Butch pôs-se de pé e agarrou na extremidade de uma corrente. Puxando com força, chegou-se atrás e desferiu um golpe fundo que arrancou o minguante da zona de risco
de V e o atirou a rodopiar para dentro de um contentor do lixo.
Quando o renascido ficou a ver estrelas e imitou um tapete de receção a futuras recolhas de lixo, Butch deu meia volta e preparou-se para acabar com o espetáculo
- só que, surpresa, V decidira acordar e tratar do assunto. Embora o irmão estivesse obviamente ferido, não deixava de ser uma força a ter em conta, pois desferiu
um pontapé em voo e depois atacou com as presas à mostra. Aproximando-se com os incisivos, mordeu o ombro do minguante e aí se prendeu como um buldogue. Depois trespassou
a barriga do cabrão com a adaga negra.
Enquanto as entranhas da coisa caíam ao chão numa confusão ensanguentada, V quebrou a ligação Colgate e deixou que o matador tombasse e ficasse esparramado.
Depois só se ouviu respiração ofegante.
- O que raios... estavas tu... a fazer? - cuspiu Butch.
V dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos nos joelhos, mas isso, obviamente, não chegava para aliviar a agonia em que se encontrava. Quando Butch deu por ele, o
irmão caiu de joelhos ao lado do matador que acabara de esventrar e limitou-se a... respirar.
- Responde-me, desgraçado. - Butch estava tão irritado que quase tinha vontade de dar um pontapé nos dentes do filho da puta. - Que porra estavas tu a fazer?
Com as primeiras gotas frias de chuva, o sangue escorreu vermelho da boca de V, que tossiu umas quantas vezes. E mais nada.
Butch passou a mão pelo cabelo húmido e dirigiu o rosto ao céu. As gotas que lhe bateram na testa e nas faces ajudaram-no a acalmar-se um pouco. Mas não serviram
de nada para aliviar o nó que sentia no estômago.
- Até onde estavas disposto a ir, V?
Não queria resposta. Nem sequer estava a falar com o seu melhor amigo. Limitava-se a fitar o céu noturno, com as suas estrelas débeis e vastidão inescrutável, tentando
angariar alguma força. E depois apercebeu-se. Os pontos brilhantes lá em cima não estavam ténues só por causa da luz emanada da cidade - estavam a apagar-se porque
o Sol estava prestes a fletir os seus bíceps brilhantes e a iluminar toda aquela parte do mundo.
Tinha de se apressar.
Enquanto Vishous cuspia mais um jorro de sangue para a estrada, Butch concentrou-se e empunhou a adaga. Não havia tempo para inalar os matadores, mas isso era o
menos relevante. Depois de terminar o espetáculo do Dhestroyer, tinha de ser curado por V, caso contrário mergulhava na terra das convulsões enquanto os restos imundos
do Ómega o consumiam. Naquele momento? Mal se atrevia a sentar-se ao lado do irmão durante a viagem de regresso.
Pelo amor de Deus, V queria uma boa tareia?
Pois sentia-se a pessoa mais indicada para lha dar.
Quando Butch esfaqueou o minguante com as tripas de fora e o devolveu ao Ómega, Vishous nem sequer pestanejou com o clarão que se produziu a seu lado. Também não
pareceu notar quando Butch fez desaparecer o que tinha a garganta cortada.
O matador que restava era o Menino do Lixo, que reunira forças suficientes para se levantar e apoiar ao contentor do tamanho de um carro, e agora tentava equilibrar-se
à zombie.
Butch correu até ele, de punho da adaga erguido acima do ombro, preparado para...
Quando estava prestes a desferir o golpe final, as narinas deram conta de um cheiro que não era só a água-de-inimigo... mas mais qualquer coisa. Uma coisa com que
estava demasiado familiarizado.
Butch completou a tarefa entre mãos e quando o clarão se desvaneceu, olhou para o cimo do contentor. Metade da tampa estava fechada. A outra parte estava levantada
e enviesada, como se tivesse sido arrancada por um camião de passagem, e a luz débil do ambiente chegava-lhe para ver. Ao que parecia, o prédio servido pelo contentor
tinha algum trabalho metalúrgico a decorrer, pois no seu interior viam-se inúmeras aparas metálicas encaracoladas, como se fossem perucas alucinadas de carnaval...
Entre elas estava uma mão pálida e suja, com dedos pequenos e magros...
- Poooorra - murmurou.
Os anos de formação e de experiência puxaram-no de volta ao modo de detetive, mas teve de se recordar de que não lhe sobrava grande tempo para ficar naquele beco.
A alvorada estava a chegar, e se não se recompusesse e voltasse ao complexo, ia ficar reduzido a fumo.
Além do mais, os seus dias de polícia já tinham passado há muito.
Aquilo era um assunto humano. Já não lhe dizia respeito.
Com um estado de espírito absolutamente lastimável, correu para o carro, engrenou a primeira e pisou a fundo no acelerador, mesmo tendo apenas de percorrer cerca
de vinte metros. Quando pisou o travão, o Escalade chiou e deu de traseira na estrada molhada, parando a pouco mais de um palmo da forma dobrada de V.
Enquanto o limpa para-brisas do veículo varriam o vidro, Butch abriu a janela do lugar do passageiro.
- Entra para o carro - ordenou, olhando em frente.
Não teve resposta.
- Entra para a merda do carro.
No local de cura da Irmandade, Payne encontrava-se numa sala que não aquela onde estivera originalmente, mas parecia que tudo continuava igual. Estava deitada, imóvel,
numa cama que não era a sua, num estado de agitação impotente.
A única diferença era que agora tinha o cabelo solto.
Quando os pensamentos sobre os últimos instantes passados com o seu curandeiro lhe assaltaram a mente, ela deixou-os correr à vontade, demasiado cansada para contrariar
a onda. Em que estado o teria deixado? Ocultar-lhe as memórias fora quase como um roubo e o olhar vazio posterior deixara-a aterrorizada. E se o tivesse prejudicado...
Ele era inocente em tudo aquilo - tinham-no usado e depois praticamente descartado, e ele merecia muito mais. Mesmo que a não tivesse curado, dera o seu melhor,
disso ela tinha a certeza.
Depois de o ter enviado para o seu destino mais provável àquela hora da noite, Payne fora acometida pelos remorsos - e tivera plena consciência de que não poderia
ficar com qualquer informação sobre como entrar em contacto com ele. Aqueles momentos intensos entre os dois eram demasiado tentadores para ignorar, e não queria
de todo ter de lhe roubar mais recordações.
Com uma força que lhe chegara do medo, desentrançou o cabelo... até que o cartão caíra ao chão.
E agora, ali estava ela.
Por sua fé, o único rumo a seguir para o par seria cortar todos os elos de comunicação. Se ela sobrevivesse... se tivesse, deveras, sido curada por ele... iria procurá-lo...
e com que objetivo?
Ah, quem tentava enganar? O beijo que não chegara a acontecer. Seria por isso que o procuraria. E não ficariam por aí.
Surgiram-lhe pensamentos sobre a Escolhida Layla, e deu consigo a desejar poder voltar à conversa entre as duas, junto à água, há tão poucos dias. Layla encontrara
um macho com quem desejava acasalar e Payne pensara que ela teria perdido o juízo - uma avaliação nascida da ignorância, como se viria a revelar. Em menos tempo
do que o necessário para tomar uma refeição, o seu curandeiro humano mostrara-lhe o que ela poderia sentir pelo sexo oposto.
Pelas Parcas, nunca esqueceria o aspeto dele, junto à cama, o corpo tão excitado e pronto para tomar o dela. Nesse aspeto, os machos eram magníficos, e fora uma
grande surpresa ter descoberto tal coisa.
Bem, pelo menos o curandeiro era magnífico. Não se imaginava a sentir o mesmo, caso tivesse sido qualquer outro. E interrogava-se como seria ter a boca dele contra
a sua. O corpo dele dentro do seu...
Ah, as fantasias que se teciam quando estava sozinha e enfadada.
A bem da verdade, que futuro poderiam ter? Ela era uma fêmea que não se enquadrava em lado nenhum, uma guerreira presa no interior da pele tépida de um corpo de
Escolhida - já para não falar do problema que era a paralisia. Ele, entretanto, era um macho vibrante e sexual de uma espécie diferente.
O destino nunca permitiria que se juntassem, e talvez fosse pelo melhor. Seria demasiado cruel para ambos, pois nunca poderia haver acasalamento - nem cerimonial
nem físico. Ela estava ali encerrada, no enclave secreto da Irmandade, e se não fosse o protocolo do rei a mantê-los separados, seria o temperamento violento do
seu irmão.
Não estavam destinados.
Foi um alívio quando a porta se abriu e Jane entrou interrompendo os seus pensamentos. Payne tentou invocar um sorriso para oferecer à parceira espectral do seu
gémeo.
- Estás acordada - disse Jane, aproximando-se.
Payne franziu o cenho ao ver a expressão tensa da fêmea.
- Como estás?
- Ainda mais importante, como estás tu? - Jane apoiou a anca na cama, com os olhos a percorrer a maquinaria que monitorizava cada fluxo de sangue e cada inspiração
dos pulmões. - Estás a descansar confortavelmente?
De todo.
- Deveras. E agradeço-te por tudo o que tens feito por mim. Mas diz-me, onde está o meu irmão?
- Ele... ainda não voltou a casa. Mas deve chegar em breve. Vai querer ver-te.
- E eu a ele.
Nesse momento, a shellan de V pareceu ficar sem palavras. E o silêncio disse muito.
- Não sabes onde ele está, pois não? - murmurou Payne.
- Ah... Eu conheço o sítio. Demasiado bem.
- Então estás preocupada com as predileções dele. - Payne franziu ao de leve o sobrolho. - Perdoa-me. Sou demasiado verbosa.
- Não faz mal. Prefiro que sejas direta a educada. - Os olhos de Jane fecharam-se brevemente. - Quer dizer que sabes... sobre ele?
- Tudo. E amava-o mesmo antes de o ter conhecido.
- Como é que tu... tu...?
- Como soube? É uma questão de momentos quando se é uma Escolhida. As taças de visão permitiram-me observá-lo ao longo de todas as épocas da vida dele. E asseguro-te
que esta etapa, contigo, é de longe a melhor.
Jane soltou um ruído reservado.
- Sabes o que acontece a seguir?
Ah, sempre essa questão - e quando pensou nas pernas, Payne deu consigo com interrogações semelhantes.
- Infelizmente não o sei dizer, já que só nos é mostrado o passado, ou o mais próximo momento do presente.
Seguiu-se um longo silêncio, ao que Jane disse:
- Às vezes é tão difícil chegar ao Vishous. Ele está mesmo à minha frente... mas não consigo chegar a ele. - Os olhos verdes dirigiram-se a Payne. - Ele detesta
emoções. E é muito independente. Bem, eu sou parecida. Infelizmente, em situações como esta, sinto que nós, enquanto par, não estamos propriamente juntos, mas mais
lado a lado, se é que isto faz algum sentido? Cristo, vejam só. Estou a divagar... e até parece que tenho problemas com ele.
- Pelo contrário, sei o quanto o adoras. E não sou de todo alheia à natureza dele. - Payne recordou os abusos infligidos pelo pai ao seu gémeo. - Ele alguma vez
te falou do nosso pai?
- Nem por isso.
- Não me surpreende.
Jane susteve o olhar de Payne.
- Como era o Derramador de Sangue?
O que responder?
- Digamos apenas que... o matei por aquilo que fez ao meu irmão... e fiquemos por aí.
- Cristo...
- Seria mais como o diabo, para usarmos as tradições humanas.
Jane franziu o cenho o suficiente para enrugar a testa.
- O V nunca fala sobre o passado. Nunca. E só referiu uma vez o que aconteceu ao... - Deteve-se por aí. Claro que, a bem da verdade, não havia necessidade de continuar,
já que Payne sabia muito bem a que se referia a fêmea. - Talvez o devesse ter pressionado, mas não o fiz. Falar sobre coisas profundas incomoda-o, por isso deixei-o
em paz.
- Conhece-lo bem.
- Sim. E por isso mesmo, preocupa-me o que possa ter feito esta noite.
Ah, sim. Os amantes ensanguentados que ele apreciava.
Payne estendeu a mão e tocou ao de leve no braço translúcido da curandeira - e ficou surpreendida ao ver que o ponto onde tocara se solidificara. Quando Jane se
assustou, Payne lamentou-se, mas a parceira do seu gémeo abanou a cabeça.
- Não, por favor. E é engraçado... só o V consegue fazer isso comigo. Todos os outros se limitam a atravessar-me.
E isso não era uma metáfora.
Payne falou com toda a clareza:
- És a shellan correta para o meu gémeo. E ele só te ama a ti.
A voz de Jane cedeu.
- Mas e se eu não lhe puder dar aquilo de que precisa? - Payne não tinha como responder facilmente a essa questão. E antes que pudesse formular alguma réplica, Jane
disse: - Não devia estar a falar disto contigo. Não quero que te preocupes com ele, nem comigo, nem deixar-te numa posição desconfortável.
- Ambas o amamos e sabemos quem ele é, por isso não existe qualquer desconforto. E antes que mo peças, não lhe direi nada. Tornámo-nos irmãs de sangue assim que
acasalaste com ele, e guardarei a tua confiança junto ao meu coração.
- Obrigada - agradeceu Jane num tom baixo. - Um milhão de vezes obrigada.
Estabeleceram naquele momento um pacto, o tipo de laço não-verbal que compunha a base de qualquer família, fosse ela de sangue ou de circunstância.
Que fêmea de valor tão forte, pensou Payne.
O que a fez recordar.
- O meu curandeiro. Como é que lhe chamas?
- O teu cirurgião? Queres dizer o Manny... o doutor Manello?
- Ah, sim. Ele pediu-me que te transmitisse uma mensagem. - Jane pareceu ficar hirta. - Ele diz que te perdoa. Por tudo. Não consigo sequer imaginar a que poderá
referir-se.
A parceira de Vishous expirou, com os ombros a descontraírem-se.
- Cristo... Manny. - Abanou a cabeça. - Sim, sim, eu sei do que se trata. Espero sinceramente que ele saia bem de tudo isto. Já teve muitas recordações apagadas
naquela cabeça.
Payne concordava plenamente.
- Poderei inquirir... como chegaste a conhecê-lo?
- O Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem já trabalhei.
- Ele está acasalado? - perguntou Payne, num tom que esperava soasse casual.
Jane riu-se.
- De todo... embora Deus saiba que está sempre rodeado de mulheres.
Quando se ouviu um rosnido discreto a cortar o ar, a médica pestanejou, surpreendida, e Payne silenciou rapidamente a possessividade que não tinha o direito de sentir.
- Qual... qual o tipo de fêmea que prefere?
Jane revirou os olhos.
- Loura, de pernas compridas e voluptuosa. Não sei se conheces a Barbie, mas sempre foi esse o tipo dele.
Payne franziu o sobrolho. Não era loura, nem particularmente voluptuosa... mas as pernas? Até tinha boas pernas...
Por que estaria a pensar assim?
Fechando os olhos, deu consigo a rezar para que o macho nunca, mas nunca viesse a conhecer a Escolhida Layla. Mas isso era tão ridículo...
A parceira do seu gémeo deu-lhe uma palmadinha gentil no braço.
- Sei que estás exausta, por isso vou deixar-te descansar. Se precisares de mim, pressiona o botão vermelho na grade e eu venho logo ter contigo.
Payne obrigou as pálpebras a levantarem-se.
- Obrigada, curandeira. E não te preocupes com o meu irmão. Ele regressará a ti antes da primeira luz da alvorada.
- Espero que sim - declarou Jane. - Espero mesmo... Olha, descansa, e depois ao fim da tarde começamos com fisioterapia.
Payne desejou um bom dia à fêmea e voltou a fechar os olhos.
Sozinha, deu consigo a perceber como se sentia a fêmea ao imaginar Vishous com outra. As imagens do curandeiro à volta de alguém como a Escolhida Layla davam-lhes
voltas ao estômago - mesmo não havendo motivo para a indigestão.
O estado em que ela se encontrava, presa naquela cama de hospital, com a mente perdida com os pensamentos de um macho sobre o qual não tinha qualquer direito...
E contudo, pensar em partilhar aquela energia sexual com alguém que não ela deixava-a absolutamente violenta. Pensar que havia outras fêmeas à volta do seu curandeiro,
em busca do que ele parecia preparado a oferecer-lhe, querendo aquela extensão rígida entre as ancas e a pressão dos lábios dele contra as suas bocas...
Quando voltou a soltar um rosnido, percebeu que fora melhor ter deixado o cartão com as informações ficar para trás. Caso contrário, ela devastaria as amantes que
ele tivesse.
Afinal de contas, não tinha qualquer prurido quanto a matar.
Algo que a história deixara bem claro.