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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NÃO APTO PARA MULHERES / P. D. James
NÃO APTO PARA MULHERES / P. D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na manhã da morte do Bernie Pryde -ou possivelmente fosse na manhã seguinte, posto que Bernie morreu a sua própria conveniência e não acreditou que valesse a pena  deixar registrada a hora em que ia sair deste mundo- Cordelia se viu apanhada em uma avaria da linha Bakerloo, fora do Lambeth North, e chegou ao escritório com meia hora de atraso. Saiu do metro em Oxford Circus por volta do brilhante sol do mês de junho, passou pressurosa por diante das madrugadoras lojas, jogando  uma rápida olhada às cristaleiras do Dickins and Jones, e se inundou na cacofonia da rua Kingly atravessando a reluzente massa de carros e caminhonetes  que obstruíam a estreita rua. Sabia que aquela pressa era irracional, sintoma de sua obsessão pela ordem e a pontualidade. Em sua agenda não figurava entrevista  alguma;  não havia clientes para ser entrevistados; nenhum caso que esperasse ser resolvido; nem sequer um relatório final que escrever. Ela e a senhorita Sparshott, a datilógrafa  por horas, estavam fazendo circular, a sugestão da própria Cordelia, informação relativa à agência a todos os advogados de Londres com a esperança de obter  clientela; nesse momento a senhorita Sparshott certamente estaria ocupada nessa tarefa, olhando furtivamente seu relógio, pulsando com irritação as teclas da  máquina a cada minuto de atraso da Cordelia. Era uma mulher antipática, de lábios permanentemente apertados, para impedir que seus proeminentes dentes saltassem  fora de sua boca, um queixo fugidio com um único cabelo áspero e recalcitrante que voltava a brotar logo que era arrancado, e uns cabelos loiros penteados  em rígidas e solidificadas ondas. Aquele queixo e aquela boca desejavam muito a Cordelia como a refutação vivente da idéia de que todos os seres humanos  nascem iguais, e tratava de vez em quando de lhe ter carinho e simpatizar com a senhorita Sparshott, cuja vida transcorria em habitações de pensão, media-se em  moedas de cinco peniques com que alimentar a estufa de gás e se achava circunscrita por costuras sobrecosidas e pregas feitas à mão. Porque a senhorita  Sparshott era uma hábil costureira que freqüentava com assiduidade as classes noturnas da Corporação Metropolitana. Seus vestidos estavam bem feitos, mas eram tão  intemporales, que nunca estavam realmente de moda; saias retas em cinza ou em negro que constituíam meros exercícios de como costurar uma dobra ou inserir uma cremalheira;  blusas com pescoços e punhos de homem em esvaídos tons bolos sobre as que distribuía sem discrição sua coleção de bijuteria; vestidos de complicado corte  e pregas com o comprido justo para fazer ressaltar seus informe pernas e a grossura de seus tornozelos.


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     Cordelia não teve a menor premonição de tragédia quando abriu a porta da rua, que sempre se mantinha com o fecho jogado para conveniência dos
discretos e misteriosos inquilinos e de seus igualmente misteriosos visitantes. A nova placa de bronze no lado esquerdo da porta brilhava intensamente ao
sol em incongruente contraste com a suja capa de pintura. Cordelia lhe dirigiu um breve olhar de aprovação.
AGÊNCIA DE DETETIVES PRYDE
(Proprietários: Bernard G. Pryde & Cordelia Gray)
     A Cordelia tinha levado algumas semanas de paciente e discreta persuasão o chegar a convencer ao Bernie de que resultaria inadequado adicionar as palavras
"exagente do Departamento de Investigação Criminal da Polícia Metropolitana" a seu nome ou a fórmula "Senhorita" ao dela. Não tinha havido problema algum
a respeito da placa, posto que Cordelia não tinha contribuído à sociedade cualificaciones especiais nenhuma importante experiência, e certamente nenhum capital, se excetua-se seu corpo esbelto mas maciço de vinte e dois anos, uma considerável inteligência, que Bernie, suspeitava ela, tinha encontrado em ocasiões mais desconcertante
que digna de admiração, e um afeto, médio exasperado, médio compassivo, para o próprio Bernie. Muito em breve resultou evidente para a Cordelia que de um modo isento
de dramatismo mas definitivo, a vida se tornou contra aquele homem. Ela reconheceu os signos. Bernie jamais conseguia no ônibus o invejável assento
da esquerda; não podia admirar a vista do guichê do trem sem que outro trem chegasse em seguida a ocultar-lhe quando lhe caía uma fatia de pão,
invariavelmente era a cara lubrificada de manteiga a que dava contra o chão; o carro Mini, bastante seguro quando o conduzia ela, entupia ao Bernie em
cruze-os mais concorridos e mais inoportunos. Às vezes se perguntava se, ao aceitar seu oferecimento de formar sociedade com ele, em um acesso de depressão ou de
perverso
masoquismo, não estaria fazendo dela, voluntariamente, a má sorte daquele homem. Certamente, jamais se considerou a si mesmo o suficientemente forte para
trocá-la.
     A escada cheirava como sempre a suor rançoso, a verniz de móveis e a desinfetante. As paredes eram de cor verde escura e estavam invariavelmente úmidas,
fora qual fosse a estação do ano, como se segregassem um miasma de desesperada respeitabilidade e derrota. Os degraus, com sua balaustrada de ferro forjado, estavam
talheres com um linóleo gretado e manchado que o caseiro remendava com diversos e desafinadas cores só quando algum inquilino se queixava. A agência estava
no terceiro piso. Não se ouvia teclar quando entrou Cordelia e viu a senhorita Sparshott ocupada em limpar sua máquina de escrever, uma velha Imperial que era causa
constante de queixa justificadas. Levantou os olhos, com expressão de irritação na cara, e com as costas tão rígida como a barra espaciadora da máquina.
     -Estive-me perguntando quando chegaria você, senhorita Gray. Estou preocupada com o senhor Pryde. Acredito que deve estar no despacho interior, mas ali
reina o silêncio, um grande silêncio, e a porta está fechada com chave.
     Cordelia, angustiada, moveu o pomo da porta.
     -por que não tem feito você algo?
     -O que queria que fizesse, senhorita Gray? Dava uns golpecitos na porta, e lhe chamei. Não me correspondia fazer isso, eu só sou a datilógrafa provisório.
Aqui não tenho autoridade. Me teria encontrado em uma situação embaraçosa se ele tivesse respondido. Ao fim e ao cabo, tem direito a utilizar seu próprio despacho,
suponho. Além disso, não estou segura de que esteja aí dentro.
     -Tem que estar. A porta está fechada com chave e seu chapéu está aqui.
     O chapéu do Bernie, com a asa manchada e volta para cima tudo em redor, o chapéu de um comediante, pendurava do perchero como um símbolo de irremediável
decrepitude. Cordelia revolveu em sua bolsa em busca de sua própria chave. Como de costume, o objeto mais necessitado tinha ido parar ao fundo da bolsa. A senhorita
Sparshott começou a fazer soar as teclas como se se dissociasse a si mesmo do iminente trauma. por cima do ruído, disse em tom defensivo.
     -Há uma nota sobre a mesa.
     Cordelia rasgou o sobre para abri-lo. A nota era breve e explícita. Bernie tinha sido sempre capaz de expressar-se de maneira sucinta quando tinha algo que
dizer:
     "Sinto muito, sócia, hão-me dito que tenho câncer e vou seguir o caminho mais fácil. Vi o que o tratamento lhe faz às pessoas e não me vão fazer isso a mí.
He hecho mi testamento y lo tiene mi notario. Encontrarás su nombre en la mesa. Te he dejado el negocio. Todo, incluido todo el equipo. Buena suerte y gracias".
a mim. Fiz meu testamento e o tem meu notário. Encontrará seu nome na mesa. Deixei-te o negócio. Tudo, incluído toda a equipe. Boa sorte e obrigado".
     Debaixo, com a falta de consideração própria dos condenados, tinha riscado uma súplica final:
     "Se me encontrar com vida, rogo-te Por Deus que espere antes de pedir ajuda. Confio em que o fará, sócia. Bernie".
     Cordelia abriu a porta do despacho interior, entrou, e a fechou com cuidado detrás de si.
     Foi um alívio ver que não havia necessidade de esperar. Bernie estava morto. Jazia com o corpo dobrado em cima da mesa, como em um estado de extrema extenuação.
Sua mão direita estava médio fechada e uma navalha aberta se deslizou em cima da mesa, deixando um fino rastro de sangue como o rastro de um caracol, e
deteve-se em precário equilíbrio junto ao bordo. Sua boneca esquerda, marcada com dois corte paralelos, estava com a palma para cima dentro da bacia
esmaltada que Cordelia utilizava para lavar. Bernie a tinha cheio de água, mas nesse momento estava loja de comestíveis de um líquido rosado pálido que despedia
um aroma
morbosamente adocicado, através do qual os dedos, dobrados como em atitude de súplica e com aspecto branco e delicado como os de um menino, brilhavam tão lisos como
a cera. A mescla de sangue e água se derramou pela mesa e o chão, empapando o chamativo tapete retangular que Bernie tinha comprado recentemente
com a esperança de impressionar a suas visitas com seu status social e da que Cordelia pensava que não fazia mais que chamar a atenção para o velho e puído do
resto do despacho. Um dos cortes era de meço e superficial, mas o outro tinha penetrado até o osso e os borde separados da ferida, secos de sangue,
abriam-se claramente como uma ilustração em um livro de texto de anatomia. Cordelia recordou que Bernie tinha falado uma vez de que tinha encontrado a um homem
que tinha tentado suicidarse, quando ele estava fazendo a ronda, na época em que era polícia. tratava-se de um ancião acurrucado à porta de um armazém,
que se tinha talhado a boneca com uma garrafa rota, mas que logo havia tornado a contra gosto à vida porque um grande coágulo de sangue tinha obstruído as veias
cortadas. Bernie, recordando isto, tinha tomado precauções para que não lhe coagulasse o sangue. Tinha tomado, observou Cordelia, outra precaução; havia uma taça
de chá vazia, aquela em que lhe servia o chá da tarde, sobre a parte direita da mesa com um grão ou dois de pó, aspirina possivelmente ou um barbitúrico, manchando
o bordo e o lado. Um reguero seco de mucosidade, também manchado, pendurava da comissura da boca. Seus lábios estavam franzidos e entreabiertos como os de um
menino dormido, crédulo e vulnerável. Cordelia apareceu a cabeça pela porta do despacho e disse sosegadamente com uma serenidade da que ela mesma se surpreendeu:
     -O senhor Pryde está morto; não entre. vou chamar à polícia daqui.
     A mensagem telefônica foi recebido com calma, alguém se apresentaria. sentou-se junto ao cadáver a esperar e sentindo que precisava fazer algum gesto de piedade
e consolo, Cordelia passou brandamente a mão pelos cabelos do Bernie. A morte ainda não tinha tido poder para diminuir aquelas frite células inertes e os
cabelos resultavam ao tato áspera e desagradablemente vivos como os de um animal. Rapidamente apartou a mão e tocou com cuidado o flanco da frente. A pele
estava viscosa e muito fria. Isso era a morte; assim era também ao tato a pele de seu pai quando estava morto. Quão mesmo com ele, o gesto de piedade carecia
de significado e de importância. Não houve mais comunicação na morte da que tinha havido em viva.
     Cordelia se perguntava quando tinha morrido Bernie exatamente. Ninguém saberia jamais. Possivelmente nem o próprio Bernie o tinha sabido. Teve que haver, supunha
ela,
um segundo mensurável no tempo no que tinha deixado de ser Bernie para converter-se naquela insignificante mas engorrosamente pesada massa de carne e ossos.
Que estranho que um momento tão importante para ele tivesse que transcorrer sem seu conhecimento. Sua segunda mãe adotiva, a senhora Wilkes, haveria dito que Bernie
sim soube, que aquele foi um momento de glória indescritível, torre reluzentes, cânticos incessantes, céus de triunfo. Pobre senhora Wilkes! Viúva, com seu único
filho morto na guerra, sua pequena casa perpetuamente cheia do ruído dos filhos adotivos que constituíam seu meio de vida, tinha tido necessidade de seus sonhos.
Tinha vivido sua vida com consoladoras máximas armazenadas como partes de carvão para o inverno. Cordelia pensou então nela pela primeira vez desde fazia anos
e voltou a ouvir a cansada e resolutamente animada voz que lhe dizia: "Se o Senhor não nos visitar quando sai, visitará-nos quando voltar". Ao Bernie não tinha visitado
à ida nem à volta.
     Resultava estranho, mas em certo modo característico do Bernie, o fato de que tivesse conservado um tenaz e invencível otimismo sobre o negócio, inclusive
quando não tinham na caixa mais que umas poucas moedas para o contador do gás, e, entretanto, tivesse abandonado a esperança de vida sem lutar sequer. Acaso
tinha reconhecido subconscientemente que nem ele nem a agência tinham um verdadeiro futuro e tinha decidido que desse modo poderia abandonar de uma vez a vida e
seu meio
de sustento com um pouco de honra? Tinha-o feito com eficácia mas suciamente, coisa surpreendente em um expolicía versado nas maneiras de morrer. E logo se deu conta
de por que tinha escolhido a navalha e as drogas. A pistola. Não tinha tomado realmente o caminho mais fácil. Poderia ter usado a pistola, mas quis que a tivesse
ela; a tinha legado junto com os velhos fichários, a antiga máquina de escrever, os objetos para estudar o lugar do crime, o Mini, seu relógio de pulso
a prova de golpes e submersível, o tapete empapado em sangue, a grande reserva de papel de escrever com o cabeçalho de Agência de detetives Pryde. Pomos orgulho
em nosso trabalho. Toda a equipe; tinha sublinhado a palavra todo. Certamente sua intenção tinha sido lhe fazer recordar a pistola.
     Cordelia abriu a pequena gaveta da base da mesa do Bernie, do que só ela e ele tinham a chave, e tirou a pistola. Ainda estava dentro da bolsa
de corda que ela tinha confeccionado, com três balas empacotadas por separado. Era uma semiautomática do 38; Cordelia nunca soube como se feito com ela
Bernie, mas estava segura de que carecia de licença. Nunca a tinha considerado uma arma mortífera, possivelmente porque Bernie com sua infantil e ingênua obsessão
por ela
tinha-a reduzido à impotência de um brinquedo infantil. Lhe tinha ensinado a conseguir -ao menos em teoria- uma boa pontaria. Para fazer práticas tinham ido
ao interior do bosque do Epping e a lembrança que ela tinha da pistola ia associado à sombra das árvores e ao agradável aroma das folhas mortas. Bernie
tinha posto um branco em uma árvore adequada; a pistola estava carregada com balas de aguerro. Ainda lhe parecia ouvir as ordens dadas com voz rápida e enérgica.
"Dobra
os joelhos ligeiramente. Separa os pés. Estende completamente o braço. Agora coloca a mão esquerda contra o canhão, sustentando-o. Não aparte os olhos do
branco. O braço estirado, sócia, o braço estirado! Bem! Não está mau; não está mau; não está nada mal". "Mas, Bernie -havia-lhe dito ela-, nunca poderemos dispará-la!
Não temos licença!". Ele tinha sorrido, com o sorriso ardiloso de autosatisfacción do que se sente superior "Se alguma vez fizermos fogo, encolerizados, será
para salvar nossa vida. Em semelhante eventualidade, a questão de uma licença carece de importância". Tinha-lhe gostado desta terminante frase e a tinha repetido,
levantando seu pesado rosto para o sol, igual a um cão. O que era, perguntava-se ela, o que tinha visto ele em sua imaginação? Os dois escondidos detrás de
uma grande pedra em algum desolado terreno pantanoso, enquanto as balas ricocheteavam no granito e a pistola passava fumegante de emano em mão?
     Ele havia dito: "Teremos que andar com cuidado com as munições. Não é que não possa as obter, naturalmente...". O sorriso havia lhe tornado triste,
como por efeito da lembrança daqueles misteriosos contatos, aqueles ubicuos e obsequiosos conhecidos seus aos que uma simples chamada fazia sair do mundo
das sombras.
     De modo que lhe tinha deixado a pistola a ela. Tinha sido sua posse mais apreciada. Sem tirar a da bolsa, deslizou-a para o interior de sua bolsa. Certamente
era improvável que a polícia examinasse as gavetas da mesa em um caso de evidente suicídio, mas tampouco terei que correr o risco. Bernie tinha tido a intenção
de que ela tivesse a pistola e não estava disposta a cedê-la facilmente. Com a bolsa a seus pés, voltou a sentar-se junto ao cadáver Rezou uma breve oração aprendida
no convento ao Deus de cuja existência ela duvidava pela alma que Bernie nunca tinha acreditado possuir, e ficou a esperar tranqüilamente à polícia.
     O primeiro agente que chegou era eficiente mas jovem, ainda não o sufientemente experiente para dissimular sua comoção e aversão à vista de uma morte violenta
nem sua desaprovação ante o fato de que Cordelia estivesse tranqüila. Não passou muito momento no despacho interior. Quando saiu, refletiu sobre a nota do Bernie,
como se um minucioso exame pudesse extrair algum profundo significado da simples frase sobre a morte. Logo a dobrou e a guardou.
     -De momento, terei que ficar com esta nota, senhorita. O que veio ele a fazer aqui?
     -Não deveu fazer nada. Este era seu escritório. Era detetive privado.
     -E você trabalha para este senhor Pryde? Era sua secretária?
     -Era sua sócia. Tenho vinte e dois anos. Bernie era o sócio mais antigo; foi o que iniciou o negócio. Tinha trabalhado para a Polícia Metropolitana no Departamento
de Investigação Criminal com o delegado Dalgliesh.
     Lamentou estas palavras apenas as teve pronunciado. Eram uma defesa muito propiciatoria, muito ingênua do pobre Bernie. E viu que o nome do Dalgliesh
nada significava para ele. por que tinha que significar algo? Era só um do ramo local uniformizado. Não cabia esperar que ele soubesse quantas vezes tinha escutado
ela, com impaciência cortesmente dissimulada, as nostálgicas lembranças do Bernie de seus anos de trabalho no DIC, antes de abandoná-lo, seus elogios das virtudes
e do saber do Adam Dalgliesh. "O Comi-bom, então só era inspetor- sempre nos ensinou... O Comi uma vez descreveu um caso... Se havia algo que o Comi
não podia suportar...".
     Algumas vezes se perguntou ela se esse modelo tinha existido realmente ou se tinha surto impecável e onipotente do cérebro do Bernie, como herói e
mentor necessário. Posteriormente viu com surpresa em um periódico uma foto do delegado Dalgliesh, uma cara escura, sardônica, que, olhar mais perto, desintegrou-se
em uma ambigüidade de ordenados micropuntos que nada revelavam. Não se percebia ali aquele saber que Bernie tanto tinha elogiado. Grande parte disso, suspeitava
Cordelia,
era a própria filosofia dele. Ela, a sua vez, tinha ideado uma letanía de desdém privada: carrancudo, superior, sarcástico Comi, que sabedoria, perguntava-se ela,
teria então para consolar ao Bernie.
O policial tinha feito discretas chamadas telefônicas. Nesse momento se passeava pelo despacho exterior quase sem incomodar-se em dissimular seu intrigado desdém
por
os velhos móveis de segunda mão, o fichário com uma gaveta entreaberto que revelava a bule e umas taças, o gasto linóleo. A senhorita Sparshott, rígida junto
à antiga máquina de escrever, olhava-lhe com fascinado desagrado. Ao fim disse o agente.
     -Bem, suponho que se farão vocês uma taça de chá enquanto eu espero ao médico da polícia. Há algum lugar para fazer chá?
     -Há uma pequena despensa ao fundo do corredor que compartilhamos com os outros ocupantes deste piso. Mas não necessitarão vocês um médico. Bernie está morto!
     -Não está oficialmente morto até que o diga um médico qualificado. -Fez uma pausa e acrescentou-. É só uma precaução.
     "Contra o que? -perguntou-se Cordelia-, julgamento, condenação, decadência?". O policial voltou para despacho interior.
     -Não poderia deixar que a senhorita Sparshott partisse? Vem de uma agência de secretárias e temos que lhe pagar por horas. Não trabalhou desde que eu hei
chegado e duvido de que o faça agora.
     Cordelia viu que ele ficava um pouco surpreso pela aparente frieza que sua preocupação por um detalhe tão mercenário evidenciava, enquanto permanecia
de pé muito perto do cadáver do Bernie, quase tocando-o, mas disse, em tom bastante amável:
     -Só falarei umas palavras com ela e logo poderá ir-se. Não é um lugar agradável para uma mulher.
     Seu tom implicava que nunca o tinha sido.
     Depois, esperando no despacho exterior, Cordelia respondeu às inevitáveis pergunta.
     -Não, não sei se estava casado. Tenho a impressão de que estava divorciado; nunca falava de sua esposa. Vivia no número 15 da rua Cremona, SE2. Cedeu-me
uma habitação ali, mas não nos víamos muito.
     -Conheço a rua Cremona, minha tia vivia ali quando eu era pequeno, uma dessas ruas próximas ao Museu Imperial da Guerra.
     O fato de conhecer a rua pareceu tranqüilizá-lo e humanizá-lo. Esteve um instante sumido felizmente em suas lembranças.
     -Quando viu com vida ao senhor Pryde por última vez?
     -Ontem, por volta das cinco, quando saí logo do trabalho para fazer algumas compra.
     -Não voltou para casa ontem à noite?
     -Ouvi que estava na casa, mas não lhe vi. Tenho um fogão de gás em minha habitação e estou acostumado a cozinhar ali, a menos que saiba que ele está fora. Esta
manhã não
ouvi-lhe, o qual não é freqüente, mas pensei que talvez estivesse deitado. Faz-o em ocasiões quando lhe toca ir ao hospital.
     -Tinha que ir hoje ao hospital?
     -Não, teve uma entrevista em quarta-feira passada, mas pensei que podiam lhe haver dito que voltasse. Deveu sair de casa ontem à noite muito tarde ou antes
de que eu despertasse
esta manhã cedo. Não lhe ouvi.
     Era impossível descrever a delicadeza quase obsessiva com que se evitavam o um ao outro, tratando de não incomodar, preservando a intimidade do outro, escutando
se por acaso se ouvia o ruído da água do lavabo, andando nas pontas dos pés para certificar-se de se a cozinha ou o quarto de banho estavam livres. esforçaram-se
incrivelmente
em não ser uma moléstia o um para o outro. Vivendo na mesma casita com terraço, apenas se viam se não era no escritório. Cordelia se perguntava se Bernie não
teria decidido suicidarse em seu escritório para evitar que a casita sofresse contaminação e moléstias por causa de sua morte.
O escritório estava por fim vazia e Cordelia ficou sozinha nela. O médico da polícia tinha fechado sua maleta e se foi; o cadáver do Bernie tinha sido
habilmente descido pela estreita escada, enquanto vários pares de olhos lhe observavam das portas entreabiertas de outros escritórios; o último polícia se havia
partido. A senhorita Sparshott se foi para não voltar: uma morte violenta era um insulto pior que uma máquina de escrever com a que uma perita datilógrafa
não tinha esperado encontrar-se ou um lavabo ao que não estivesse acostumada. Só em meio daquele vazio e daquele silêncio, Cordelia sentiu a necessidade de ação
física. ficou a limpar vigorosamente o despacho interior, esfregou as manchas de sangue da mesa e da cadeira e enxugou a empapado tapete.
     À uma se encaminhou agilmente para o bar aonde estava acostumado a ir com o Bernie. Lhe ocorreu a idéia de que já não havia razão alguma para seguir sendo clienta
do
Faisão de Ouro, mas seguiu caminhando, incapaz de resolver a cometer tão temprana deslealdade. Jamais lhe tinha gostado daquele bar nem sua proprietária, e freqüentemente
havia
desejado que Bernie tivesse encontrado um estabelecimento mais próximo, preferivelmente um que tivesse uma garçonete de seios opulentos e coração de ouro. Suspeitava
que esse era um tipo mais freqüente na ficção que na vida real. A clientela habitual da hora da comida se arracimaba ao redor da barra, que, ao outro
lado estava presidida pelo Mavis, com seu sorriso ligeiramente ameaçadora e seu ar de extrema respeitabilidade. Mavis se trocava o vestido três vezes ao dia, o penteado
uma vez ao ano e o sorriso nunca. As duas mulheres jamais se gostaram da uma à outra, embora Bernie andava entre elas como um afetuoso cão velho, lhe parecendo
conveniente acreditar que eram grandes amigas e sem dar-se conta ou não querendo ver o choque quase físico de antagonismo que existia entre as duas. Mavis lhe recordava
a Cordelia uma bibliotecária que tinha conhecido em sua infância e que escondia sob o mostrador os livros novos para que não os manchassem. Possivelmente o pesar
reprimido
do Mavis se devia a que se via obrigada a exibir suas mercadorias de um modo tão ostentoso, forçada a medir sua simpatia ante uns olhos vigilantes. Empurrando de
um
lado ao outro da barra uma jarra de cerveja com refrigerante e um ovo escocês em resposta à petição da Cordelia, disse:
     -ouvi dizer que tiveram vocês à polícia em seu escritório.
     Observando seus ávidos rostos, Cordelia pensou: "Já estão inteirados, naturalmente, e agora querem ouvir os detalhes; porque os ouçam". Disse:
     -Bernie se cortou as bonecas duas vezes. A primeira vez não chegou à veia, a segunda sim. Pôs o braço em água para facilitar o desangramiento. Haviam-lhe
dito que tinha câncer e não pôde enfrentar-se ao tratamento.
     Viu que pensavam que isso era diferente. Os integrantes do pequeno grupo que rodeava ao Mavis se olharam uns aos outros, depois apartaram seus olhares rapidamente
e beberam de seus copos. O cortá-las veias era algo que também o faziam outras pessoas, mas o pequeno sinistro caranguejo introduziu seus pinzas de temor em
suas mentes. Inclusive Mavis parecia como se visse a terrível enfermidade espreitando por entre suas garrafas. Disse:
     -Suponho que procurará você outro emprego, não? Ao fim e ao cabo, é difícil que você sozinha possa levar adiante a agência. Não é um trabalho adequado para
uma
mulher.
     -Não é diferente de trabalhar detrás de uma barra; conhece-se toda classe de pessoas.
     As duas mulheres se olharam e um rápido e mudo diálogo se desenvolveu entre elas, claramente ouvido e compreendido por ambas.
     -E não você pense, agora que ele está morto, que a gente vai continuar deixando mensagens para esta agência aqui.
     -Não tinha intenção de lhe pedir tal coisa.
     Mavis ficou a esfregar vigorosamente um copo, sem apartar os olhos do rosto da Cordelia.
     -Parece-me que sua mãe não aprovaria que levasse o negócio você sozinha.
     -Eu só tive mãe durante a primeira hora de minha vida, de modo que não tenho que me preocupar por isso.
     Cordelia viu em seguida que aquela observação lhes tinha afetado profundamente e voltou a perguntar-se a respeito da facilidade das pessoas maiores para sentir-se
ofendidas por feitos simples quando na aparência são capazes de admitir qualquer dose de opiniões perversas ou chocantes. Mas o silêncio deles, grávido de
censura, pelo menos a deixou em paz. levou-se a cerveja com refrigerante e o ovo escocês a um assento junto à parede e ficou a pensar em sua mãe sem sentimentalismo.
Gradualmente, a partir de uma infância privada de carinho, tinha ido elaborando uma filosofia da compensação. Em sua imaginação, tinha desfrutado de uma vida
de amor em só uma hora sem contrariedades nem pesares. Seu pai nunca lhe tinha falado da morte de sua mãe e Cordelia tinha evitado lhe perguntar a respeito disso,
temerosa de saber que sua mãe nunca a tinha tido em seus braços, nunca recuperou o conhecimento, nunca possivelmente chegou ou seja que tinha uma filha. Esta crença
em
o amor de sua mãe era a única fantasia que não podia permitir-se perder ainda, mesmo que, com o passo dos anos, cada vez sentia menos real a necessidade de
entregar-se a ela. Então, na imaginação, consultou a sua mãe. Era justo o que esperava: sua mãe pensava  que aquilo era um trabalho perfeitamente adequado
para uma  mulher.
     O pequeno grupo da barra tinha voltado para suas bebidas.  Entre os ombros deles podia ver sua própria imagem refletida no espelho que havia em cima da
barra. A cara desse dia não era diferente da cara do dia anterior; uns cabelos entupidos, ligeiramente castanhos, emoldurando uns rasgos que  pareciam feitos
como se um gigante tivesse posto uma mão  sobre a cabeça dela e o outro debaixo de seu queixo e, brandamente, tivesse ido espremendo seu rosto; sob sua franja,
uns olhos grandes entre verdes e pardos; maçãs do rosto também grandes; uma boca graciosa, como de menina. "Uma cara de gato", pensou ela, mas serenamente decorativa
em
médio do reflexo de garrafas de cores e do intenso brilho do bar do Mavis. Apesar de seu aspecto de enganosa juventude, podia ser um rosto impenetrável, pouco
comunicativo. Cordelia tinha aprendido a ser estóica a idade temprana. Todos seus pais adotivos, com amabilidade e boa intenção, segundo suas diversas maneiras de
ser, tinham-lhe exigido uma só coisa: tinha a obrigação de ser feliz. Rapidamente, tinha aprendido que mostrar infelicidade era arriscar-se a perder amor. Comparados
com esta primitiva disciplina de dissimulação, todos os enganos subseqüentes tinham resultado fáceis.
     O Focinho de porco se dirigia para ela. foi sentar se no banco, com seu grosso corpo quase tocando o dela. O Focinho de porco lhe resultava antipático, até
sabendo que havia
sido o único amigo do Bernie. Bernie lhe tinha explicado que o Focinho de porco era um confidente  da polícia e que o fazia bastante bem. E havia outras fontes de
ganhos.
Algumas vezes seus amigos roubavam quadros famosos ou jóias valiosas. Então, o Focinho de porco, convenientemente instruído, sugeria à polícia o lugar onde podia
encontrar-se
o bota de cano longo. Havia uma recompensa para o Focinho de porco, que logo se repartia, naturalmente, entre os ladrões, e também uma quantidade para o detetive,
que, em definitiva,
fazia a maior parte do trabalho. Como tinha indicado Bernie, a companhia de seguros economizava dinheiro, os donos recebiam seus bens intactos, os ladrões
não corriam perigo de parte da polícia e o Focinho de porco e o detetive obtinham seu pagamento. Este era o sistema. Cordelia, surpreendida, não tinha tido vontades
de protestar
muito. Suspeitava que Bernie também tinha sido confidente em seu dia, embora nunca com tanta habilidade e com resultados tão lucrativos.
     O Focinho de porco tinha os olhos chorosos, e a mão com que agarrava o copo de uísque lhe tremia.
     -Pobre velho Bernie, eu já o tinha visto vir. Tinha estado perdendo peso durante o ano passado e tinha aquele aspecto cinzento que meu pai estava acostumado
a dizer
que era a cor do câncer.
     Pelo menos, o Focinho de porco o tinha notado, ela, em troca, não.  Bernie lhe tinha parecido sempre cinzento e doentio. Uma coxa grossa e quente se aproximou
ainda
mais.
     -O pobre, nunca teve sorte. Os do DIC o tiraram de cima. Não o disse? Foi o delegado Dalgliesh, que  então era inspetor. comportou-se como um
autêntico filho de  puta. Não lhe quis dar uma segunda oportunidade, isto o digo eu.
     -Sim, Bernie me contou isso -mentiu Cordelia. Logo acrescentou-. Não parecia particularmente amargurado por isso.
     -Nada ganha estando amargurado, verdade? Terá que tomar as coisas tal como vêm, este é meu lema. Suponho que estará você procurando outro trabalho, não?
     Disse-o ansiosamente, como se a defecção dela tivesse que lhe abrir as portas da agência para explorá-la por sua conta.
     -Não, por agora -disse Cordelia-. Não vou procurar um novo trabalho por agora.
     Tinha tomado duas decisões: continuaria no negócio do Bernie até que não ficasse com o que pagar o aluguel, e jamais, enquanto vivesse, voltaria a pôr
os pés no Faisão de Ouro.
Esta decisão de continuar fazendo funcionar o negócio sobreviveu aos quatro dias seguintes, sobreviveu ao descobrimento do contrato do aluguel e o acordo
que revelava que Bernie, depois de tudo, não era o proprietário da casita da rua Cremona e que a habitação que lhe tinha cedido a estava ocupando ela
de maneira ilegal, e certamente o balanço do crédito do Bernie logo que bastaria para pagar os gastos do funeral; sobreviveu ao feito de inteirar-se disto através
do diretor do banco, e de que os da garagem lhe comunicassem que o Mini tinha que ser revisado dentro de pouco; sobreviveu ao desalojamento da casa da rua Cremona.
Por toda parte encontrava os tristes detrito de uma vida solitária e desorganizada.
     As latas de guisado irlandês e de feijões cozidos -acaso aquele homem alguma vez tinha comido outra coisa?- estavam empilhadas em uma pirâmide cuidadosamente
construída
como na cristaleira de uma loja de ultramarinos; grandes pulse de verniz para metal e para o chão, pela metade, com seu conteúdo seco e solidificado; uma gaveta
de trapos velhos utilizados como panos de chão para tirar o pó, mas rígidas por uma mescla de verniz e porcaria; um cesto de roupa suja sem esvaziar; calças de
lã rígidos por ter sido lavados a máquina e com manchas de cor marrom ao redor do cavalo... como pôde ter deixado todo aquilo para que alguém algum
dia o descobrisse?
     Ia diariamente ao escritório, limpava, tirava o pó, ordenava os fichários. Não tinha chamadas nem clientes e, contudo, parecia sempre ocupada. Terá que
assistir à indagação, deprimente com todo seu frio formalismo e seu inevitável veredicto. Terá que efetuar a visita ao notário do Bernie. Era um homem de aspecto
tímido, entrado em anos, com um despacho inconvenientemente situado perto da estação de Mele End, que recebeu a notícia da morte de seu cliente com a mesma
lúgubre resignação que se se tratasse de uma afronta pessoal, e, depois de uma breve busca, encontrou o testamento do Bernie e se inclinou sobre ele com ar de suspicacia
e estranheza, como se não fosse o documento redigido por ele mesmo pouco tempo antes. Conseguiu dar a Cordelia a impressão de entender que ela tinha sido a amante
do Bernie -por que, se não, tinha que lhe deixar em herança o negócio?- mas como ele era homem de mundo não lhe concedia a menor importância. Não tomou parte alguma
no referente ao funeral, exceto o fato de proporcionar a Cordelia o nome de uma empresa de pompas fúnebres; ela suspeitou que provavelmente lhe dariam uma
comissão. sentiu-se aliviada, depois de uma semana de deprimente solenidade, ao encontrar que o diretor da funerária era além disso uma pessoa simpática e competente.
Uma vez que descobriu que Cordelia não ia desfazer se em lágrimas ou entregar-se às histriônicas cenas das que não querem resignar-se a uma perda, alegrou-se
de poder discutir o preço e as vantagens do enterro e da cremação com franqueza própria de um conspirador.
     -Sempre é preferível a cremação. Há-me dito que não há seguro privado? Então faça que todo se realize da forma mais rápida, fácil e troca possível.
me crie, isto é o que os falecidos quereriam nove de cada dez vezes. Uma tumba é um luxo caro nestes dias, inútil para ele, inútil para você. O pó ao
pó, as cinzas às cinzas; mas, o que há do processo intermédio? Não é bonito pensar nisso, verdade? Assim, por que não acabar o mais rapidamente possível
e pelos mais assépticos métodos modernos? Pense, senhorita, que lhe estou aconselhando contra meus próprios interesses.
     Cordelia disse:
     -É você muito amável. Pensa que deveríamos pôr uma coroa?
     -E por que não?, isso dará um pouco de cor. Mas disso já me encarregarei eu.
     De modo que houve uma cremação e uma coroa. A coroa tinha sido uma almofada vulgarmente inapropriada de lírios e cravos médio murchos já e que pareciam cheirar
a morto. O serviço de cremação foi pronunciado por um sacerdote com rapidez cuidadosamente controlada e em um tom que sugeria desculpa, como se queria assegurar
a seus ouvintes que, mesmo que desfrutava de uma especial revelação, não esperava deles que acreditassem o incrível. Bernie passou ao processo de incineração de
seu
corpo ao som de música sintética e só no momento preciso, a julgar pelo movimento impaciente do cortejo que já estava esperando para entrar na capela.
     Depois, Cordelia se encontrou sozinha sob a clara luz do sol, sentindo o calor do cascalho através das reveste de seus sapatos. O ar estava alagado
pelo aroma das flores. Invadida de repente por um sentimento de desolação e uma cólera defensiva em favor do Bernie, procurou um cabrito expiatório e o achou em
certo inspetor do Scotland Yard. Tinha expulso de um chute ao Bernie do único trabalho que sempre desejou fazer; não se tinha preocupado por saber o que havia
sido logo depois dele; e, o pior de tudo, nem sequer se tinha incomodado em assistir ao funeral. Bernie tinha necessitado ser detetive como outros homens necessitavam
pintar, escrever, beber ou fornicar Certamente o DIC era o suficientemente grande para acomodar o entusiasmo e a ineficiência de um só homem, não? Por primeira
vez Cordelia chorou pelo Bernie, ardentes lágrimas lhe nublavam a vista e multiplicavam a larga fileira de carros fúnebres que estavam esperando com suas coloridas
coroas, de sorte que pareciam estender-se em uma infinidade de reluzente metal e trêmulas flores. Tirando o lenço de gaze negra que cobria sua cabeça, sua única
concessão ao duelo, Cordelia começou a caminhar para a estação do metro.
     Tinha sede quando chegou a Oxford Circus e decidiu tomar um chá no restaurante do Dickins and Jones. Isto era incomum e extraordinário, mas também tinha sido
um dia incomum e extraordinário. entreteve-se o tempo suficiente para tirar o maior proveito a sua conta e eram mais das quatro e quinze quando chegou ao escritório.
     Tinha uma visita. Ali estava uma mulher esperando, com os ombros apoiados contra a porta, uma mulher que contrastava fria e incongruentemente com a suja
pintura e as gordurentas paredes. Cordelia se surpreendeu e sentiu que lhe subiam as cores à cara. Seus ligeiros sapatos não fizeram ruído na escada e por
espaço de breves segundos pôde ver seu visitante sem ser observada. Obteve uma impressão, direta e vívida, de competência e autoridade e uma impecável elegância
no vestir. A mulher levava um vestido cinza com pescoço aberto que mostrava uma estreita franja de algodão branco na garganta. Seus sapatos negros eram evidentemente
caros; pendurava de seu ombro uma grande bolsa negra com bolsos superpuestos. Era alta e seus cabelos, prematuramente brancos, estavam cortados curtos e amoldados
a sua cabeça como um gorro. Sua cara era pálida e alargada. Estava lendo The Teme, dobrado para podê-lo sustentar com sua mão direita. Depois de um par de segundos,
notou
a presença da Cordelia e os olhos de ambas se encontraram. A mulher olhou seu relógio de pulso.
     -Se for você Cordelia Gray, chega com dezoito minutos de atraso. Esta nota diz que você voltaria para as quatro.
     -Sei, sinto muito -disse Cordelia, subindo pressurosa os últimos degraus, e pôs a chave na fechadura. Abriu a porta-. Quer você passar?
     A mulher a precedeu para o despacho exterior e voltou o rosto para ela sem olhar sequer a habitação.
     -Esperava ver o senhor Pryde. Demorará muito?
     -Sinto muito; acabo de chegar de sua cremação. Quero dizer que... que Bernie está morto.
     -Evidentemente. Nossa informação era que estava vivo faz dez dias. Deve haver-se morto com notável rapidez e discrição.
     -Com discrição não. Bernie se suicidó.
     -Que extraordinário! -A visitante parecia surpreendida por esta revelação. Juntou as mãos e por espaço de uns  segundos perambulou inquieta pela habitação
em uma curiosa  pantomima de desolação-. Que extraordinário! -voltou a dizer. Soltou uma risita.
     Cordelia não falou, mas as duas mulheres se olharam uma a outra com gravidade. Então disse a visitante:
     -Bem, parece-me que tenho feito uma viagem em vão.
     Cordelia emitiu um " OH, não! " quase inaudível e resistiu um  absurdo impulso de jogar na mulher contra a porta.
     -Tenha a bondade de não ir-se falar comigo. Eu era a sócia do senhor Pryde e agora o negócio é meu. Estou segura de que poderia ajudá-la. Não quererá
você sentar-se, por favor?
     A visitante fez caso omisso da cadeira que lhe oferecia.
     -Ninguém pode ajudar, ninguém no mundo. Entretanto, algo pode fazer-se. Há algo que meu chefe quer saber particularmente, alguma informação que ele necessita,
e tinha decidido que o senhor Pryde era a pessoa idônea para proporcionar-lhe Não sei se ele a consideraria a você uma substituta eficaz. Há aqui um telefone
privado?
     -Aí dentro, por favor.
     A mulher entrou no despacho interior, sem voltar a dar  amostras de que o velho da estadia lhe causasse impressão alguma. voltou-se para a Cordelia.
     -Sinto muito. Devi me haver apresentado. Meu nome é Elizabeth Leaming e meu chefe é sir Ronald Callender.
     -O naturista?
     -Eu não deveria permitir que ele a ouvisse lhe chamar assim. Ele prefere ser chamado microbiólogo, que é o que é. me dispense, por favor.
     Fechou a porta com firmeza. Cordelia se sentiu repentinamente débil e se sentou ante a máquina de escrever. Suas teclas, símbolos familiares dentro de uns
medalhões negros, deslocaram seu desenho ante os cansados olhos da jovem, logo,  em um instante, voltou a ser tudo normal. agarrou-se aos lados  da máquina,
frios e pegajosos ao tato, e falou consigo mesma tratando de persuadir-se de que devia recuperar a calma. O coração lhe pulsava com violência.
     "Tenho que estar tranqüila, devo lhe demonstrar que sou dura. Esta tolice se deve unicamente à tensão causada pelo  funeral do Bernie e a ter estado
muito tempo de pé sob o ardente sol.
     Mas a esperança era traumática; estava encolerizada consigo mesma por preocupar-se tanto.
     A chamada Telefónica só durou um par de minutos. A porta do despacho interior se abriu; a senhorita Leaming se estava pondo as luvas.
     -Sir Ronald me perguntou se podia vê-la. você pode vir agora?
     "Ir aonde?", pensou Cordelia, mas não o perguntou.
     -Sim, vou necessitar minha equipe?
     A equipe era a maleta do cenário do crime, cuidadosamente desenhado e preparado pelo Bernie, com seus pinzas, tesouras, objetos necessários para tomar rastros
digitais, frascos para recolher amostras; Cordelia ainda não tinha tido ocasião de utilizá-lo.
     -Depende do que seja isso que você denomina sua equipe, mas acredito que não. Sir Ronald quer vê-la antes de decidir se lhe oferece o trabalho. Isso significa
uma viagem em trem até Cambridge, mas você deveria retornar esta noite. Há alguém a quem deve você dizer-lhe      -Quizá debería identificarme -dijo la señorita
Leaming, abriendo su bolso-. Ahí tiene un sobre con una dirección. No soy una tratante de blancas en caso de
     -Não, só sou eu.
     -Possivelmente deveria me identificar -disse a senhorita Leaming, abrindo sua bolsa-. Aí tem um sobre com uma direção. Não sou uma negociante de brancas em
caso de
que as haja e em caso de que você esteja assustada.
     -Estou assustada por muitas coisas, mas não pelos negociantes de brancas, e se o estivesse, um sobre com direção logo que conseguiria me tranqüilizar. Empenharia-me
em telefonar a sir Ronald Callender para comprová-lo.
     -Talvez lhe agradaria fazê-lo? -sugeriu a senhorita Leaming, sem zangar-se.
     -Não.
     -Vamos, pois?
     A senhorita Leaming se encaminhou para a porta. Quando saíram ao patamar e Cordelia se voltou para fechar com chave a porta do escritório, seu visitante
indicou-lhe o taco de papel que junto com um lápis pendia de um prego da parede.
     -Não seria melhor que trocasse você a nota?
     Cordelia arrancou sua mensagem interior e, depois de pensar um instante, escreveu:
     tive que sair para um caso urgente. Qualquer mensagem que me deixem por debaixo da porta, receberá minha imediata e pessoal atenção quando retornar.
     -Isso -disse a senhorita Leaming- deveria tranqüilizar a seus clientes.
     Cordelia se perguntou a si mesmo se o comentário era sarcástico; resultava impossível de dizer a causa do tom indiferente com que foi pronunciado. Mas não
sentia que a senhorita Leaming se estivesse burlando dela e se surpreendeu por sua própria falta de ressentimento ante a maneira em que seu visitante se feito
cargo dos acontecimentos. Seguiu docilmente à senhorita Leaming ao baixar a escada e sair à rua Kingly.
     Foram pela linha central até a rua Liverpool e tomaram o trem de 17:36 para Cambridge com tempo de sobra. A senhorita Leaming comprou o bilhete
da Cordelia, foi à ordem a recolher uma máquina de escrever portátil e uma carteira com documentos e se encaminhou para um vagão de primeira classe. Disse:
     -Terei que trabalhar no trem; leva você algum livro ou revista para ler?
     -Isso está bem. Tampouco eu gosto de conversar quando estou viajando. Tenho o Trumpet Major, de Ardi. Sempre levo na bolsa algo para ler.
     Quando tiveram acontecido Bishops Stortford, ficaram sozinhas no compartimento, mas somente uma vez levantou a senhorita Leaming os olhos de seu trabalho
para fazer uma pergunta a Cordelia.
     -Como chegou você a trabalhar na agência com o senhor Pryde?
     -Quando saí da escola fui viver com meu pai ao continente. Fizemos muitas viagens. Faleceu em Roma em mês passado de maio, de um ataque cardíaco, e eu
retornei a casa. Eu sozinha tinha aprendido taquigrafia e mecanografia e encontrei trabalho em uma agência de secretárias. Enviaram ao Bernie e, depois de transcorridas
umas poucas semanas, deixou-me que lhe ajudasse em um ou dois casos. Decidiu me treinar e eu acessei a trabalhar com ele, de modo permanente. Faz dois meses que
me fez seu
sócia.
     Todo aquilo queria dizer que Cordelia renunciou a um salário fixo em troca das inseguras recompensas de êxito em forma de uma participação igual nos benefícios
junto com o desfrute gratuito de uma habitação na casa do Bernie. Ele não tinha tido a intenção de extorqui-la. O oferecimento da sociedade tinha sido feito
com a segurança de que ela saberia apreciá-lo em sua justa medida, não como um prêmio à boa conduta, mas sim como uma amostra de confiança.
     -A que se dedicava seu pai?
     -Era um poeta marxista itinerante e um revolucionário aficionado.
     -Deve ter tido você uma infância interessante.
     Ao recordar a sucessão de mães adotivas, os inexplicados e incompreensíveis traslados de uma casa a outra, as mudanças de escola, as caras preocupadas
dos funcionários locais da Segurança Social e as professoras de escola, que se perguntavam a si mesmos desesperadamente o que fazer com ela durante as férias,
Cordelia respondeu a esta afirmação como o fazia sempre, com gravidade e sem ironia.
     -Sim, foi muito interessante.
     -E que tal foi o treinamento que recebeu do senhor Pryde?
     -Bernie me ensinou algumas das coisas que ele aprendeu no DIC: como examinar devidamente o cenário de um crime, como recolher amostras, alguns elementos
de autodefesa, como descobrir e tomar rastros digitais..., essa classe de coisas.
     -trata-se de habilidades que me parece que encontrará você pouco apropriadas para este caso.
     A senhorita Leaming inclinou a cabeça sobre seus papéis e já não voltou a falar até que o trem chegou a Cambridge.
Fora da estação, a senhorita Leaming jogou uma breve olhada ao estacionamento de carros e se encaminhou para uma caminhonete negra. De pé junto a ela, rígido como
um chofer uniformizado, achava-se um fornido jovem com uma camisa branca de pescoço aberto, calça escura e botas altas, ao que a senhorita Leaming, sem o menor
tipo de cerimônia nem explicação, apresentou como "Lunn". O jovem fez uma breve saudação com a cabeça, mas não sorriu. Cordelia lhe tendeu a mão. O apertão foi momentâneo
mas notavelmente forte, e lhe esmagou os dedos; Cordelia, reprimindo uma careta de dor, viu um cintilação naqueles olhos de cor parda escura e se perguntou
se não lhe teria feito mal de propósito. Aqueles olhos destacavam certamente por sua beleza, uns olhos úmidos com povoadas pestanas e com o mesmo aspecto de turbado
dor ante os
imprevisíveis terrores do mundo. Mas essa beleza mas bem acentuada, compensava a falta de atrativo do resto daquele homem. Era, pensou Cordelia, como um sinistro
esboço em branco e negro, com seu pescoço grosso e curto, e uns poderosos ombros que pareciam querer arrebentar as costuras de sua camisa. Possuía uma abundante
mata
de cabelo negro, um rosto ligeiramente picado de varíolas e uma boca úmida e desgracioso; a cara de um querubim libertino. Era um homem que suava profusamente;
a camisa estava manchada de suor debaixo dos braços e levava a roupa tão ajustada ao corpo que fazia ressaltar a pronunciada curva das costas e os vigorosos
bíceps.
     Cordelia compreendeu que os três teriam que ir apertados na caminhonete. Lunn manteve aberta a portinhola sem desculpar-se, exceto para dizer:
     -O Rover está ainda em reparação na oficina.
     A senhorita Leaming ficou um pouco atrás, de modo que Cordelia se viu obrigada a subir a primeira e sentar-se ao lado do homem. Pensou: "Estes dois não se têm
simpatia e ele tampouco me tem isso ".
     perguntava-se a si mesmo qual devia ser o papel que desempenhava aquele indivíduo no lar de sir Ronald Callender. o da senhorita Leaming já o havia
adivinhado; nenhuma secretária corrente, por muito tempo que levasse no serviço, por muito indispensável que fosse, tinha aquele ire autoridade ou falava de "meu
chefe" naquele tom de possessiva ironia. Mas se perguntava a si mesmo a respeito do Lunn. Não se comportava como um subordinado e a Cordelia tampouco parecia um
cientista.
Claro que os cientistas eram seres estranhos para ela. Irmã Mary Magdalen era a única científica que tinha conhecido. A irmã lhes ensinava o mais elementar de
as ciências, uma mescla de física, química e biologia, tudo revolto. Os temas cientistas em geral mereciam pouca consideração no Convento da Imaculada
Concepção, embora as artes sim se acostumavam bem. Irmã Mary Magdalen era uma tímida monja já entrada em anos, com uns olhos que olhavam intrigados desde detrás
de
seus óculos de arreios de aço, com os torpes dedos permanentemente manchados de produtos  químicos, e que ao parecer ficava tão surpreendida como  suas alunas
ante as extraordinárias explosões e fumaças que suas atividades com o tubo de ensaio e a redoma provocavam em ocasiões. preocupou-se mais de demonstrar
o incompreensível do universo e o inescrutável das leis de Deus que de revelar princípios científicos, e nisto certamente tinha tido êxito. Cordelia sabia
que irmã Mary Magdalen não lhe teria sido de ajuda alguma ao tratar com sir Ronald Callender; o sir Ronald Callender que tinha feito sua campanha na causa da
conservação da vida muito antes de que seu interesse se convertesse em uma obsessão popular, e que tinha  representado a seu país nas Conferências Internacionais
sobre Ecologia e tinha sido condecorado por seus serviços emprestados à conservação. Tudo isto Cordelia, quão mesmo o resto do país, sabia por suas aparições
em televisão e os suplementos dominicais dos periódicos. Era o científico oficial, cuidadosamente não comprometido politicamente, que personificava, para tranqüilidade
de todos, ao moço pobre que tinha feito uma boa carreira. Como, perguntava-se Cordelia, lhe tinha passado pela cabeça contratar os serviços do Bernie
Pryde?
     Insegura de até que ponto gozava Lunn da confiança de seu chefe ou da senhorita Leaming, perguntou com cautela:
     -Como foi que sir Ronald ouviu falar do Bernie?
     -John Bellinger lhe falou dele.
     De modo que ao fim chegava o prêmio Bellinger!. Bernie sempre o tinha esperado. O caso Bernie tinha sido seu êxito mais lucrativo, possivelmente seu único êxito.
John Bellinger era o diretor de uma pequena empresa familiar que fabricava instrumentos científicos especializados. No ano anterior, seu escritório se viu
invadida por uma profusão de cartas obscenas  e, não querendo chamar à polícia, tinha telefonado ao Bernie. Este, introduzido entre o pessoal da empresa,
segundo sua própria sugestão, em qualidade de mensageiro, havia resolvido com rapidez um problema que não era muito difícil. As cartas tinham sido escritas pela
secretária
pessoal do Bellinger, mulher de média idade e muito bem considerada. Bellinger ficou agradecido. Bernie, depois de refletir ansiosamente e consultar com a Cordelia,
tinha enviado uma fatura cuja quantia assombrava aos dois, mas que foi paga pronta e religiosamente. Aquele dinheiro manteve em marcha a agência durante um mês.
Bernie havia dito: "O caso Bellinger será como um prêmio para nós, já o verá. Nesta classe de trabalho todo  pode acontecer. Ele nos escolheu simplesmente tomando
nosso nome da guia Telefónica, mas agora recomendará a suas amizades. Este caso poderia ser o começo de algo  grande".
     E então, pensava Cordelia, no dia do funeral do Bernie, tinha chegado o prêmio Bellinger.
     Já não fez mais perguntas, e a viagem, que durou menos de trinta minutos, transcorreu em silêncio. As três estavam sentados coxa com coxa, mas distanciados.
Cordelia nada viu da cidade. Ao final da rua Station, junto ao monumento  à guerra, o carro virou à esquerda e logo estiveram  no campo. Havia
amplas extensões de trigo verde, de vez em quando a salpicada sombra de fileiras de árvores, desordenados pueblecitos de casitas com teto de palha e achaparradas
quintas de cor vermelha pulverizadas ao longo da estrada, colinas baixas das quais podia ver Cordelia as torres e chapiteles da cidade, brilhando com
enganosa proximidade sob os raios do sol poente. Finalmente passaram outro pueblecito, com um magro cinturão de olmos bordeando a estrada, um comprido muro curvo
de vermelhos tijolos e a caminhonete entrou por umas portas abertas de ferro forjado. Tinham chegado.
A casa era evidentemente georgiana, possivelmente não do melhor estilo georgiano, mas solidamente construída, agradavelmente proporcionada e com o aspecto de toda
boa
arquitetura nacional que se desenvolveu naturalmente fora de seu ambiente. O suave tijolo, adornado com glicinas, brilhava luminosamente sob o sol vespertino,
fazendo refulgir o verdor da planta trepadeira e dando a toda a casa o aspecto artificial de um cenário de filme. Era essencialmente uma casa familiar,
uma casa acolhedora. Mas nesse momento um pesado silêncio gravitava sobre ela e as fileiras de janelas elegantemente proporcionadas eram como olhos sem vida.
     Lunn, que tinha conduzido rápida mas habilmente, parou diante do alpendre. Permaneceu em seu assento enquanto as duas mulheres se apeavam e então levou a
caminhonete por volta de um dos lados do edifício. Ao deslizar-se desde seu alto assento, Cordelia pôde vislumbrar uma série de edifícios baixos, rematados por ornamentais
torrecillas, que ela tomou por estábulos ou garagens. Através da porta de amplo arco pôde ver como os terrenos foram paulatinamente deixando passo a uma perspectiva
longínqua da plaina campina do condado de Cambridge, adornada com os suaves matizes verdes e leonados de uma temprana primavera. A senhorita Leaming disse:
     -O bloco de estábulos foi convertido em laboratórios. A maior parte este lado é vidro. Foi um hábil trabalho de um arquiteto sueco, funcional mas
atrativo.
     Pela primeira vez desde que se conheceram, sua voz soava interessada, quase entusiástica.
     A porta principal estava aberta. Cordelia entrou em um espaçoso vestíbulo adornado com painéis com uma escada que girava à direita. Percebeu um aroma
de rosas e de lavanda, tapetes suntuosos em um encerado assoalhado, o amortecido tictac de um relógio.
     A senhorita Leaming se encaminhou para uma porta que se encontrava no extremo do vestíbulo. Dava acesso a um estudo, uma habitação elegante, repleta de
livros, com uma vista de amplas extensões de grama e um grupo de árvores. Frente às puertaventanas havia um escritório de estilo georgiano e atrás do escritório
um homem sentado.
     Cordelia tinha visto suas fotografias na imprensa e sabia a que atenerse. Mas era de uma vez mais baixo e mais impressionante do que ela tinha imaginado. Sabia
que se encontrava frente a um homem de autoridade e de grande inteligência; dele se desprendia uma energia que era como uma força física. Mas quando se levantou
de seu assento e lhe fez com a mão um gesto para que se sentasse, viu que era mais esbelto do que suas fotografias sugeriam, posto que os pesados ombros e a
impressionante cabeça faziam que parecesse em conjunto mais corpulento. Tinha uma cabeça finamente perfilada, com um nariz de ponte alta, olhos afundados, cujas
pálpebras
pareciam pesados, e uma boca flexível e bem modelada. Seus cabelos negros, ainda não encanecidos, caíam-lhe sobre a frente. Em seu semblante se adivinhava uma sombra
de cansaço, e, quando Cordelia se aproximou mais a ele, pôde perceber a contração de um nervo em sua têmpora esquerda e a cor quase imperceptível das veias em
a íris de seus fundos olhos. Mas seu corpo compacto, tenso pela energia e um latente vigor, não fazia concessões à fadiga. Mantinha muito erguida a arrogante
cabeça, os olhos tinham um olhar viva e escrutinadora baixo os pesadas pálpebras. Mas, por cima de tudo, seu aspecto era o de um triunfador. Cordelia tinha visto
antes aquele aspecto, tinha-o reconhecido em meio das gente que contemplavam impertérritas o passo notório -com esse brilho quase físico, relacionado com o magnetismo
da sexualidade e não embaciado pela fadiga ou pela falta de saúde- de homens que conheciam e desfrutavam das realidades do poder.
     A senhorita Leaming disse:
     -Isto é tudo o que fica da Agência de detetives Pryde: a senhorita Cordelia Gray.
     Aqueles olhos vivos cravaram seu olhar nos dela.
     -"Pomos orgulho em nosso trabalho", verdade?
     Cordelia, cansada depois de sua viagem ao final de um movimento jornada, não estava de humor para brincadeiras sobre o patético trocadilho do Bernie. Disse:
     -Sir Ronald, vim porque sua secretária me disse que possivelmente poderia você utilizar meus serviços. Se está equivocada, alegraria-me se soubesse quanto antes
para poder retornar a Londres em seguida.
     -Não é minha secretária nem está equivocada. Deve você perdoar minha descortesia; resulta um pouco desconcertante esperar a um corpulento expolicía e encontrar-se
com você. Não me queixo, senhorita Gray: você poderia fazê-lo muito bem. Quais são seus honorários?
     Pergunta-a podia soar ofensiva, mas não o era; era simplesmente um homem prático. Cordelia o disse, um pouco muito rápido, um pouco muito ansiosa.
     -Cinco libras ao dia e os gastos, mas tentamos que estes sejam o mais baixos possíveis. Em troca disso, naturalmente, você terá meus serviços exclusivos.
Quero dizer com isso que não trabalharei para outro cliente até que seu caso esteja concluído.
     -E existe outro cliente?
     -Bom, no momento não, mas poderia muito bem havê-lo. -E se apressou a acrescentar-. Temos uma cláusula de jogo limpo. Se eu dito, em qualquer fase de
a investigação, que preferiria não continuar com ela, você tem direito a toda a informação que eu tenha obtido até esse momento Se dito não dar-lhe então
não lhe cobro o trabalho já realizado.
     Esse tinha sido um dos princípios do Bernie. Tinha sido um homem de arraigados princípios. Inclusive quando não tinha havido caso algum durante uma semana,
era capaz de discutir felizmente até que ponto estaria justificado lhe dizer ao cliente menos da verdade completa, o momento no que terei que fazer intervir
à polícia em uma investigação, a ética do engano ou a mentira ao serviço da verdade. "Mas nada de chantagens -estava acostumado a dizer Bernie-, estou firmemente
em contra.
E não vamos tocar a sabotagem industrial".
     A tentação para o um ou o outro não era grande. Nunca se tinha apresentado a oportunidade para a chantagem e em nenhum momento tinha sido Bernie convidado a
tocar a sabotagem industrial.
     Sir Ronald disse:
     -Isso sonha razoável, mas não acredito que este caso vá apresentar lhe a menor crise de consciência. É relativamente singelo. Faz dezoito dias, meu
filho se enforcou. Quero que você averigúe por que. você pode fazê-lo?
     -Eu gostaria de tentá-lo, sir Ronald.
     -Dou-me conta de que você necessita certa informação básica a respeito do Mark. A senhorita Leaming a escreverá a máquina, logo poderá você lê-la e nos fazer
saber que mais necessita.
     Cordelia disse:
     -Eu gostaria que me contasse isso você mesmo, por favor.
     -É preciso?
     -Serviria-me de ajuda.
     Sir Ronald voltou a sentar-se, agarrou um resto de lápis e começou a lhe dar voltas em suas mãos. Ao cabo de um momento, o colocou distraídamente no bolso.
Sem olhar a Cordelia, começou a falar:
     -Meu filho Mark fez vinte e um anos em vinte e cinco de  abril deste ano. achava-se em Cambridge estudando História em meu antigo colégio e estava em seu último
ano. Faz cinco semanas, e sem prévio aviso, abandonou a universidade e tomou um trabalho de jardineiro com um comandante chamado Markland, que vive em uma casa chamada
Summertrees nos subúrbios do Duxford. Mark não me deu explicação alguma desta ação nem então nem mais tarde. Vivia sozinho em uma cabana nos terrenos do comandante
Markland. Dezoito dias mais tarde, foi encontrado pela irmã de seu patrão pendurando pelo pescoço de uma corda atada a um gancho do teto da sala de estar.
O veredicto da investigação foi que se tirou a vida em um momento em que sua mente estava desequilibrada. Eu sei pouco a respeito da mente de meu filho, mas rechaço
esse cômodo eufemismo. Era uma pessoa racional. Teve uma razão para fazer o que fez. Quero saber qual foi.
     A senhorita Leaming, que tinha estado olhando pelas  puertaventanas para o jardim, voltou-se e disse com repentina  veemência:
     -lhe dê com esse afã de saber! Isso já é ser intrometido! Se ele tivesse querido que soubéssemos, haveria-nos isso dito.
     Sir Ronald disse:
     -Não estou disposto a continuar nesta incerteza. Meu filho está morto. "Meu filho". Se eu for de algum modo responsável, prefiro sabê-lo também.
     Cordelia olhou a um e a outro. Perguntou:
     -Deixou alguma nota?
     -Deixou uma nota, mas não uma explicação. Foi encontrada em sua máquina de escrever.
     Tranqüilamente, a senhorita Leaming começou a falar.
     "Descendendo pela sinuosa caverna, percorríamos a provas nosso tedioso caminho, até que debaixo de nós apareceu um imenso vazio como o céu inferior,
e agarramos às raízes das árvores e ficamos suspensos sobre essa imensidão; mas eu disse: se te parecer, entregaremos a este vazio e veremos se também
aqui está a providência".
     A voz rouca, curiosamente profunda, apagou-se. Estavam silenciosos. Então disse sir Ronald:
     -Você pretende ser detetive, senhorita Gray. O que deduz disso?
     -Que seu filho lia ao William Blake. Não é isso uma passagem das bodas do céu e do inferno?
     Sir Ronald e a senhorita Leaming se olharam. Sir Ronald disse:
     -Isso é o que me hão dito.
     Cordelia pensou que a exortação do Blake, singela e delicada, desprovida de violência ou desespero, era mais apropriada para suicidarse afogando-se ou envenenando-se
-um flutuar cerimonioso ou um afundar-se no esquecimento- que o trauma de enforcar-se. e, contudo, estava a analogia do cair ou lançar-se ao vazio. Mas esta especulação
era mera fantasia. O caso é que ele tinha eleito Blake: tinha eleito enforcar-se. Possivelmente não tivesse à mão outro meio mais delicado; possivelmente tinha obrado
por repentino
impulso. O que era o que sempre havia dito o Comi? "Nunca teorize te adiantando a seus feitos".      Cordelia deveria jogar uma olhada à cabana.
     Sir Ronald perguntou com um leve movimento de impaciência:
     -Bem, aceita você o trabalho?
     Cordelia olhou à senhorita Leaming, mas os olhos desta não se encontraram com os seus.
     -Faz-me muita ilusão. Estava-me perguntando mesma se realmente queria você que o aceitasse.
     -O estou oferecendo. Preocupe-se com suas próprias responsabilidades, senhorita Gray, e eu me ocuparei das minhas.
     Cordelia disse:
     -Há algo mais que você possa me dizer? As coisas correntes. Gozava seu filho de boa saúde? Parecia preocupado por seu trabalho ou por seus assuntos amorosos?
Por questões de dinheiro?
     -Mark teria herdado uma fortuna considerável de seu avô materno se tivesse chegado à idade de vinte e cinco anos. Enquanto isso, recebia de mim uma atribuição
adequada, mas a partir da data em que abandonou o colégio universitário, transferiu de novo o saldo a minha própria conta corrente e deu instruções ao diretor
de seu banco para que fizesse o mesmo com qualquer pago futuro. É de supor que viveu do que ganhava durante as duas últimas semanas de sua vida. A autópsia
não revelou enfermidade alguma e seu preceptor atestou que seu trabalho acadêmico era satisfatório. Eu, naturalmente, nada sei deste assunto. Ele não confiava em
mim em
quanto a seus assuntos amorosos (que homem jovem o faz com respeito a seu pai?). Se teve alguma relação amorosa, espero que tenha sido heterossexual.
     A senhorita Leaming abandonou sua contemplação do jardim e se voltou. Estendeu as mãos em um gesto que pôde ter sido de resignação ou de desespero.
     -Nada sabíamos dele, nada! Então, por que esperar a que estivesse morto para começar a investigar?
     -E seus amigos? -perguntou Cordelia em tom baixo.
     -Raramente lhe visitavam aqui, mas havia dois que eu reconheci na investigação e no funeral: Hugo Tilling, de seu mesmo colégio, e sua irmã, que é uma
estudante posgraduada em New Hall que estuda Filologia. Recorda você como se chamava, Eliza?
     -Sophie. Sophie Tilling. Mark a trouxe aqui para jantar uma ou duas vezes.
     -você poderia me dizer algo a respeito dos primeiros anos da vida de seu filho? Onde se educou?
     -Foi a uma escola de crianças quando tinha cinco anos e depois a uma preparatória. Eu não podia ter aqui a uma criatura entrando e saindo do laboratório
sem que alguém a vigiasse. Posteriormente, conforme ao desejo de sua mãe (faleceu quando Mark contava nove meses), foi a uma Fundação Woodard. Minha mulher era
o que acredito se chama uma alta anglicana, e quis que o menino se educasse naquela tradição. Que eu saiba, não teve sobre ele efeito pernicioso algum.
     -Era feliz na escola preparatória?
     -Suponho que era tão feliz como a maioria dos meninos de oito anos, o que quer dizer que era desgraçado a maior parte do tempo, junto com períodos
de grande vivacidade. É importante tudo isto?
     -Algo poderia sê-lo. Já vê você que tenho que tratar de lhe conhecer.
     Qual era o ensino do arrogante, sapiente, sobre-humano Comi? "Terá que conhecer morto. Nada relacionado com ele é muito corriqueiro, muito carente
de importância. Os mortos podem falar. Podem conduzir diretamente até seu assassino". Só que esta vez, naturalmente, não havia um assassino. Disse:
     -Seria de muita ajuda se a senhorita Leaming pudesse escrever a máquina a informação que você me deu e acrescentasse o nome de seu colégio universitário
e o de seu tutor. E tenha a bondade de me proporcionar uma nota pela qual me autoriza a efetuar investigações.
     Sir Ronald abriu uma gaveta da esquerda do escritório, tirou uma folha de papel e escreveu nela; logo a entregou a Cordelia. O cabeçalho impresso dizia:
De sir Ronald Callender, F.R.C., Garforth House, Cambridgeshire. Debaixo tinha escrito: "Autorizo à senhorita Cordelia Gray a efetuar investigações por minha conta
sobre a morte de meu filho Mark Callender, acontecida em vinte e seis de maio". Tinha-o assinado e datado. Logo perguntou:
     -Algo mais?
     Cordelia disse:
     -Você falou que a possibilidade de que alguém mais fosse responsável pela morte de seu filho. Não está você de acordo com o veredicto?
     -O veredicto foi conforme à evidência, que é tudo que cabe esperar de um veredicto. Um tribunal não está constituído para estabelecer a verdade. Eu a
emprego a você para que faça um intento nesse sentido. você tem tudo o que necessita? Não acredito que possamos ajudá-la com mais informação.
     -Eu gostaria de ter uma fotografia.
     olharam sentidos saudades. Sir Ronald disse à senhorita Leaming.
     -Uma fotografia. Temos uma fotografia, Eliza?
     -Seu passaporte estará em algum lugar, mas não sei onde. Tenho a fotografia que lhe fiz no jardim o verão passado. Lhe vê bastante bem, parece-me. Vou
a procurá-la.
     Saiu da habitação. Cordelia disse:
     -E eu gostaria de ver sua habitação, se pode ser. Suponho que estava aqui durante suas férias, não?
     -Só ocasionalmente, mas, é obvio, tinha aqui uma habitação. A vou ensinar.
     A habitação se achava no segundo piso e na parte traseira. Uma vez dentro, sir Ronald fez caso omisso da Cordelia. dirigiu-se à janela e olhou para
a grama como se nem a jovem nem a habitação tivessem o menor interesse para ele. A habitação nada dizia a Cordelia sobre o Mark adulto. Estava mobiliada
com simplicidade, o lugar de refúgio de um escolar, e parecia como se nada tivesse trocado nela durante os dez últimos anos. Havia um armário baixo, branco, encostado
a uma das paredes, com a usual fileira de brinquedos abandonados: um urso de peluche, com a pele gasta de tanto ser acariciada e com um olho de vidro pendurando;
trens e caminhões de madeira grafite; um arca do Noé, cheia de animais de rígidas patas e com um Noé de cara redonda e sua mulher; uma barco com a vela desprendida;
um tabuleiro de tiro ao branco em miniatura. por cima dos brinquedos havia duas fileiras de livros. Cordelia se aproximou de examiná-los. Ali estava a biblioteca
ortodoxa
de um menino de classe média, os clássicos permitidos e transmitidos de geração em geração. Cordelia tinha tido acesso a eles quando foi adulta; não tinha encontrado
sitio em sua infância dominada pelos tebeos dos sábados e a televisão. Disse:
     -E seus livros atuais?
     -Estão guardados em caixas no porão. Mandou-os aqui quando abandonou o colégio universitário, e ainda não tivemos tempo de desempacotá-los. Não acredito que
isso tenha muita importância.
     junto à cama havia uma mesita redonda e ainda por cima desta um abajur e uma brilhante pedra redonda complicadamente perfurada pelo mar, tesouro recolhido possivelmente
em alguma praia durante umas férias. Sir Ronald a tocou brandamente com os dedos, logo começou a fazê-la rodar sob a palma de sua mão sobre a superfície de
a mesa. Depois, ao parecer distraídamente, deixou-a cair em seu bolso.
    -Bem -disse-. Baixamos, agora?
     encontraram-se ao pé da escada com a senhorita Leaming. Esta levantou os olhos para eles enquanto baixavam devagar, um ao lado do outro. Havia tal intensidade
controlada em seu olhar que Cordelia quase temia o que pudesse lhes dizer. Mas se voltou, baixando os ombros como se a tivesse invadido uma repentina fadiga, e
tudo que disse foi:
     -encontrei a fotografia. Quando houver você terminado com ela, agradeceria-lhe que me devolvesse isso. Pu-la no sobre junto com a nota. Não há
um trem rápido de retorno a Londres até as nove e trinta e sete minutos, de modos que possivelmente não lhe importaria ficar para jantar, verdade?
     O jantar foi uma experiência interessante mas algo estranha, a comida mesma foi uma mescla de aspectos formais e informais que Cordelia percebeu como o resultado
de um esforço mais consciente que casual. deu-se conta de que com isso se perseguia algum fim, mas não estava segura de se se tratava de um grupo de colaboradores
que se reuniam amigavelmente para uma comida em comum ou da ritual imposição de ordem e cerimônia a uma companhia diferente. O grupo de comensais estava formado
por dez pessoas: sir Ronald Callender, a senhorita Leaming, Chris Lunn, um professor visitante  americano, cujo impronunciável nome esqueceu Cordelia tão logo
como sir Ronald a teve apresentado, e cinco jovens cientistas. Todos os homens, Lunn incluído, levavam smoking e a senhorita Leaming luzia uma larga saia
de trocitos de raso de várias cores e uma blusa singela, sem mangas. Os preciosos azuis, verdes e vermelhos brilhavam e trocavam à luz das velas quando ela
movia-se, o que fazia ressaltar a pálida prata de seus cabelos e sua pele quase incolor. Cordelia ficou um pouco confundida quando sua anfitriã a deixou no
salão e subiu a escada para ir trocar se. Teria desejado levar algo mais competitivo que a saia de cor marrom clara e a blusa verde, em uma época em que
dá-se mais valor à elegância que à juventude.
     Lhe indicou onde estava o dormitório da senhorita Leaming para que fora a lavar-se e ficou intrigada pela elegância e simplicidade dos móveis, que
contrastavam com a opulência do quarto de banho contigüo. Enquanto examinava seu rosto cansado no espelho e dirigia seu lápis de lábios, desejava ter levado
consigo alguma sombra de olhos. Obedecendo a um impulso, e com um sentimento de culpa, abriu uma gaveta do penteadeira Estava cheio de uma variedade de produtos
de maquiagem,
velhos lápis de lábios de cores que fazia tempo que estavam acontecidos de moda, frascos de nata de base pela metade, lápis de olhos; crema hidratantes, frascos
de perfume pela metade. Revolveu e chegou a encontrar uma barrita de sombra de olhos que, em vista da grande quantidade de artigos desprezados, utilizou sem grandes
remorc11mlenros. O efeito foi estranho mas surpreendente. Não podia competir com a senhorita Leaming, mas ao menos parecia cinco anos maior. A desordem da gaveta
tinha-a surpreso e tinha tido que resistir a tentação de olhar se o guarda-roupa e as outras gavetas estavam tão desordenadas. Quão incongruentes e interessantes
eram os seres humanos! Pensou que resultava assombroso que uma mulher tão escrupulosa, pontual e competente pudesse sentir-se satisfeita de viver em meio de semelhante
desordem.
     O comilão se achava na parte dianteira da casa. A senhorita Leaming colocou a Cordelia entre ela mesma e Lunn,  assento que apresentava escassas perspectivas
de conversação  amena. Os restantes comensais se sentaram onde desejaram.  O contraste entre simplicidade e elegância se manifestava no  acerto da mesa.
Não havia luz artificial e três candelabros  de prata tinham sido colocados a distâncias regulares sobre a  mesa. Entre eles havia quatro jarras de vinho de um grosso
vidro verde com o pico curvo, como as que Cordelia tinha visto  freqüentemente em restaurantes italianos baratos. As toalhas individuais eram de simples cortiça,
mas
as colheres e garfos eram de prata antiga. As flores estavam postas em umas terrinas baixas, não arrumadas com habilidade, a não ser com aspecto de vítimas materiais
de uma tormenta no jardim, flores que  tinham sido arrancadas pelo vento e que alguém tinha tido a caridosa idéia de pôr em água.
     Os jovens apareciam incongruentes em seus esmóquines, não porque se sentissem incômodos com eles, não em vão desfrutavam da essencial auto-estima dos indivíduos
inteligentes e que têm êxito, mas sim porque parecia que os tivessem pego de um estabelecimento de objetos de segunda mão ou participassem de uma mascarada. Cordelia
viu-se surpreendida pela juventude daqueles homens; pareceu-lhe que só um deles tinha mais de trinta anos. Três deles eram homens desalinhados, inquietos,
que falavam depressa com vozes altas  e enfáticas, e que não fizeram o menor caso da Cordelia depois de sua apresentação. Os outros dois eram mais tranqüilos, e
um
deles, um moço alto de cabelos negros e acusadas facções irregulares, sorria-lhe através da mesa e parecia satisfeito de estar sentado a uma distância
da qual pudessem conversar.
     A comida era servida por um servente italiano e sua mulher, que deixavam os manjares cozinhados em pratos quentes em cima de um trinchero. A comida era abundante
e o aroma quase intolerablemente apetitoso para a Cordelia que até então não se precaveu de quão faminta estava. Havia uma fonte com um grande montão
de reluzente arroz, uma grande caçarola de vitela com um suculento molho de cogumelos, uma terrina de espinafres. A seu lado, na mesa fria, havia um presunto enorme,
um
lombo de boi e um interessante sortido de saladas e fruta. Os comensais se serviam eles mesmos, levando seus pratos de novo à mesa com a combinação
de comida, quente ou fria, que gostava. Os cientistas jovens encheram seus pratos a transbordar e Cordelia seguiu seu exemplo.
     Cordelia punha pouco interesse na conversação, mas observou que esta versava predominantemente sobre ciência e que Lunn, embora falava menos que os outros,
o fazia como seu igual. Cordelia pensou que Lunn devia ter resultado ridículo com seu smoking mas bem estreito, mas, surpreendentemente, mostrava-se com a
maior soltura, e era no comilão a segunda personalidade mais poderosa. Cordelia tentou analisar a razão disso, mas fracassou. Lunn comia devagar, emprestando
uma grande atenção à disposição da comida em seu prato, e de vez em quando sorria secretamente olhando o vinho de seu copo.
     No outro extremo da mesa, sir Ronald estava cortando uma maçã e falava com sua hóspede, com a cabeça inclinada. A fina e verde pele escorregava por entre
seus largos dedos e descendia ondulada para seu prato. Cordelia olhou à senhorita Leaming. Esta tinha fixos os olhos em sir Ronald com um interesse tão imperturbável
que Cordelia sentiu com desconforto que todos os olhos ali pressente deviam ver-se indevidamente atraídos para aquela máscara pálida e desdenhosa. Então,
a senhorita Leaming pareceu precaver-se de seu olhar. relaxou-se e, voltando-se para a Cordelia, disse-lhe:
     -Quando vínhamos no trem, você estava lendo ao Hardy. Gosta?
     -Muitíssimo, mas ainda eu gosto mais Jane Austen.
     -Então deve tentar encontrar uma ocasião para visitar o Museu Fitzwilliam de Cambridge. Tem uma carta escrita pelo Jane Austen. Acredito que a encontrará
interessante.
     Falava com a artificial e controlada simpatia de uma anfitriã que tenta encontrar um tema que pudesse interessar a uma convidada difícil. Cordelia, com
a boca cheia de vitela e cogumelos, perguntava-se como as arrumaria para seguir comendo. Mas, felizmente, o professor americano tinha captado a palavra
"Fitzwilliam" e chamou a atenção de toda a mesa com suas perguntas a respeito da coleção de mayólicas do museu, em que, ao parecer, achava-se interessado.
A conversação se fez general.
     Foi a senhorita Leaming a que conduziu de carro, esta vez à estação do Audley End em lugar da de Cambridge; troco para o qual não se indicou razão alguma.
Durante o trajeto em automóvel não falaram sobre o caso. Cordelia estava extenuada pelo cansaço, a comida e o vinho, e se deixou levar a trem sem tentar
obter alguma outra informação. Nem sequer pensava realmente que tivesse que obtê-la. Quando o trem ficou em marcha, agarrou o grosso sobre branco que lhe havia
entregue a senhorita Leaming e tirou e leu a nota que continha. Estava muito bem datilografada e redigida, mas o
disse pouco mais do que já sabia. Com a nota estava a fotografia.  Viu a imagem de um moço que ria, com a cabeça meio volta para a câmara e com uma
mão protegendo-os olhos dos raios do sol. Levava uma calça texana e uma camiseta e estava médio tendido na grama, com uma pilha de livros a seu lado,
sobre a erva. Possivelmente tinha estado ali trabalhando sob as árvores quando ela apareceu à janela com sua câmara fotográfica e lhe chamou imperiosamente para
que sonriera. A fotografia nada disse a Cordelia, salvo que, por um segundo solo, registrado finalmente, o moço tinha conhecido o modo de ser feliz. Cordelia
voltou a colocar a fotografia no sobre; suas mãos se juntaram em gesto protetor em cima dele, e ficou dormida.
II
À manhã seguinte, abandonou a rua Cremona antes das sete. A pesar do cansaço da noite anterior, fazia seus preparativos principais antes de
deitar-se. Não lhe tinham levado muito tempo. Tal como Bernie lhe tinha ensinado, comprovou sistematicamente a maleta do cenário do crime, rotina desnecessária,
já que nada disso tinha sido meio doido desde dia em que, para celebrar a fundação de sua sociedade, ele tinha desenhado essa maleta para ela. Deixou preparada a
câmara polaroid; pôs em ordem os mapas de estradas, que estavam confundidos com outros objetos em um extremo de sua mesa escritório; sacudiu seu saco de dormir
e o enrolou para deixá-lo preparado; encheu uma bolsa com latas de comida tiradas do armazém que Bernie tinha de sopa enlatada e feijões cozidos; considerou e finalmente
decidiu tomar o exemplar que tinham do livro sobre remédio forense do professor Simpson e seu própria rádio Hacker portátil; comprovou o estojo de primeiro socorros
de primeiros auxílios.
Finalmente, procurou para ela uma nova agenda, em que pôs o cabeçalho de Caso Mark Callender, e reservou as últimas páginas para anotar a conta de seus
gastos. Estes preliminares sempre tinham constituído a parte mais satisfatória de um caso, antes de que o aborrecimento ou o desgosto fizessem sua aparição, antes
de que a ilusão se convertesse em decepção e fracasso. Os planos do Bernie sempre tinham sido meticulosos e riscados com êxito; o que a fazia desabar-se era
a realidade.
     Finalmente, considerou sua roupa. Se continuava aquele tempo caloroso, seu vestido ao Jaeger, comprado com suas economias depois de pensá-lo muito para poder
levá-lo
em toda classe de entrevistas, resultaria muito caloroso, mas poderia ter que entrevistar ao diretor de um colégio universitário e terei que aspirar ao dignificado
profissionalismo exemplificado do melhor modo em um vestido. Decidiu viajar com sua saia de cor marrom clara, com uma blusa de mangas curtas e uns texanos e blusas
de mais abrigo para qualquer trabalho de campo. A Cordelia adorava a roupa, desfrutava fazendo projetos sobre ela e comparando-a, prazer limitado menos por
a pobreza que por sua obsessiva necessidade de poder empacotar todo seu guarda-roupa em uma só mala média, como uma refugiada perpetuamente preparada para fugir.
     Uma vez se teve liberado dos tentáculos do norte de Londres, Cordelia desfrutou de sua viagem em carro. O Mini se deslizava velozmente pela estrada, e
Cordelia pensou que nunca tinha funcionado tão bem. Agradava-lhe a campina do leste da Inglaterra, as largas ruas das cidades com mercado, o modo em que
os campos cresciam, sem sebes divisórios, até o bordo mesmo da estrada, a claridade e liberdade dos longínquos horizontes e os largos céus. O campo harmonizava
com seu próprio estado de ânimo. Tinha chorado pelo Bernie e voltaria a chorar por ele, sentindo falta de sua camaradagem e seu afeto desinteressado, mas este, em
certo
sentido, era o primeiro caso dela e estava contente de tratar de resolvê-lo sozinha. Era um caso que pensava que ela podia resolver Não a assustava nem lhe desagradava.
Conduzindo iludida o Mini através dos campos banhados pelo sol, com sua equipe bem empacotada no porta-malas, sentia-se alagada pela euforia da
esperança.
     Quando finalmente chegou ao povo do Duxford, ao princípio teve dificuldade em dar com o imóvel Summertrees. Ao parecer, o comandante Markland acreditava que
seu
importância justificava o omitir em seus gestos o nome da estrada. Mas a segunda pessoa a que Cordelia perguntou era um aldeão que pôde lhe indicar o
caminho, procurando lhe dar toda classe de detalhes, como se temesse que uma resposta muito superficial pudesse significar descortesia. Cordelia teve que procurar
um lugar adequado para girar e logo retroceder um par de quilômetros, porque já tinha passado Summertrees.
     E esta, ao fim, tinha que ser a casa. Era um grande edifício vitoriano de tijolo vermelho, com uma ampla margem de grama entre a estrada e a porta de madeira
aberta, que dava acesso ao caminho que conduzia até a casa. Cordelia se perguntava por que lhe tinha ocorrido a alguém construir uma casa tão impresionantemente
feia, ou, tendo decidido construi-la, tinha colocado uma monstruosidade suburbana no meio do campo. Possivelmente tinha substituído uma casa anterior, mais agradável.
Conduziu
o Mini para a erva mas a alguma distância da porta, e se dirigiu para o caminho. O jardim harmonizava com a casa; era formal até o ponto de resultar
artificial e muito bem cuidado. Inclusive as novelo rupestres apareciam, como mórbidas excrecencias, a intervalos meticulosamente planejados entre as pedras
que pavimentavam a terraço. Havia dois canteiros retangulares na grama, cada um deles com roseiras de rosas vermelhas e bordeados com franjas alternadas de lobelia
e alhelí. Pareciam uma exposição patriótica em um parque público. Cordelia pensou que ali faltava um haste para uma bandeira.
     A porta principal estava aberta, e por ela se via um escuro saguão pintado de cor marrom. antes de que Cordelia pudesse chamar o timbre, uma mulher entrada
em anos apareceu pela esquina da casa empurrando um carrinho de mão cheia de novelo. A pesar do calor levava botas Wellington, uma blusa e uma larga saia de
tweed e um lenço pacote à cabeça. Ao ver a Cordelia, deixou cair as varas do carrinho de mão e disse:
     -bom dia. Certamente vem você pelo da tômbola da igreja, verdade?
     Cordelia disse:
     -Não, não é pela tômbola. Venho de parte de sir Ronald Callender Se trata de seu filho.
     -Então espero que tenha vindo a procurar suas coisas. Perguntávamo-nos quando ia sir Ronald a mandar por ela. Ainda estão na cabana. Não estivemos
lá desde que Mark morreu. Chamávamo-la Mark, sabe você? Bom, ele jamais nos disse quem era, o qual não esteve muito bem.
     -Não se trata das coisas do Mark. Quero falar sobre ele. Sir Ronald me contratou para tratar de averiguar por que se matou seu filho. Meu nome é Cordelia
Gray.
     Esta notícia pareceu mas bem intrigar que desconcertar à senhora Markland, que olhou rapidamente a Cordelia com olhos extraviados, algo estúpidos, e se agarrou
as varas do carrinho de mão, como em busca de apoio.
     -Cordelia Gray? Então não nos vimos antes, verdade? Não acredito conhecer alguém chamado Cordelia Gray. Possivelmente seria melhor que passasse você à sala
e
falasse com meu marido e minha cunhada.
     Deixou o carrinho de mão onde estava, no meio do atalho, e se encaminhou para a casa, tirando o lenço da cabeça e tratando inutilmente de arrumar seus
cabelos com a mão. Cordelia a seguiu através do saguão, que cheirava a cera e estava escassamente mobiliado, com um montão de fortificações, guarda-chuva e impermeáveis
pendurados do pesado perchero de carvalho, e para o interior de uma estadia situada na parte traseira da casa.
     Era uma habitação horrível, desproporcionada, sem livros, mobiliada não com mau gosto, a não ser sem o menor gosto absolutamente. Um enorme sofá de repelente
desenho
e duas poltronas rodeavam a chaminé, e uma pesada mesa de mogno com adornos esculpidos e balançando-se sobre seu pé ocupava o centro da habitação. Havia poucos
móveis mais. Os únicos quadros eram fotografias de grupo emolduradas, pálidas caras alargadas, muito pequenas para as poder identificar, que posaram em fila
ante a câmara. Uma fotografia era a de um regimento; a outra apresentava um par de remos cruzados por cima de duas filas de corpulentos adolescentes, todos os
quais levavam boinas baixas de pico e calças a raias. Cordelia supôs que era o clube de remo de uma escola.
     face ao caloroso do dia, aquela habitação, sem sol, estava fria. As puertaventanas estavam abertas. Fora, na grama, havia uma cadeira de balanço com um dossel
guarnecido com uma franja, três cadeiras de cano com suntuosas almofadas de um chamativo cretone azul, cada uma delas com seu apoio para os pés, e uma mesa de madeira.
Estes móveis pareciam formar parte de um grupo no que o desenhista não tinha obtido o efeito adequado. Todos os móveis do jardim pareciam novos e não utilizados.
Cordelia se perguntava por que a família se empenhava em permanecer dentro da casa em uma manhã do verão, embora a grama estava mobiliada muito mais confortavelmente.
     A senhora Markland apresentou a Cordelia varrendo o ar com o braço, em um amplo gesto de abandono, e dizendo com voz débil à companhia em geral:
     -A senhorita Cordelia Gray. Não vem pelo da tômbola da igreja.
     Cordelia estava surpreendida pela semelhança que o marido, a mulher e a senhorita Markland guardavam entre si. Os três lhe recordavam as caras dos cavalos.
Suas caras eram largas e ossudas, as bocas, estreita por cima de robustos queixos quadrados, os olhos desagradablemente juntos e os cabelos, que as duas
mulheres levavam com espessas franjas que lhes chegavam até os olhos, cinzas e ásperos. O comandante Markland estava tomando café em uma imensa taça branca,
muito obscurecida no bordo e os lados, colocada sobre uma bandeja redonda de estanho. Tinha nas mãos The Teme. A senhorita Markland estava fazendo ponto de tricô,
ocupação que Cordelia considerou vagamente inadequada para uma calorosa manhã do verão.
     As duas caras, hostis, só em parte curiosas, olharam-na com um ligeiro desgosto. A senhorita Markland podia seguir fazendo ponto de tricô sem olhar as agulhas,
o qual lhe permitia cravar na Cordelia uns olhos de olhar duro e inquisitivo. Convidada pelo comandante Markland a sentar-se, Cordelia se apoiou no bordo do
sofá, quase esperando que a lisa almofada emitisse um desagradável ruído ao afundar-se sob seu peso. Entretanto, encontrou-o inesperadamente duro. Compôs seu semblante
em uma expressão apropriada, seriedade combinada com eficiência e um toque de humildade propiciatoria lhe pareceu que estaria bem, mas não estava segura de ter êxito
no empenho. Enquanto se achava ali sentada, com os joelhos recatadamente juntos, com a bolsa a seus pés, era consciente, com desagrado, de que provavelmente
parecia mais uma ansiosa adolescente de dezessete anos enfrentando-se a sua primeira entrevista que uma amadurecida mulher de negócios, única proprietária da Agência
de
detetives Pryde.
     Entregou a nota de autorização de sir Ronald e disse:
     -Sir Ronald estava muito aflito por vocês, quero dizer que foi terrível que tivesse que acontecer em sua propriedade, amáveis que tinham sido ao procurar
ao Mark um trabalho que era de seu agrado. Seu pai espera que não os importância falar disso; quão único ele quer é saber o que foi o que induziu a suicidarse.
     -E ele a enviou a você?
     A voz da senhorita Markland era uma combinação de incredulidade, diversão e desdém. Cordelia não se deu por ofendida ante sua rudeza. Supôs que a senhorita
Cordelia teria algum motivo. Deu o que esperava que fosse uma explicação digna de crédito. Provavelmente era verdade.
     -Sir Ronald pensa que tem que haver um pouco relacionado com a vida do Mark na universidade. Abandonou repentinamente o colégio universitário, como possivelmente
vocês saibam, e a seu pai jamais lhe disse por que. Sir Ronald acreditou que eu poderia ter mais êxito falando com os amigos do Mark que o tipo mais usual de detetive
privado. Pareceu-lhe que não podia incomodar à polícia; ao fim e ao cabo, não é esta realmente sua classe de trabalho.
     A senhorita Markland disse com semblante grave:
     -Eu acreditava que este era precisamente seu trabalho; quer dizer se sir Ronald pensa que há algo estranho na morte de seu filho...
     Cordelia a interrompeu:
     -OH não, não penso que haja a menor sugestão desse tipo! Ele está plenamente satisfeito com o veredicto. Só quer saber o que foi o que lhe impulsionou a fazê-lo.
     A senhorita Markland disse em um tom repentinamente desanimado:
     -Era um fracassado. Fracassou na universidade, ao parecer, fracassou em suas obrigações familiares, finalmente fracassou na vida. Assim, literalmente.
     Sua cunhada emitiu um débil som de protesto.
     -Vamos, Eleonor, é de tudo justo o que diz? Aqui trabalhou realmente bem. A mim o moço gostava. Não acredito que...
     -Não nego que o dinheiro ganhasse. Isso não altera o fato de que não lhe criou nem educou para trabalhar no ofício de jardineiro. portanto, foi um fracassado.
Não conheço a razão disso e não tenho interesse algum em descobri-la.
     -Como foi que lhe deram vocês o emprego? -perguntou Cordelia.
     Foi o comandante Markland o que respondeu.
     -Viu meu anúncio no Cambridge Evening News, no que pedia um jardineiro, e se apresentou aqui uma tarde em sua bicicleta. Suponho que veio pedalando desde
Cambridge. Deve fazer disso umas cinco semanas, uma terça-feira, parece-me.
     Novamente interveio a senhorita Markland:
     -Era terça-feira, em nove de maio.
     O comandante a olhou com o cenho franzido, como se lhe irritasse o que não pudesse equivocar-se na informação.
     -Sim, bem, na terça-feira, dia nove. Disse que tinha decidido deixar a universidade e agarrar um trabalho e que tinha visto meu anúncio. Admitiu que não sabia
muito de
jardinagem, mas disse que era forte e estava disposto a aprender. Sua inexperiência não me preocupava; queríamo-lhe para a grama e para as hortaliças. Nunca pôs
as mãos no jardim; atendemo-lo minha mulher e eu. De todos os modos, eu gostei do aspecto do moço e acreditei que devia lhe dar uma oportunidade.
     A senhorita Markland disse:
     -Aceitou-o porque era o único solicitante que esteve disposto a trabalhar pela miséria que você lhe oferecia.
     O comandante, longe de mostrar-se ofendido por esta franqueza, sorriu agradado.
     -Paguei-lhe o que ele valia. Se houvesse mais patronos que estivessem dispostos a fazê-lo, o país não sofreria esta praga de inflação.
     Falava como alguém para quem a economia não tivesse secretos.
     -Não pensou você que era estranho essa mudança de ocupação? -perguntou Cordelia.
     -É obvio que o pensei! Acreditei que provavelmente tinha sido expulso: bebida, drogas, revolução, já sabe você como estão agora as coisas em Cambridge.
Mas lhe perguntei o nome de seu tutor universitário e lhe chamei por telefone, um sujeito chamado Horsfall. Não posso dizer que tenha sido muito amável, mas me assegurou
que o moço se foi voluntariamente e para usar suas próprias palavras, sua conduta, enquanto esteve no colégio universitário, tinha sido irreprochável
quase até o aborrecimento. Não tínhamos razão alguma para temer que o ar do Summertrees resultasse poluído.
     A senhorita Markland interrompeu seu trabalho de ponto e interveio na exclamação de sua cunhada de "O que pôde ter querido dizer com isso?" com este seco comentário:
     -um pouco mais dessa classe de aborrecimento procedente da cidade dos planos seria bem recebida.
     -Disse-lhe o senhor Horsfall por que tinha abandonado Mark o colégio?
     -Não o perguntei. Não era de minha incumbência. Fiz-lhe uma pergunta singela e obtive uma resposta mais ou menos singela, tão singela como cabe esperar desses
tipos acadêmicos. Nós certamente não tivemos motivo de queixa do moço enquanto esteve aqui. Digo-lhe o que sinto.
     -Quando foi se viver à cabana? perguntou Cordelia.
     -Em seguida. Não foi nossa idéia, é obvio. Nunca dissemos no anúncio que o emprego fora residencial. Entretanto, ele evidentemente tinha visto a cabana
e havia gosta de dou o sítio e nos perguntou se não nos importaria que fosse viver ali. Não lhe era possível vir de Cambridge em bicicleta todos os dias, nos
fazíamos perfeitamente cargo disso, e, que soubéssemos, não havia no povo alguém que pudesse lhe dar alojamento. Não lhe posso dizer que me fizesse graça a
idéia; a cabana necessita muitos acertos. Em realidade, temos pensado pedir uma concessão de conversão e nos desembaraçar dela. Em seu estado atual não seria
apropriada para uma família, mas ao moço parecia lhe entusiasmar a idéia de viver lá, de modo que acessamos.
     Disse Cordelia:
     -De modo que ele deveu inspecioná-la antes de dever pedir o emprego, não?
     -Inspecionar? OH, não sei. Provavelmente andou bisbilhotando para ver como era a propriedade antes de chegar realmente à porta. Não sei se devo lhe censurar
por isso, eu teria feito o mesmo.
     A senhora Markland interveio:
     -Estava muito iludido com a cabana, muitíssimo. Indiquei-lhe que não havia gás nem eletricidade, mas disse que não lhe importava; compraria um fogareiro campestre
e as arrumaria com lanternas. instalou água, naturalmente, e a parte principal do telhado está realmente de tudo bem. Ao menos, assim acredito. Nunca vamos
ali, sabe? Parece que estava muito contente de haver-se instalado ali. Nós realmente nunca lhe visitamos. Não havia necessidade, mas pelo que pude ver, sabia
perfeitamente cuidar de si mesmo. Naturalmente, como há dito meu marido, era muito inexperiente; havia uma ou duas coisas que tivemos que lhe ensinar, como vir à
cozinha
cada manhã cedo a receber as ordens. Mas o moço me agradava; sempre lhe via trabalhar de firme, quando me achava no jardim.
     Cordelia disse:
     -Pergunto-me se teria inconveniente em que eu jogasse uma olhada à cabana...
     Esta petição lhes desconcertou. O comandante Markland olhou a sua mulher. Houve um silêncio embaraçoso e por um momento Cordelia temeu que a resposta fosse
não.
Então a senhorita Markland deixou cravadas suas agulhas no novelo e ficou de pé.
     -Irei com você agora mesmo -disse.
     Os terrenos do Summertrees eram extensos. Primeiro havia a rosaleda propriamente dita, com as roseiras plantadas uns muito perto de outros e agrupados segundo
a variedade e a cor, como em um posto de venda, com os rótulos colocados exatamente à mesma altura do chão. A seguir vinha o horta, dividido em
dois por um atalho de cascalho, que nas carpidas fileiras de alfaces e couves e nas porções de terra revolta mostrava evidências do trabalho realizado por
Mark Callender. Finalmente, passaram por uma porta que dava a um pequeno horta de velhas macieiras sem podar. A erva segada, que cheirava agradavelmente a feno,
jazia
em densos montões ao redor dos nodosos troncos.
     No extremo do horta havia um grosso sebe, tão crescido que a portinhola que dava acesso ao jardim posterior da cabana resultava, ao princípio, difícil
de ver. Mas a erva que crescia ao redor tinha sido recortada e a portinhola se abriu facilmente, cedendo à pressão da mão da senhorita Markland. Ao
outro lado havia um grosso sebe de sarças, escuro e impenetrável e que era evidente que se deixou crescer livremente durante uma geração. Alguém tinha aberto
um caminho através do sebe, mas a senhorita Markland e Cordelia tiveram que inclinar-se muito para evitar que lhes enredassem os cabelos em seus emaranhados
tentáculos de espinhos.
     Uma vez livre desta barreira, Cordelia levantou a cabeça e pestanejou sob os claros raios do sol. Lançou uma ligeira exclamação de prazer. No breve período
que Mark Callender tinha vivido ali tinha criado um pequeno oásis de ordem e beleza, tirando-o do caos e o abandono. Antigos canteiros de flores tinham sido
descobertos e as novelo superviventes cuidadas; o atalho de pedras tinha sido limpo de erva e de musgo; um pequeno quadrado de grama à direita de
a cabana tinha sido talhado e carpido. Ao outro lado do atalho se cavou em parte uma parcela de algo mais de um metro quadrado. A espécie estava ainda na
terra, fincada profundamente a uns cinqüenta centímetros de distância do final da fileira.
     A cabana era uma construção achaparrada de tijolo, sob um teto de piçarra. Banhada pelos raios do sol vespertino, e apesar de sua porta erodida
pela chuva, seu podres Marcos de janela e a vista de umas nuas vigas no telhado, a cabana possuía o suave e melancólico encanto da velhice que ainda
não tinha degenerado em ruína. Fora da cabana, junto à porta, deixados cair fortuitamente um ao lado do outro, havia um par de sapatos de jardineiro com abundante
terra incrustada.
     -dele? -perguntou Cordelia.
     -De quem, se não?
     Estiveram ali de pé, juntas um instante, contemplando a terra revolta. Nenhuma das duas falou. Logo se encaminharam para a porta traseira. A senhorita
Markland introduziu a chave na fechadura. Deu-lhe a volta com facilidade, como se a fechadura tivesse sido recentemente lubrificada com azeite. Cordelia a seguiu
ao interior da sala de estar da cabana.
     Em contraste com o calor que reinava no jardim, o ar resultava afresco mas não era puro, a não ser ligeiramente viciado. Cordelia viu que o plano da cabana
era singelo. Havia três portas: uma, em frente, que evidentemente dava acesso ao jardim anterior, mas estava fechada e trancada, com as junturas cobertas de
telarañas, como se não se aberto durante gerações; a porta da direita dava, como conjeturou Cordelia, à cozinha; a terceira porta estava aberta
e a jovem pôde entrever através dela uma escada de madeira, sem tapete, que conduzia ao piso superior. Em meio da habitação havia uma mesa com um tabuleiro
de madeira, com a superfície desgastada de puro esfregada, e com duas cadeiras de cozinha, uma a cada extremo. No centro da mesa um floreiro azul continha um ramalhete
de flores mortas, negros e frágeis caules que sustentavam tristes farrapos de novelo inidentificables, cujo pólen manchava a superfície da mesa como um polvillo
dourado. Jorros de luz solar cruzavam o ar tranqüilo; em meio deles uma miríade de partículas de pó e vida infinitesimal dançava grotescamente.
     À direita havia uma chaminé. Mark tinha estado queimando lenha e papéis; havia um montão de cinza branca na churrasqueira, e uma pilha de madeira para acender
o fogo e pequenos lenhos preparados para a noite seguinte. A um lado da chaminé havia uma cadeira baixa de madeira, com uma almofada puída e no outro lado uma cadeira
com as patas serradas, possivelmente com o propósito de fazê-la-o suficientemente baixa para dar o peito a uma criatura. Cordelia pensou que devia ter sido uma formosa
cadeira antes de sua mutilação.
     Duas vigas imensas, enegrecidas pelos anos, atravessavam o teto. Em meio de uma delas estava parecido um gancho de aço, provavelmente utilizado em
outro tempo para pendurar toucinho. Cordelia e a senhorita Markland o olharam sem falar; não havia necessidade de perguntar e responder. Passado um instante, encaminharam-se,
como de mútuo acordo, por volta das duas cadeiras que estavam a ambos os lados da chaminé e se sentaram. A senhorita Markland disse:
     -Eu fui a que lhe encontrei. Não tinha vindo à cozinha a receber as ordens do dia, de modo que depois de tomar o café da manhã baixei aqui para ver se se tinha
ficado
dormido. Eram as nove e vinte e três minutos exatamente. A porta não estava fechada com chave. Chamei com os nódulos, mas não houve resposta, então a abri
empurrando-a. Pendurava desse gancho com um cinturão de couro ao redor do pescoço. Levava suas calças de algodão azuis, os que estava acostumado a levar para trabalhar,
e
estava descalço. Essa cadeira estava queda sobre um lado no chão. Toquei-lhe o peito. Estava completamente frio.
     -Cortou você a correia para desprendê-lo?
     -Não. Era evidente que estava morto e pensei que era melhor deixar o cadáver até que chegasse a polícia. Mas pus a cadeira em sua posição normal e a coloquei
de maneira que sustentasse seus pés. Foi uma ação irracional, já sei, mas não podia suportar lhe ver ali pendurando sem aliviar a pressão sobre sua garganta. Foi,
já o hei dito, irracional.
     -Acredito que foi muito natural. Observou algo mais nele, na habitação?
     -Havia um jarro pela metade do que parecia café em cima da mesa e uma grande quantidade de cinza na churrasqueira da chaminé. Parecia como se tivesse estado
queimando papéis. Sua máquina de escrever portátil estava onde a vê agora, sobre essa mesa auxiliar; a nota do suicida estava ainda na máquina. Li-a, logo
voltei para a casa, disse a meu irmão e a minha cunhada o que tinha acontecido e chamei à polícia. Quando chegou a polícia os traje a esta cabana e lhes confirmei
o
que tinha visto. Não tornei aqui até este momento.
     -Viu você, ou o comandante ou a senhora Markland, ao Mark a noite em que morreu?
     -Nenhum de nós lhe viu depois de que terminou de trabalhar por volta das seis e meia. Era um pouco mais tarde aquele dia porque queria terminar de segar a erva
da parte de diante. Todos lhe vimos como apartava a colhedora e logo atravessava o jardim em direção à horta. Já não voltamos a lhe ver com vida. Não estávamos
em casa aquela noite. Tivemos um jantar no Trumpington, em casa de um antigo companheiro de armas de meu irmão. Não retornamos até passada a meia-noite. Por então,
segundo as provas médicas, Mark devia levar umas quatro horas morto.
     Cordelia disse:
     -me fale dele, por favor.
     -O que posso lhe dizer? Suas horas de trabalho eram de oito e meia da manhã a seis da tarde, com uma hora para almoçar e meia para o chá. Ao entardecer,
estava acostumado a trabalhar no jardim, aqui ou ao redor da cabana. Às vezes, durante sua hora de almoço, agarrava a bicicleta e se ia à loja do povo. Eu lhe encontrava
ali de vez em quando. Não comprava muito, um pão integral, manteiga, a parte de bacon mais barato, chá, café, as coisas correntes. Não falávamos quando nos encontrávamos,
mas ele estava acostumado a sorrir. Pelas noites, quando tinha escurecido, estava acostumado a ler ou escrever a máquina nessa mesa. Eu podia ver sua cabeça contra
a luz do abajur.
     -Acredito que o comandante Markland há dito que vocês não visitavam a cabana.
     -Eles não. Recorda-lhes coisas desagradáveis. Eu sim.
     Fez uma pausa e olhou para a chaminé sem fogo.
     -Meu prometido e eu estávamos acostumados a passar uma parte muito grande de nosso tempo aqui, antes da guerra, quando ele estava em Cambridge. Foi morto em
1937, combatendo
na Espanha pela causa republicana.
     -Sinto muito -disse Cordelia. Sentiu o inadequado e a falta de sinceridade de sua resposta e, contudo, o que outra coisa podia dizer? Todo isso tinha acontecido
fazia
uns quarenta anos. Não tinha ouvido falar dele anteriormente. O espasmo de pena, tão breve que apenas se sentiu, não era mais que um desconforto transitivo, um
pesar sentimental por todos os amantes que morreram jovens, pelo inevitável de uma perda humana.
     A senhorita Markland falava com súbita paixão, como se alguma força a obrigasse a proferir as palavras:
     -Eu não gosto de sua geração, senhorita Gray. Eu não gosto da arrogância de vocês, seu egoísmo, sua violência, a curiosa seletividade de sua compaixão. Nada
pagam
vocês com sua própria moeda, nem sequer seus próprios ideais. Denigrem e destroem, nunca constróem. Convidam ao castigo como meninos rebeldes, logo chiam quando
lhes castiga. Os homens que eu conheci e com os que me criei não eram assim.
     Cordelia disse brandamente:
     -Tampouco acredito que fora assim Mark Callender.
     -Provavelmente não. Ao menos, a violência a praticou contra si mesmo. -Levantou os olhos para a Cordelia com olhar desafiadora-. Não me cabe dúvida de que você
dirá
que estou ciumenta dos jovens. É um síndrome bastante comum em minha geração.
     -Não teria que ser. Jamais posso compreender por que têm que ser ciúmas as pessoas. Ao fim e ao cabo, a juventude não é uma questão de privilégio, todos temos
a mesma porção dela. Algumas pessoas podem nascer em uma época mais fácil ou ser mais ricas ou mais privilegiadas que outras, mas isso nada tem que ver sendo
jovem. E ser jovem é às vezes terrível. Recorda quão terrível pôde ser?
     -Sim, recordo-o, mas também recordo outras coisas.
     Cordelia estava ali sentada em silêncio, pensando que a conversação era estranha mas em certo modo inevitável e que, por alguma razão, não lhe pesava. A
senhorita Markland levantou os olhos.
     -Seu amiga lhe visitou uma vez. Ao menos suponho que era seu amiga, se não, por que tinha que vir? Foi uns três dias depois de que começasse a trabalhar.
     -Como era?
     -Formosa. Muito loira, com um rosto como o de um anjo do Botticelli, suave, ovalado, pouco inteligente. Era estrangeira, francesa, acredito. Também era rica.
     -Como pode você dizer isso, senhorita Markland? -disse Cordelia, intrigada.
     -Porque falava com acento estrangeiro; porque chegou conduzindo um Renault branco que eu considerei que era dele; porque sua roupa, embora estranha e inadequada
para o campo, não era troca; porque se dirigiu para a porta principal da casa e anunciou que desejava lhe ver com a arrogância, a confiança na gente mesmo, que
associa-se às pessoas ricas.
     -E ele a viu?
     -Naqueles momentos, ele estava trabalhando no horta, segando a erva. Conduzi-a para onde estava ele. Saudou-a tranqüilamente e sem confusão, e a
convidou a que lhe esperasse sentada na cabana até que chegasse o momento em que ele terminasse seu trabalho. Parecia bastante agradado de vê-la, mas não me pareceu
muito entusiasmado nem surpreso com sua visita. Não me apresentou isso. Deixei-os juntos e retornei a casa antes de que tivesse ocasião de fazê-lo. Já não a voltei
a ver -antes de que Cordelia pudesse falar, acrescentou de repente-: Pensa você viver aqui algum tempo, verdade?
     -Não lhes importará, suponho. Não queria pedir-lhe se forem me dizer que não.
     -Não saberão, e se soubessem, não lhes importaria.
     -A você tampouco o importa2
     -Não, não se preocupe comigo, não me importa.
     Falavam em voz baixa, como em uma igreja. Então a senhorita Markland se levantou e se encaminhou para a porta. Ao chegar a ela se voltou.
     -Você se encarregou que este trabalho pelo dinheiro, verdade? por que não? Mas se eu fosse você, deixaria-o como está. Não é sensato deixar-se implicar muito
pessoalmente nos assuntos de outro ser humano. E quando esse ser humano está morto, além de não ser sensato, até pode resultar perigoso.
     A senhorita Markland desceu pelo atalho do jardim e desapareceu pela portinhola. Cordelia se alegrou de ver que se ia. Ardia em impaciência por examinar
a cabana. Este era o lugar onde tudo tinha acontecido; este era o lugar onde realmente começava seu trabalho.
     O que era o que havia dito o Comi? "Quando estiver examinando um edifício, olha-o como se olhasse uma igreja rural. Primeiro caminha a seu redor. Olhe toda
a cena dentro e fora dela; depois faz suas deduções. te pergunte o que viu, não o que esperava ver, a não ser o que viu".
     Então, ele devia ser um homem a quem gostavam das Iglesias rurais e isso ao menos era um ponto em seu favor; já que isto, com segurança, era um genuíno
dogma do Dalgliesh. A reação do Bernie ante as Iglesias, já fossem rurais ou urbanas, tinha sido de cautela semisupersticiosa. Cordelia decidiu seguir o conselho.
     Primeiro dirigiu seus passos para o lado leste da cabana. Ali, discretamente situado e quase oculto pelo sebe, havia um privada de madeira com sua porta com
ferrolho, como a de um estábulo. Cordelia jogou um olhar a seu interior. O privada estava muito limpo e parecia que tinha sido repintado recentemente. Quando atirou
da cadeia, viu com alívio que fluía água pela taça. Havia um cilindro de papel higiênico suspenso por uma corda da porta e, cravada junto a ele, uma pequena
bolsa de plástico continha uma enrugada coleção de papéis de envolver laranjas e outros suaves pacotes. Tinha sido um homem poupador. Junto à privada havia
um grande abrigo em estado ruinoso no que se guardava uma bicicleta de homem, velha, mas bem cuidada, uma grande lata com pintura de emulsão branca com a
tampa muito apertada e um pincel limpo dentro de um pote de geléia, uma banheira de estanho, uns quantos sacos limpos e uma coleção de ferramentas agrícolas de jardinagem.
Todos
estavam limpos e brilhantes e dispostos ordenadamente contra a parede ou sustenidos por pregos.
     dirigiu-se para a entrada da cabana. Contrastava intensamente com o aspecto que oferecia o lado sul. Aqui Mark Callender não tinha feito o menor intento
de desembaraçar as urtigas e as ervas, altas até a cintura, que asfixiavam o pequeno jardim dianteiro e quase apagavam o atalho. Um grosso arbusto trepador
salpicado de florecillas brancas tinha estendido seus negros e espinhosos ramos até tampar as duas janelas da planta baixa. A porta que conduzia à vereda
entupiu-se e só se abria o suficiente para deixar passar com dificuldade a um visitante. A cada lado montava guarda uma árvore de acebo, com suas folhas cinzas
pelo pó. O sebe dianteiro, de alfena, alcançava a altura da cabeça. Cordelia pôde ver que, a um e outro lado do atalho, tinha havido em outro tempo canteiros
gêmeos bordeados por pedras redondas pintadas de branco. Então a maior parte destas pedras se afundou em meio das más ervas, e dos canteiros
só ficavam uns quantos roseiras silvestres dispersas.
     Quando dirigia um último olhar ao jardim dianteiro, viu que brilhava um objeto de cor, médio pisoteado entre as ervas do lado do atalho. Era uma página
enrugada de uma revista ilustrada. Estendeu-a e a alisou e viu que era uma fotografia, em cor, de uma mulher nua. A mulher dava as costas à câmara e se
inclinava para frente, exibindo umas grandes nádegas por cima de umas coxas talheres por altas botas. Sorria descaradamente por cima de seu ombro em uma
evidente convite, até mais grotesca pela larga cara andrógina que nem sequer uma discreta iluminação podia evitar que resultasse repulsiva. Cordelia observou
a data na parte superior da página; era a edição do mês de maio. De modo que a revista, ou ao menos a fotografia, pôde ter sido levava a cabana
enquanto ele residia nela.
     deteve-se com o recorte na mão para analisar a natureza de seu asco, que lhe desejava muito excessivo. A fotografia era vulgar e obscena, mas não mais ofensiva
nem indecente que muitas das que se viam nas ruas secundárias de Londres. Entretanto, enquanto dobrava a folha e a guardava em sua bolsa -porque representava
alguma classe de prova-, sentia-se poluída e deprimida. Tinha sido a senhorita Markland mais perspicaz do que ela imaginava? Estava ela, Cordelia, em perigo
de resultar sentimentalmente obcecada com o moço morto? A fotografia provavelmente nada tinha que ver com o Mark; facilmente podia haver caído a algum
visitante da cabana. Mas desejava não havê-la visto.
     Deu a volta para o lado oeste da cabana e fez outro descobrimento. Escondido detrás de umas matas de saúcos havia um pequeno poço de algo mais de um
metro de diâmetro. Não tinha estrutura superior, mas estava talher por uma tampa abovedada feita de fortes tabuletas de madeira e ajustada à parte superior
com um aro de ferro. Cordelia viu que a coberta estava unida por um cadeado ao bordo de madeira do poço, e a fechadura, embora ferrugenta pela idade, resistiu
firmemente a seu puxão. Alguém se tinha tomado a moléstia de evitar que o poço não constituísse um perigo para meninos ou vagabundos curiosos.
     E então tinha chegado o momento de explorar o interior da cabana. Primeiro a cozinha. Era uma pequena peça com uma janela em cima da pia que
olhava para o este. Era evidente que tinha sido grafite fazia pouco e a grande mesa que ocupava a maior parte da estadia tinha sido coberta com uma toalha de
plástico vermelho. Havia uma desastrada despensa que continha meia dúzia de latas de cerveja, um pote de geléia, uma tigela com manteiga e uma parte de pão bolorento.
Foi ali, na cozinha, onde Cordelia encontrou a explicação do aroma desagradável que recebeu o entrar na cabana. Em cima da mesa havia uma garrafa de
leite aberto e mais ou menos médio enche, com a tampa chapeada enrugada junto a ela. O leite se solidificou e coberta de putrefação; uma torcida mosca
estava chupando no bordo da garrafa e continuou pega a seu festim quando Cordelia, instintivamente, tratou de afugentá-la. Ao outro lado da mesa havia um
fogareiro de querosene de dois queimadores, com uma pesada marmita sobre um deles. Cordelia atirou da tampa, muito ajustada, que cedeu súbitamente e deixou sair
um aroma fortemente repulsivo. Abriu a gaveta da mesa e removeu com uma colher o conteúdo da marmita. Parecia guisado de boi. Partes de carne esverdeada,
batatas que pareciam sabão e legumes inidentificables flutuavam entre a espuma, como carne afogada e putrefata. Ao lado da pia havia uma caixa de laranjas
posta sobre um de seus lados e que fazia as vezes de armazém de verduras. As batatas estavam verdes, as cebolas se encolheram e jogado brotos, as cenouras
estavam enrugadas e frouxas. Assim que nada tinha sido limpo, nada tinha sido tirado. A polícia se levou o corpo e todas as provas que necessitava,
mas ninguém, nem os Markland nem a família nem os amigos do moço se incomodou em voltar para limpar os resíduos patéticos de sua jovem vida.
     Cordelia subiu a escada. O patamar conduzia a dois dormitórios, um dos quais era evidente que não se utilizou desde fazia anos. Ali o marco
da janela estava podre, o gesso do teto se foi desprendendo e um estragado papel com desenhos de rosas se estava separando por causa da umidade. O segundo
quarto, mais espaçoso, era o único no que ele tinha dormido. Havia uma só cama de ferro com um colchão de crina e sobre ela um saco de dormir com uma almofada
dobrado em dois para fazer um travesseiro alta. Ao lado da cama havia uma velha mesa com duas velas, pegas com sua própria cera a um prato gretado, e uma caixa de
fósforos. Sua roupa estava pendurada no único armário, uma calça de veludo cotelê de cor verde clara, uma ou duas camisas, jerseis e um traje de etiqueta. Algumas
objetos
de roupa interior, podas mas sem engomar, estavam dobradas na prateleira superiora. Cordelia tocou os jerseis. Estavam feitos a emano em lã grosa e complicados
desenhos, havia quatro. Alguém, pois, preocupou-se por ele o suficiente para tomar-se algumas moléstias. Cordelia se perguntava quem.
     Passou as mãos por seu escasso guarda-roupa, apalpando em busca de bolsos. Nada encontrou, exceto uma magra carteira de couro marrom no fundo do bolso
esquerdo do traje. Emocionada, levou-a para a janela com a esperança de que contivesse uma pista, uma carta, possivelmente, uma lista de nomes e direções, uma
nota pessoal. Mas a carteira estava vazia salvo um par de bilhetes de uma libra, sua carteira de motorista e um cartão de doador de sangue expedido pelo serviço
de transfusão de sangue de Cambridge, que indicava que seu grupo era B Rh negativo.
     A janela sem visillos dava ao jardim. Seus livros estavam colocados sobre a prateleira da janela. Havia só uns poucos: História Moderna de Cambridge; algo
do Trollope e Hardy; obras completas do William Blake; volúmenes de livros de texto escolar do Wordsworth, Browning e Donne; dois livros de bolso sobre jardinagem.
Ao final da fileira havia um livro encadernado em pele branca que Cordelia viu que era um livro de orações. Estava provido de um fechamento de latão finamente
lavrado e parecia muito usado. sentia-se contrariada com os livros; diziam-lhe pouco mais que os gostos superficiais do moço. Se tinha abraçado aquela vida solitária
com o fim de estudar, escrever ou filosofar, tinha-o feito singularmente mal equipado.
     O mais interessante da habitação estava em cima da cama. Era uma pequena pintura ao óleo de uns sessenta centímetros quadrados. Cordelia a examinou. Era,
certamente, italiana e provavelmente, pensou, de finais do século XV. Mostrava um monge tonsurado muito jovem, lendo sentado a uma mesa, com seus delicados dedos
introduzidos entre as páginas de seu livro. A cara larga, controlada, estava tensa pela concentração, com os olhos de pesadas pálpebras fixas na página. Detrás
do monge, via-se, através da janela aberta representada no quadro, uma deliciosa miniatura. Cordelia pensou que um jamais se cansaria de contemplá-la.
Era uma cena toscana que mostrava uma cidade murada com torres, rodeada de ciprestes, um rio que serpenteava como um fio de prata, uma procissão com vestidos
de vivas cores, precedida por estandartes, e bois uncidos que trabalhavam nos campos. Viu o quadro como um contraste entre os mundos da inteligência e
da ação e tentou recordar onde tinha visto pinturas parecidas. Os camaradas -como designava sempre ao ubicuo grupo de revolucionários amigos de seu pai-
tinham sido muito aficionados a intercambiar mensagens no interior de galerias de arte, e Cordelia se passou horas passeando lentamente de um quadro a outro,
esperando ao fortuito visitante que se detivesse seu lado e lhe sussurrasse umas palavras de advertência ou de informação. O truque sempre lhe tinha parecido uma
maneira
infantil e innecesariamente
histriônica de comunicação, mas, ao menos, nas galerias se estava quente e ela desfrutava olhando os quadros. Aquele quadro gostava; era evidente que
também lhe tinha gostado ao Mark. Tinha-lhe gostado também da vulgar ilustração que ela tinha encontrado no jardim dianteiro? Eram ambos uma parte essencial
de sua natureza?
     Terminada a volta de inspeção, fez-se café, utilizando um pacote do armário e pondo água a ferver no fogareiro. Agarrou uma cadeira da sala de
estar e foi sentar se fora, na porta traseira, com a taça sobre o regaço, com a cabeça arremesso para trás para sentir a carícia do sol. sentia-se alagada
de uma suave felicidade enquanto estava ali sentada, contente e relaxada, escutando o silêncio, com os olhos médio fechados por efeito do sol. Tinha examinado
a cabana conforme às instruções do Comi. O que sabia então sobre o moço morto? O que era o que tinha visto? O que podia deduzir?
     Tinha sido um moço obsessivamente limpo e ordenado. Seus úteis de jardinagem tinham sido limpos depois de seu uso e cuidadosamente guardados, sua cozinha
tinha sido grafite e estava poda e asseada. Entretanto, tinha deixado a tarefa de revolver a terra a menos do meio metro de distância do final de uma fileira;
tinha deixado a espécie sem limpar cravada na terra; tinha deixado cair seus sapatos de jardineiro negligentemente junto à porta traseira. Ao parecer, tinha queimado
todos seus papéis antes de matar-se, mas tinha deixado sem lavar sua taça de café. feito-se um guisado para jantar e não o tinha provado. A preparação das
verduras teve que havê-la realizado a uma hora mais temprana daquele mesmo dia, ou possivelmente no dia anterior, mas era evidente que o guisado era para jantar
aquela
noite. A marmita estava ainda sobre o fogareiro, e enche até o bordo. Não era uma comida reaquecida que tivesse ficado da noite anterior. Isto certamente
indicava que não tinha tomado a decisão de matar-se até depois de ter preparado o guisado e lhe haver posto ao fogo para que se cozesse. por que tinha que
incomodar-se em preparar uma comida se sabia que não estaria vivo para comê-la?
     Mas, era lógico, perguntava-se, que um jovem são, que entrava na cabana depois de uma ou duas horas de duro trabalho de revolver terra e com uma comida
quente esperando, encontrasse-se naquele estado de melancolia, acidia, angústia ou desespero que pudesse lhe levar a suicídio? Cordelia podia recordar tempos
de intensa infelicidade, mas não podia recordar que tivesse seguido a um exercício ao ar livre com um fim concreto, ao sol e com uma comida em perspectiva. e por
o que a taça de café, a que a polícia se levou para analisar? Havia latas de cerveja na despensa; se tinha sede quando chegou de revolver a terra, por
que não abrir uma delas? A cerveja teria sido o meio mais rápido, mais óbvio, de apagar a sede. Certamente ninguém, por muita sede que tivesse, prepararia e beberia
café justamente antes de comer. O café vinha depois da comida.
     Mas suponhamos que alguém lhe tivesse visitado aquela tarde. Não era provável que tivesse sido alguém que passava por ali com um recado sem importância; foi
importante para o Mark o interromper o trabalho de revolver a terra quando só lhe faltava meio metro de uma fileira, e convidar ao visitante a entrar na cabana.
Provavelmente era um visitante ao que não gostava da cerveja ou não queria bebê-la, poderia tratar-se de uma mulher? Era uma visita da que não se esperava que se
ficasse jantando, mas, entretanto, esteve na cabana o tempo suficiente para que lhe oferecesse algo de beber. Possivelmente era alguém que se dispunha a ir tomar
seu próprio jantar. Evidentemente, o visitante não tinha sido convidado com antecipação para jantar, ou de ter sido assim, por que tinham começado o jantar tomando
café e por
o que tinha estado Mark trabalhando até tão tarde no jardim em vez de entrar na cabana a trocar-se de roupa? De modo que se tratava de uma visita inesperada.
Mas, por que havia uma só taça de café? Certamente, Mark o teria compartilhado com o convidado ou, se ele preferia não tomar café, teria aberto uma lata de cerveja
para si mesmo. Mas nenhuma lata de cerveja vazia havia na cozinha, e tampouco uma segunda taça. Talvez tinha sido lavada e guardada? Mas, por que tinha que
lavar Mark uma taça e não a outra? Era para ocultar o fato de que tinha recebido uma visita aquela tarde?
     O jarro de café sobre a mesa da cozinha estava quase vazio e só médio enche a garrafa de leite. Certamente mais de uma pessoa tinha tomado leite e café.
Mas talvez fosse esta uma dedução perigosa e sem garantia; também teria podido o visitante voltar a encher sua taça.
     Mas suponhamos que não tivesse sido Mark o que tinha desejado ocultar o fato de que o visitante tinha estado com ele aquela noite; suponhamos que não houvesse
sido Mark o que tinha lavado e guardado a segunda taça; suponhamos que tivesse sido a visita a que tinha desejado ocultar o fato de sua presença. Mas, por
o que devia incomodar-se em fazer isso?, já que não podia saber que Mark ia a suicidarse. Cordelia fez um brusco movimento de impaciência. Isto, naturalmente, era
absurdo.
Era evidente que o visitante não teria lavado a taça se Mark tivesse estado ainda ali e com vida. Só teria apagado a prova de sua visita se Mark tivesse estado
já morto. E se Mark tivesse estado morto, tivesse estado pendurando daquele gancho antes de que seu visitante se foi da cabana, entoe, podia ser isto
realmente um suicídio? Uma palavra que dançava no fundo da mente da Cordelia, uma mescla amorfa de letras, tomou forma de repente e, pela primeira vez, apareceu
nitidamente soletrada a palavra manchada de sangue: assassinato.
Cordelia continuou sentada ao sol durante outros cinco minutos, terminando seu café, logo lavou a taça e a pendurou de um gancho da despensa. Desceu pela vereda
em
direção à estrada, onde tinha deixado estacionado o Mini, na margem de erva fora do Summertrees, contente do instinto que a tinha induzido a deixar o
carro fora da vista da casa. Soltando com cuidado a embreagem, fez-o descender devagar pela vereda olhando com cuidado de um lado a outro em busca de
um possível sítio para estacionar; deixar o carro simplesmente fora da cabana não teria feito mais que delatar a presença de sua proprietária. Era uma lástima que
Cambridge
não estivesse mais perto; então poderia ter usado a bicicleta do Mark. O Mini não era necessário para seu trabalho, mas seria inconvenientemente visível em qualquer
lugar
que o deixasse.
     Mas teve sorte. A uns cinqüenta metros vereda abaixo, na entrada de um campo, havia uma ampla margem de erva com um pequeno matagal a um lado. Este
matagal tinha um aspecto úmido e sinistro. Era impossível acreditar que pudessem brotar flores daquela terra inficionada e entre essas árvores maltratadas e disformes.
O estou acostumado a estava talher de velhos potes e frigideiras, via-se o armação de um carrinho de menino, um fogareiro de gás quebrado e ferrugento. junto a um
carvalho achaparrado,
uma pilha de mantas se desintegravam na terra. Mas encontrou ao fim espaço para tirar o Mini da estrada e pô-lo, em certo modo, a coberto. Se o fechava
com chave, estaria melhor ali que perto da cabana e de noite, pensou, ninguém advertiria sua presença.
     Mas então voltou com o carro à cabana e começou a desempacotar. Colocou a um flanco da prateleira a roupa interior do Mark e pôs a dela a seu lado.
Estendeu seu saco de dormir sobre a cama, em cima do saco dele, pensando desfrutar assim de uma comodidade extra. Havia uma escova de dentes vermelho e um tubo de
massa
dentifrícia pela metade em um pote vazio de conserva, em cima do batente da janela da cozinha; ao lado pôs sua escova amarela e seu próprio tubo de massa.
Pendurou sua toalha junto à dele na corda que tinha tendido entre dois pregos, debaixo da pia da cozinha. Logo fez um inventário do conteúdo da
despensa e uma lista das coisas que ia necessitar. Seria melhor que as comprasse em Cambridge; não faria mais que chamar a atenção para sua presença se efetuava
compra no povo. A caçarola de guisado e a meia garrafa de leite lhe preocupavam. Não podia as deixar na cozinha, sou pena de poluir a cabana com o
aroma de decomposição, mas também se sentia reacia a atirar seu conteúdo. Pensou em fotografá-lo, mas decidiu não fazê-lo, pois os objetos tangíveis constituíam
uma prova melhor. Ao final o levou a abrigo e o tampou com uma parte de arpillera velha.
     Finalmente, pensou na pistola. Era um objeto muito pesado para levá-lo em cima todo o tempo, mas se sentia desgraçada ante a idéia de separar-se de
ela, embora só fosse provisoriamente. Mesmo que a porta traseira da cabana podia fechar-se, e a senhorita Markland lhe tinha deixado a chave, um intruso não
encontraria dificuldade em entrar pela janela. Decidiu que o melhor plano seria esconder as munições entre sua roupa interior no armário do dormitório, mas
ocultar a pistola por separado, dentro da cabana ou perto dela. Encontrar o lugar exato lhe custou pensar um pouco, mas logo recordou as grosas e retorcidas
ramos do saúco que havia junto ao poço; levantando-se sobre as pontas de seus pés pôde encontrar, apalpando onde se bifurcava um ramo, uma concavidade em que
deslizou a pistola, ainda envolta dentro da bolsa de corda, que ficou escondida pelas folhas.
     Já estava lista para ir a Cambridge. Olhou seu relógio; eram as dez e meia; poderia estar em Cambridge às onze e disporia de duas horas para fazer gestões.
Decidiu que seu melhor plano seria visitar primeiro o escritório do periódico e ler o relatório da investigação, logo iria à polícia; depois disto, iria em
busca do Hugo e Sophia Tilling.
afastou-se da cabana com uma sensação parecida com o pesar como se estivesse abandonando o lar. Era, pensava, um lugar curioso, de atmosfera pesada e que mostrava
duas caras diferentes ao mundo, como facetas de uma personalidade humana; o norte, com suas janelas tampadas pelas novelo espinhosas, a má erva que crescia junto
à cabana, com seu sinistro sebe de alfena, era um detestável cenário de horror e tragédia. Em troca, a parte traseira, onde ele tinha vivido e trabalhado, havia
limpo e cultivado o horta e maço as escassas flores, tinha carpido o atalho e aberto ao sol as janelas, era um lugar aprazível como um santuário. Estando
ali sentada junto à porta, havia sentido que nada mau poderia lhe acontecer; era capaz de pensar sem temor na possibilidade de passar ali a noite sozinha. Era esta
atmosfera de tranqüilidade curativa, perguntava-se, o que tinha atraído ao Mark Callender? Tinha-a percebido ele antes de tomar o emprego, ou era em certo misterioso
modo o resultado de sua transitiva e trágica estadia ali? O comandante Markland tinha tido razão; evidentemente Mark tinha cuidadoso a cabana antes de subir
à casa. Era a cabana ou o emprego o que ele queria? por que os Markland eram tão resistentes a ir a aquele sítio, tão resistentes que evidentemente não o tinham
visitado
sequer para limpá-lo depois de sua morte? E por que lhe tinha espiado a senhorita Markland, já que certamente de nenhum outro modo podia qualificá-la minuciosa
observação a que o tinha submetido? Tinha-lhe crédulo aquele relato a respeito de seu amante morto somente para justificar seu interesse pela cabana, sua obsessiva
preocupação pelo que o novo jardineiro estava fazendo? E era inclusive certa aquela história? Aquela mulher entrada em anos, cheia de força latente, com
aquela expressão eqüina de perpétuo descontente, pôde ter sido realmente jovem um dia, ter jazido, possivelmente, com seu amante na cama do Mark durante os compridos
e calorosos atardeceres de uns verões já muito longínquos? Quão remoto, quão impossível e grotesco lhe parecia todo isso.
     Cordelia baixava com seu carro pela rua Hills, passou por diante da vigorosa estátua comemorativa de um jovem soldado de 1914, por diante da igreja
católica romana e entrou no centro da cidade. De novo desejava ter podido trocar o carro pela bicicleta do Mark. Todo mundo parecia montar em bicicleta
e o ar ressonava com os timbres como um festival. Naquelas ruas estreitas e lotadas de gente, circular com o sólido Mini constituía inclusive um risco.
Decidiu estacioná-lo logo que pudesse encontrar um sítio e empreender a pé a busca de um telefone. Tinha decidido variar seu programa e ir em primeiro lugar
a ver a polícia.
     Mas não lhe surpreendeu ouvir, quando ao fim bateu na porta da delegacia de polícia, que o sargento Maskell, que tinha levado o caso Callender, estaria ocupado
toda
a manhã. Isso de que as pessoas que alguém queria entrevistar estivessem preparadas, sentadas em casa ou no escritório, com energia, tempo e interesse suficiente

acontecia na ficção. Na vida real, estavam entregues a seus próprios assuntos, e a gente dependia da conveniência delas, inclusive se, coisa algo estranha, emprestavam
sua atenção à Agência de detetives Pryde. Geralmente não o faziam. Cordelia mencionou a nota de autorização de sir Ronald para impressionar a seu ouvinte com
a autenticidade de seu assunto. O nome não carecia de influência. O policial que tinha recebido a Cordelia se afastou para ir perguntar. Transcorrido menos de um
minuto voltou para dizer que o sargento Maskell poderia atender à senhorita Gray às duas e meia daquela tarde.
     De modo que o escritório do periódico vinha, pois, em primeiro lugar Os fichários antigos ao menos, eram acessíveis e não havia inconveniente em que se consultassem.
Rapidamente encontrou o que procurava. O relatório da investigação era breve, redigido na usual linguagem formalista de um relatório dos tribunais. Pouca coisa
disse-lhe que fosse novo para ela. Mas tomou boa nota da prova principal. Sir Ronald atestou que não tinha falado com seu filho durante as duas semanas anteriores
a sua morte, quando Mark lhe telefonou para lhe comunicar sua decisão de deixar o colégio universitário e tomar um trabalho no Summertrees. Não tinha consultado
a sir
Ronald antes de tomar sua decisão nem tinha explicado suas razões. Depois sir Ronald tinha falado com o diretor, e as autoridades do colégio estavam dispostas
a voltar a admitir a seu filho para o seguinte ano acadêmico se mudava de parecer. Seu filho nunca lhe tinha falado de suicídio e, que ele soubesse, não tinha preocupações
de saúde nem de dinheiro. O testemunho de sir Ronald ia seguido de uma breve referência a outra prova. A senhorita Markland descreveu como tinha encontrado o cadáver;
um patologista forense declarou que a causa da morte era asfixia devida a estrangulamento; o sargento Maskell referiu as medidas cuja aplicação acreditou mais oportunas
e entregou um relatório do laboratório científico forense que declarava que se analisou uma taça de café que se encontrou sobre a mesa e tinha sido
achada inócua. O veredicto foi que o falecido morreu por sua própria mão durante um desequilíbrio mental. Quando fechou o pesado dossiê de periódicos, Cordelia
sentia-se deprimida. O trabalho da polícia parecia exaustiva. Era realmente possível que aqueles experimentados profissionais tivessem passado por cima o significado
da interrupção do trabalho de revolver a terra, os sapatos de jardineiro deixados cair descuidadamente junto à porta traseira, o jantar sem tocar?
     E então, a meio-dia, estava livre até as duas e meia. Podia explorar Cambridge. Comprou a guia mais troca que pôde encontrar no Bowes and Bowes, resistindo
a tentação de ler uma parte daqui e outro de lá dos livros da livraria, porque o tempo era curto e terei que racionar o prazer. Encheu sua bolsa de bolo
de porco e de fruta que comprou em um posto do mercado e entrou na igreja da Santa María, para sentar-se tranqüilamente e preparar seu itinerário. Logo, durante
uma hora e meia, perambulou pela cidade e seus colégios universitários, extasiada de felicidade.
     Estava contemplando Cambridge em seu aspecto mais belo. O céu era uma imensidão azul desde cujas translúcidas profundidades brilhava o sol, sem nuvens, mas
com suave claridade. As árvores dos jardins dos colégios e quão advindas conduziam aos Backs, ainda não afetados pelo ardor do verão, levantavam seus
verdes ramos, tendo como fundo a pedra e o rio e o céu. As bandejas passavam velozes sob as pontes, assustando às vistosas aves aquáticas e, ao levantar-se
a nova ponte do Garret Hostel, os salgueiros inclinavam seus pálidos e pesadas ramos sobre o escuro verdor do rio CAM.
     Cordelia incluiu todas as vistas especiais em seu itinerário. Caminhou solenemente ao longo da biblioteca do Trinity, visitou as velhas faculdades, se
sentou tranqüilamente na parte posterior da capela do King's College, contemplando maravilhada a ascensão vertical da grande abóbada do John Wastell, que
estendia-se em curvos leques de delicado mármore branco. A luz do sol, que se derramava através dos grandes ventanales, tingindo o sereno ar com as cores
azul, carmesim e verde. As rosas dos Tudor belamente lavradas, os animais heráldicos que sustentavam a coroa, sobressaíam-se dos painéis com arrogante orgulho.
Apesar do que Milton e Wordsworth tinham escrito, era certo que esta capela tinha sido construída para a glória de um soberano terrestre e não para o serviço
de Deus? Em qualquer caso, isso não invalidava seu propósito nem era menoscabo de sua beleza. Não deixava de ser um edifício supremamente religioso. Podia um não
crente
projetar e realizar aquele soberbo interior? Havia uma unidade essencial entre motivo e criação? Esta era a pergunta que somente Carl, entre os camaradas, haveria
tido interesse em explorar, e Cordelia lhe evocou em sua prisão grega, tratando de não pensar no que pudessem lhe estar fazendo e desejando ter a seu lado a rechoncha
figura daquele amigo.
     Durante sua visita da cidade se concedeu alguns pequenos prazeres. Comprou uma toalha de linho para a mesita de chá, estampado com uma gravura da capela
do coro, junto à porta oeste; tendeu-se sobre a erva à borda do rio, junto à ponte do King's, e deixou que a água fria e verde lhe acariciasse
os braços; passeou por entre os postos de livros da praça do mercado e, depois de um cálculo minucioso, comprou uma pequena edição do Keats, impressa em papel de
China, e um caftán de algodão estampado em tons verde, azul e marrom. Se o tempo caloroso continuava, este objeto resultaria mais
fresca que uma camisa ou texanos para levar pelas noites.
     Finalmente, voltou para o King's College. Havia uma fila de assentos encostada ao grande muro de pedra que se estendia da capela para a borda do rio e se
sentou ali, ao sol, para comer seu almoço. Um pardal privilegiado saltitava através da imaculada grama e a olhava com olhos brilhantes e despreocupados.
Cordelia lhe atirava trocitos da casca de seu bolo de porco e sorria ante seus graciosos e lhe agitados pico isso Do rio subia o som de vozes do outro
lado da água, a áspera chamada de um pato. Tudo o que a rodeava -os calhaus brilhantes como jóias no atalho de cascalho, os pequenos caules de erva em
a margem da grama, as frágeis patas do pardal- via-o com uma extraordinária intensidade, como se a felicidade lhe tivesse esclarecido vista.
     Logo, a memória lhe trouxe a lembrança das vozes. Primeiro a de seu pai:
     -Nosso pequena fascista foi educada pelos papistas. Resulta extraordinário. Como pôde acontecer semelhante coisa, Delia?
     -Não te lembra, papai? Confundiram-me com outra C. Gray, que era católica romana. Desde onze, unicamente as duas superamos a meia do exame o mesmo ano. Quando
descobriram o engano lhe escreveram para te perguntar se te importava que ficasse no convento, porque eu me tinha instalado ali.
     O pai, em realidade, não tinha respondido. A reverenda mãe tinha tentado ocultar discretamente o fato de que ele não se incomodou em responder e
Cordelia passou no convento os seis anos mais tranqüilos e felizes de sua vida, isolada, pela ordem e a cerimônia, do caos e a imundície da vida exterior,
incorregiblemente protestante, sem coações, amavelmente compadecida como uma pessoa que vive em uma ignorância invencível. Pela primeira vez, aprendeu que não tinha
necessidade de ocultar sua inteligência, aquela mente limpa que uma sucessão de mães adotivas tinham considerado em certo modo uma ameaça. Irmã Perpétua havia
dito:
     -Não deveria haver a menor dificuldade a respeito de seu bacharelado se pode continuar como vai agora. Isso quer dizer que projetamos seu ingresso na universidade
dentro de dois anos a partir deste outubro. Cambridge, parece-me. Realmente não vejo por que não poderia aspirar a uma beca.
     A própria irmã Perpétua tinha estado em Cambridge antes de entrar no convento e ainda falava da vida acadêmica, não com desejo ou nostalgia, mas sim como
se tivesse sido um sacrifício digno de sua vocação. Inclusive a quinceañera Cordelia tinha reconhecido que irmã Perpétua era uma verdadeira humanista e tinha pensado
que tinha sido injusto por parte de Deus conceder uma vocação a alguém que, como ela, era tão feliz e útil ao mundo. Mas, para a própria Cordelia, o futuro
parecia, pela primeira vez, estabilizado e cheio de promessas. Iria a Cambridge e a irmã iria visitar a lá. Tinha uma romântica visão de amplas gramas baixo
o sol e elas dois passeando pelo paraíso do Donne. "Ali, rios de saber há, dali fluem as artes e as ciências; jardins cercados; profundidades insondáveis
de inescrutáveis conselhos". Com a ajuda de sua própria inteligência e as orações da irmã, ganharia a beca. As orações a preocupavam ocasionalmente. Não
duvidava absolutamente de sua eficácia, posto que Deus devia forzosamente escutar a uma pessoa que com tal sacrifício pessoal lhe tinha escutado a Ele. E se a influência
da irmã dava a ela, a Cordelia, uma injusta desvantagem sobre os outros candidatos, bom, o que lhe íamos fazer? Em assunto de tal importância, nem Cordelia
nem irmã Perpétua estavam dispostas a discutir sobre sutilezas teológicas.
     naquela época, papai tinha respondido à carta. Tinha descoberto que necessitava a sua filha. Não houve bacharelado nem beca, e aos dezesseis anos terminou
Cordelia sua educação convencional e começou sua vida errante cumprindo as funções de cozinheira, enfermeira, mensageira e vivandera geral de papai e seus camaradas.
     Mas então, por que caminhos tão tortuosos e com que estranho propósito, tinha chegado ao fim a Cambridge. A cidade não a decepcionou. Em suas idas e vindas
pelo mundo tinha visto lugares mais formosos, mas nenhum no que se houvesse sentido mais feliz e mais em paz. Como, pensava, podia certamente o coração sentir-se
indiferente ante uma cidade assim, em que a pedra e as vidraças de cores, a água e as verdes gramas estavam dispostas em tão ordenada beleza ao serviço
do ensino. Mas quando, com nostalgia, levantou-se para partir e sacudiu de sua saia uns miolos de pão, foi a sua mente uma entrevista que não tinha procurado.
Ouviu-a com tal claridade que as palavras podiam ter sido pronunciadas por uma voz humana, uma jovem voz masculina, não reconhecida e, entretanto, misteriosamente
familiar: "Então vi que havia um caminho para o inferno incluso das portas do céu".
O edifício da delegacia de polícia era moderno e funcional. Representava autoridade moderada com discrição; o público devia sentir-se impressionado, não intimidado.
O
despacho do sargento Maskell e o próprio sargento se ajustavam a esta filosofia. Era surpreendentemente jovem e ia elegantemente vestido, e seu rosto, anguloso
e de duras facções, refletia experiência. Levava o cabelo algo comprido, mas muito bem penteado e cuidado. Foi muito cortês, sem ser galante, e isto tranqüilizou
a Cordelia.
Não ia ser uma entrevista fácil, mas ela não desejava ser tratada com a indulgência que mostra a uma menina 1inda mas inoportuna. Às vezes servia de ajuda
o desempenhar o papel de uma jovem vulnerável e ingênua ansiosa de informação -papel que Bernie tinha tratado freqüentemente de lhe atribuir-, mas se dava conta
de que o sargento Maskell responderia melhor a uma entrevista em que ela demonstrasse competência sem paquera. Queria parecer eficiente, mas não em excesso.
E seus segredos deviam permanecer com ela; estava ali para obter informação, não para oferecê-la.
     Explicou concisamente o assunto e lhe mostrou a nota de autorização de sir Ronald. Maskell a devolveu e observou sem reticência alguma:
     -Sir Ronald nada me disse que sugerisse que não ficava satisfeito com o veredicto.
     -Não acredito que o veredicto deva questionar-se. Ele não suspeitou que se trabalhou mau. Se o tivesse suspeitado, teria recorrido a você. Penso que sente
a curiosidade de um cientista por saber o que foi o que induziu a seu filho a suicidarse, e não podia satisfazer essa curiosidade a gastos do erário público. As
misérias
privadas do Mark não são realmente problema de vocês, verdade?
     -Poderiam sê-lo, se as razões para sua morte descobrissem um fato delitivo, chantagem ou intimidação, mas jamais houve suspeita alguma desta classe.
    -Está você pessoalmente satisfeito com a explicação de que se suicidó?
     O sargento a olhou com a repentina e aguda inteligência de um cão caçador que fareja uma pista.
     -por que me pergunta isso, senhorita Gray?
     -Suponho-o pela moléstia que você se tomou. entrevistei à senhorita Markland e tenho lido o relatório da investigação publicado no periódico. Você
chamou um patologista forense, fez fotografar o corpo antes de que fora desprendido e analisou os restos de café da taça em que ele tinha bebido.
     -Eu tratei o caso como uma morte suspeita. É minha prática habitual. Esta vez as precauções resultaram desnecessárias, mas puderam não havê-lo sido.
     Cordelia disse:
     -Mas algo preocupava a você, algo que não parecia lógico, não é certo?
     Maskell, como fazendo memória, respondeu:
     -OH, foi algo bastante normal. Quase o de sempre. Temos mais suicídios que a ração que nos corresponde. Aqui temos a um jovem que abandonou seu curso universitário
sem uma razão aparente e foi se viver a seu ar com alguma desconforto. Temos a imagem de um estudante introvertido, mas bem solitário, que não confia em seu
família nem em seus amigos. Ao cabo de três semanas de abandonar o colégio universitário, é achado morto. Não há sinais de luta; nenhuma desordem na cabana:
deixa convenientemente uma nota de suicídio na máquina de escrever, muito parecida com a nota de suicídio que caberia esperar. Admitamos que se tomou a moléstia
de
destruir todos os documentos na cabana e, entretanto, deixou a espécie sem limpar e seu trabalho pela metade, e se incomodou em fazer um jantar que não comeu. Mas
tudo
isso nada prova. A gente se comporta irracionalmente, sobre tudo os suicidas. Não, nenhuma dessas coisas foi a que me deu motivo de preocupação; foi o nó.
-de repente, inclinou-se e ficou a revolver a gaveta esquerda de sua mesa de escritório-. Olhe -disse-. Como empregaria você isto para enforcar-se, senhorita Gray?
     A correia media aproximadamente metro e meio de comprimento e pouco mais de vinte e cinco milímetros de largura e era feita de um couro marrom forte mas flexível,
escurecido em alguns pontos por causa dos anos. Um dos extremos ia fazendo-se mais estreito e apresentava uma série de ilhós metálicos, no outro havia uma
forte fivela de latão. Cordelia tomou em suas mãos; o sargento Maskell disse:
     -Isso foi o que usou. É evidente que se trata de uma correia, mas a senhorita Leaming atestou que ele a levou duas ou três vezes ao redor da cintura como
cinturão. Bem, senhorita Gray, como faria você para enforcar-se?
     Cordelia fez acontecer a correia através de suas mãos.
     -Primeiro, claro, faria passar o extremo mais estreito através da fivela para fazer um laço corrediço. Depois, com o laço corrediço ao redor de meu
pescoço, poria-me de pé sobre uma cadeira debaixo do gancho do teto e faria passar o outro extremo da correia por cima do gancho. Poria-a bastante tensa
e daria um par de puxões para mantê-la firme. Atiraria fortemente da correia para me assegurar de que não se desfazia o nó e de que o gancho agüentava bem.
Então apartaria a cadeira de um chute.
     O sargento abriu o arquivo que tinha ante si e o empurrou através da mesa.
     -Olhe isso -disse-. É uma fotografia do nó.
     A fotografia feita pela polícia, em branco e negro, mostrava o nó com admirável claridade. Era uma bolina no extremo de um laço baixo e pendia aproximadamente
trinta centímetros do gancho.
     O sargento Maskell disse:
     -Duvido de que ele pudesse atar este nó com suas mãos por cima de sua cabeça, ninguém poderia fazê-lo. De modo que primeiro teve que fazer o laço corrediço,
tal
como o tem feito você, e depois, atar a bolina. Mas isto tampouco pode ser. Somente havia uns quantos centímetros de correia entre a fivela e o nó. Se
ele o tivesse feito assim, a correia não teria tido suficiente espaço para que ele pudesse passar o pescoço através do laço corrediço. Só há uma maneira pela
que tivesse podido fazê-lo. Primeiro fez o laço corrediço, atirou dele até que a correia se adaptou a seu pescoço como um colar e depois atou a bolina. Logo se
subiu à cadeira, colocou o laço por cima do prego e deu o chute à cadeira. Olhe, isto lhe mostrará o que quero dizer. -Passou outra folha do arquivo e
de repente a tendeu a ela.
     A fotografia, de arruda claridade, brutal surrealismo em branco e negro, teria parecido tão artificial como uma brincadeira morbosa se o corpo não tivesse estado
tão evidentemente morto. Cordelia sentiu martillear seu coração dentro de seu peito. Comparado com este horror, a morte do Bernie resultava suave. A jovem baixou
a cabeça sobre o arquivo e seus cabelos caíram para frente, formando uma tela ao lado de suas bochechas, e ficou a examinar com atenção a espantosa
fotografia que tinha ante si.
     O pescoço se estirou tanto que os descalços pés, com os dedos nas pontas dos pés como os de um bailarino, penduravam a um palmo do chão. Os músculos do
estômago estavam tensos. por cima deles, a caixa torácica parecia tão frágil como a de um pássaro. A cabeça pendurava grotescamente sobre o ombro direito,
como uma horrível caricatura de um boneco desconjuntado. Os olhos tinham rodado para cima sob umas pálpebras entreabiertos. A língua tumefacta se aberto
passo através dos lábios.
     Cordelia disse com calma:
     -Já vejo o que quer você dizer. Logo que há dez centímetros de correia entre o pescoço e o nó. Onde está a fivela?
     -Na nuca, debaixo da orelha esquerda. Mais adiante, no arquivo, há uma fotografia do corte que produziu na carne.
     Cordelia não olhou. por que, perguntava-se, tinha-lhe mostrado esta fotografia? Não fazia falta para provar seu argumento. Tinha esperado impressioná-la, ao
fazer
que se desse conta daquilo no que se estava entremetendo? Queria castigá-la por invadir o terreno dele? Queria contrastar a brutal realidade de seu profissionalismo
com a intromissão de uma aficionada como ela? Queria lhe advertir talvez? Mas lhe advertir do que? A polícia não tinha uma verdadeira suspeita de que houvesse alguma
irregularidade; o caso estava fechado. tratava-se possivelmente da inconsciente malícia, do incipiente sadismo de um homem que não podia resistir o impulso de fazer
dano ou causar uma forte impressão? Ou acaso era consciente de seus próprios motivos?
     Cordelia disse:
     -Convenho em que ele pôde havê-lo feito da maneira que você há descrito, se é que o fez. Mas suponha que alguém mais apertou o laço corrediço ao redor
de seu pescoço, e logo lhe pendurou do gancho. Ele teria pesado, teria sido um peso morto. Não teria sido mais fácil fazer primeiro o nó e logo subi-lo à cadeira?
     -lhe havendo pedido primeiro que entregasse seu cinturão?
     -por que empregar um cinturão? O assassino pôde havê-lo estrangulado com um cordão ou uma gravata. Ou teria deixado uma marca mais profunda e identificável
baixo
a impressão da correia?
     -O patologista procurou uma marca assim. E não estava.
     -Entretanto, há outras maneiras: uma bolsa de plástico, uma daquelas bolsas finas nas que se envolvem os objetos de vestir, deixada cair sobre sua cabeça
e apertada fortemente contra sua cara; um lenço de cabeça fino ; uma média de mulher.
     -Vejo que seria você uma assassina com muitos recursos, senhorita Gray É possível, mas teria feito falta um homem forte e teria tido que haver um elemento
de surpresa. E não encontramos o menor sinal de luta.
     -Mas, pôde haver-se feito desse modo?
     -Naturalmente, mas não havia prova alguma absolutamente de que se feito.
     -Mas, e se antes lhe tivessem drogado?
     -Essa possibilidade também me ocorreu ; por isso fiz analisar o café. Mas não estava drogado, a autópsia o confirmou.
     -Quanto café tinha bebido?
     -Só meia taça, mais ou menos, segundo o relatório da autópsia, e morreu imediatamente depois. Entre as sete e as nove da noite.
     -Não é estranho que tomasse café antes de jantar?
     -Não há uma lei que o prohíba. Não sabemos quando tinha intenção de jantar. De todas maneiras, você não pode pretender estabelecer um caso de assassinato apoiando-se
na ordem em que uma pessoa escolhe comer e beber.
     -E o que me diz da nota que deixou? Suponho que não é possível tirar rastros digitais das teclas de uma máquina de escrever, verdade?
     -Não é fácil nessa classe de teclas. Tentamo-lo, mas não havia nada identificável.
     -De modo que ao final admitiu você que era um suicídio, não?
     -Ao final admiti que não havia possibilidade de demonstrar outra coisa.
     -Mas, você teve alguma intuição? O antigo colega de meu sócio, é um delegado do DIC, sempre fazia caso de suas intuições.
     -Bom, eles podem permitir-se esse luxo. Se eu fizesse caso de todas minhas intuições, não faria um só trabalho; não é o que um suspeita, a não ser o que um
pode provar, o que conta.
     -Posso me levar a nota do suicida e a correia?
     -por que não, se você assinar que as leva? Não parece que alguém mais as necessite.
     -Poderia ver a nota agora, por favor?
     Maskell a tirou do arquivo e a entregou. Cordelia começou a ler para si as primeiras palavras recordadas pela metade:
"Até que debaixo de nós apareceu um imenso vazio como o céu inferior...".
     Cordelia estava surpreendida, não pela primeira vez, pela importância da palavra escrita, a magia dos símbolos ordenados. Manteria a poesia seu teúrgia
se os versos estivessem escritos como prosa ou a prosa seria tão fascinante sem o modelo e a ênfase da pontuação? A senhorita Leaming tinha recitado a passagem
do Blake como se reconhecesse sua beleza e, entretanto, ali, espaçado sobre a página, exercia um poder até mais intenso.
     Foi então quando a surpreenderam duas coisas relacionadas com esta entrevista. A primeira não era algo que ela tivesse intenção de compartilhar com o sargento
Maskell,
mas não havia razão para que não pudesse comentar a segunda.
     -Mark Callender deveu ter sido um excelente datilógrafo -disse-. Isto foi feito por um perito.
     -Não acredito. Se você se fixa bem, verá que uma ou duas das letras estão mais fracamente marcadas que o resto. Isto é sempre o sinal de um aficionado.
     -Mas as letras débeis não são sempre as mesmas. Geralmente são as teclas dos borde do teclado as que o datilógrafo inexperiente pulsa mais ligeiramente.
E o espaçado aqui é bom até quase o final da passagem. Parece que o datilógrafo de repente se deu conta de que tinha que dissimular sua competência,
mas não tivesse tido tempo de voltar a picar toda a passagem. E é estranho que a pontuação seja tão exata.
     -É muito provável que tenha sido copiado diretamente da página impressa. Havia um exemplar do Blake no dormitório do moço. A entrevista é do Blake, como
você sabe.
     -Sim, sei. Mas, se a datilografou do livro, por que se incomodou em voltar a levá-lo a seu dormitório?
     -Era um menino ordenado.
     -Mas não o suficiente para lavar sua taça de café nem limpar sua espécie.
     -Isso nada prova. Como pinjente, a gente se comporta de um modo absurdo quando planeja matar-se. Sabemos que a máquina de escrever era dela e que a tinha tido
durante um ano. Mas não pudemos comparar o datilografado com seu trabalho. Todos seus papéis tinham sido queimados.
     O sargento Maskell olhou seu relógio e ficou de pé. Cordelia viu que a entrevista tinha terminado. Assinou um vale pela nota do suicida e o cinturão de couro,
logo estreitou a mão do sargento e lhe deu as obrigado por sua ajuda. Quando lhe abria a porta, ele disse, como obedecendo a um impulso:
     -Há um detalhe intrigante que pode que lhe interesse conhecer. Parece que esteve com uma mulher durante algum momento o dia em que morreu. O patologista encontrou
um
rastro muito ligeiro, só uma fina linha, de um lápis de lábios de cor púrpura sobre o lábio superior do morto.
III
New Hall, com seu aspecto bizantino, com seu pátio fundo e seu brilhante vestíbulo com cúpula como uma laranja podada, trouxe para a mente da Cordelia a idéia de
um
harém; de acordo, um harém propriedade de um sultão de idéias liberais e com estranha predileção pelas garotas inteligentes, mas um harém, ao fim e ao cabo. O
colégio universitário era certamente muito bonito para que pudesse induzir a um estudo sério. Tampouco estava segura de se aprovava a agressiva feminilidade de
seu tijolo branco, a amaneirada beleza dos lagos, pouco fundos, nos que uns peixes vermelhos se deslizavam como sombras de sangue por entre os nenúfares,
com suas vergônteas habilmente plantadas. Cordelia concentrou sua crítica no edifício; isso contribuiu a evitar que se sentisse intimidada.
     Não tinha ido à portaria a perguntar pela senhorita Tilling, temendo que esta queria conhecer o assunto que a levava ali ou se negasse a recebê-la; parecia
prudente limitar-se a entrar e confiar na sorte. A sorte esteve com ela. depois de perguntar duas vezes infructuosamente pela habitação da Sophia Tilling,
uma estudante que caminhava depressa voltou a cabeça para lhe dizer:
     -Não vive no colégio, mas agora está ali sentada na grama com seu irmão.
     Cordelia saiu da sombra do pátio para o claro sol e pela grama fofa como musgo em direção ao pequeno grupo. Havia quatro estudantes recostados
na cheirosa erva. Os dois Tilling eram inconfundiblemente irmano e irmã. O primeiro pensamento que teve Cordelia foi que recordavam a um par de retratos
prerrafaelistas, com sua cabeça robusta de cabelos escuros, sustentada por um pescoço insolitamente curto, e seu nariz reta por cima de um lábio superior curvo e
breve. Ao lado da vigorosa distinção dos dois irmãos, a segunda moça era toda suavidade. Se era a que tinha visitado o Mark na cabana, a senhorita
Markland teve razão ao dizer que era formosa. Possuía um rosto ovalado com um fino nariz, boca pequena mas bem formada e olhos rasgados, de um azul surpreendentemente
profundo, que conferiam a sua cara um aspecto oriental em contraste com a cor clara de sua pele e sua larga cabeleira loira. Levava um vestido que chegava a
os tornozelos, de fino algodão estampado de cor malva, grampeado na cintura mas sem outra sujeição. O apertado sutiã lhe sustentava os turgentes seios e a
saia caía aberta mostrando umas ajustados calças curtas do mesmo tecido. Por isso Cordelia pôde observar, não levava nada mais. Ia descalça e suas pernas
largas e bem torneadas não tinham sido bronzeadas pelo sol. Cordelia refletiu sobre o fato de que aquelas coxas brancas e voluptuosas deviam encerrar maior
carga erótica que uma cidade inteira de extremidades torradas pelo sol e de que a moça sabia. A beleza moréia da Sophia Tilling só servia de fundo a
esta
outra beleza mais fina, mais sedutora.
     A primeira vista, o quarto membro do grupo era de aspecto mais corrente. Era um jovem robusto, com barba, cabelo avermelhado encaracolado e cara larga, e se
achava recostado
ao lado do Sophie Tilling.
     Todos eles, exceto a garota loira, levavam texanos velhos e camisas de algodão de pescoço aberto.
     Cordelia se tinha aproximado do grupo e esteve de pé, junto a eles, por espaço de uns segundos breves, antes de que tivessem tempo de advertir sua presença.
Disse:
     -Estou procurando o Hugo e Sophie Tilling. Meu nome é Cordelia Gray.
     Hugo Tilling levantou os olhos e disse:
     -O que Cordelia deve fazer é amar e calar
     Cordelia disse:
     -As pessoas que sentem a necessidade de fazer piadas com meu shakesperiano nomeie, geralmente me perguntam por minhas irmãs. Resulta muito aborrecido.
     -Tem que sê-lo. Sinto muito. Eu sou Hugo Tilling, esta é minha irmã, ela é Isabelle do Lasterie e ele é Davie Stevens.
     Davie Stevens se incorporou como um boneco em uma caixa de mola e emitiu um amistoso "Olá".
     Olhou a Cordelia fixamente, como intrigado. Cordelia se perguntava a respeito deste Davie. Sua primeira impressão do pequeno grupo, influenciada possivelmente
pela arquitetura
do colégio universitário, tinha sido a de um sultão que estava repousando com dois de seus favoritas e assistido pelo capitão do guarda. Mas, ao tropeçar-se
seus olhos com o firme e inteligente olhar do Davie Stevens, aquela impressão se desvaneceu. Suspeitou que, naquele serrallo, era o capitão do guarda a personalidade
dominante.
     Sophie Tilling inclinou a cabeça e disse:
     -Olá.
     Isabelle não falou, mas um sorriso belo embora inexpressiva se estendeu por sua cara. Hugo disse:
     -Não quer te sentar, Cordelia Gray, e nos explicar a natureza de suas necessidades?
     Cordelia se ajoelhou com cuidado, temendo manchar-se com a erva a fina pelica de sua saia. Era uma estranha maneira de entrevistar a uns suspeitos
-só que, naturalmente, aquelas pessoas não eram suspeitas-, ajoelhada como um ser suplicante diante deles. Disse:
     -Sou uma detetive privada. Sir Ronald Callender me contratou para averiguar por que morreu seu filho.
     O efeito de suas palavras foi assombroso. Os membros do pequeno grupo, que até aquele momento tinham estado ali relaxados, descansando como guerreiros extenuados,
ficaram instantaneamente rígidos pela surpresa, como se se tivessem convertido em mármore. Depois, quase imperceptivelmente, foram tranqüilizando-se. Cordelia
podia ouvir o lento fluir de sua reprimida respiração. Olhou a cara daqueles moços. Davie Stevens parecia o menos afetado. Esboçou um sorriso médio triste,
com interesse mas sem preocupação, e dirigiu um rápido olhar ao Sophie como de cumplicidade. O olhar não foi correspondida; ela e Hugo olhavam fixamente à frente.
Cordelia teve a impressão de que os dois Tilling evitavam cuidadosamente olhar o um ao outro. Mas era Isabelle a que parecia mais afetada. Abriu a boca e
levou-se a mão à cara, como uma atriz de segunda categoria, simulando surpresa. Seus olhos se alargaram até insondáveis profundidades de um azul violeta
e logo os voltou para o Hugo, em desesperada demanda de ajuda. Estava tão pálida que Cordelia quase esperava que se deprimisse. Pensou. "Se me encontrar em meio
de
uma conspiração, já sei quem é o mais fraco de seus membros".
     Hugo Tilling disse:
     -Diz-nos que Ronald Callender te empregou para averiguar por que morreu Mark, não?
     -É isso tão extraordinário?
     -Encontro-o incrível. Não mostrou particular interesse por seu filho quando estava vivo, por que começa ao ter agora que está morto?
     -Como sabe que não mostrou interesse?
     -Essa é a idéia que eu tinha.
     Cordelia disse:
     -Bem, está interessado agora, embora só se trate do impulso de um cientista por descobrir a verdade.
     -Então, mais lhe valeria que não se separasse de sua microbiologia e descobrisse o modo de fazer que o plástico fosse solúvel em água salgada, ou coisas assim.
Os
seres humanos não são suscetíveis de sua classe de tratamento.
     Davie Stevens disse, afetando indiferença:
     -Não sei como pode agüentar com esse arrogante fascista.
     Esta frase tocou muitas fibras na memória da Cordelia. Voluntariamente ignorante, disse:
     -Eu não perguntei qual é a partida política que apóia sir Ronald.
     Hugo se pôs-se a rir.
     -Davie não quer dizer isso. Com a palavra fascista Davie quer dizer que Ronald Callender sustenta algumas opiniões insustentáveis. Por exemplo, que todos
os homens pode que não tenham sido criados iguais, que o sufrágio universal é possível que não contribua forzosamente à felicidade geral da humanidade,
que as tiranias da esquerda não são perceptivelmente mais liberais nem suportáveis que as tiranias da direita, que o fato de que os negros matem negros
supõe uma pequena melhora com respeito ao feito de que os brancos matem negros no que se refere às vítimas e que o capitalismo pode que não seja responsável
de todos quão maus são herança da carne, do vício às drogas até a má sintaxe. Eu não sugiro que Ronald Callender defenda todas ou alguma
destas repreensíveis opiniões. Mas Davie pensa que sim.
     David lançou um livro contra Hugo e disse sem zangar-se:
     -te cale! Falas como o Daily Telegraph. E está aborrecendo a nosso visitante.
     Sophie Tilling perguntou de repente:
     -Foi sir Ronald o que sugeriu que nos interrogasse?
     -Ele disse que foram amigos do Mark; viu-lhes na investigação e no funeral.
     Hugo se pôs-se a rir.
     -Por Deus, é essa a idéia que ele tem da amizade?
     Cordelia disse:
     -Mas, estiveram ou não?
     -Fomos à investigação, sim, todos nós, menos Isabelle, que, pensamos, teria resultado mais decorativa que confiável. Foi um pouco aborrecido. Houve uma grande
quantidade de irrelevantes prova médicas sobre o estado do coração, pulmões e aparelho digestivo do Mark. A julgar por elas, teria seguido vivendo eternamente
se não se pôs um cinturão ao redor de seu pescoço.
     -E ao funeral, foram também?
     -Estivemos no crematório de Cambridge. Uma cerimônia pouco luzida. Só fomos seis os pressente, além dos duas da funerária; nós três, Ronald
Callender aquela secretária ou ama de chaves dela e uma velha vestida de negro, que projetou um ar mas bem lúgubre a todo aquilo, pensei eu. Em realidade, até
tal ponto parecia uma velha criada da família, que suspeito que era um policial disfarçado.
     -por que? Tinha esse aspecto?
     -Não, mas é que você tampouco tem o aspecto de uma detetive.
     -Não tem idéia de quem pudesse ser?
     -Não, não fomos apresentados; não foi um funeral com camaradagem. Agora o recordo, nenhum de nós disse uma só palavra aos outros. Sir Ronald levava
uma máscara de duelo público: o rei chorando a morte do príncipe herdeiro.
     -E a senhorita Leaming?
     -Fazia o papel de rainha consorte; tinha que ter levado um véu negro sobre o rosto.
     -Eu pensei que sua dor era bastante real -disse Sophie.
     -Não pode dizê-lo. Ninguém pode dizê-lo. Define a dor, vamos, define o que é real.
     de repente, Davie Stevens falou, deixando cair de barriga para baixo sobre a erva como um cão brincalhão.
     -A mim a senhorita Leaming pareceu bastante afetada. Digamos também de passagem que a aquela velha a chamavam Pilbeam; de todas maneiras, esse era o nome
que figurava na coroa.
     Sophie se pôs-se a rir.
     -Aquela horrível cruz de rosas com o cartão com o bordo negro? Eu podia ter adivinhado que procedia dela, mas, como sabe você?
     -Porque olhei, céu. os da funerária tiraram a coroa do ataúde e a apoiaram contra a parede, e eu joguei uma olhada. O cartão rezava: "Com sincera condolência
de Tatu Pilbeam".
     Sophie disse:
     -Agora me lembro de que o fez. Que gesto tão belamente feudal! Pobre viejecita, deveu gastar-se muito dinheiro nessa cruz!
     -Falou Mark alguma vez a respeito de uma tal Tatu Pilbeam? -perguntou Cordelia.
     olharam-se rapidamente uns aos outros. Isabelle negou com a cabeça. Sophie disse:
     -A mim, não.
     Hugo Tilling respondeu:
     -Nunca falou dela, mas penso que a vi uma vez antes do funeral. Chegou ao colégio fará uma seis semanas, precisamente o dia em que Mark cumpria vinte e um
anos, e pediu falar com ele. Eu estava naquele momento na portaria e Robbins me perguntou se Mark estava no colégio. Ela subiu à habitação dele e estiveram
juntos como coisa de uma hora. Eu a vi quando partia, mas ele não me mencionou isso então nem mais tarde.
     E pouco depois, pensou Cordelia, deixou a universidade. Podia haver alguma relação? Havia só uma ligeira pista, mas teria que segui-la.
     Movida por uma curiosidade que parecia de uma vez perversa e irrelevante, perguntou:
     -Havia outras flores?
     -Em cima do ataúde havia um singelo buquê de flores de jardim. Nenhum cartão. Da senhorita Leaming, suponho. Não acredito que fosse o estilo de sir Ronald.
     Cordelia disse:
     -Vós foram seus amigos. me falem dele, por favor.
     olharam-se uns aos outros para decidir quem devia falar. Sua perplexidade era quase evidente. Sophie Tilling estava arrancando hojitas de erva e as fazia
rodar em suas mãos. Sem levantar os olhos, disse:
     -Mark era uma pessoa muito reservada. Não estou segura de até que ponto lhe conhecia qualquer de nós. Era calado, amável, auto-suficiente, pouco ambicioso.
Era inteligente sem ser preparado. Era muito amável; preocupava-se com as pessoas, mas sem as afligir com seu interesse por elas. Tinha pouco amor próprio, mas isto
não
parecia lhe preocupar. Não acredito que haja mais que possamos dizer sobre ele.
     de repente, Isabelle falou com voz tão baixa que Cordelia logo que pôde ouvi-la. Disse:
     -Era de uma grande doçura.
     Hugo disse com súbita impaciência irada:
     -Era doce e está morto. Isso é tudo. Não podemos te dizer mais que isto a respeito do Mark Callender Nenhum de nós lhe viu depois de largar do colégio.
Não nos consultou antes de partir e tampouco nos consultou antes de matar-se. Era, como te há dito minha irmã, uma pessoa muito reservada. Sugiro que lhe deixe em
seu caráter reservado.
     -Ouça -disse Cordelia-, foram à investigação, foram ao funeral. Se tinham deixado de lhe ver, se tão pouco interesse sentiam por ele, por que lhes incomodaram?
     -Sophie foi por afeto. Davie foi porque foi Sophie. Eu fui por curiosidade e respeito; meu ar de despreocupado não deve te fazer pensar que não tenho coração.
     Cordelia continuou obstinadamente:
     -Alguém lhe visitou na cabana na tarde em que morreu. Alguém tomou café com ele. Eu tenho a intenção de averiguar quem foi essa pessoa.
     Foi sua imaginação a que fez acreditar que esta notícia lhes surpreendia? Sophie Tilling estava a ponto de fazer uma pergunta, quando seu irmão interveio rapidamente:
     -Nenhum de nós foi ali. A noite em que Mark morreu, nós estávamos na segunda fila da galeria do Arts Theatre vendo uma obra do Pinter. Não
sei se poderia prová-lo. Duvido de que a bilheteira conserve a lista daquela noite, mas eu reservei as localidades e é possível que ela me recorde. Se te empenhar
em ser aburridamente meticulosa, provavelmente possa te apresentar a um amigo que conhecia minha intenção de levar a um grupo a ver a obra; a outro que viu pelo
menos
a algum de nós no bar durante o descanso; e a outro com o que posteriormente falei da representação. Isto nada provará, meus amigos formam um conjunto
homogêneo. Seria para ti mais singelo que admitisse que estou dizendo a verdade. por que teria que mentir? Os quatro estivemos no Arts Theatre a noite do
vinte e seis de maio.
     Davie Stevens disse em tom cometido:
     -por que não diz a esse arrogante bode do Callender que se vá ao inferno e deixe a seu filho em paz e logo você te busca um lindo e singelo caso de roubo?
     -Ou de assassinato -disse Hugo Tilling.
     Como obedecendo a algum código, começaram a levantasse, juntando seus livros e sacudindo-os trocitos de erva de sua roupa. Cordelia lhes seguiu através de
os pátios e fora do colégio. Formando ainda um grupo silencioso, encaminharam-se para um Renault branco estacionado no pátio anterior.
     Cordelia chegou até eles e falou diretamente com o Isabelle.
     -Você gostou da obra do Pinter? Não te deu medo aquela terrível cena última, quando Wyatt Gillman é morto a tiros pelos nativos?
     Resultou tão fácil, que Cordelia quase se desprezou a si mesmo. Os imensos olhos violeta se aumentaram intrigados.
     -OH, não!, não tive medo absolutamente. Estava com o Hugo e os outros, sabe?
     Cordelia se voltou para o Hugo Tilling.
     -Ao parecer, seu amiga não conhece a diferença entre o Pinter e Osborne.
     Hugo se estava acomodando no assento do condutor. Torceu o corpo para abrir a portinhola traseira para o Sophie e Davie. Disse tranqüilamente:
     -Meu amiga, como diz você, vive em Cambridge, e vai aos sítios sem o olhar escrutinadora de uma carabina, agrado-me em dizê-lo, com o fim de aprender inglês.
até agora seus progressos foram irregulares e em alguns aspectos decepcionantes. A gente nunca pode estar seguro de até que ponto meu amiga compreendeu.
     Começou para ouvir o ruído do motor. O carro começou a mover-se. Foi então quando Sophie Tilling tirou a cabeça pelo guichê e disse, como obedecendo
a um impulso:
     -Não me importa falar do Mark se pensar que vai servir te de algo. Não te servirá, mas, se quiser, pode vir a minha casa esta tarde, o 57 da rua Norwich.
Não demore; Davie e eu iremos ao rio. Você também pode vir, se gostar.
     O carro acelerou a marcha. Cordelia o seguiu com os olhos até que se perdeu de vista. Hugo levantou a mão em irônica despedida, mas nenhum deles voltou
a cabeça.
Cordelia foi murmurando a direção para si mesmo até que ficou cotada com segurança: o número 57 da rua Norwich. Era essa a direção onde se alojava
Sophie, ou possivelmente uma casa de hóspedes para estudantes, ou é que sua família vivia em Cambridge? Bem, logo o averiguaria. Quando devia chegar? Muito logo
indicaria que estava excessivamente ansiosa; se chegava muito tarde, ao melhor já se teriam ido ao rio. Seja qual for o motivo que tinha induzido ao Sophie
Tilling a fazer aquele tardio convite, Cordelia já não tinha que perder contato com eles.
     Sabiam algo suspeito; isso tinha sido evidente. por que, se não, tinham reagido tão fortemente a sua chegada. Queriam que os fatos da morte do Mark
Callender ficassem tal como estavam. Tratariam de persuadi-la, enrolá-la, inclusive envergonhá-la, para que abandonasse o caso. Ameaçariam-na também?, perguntava-se.
Mas, por que? A teoria mais verossímil era que estavam encobrindo a alguém. Mas, de novo, por que? Um assassinato não era um assunto como chegar tarde ao colégio,
uma infração venial das regras que um amigo perdoaria e ocultaria automaticamente. Mark Callender tinha sido amigo dele. Alguém a quem ele conhecia e em quem
tinha crédulo lhe tinha pacote fortemente uma correia ao pescoço, tinha contemplado e escutado sua agonia por asfixia e tinha suspenso seu corpo de um gancho como
se se tratasse do corpo de uma cabeça de gado morta. Como podia reunir-se aquele espantoso conhecimento com o olhar ligeiramente divertido e afligida que Davie Stevens
dirigiu ao Sophie, com a cínica tranqüilidade do Hugo, com os olhos amistosos e cheios de interesse do Sophie? Se eram conspiradores, então eram uns monstros.
E Isabelle? Se estavam encobrindo a alguém, o mais provável era que fosse a ela. Mas Isabelle do Lasterie não podia ter assassinado ao Mark. Cordelia recordava
aqueles frágeis ombros inclinados, aquelas mãos inúteis, quase transparentes ao sol, as largas unhas pintadas, como elegantes garras rosadas. Se Isabelle era
culpado, não tinha atuado sozinha. Só uma mulher alta e muito robusta podia ter levantado aquele corpo inerte até a cadeira para suspendê-lo do gancho.
     A rua Norwich era de direção única e, ao princípio, Cordelia se aproximou dela da direção equivocada. Demorou algum tempo em achar o caminho para
retroceder até a rua Hills, passar por diante da igreja católica romana e descer pela quarta à direita. A rua estava escalonada com pequenas casas
de tijolo, evidentemente vitorianas da primeira época. Também era evidente que a rua estava em seu ponto ascendente. A maioria das casas pareciam bem
cuidadas; a pintura das portas principais, idênticas, era recente e brilhante; singelos visillos tinham substituído os encaixes das janelas da planta
baixa. O número cinqüenta e sete tinha a porta principal grafite de negro, com o número em branco. Cordelia viu com alívio que havia sitio para estacionar o Mini.
Não havia sinais do Renault entre a fileira quase contínua de velhos carros e danificadas bicicletas que se alinhavam ao bordo da calçada.
     A porta principal estava totalmente aberto. Cordelia pulso o timbre e entrou lentamente em um estreito saguão pintado de branco. O interior da casa
resultou-lhe em seguida familiar. A partir dos sete anos de idade tinha vivido dois anos em uma destas casitas vitorianas com a senhora Gibson, nos subúrbios
do Romford. Reconheceu a escada levantada e estreita imediatamente diante, com a porta da direita, que dava acesso à sala anterior, e a segunda porta,
que conduzia à sala posterior e através desta à cozinha e ao pátio. Sabia que haveria armários e um oco a cada lado da chaminé; sabia onde encontrar
a porta debaixo da escada. A lembrança era tão intensa que impunha naquele interior limpo e ensolarado o forte aroma de guardanapos não lavados, de couve e de
graxa, que tinha impregnado a casa do Romford.
     Quase podia ouvir as vozes dos meninos chamando-a por seu nome do pátio da escola primária situada ao outro lado da rua, chutando o asfalto com
as botas Wellington que levavam em todas as estações do ano, agitando seus magros braços talheres pelos jerseis: "Cor, Cor, Cor!".
     A porta mais longínqua estava entreabierta, e Cordelia pôde vislumbrar uma habitação grafite de amarelo claro e alagada pela luz do sol. Apareceu a cabeça
do Sophie.
     -OH, é você! Entra. Davie foi ao colégio a recolher uns livros e a comprar comida para esta tarde. Quer tomar chá agora ou prefere que esperemos? Em seguida
termino de engomar.
     -Preferiria esperar, obrigado.
     Cordelia se sentou e esteve olhando enquanto Sophie enrolava o cordão elétrico ao redor da prancha e dobrava a roupa. Jogou um olhar pela habitação.
Resultava acolhedora e atrativa, mobiliada sem um estilo particular, uma mixórdia agradável de coisas trocas e valiosas, de coisas sem pretensão e de coisa agradáveis.
Havia uma robusta mesa de carvalho aproximada à parede; quatro cadeiras de comilão mas bem feias; uma cadeira Windsor com uma grande almofada amarela; um elegante
sofá vitoriano
estofo de veludo marrom sob a janela; três figuras, boas, do Staffordshire sobre o suporte da chaminé. Uma das paredes estava quase totalmente coberta
com um tablón de anúncios de cortiça de cor escura no que se exibiam pôsteres, cartões, memoranda e fotografias recortadas de revistas. Dois destas, viu Cordelia,
eram nus belamente fotografados e atrativos.
     Através da janela de visillos amarelos se via o pequeno jardim exuberante de verdor, rodeado por uma parede. Uma imensa malva louca cheia de flores crescia
junto a uma grade; havia rosas plantadas em tinajas do Alí Babá e uma fileira de vasos de barro de gerânios rosados no alto da parede.
     Cordelia disse:
     -Eu gosto desta casa. É tua?
     -Sim, é minha. Nossa avó morreu faz dois anos e deixou ao Hugo e a mim uma pequena herança. Eu empreguei a meu para o pagamento à vista desta casa e obtive
da Prefeitura um empréstimo para os gastos de reformas. Hugo se gastou todo o dinheiro em comprar vinhedos. estava-se assegurando o futuro. Eu me assegurei o presente.
Suponho que esta é a diferença que há entre nós dois.
     Dobrou sobre um extremo da mesa a roupa que tinha engomado e a guardou em um dos armários. Quando se sentou frente a Cordelia, espetou a bocajarro:
     -Você gosta de meu irmão?
     -Não muito. Pareceu-me algo rude comigo.
     -Não tinha intenção de sê-lo.
     -Pois me parece até pior. A rudeza deveria ser intencionada, do contrário indica falta de sensibilidade.
     -Hugo não mostra o melhor de si mesmo quando se encontra com o Isabelle. Ela tem esse efeito sobre ele.
     -Estava apaixonada pelo Mark Callender?
     -Terá que perguntar-lhe a ela mesma, Cordelia, mas eu não acredito. Apenas se conheciam. Mark era meu amante, não o seu. Pensei que era melhor te fazer vir
aqui para lhe dizer isso eu mesma, posto que alguém vai fazer o mais tarde ou mais cedo se andar por Cambridge averiguando feitos relacionados com ele. Não vivia
aqui
comigo, é obvio. Ele tinha alojamento no colégio. Mas fomos amantes quase todo o ano passado. A coisa terminou pouco depois de Natal, quando conheci 
Davie.
     -Estavam apaixonados?
     -Não estou segura. Toda relação sexual é uma espécie de exploração, não? Se referir a se explorávamos nossas próprias identidades através da personalidade
do outro, então suponho que estávamos ou acreditávamos estar apaixonados. Mark precisava acreditar no amor. Eu não estou  segura do que significa essa palavra.
     Cordelia sentiu um impulso de simpatia. Ela tampouco estava segura. Pensava em seus dois amantes: no Georges, com o que se deitou porque era amável e
desgraçado e a chamava Cordelia, seu nome real, não Delia, o da pequena fascista de papai; e no Carl, que era jovem e colérico e gostava tanto que lhe parecia
uma descortesia não demonstrar-se o da única maneira que lhe parecia importante. Ela nunca tinha considerado a virgindade mais que como um estado provisório
e inconveniente, parte da insegurança geral e de vulnerabilidade da juventude. antes do Georges e Carl, ela tinha sido solitária e inexperiente. Depois, continuou
sendo solitária, mas com um pouco mais de experiência. Nenhuma das duas relações lhe tinha dado a desejada segurança no trato com papai nem com as patronas,
nenhuma delas tinha influenciado de um modo extraordinário em seu coração. Mas pelo Carl tinha sentido ternura. Foi quando ele partiu a Roma, antes de que a relação
sexual chegasse a ser muito prazenteira para ele e o homem muito importante para ela. Era intolerável pensar que essa estranha ginástica pudesse um dia fazer-se
necessária. Fazer o amor, tinha decidido Cordelia, estava superado, um pouco não doloroso, mas surpreendente. A separação entre pensamento e ação era assim completa.
Disse:
     -Suponho que eu só queria dizer se sentiam afeto o um pelo outro e se vocês gostavam de ir à cama juntos.
     -As duas coisas.
     -por que terminou, então, a relação? Brigaram?
     -Nada disso, tão natural como pouco civilizado. Ninguém brigava com o Mark. Essa era uma das dificuldades que havia com ele. Disse-lhe que não queria seguir
com
a relação e ele aceitou minha decisão tão tranqüilamente, como se só estivesse cancelando uma entrevista para ir ver uma obra no Arts. Não tentou discutir nem me
dissuadir.
E se te pergunta se a ruptura teve algo que ver com sua morte, pois te direi que está equivocada. Não acredito que alguém se matasse por mim, e menos que menos Mark.
Provavelmente eu gostava mais ele que eu a ele.
     -Então, por que terminou tudo?
     -Eu me sentia como se estivesse sob um escrutínio moral. Não era certo: Mark não era um pedante. Mas isso era o que eu sentia ou imaginava sentir. Não podia
viver à altura de seu modo de ser e tampouco queria. Estava Gary Webber, por exemplo. Queria te falar dele; isso explica muitas coisas com respeito ao Mark. Se
tráfico de um menino autista, um desses autistas incontroláveis, violentos. Mark lhe conheceu ele e a seus pais e seus outros dois filhos no Jesus Green, fará coisa
de
um ano, os meninos estavam ali jogando nos balanços. Mark falou com o Gary e o menino lhe respondeu. Os meninos sempre o fazem. comprometeu-se a visitar a família
e a cuidar do Gary uma noite por semana, para que os Webber pudessem ir ao cinema. Durante suas duas últimas férias, ficou na casa cuidando ele sozinho do Gary
enquanto que a família em pleno se ia de férias por seu lado. Os Webber não podiam suportar a idéia de mandar ao menino ao hospital; já o tinham tentado uma
vez e não resultou. Mas se sentiam perfeitamente felizes deixando-o com o Mark. Eu estava acostumado a ir algumas tardes a vê-los juntos. Mark sentava ao menino
em seus joelhos e o
balançava para trás e para frente durante horas inteiras. Era a única maneira de poder acalmá-lo. Não estávamos de acordo com respeito ao Gary. Eu pensava que
estaria melhor morto e assim o disse. Ainda penso que seria melhor que se muriese, melhor para seus pais, melhor para o resto da família, melhor para ele. Mark
não estava conforme. Lembrança que eu lhe dizia: "Bem, se crie que é razoável que os meninos sofram para que você possa desfrutar da emoção de lhes aliviar... ".
depois disto, a conversação se voltou aburridamente metafísica. Mark disse: "Nem você nem eu estaríamos dispostos a matar ao Gary. Ele existe. Sua família existe.
Eles necessitam uma ajuda que nós podemos lhes dar. Não importa o que sintamos. As ações são importantes, os sentimentos não".
     Cordelia disse:
     -Mas as ações nascem dos sentimentos.
     -OH, Cordelia, não você comece agora! Já tive precisamente esta classe de conversação muitas vezes. Claro que as ações nascem dos sentimentos!
     Guardaram silêncio um instante. Então Cordelia, temerosa de destruir o tênue laço de confiança e amizade que percebia se estava formando entre ambas, fez
um esforço para perguntar:
     -por que se suicidó, se é que se suicidó?
     A resposta do Sophie foi tão categórica como uma portada.
     -Deixou uma nota.
     -Uma nota possivelmente sim, mas, como indicou seu pai, não deixou uma explicação. É uma formosa passagem de prosa, ao menos assim acredito eu, mas, como justificação
para
um suicídio, não é precisamente convincente que digamos.
     -Convenceu ao jurado.
     -Não me convence. Pensa, Sophie! Certamente só há duas razões para suicidarse. Para escapar de algo ou para algo. O primeiro é racional. Se uma pessoa
encontra-se em meio de uma dor intolerável, desesperada-se ou mentalmente angustiada e não há probabilidade razoável de cura, então possivelmente se compreende que
prefira acabar contudo. Mas não é compreensível que um se suicide com a esperança de ganhar uma existência melhor ou de ampliar a própria sensibilidade com a experiência
da morte. Não se pode experimentar a morte. Nem sequer estou segura de se for possível experimentar o morrer. A gente só pode experimentar os preparativos para
a morte, e inclusive isto parece inútil, posto que não pode logo fazer uso da experiência. Se houver alguma classe de existência depois da morte, todos nós
já saberemos bastante logo. Se não a houver, não existiremos para nos queixar de que fomos enganados. As pessoas que acreditam em uma vida depois da morte
são perfeitamente razoáveis. São as únicas que estão a salvo de uma decepção póstuma.
     -pensaste muito em todo isso, verdade? Não estou segura de que o façam os suicidas. O ato é provavelmente de uma vez impulsivo e irracional.
     -Era Mark impulsivo e irracional?
     -Eu não conheci o Mark.
     -Mas foram amantes! Deitava-te com ele!
     Sophie a olhou e rompeu a chorar, com dor e com ira ao mesmo tempo.
     -Eu não lhe conhecia! Eu pensava que sim, mas em realidade nada sabia dele absolutamente!
     Estiveram sentadas sem falar por espaço de quase dois minutos. Logo perguntou Cordelia:
     -Você foi jantar ao Garforth House, verdade? O que te pareceu?
     -A comida e o vinho estavam estupendos, mas suponho que não era a isto ao que te referia. Os comensais nada tinham de particular. Sir Ronald esteve o bastante
amável quando se deu conta de que eu estava ali. A senhorita Leaming, quando era capaz de desviar sua obsessiva atenção do gênio que presidia a mesa, olhava-me
como uma sogra em potência. Mark estava mas bem calado. Acredito que me tinha levado lá para me demonstrar algo, ou possivelmente para demonstrar-lhe a si mesmo;
não estou
segura do que. Nunca me falou sobre a velada nem me perguntou o que me tinha parecido. Um mês depois, fomos jantar ali Hugo e eu, os dois. Foi quando conheci o Davie.
Era o convidado de um dos investigadores de biologia e Ronald Callender estava tratando de pescá-lo. Davie fez ali um trabalho de férias em seu último ano
de carreira. Se quer conhecer detalhes do interior do Garforth House, deveria lhe perguntar a ele.
     Cinco minutos depois, chegaram Hugo, Isabelle e Davie. Cordelia tinha subido ao quarto de banho e de ali ouviu deter o carro e rumor de vozes no vestíbulo.
Ouviu ruídos de passos por debaixo de onde estava, em direção à sala traseira. Abriu o grifo da água quente. O aquecedor de gás da cozinha imediatamente
emitiu um rugido, como se a pequena casa fosse ativada por uma dínamo. Cordelia deixou aberto o grifo, logo saiu do quarto de banho e fechou com cuidado a porta
depois de si. Foi subindo sigilosamente até o alto da escada. Não estava bem fazer desperdiçar ao Sophie tanta água quente, pensou com sentimento de culpa;
mas até era pior o sentimento de traição e vulgar oportunismo quando baixou os três primeiros degraus e ficou a escutar. A porta da rua tinha sido fechada,
mas a da sala de atrás estava aberta. Ouviu a voz do Isabelle que dizia:
     -Mas se esse sir Ronald lhe paga para que investigue sobre o Mark, por que não posso lhe pagar eu para que deixe de investigar?
     Logo a voz do Hugo, divertida, um tanto desdenhosa:
     -Querida Isabelle, quando se inteirará de que não todo mundo pode ser comprado?
     Então falou Sophie.
     -Certamente, a ela não a compra. Esta mulher eu gosto.
     -Gosta a todos -repôs seu irmão-. A questão é como nos desembaraçar dela.
     Logo, durante uns minutos, houve um murmúrio de vozes, vozes indistinguíveis, interrompidas pelo Isabelle ao dizer:
     -Parece-me que esse trabalho não é apto para mulheres.
     ouviu-se o som de uma cadeira roçando o chão e rumor de pés. Cordelia correu, culpado, outra vez ao quarto de banho e fechou o grifo. Recordou a complacente
advertência do Bernie em resposta à pergunta que lhe tinha feito sobre se precisavam aceitar um caso de divórcio: "A gente não pode fazer, querida sócia, o
trabalho que fazemos, e ao mesmo tempo ser um cavalheiro". ficou, pois, olhando para a porta entreabierta. Hugo e Isabelle partiam. Esperou até que ouviu
que se fechava a porta da rua e que o carro se afastava. Então baixou à sala. Sophie e Davie estavam juntos, tirando o conteúdo de uma grande bolsa de
comestíveis. Sophie sorriu e disse:
     -Isabelle dá uma festa esta noite. Tem uma casa muito perto daqui, na rua Panton. O tutor do Mark, Edward Horsfall, provavelmente estará ali e pensamos
que poderia te ser útil que lhe falasse do Mark. A festa é às oito, mas pode vir a nos buscar aqui. Agora estamos empacotando um lanche; pensávamos agarrar
uma bandeja para navegar pelo rio durante uma hora mais ou menos. Vêem, se quiser. É realmente a maneira mais agradável de ver Cambridge.
Posteriormente, Cordelia recordava a excursão pelo rio como uma série de breves mas vívidos quadros, momentos nos que a vista e o sentimento se fundiam
e o tempo parecia deter-se momentaneamente, enquanto a imagem, iluminada pelo sol, ficava impressa em sua mente. A luz do sol brilhando sobre o rio e dourando
o pêlo que cobria o peito e os braços do Davie; Sophie levantando o braço para secar o suor da frente, enquanto descansava um momento depois de utilizar
a vara com que, apoiando-a no fundo do rio, fazia avançar a bandeja; ervas de um verde negruzco arrastadas pela vara das misteriosas profundidades,
que se retorciam sinuosamente por debaixo da superfície da água; um pato que movia sua branca cauda antes de desaparecer nas agitadas águas verdes. Quando cruzaram
por debaixo da ponte da rua Silver, um amigo do Sophie passou nadando junto à embarcação, deslizando-se como uma lontra, com os negros cabelos lhe cobrindo
as bochechas. Apoiou as mãos na bandeja e abria a boca para ser cevado com partes de sanduíche que lhe dava uma Sophie que não cessava de protestar. As bandejas
e
canoas se roçavam e chocavam umas com outras na turbulência da branca água que corria rápida sob a ponte. O ar ressonava com as vozes e as risadas, e as
verdes arremata estavam povoadas de corpos semidesnudos que jaziam tombados com a cara para o sol.
     Davie dirigiu a vara da bandeja até que chegaram ao nível mais alto do rio e Cordelia e Sophie se tenderam sobre as almofadas em extremos opostos da
embarcação. Assim distanciadas era impossível sustentar uma conversação de caráter privado; Cordelia supôs que era isto precisamente o que Sophie tinha planejado.
de vez em quando, soltava fragmentos de informação para fazer ressaltar que a excursão era estritamente educativa.
     -Essa espécie de bolo de bodas é John's, estamos passando por debaixo da ponte do Clare, um dos mais bonitos, acredito. Foi construído pelo Thomas Grumbald
em
1639. Dizem que só lhe pagaram três xelins pelo desenho. Já conhece essa vista, naturalmente; é uma boa vista do Queen'S.
     Cordelia sentiu que lhe falhava o valor ante a idéia de interromper este desconexo bate-papo de turista com a brutal pergunta de "Mataram você e seu irmão a
seu amante?".
     Ali, balançando-se agradavelmente no rio banhado pela luz do sol, pergunta-a parecia de uma vez inoportuna e absurda. Cordelia corria o perigo de adormecer-se
em uma amável aceitação da derrota; de considerar todas suas suspeitas como um desejo neurótico de dramatismo e notoriedade, uma necessidade de justificar o que
teria que lhe cobrar a sir Ronald Callender. Ela acreditava que Mark Callender tinha sido assassinado porque queria acreditá-lo. identificou-se com ele, com sua
solidão,
sua auto-suficiência, sua alienação com respeito a seu pai, sua infância solitária. Tinha chegado -esta era a presunção mais perigosa de todas- a considerar-se seu
vingadora. Quando Sophie se encarregou da bandeja, quando acabavam de passar por diante do hotel Garden House, e Davie andou pelo bordo da bandeja, que se balançava
brandamente, e foi tender se ao lado dela, Cordelia sabia que seria incapaz de mencionar o nome do Mark. Foi uma vaga curiosidade o que a impulsionou a perguntar:
     -É sir Ronald um bom cientista?
     Davie agarrou um pequeno canalete e começou a remover perezosamente a brilhante água do rio.
     -Sua ciência é perfeitamente respeitável, como diriam meus queridos colegas. Algo mais que respeitável, em realidade. Atualmente, o laboratório está trabalhando
sobre o modo de estender o uso dos monitores biológicos para fixar a contaminação do mar e dos estuários; isto significa estudos regulares de vegetais
e animais que poderiam servir como indicadores. E o ano passado realizaram um trabalho preliminar, muito útil, sobre a degradação dos plásticos. O próprio Ronald
Callender não é tão bom, que digamos, mas, ao fim e ao cabo, não se pode esperar muita ciência original a partir dos cinqüenta. Mas é um grande descobridor
de talentos e certamente conhece o modo de dirigir uma equipe, se você imaginar que o é essa turma de irmãos devotos, um para todos. Eu não. Inclusive publicam
seus artigos como Laboratório de Investigação Callender, não baixo nomeie individuais. Isso não é para mim. Quando eu publico algo é para a maior glorifica do David
Forbes Stevens e, de passagem, para satisfação do Sophie. Aos Tilling gosta do êxito.
     -Foi por isso pelo que não ficou com eles quando lhe ofereceram um emprego?
     -Sim, entre outras razões. Pagamento muito generosamente e exige muito. Eu não gosto que me comprem nem estou disposto a me pôr cada noite um smoking como se
fosse
um macaco que se exibe em um parque zoológico. Eu sou um biólogo molecular. Não estou procurando o Santo Grial. Papai e mamãe me educaram na fé metodista e não vejo
razão para rechaçar uma religião perfeitamente boa e que me serviu muito durante doze anos, só para pôr em seu lugar o grande princípio científico ou ao Ronald
Callender. Desconfio desses cientistas sacerdotais. É um milagre que esse pequeno grupo do Garforth House não faça três genuflexões diárias em direção ao Cavendish.
     -E o que me diz do Lunn? Como encaixa no grupo?
     -OH, esse moço sim que é um milagre! Ronald Callender o encontrou em um lar de meninos quando contava quinze anos, não me pergunte como, e o preparou para
ser ajudante de laboratório. Não poderia encontrar algo melhor. Não se inventa um só instrumento que Chris Lunn não possa aprender a dirigir e cuidar. Ele mesmo

desenvolvido um ou dois, e Callender os patenteou. Se no laboratório há alguém que seja indispensável, esse é provavelmente Lunn. Certamente Ronald Callender
tem mais interesse por ele de que teve por seu filho. E Lunn, como pode supor, considera o Callender um Deus todo-poderoso, coisa que resulta muito satisfatória
para
ambos. Realmente, é extraordinário que toda aquela violência que estava acostumado a manifestar-se em brigas guias de ruas tenha sido domesticada e represada para
o serviço de
a ciência. Isto tem que atribui-lo ao Callender. Não há dúvida de que sabe como escolher a seus escravos.
     -E a senhorita Leaming é uma pulseira?
     -Bom, eu não saberia te dizer o que é realmente Eliza Leaming. Ela é responsável pela gerência do negócio e, ao igual a Lunn, provavelmente é indispensável.
Lunn e ela parecem ter uma relação amor-odeio, ou possivelmente uma relação odeio-odio. Não sou muito experiente em detectar estes matizes psicológicos.
     -Mas, como demônios paga sir Ronald todo isso?
     -Bom, aí está a questão dos mil dólares, não? Se rumorea que a maior parte do dinheiro provinha de sua mulher e que entre ele e Elizabeth Leaming o investiram
com bastante inteligência. Certamente precisavam fazê-lo. E logo ele tira certa quantidade de trabalho contratado. Mesmo assim, é uma afeição custosa. Enquanto eu
estive
ali lhes ouvi dizer que os da Companhia Wolvingtón estavam interessados. Se obtiveram algo grande, e suponho que não consideram digno deles obter algo pequeno,
então se acabariam as preocupações do Ronald Callender. A morte do Mark teve que lhe afetar. Mark tinha que entrar em posse de uma bonita fortuna dentro
de quatro anos e disse ao Sophie que tinha a intenção de entregar a maior parte dela a seu pai.
     -por que tinha que fazer isso?
     -Deus sabe. Algum cargo de consciência, possivelmente. De todos os modos, era evidente que pensava que era algo que Sophie tinha que saber.
     Cargo de consciência por que?, perguntava-se Cordelia, sonolenta. Por não amar bastante a seu pai? Por rechaçar seu entusiasmo? Por ser menos que o filho
que ele tinha esperado que fosse? E o que lhe ocorreria então à fortuna do Mark? Quem ia sair ganhando com a morte do Mark? Cordelia supôs que teria
que consultar o testamento do avô e averiguá-lo. Mas isso significaria uma viagem a Londres. Valia realmente a pena?
     Levantou a cara para o sol e inundou uma mão na corrente. A água levantada pela vara da bandeja a salpicou nos olhos. Abriu-os e viu que a bandeja
estava-se aproximando da borda, sob a sombra de umas árvores que se estendiam por cima da água. Justo frente a ela, um ramo arrancado, fendida no extremo
e grosa como o corpo de um homem, pendia por um fio de casca, e girou brandamente quando a bandeja passou por debaixo dela. Cordelia foi consciente da voz
do Davie; devia lhe haver estado falando durante muito momento. Que estranho que não pudesse recordar o que lhe estava dizendo.
     -A gente não necessita uma razão para suicidarse; o que alguém precisa é uma razão para não suicidarse. Foi suicídio, Corde1ia, eu o deixaria tal como está.
     Cordelia pensou que devia haver ficado dormida um instante, posto que ele parecia responder a uma pergunta que ela não recordava lhe haver feito. Mas então
havia outras vozes, mais fortes e mais insistentes. a de sir Ronald Callender: "Meu filho está morto. "Meu" filho. Se eu for de algum modo responsável, preferiria
sabê-lo.
Se alguém mais for responsável, quero sabê-lo também". A do sargento Maskell: "Como usaria você isto para enforcar-se, senhorita Gray?". A sensação do tato
do cinturão, liso e sinuoso, deslizando-se como um ser vivo através de seus dedos.
     incorporou-se rapidamente, rodeando com suas mãos os joelhos, de maneira tão repentina que a embarcação se balançou violentamente e Sophie teve que agarrar-se
a um ramo que me sobressaía da borda para manter o equilíbrio. Sua cara moréia, com o desenho que sobre ela projetava a sombra das folhas, olhava para
Cordelia como de uma imensa altura. Os olhos das duas jovens se encontraram. Naquele momento, Cordelia foi consciente do perto que tinha estado de abandonar
o caso. Tinha sido subornada pela beleza do dia, pelo sol, a indolência, a promessa de camaradagem, inclusive de amizade, em troca de esquecer a razão por
a que se encontrava ali. Ao dar-se conta disso, horrorizou-se. Davie havia dito que sir Ronald era um bom caçador de talentos. Bem, tinha-a caçado a ela.
Este era seu primeiro caso e ninguém ia impedir lhe que resolvesse.
     Disse, com toda seriedade:
     -fostes muito amáveis ao me deixar vir aqui com vós, mas não quero me perder a festa de esta noite. Teria que falar com o tutor do Mark e possivelmente
haja ali outras pessoas que possam me contar algo. Não é hora de que pensemos em retornar?
     Sophie se voltou para olhar ao Davie. Este se encolheu quase imperceptivelmente de ombros. Sem falar, Sophie afundou fortemente a vara contra a borda. A
bandeja começou a girar lentamente.
A festa do Isabelle devia começar às oito, mas eram quase as nove quando chegaram Sophie, Davie e Cordelia. encaminharam-se para a casa, que distava só
cinco minutos da rua Norwich; Cordelia nunca soube a direção exata. Gostava do aspecto da casa e se perguntava quanto lhe custaria o aluguel ao pai
do Isabelle. Era uma quinta larga, branca, de dois novelo, com altas janelas curvas e portinhas verdes, muito separada da rua, com um semisótano e um lance de
escada que conduzia à porta principal. Um lance similar descendia da sala de estar para o comprido jardim.
     A sala de estar se achava já bastante cheia de gente. Ao olhar aos outros convidados, Cordelia se alegrou de haver comprado o caftán. A maioria das
pessoas pareciam haver-se trocado de roupa, embora não necessariamente, pensou ela, para resultar mais atrativas. O que se pretendia era a originalidade, a espectacularidad,
a extravagância, inclusive.
     A sala de estar tinha sido mobiliada com elegância, mas de modo pouco consistente, e Isabelle havia impresso nela sua própria feminilidade desordenada, pouco
prática
e iconoclasta. Cordelia duvidada de se tinham sido os proprietários da casa os que tinham posto ali a ornamentada habitação, ou as numerosas almofadas de seda
que conferiam às austeras proporções da estadia algo da ostentosa opulência do gabinete de uma cortesã. Também os quadros deviam ser do Isabelle.
Nenhum dono de uma casa que alugasse sua propriedade deixaria quadros daquela qualidade nas paredes. Um deles, que pendurava em cima da chaminé, era de uma
menina abraçando um perrito. Cordelia o olhou com prazer emocionado. Certamente não pôde deixar de reconhecer aquele azul inconfundível do vestido da menina, o maravilhoso
colorido das bochechas e os torneados braços, que simultaneamente absorvia e refletia a luz... carne formosa, tangível. Involuntariamente lançou uma exclamação
que fez que a gente se voltasse a olhar para ela:
     -Mas se for um Renoir!
     Hugo a tocou pelo cotovelo e pôs-se a rir.
     -Sim; mas não te surpreenda tanto, Cordelia. É só um Renoir pequeno. Isabelle pediu a papai um quadro para sua sala de estar. Não esperaria que lhe desse de
presente
uma reprodução do Haywain ou uma daquelas reproduções trocas de aborrecida carne velha de Vão Gogh.
     -Teria notado Isabelle a diferença?
     -OH, sim. Isabelle reconhece qualquer objeto caro quando o vê.
     Cordelia se perguntava se a amargura, o ponto de desdém que havia na voz do Hugo ia dirigido para o Isabelle ou para ele mesmo. Olharam através da habitação
para onde se encontrava ela, de pé, sonriéndoles. Hugo se encaminhou para ela como um homem que anda em meio de um sonho e lhe agarrou a mão. Cordelia olhava.
Isabelle tinha penteado seus cabelos em forma de uma elevada torre de cachos, ao estilo grego. Levava um vestido, comprido até os tornozelos, de seda nata mate,
com
um decote baixo quadrado e mangas curtas com complicadas dobras. Era evidentemente um modelo e, pensou Cordelia, tinha que ter resultado por completo fora de
lugar em uma festa que não fora de etiqueta. Mas não era assim. Simplesmente fazia que o vestido das demais mulheres parecesse uma improvisação e reduzia o seu,
cujas cores lhe tinham parecido discretos quando o comprou, à ínfima categoria de um trapo vistoso e gritão.
     Cordelia estava resolvida a encontrar-se a sós com o Isabelle em algum momento da velada, mas compreendeu que não ia resultar lhe fácil. Hugo estava tenazmente
pego a ela, guiando-a por entre seus convidados, rodeando-a pela cintura com uma mão possessiva. Parecia estar bebendo constantemente, e o copo do Isabelle estava
sempre cheio. Possivelmente quando tivesse transcorrido mais tempo, estariam um pouco mais descuidados e haveria uma ocasião para separá-los. Enquanto isso, Cordelia
decidiu
explorar a casa, e a maneira mais prática de fazê-lo era procurar onde se encontrava o lavabo antes de que tivesse necessidade de utilizá-lo. Era a classe de festa
em que aos convidados lhes deixava que averiguassem estas coisas por si mesmos.
     Subiu ao primeiro piso e ao descer pelo corredor abriu, empurrando-a brandamente, a porta da habitação que se encontrava no extremo do mesmo. O aroma
de uísque lhe encheu imediatamente o nariz; era tão forte que Cordelia instintivamente se deslizou no interior do quarto e fechou a porta detrás de si, temendo
que aquele aroma pudesse impregnar  toda a casa. A habitação, que se achava em uma desordem indescritível, não estava deserta. Na cama, e meio coberta por
a colcha, jazia uma mulher, uma mulher de cabelos avermelhados que vestia uma bata de cor rosa. Cordelia se aproximou do leito e olhou à mulher. achava-se inconsciente
por causa da bebida. Estava ali tendida, emitindo baforadas de um fôlego repugnante, carregado de uísque, que se elevavam como invisíveis bolas de fumaça de uma
boca entreabierta. O lábio e a mandíbula inferiores estavam tensos e enrugados, o que dava ao semblante uma expressão de austera censura, como se desaprovasse
fortemente sua própria condição. Seus finos lábios estavam muito pintados, e o intenso púrpura se infiltrou nas gretas que rodeavam a boca, de sorte que
o corpo parecia como hirto pelo frio. As mãos, os nodosos dedos, tintos de marrom pela nicotina e carregados de anéis, jaziam tranqüilamente posados sobre
a colcha. Duas das unhas, parecidas com garras, estavam rotas e o verniz vermelho tijolo das outras estava gretado ou se saltou.
     A janela estava obstruída por um penteadeira. Apartando os olhos do batiburrillo de roupa enrugada, frascos de nata facial abertos, pós derramados e taças
médio vazias do que parecia café, Cordelia introduziu seu corpo entre o penteadeira e a janela e a abriu de par em par. Encheu seus pulmões de ar fresco, purificador.
debaixo dela, no jardim, pálidas sombras se moviam silenciosas pela erva e por entre as árvores, como fantasmas de libertinos mortos muito tempo atrás.
Deixou aberta a janela e voltou junto à cama. Nada terei que pudesse ela fazer ali, mas pôs aquelas frite mãos sob a colcha e, agarrando de um gancho
que havia na porta uma segunda bata de mais abrigo, agasalhou com ela o corpo da mulher. Isto, ao menos, compensaria-a do ar fresco que corria por cima
da cama.
     Feito isto, Cordelia se deslizou de novo para o corredor, no instante preciso para ver como Isabelle saía da habitação contigüa. Estendeu um braço
e quase arrastou a jovem para o interior do dormitório. Isabelle lançou um pequeno grito, mas Cordelia apertou firmemente suas costas contra a porta e disse
em voz baixa e premente:
     -me conte o que sabe a respeito do Mark Callender
     Os olhos de cor violeta passaram da porta à janela, procurando desesperadamente a saída.
     -Eu não estava ali quando o fez.
     -Quando quem fez o que?
     Isabelle se retirou para o leito, como se aquela inerte figura, que nesse momento gemia ruidosamente, pudesse lhe oferecer algum apoio. de repente, a mulher
voltou-se de lado e emitiu um forte ronco, como um animal que está sofrendo. As duas jovens a olharam sobressaltadas. Cordelia repetiu:
     -Quando quem fez o que?
     -Quando Mark se suicidó, eu não estava ali.
     A mulher da cama lançou um pequeno suspiro. Cordelia baixou a voz:
     -Mas você esteve ali alguns dias antes, não? Foi à casa e perguntou por ele. A senhorita Markland te viu. Depois se sentou no horta e aguardou
a que ele tivesse terminado seu trabalho.
     Foram imaginações da Cordelia ou realmente a moça pareceu de repente mais relaxada, aliviada pela inocuidad da pergunta?
     -Eu só fui ver o Mark. Deram-me sua direção no colégio Lodge. fui fazer lhe uma visita.
     -por que?
     A brutalidade da pergunta pareceu desconcertá-la. Respondeu simplesmente:
     -Porque era meu amigo.
     -Era também seu amante? -perguntou Cordelia. Esta brutal franqueza era certamente melhor que perguntar se tinham dormido juntos ou se se tinham deitado juntos,
estúpidos eufemismos que possivelmente Isabelle não teria entendido: resultava difícil dizer, a julgar por aqueles belos mas assustados olhos, até que ponto a jovem
compreendia.
     -Não, Mark nunca foi meu amante. Estava trabalhando no horta e eu tive que lhe esperar na cabana. Deu-me uma cadeira ao sol e um livro até que ele ficasse
livre.
     -Que livro?
     -Não me lembro, era muito aborrecido. Eu também estava aborrecida até que veio Mark. Logo tomamos chá com umas taças muito graciosas que tinham uma franja azul,
e depois do chá fomos dar um passeio e logo jantamos. Mark preparou uma salada.
     -E logo?
     -Agarrei o carro e retornei a casa.
     Já estava completamente tranqüila. Cordelia continuou apressando-a, consciente do som de passos acima e abaixo da escada, do rumor das vozes.
     -E a vez anterior a isso? Quando lhe viu antes de que tomassem o chá na cabana?
     -Foi uns dias antes de que Mark abandonasse o colégio. Fomos em meu carro a fazer uma excursão à borda do mar. Mas primeiro paramos em uma cidade, a
cidade do St. Edmund, verdade?, e Mark foi ver um médico.
     -por que? Estava doente?
     -OH não, não estava doente, e não esteve o tempo suficiente para o que poderia chamar-se... um exame. Só esteve na casa uns poucos minutos. Era uma casa
muito pobre. Eu lhe esperei no carro, mas não diante mesmo da casa, como compreenderá.
     -Disse ele por que tinha ido?
     -Não, mas acredito que não conseguiu o que queria. Depois esteve triste um momento, mas logo fomos ao mar e voltou a sentir-se feliz.
     Também ela parecia feliz nesse momento. Sorriu a Cordelia, com aquele seu sorriso doce, inexpressiva. Cordelia pensou: "É somente a cabana o que a aterra.
Não lhe importa falar do Mark vivo, é na morte dele no que não quer pensar". E, contudo, esta repugnância não provinha de uma pena pessoal. Tinha sido
seu amigo; era doce; lhe gostava. Mas podia muito bem passar sem ele.
     Bateram na porta. Cordelia se fez a um lado e entrou Hugo. Levantou uma sobrancelha olhando ao Isabelle, sem fazer caso da presença da Cordelia, e disse:
     -É sua festa, não, querida?; baixas comigo?
     -Cordelia queria me falar do Mark.
     -Sem dúvida. Espero que lhe tenha contado que passou um dia com ele indo de carro ao mar e uma tarde no Summertrees, que depois já não lhe voltou a ver.
     -Me contou disse isso Cordelia-. esteve virtualmente perfeita a esse respeito. Penso que agora já pode ir onde queira.
     Hugo disse com calma:
     -Não deveria ser sarcástica, Cordelia, não vai. O sarcasmo está muito bem para algumas mulheres, mas não para as mulheres que são tão bonitas como você.
     Baixavam juntos a escada em direção ao vestíbulo, onde estava reunidos muitos dos convidados. O completo irritou a Cordelia. Disse:
     -Suponho que a mulher que está na cama é a carabina do Isabelle. embebeda-se freqüentemente?
     -Mademoiselle do Congé? Não está bêbada com tanta freqüência como isso, mas admito que raramente está sóbria.
     -Então, não deveria fazer algo para evitá-lo?
     -O que quer que faça? Entregar a à Inquisição do século XX..., a um psiquiatra como meu pai? O que nos tem feito para merecer isso? Além disso, é fastidiosamente
consciente nas poucas ocasiões em que está sóbria. Acontece que suas compulsões e meu interesse coincidem.
     Cordelia disse com severidade:
     -Isso pode ser muito cômodo, mas não acredito que seja muito responsável, e, certamente, não é amável.
     Ele se deteve e se voltou para ela, sonriéndole diretamente aos olhos.
     -OH, Cordelia, falas como a filha de uns pais progressistas que foi criada por um aia não conformista e educada em uma escola de monjas. Seriamente que
eu gosto!
     Ainda lhe estava sonriendo, quando Cordelia se escabulló e se infiltrou no grupo de convidados à festa. Pensou que o diagnóstico do Hugo sobre ela não
era muito equivocado.
     serve-se um copo de vinho, logo começou a perambular devagar pela sala, escutando descaradamente retalhos de conversação, esperando ouvir alguém mencionando
o nome do Mark. Ouviu-o somente uma vez. Duas garotas e um homem muito bonito, algo insípido, estavam de pé detrás dela. Uma das garotas dizia:
     -Sophie Tilling parece que se recuperou muito depressa do suicídio do Mark Callender Ela e Davie foram à cremação, sabem? É típico do Sophie o levar
a seu amante atual a ver como incineram ao anterior. Suponho que isto a excitou um pouco.
     Sua companheira pôs-se a rir
     -E o hermanito se apodera da garota do Mark. Se não poder ter beleza, dinheiro e inteligência, te conforme com as duas primeiras coisas. Pobre Hugo! Padece
de complexo de inferioridade. Não é bastante bonito, não é bastante preparado, as brilhantes nota obtidas por sua irmã nos exames têm que lhe haver traumatizado,
não é o suficientemente rico. Não é estranho que tenha que confiar no sexo para se ter a si mesmo por algo.
     -E inclusive nisso, tampouco é que...
     -Querida, teria que sabê-lo.
     puseram-se a rir e se afastaram. Cordelia sentiu que a cara lhe ardia. Tremeu-lhe a mão, e quase derramou o vinho. surpreendia-se ao descobrir quanto se preocupava
pelo Sophie, até que ponto tinha chegado a simpatizar com ela. Mas isso, naturalmente, formava parte do plano, era a estratégia Tilling. Se não poder envergonhá-la
e fazer que abandone o caso, suborna-a; leva-a ao rio; sei amável com ela; ten a seu lado. E era verdade, estava ao lado deles, ao menos contra seus maliciosos
caluniadores. consolou-se com a severo reflexão de que aqueles indivíduos eram tão detestáveis como os convidados de uma festa de bairro. Nunca em sua vida havia
assistido a uma daquelas insossas e aborrecidas reuniões organizadas para a rotina da fofoca, a genebra e os canapés, mas, ao igual a seu pai, que tampouco
tinha assistido a uma delas, não encontrava dificuldade em acreditar que constituíam caldos de cultivo de esnobismo, despeito e insinuações de caráter sexual.
     Sentiu que um corpo quente se aproximava a ela. voltou-se e viu o Davie. Levava três garrafas de vinho. Era evidente que tinha ouvido pelo menos parte de
a conversação, e sem dúvida as garotas tinham tido a intenção de que assim fosse, mas sorriu amigavelmente.
     -É gracioso ver como as mulheres que Hugo desdenhou chegam sempre a lhe odiar tanto. Com o Sophie é algo completamente diferente. Seus examantes abarrotam
a rua Norwich com suas bicicletas e seus carros. Sempre me os encontro na sala de estar bebendo-se minha cerveja e lhe confiando as terríveis penas que
têm com suas garotas atuais.
     -se preocupa?
     -Não, se não passarem da sala de estar. Diverte-te?
     -Não muito.
     -Vêem conhecer meu amigo. Estava-me perguntando quem é.
     -Não, obrigado, Davie. Tenho que me manter libere para o senhor Horsfall. Não me quero perder isso      Cordelia continuó deambulando por la habitación, mirando
y escuchando. Estaba intrigada por aquella manifiesta sexualidad; ella había creído que los intelectuales
     Davie sorriu, como se a compadecesse, pensou ela, e pareceu que ia dizer algo. Mas trocou de idéia e se afastou, estreitando as garrafas contra seu peito
e profiriendo animados gritos de advertência ao abrir-se passo por entre a multidão.
     Cordelia continuou perambulando pela habitação, olhando e escutando. Estava intrigada por aquela manifesta sexualidade; ela tinha acreditado que os intelectuais
respiravam um ar muito rarefeito para interessar-se tanto pela carne. Evidentemente, estava equivocada. Recordou que os camaradas, de quem cabia supor
que viviam em desordenada promiscuidade, tinham sido curiosamente judiciosos e sérios. Às vezes tinha pensado que suas atividades sexuais obedeciam mais ao dever
que
ao instinto, era mais uma arma revolucionária ou um gesto contra os costumes burgueses que eles desprezavam, que uma resposta a uma necessidade humana. Suas energias
básicas estavam todas elas dedicadas à política. Não resultava difícil ver para onde estavam dirigidas as energias dos ali pressente.
     Não tinha por que preocupar do êxito de seu caftán. Certo número de homens se mostravam dispostos ou inclusive ansiosos por separar-se de seus respectivos casais
pelo prazer de falar com ela. Com um particularmente, um jovem historiador decorativo e ironicamente divertido, compreendeu Cordelia que podia ter acontecido uma
entretida velada. Desfrutar da atenção exclusiva de um homem agradável e nenhuma atenção absolutamente de todos outros era tudo o que ela tinha esperado
sempre de uma festa. Ela não era de natural gregária e, separada durante os últimos seis anos de sua própria geração, encontrava-se intimidada pelo ruído,
pela despreocupação e as convenções médio entendidas daquelas reuniões tribais. E se dizia firmemente a si mesmo que não estava ali para divertir-se a
gastos de sir Ronald. Nenhuma de seus possíveis casais conhecia o Mark Callender nem mostrava interesse algum por ele, morto ou vivo. Não devia atar-se durante a
velada
a uma gente que não tinha a menor informação que lhe dar. Quando isto parecia um perigo ou o bate-papo se fazia muito sedutora, murmurava um pretexto e se escapulia
por volta do quarto de banho ou para as sombras do jardim, onde havia pequenos grupos sentados na grama fumando um néscio. Cordelia não podia equivocar-se com aquele
aroma evocador. Aqueles jovens não manifestavam disposição alguma a conversar e aqui, ao menos, podia passear entregue a seus pensamentos e fazer provisão de valor
para a seguinte correria, para a seguinte pergunta, feita habilmente como quem não quer a coisa, a seguinte resposta inevitável.
     -Mark Callender? Sinto-o muito. Não lhe conheci. Não foi um que abraçou uma vida singela e acabou por enforcar-se ou um pouco parecido?
     Uma vez foi refugiar se à habitação do Mademoiselle do Congé, mas viu que a inerte figura tinha sido tiragem sem  contemplações sobre um montão de almofadões,
em cima do tapete, e que a cama estava ocupada para um fim completamente diferente.
     perguntava-se quando chegaria Edward Horsfall ou se chegaria em realidade. E se chegava, lembraria-se Hugo ou se incomodaria em apresentá-la? Não podia ver
nenhum
dos dois Tilling na multidão de corpos que gesticulavam e que lotavam a sala de estar e invadiam o vestíbulo e parte da escada.
     Começava a pensar que aquela seria uma velada perdida, quando Hugo posou uma mão sobre seu braço e lhe disse:
     -Vêem conhecer o Edward Horsfall. Edward, ela é Cordelia Gray, que quer falar a respeito do Mark Callender.
     Edward Horsfall foi outra surpresa. Cordelia tinha evocado subconscientemente a imagem de um cavalheiro entrado em anos, um pouco distraído, com o peso de seu
erudição, um benévolo embora avoado mentor de jovens. Mas Horsfall não devia ter muito mais de trinta anos. Era muito alto, com o cabelo comprido que o
caía sobre um olho, com seu fraco corpo curvado como uma casca de melão, comparação reforçada pela vincado peitilho da camisa amarela sob uma curvada gravata.
     Se Cordelia, medeio conscientemente, médio envergonhada, tinha alimentado a esperança de que o homem sentiria em seguida interesse por ela e se mostraria feliz
de lhe dedicar seu tempo enquanto estivessem juntos, logo se desvaneceu tal esperança. Os olhos do Horsfall se cravavam inquietos na porta.
     Cordelia supôs que desejava estar sozinho, mantendo-se deliberadamente livre da companhia até que chegasse a pessoa a que esperava. mostrava-se tão impaciente
que não resultava difícil sentir-se contagiado por tal impaciência, Cordelia disse:
     -Não tem que estar você comigo toda a velada, sabe? Eu unicamente quero alguma informação.
     A voz da Cordelia teve a virtude de lhe fazer ser consciente da presença dela e de que fizesse algum intento de ser mais cortês.
     -Isso não representaria precisamente uma penitência. Sinto muito. O que quer você saber?
     -Tudo o que possa me contar sobre o Mark. Você lhe ensinava História, não é certo? Era bom estudante?
     Não era uma pergunta particularmente importante, Cordelia a julgou adequada para começar a conversar com um professor
     -Era mais gratificam acostumar-lhe a ele que a alguns outros  estudantes com os que tenho que brigar. Não sei por que escolheu História. Podia muito bem ter
estudado
Ciências. Sentia uma viva curiosidade pelo fenômeno físico. Mas decidiu estudar História.
     -você crie que o fez para não agradar a seu pai?
     -Para não agradar a sir Ronald? -disse Horsfall, enquanto alargava um braço para alcançar uma garrafa. O que bebe você? As festas do Isabelle do Lasterie
têm uma coisa, e é que a bebida é excelente, suponho que é coisa do Hugo. Há uma admirável ausência de cerveja.
     -É que Hugo não bebe cerveja, pois? -perguntou Cordelia.
     -Ele pretende não bebê-la. Do que estávamos falando? Ah, sim, de não agradar a sir Ronald. Mark dizia que tinha escolhido História porque não temos oportunidade
de compreender o presente se não compreendermos o passado. Esta é a classe de irritante explicação estereotipada que a gente tira as entrevistas, mas é possível
que ele acreditasse. Em realidade, naturalmente, a verdade é o contrário, nós interpretamos o passado mediante o conhecimento que temos do presente.
     -Ia bem na disciplina? -perguntou Cordelia-. Quero dizer se teria obtido um sobressalente.
     Um sobressalente, acreditava ingenuamente Cordelia, era o mais elevada inteligência que o que o obtinha podia ostentar orgulhoso ao longo de toda sua vida.
Queria
saber se a inteligência do Mark era merecedora de um sobressalente.
     -Essas são duas perguntas separadas e distintas. Parece que você confunde o mérito com o lucro. Impossível predizer a nota do Mark, difícil era a de um sobressalente.
Mark era capaz de um trabalho extraordinariamente bom e original, mas limitava seu material ao número de suas idéias originais. O resultado tendia a ser mas bem
exíguo. Aos examinadores gosta da originalidade, mas a gente tem antes que haver-se tragado os fatos admitidos e as opiniões ortodoxas, embora só seja para
demonstrar que as aprendeu. Uma memória excepcional e uma escritura rápida e que seja legível: hei aí o segredo de um sobressalente. A propósito, onde está
você?
     Horsfall percebeu na Cordelia um breve olhar de incompreensão.
     -Em que colégio universitário?
     -Em nenhum; trabalho. Sou detetive privada.
     Horsfall acolheu esta informação com ar distraído.
     -Meu tio -disse- empregou a um desses detetives privados para averiguar se sua mulher lhe enganava com o dentista. Enganava-lhe, sim, mas ele podia havê-lo
averiguado
mais facilmente pelo singelo meio de perguntar-lhe diretamente a eles. Daquele modo perdeu os serviços de uma mulher e de um dentista simultaneamente e pagou
por uma informação que podia ter obtido em troca de nada. O assunto produziu naquele tempo um grande revôo na família. Eu teria acreditado que esse trabalho...
     Cordelia terminou a frase por ele:
     -Era inadequado para uma mulher, verdade?
     -Não, absolutamente, inteiramente adequado, teria acreditado eu, porque requer, imagino, uma ilimitada curiosidade, uma paciência ilimitada e uma tendência
a interferir
nos assuntos de outras pessoas. -Sua atenção voltava a desviar-se. Um grupo a seu lado estava conversando e até eles chegavam retalhos da conversação:
     -... o típico da escritura acadêmica da pior classe. Um desprezo da lógica; uma generosa profusão de nomes em voga; profundidade espúrea e uma gramática
horrorosa.
     O tutor emprestou aos que falavam a atenção de um segundo, desdenhou o bate-papo acadêmico que sustentavam, como indigna de tal atenção, e condescendeu a transladar
esta, embora não seu olhar, outra vez para a Cordelia.
     -por que demonstra você tanto interesse pelo Mark Callender?
     -Seu pai me empregou para que averiguasse por que morreu. Eu esperava que você pudesse me ajudar. Quero dizer se alguma vez lhe sugeriu ele a idéia de que pudesse
ser desgraçado, o suficientemente desgraçado para suicidarse. Explicou a você por que abandonou o colégio?
     -Não, a mim não. Nunca tive a impressão de estar perto dele. despediu-se de mim de uma maneira formal, deu-me as obrigado pelo que ele quis considerar que era
minha ajuda, e se foi. Eu pronunciei as frases habituais para expressar que sentia que se fosse. Estreitamo-nos a mão. Eu me sentia coibido, mas Mark não. Penso
que não era homem suscetível de sentir-se coibido.
     Houve uma pequena comoção junto à porta e um grupo de recém chegados se abriu aconteço ruidosamente entre os convidados. Entre eles se encontrava uma jovem
alta, moréia, com uma blusa encarnada, aberta quase até a cintura. Cordelia viu que o tutor ficava rígido, com os olhos cravados na garota recém chegada,
com um olhar intenso, ansiosa, suplicante, que ela tinha visto nele antes. daria-se por afortunada se pudesse obter alguma outra informação. Tratando desesperadamente
de recuperar a atenção do Horsfall, disse:
     -Não estou segura de que Mark se suicidase. Penso que pôde ter sido assassinado.
     Horsfall falou distraídamente, com os olhos postos nos que acabavam de chegar.
     -Não é provável. Quem lhe teria assassinado? por que razão? Era uma personalidade que passava inadvertida. Nem sequer provocava um ligeiro desagrado, salvo,
possivelmente, por parte de seu pai. Mas Ronald Callender não pôde havê-lo feito, se for isso o que está você caso. Estava jantando em Hall, no High Table,
a noite em que Mark faleceu. Aquela noite se celebrava uma festa no colégio universitário. Eu estava sentado a seu lado. Seu filho lhe telefonou.        
     Cordelia perguntou ansiosa, quase lhe atirando da manga.
     -A que hora?
     -Pouco depois de que começássemos para jantar, suponho. Benskin, que é um dos serventes do colégio, entrou e lhe deu a mensagem. Deveu ser entre as oito
e as oito e quinze. Callender desapareceu por espaço de uns dez minutos, logo retornou e continuou com sua sopa. Outros ainda não tinham chegado ao segundo prato.
     -Disse o que queria Mark? Parecia contrariado?
     -Nem o um nem o outro. Logo que falou durante o jantar. Sir Ronald não esbanja seus dotes de conversador com os que não são científicos. Desculpe-me, quer?
     E partiu, abrindo-se passo entre a concorrência em direção a sua presa. Cordelia deixou seu copo e foi em busca do Hugo.
     -Ouça, Hugo -disse-lhe-, quero falar com o Benskin, um servente de seu colégio. Estará ali esta noite?
     Hugo deixou a garrafa que tinha na mão.
     -É possível. É um dos poucos que vive no colégio. Mas duvido de que você sozinha consiga lhe fazer sair de sua toca por seus próprios meios. Mas se for tão
urgente,
será melhor que eu te acompanhe.
O porteiro do colégio se assegurou com curiosidade de que Benskin estava no colégio e lhe fez chamar. Foi detrás cinco minutos de espera, durante os quais Hugo
conversou com o porteiro e Cordelia saiu da portaria e se entreteve lendo os anúncios do colégio. Chegou Benskin, sem pressa, imperturbável. Era um ancião de
cabelos chapeados, corretamente vestido, com a cara enrugada e a pele grosa como uma laranja sanguina anêmica, que teria parecido, pensou Cordelia, o anúncio
do mordomo ideal de não ter sido por uma expressão de lúgubre e ardiloso desdém.
     Cordelia lhe ensinou sua nota de autorização de sir Ronald e entrou em seguida e de cheio nas perguntas. Nada ia obter com sutilezas, e, dado que havia
conseguido a ajuda do Hugo, não tinha mais remedeio que falar claro. Disse:
     -Sir Ronald me pediu que investigue as circunstâncias da morte de seu filho.
     -Já o vejo, senhorita.
     -Hão-me dito que o senhor Mark Callender telefonou a seu pai enquanto sir Ronald estava jantando no High Table, a noite em que seu filho morreu, e que você
passou-lhe a mensagem a sir Ronald pouco depois de que começasse o jantar. É certo?
     -Naquele momento, eu estava sob a impressão de que era o senhor Callender o que estava chamando por telefone, senhorita, mas estava equivocado.
     -Como pode você estar seguro disso, senhor Benskin?
     -O próprio sir Ronald me disse isso, senhorita, quando lhe vi no colégio alguns dias depois da morte de seu filho. Eu conheço sir Ronald desde que era um
simples estudante e me atrevi a lhe manifestar meus pêsames. Durante nossa breve conversação, fiz referência à chamada Telefónica de vinte e seis de maio e sir
Ronald me disse que eu estava equivocado, que não era o senhor Callender o que tinha chamado.
     -Disse quem tinha sido?
     -Sir Ronald me informou que tinha sido seu ajudante de laboratório, o senhor Chris Lunn.
     -Surpreendeu a você? Estar equivocado, quero dizer.
     -Confesso que fiquei um pouco surpreso, sim, senhorita, mas o engano era talvez disculpable. Minha subseqüente referência ao incidente foi fortuita e, dadas
as circunstâncias, lamentável.
     -você crie realmente que ouviu mal o nome?
     Aquela velha cara obstinada não se relaxou.
     -Sir Ronald não podia ter a menor duvida a respeito da pessoa que lhe telefonou.
     -Era habitual que o senhor Callender chamasse a seu pai por telefone enquanto estava jantando no colégio?
     -Eu nunca tinha pego anteriormente uma chamada dele, mas, ao fim e ao cabo, responder ao telefone não forma parte de minhas obrigações normais. É possível
que algum dos outros serventes do colégio possa lhe ajudar a você, mas não acredito que uma investigação servisse de algo ou que a notícia de que os serventes
do colégio foram interrogados pudesse ser do agrado de sir Ronald.
     -Qualquer investigação que contribui-se a descobrir a verdade é quase seguro que resultasse agradável a sir Ronald -disse Cordelia.
     "Realmente -pensou-, o estilo da prosa do Benskin se está fazendo contagioso". Acrescentou de maneira mais natural:
     -Sir Ronald está muito ansioso por averiguar todo o possível a respeito da morte de seu filho. Há algo que você possa me dizer, alguma ajuda que você possa
me oferecer,
senhor Benskin?
     Isto se parecia perigosamente a uma apelação, mas não obteve resposta alguma.
     -Nada, senhorita. O senhor Callender era um señorito tranqüilo e agradável, que parecia, conforme pude eu observar, gozar de boa saúde e um feliz estado de
ânimo
até o momento em que nos deixou. Sua morte foi muito sentida no colégio. Há algo mais, senhorita?
     Estava esperando pacientemente que lhe despedisse e Cordelia lhe deixou ir. Quando ela e Hugo saíram juntos do colégio e se encaminharam de retorno para
a rua Trumpignton, disse amargamente:
     -Esse homem não se preocupa, verdade?
     -por que teria que fazê-lo? Benskin esteve no colégio durante sessenta anos e as viu de tudas as cores. Desde seu ponto de vista mil anos não
são mais que uma noite. Somente vi o Benskin transtornado uma vez, pelo suicido de um estudante, e este era filho de um duque. Benskin pensava que havia algumas
coisas que este colégio não devia permitir que acontecessem.
     -Mas não estava equivocado sobre a chamada do Mark. Podia havê-lo visto por toda sua maneira de comportar-se, ao menos eu pude vê-lo. Sabe bem o que ouviu.
Não
vai admitir o, é obvio, mas ele sabe em seu interior que não estava equivocado.
     Hugo disse:
     -mostrou-se como o antigo servente do colégio, muito correto, muito próprio; assim é Benskin. "Os señoritos já não são o que eram quando eu vim por primeira
vez ao colégio".Espero que não! Então levavam costeletas e os nobres luziam batas de fantasia para distinguir-se dos plebeus. Benskin voltaria a trazer tudo
aquilo, se pudesse. É um anacronismo vivente, que tem saudades um passado mais majestoso e solene.
     -Mas não está surdo. Eu lhe falava deliberadamente em voz baixa e me ouvia perfeitamente. você crie seriamente que se equivocou?
     -Chris Lunn e "seu filho" soam de um modo muito parecido.
     -Mas Lunn não se anuncia a si mesmo dessa maneira.  Enquanto eu estive com sir Ronald e a senhorita Leaming, só mente lhe chamavam Lunn.
     -Olhe, Cordelia, não é possível que suspeite que Ronald Callender pôde ter algo que ver na morte de seu filho! Tem que ser lógica. Você admite,
suponho, que um assassino racional espera não ser descoberto. Admite, sem dúvida que Ronald Callender, até sendo um bode, é um ser racional. Mark está morto e
seu cadáver foi incinerado. Ninguém mais que você mencionou o assassinato, então sir Ronald emprega a ti para que remova as coisas. por que teria  que fazê-lo,
se tivesse algo que ocultar? Nem sequer precisa afastar as suspeitas, posto que não há suspeita.
     -Naturalmente que eu não suspeito que ele tenha matado a seu filho. Ele não sabe como morreu Mark e necessita desesperadamente sabê-lo. Por isso me contratou.
Pude
dizê-lo em nossa entrevista; não podia me equivocar sobre isso. Mas não compreendo por que teria que mentir a respeito da chamada Telefónica.
     -Se minta, poderia haver uma dúzia de explicações inocentes. Se foi Mark o que chamou o colégio, deve haver-se tratado de um pouco muito urgente, possivelmente
algo
que seu pai não quereria que se fizesse público, algo que dá uma pista do suicídio de seu filho.
     -Então, para que me empregar a mim para que averigúe  por que se suicidó?
     -É certo, sábia Cordelia; tentarei-o de novo. Mark  pediu ajuda, possivelmente uma visita urgente a que papai se negou. Pode imaginar sua reação. "Não seja
ridículo, Mark, estou jantando no High Table com o diretor. É óbvio que não posso deixar as chuletas e o clarete só porque você me telefona dessa maneira histérica
dizendo que quer lombriga. Repensa". Uma coisa assim não soaria tão bem em um julgamento; os juizes são notoriamente hipercríticos. -A voz do Hugo adquiriu um profundo
tom magistral-. "Não me corresponde acrescentar  uma maior tristeza à aflição de sir Ronald, mas foi, possivelmente,  desafortunado de sua parte que queria ignorar
o que evidentemente era um grito de auxílio. Se ele tivesse abandonado imediatamente seu jantar e tivesse ido ao lado de seu filho, este brilhante jovem estudante
podia haver-se salvado". Os suicidas de Cambridge, por isso observei, são sempre brilhantes: ainda estou esperando ler o relatório de uma investigação
em que as autoridades do colégio declarem que o estudante se suicidó justamente no momento antes de ser expulso.
     -Mas Mark morreu entre as sete e as nove da tarde. Essa chamada Telefónica é o álibi de sir Ronald!
     -Ele não o consideraria assim. Não necessita um álibi. Se você souber que não está comprometido e nunca surge a questão de um jogo sujo, não pensa em términos
de álibis. Só pensam nisso os que são culpados.
     -Mas, como soube Mark onde podia encontrar a seu pai? Em sua declaração, sir Ronald disse que não tinha falado com seu filho desde fazia mais de duas semanas.
     -Posso ver que aí tem um detalhe. Pregúntaselo à senhorita Leaming. Melhor ainda, lhe pergunte ao Lunn se foi ele quem em realidade telefonou ao colégio. Se
estas procurando um vilão, Lunn encaixaria admiravelmente nesse papel. Encontro-o totalmente sinistro.
     -Não sabia que lhe conhecesse.
     -OH, é muito conhecido em Cambridge. Conduz de um lado a outro, com feroz dedicação, essa caminhonete fechada como se estivesse levando a estudantes recalcitrantes
às câmaras de gás. Todo mundo conhece o Lunn. Estranha vez sorri, e sorri de uma maneira que é como se se burlasse de si mesmo e se burlasse de seu espírito, que
pudesse lhe induzir a sorrir ante algo. Eu me concentraria no Lunn.
     Caminhavam em silencio através da cálida e perfumada noite, enquanto cantavam as águas dos regatos da rua Trumpington. As luzes brilhavam em
as portas dos colégios e nas portarias e os longínquos jardins e os pátios que se intercomunicavam, vislumbrados momentaneamente quando passavam, pareciam
remotos e etéreos como em um sonho.


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                                                          CONTINUA
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Cordelia se viu de repente oprimida por uma sensação de solidão e melancolia. Se Bernie estivesse vivo, discutiriam o caso, escondidos no mais remoto rincão de algum bar de Cambridge, isolados pelo ruído e a fumaça e o anonimato da curiosidade de seus vizinhos; falando em voz desce em seu próprio jargão particular. Estariam especulando sobre a personalidade de um jovem que dormia baixo aquela pintura amável e intelectual e que, entretanto, tinha comprado uma vulgar revista de obscenos nus. Ou a teria comprado ele em realidade? E se não, como tinha ido parar à horta da cabana? Estariam falando a respeito de um pai que mentia com respeito à última chamada Telefónica de seu filho; especulando em feliz cumplicidade sobre uma espécie sem limpar, uma fileira de terra revolta pela metade, uma taça de café sem lavar, uma entrevista do Blake meticulosamente datilografada. Estariam falando do Isabelle, que estava aterrada, e do Sophie, que era certamente sincera, e do Hugo, que certamente sabia algo a respeito da morte do Mark e que era preparado mas não tão preparado como precisava ser. Pela primeira vez desde que tinha começado o caso, Cordelia duvidou de sua capacidade para resolvê-lo por si só. Se houvesse alguém em quem pudesse confiar, alguém que devesse reforçar sua confiança... Voltou a pensar em Sophie, mas Sophie tinha sido a amante do Mark e era a irmã do Hugo. Ambos se achavam envoltos. Só dependia dela mesma, e isto, quando ficou a considerá-lo, não era diferente de como essencialmente tinha sido sempre. Ironicamente, o fato de ser consciente disso lhe infundiu consolo e uma nova esperança.


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     Na esquina da rua Panton se detiveram e ele disse - vais voltar para a festa?
     -Não, obrigado, Hugo; tenho trabalho que fazer.
     -Vais ficar te em Cambridge?
     Cordelia se perguntou a si mesmo se a pergunta era formulada por algo mais que por um interesse inspirado pela cortesia. Voltando-se de repente cautelosa, disse:
     -Só por uns dias. encontrei uma pensão muito feia, mas troca, para dormir e tomar o café da manhã, perto da estação.
     Hugo aceitou a mentira sem fazer comentário algum e se desejaram boa noite. Cordelia empreendeu a volta à rua Norwich. O pequeno carro estava ainda frente ao número cinqüenta e sete, mas a casa estava às escuras e silenciosa, para sublinhar sua exclusão, e as três janelas estavam fechadas como uns lúgubres olhos mortos.
Estava cansada quando retornou à cabana e estacionou o Mini ao bordo do matagal. A portinhola do horta chiou sob sua mão. A noite estava escura e Cordelia apalpou em sua bolsa procurando sua lanterna e foi seguindo a luz que esta projetava ao redor do lado da cabana e para a porta traseira. Guiada por esta luz, introduziu a chave na fechadura. Deu-lhe a volta e, cega pelo cansaço, entrou na sala de estar. A lanterna, ainda acesa, pendia frouxamente de seu mando, fazendo erráticos desenhos de luz sobre o estou acostumado a ladrilhado. Então, em um movimento involuntário, saltou para cima e iluminou plenamente o objeto que pendia do gancho central do teto. Cordelia lançou um grito e se agarrou à mesa. Era o almofadão de sua cama, o almofadão com um cordão firmemente pacote ao redor de um de seus extremos, formando uma grotesca e bulbosa cabeça, e o outro extremo metido dentro de umas calças do Mark. As pernas pendiam patéticamente plainas e vazias, uma mais baixa que a outra. Enquanto o contemplava com fascinado horror, martilleándole o coração dentro do peito, uma ligeira brisa entrou pela porta aberta e...

 

 

                                                                  

 

 

                                                   

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