Biblio "SEBO"
Estou a ter um pesadelo, pensava Chris Parker consigo própria, vezes sem conta, sem parar. Por favor, meu Deus, fazei com que isto não passe de um pesadelo! Daqui a pouco vou acordar e ouvir a mãe e o pai discutindo no quarto vizinho. Vou cobrir a cabeça e fazer de conta que não ouço nada, como de costume; estarei na minha própria cama, em minha casa e verei que isto não está a acontecer comigo... não pode ser... não pode...
Estava a rezar em silêncio, cheia de desespero, desejando que as coisas acontecessem como sempre aconteciam quando se debatia com um mau sonho. Só que, daquela vez, não adiantava. A pulseira das algemas que a prendia ao polícia feria‑lhe o pulso e a cara do homem parecia uma daquelas máscaras de borracha que as crianças usam. Aquilo sim, era real. A algema cortava‑lhe a pele do pulso. Em sonhos jamais experimentara aquela sensação de dor. Os seus sonhos eram povoados de vultos sombrios, sensações de queda no vazio ou via‑se a correr, desesperadamente, entre linhas férreas, o comboio a aproximar‑se. E quanto mais corria, menos avançava porque os pés se tornavam cada vez mais pesados, até que era incapaz de dar um único passo, por mais esforço que fizesse. Nada disso, porém, lhe produzia as sensações de dor.
Fechou os olhos e rezou para que a dor que a algema de aço lhe causava no pulso, desaparecesse. Mas, quando abriu os olhos, estava tudo na mesma. Aquela coisa horrível continuava a acontecer. A brisa morna batia‑lhe nas faces, mas o corpo tremia‑lhe. O coração pulsava com força no peito e uma estranha dor irradiante, que partia da boca do estômago, fazia‑a sentir‑se doente. A mesma espécie de mal‑estar que experimentava sempre que se decidia a fugir. Mas, naquele momento, sabia‑o, não havia para onde fugir nem meios para se libertar. Sentia‑se como úma criatura pequena e frágil, nas garras de uma força terrível da qual era impossível escapar. Um rato com as patinhas presas na ratoeira; uma rã nas mãos de um menino que não conhecia a sua própria força, um caminhante perdido e exausto, no velho Oeste, caindo acidentalmente nas mãos de um bando furioso de linchadores e sendo arrastado para o patíbulo.
Repentinamente, a mente de Chris voltou à realidade e as suas derradeiras esperanças desvaneceram‑se como os jactos de vapor que escapavam do ferro de engomar da mãe. Quando a porta da delegacia da policia se fechou nas suas costas, o fragrante odor do ar da noite desapareceu e viu‑se num pesadelo de realidade, muito mais terrível do que todos aqueles que lhe haviam povoado os sonhos, ou de qualquer coisa que já tivesse imaginado. A luz fria das lâmpadas fluorescentes, banhando as paredes pintadas de verde, dava a todas as coisas uma aparência doentia.
O som dos saltos das botas do guarda, ressoando no pavimento frio do corredor, ecoava pelas paredes, à medida que penetravam naquela passagem cavernosa. Chris sentiu, nauseada, um desagradável odor. Uma mistura de desinfectantes, sarro de fumo, suor e chulé. Quando a guarda a fez passar por outra porta, voltou a estremecer. Viram‑se numa sala em que um grupo de sete pessoas, visivelmente abatidas, se reunia em torno de um elevado balcão. Um sargento da Polícia, barbudo e sem o chapéu, estava sentado por trás do balcão. Estava ocupado a escrever algo e olhou indiferentemente para Chris quando o polícia que a trouxera a empurrou para que ficasse à direita das outras pessoas.
‑ Já foram todas registadas? ‑ perguntou o sargento.
‑ Esta aqui ainda não ‑ respondeu o guarda, fazendo um sinal em direcção a Chris. O seu gesto com a cabeça fora tão casual e indiferente, como o acto de um açougueiro ao mostrar, a uma freguesa, um pedaço de carne, no talho.
‑ Essas duas também ‑ disse o escriturário que estava ao lado do sargento. ‑ Leve‑as, também. ‑ Com um gesto do polegar, indicou uma mulher de meia idade de olhar vago e uma outra, talvez na casa dos trinta. Chris olhou a mulher e ficou a imaginar o que teria ela feito para estar na Delegacia da Polícia. Os cabelos da mulher estavam despenteados e a cara era uma máscara de fúria controlada. As partes Internas dos dedos indicador e médio estavam manchadas por nicotina. Seria uma...? Mesmo apenas em pensamento, Chris tinha dificuldade em formar a palavra na sua mente. Agora, porém, esta explodiu na sua consciência com o sentimento de vergonha e embaraço que se sente quando se soltam gases em público
puta?...
‑ Vamos andando ‑ disse o guarda a Chris, puxando‑a consigo. Como estava presa ao homem pelas algemas, não teve outra solução senão obedecer prontamente. As duas mulheres seguiram passivamente o polícia que as conduziu até outro corredor, igualmente melancólico, igualmente vazio e com a pintura a cair. Lâmpadas nuas pendiam do tecto; presas directamente pelos fios.
Ninguém disse uma única palavra, enquanto o polícia conduziu a procissão ao longo da passagem. Abriu a porta e fê‑las passar para uma dependência igualmente horrível. Por uma associação de ideias, Chris começou a lembrar‑se dos filmes sobre prisões a que assistira e que mostravam prisioneiros a serem conduzidos para a cela da morte. E um estremecimento percorreu‑lhe todo o corpo. Os seus pensamentos foram bruscamente interrompidos quando sentiu um puxão no pulso e olhou para cima, verificando que o guarda estava parado diante de uma porta.
‑ OK ‑ disse ele. ‑ Vamos tomar o elevador aqui. O polícia apertou o botão de chamada e o grupo conservou‑se calado. Apenas o zumbido distante do motor eléctrico quebrava o silêncio, anunciando a lenta chegada do elevador. A aparência da cabina fez Chris pensar numa jaula suspensa por cabos.
A porta abriu‑se e o polícia obrigou as três mulheres a entrarem. Metendo a mão no cinto, o homem retirou uma chave, abriu a pulseira da algema que estava presa ao seu próprio pulso e prendeu‑a a um anel de metal aparafusado no fundo do elevador.
Por que será que é só comigo que fazem estas coisas? reflectiu Chrís, enquanto lutava por conter as lágrimas e olhava disfarçadamente para as duas mulheres, cujas faces inexpressivas e atitudes cuidadosamente controladas não conseguiam ocultar a raiva que as queimava por dentro. A lenta ascensão do elevador pareceu durar séculos. As mulheres continuavam em silêncio e o polícia, com expressão ausente, enfiava o dedo no nariz. A mulher mais nova, que estava perto de Chris, arrotou, expelindo um hálito enjoativo em que se misturavam álcool, alho e dentes podres. Chris, involuntariamente, afastou a cara e a mulher repuxou os lábios num sorriso irónico.
‑ Que tens, bebé? ‑ sibilou a mulher. ‑ Que foi? És muito sensível ou quê?
‑ Tá bem, pronto, filha, ‑ resmungou o guarda.
‑ Não me venha com essa de filha, porco! ‑ respondeu a mulher, desabridamente. Com um baque surdo, o elevador parou e Chris agradeceu intimamente, pois estava a sentir um medo terrível, imaginando que aquele princípio de discussão poderia provocar uma violenta retaliação, por parte do polícia, como acontecera em muitos filmes a que assistira.
Quando as portas do elevador se abriram, a primeira coisa que Chris viu foi a cara impassível de uma guarda, usando uniforme e exibindo um revólver de cano curto, enfiado num coldre pendente do cinturão.
‑ Molly, são todas tuas ‑ anunciou o guarda, ao mesmo tempo que, distraidamente, livrava Chris das algemas que, naquela altura, já faziam, mentalmente, parte da sua anatomia. Enquanto esperava, hesitante, os próximos acontecimentos, a jovem esfregou o pulso dorido e arranhado.
‑ Vamos, mexam‑se, raparigas. Mexam‑se. Não temos o dia todo para ficar aqui paradas ‑ disse a guarda. ‑ Virem para a esquerda e comecem a andar. ‑ As duas mulheres mais velhas movimentaram‑se com um certo ar de familiaridade, parecendo que já tinham percorrido aquele caminho muitas vezes. Chris, contudo, ficou para trás um breve instante, antes de as seguir por um outro corredor, igual aos que tinha percorrido, no rés‑do‑chão, quando entrara na esquadra. No fim da passagem, as quatro mulheres pararam diante de uma porta alta gradeada e esperaram até que esta se abrisse com um ranger de gonzos.
‑ Em frente ‑ ordenou a guarda, fazendo as três passarem a porta. Por trás das prisioneiras a porta fechou‑se com um baque surdo, pondo um final aterrador a toda e qualquer esperança de fuga. Chris mal podia crer no que os seus olhos viam. Considerava aquilo o máximo de segurança em matéria prisional. E não passava, contudo, de uma simples prisão municipal. Depois de alguns passos, detiveram‑se diante de outra porta, igual à primeira. Esta também rangeu nas dobradiças e quando um estrondo metálico anunciou às prisioneiras que novo obstáculo se interpuzera entre elas e a liberdade, o clangor do choque de metal contra metal foi tão inesperado, que Chris vacilou como que atingida por uma força invisível.
‑ Vamos, entrem ‑ ordenou a guarda e quando Chris seguiu os passos das duas mulheres, percebeu que tinha entrado numa larga cela com janelas gradeadas e paredes de pedra cobertas de grafitos, às quais estava presa uma série de catres pouco convidativos. No extremo da cela uma mulher de pouca estatura estava sentada no chão, com as costas apoiadas na parede e murmurando frases desconexas. Perto dela, uma outra mulher, de aparência grosseira, andava de um lado para o outro. Ao chegar ao fim da cela, esfregava as palmas das mãos nas paredes e olhava com olhos fuzilantes para o betão aparente. Depois de alguns instantes, retomava o caminhar inquieto. As outras prisioneiras sentavam‑se apáticas ou estiravam‑se nos catres, mostrando todas variados graus de embriaguez. Nervosamente, Chris procurou um canto da cela para se refugiar, percebendo ao dar os primeiros passos, que era seguida com grande atenção por uma mulher alta e magra que se apoiava, displicentemente, contra a parede da cela. Nas suas roupas havia manchas de sangue fresco e um grande hematoma azulado na face esquerda dava‑lhe um ar de caricatura grotesca.
Chris estremeceu, ainda incapaz de perceber o que estava ali a fazer. Ela era baixinha, rechonchuda, corpo de menina‑moça metido em apertados "blue jeans" desbotados e envolto numa blusa cuja fralda estava amarrada á altura da cintura pelas pontas. Os cabelos eram castanhos e os olhos medrosos tinham uma bela cor castanho‑doirada. Era o tipo de garota que se estivesse no pátio da escola, na esplanada da esquina, ou caminhando displicentemente, pelas ruas, misturar‑se‑ia facilmente com a multidão, passando despercebida. Contudo, naquela cela de prisão municipal, no meio de um bando de alcoólicas inveteradas, salientava‑se como um botão‑de‑rosa no meio de um monte de lixo.
Embora poucas dentre as presas lhe dessem atenção, Chris experimentava a horrível sensação de estar a ser cuidadosamente observada, avaliada como se avalia um cordeirinho novo, no matadouro. Retraiu‑se ainda mais no cantinho que escolhera e um sexto sentido fê‑la lançar um agudo e rápido olhar em direcção à mulher que a fitava com expressão faminta. Os seus olhares cruzaram‑se. A mulher passou a língua pelos lábios, num gesto claramente obsceno e Chris experimentou uma sensação de asco, que lhe revolveu todo o corpo. Estremeceu, cruzou os braços sobre os seios e segurou os ombros com as mãos. A mulher começou a caminhar na sua direcção e Chris colou‑se ainda mais de encontro à parede, o coração pulsando forte e a respiração ofegante. A mulher, contudo, limitou‑se a passar a seu lado, lançando‑lhe um olhar casual.
Lentamente, Chris deixou‑se escorregar, até se sentar no chão. Encolheu as pernas e ficou com os joelhos á altura do queixo, olhando em torno, e ao examinar as ocupantes da cela, desejou ardentemente que nenhuma delas se aproximasse do seu cantinho. Ao mesmo tempo, rezou para que, de alguma forma alguém aparecesse e a tirasse daquele lugar horrível. Afinal ‑ pensou - o que fiz eu? Nada de mal. Fugi de casa. Só isso. O que é que eles pensam que eu estava a fazer? Não estava a prejudicar ninguém. Não estava a violar nenhuma lei.
Sentia‑se imensamente cansada e presa de temores desconhecidos, principalmente do que lhe poderia acontecer se adormecesse. Lutou quanto pôde para se manter acordada, mas, finalmente, perdeu a luta e mergulhou num sono inquieto.
Quando Chris acordou, sobressaltada, viu, ao erguer os olhos, que a luz do Sol se coava através das janelas gradeadas. Todo o corpo lhe doía e os pés estavam dormentes por ter passado a noite inteira naquela posição curvada e desconfortável. O ruído da descarga de água, na casa de banho, fê‑la levantar‑se, lutando para ficar de pé, imaginando se, finalmente, viria alguém buscá‑la. Devido á falta de alimentos, o estômago protestava. Todavia, não sentia fome.
‑ Christine Parker ‑ chamou uma voz, vinda de fora da cela. Um frémito de antecipado alívio percorreu‑lhe o corpo. Correndo para a porta, Chris imaginava: Chegaram os meus pais. Finalmente! Graças a Deus.
- Sou eu, sou eu! ‑ gritou a jovem. ‑ Sou eu! Estou aqui. Já me posso ir embora? ‑ Uma outra guarda estava diante da porta. Em vez de responder às perguntas ansiosas da jovem, procurou, no molho de chaves, uma delas, abriu a porta da cela e encarou a jovem.
‑ Muito bem, menina, vem comigo ‑ disse a mulher com indiferença. O tom de voz da guarda nada revelava. Nem promessas nem ameaças. Seguindo os passos da mulher, Chris mal ouvia o bater das portas, à sua passagem.
‑ Vão‑me levar para casa? ‑ indagou Chris em voz baixa e suplicante.
‑ Acompanha‑me - disse apenas a mulher, sem voltar a cabeça e continuando a andar apressadamente em direcção ao elevador. Naquele instante, o coração de Chris quase parou. Avistara, parado diante da porta do elevador, outro polícia, tendo nas mãos um par de algemas.
‑ Muito bem, garota ‑ disse o guarda sem demonstrar qualquer traço de emoção, na voz. ‑ Dá cá esses pulsos.
‑ Porquê? ‑ perguntou Chris, sentindo um aperto no peito. A voz saía fraca e trémula. ‑ O que é que o senhor vai fazer? Para onde me vai levar?
‑ Dá cá esses pulsos, menina. Vamos lá. Não temos o dia inteiro à disposição. ‑ Agilmente o guarda fechou os braceletes em volta do pulso de Chris. Em seguida voltou‑se para a guarda.
‑ OK, vou levá‑la. ‑ E ordenou a Chris: ‑ Vamos lá garota, vamos.
Gentilmente, empurrou Chris para o elevador. Apertou o botão de descida e as portas fecharam‑se.
‑ Para onde me leva? ‑ quis saber Chris.
‑ Acalma‑te, garota ‑ disse o polícia. ‑ Ninguém te vai bater. Anda só comigo.
- Mas para onde me leva?
‑ Acalma‑te, já disse. Já vais ver.
O elevador chegou ao andar térreo e o polícia fê‑la caminhar pelo corredor já familiar, pois era o mesmo que percorrera na noite anterior.
‑ O meu pai veio‑me buscar? ‑ perguntou a jovem.
‑ Olha lá garota ‑ respondeu o guarda, com um sinal de impaciência na voz. ‑ Pára de fazer perguntas e trata de andar. Já te disse que não temos o dia inteiro à nossa disposição.
Conduziu‑a por um corredor, depois por outro, após atravessar várias portas e, finalmente, chegaram a um vestíbulo no qual se abria a porta de saída.
‑ O meu pai está aqui? ‑ repetiu ela ansiosa. ‑ Ele veio‑me buscar?
‑ Ninguém te veio buscar ‑ respondeu impaciente o polícia. ‑ Vamos andando. Já te disse duas vezes que não temos o dia todo à disposição. ‑ O guarda abriu a porta da rua e apesar da sua incerteza, a sensação dos raios quentes do Sol batendo‑lhe no rosto, acariciado pela brisa matinal deu a Chris um novo alento e novas esperanças. Várias viaturas policiais estavam estacionadas ao longo do prédio e o guarda fez‑lhe um gesto para que o seguisse até uma delas. Estavam a meio caminho entre a esquadra e a viatura quando a porta do prédio se abriu e alguém gritou:
‑ Ei, porque é que não espera.? - O polícia que conduzia Chris parou abruptamente, fazendo com que ela chocasse com ele.
Quem gritava da porta, um outro polícia, acrescentou:
‑ Por que não espera até esta tarde?.. Temos mais duas para mandar...
‑ Não ‑ respondeu o polícia que acompanhava Chris. - Eu estava a precisar de dar esta volta. Vou levá‑la agora mesmo. ‑ Voltou‑se para Chris e indicou: ‑ Vem por aqui. Encaminhou‑se apressado para um dos veículos estacionados, quase arrastando a prisioneira. Abriu a porta traseira do veículo escolhido e disse: ‑ Entra aí. ‑ Com dificuldade, porque as algemas lhe tiravam o equilíbrio, Chris obedeceu. Em seguida, o guarda deu a volta e abriu a porta da frente, acomodando‑se no lugar do motorista. Ligou a ignição, o motor pegou e o homem preparou‑se para partir.
Instintivamente, Chris percebeu que não iria para casa. Mas então, para onde a levavam? Porque é que continuava algemada? As perguntas volteavam‑lhe na mente, girando, até que a cabeça começou a rodar. Lembrou‑se de que, nas aulas de moral e civismo os professores ensinavam que todos, até as crianças, têm os seus direitos. Tudo o que fizera fora fugir de casa. E isso será crime? Já tinha fugido de casa, anteriormente, mas, sempre a levaram de volta para o pai e para a mãe. Agora, porém, tudo estava a ser diferente. Um polícia tinha‑a prendido, tinha‑lhe posto algemas e tinha‑a levado para uma prisão infecta onde passara a noite no meio daquelas pessoas horríveis. E agora.. agora para onde a levavam? O que iriam fazer dela? Lutou para dominar os soluços. Repentinamente, percebeu que o carro tinha saído da estrada e entrado num caminho secundário que conduzia a um edifício grande e baixo, rodeado por um relvado mal tratado, que já fora verde mas que, naquele momento, se mostrava seco e com clareiras. O tipo de lugar onde apenas esperamos encontrar lagartos e escorpiões. O polícia parou o carro diante do edifício, desceu e abriu a porta de trás, para que Chris saísse.
- Por ali ‑ disse o homem, apontando para uma porta. Anteriormente deveria ter sido pintada de cinzento, mas agora, a pintura estalava em alguns pontos e noutros mostrava‑se baça e manchada. Parando nos degraus, o polícia apertou um botão. Algures, dentro do prédio, soou uma campainha. O som chegou amortecido aos ouvidos de Chris. Um segundo ou dois depois, houve um zumbido e um dique na fechadura. O polícia empurrou a porta, abrindo‑a, e fez um sinal a Chris para que entrasse. Seguiu‑a e fechou a porta. Quando ouviu atrás de si o ruído da fechadura travando a porta, Chris olhou em torno de si. Depois de hesitar alguns instantes, acompanhou o polícia até um balcão colocado no extremo da sala. Por trás do balcão, estava sentado um homem simpático que usava uma camisa desportiva. Parecia estar na casa dos trinta anos e esticou a mão para receber o maço de papéis que o polícia lhe entregou.
‑ Tenho uma transferência da prisão municipal para a juvenil, mister Everson ‑ disse o polícia. O homem chamado Everson apanhou os documentos entregues pelo guarda e examinou‑os superficialmente.
‑ Hum ‑ resmungou o homem. ‑ Catorze anos de idade. Por que diabo vocês a mantiveram na prisão municipal durante a noite?
O polícia fez um gesto de indiferença com os ombros.
- É que a apanhámos já muito tarde.
‑ Nós funcionamos aqui vinte e quatro horas por dia, Jim ‑ observou Everson. ‑ Todos vocês o sabem.
O polícia baixou os olhos, olhando nervosamente para Os próprios pés. Finalmente murmurou:
‑ Olhe... eu... não sabia...
Everson fez um esforço para esconder o seu aborrecimento: ‑ Está bem, Jim. Tire as algemas dos pulsos da rapariga. Isto aqui não é uma cadeia, compreende?
‑ Certo, certo ‑ respondeu o polícia, procurando apressadamente a chave com a qual poderia abrir as algemas. Retirou os braceletes dos pulsos da jovem e pendurou‑os no cinto. Quando esfregava os pulsos doridos, agradecida pelo alívio, Chris avistou uma mulher jovem e atraente, de cabelos negros, que se juntou a Everson, por trás do balcão.
Everson, ainda lendo os documentos, disse:
- Christine, esta é a minha assistente, Maria Sanchez.
‑ Quem é ela? - perguntou a mulher, sem demonstrar muito Interesse.
‑ É uma fugitiva ‑ respondeu o polícia. Everson, contudo, explicou: ‑ O nome dela é Christine Parker.
‑ Vai ficar connosco? ‑ perguntou Maria, percebendo que o polícia não tinha mais poderes sobre a garota. Chris olhou nervosamente para Everson e depois para Maria.
‑ Posso telefonar aos meus pais? ‑ perguntou.
‑ Os teus pais entregaram‑te ao juízo de menores - esclareceu o polícia calmamente.
‑ O quê? ‑ indagou Maria.
Everson suspirou e pareceu ficar ligeiramente incomodado: ‑ Eles querem que ela fique aqui ‑ esclareceu.
‑ Bom ‑ disse o polícia ‑ vocês agora já não precisam de mim. Vou voltar para a esquadra. Passem bem. ‑ Sem dispensar um único olhar a Christine, voltou‑se e encaminhou‑se para a porta. Everson apertou o botão do fecho eléctrico e abriu a fechadura. Incapaz de se mover, Chris assistia à saída do homem. Quando este se foi embora, voltou‑se com esforço para Everson e Maria.
‑ Christine, vem comigo ‑ ordenou Maria. Havia uma porta de vaivém que dava passagem para a zona por trás do balcão. Chris seguiu Maria através da porta e então, parou confusa. Novamente experimentou uma opressão angustiante no peito. Parecia‑lhe impossível encontrar palavras mas, finalmente, conseguiu articulá‑las:
‑ Por favor ‑ implorou ‑ posso telefonar para os meus pais?
Não obtendo resposta de Maria, Chris voltou‑se automaticamente para Everson que explicou:
‑ Se te pudesse confiar à custódia deles, telefonar‑lhes‑ia. Mas agora, estás sob a jurisdição do tribunal juvenil. E enquanto o juiz não resolver...
‑ Mas, eles não sabem que... ‑ interrompeu Christine.
‑ Sabem, sim ‑ afirmou Everson ‑.Os teus pais sabem de tudo, Christine. Foram eles que decidiram entregar-te ao juízo de menores. Agora, vai.
‑ Dá‑me o teu cinto, por favor ‑ pediu Maria, segurando Christine pela mão.
Christine hesitou; inicialmente não compreendeu, mas, como a mulher continuasse a segurar‑lhe firmemente a mão, reflectiu: Para que querem o meu cinto? Percebendo que não tinha escolha, tirou lentamente o cinto e entregou‑o a Maria que o aceitou com a indiferença de um gesto muitas vezes repetido, tal como o empregado de balcão aceitando uma moeda com que o garoto paga o pacote de pastilhas elásticas.
‑ Muito bem, Christine ‑ convidou Maria. ‑ Agora vem comigo. ‑ Voltou‑se a abrir uma porta que dava para um longo corredor. Imediatamente, Chris experimentou a sensação de estar a reviver o pesadelo da noite anterior, na esquadra da polícia. Era uma passagem comprida e nua, toda pintada de branco. Havia celas de ambos os lados, e em cada porta abria‑se uma pequena janela. Por trás dessas aberturas, olhos curiosos observavam a passagem de Maria e Christine. Aquilo fez com que Chris se sentisse nervosa. Quem seriam aquelas pessoas que a espiavam? Ouvia sussurros abafados, vindos do interior das celas. Mas eram apenas murmúrios, sussurros em que não se distinguia uma única palavra. Enquanto seguia os passos de Maria, ao longo do corredor, olhava, como que hipnotizada, abertura após abertura, à medida que passavam em frente das celas. Uma das prisioneiras pós os lábios na abertura e fez um som de beijo, quando Chris passou em frente. Assustada, Chris deu um pulo. Outra pergunta:
‑ Como te chamas, borrachinho?
Chris encarou a abertura donde viera a pergunta e viu um par de olhos luminosos a observá‑la.
‑ Qual é o teu nome, borrachinho? ‑ insistiu a criatura desconhecida, por trás da porta. Chris hesitou por um momento, sem saber o que responder. Instintivamente, receando as consequências, preferiu continuar a andar, seguindo os passos de Maria que parou finalmente, diante de uma das últimas celas do corredor.
‑ Muito bem, chegámos ‑ disse Maria, abrindo a porta e fazendo um gesto com a cabeça a Chris, para que entrasse. Quando Chris transpôs o umbral, Maria fechou a porta atrás de si. Com o sangue a pulsar‑lhe forte nos ouvidos, Christine encostou‑se à porta trancada, examinando timidamente as outras ocupantes da cela. Estavam ali reunidas dez jovens cujas idades variavam entre os dezasseis e os dezoito anos. Algumas eram negras. Duas eram mexicanas. Chris não encarou nenhuma delas, mas todas a examinaram demoradamente.
Uma das jovens adiantou‑se e disse:
‑ Maria, eu pensei que saíria hoje.
‑ Amanhã ‑ respondeu Maria com um tom de voz entediado, como se estivesse cansada de ouvir, todos os dias, a mesma observação.
Outra jovem adiantou‑se e apontando depreciativamente com o polegar para Chris, perguntou:
‑ Quem é ela? - Maria não lhe deu resposta. Então, a rapariguinha acrescentou: ‑ Há uma cama vazia, ali ‑ e apontou para um catre localizado no canto oposto da cela.
A jovem que tinha feito a observação sobre o dia da saída, agarrou‑se ás barras da janela da cela e gritou para Maria:
‑ Ontem, disseram‑me que seria amanhã e hoje repetem‑me que é amanhã.
Sentindo‑se fisicamente mal, devido ao medo e à confusão mental em que estava, Christine procurou ignorar o que acontecia em seu redor e encaminhou‑se directamente para o catre que a jovem lhe mostrara. Sentando‑se na beira do estrado, Chris baixou os olhos para as pontas dos sapatos e cruzou as mãos sobre os joelhos. Nesse momento, Maria dizia à jovem que lhe fizera a pergunta:
‑ Está bem, vou verificar isso.
‑ Grande coisa ‑ disse ironicamente a jovem, ao mesmo tempo que a cara de Maria desaparecia do postigo.
Christine sentiu‑se sozinha e inquieta. Ergueu a cabeça e procurou encarar naturalmente as suas companheiras de cela. Uma jovem grandalhona, esparramada no catre oposto, encarou Christine com visível hostilidade. Rapidamente, Chris desviou os olhos e encontrou a face sorridente de uma atraente negrinha de quinze anos, que se aproximou com gestos amistosos, sentando‑se.
‑ Olá. Eu sou a Josie.
‑ Grande coisa ‑ disse uma das jovens. Alguém se riu. Josie contudo não ligou importância. Christine estava tão nervosa que tremia. Quando tentou falar, a voz saiu‑lhe trémula e hesitante:
- O meu nome é Christine. ‑ Observou os pulsos de Josie envoltos em pulseiras de couro. Por alguns momentos, Josie pareceu esquecer a existência de Chris. Brincava com as franjas que pendiam das pulseiras de couro, ao mesmo tempo que examinava com desusado interesse uma série de profundas cicatrizes que tinha nos braços. Subitamente, ergueu os olhos e perguntou a Chris:
‑ Já estiveste no tribunal?
‑ Não.
‑ É a primeira vez? ‑ voltou a perguntar Josie. Chris respondeu afirmativamente com um aceno da cabeça.
‑ Oh, então provavelmente vais ser levada ao juiz Millburn ‑ explicou Josie com ares de conhecedora. Nessa altura da conversa, aproximou‑se uma jovem de aspecto másculo, cujo sorriso matreiro perturbou Chris. Pondo as mãos nos ombros desta, disse sugestivamente:
‑ Estás a precisar de ter uma amiguinha.
‑ Gira ‑ ordenou Josie.
‑ Ora, vai para o Inferno ‑ sibilou a recém‑chegada, afastando‑se.
‑ O que é que fizeste, Chris? ‑ indagou Josie.
‑ Fugi de casa.
‑ Oh, então o Millburn vai mandar‑te direitinha para a gaiola. ‑ Dizendo isto, Josie levantou‑se com a intenção de se afastar.
Chris estava estupefacta. O que teria querido dizer Josie?
‑ Josie, espera ‑ pediu Chris. ‑ O que é a gaiola?
Josie sorriu:
‑ É a Escola Feminina do Estado. Já lá estive. ‑ E o tom com que a afirmação foi feita parecia uma vanglória.
‑ Já? ‑ Chris estava pasmada com a despreocupação da outra.
‑ Claro ‑ confirmou Josie. ‑ E volto para lá amanhã. Tudo por causa de um vadio. Não tive culpa nenhuma. Também, para que me fui meter com ele? O imbecil com que saía chocou com o carro, e todas as latas vazias de cerveja saíram disparadas pela janela, às centenas. - Sorriu, meneando a cabeça e várias outras raparigas, reconhecendo o jocoso da situação explodiram em gargalhadas.
A garota que perguntara quando iria sair, aproximou‑se e observou, irónica:
- Claro, tu nunca tens culpa.
- Não era eu que ia a guiar. Quando muito estava um pouco alegre.
- Ora, diz isso ao teu advogado - replicou a rapariga que queria sair.
Josie lançou‑lhe um olhar de profunda irritação.
- Não temos advogado, sua sabichona.
- Terias, se te dedicasses à carreira - replicou alguém.
- A mãe dela é que faz carreira ‑'explicou uma outra. - E fica na boa vida.
O rosto da pretinha contorceu‑se numa máscara de ódio.
- Cala‑te, linguareira! - berrou Josie
- O que foi? A tua velha não te ensinou a fazer a vida?
Josie encarou com ar de desafio o grupo:
- A velha tem medo que eu já seja melhor do que ela. - Com a observação voltou‑lhe o bom humor. As outras riram‑se.
- E tu já és? ‑ desafiou uma das jovens.
Josie encarou‑a com firmeza:
- Podes ter a certeza, minha linda. - Estrugiram novas gargalhadas.
Chris encarou Josie sem poder acreditar e sem muita certeza do que ouvira durante a conversa.
‑ Josie? ‑ perguntou baixinho, de modo a que ninguém a ouvisse: ‑ Como é a gaiola?
- aí, vocês duas, tratem de calar o bico ‑ reclamou a Jovem que estava esparramada sobre o catre. Chris encarou‑a assustada. Ela acrescentou: ‑ Quero dormir e essa conversa de chaca está‑me a incomodar.
Chris levantou‑se do seu catre e foi sentar‑se no de Josie, ao lado da negrinha. Estava muito interessada em conhecer detalhes sobre a gaiola. Josie, porém, estava novamente absorta nas franjas das suas pulseiras de couro, de modo que Chris olhou em redor, procurando alguém que pudesse responder às suas perguntas. Uma das Prisioneiras bocejou sonoramente. Pareciam ter perdido todo o interesse pela
recém-chegada, mergulhadas nos seus Próprios devaneios.
O corredor em frente à porta da sala do tribunal juvenil fervilhava. Viam‑se pais aborrecidos, pais irritados, pais preocupados, pais nervosos, advogados entediados, garotos amedrontados, tutores cansados e pairando sobre toda aquela multidão o indefectível odor das repartições públicas: desinfectante, sarro de fumo e suor.
Um garoto pálido e de olhos arregalados, dizia ao pai:
‑ Não se preocupe, pai. Não se preocupe.
Um advogado ao lado deles.
‑ Existem duas acusações separadas ‑ lembrava o advogado ‑ de furtos em lojas. Dois furtos distintos.
O pai, com os músculos da cara retesados de raiva, virou‑se para o garoto assustado e berrou:
‑ Agora, ouve bem o que te vou dizer. E presta atenção. Não quero voltar aqui mais nenhuma vez. Nunca mais, estás a ouvir?
O garoto encarou o pai e num fiozinho de voz prometeu:
‑ Nunca mais faço isso, pai. Nunca mais.
‑ É melhor que seja a última vez ‑ preveniu ainda irritado o pai.
Chris deixou de os observar, voltando a sua atenção para a jovem sentada a seu lado no banco. Fora uma das suas companheiras de cela, na noite anterior. A rapariguinha contudo ignorou‑a e preferiu conversar com o rapazinho a seu lado.
‑ Aquele juiz vai morrer quando me vir aqui outra vez
‑ disse a rapariga sorrindo. ‑ Vai ficar parvo.
A porta da sala do tribunal abriu‑se e um grupo familiar, em lágrimas, afastou‑se seguido por uma mulher, oficial de justiça, uniformizada e tendo nas mãos uma prancheta. Consultou a folha de papel presa à prancheta. Parou no umbral e chamou:
‑ Christine Parker, Christine Parker.
Chris ergueu‑se apressada do banco. Nervosamente encarou o oficial de justiça.
‑ Sou a Christine Parker ‑ disse em voz baixa. ‑ Os meus pais não vieram...
‑ Não. Eles não estão aqui ‑ interrompeu a mulher.
‑ Siga‑me.
Trémula e apreensiva, temendo estar a ficar louca, Christine acompanhou a mulher uniformizada que cruzava o umbral e viu‑se na sala do tribunal. Para sua decepção estava vazia. Sempre imaginara as salas dos tribunais como locais cheios de gente, ideia que lhe viera de filmes e programas de televisão. O juiz, um homem de traços severos e envolto numa toga preta, observou‑a sombriamente, enquanto ela caminhava pelo corredor, aproximando‑se da mesa do tribunal. Os poucos funcionários presentes, olharam‑na entediados. Quando se aproximou da tribuna é que Chris percebeu como era alta. Tinha dificuldade em manter a cabeça erguida para olhar o juiz. Chegou a sentir dores na nuca.
‑ Christine ‑ disse o juiz examinando um papel que. segurava. ‑ Quando da tua última fuga foste suficientemente avisada. Aqui neste papel está escrito que foi posta em liberdade vigiada sob a custódia dos teus pais. E agora, tornaste a fugir. ‑ Voltou os olhos para a adolescente, encarando‑a como que a dizer‑lhe que tomava a nova fuga como uma ofensa pessoal.
Çhristine hesitou por alguns instantes e, em voz baixa, perguntou:
‑ Eu preferia ir morar com o meu irmão. Posso ir morar com ele?
O juiz examinou mais uma vez o relatório e meneou negativamente a cabeça.
‑ Os teus pais assinaram os documentos pelos quais cedem o direito de custódia sobre ti. Portanto, agora, menina, és uma tutela deste tribunal.
Chris mal podia acreditar no que ouvia. O juiz prosseguiu, como se fosse um velho disco:
‑ No momento não existem à disposição deste tribunal lares nos quais possas ser colocada em adopção provisória. Em consequência, embora relutante, não tenho outra alternativa senão enviar‑te para a Escola Feminina do Estado, até que este tribunal possa encontrar lugar mais adequado.
Chris não podia crer naquilo! Não. Com certeza era engano. Os pais não lhe iriam fazer aquilo. Não. Não seriam capazes. Era tudo um engano. Era daquelas coisas que não podem acontecer. O juiz estava a mentir. Dizia aquilo tudo para lhe meter medo. Procurou encarar o homem, mas, o magistrado mostrava‑se completamente absorvido na leitura dos papeis que estavam diante dos seus olhos. Era como se ela nem sequer existisse. A oficial de justiça aproximou‑se e, com a cabeça, fez um sinal em direcção à porta. Chris percebeu que nada mais lhe restava fazer, senão acompanhar a mulher.
A viagem de volta à casa de detenção Juvenil levou apenas uns quinze ou vinte minutos. Chris tinha perdido toda a noção do tempo. A cabeça escaldava‑lhe, com os pensamentos que a atormentavam. Como seria essa tal Escola Estadual? Seria como aquela Casa de Detenção? Ou seria igual à prisão municipal? E aquela história do pai e da mãe terem assinado papeis que desistiam dela? Como puderam eles fazer aquilo? Não deviam ter procedido daquela forma. E quanto a Tom? Dissera ao juiz que preferia ir viver com o irmão. E o desgraçado do juiz nem lhe respondera. Talvez não tivesse ouvido. E se conseguisse voltar ao tribunal e explicasse tudo ao juiz? Que poderia ir viver com Tom, seu irmão. Ele tomaria conta dela. Se havia um lugar para onde ela poderia ir, este, sem dúvida, era a casa de Tom. Tinham sido tão unidos. Lá, sim, é que seria feliz. Oh! meu Deus, se ao menos pudesse ir para casa de Tom! Tinha a certeza de que se fosse viver com Tom, tudo acabaria por dar certo. Talvez conseguisse fazer chegar‑lhe a notícia e ele, certamente, viria buscá‑la. Agora, contudo, Tom era casado; talvez por isso não pudesse vir buscá‑la.
Já que não poderia vir, iria ela à sua procura. Era só ele mandar‑lhe dizer onde estava. Alguém lhe diria
Chris, absorta nas suas reflexões mal notou que tinham chegado à Casa de Detenção. Viu‑se mais uma vez na sala de recepção. Ficou parada por alguns instantes. Olhando à volta, viu o senhor Everson sentado por trás do balcão, conversando em voz baixa com um polícia uniformizado. Maria Sanchez também estava presente. A mulher aproximou‑se de Christine e pegou‑lhe na mão. Dirigiu um sorriso à amedrontada jovem e gentilmente fê‑la aproximar‑se do senhor Everson. O homem encarou‑a:
‑ Estás pronta? ‑ indagou com o rosto impassível.
Foi Maria quem respondeu em lugar de Christine:
‑ Sim, está tudo pronto. ‑ Em seguida, Maria voltou‑se para Chris e explicou‑lhe: - Este delegado vai‑te levar para a escola. Aquilo é óptimo e vais gostar. Agora adeus.
Everson abriu a porta e Christine encaminhou‑se automaticamente para a saída, acompanhando o funcionário uniformizado.
Quando estava para sair, Everson chamou‑a e apontou‑lhe uma coisa: ‑ Aquilo ali é teu.
Chris seguiu com os olhos a direcção apontada por Everson e viu uma velha mala, sobre o banco. Aproximou‑se e verificou que se tratava da sua própria mala. Incrédula, examinou‑a. Era a sua mala, sim. Não podia haver dúvidas. Lá estavam coladas etiquetas de viágem de numerosas companhias aéreas de todo o Mundo, que coleccionava. Havia até etiquetas da índia, da França, da Espanha, de todos aqueles lugares com os quais sonhava e que esperava um dia ir visitar. Não. Os olhos estavam a mentir. Não estava a ver a sua mala. Como poderia estar ali? Depois de a examinar durante mais alguns instantes, até se convencer de que era, realmente, a sua mala, perguntou a Everson:
‑ Quem trouxe isto? ‑ A voz de Chris implorava uma resposta.
Everson, contudo, manteve‑se calado, preferindo mostrar‑se muito ocupado com os papeis que examinava.
‑ Onde está o Hank? ‑ perguntou Maria.
O delegado uniformizado encarou‑a e respondeu:
‑ Gostaria de saber. Tenho que a levar a ela e não a ele.
Aquele diálogo pouco importava a Chris, que voltou a implorar:
‑ Por favor, digam‑me quem trouxe a minha mala para cá.
Fugindo aos olhos interrogativos de Chris, onde se lia uma profunda mágoa, Everson respondeu de má vontade:
‑Foi o teu pai.
Não. Christine não podia acreditar no que Everson lhe dissera. Ficou a olhar para o homem, piscando os olhos, até que as lágrimas lhe começaram a correr pelas faces. Voltou‑se para Maria.
‑ Porque é que não me disseram que ele estava aqui? Porquê ‑ perguntou entre soluços.
Everson continuava de cabeça baixa, aparentemente incapaz de enfrentar aquela agonia. Finalmente, explicou em voz baixa: ‑ Passou por aqui para deixar a mala antes de ir para o trabalho. Disse que estava com muita pressa e que não podia esperar.
Chris voltou‑se mais uma vez para o homem por trás do balcão, encarando‑o incrédula.
Lentamente aproximou‑se de novo da mala e pegando‑a pela asa, levantou‑a do banco. Fez mais uma pergunta a Everson:
‑ Ele não lhe disse mais nada?
‑ Não ‑ respondeu secamente Everson.
Com esforço carregou a mala através da sala em direcção à porta. Ao pousar a mala no chão, enquanto esperava que o delegado abrisse a porta, voltou‑se para Maria e Everson, dizendo aos dois:
‑ Bem, então adeus.
‑ Adeus ‑ respondeu Maria.
Everson apertou o botão, a fechadura eléctrica foi accionada e o delegado transpôs o umbral, seguido por Chris, que caregava a sua mala.
Diante da porta estava parada uma grande camioneta. Parecia uma carroça de cães. A visão do veículo provocou um estremecimento a Chris. Na traseira havia uma porta de duplo batente e sobre os vidros, tinham sido fixadas barras de aço. Sem dizer palavra, o delegado abriu a porta e fez um sinal a Chris para que entrasse. Com alguma dificuldade, a jovem ergueu a mala, depositou‑a sobre o banco de madeira que corria em sentido longitudinal à carroçaria e, depois de ela ter subido o homem trancou as portas. Olhou em volta aturdida. - Não sou nada. Nem mesmo um filhote de animal, para eles ‑ pensou consigo própria. Entretanto o homem tinha ocupado o banco do motorista e através de uma cobertura na parede de metal, entre a cabina do motorista e a estrutura da camioneta, olhava para trás, a fim de verificar se a sua passageira estava sentada. Estupidificada, Chris sustentou o olhar do homem. O delegado ligou a ignição e o motor, passados alguns momentos pegou. Metendo a primeira e soltando a embraiagem, o homem afastou o veículo da Casa de Detenção Juvenil.
Depois de a camioneta ter dado a volta e entrado na estrada principal e adquirido velocidade, começou a olhar para fora através das janelas traseiras, guarnecidas de barras de ferro. Tudo o que se via era a fita asfaltada desenrolando‑se à medida que o veículo se deslocava e em torno uma desoladora paisagem. E enquanto olhava, as lagrimas assomaram‑lhe aos olhos e correram livremente. Naquele momento, nunca em toda a sua vida Christine se sentira tão sozinha e abandonada!
Quando a camioneta, finalmente, depois de abandonar a estrada principal e percorrer uma curta distância, parou diante de um pesado portão, Chris procurou examinar o local através da janelinha que a separava do motorista. Enquanto observava, o grande portão de ferro, accionado por controlo remoto, desUzou para os lados, dando passagem à camioneta.
Deve ser aqui ‑ reflectiu a jovem. - Oh, meu Deus, o que acontecerá agora? Bem, pelo menos o lugar não tinha aspecto de prisão. Silenciosamente, a jovem agradeceu ao seu anjo da guarda por aquele pequeno favor. Uma vez o portão aberto, a camioneta avançou lentamente mais alguns metros e parou diante de um segundo portão semelhante ao primeiro. Quando esta nova barreira foi removida, prosseguiram o caminho em direcção a um edifício baixo, limpo e aparentemente moderno. Mais tarde, aprendeu que aquele edifício abrigava a administração da Escola.
Manobrando para parar diante da porta da construção, o delegado pisou o travão, fazendo parar a viatura. Desligou o motor e saltou. Mais uma vez Chris sentiu aquela sensação de algo pesado e frio que lhe oprimia o peito. Em busca de apoio, procurando instintivamente algo a que se segurar, Chris agarrou‑se à barra de ferro, enquanto esperava o que viria a seguir.
O delegado abriu a porta traseira e ordenou:
‑ Desce, rapariga. Chegámos. ‑ Chris, porém, continuou imóvel. Continuava agarrada à barra de ferro, recusando‑se a sair. Precisava de se agarrar a alguma coisa.
‑ Vamos, rapariga, desce ‑ repetiu impaciente o homem. - Não podemos ficar aqui o dia todo. ‑ Em lugar de encarar o polícia, Chris agarrou‑se com mais força à barra de ferro e começou a tremer. O polícia examinou a cara da jovem e, em seguida, notou‑lhe as mãos trémulas. Aproximou‑se e, com suavidade, obrigou‑a a largar a barra.
‑ Vamos Chris ‑ disse, agora com mais gentileza ‑ não podes ficar aí parada, o resto do dia.
O toque das mãos do homem nos seus dedos, para os afrouxar, trouxe‑a à realidade. Lentamente, pegou na mala, desceu da camioneta e acompanhou o delegado. Este abriu uma porta e fê‑la entrar na sala de recepção do Edifício da Administração da Escola Feminina do Estado.
‑ Vamos procurar a miss Porter ‑ explicou o delegado.
‑ Ela cuidará de ti e dir‑te‑á tudo o que deves saber sobre este lugar. Vem, a sala dela é por aqui.
Cynthia Porter era uma criatura de aparência agradável, muito meticulosa no trajar e aparentava uns trinta e cinco anos. Os cabelos eram negros e no rosto bem maquilhado exibia um sorriso artificial. Ao ver entrarem a polícia e a jovem, fez um sinal a Chris para que ocupasse a cadeira em frente à sua e do outro lado da mesa de trabalho. Chris obedeceu, sentando‑se nervosamente, na ponta da cadeira. Logo que Chris tomou o lugar indicado, Cynthia Porter começou a falar. A voz saía‑lhe sem esforço e bem modulada, mostrando que estava a papaguear um discurso há muito decorado e repetido vezes sem conta.
‑ Bem vinda á escola, Chris, ‑ começou a mulher, exibindo o seu sorriso artificial. ‑ Gostaria que travasses conhecimento com as nossas regras básicas e ficasses a saber o que é este lugar e portanto preparada para o que te espera. Em primeiro lugar, vamos definir a minha função aqui. Sou a assistente do superintendente. Sirvo como elemento de ligação entre ti e o tribunal, ou entre ti e os teus pais. Eu sou a pessoa que dirá aos outros, lá fora, o que Christine Parker anda a fazer. E adoro dar boas notícias sobre as meninas, às outras pessoas lá fora. ‑ Cynthia fez uma pausa e exibiu novamente o seu sorriso artificial.
Chris tentou dizer alguma coisa, porém os lábios tremiam tanto que foi incapaz de articular uma única palavra.
‑ Queres fumar, Chris? ‑ Ofereceu Cynthia. ‑ Se quiseres, podes. ‑ Chris sacudiu a cabeça num gesto de recusa. Então, Cynthia inclinou‑se para a frente e o seu rosto assumiu uma expressão séria.
‑ Em primeiro lugar, Chris, quero que saibas que isto aqui não é uma prisão. É verdade que temos uma cerca em volta do nosso terreno, mas essa cerca existe, principalmente, para impedir que as pessoas estranhas penetrem no recinto. A princípio, encontrarás as portas trancadas, mas, à medida em que fores progredindo, entre nós, menos portas fechadas encontrarás. O que mais queremos, Chris, é confiar em ti. Percebeste? ‑ Chris não respondeu, mas prestava toda a atenção às palavras da assistente.
Continuando as suas explicações, Cynthia disse:
‑ E para que isto seja possível, Christine, vamos explicar algumas coisas, a fim de que saibas exactamente os passos que deverás dar. Em primeiro lugar, deverás aprender a comportar‑te como uma boa cidadã. Quando aprenderes isto passarás para o primeiro grau. Depois, se mereceres, irás para o segundo grau. Quando, finalmente, chegares ao quarto grau, estarás pronta para nos deixares, serás licenciada. ‑ Fez uma pausa, esperando que as suas palavras tivessem calado fundo no íntimo da jovem. Exibiu por alguns instantes o sorriso artificial para logo o apagar, retomando a expressão fria.
‑ Vou‑te explicar o que entendemos aqui por licenciar. Pessoas que aprendem a conduzir‑se em sociedade, aprendem a manter‑se afastadas de dificuldades. Portanto, o que vamos fazer contigo é ensinar‑te a adaptares‑te à sociedade. Percebeste? Agora, podes fazer as perguntas que quiseres.
‑ Como vou aprender a ser boa cidadã?
Cynthia procurou exibir um ar de profunda sinceridade.
‑ Bem, em primeiro lugar precisas de aprender a conviver com o pessoal administrativo e com as demais internas. Não deverás provocar brigas, ou discussões, não causarás dificuldades a ninguém, não te envolverás em práticas homossexuais e deverás comunicar qualquer informação sobre tais práticas à encarregada do teu dormitório. Isto deverá ser feito para a tua própria protecção.
Dizendo isto, pôs‑se de pé, apanhou sobre a mesa uma pasta de arquivo onde estava escrito o nome de Christine, em letras pretas e grossas.
‑ Muito bem, agora, vais ser interna de primeiro grau. Se fores aplicada nos teus estudos e desempenhares com dedicação e cuidado as tuas tarefas no dormitório para o qual foste designada, serás promovida ao segundo grau. Se te aplicares a fundo, Christine, garanto‑te que dentro de alguns meses chegarás ao quarto grau.
‑ Depois o que acontecerá? ‑ indagou Chris, encarando a mulher.
‑ Bem, então, ou voltas para casa, para junto dos teus pais, ou nós encontraremos uma boa família que te queira adoptar.
‑ Posso ir morar com o meu irmão ‑ adiantou Chris.
‑ Poderia ir agora mesmo se o chamarem e lhe disserem que estou aqui. Palavra de honra. Não precisarei de ficar aqui nem mais um minuto.
Cynthia abriu a pasta com o nome de Christine na capa e folheou os papeis nela arquivados. Depois de ler alguns, suspirou e disse:
‑ Receio que não poderá ser assim, Christine. Antes de te trazermos para cá entrámos em contacto com todos os membros da tua família e todos foram unânimes em declarar que este estabelecimento é o melhor lugar para ficares, no momento.
‑ Mas e o meu irmão? Entraram em contacto com ele?
Cynthia examinou mais uma vez os papeis.
‑ Entrámos, sim, Chris.
A jovem arregalou os olhos, espantada:
‑ Não acredito. Não posso acreditar no que a senhora me está a dizer.
‑ Chris, precisas de saber a verdade. Todos foram consultados. Ninguém quis ficar contigo. Está tudo escrito aqui.
A jovem experimentou a sensação de ter apanhado um soco no estômago.
Não, eles não sabem o que estão a dizer. O que significam esses papeis? Como seria possível que aquelas pessoas soubessem o que ela e T'om representavam um para o outro? Não. Não podia crer numa única palavra do que aquela mulher lhe estava a dizer. Não, não podia ser. Se aquilo era mentira, tudo o mais também seria mentira.
Percebendo que tinham chegado a uma situação crítica, Cynthia tentou passar - alínea seguinte do seu papel.
½ ‑ Agora, o nosso superintendente, o senhor Thorpe, gostará de te conhecer, antes de ires para o teu dormitório. Portanto, vem por aqui comigo. ‑ Cynthia foi à frente de Chris por um corredor alegremente decorado. No caminho cruzaram com uma mulher loura e magra, aparentando uns trinta anos.
Ao vê‑la, Cynthia sorriu e cumprimentou:
‑ Olá, Bárbara.
A mulher, ao passar, retribuiu o cumprimento e lançou uma olhadela rápida e perscrutadora a Chris. Fez‑lhe uma ligeira saudação com a cabeça e dirigiu‑lhe um sorriso luminoso. Este gesto totalmente inesperado, encheu de contentamento o coração da jovem. Desde o dia do casamento do seu irmão, Tom, que não experimentava um momento de alegria. O sorriso foi curto mas totalmente espontâneo e, por Isso, Chris sentiu uma grande simpatia pela mulher loura. Enquanto se afastava, acompanhando Cynthia, dizia para si mesma que gostaria de voltar a encontrar Bárbara.
Quando chegaram à sala do superintendente Thorpe, este estava ocupado falando ao telefone.
‑ Espere um momento ‑ disse ele ao interlocutor do outro extremo do rio. Voltando‑se para as recém‑chegadas, sorriu e saudou‑as com um alegre: ‑ Olá.
Cynthia empurrou Chris para dentro da sala:
‑ Senhor Thorpe, esta é Christine Parker.
Como se alguém tivesse ligado um interruptor, imediatamente o superintendente exibiu um rasgado sorriso, pondo a descoberto os dentes todos. Chris limitou‑se a saudá‑lo com uma leve inclinação de cabeça.
‑ Olá, Chris ‑ disse o homem. ‑ Suponho que a Cynthia já te explicou o que podemos fazer por ti e o que esperamos que faças por nós. Não tenhas medo de fazer perguntas, quando tiveres dúvidas. Certo? A Cynthia também está à tua disposição a qualquer momento em que queiras conversar com ela. Entendido?
Chris respondeu com um leve aceno de cabeça.
Acreditando ter cumprido as suas obrigações para com a recém‑chegada, o superintendente Thorpe pôs‑se sério e voltou a falar ao telefone.
‑ Desculpe‑me a interrupção ‑ disse, reatando a conversa.
Chris e Cynthia saíram para o corredor, de regresso ao gabinete desta, quando foram alcançadas, no caminho, por uma outra mulher.
‑ Olá, Emma ‑ saudou Cynthia. ‑ Venha cá um momento, por favor.
A mulher examinou Chris com um olhar avaliador e perguntou:
‑ Então é esta?
- É ‑ retorquiu Cynthia. - Já a esperava?
‑ Disseram‑me que ia chegar uma novata.
Chris estava em dúvida quanto aos seus sentimentos em relação àquela mulher. Era uma criatura de rosto sério e algo pesada de corpo. Usava o cabelo repuxado para trás, formando um carrapito na nuca. Os olhos eram escuros, brilhantes e vigilantes. O rosto mostrava alguma beleza, mas esta era anulada por indícios de tensão e fadiga. Chris estudou‑a cuidadosamente. Não. O ar dela não era ameaçador. Quando muito, desinteressado. Emma, por seu lado, só se dignara a examinar Chris com superficialidade, fugindo a qualquer contacto visual mais profundo'. Chris por seu turno, tinha chegado a uma conclusão. Quem quer que fosse, Emma não seria, certamente, uma pessoa com quem estabelecesse laços de amizade. Relacionar‑se‑ia, apenas.
Cynthia entregou à' mulher uma rolha de papel que retirou da pasta e, voltando‑se para a jovem, disse‑lhe:
- Chris, esta é a Miss Lasko. A encarregada do teu dormitório. Depois encontramo‑nos. Até logo. E boa sorte.
O coração de Chris não se lhe afundou no peito, pesaroso. Mas também não lhe pulsou de alegria. Limitou‑se a lançar um olhar a Cynthia, quando esta se voltou para continuar o caminho de regresso ao seu gabinete, e depois concentrar a atenção na senhora Lasko que estava a prender a folha de papel que Cynthia lhe entregara, na prancheta. Deu meia‑volta e começou a caminhar na direcção oposta.
‑ Vem, menina ‑ disse sem se voltar. Por aqui.
Chris deu alguns passos para a acompanhar quando, repentinamente, lembrando‑se de algo, disse:
‑ A minha mala...
‑ Já tratamos disso ‑ respondeu Emma ainda sem se voltar. ‑ Agora, preciso de te examinar, antes de entrar na residência. ‑ Chris estava confusa e apreensiva. Mas, ainda assim acompanhou a encarregada. O que estaria ela a querer dizer com aquilo de a examinar? Enquanto percorria o corredor, tentando manter a' mesma cadência apressada do andar de Emma, Chris cruzou‑se com duas jovens.
‑ Olá ‑ saudou uma delas, sorrindo. Chris tentou corresponder à saudação mas, nada conseguiu dizer. A segunda jovem interpelou a encarregada:
‑ Lasko, ela vai para o dormitório?
Sem se voltar e continuando a andar com o mesmo passo ágil, Emma respondeu:
‑ Vai.
‑ Queremos que ela fique lá ‑ disse enfaticamente a segunda jovem. Emma ignorou‑as e indicou a Chris que entrasse num balneário colectivo. Escolheu uma das divisões e fechou a porta.
‑ Muito bem ‑ disse em tom indiferente: ‑ Tira a roupa. Vais tomar banho.
Chris hesitou, subitamente assaltada por um sentimento de revolta. Compreendendo, porém, que não tinha outra solução, desabotoou a blusa e despiu‑a, lentamente entregando‑a à encarregada. Esta, com ar profissional, examinou rapidamente a peça de roupa. Parecia um fiscal da alfândega.
‑ Vamos, menina, vamos ‑ insistiu a senhora Lasko. Chris procurou obedecer. Primeiro tirou os sapatos. Depois, abriu o fecho eclair das calças blue jeans e fê‑las escorregar pelas pernas abaixo e entregou‑as à mulher, que as examinou com a mesma atenção com que verificara a blusa.
‑ Bem, menina, vamos continuar o trabalho. Disse‑te que ficasses completamente nua.
Chris corou,, porém, introduziu os polegares nos lados das cuecas, tirou‑as e entregou‑as a Emma. Minúsculas, mereceram um exame apenas superficial e depois atiradas displicentemente pela encarregada para o monte formado pelas outras peças de roupa despidas por Chris.
A voz aguda de uma adolescente, gritou do lado de fora da porta fechada:
‑ Eh, Miss Lasko, que tal é o corpo dela?
A pergunta foi seguida por uma risota. Aparentemente, um grupo de jovens internas tinha‑se reunido no balneário quando alguém espalhou a notícia de que a encarregada estava a revistar a novata.
‑ Querem fazer o favor de ficarem quietas? ‑ gritou Emma com expressão aborrecida. Depois, apanhou a prancheta e fez uma marca no papel. Embora não estivesse frio, Chris tremia descontroladamente, devido ao nervosismo e ao embaraço.
‑ Muito bem, menina ‑ disse Emma ‑ quando te vieram as últimas regras?
Chris reflectiu por uns instantes:
‑..... Há umas duas semanas.
‑ Então, vamos pôr aqui duas semanas ‑ disse Emma, fazendo uma anotação na rolha de papel presa à prancheta.
‑ Sim ‑ concordou Chris.
Ema, depois de feita a anotação, encarou Chris.
‑ Já fizeste algum teste para veres se tens doenças venéreas?
‑ Não ‑ retrucou Chris baixinho.
‑ Muito bem, vamos cuidar disso amanhã. ‑ Pondo a prancheta de lado, Emma aproximou‑se de Chris, que instintivamente se encolheu, e começou a inspeccionar‑lhe OS cabelos. Foi um trabalho minucioso e não ficou um centímetro de couro cabeludo de Chris sem exame. Finalmente, Emma deu‑se por satisfeita. Naquela altura Chris estava visivelmente trémula, os braços cruzados sobre os seios, as articulações dos dedos brancas devido à força que fazia com as mãos sobre os próprios ombros. Miss Lasko deu um passo para trás e franziu a testa.
‑ Porque estás a apertar tanto esses braços? ‑ indagou desconfiada. ‑ Tens alguma marca neles? Deu um passo em frente e tocou no antebraço da jovem.
‑ Não, não ‑ protestou fracamente Chris.
‑ Abre esses braços, menina! ‑ ordenou, aborrecida, Emma.
Tremendo ainda mais, Chris obedeceu, erguendo os braços. Emma examinou‑lhe ambas as axilas para se certificar que não estava a esconder nada.
‑ Está certo ‑ aprovou. ‑ Agora, volta‑te. ‑ Chris, mais trémula do que nunca, mordia os lábios. Era o máximo que podia fazer para não explodir em lágrimas. Nunca se vira tão embaraçada em toda a sua vida. Nunca fora tão humilhada. E não podia fazer mais do que se submeter docilmente a tudo quanto lhe ordenava aquela mulher de olhar duro e por vezes inamistoso. Era um exame degradante, indigno.
‑ Muito bem, muito bem ‑ dizia Miss Lasko, sem que por um só momento a sua voz perdesse aquele ultrajante tom de enfado. Uma onda de repugnância assaltou Chris e sentiu calafrios na espinha. Lutou para não vomitar e fechou, fortemente os olhos, inspirando profundamente.
‑ Vamos, menina, volta‑te. ‑ Oh, aquela voz odiosa, naquele tom de tédio condescendente.
Obedeceu.
Quando sentiu as mãos da mulher tocarem‑lhe nas partes íntimas do corpo, Chris estremeceu violentamente e um arquejo escapou‑lhe dos lábios. As mãos de Lasko, habilmente, percorriam partes do seu corpo que nenhuma pessoa antes tinha tocado. Chris sentia‑se como se a estivessem a violar. Repentinamente, aqueles dedos intrusos afastaram‑se e Chris soltou um torturado suspiro de alívio. Lasko fez um gesto de antipática impaciência.
‑ Ora, menina, sabes muito bem que vocês costumam esconder drogas em todos os buracos que a Natureza vos deu. Muito bem, agora toma o teu banho de chuveiro. - Tremendo de forma incontrolável, Chris deu um passo para o estrado de madeira, sob o chuveiro e Lasko entregou‑lhe um frasco plástico. ‑ Usa isto nos cabelos. Toma banho, enquanto vou buscar uma toalha seca. ‑ Bruscamente a mulher enfiou‑lhe o plástico nas mãos e desapareceu. Chris ficou imóvel, tomada por uma crise de choro. Quentes e grossas lágrimas deslizavam‑lhe pelas faces, pingavam do queixo e iam humedecendo‑lhe os seios.
‑ Vamos, menina, toma lá esse banho. Não podemos ficar o resto da noite aqui ‑ gritou, do lado de fora, a voz de Miss Lasko.
Chris, hesitante, estendeu as mãos para as torneiras, regulando a temperatura da água de modo que esta não caísse nem muito fria nem muito quente, sobre o corpo já macerado por tantas provocações. Quando derramou o conteúdo do frasco plástico sobre os cabelos, sentiu um cheiro penetrante e desagradável. Havia desinfectante naquele sabão líquido que a encarregada lhe entregara e o cheiro desagradável que inundou o banheiro, só serviu para aumentar a sua angústia.
‑ Oh, meu Deus ‑ disse mentalmente. ‑ Ajuda‑me, por favor, ajuda‑me. Será que não há nada ou ninguém capaz de me ajudar neste transe?
O que diriam o pai e a mãe se a vissem assim, naquele estado de profunda degradação? O que faria o pai? A este pensamento, tremeu ainda mais. E a mãe? O que faria ela? Provavelmente choraria e tomaria outra bebida, para se sentir mais segura. E Tom? Se Tom soubesse daquilo não a deixaria ficar ali. Alguém tinha que lhe mandar recado. Precisava de lhe telefonar ou fazer‑lhe chegar às mãos uma carta. Se ao menos pudesse entrar em contacto com o irmão! Ele era a sua única esperança. A única pessoa neste mundo que se preocupava reàlmente com ela. Se ao menos pudesse falar com ele, Tom tomaria imediatamente providência para a tirar dali. O pesadelo terminaria e seria apenas uma questão de tempo conseguir entrar em contacto com o irmão. Sabia que seria assim. Em todo o caso, era uma esperança, ainda que ténue, a acalentar e que a manteria viva.
Ainda consideravelmente trémula, mas, de alguma forma refeita das humilhações da inspecção, Chris saiu com Miss Lasko do edifício principal em direcção ao dormitório, um entre vários construídos a curta distância daquele. Tinha os cabelos molhados e escorridos, caindo colados às faces e ao pescoço até aos ombros. Olhando em torno e examinando a paisagem, Chris achou que o lugar não era nada desagradável e não parecia uma prisão. Contudo, só o facto de saber que toda a área era rodeada por uma alta cerca de arame farpado era suficiente para tirar todo o encanto que o lugar pudesse oferecer.
Os dormitórios propriamente ditos, ocupavam um desses edifícios impessoais que se poderiam encontrar em qualquer bairro de tipo médio. Contudo, quando Miss Lasko meteu a mão no bolso para tirar a chave e abrir a porta, Chris foi imediatamente trazida de volta à sempre presente realidade de que não poderia entrar e sair quando lhe apetecesse. Talvez não chamassem ao lugar prisão. Mas não passava de uma PrisãO
Uma vez no interior do dormitório, ela e Lasko foram cumprimentadas por uma mulher magrinha, com pouco mais de vinte anos de idade.
‑ Olá, Lasko ‑ saudou a mulher.
Miss Lasko virou‑se para Chris, apresentando a mulher.
‑ Esta é a Betty Ramos, nossa conselheira.
Chris fez um leve cumprimento em direcção a Betty Ramos. Esta, embora fosse mais jovem e atraente que Miss Lasko, também exibia aquele ar frio, aborrecido e indiferente, como se se considerasse uma espécie de vigilante de zoo humano.
Betty perguntou:
‑ Queres que eu...
Miss Lasko meneou negativamente a cabeça:
‑ Podes deixar, eu mesmo a levo. - Dirigindo‑se a Chris: ‑ Vem por aqui. ‑ Obedecendo a Miss Lasko percorreram um corredor para o qual se abriam de ambos os lados e a espaços regulares, portas que sem dúvida davam passagem para quartos de dormir. Algumas jovens internas aglomeravam‑se no corredor ou nas portas dos quartos, olhando curiosa e interrogativamente para Chris. Algumas das internadas gritaram saudações de boas vindas. Uma garota negra e grandalhona, que estava parada diante de uma das portas, quando Chris passou, inclinou‑se para a interna que estava a seu lado e segredou‑lhe algo ao ouvido. Da porta seguinte, uma internada de cabelos negros, usando calças de ganga e uma blusa apertada, sorriu amigavelmente para a recém‑chegada.
‑ Eu sou a Denny ‑ gritou a jovem de cabelos negros.
‑ Bem vinda á gaiola. ‑ Chris acenou com a cabeça, em resposta, ainda sentindo o aperto na garganta que a impedia de formar palavras. O que mais a preocupava, no momento, era manter o mesmo passo apressado e elástico de Miss Lasko. Foi, então, que viu Josie, a garota negra que conhecera na Casa de Detenção Juvenil.
‑ Olá, Chris! ‑ gritou Josie. Ao ouvir o seu nome, Christine parou abruptamente e sorriu para a negrinha, sentindo uma alegria inexplicável por ver um rosto familiar no meio daquele mar de fisionomias desconhecidas.
‑ Olá! ‑ respondeu, sentindo que as lágrimas lhe assomavam aos olhos. Bem, afinal de contas já não estava sôzinha. Tinha uma amiga.
‑ Olá, Lasko, põe‑na ao pé de mim ‑ pediu Josie. Naturalmente, Lasko, nem sequer voltou os olhos para a negrinha. Ignorou‑a completamente.
Uma jovem branca, com cabelos loiros e mal tratados, aproximou‑se, com o olhar vago, e perguntou:
‑ Ela é virgem?
De dentro do quarto, alguém imitou o uivo do lobo, o tipo de som que somente um rapazinho interessado por uma jovem seria capaz de produzir.
O sorriso desapareceu dos lábios de Chris que tentou apressar ainda mais o passo, para alcançar Miss Lasko, que estava parada diante de uma porta aberta.
Denny, a garota bonita e de cabelos negros que tinha dirigido palavras amáveis a Chris, aproximou‑se e perguntou:
‑ Lasko, o que foi que ela fez?
Sem se dar ao trabalho de olhar para a jovem, Miss Lasko disse:
‑ Está calada, Denny. ‑ Em seguida voltou‑se para Chris. ‑ Nada de visitar os quartos das outras. Também não poderás receber visitas no teu quarto. Se quiseres conversar, vai para a sala de estar. Não provoques lutas nem aceites provocações. Depois das luzes apagadas, deves manter o mais completo silêncio. Qualquer demonstração de afecto...
Josie, que se aproximara, interrompeu Miss Lasko.
‑ Aqui a gente não pode ter nenhuma amiga. Se te ligares muito a uma das meninas, essa velha de mentalidade suja começa a dizer que és lésbica.
Miss Lasko não tomou o menor conhecimento da interrupção de Josie.
‑ Vais morar com a Janet ‑ disse a responsável, acrescentando: ‑ Ficas com o beliche superior.
‑ A Janet é uma chata ‑ disse Josie, coçando o rosto.
‑ Vais achá‑la muito chata para conversar.
‑ Ela tentou suicidar‑se outra vez ‑ explicou uma garota com um leve sotaque espanhol. ‑ Precisas de estar alerta.
Denny voltou a interpelar a responsável:
‑ Lasko, ela foi apanhada por prostituição?
Lasko, saindo do quarto, respondeu irritada:
‑ Ora, Denny, vai dar uma volta e não aborreças.
‑ Ah, é? ‑ respondeu Denny ‑ E porque é que não vais tu?...
- Denny ‑ interrompeu a responsável, lançando um olhar ameaçador à Jovem: ‑ Vê lá como te comportas.
Em seguida, sem dizer uma única palavra, voltou-se e caminhou em largas passadas pelo Corredor, regressando à sala de estar e deixando as moças sózinhas.
Chris, hesitante, aproximou-se do seu beliche e esforçou‑se por colocar a mala sobre o colchão. Janet estava estirada no beliche inferior. Era uma jovem de compleiçção franzina, de cabelos negros e membros longos, visivelmente índia. Ambos Os pulsos estavam envoltos em ligaduras e o rosto mostrava-se anormalmente Pálido.
- Menina, cheiras mal ‑ murmurou ela.
- aquela porcaria que me mandaram pôr no cabelo - murmurou Chris. ‑ Aquilo.. - Parou no meio da frase,
Percebendo que Janet tinha perdido todo o interesse no que pudesse dizer. Frustrada e magoada pela rejeição, Chris afastou-se sentindo uma Súbita e dolorosa sensação de SOlidão.
Encaminhou-se para a janela. Esta era guarnecida pelo lado de fora, por uma sólida grade de ferro, através da qual pôde ver a paisagem lá fora, limitada pela cerca alta de arame farpado. Deprimida pela visão, afastou-se da janela e caminhou a esmo pelo quarto, procurando prestar atenção a tudo o que existia em seu redor, porque aquele seria, doravante, O seu lar. As paredes eram ásperas e cobertas de grafitos. Começou a lê‑los. Maria e David, 'dizia um. A um canto, uma frase quase apagada dizia: quarto de morte. Ficou a olhar longamente para a inscrição até que os 'Olhos foram atraídos por Outro: A quem quer que entre neste quarto, amo‑te. Precisou de fazer um enorme esforço para conter as lágrimas. Então, ouviu a voz de Miss Lasko gritando da sala de estar:
‑ Atenção, meninas. Dez minutos para fumar.
Mal havia ecoado pela casa a voz da responsável, já um tropel de passos enchia o Corredor, pois as internas corriam para a sala de estar, a fim de aproveitar os momentos de lazer.
Nas conversas e nos passos das Internadas não havia aquela nota de vivacidade e alegria impaciente que se nota nos Colégios de adolescentes, quando estes vão para o recreio. Pelo contrário, em tudo aquilo havia algo de letárgico e enfastiado.
Chris percorreu, também, o corredor e foi até à sala de estar a fim de examinar o ambiente. As raparigas estavam ainda a sair dos seus quartos e o nível do barulho na sala crescia à medida que as internadas iam chegando. As conversas tornaram‑se mais animadas e até, aqui e ali, se soltaram risos. Ouviram‑se reclamações, gritos e eventualmente uma voz mais irritada, tentando fazer‑se ouvir por cima do tumulto generalizado. No corredor, Chris já fora alcançada por Josie e por outra jovem, esta uma mexicana de cabelos negros.
‑ Vem connosco - convidou Josie. - Não faz sentido ficares por aí como uma alma penada. ‑ Enquanto as três se aproximavam da sala de estar, crescia o barulho, inclusive com o som de uma música de rock. Alguém ligou um aparelho de televisão e a algazarra aumentou.
A garota 'de ascendência mexicana, por sinal dona de belas feições, olhou para Chris, curvou os lábios numa expressão de desgosto gaiato e fechou o nariz com o polegar e o indicador, em forma de pinça.
- Safa, menina. A gente percebe quando a cara é nova aqui, por causa desse shampoo mal cheiroso que as desgraçadas mandam pôr no cabelo...
Josie teve um sorriso divertido e apresentou:
‑ Chris, esta é a Ria. Uma ladra das melhores. É ligeira como um raio. Queres um cigarro, Chris? ‑ Chris meneou negativamente a cabeça, enquanto caminhavam.
‑ Afinal o que é que fizeste para estares aqui? - Perguntou Ria.
‑ É uma fugitiva ‑ explicou Josie. Não fez mal nenhum.
Quando o trio penetrou na sala de estar, a primeira coisa que chamou a atenção de Chris foi ver Betty Ramos Ir de internada em internada, com um isqueiro aceso na mão, dando lume para que as jovens acendessem os seus cigarros. Ocorreu‑lhe então que, provavelmente era proibido as Internadas possuir fósforos ou isqueiros. Notou também as expressões divertidas das jovens, enquanto obrigavam a conselheira a ir de uma para outra, acendendo os cigarros, procurando dessa maneira fazer ver à funcionária que esta não passava de uma sua empregada.
Enquanto Josie e Ria faziam Betty acender‑lhes os
cigarros, Chris olhou em torno avistando uma recém‑chegada à sala que lhe chamou imediatamente a atenção. Era
uma jovem de compleição grosseira, cabelos louros, olhos penetrantes e queixo quadrado. Andava com uma arrogância tipicamente masculina e encarou Chris de um modo sensual e provocador. Chris sentiu imediatamente nascer no seu intimo uma hostilidade inexplicável em relação à jovem que se limitou a passar por ela e a piscar‑lhe o olho.
‑ Aquela ali é a Moco ‑ sussurou Josie. ‑ Toma cuidado com ela.
Ainda se sentia uma estranha, a despeito dos esforços de Josie para a pôr mais à vontade. Sem interesse especial por nenhuma das internadas, vagueou pelo salão, até que encontrou um canto mais ou menos isolado, onde se deixou ficar por alguns momentos. Foi depois reunir‑se a Josie e a Ria. Moco encaminhava‑se lentamente para ela, mas o facto não a preocupou muito. Subitamente Chris sentiu uma mão forte a agarrar‑lhe o pulso e a puxá‑la para uma das portas abertas. Gritou, de susto e de dor, mas ninguém lhe prestou atenção. Era como se nada estivesse a acontecer e ela acompanhasse de livre vontade quem a puxava.
Lembrou‑se então dos avisos da responsável: Nada de provocar brigas.. ‑ Receando ser acusada de provocar distúrbios, ao mesmo tempo que reconhecia a superioridade física de Moco, Chris decidiu deixar‑se puxar para fora da sala e entrar num quarto, onde foi empurrada rudemente para a frente, gritando de dor. Temporariamente livre do vigoroso amplexo dos dedos de Moco em torno do pulso, Chris voltou‑se e encolheu‑se diante da visão da loura avançando na sua direcção. Ergueu a mão num gesto de defesa mas Moco agarrou‑a pela blusa e obrigou‑a a recuar aos tropeções, até ao fundo do quarto. Só então, aproximando ameaçadoramente a sua face da de Chris, lhe rosnou:
‑ Ouve o que te vou dizer, rapariga. E ouve com atenção. Aqui, o chefe sou eu. Entendeste? Eu mando nesta merda e aqui todos fazem o que a Moco diz.. ou... ‑ sorriu de modo sinistro e passou significativamente a mão pela garganta.
Chris estava tão aterrorizada que não fez a menor tentativa para se livrar da outra, que continuava a empurrá‑la através do quarto, pegando‑a pela blusa.
‑ Que é que dizes a isto, hem? Queres bater‑me? Então, vamos. Bate‑me. Tenta bater‑me. - A voz de Moco era rouca e ameaçadora. A atarracada e máscula jovem soltou uma curta gargalhada de desafio. Depois, voltou a insistir. ‑ Anda, vamos, bate‑me. Bate‑me se tens coragem.
Pelo canto dos olhos, Chris viu que outras jovens tinham entrado no quarto e seguiam atentamente a cena. Presumiu que entre elas estavam as duas companheiras de quarto de Moco. Deveriam ser as duas que circulavam em torno, com ar ameaçador. Uma delas, com olhos parados, estava a rir‑se loucamente, as narinas dilatadas, a respiração em curta e ofegante. Moco empurrou Chris de encontro à parede, onde ela se encolheu aterrorizada. Com um sentimento de alívio, Chris viu que Josie e Ria entravam, também, no quarto, com os rostos sombrios de preocupação. Tinham medo de Moco, mas não queriam que ela maltratasse Chris.
‑ Eh ‑ gritou Josie ‑ Pára com isso, Moco.
‑ Sim, pára com isso ‑ repetiu Ria, com voz trémula de medo. ‑ Ela acaba de chegar.
Chris, demasiado aterrada para se mover, continuou encostada à parede, imóvel e com o rosto lívido.
‑ Bate nela, bate nela ‑ gritava, excitada, a rapariga de olhos parados.
‑ Pára com isso Crash! ‑ Gritou Josie correndo para a companheira de Moco. Exactamente nesse momento, Moco estava a contrair os lábios, para dar um beijo a Chris, que tentava fugir com a cara, ao mesmo tempo que ondas de náusea lhe percorriam o corpo. Finalmente, Moco conseguiu beijar Chris na face direita. Considerou‑se satisfeita. Soltou a blusa de Chris e sorriu triunfantemente. Tremendo, Chris voltou o rosto contra a parede.
Mudando completamente de atitude, Moco pousou gentilmente a mão no ombro de Chris e disse‑lhe ternamente:
‑ Tu és muito bonita, Chris.
‑ Ela é horrível ‑ berrou Crash.
‑ Horrível és tu, bruxa ‑ berrou Josie.
Ignorando a presença das outras, Moco Pediu gentil mente a Chris.
- Vira‑te. - Chris hesitou e depois deu lenta mente meia‑volta, para fazer face ao seu verdugo
- Tens namorado? ‑ Perguntou Moco.
Incapaz de encarar a Outra jOvem, Chris limitOu-se a menear negativamente a cabeça.
‑ E namorada, tens? - insistiu Moco.
Mais uma vez Chris meneou desesperadamente a cabeça, tentando reter as lágrimas
- Queres ser minha amiguinha? - Propôs Moco.
Chris ainda se sentia incapaz de falar. Isso era tudo O que Podia fazer Para não explodir num pranto sentido. Moco sorriu
- traduzindo nesse sorriso não só a atracçãO que sentia por Chris, como também o Prazer sádico que lhe Proporcionava exercer a Sua força física e a prePonderância moral Sobre criaturas mais fracas sobre isso.
Afastou-se de Chris, prometendo:
‑ Depois a gente fala
Josie Colocou amigavelmente o braço em torno do ombro de Christine e cOnduziu-a para fora do quarto e convidou-a gentilmente:
‑ Vem comigo!.
- Eh, esperem um minuto ‑ Ordenou Moco.
Josie hesitou ao mesmo tempo que O seu rosto assumia uma expressão de alarme. Moco estava parada no meio do quarto, com as mãos na cintura.
- josie, Conta ‑lhe aquilo das bolinhas ‑ ordenou Moco a Josie olhando de Moco para Chris, explicou, como lhe
fora ordenado:
‑ Quando O Pessoal da administração te der PUulas, um calmante, por exemplo, não as engulas, prende-as debaixo da lingua e, depois, entrega‑as à Moco.
Ainda nervosa, Olhou novamente Para Moco, em busca de aprovação, por ter recitado uma lição bem decorada.
Consciente do seu poder sobre as demais internadas, Moco arreganhou Os lábios num sorriso de aprovação.
- A Moco costuma voar alto ‑ explicou, fanfarroneando. Crash riu‑se contente com a demonstração de respeito que a amiga recebia de todas as outras internadas.
Chris ansiava Pelo momento de sair do quarto e ao
deixá-lo, em companhia de Ria e de Josie, suspirou aliviada.
As três dirigiram‑se directamente para a sala de estar. Um disco de rock girava no gira‑discos e a gravação era estridente ao ser reproduzida nos altifalantes. Duas jovens, completamente alheias a tudo o que as rodeava, dançavam, hipnotizadas pelo ritmo da música. Josie e Ria conseguiram conduzir Chris para um sofá e fizeram‑na sentar entre as duas.
‑ Ouve, Chris ‑ dizia Josie. ‑ Tens que te afastar da Moco, o mais que puderes, percebeste? Já vi aquela rapariga agarrar numa cadeira e rachar a cabeça a outra rapariga com a maior das facilidades, como se estivesse a fazer apenas isto ‑ estalou os dedos para exemplificar a facilidade com que a outra agredia as companheiras. ‑ Não tem respeito a nada nem a ninguém.
‑ Não faz a menor questão de sair daqui ‑ lembrou Ria. ‑ Também não tem medo da solitária. ‑ Em seguida, olhando através da sala, gritou para uma das garotas que dançavam: ‑ Eh, gorducha, lembra‑te de que esse cinto é meu.
Josie estava prestes a dizer qualquer coisa, quando viu
a bonita Denny entrar na sala. Apontando para a recém‑chegada, que sorria de modo agradável, murmurou:
‑ Toma cuidado com a Denny. Ela já esteve no hospício.
Chris encarou Ria e depois Josie perguntando hesitante:
‑ É verdade o que elas nos dizem, que daqui a alguns meses nos podemos ir embora?
Ria exibiu um sorriso amargo.
‑ Para quê, para ir para onde?
Precisamente nesse momento, entrou na sala uma negra alta e robusta:
- Vem cá, Josie ‑ desafiou ela. ‑ Vamos resolver o nosso assunto.
Josie coçou a cara com ar preocupado.
‑ Oh, Jax, agora não. Deixa isso para depois.
‑ Que é que foi, crioula ‑ ironizou a negra
recém-chegada. - Estás com medo?
Fez‑se um súbito silêncio na sala, quebrado apenas pela música do gira‑discos. Josie percebeu que todos os olhos estavam fixos nela. Em ar de desafio, encarou a outra:
‑ Muito bem, Jax, vamos lá.
Uma expressão de tédio espalhou‑se no rosto de Ria.
- Josie vai ganhar ‑ declarou a mexicana confiante.
Chris franziu a testa, intrigada, incapaz de adivinhar o que iria acontecer. As palavras eram familiares. Mas o significado que adquiriam naquele momento, não fazia sentido para ela.
Josie voltou‑se para ela e murmurou:
- Ouve Chris. Fica de vigia, lá na porta do corredor e avisa a gente se a Miss Lasko aparecer. Certo?
Aquilo tudo era incompreensível para Chris. Esquecen do a missão de vigia, concentrou toda a sua atenção nas duas jovens negras que aspiravam os cigarros, até que as pontas ficassem em brasa viva. A sua curiosidade, contudo, transformou‑se em horror quando viu que as duas estavam, lenta e deliberadamente a encostar as pontas vermelhas dos cigarros à' pele nua dos braços. Fascinada e horrorizada, Chris seguia a cena com desgosto. Em breve, o enjoativo odor a carne queimada chegou‑lhe às narinas. Josie mordeu os lábios ao mesmo tempo que os seus olhos ficavam vidrados de dor. O suor escorria pelo rosto de Jax, até que esta não aguentou mais e afastou o cigarro.
‑ Desgraçada! ‑ murmurou entre dentes, com as lágrimas a misturarem‑se com bagas de suor que lhe perlavam a face. Subitamente, as duas enfrentaram, atónitas, a intrusão de Miss Lasko, cuja voz ressoou ameaçadora pela sala:
‑ OK, Josie; OK, Jax. Quarto trancado para as duas.
‑ As jovens correram para a responsável, ao mesmo tempo, implorando, negando e desculpando‑se.
‑ Lasko, por favor...
‑ Ora, Lasko, a gente não estava a fazer nada de mal...
‑ Sei muito bem o que é que vocês duas estavam a fazer. E não quero saber mais dessa história de ver qual é mais valente, dentro do meu dormitório. Já as avisei antes. Para os quartos, as duas.
Subitamente, Josie virou‑se para Chris, com os olhos cheios de ódio:
‑ Maldita sejas, Chris. Porque não ficaste a vigiar?
Antes de sair da sala, deu a Chris um súbito e rude empurrão. Apanhada completamente desprevenida, Chris cambaleou. Contudo não foi o golpe físico que a abalou. Muito mais do que este, o que lhe contorcia o rosto, numa expressão de dor, era o golpe emocional da perda da amiga. Da rejeiÇão mais do que da agressão. Fora abandonada pela única pessoa que, em toda a sua provação, lhe demonstrara amizade e interesse. Aquilo culminava um longo dia de angústia. Fugiu da sala, mal podendo conter as lágrimas. Entrou a correr no quarto, subiu para o beliche e lá ficou a soluçar até que, exausta, adormeceu.
Ajustando o transmissor‑receptor que tinha preso ao cinto, Barbara Clark, a professora, ficou a sorrir no umbral da porta da sala de aula, observando as jovens internas que, em fila, entravam na sala de aula, espalhando‑se pelas cadeiras, conversando e sorrindo. Era uma sala grande e informal, com a parede do fundo ocupada por um quadro negro e por um mapa‑mundi. Era, além disso, clara e arejada e, ao contrário do que acontece nas escolas públicas normais, não havia carteiras dispostas rigidamente em filas. As cadeiras com uma extensão do braço para que os alunos pudessem apoiar os cadernos e livros, estavam dispostas sem qualquer ordem, espalhadas na sala ao sabor da vontade das suas ocupantes.
Moco entrou, olhou em torno e foi direita ao banco do piano, onde se acomodou. Dedilhou o teclado, executando um improviso "allegro", que revelou as suas qualidades inatas de executante, que poderiam ser aproveitadas se a jovem se dedicasse seriamente ao estudo da música. Crash entrou logo de seguida e foi sentar‑se ao lado de Moco, passando os braços pelos ombros da outra.
Sentando‑se longe das outras jovens e completamente alheia à música e às conversas em seu redor, uma jovem começou a tricotar, concentrando‑se tanto no seu trabalho que dava a impressão de estar noutro planeta.
Chris escolheu uma cadeira perto do fundo da sala e Olhou em redor ansiosamente. Ficara muito feliz ao verificar que Barbara Seria a Professora, lembrando-se do sorriso que esta lhe endereçara quando se tinham cruzado no corredor do edifício da administração, no dia da Sua chegada. à medida que examinava demoradamente o rosto de Barbara, mais se convencia que a Professora seria a pessoa em quem Poderia confiar inteiramente. Alguém que a entenderia. Que compreenderia Os seus problemas. Quando a Última interna entrou na sala, Barbara fez uma rápida contagem e retirando o
rádio-transmissor do cinto, apertou o botão de transmissão e anunciou:
- Estão presentes, as onze. - SOltou O botão, recolocou o emissor‑receptor na cintura e dirigiu-se Para o estrado
onde se encontrava a Sua mesa.
Denny, que estava Perto do estrado, lançou imediatamente os braços em torno de Barbara e Pediu:
- Mãezinha, deixa-nos hoje jogar às cartas.
Barbara, sorriu gentilmente, livrou-se do abraço da jovem e acomodando-se por trás da sua mesa, respondeu:
- Talvez mais tarde. - Olhou em redor e perguntou - Onde está a Carla?
- Está na solitária - informou Ria. - Ontem, ela quis fugir. Uma jovem mulata com um Penteado africano bem
cuidado, Sorriu ironicamente e comentou:
- Palerma, nem conseguiu aproximar-se da cerca. A Josie está fechada no quarto.
- a Ann? - indagou Barbara, voltando a percorrer a sala, com os Olhos.
- Está no salão de beleza - respondeu a jovem que tricotava.
- Quer ficar bonita - murmurou Moco.
- Met-te na tua vida - admoestou Barbara.
- Você também não é nenhuma Miss América, Bab - retorquiu Moco.
Barbara, obviamente acostumada a discussões como aquela, cruzou simplesmente Os braços e observou:
- ora, Moco, este é o meu uniforme de Professora. Devias ver‑me quando saio para passear. A observação foi saudada com risadinhas, por todas as garotas. Aproveitando‑se da vantagem que tinha obtido, Barbara fez mais uma pergunta:
‑ Onde está a Jax?
‑ Quarto trancado, também ‑ anunciou Denny. Fazendo uma pausa, encarou Barbara e pediu, novamente. ‑ Mãezinha, vamos ter mesmo que estudar hoje?
‑ Isso mesmo ‑ resmungou Moco no banco do piano.
‑ Dê‑nos um dia livre, hoje. ‑ E inclinou‑se esperançosamente para a frente.
Ignorando completamente Moco, Barbara voltou‑se para Chris.
‑ Tu és a Christine, não é?
Chris corou e fez que sim com um gesto da cabeça. Sendo o seu primeiro dia de aulas como interna, sentia‑se inquieta e insegura sobre o modo como deveria agir. As outras pareciam tão seguras de si. Temia dizer alguma coisa errada.. agir de modo errado, exibir a sua vulnerabilidade.
‑ Christine, a Virgem ‑ guinchou Crash, olhando em torno, para colher as gargalhadas de aprovação.
‑ Se ela é virgem, é a única nesta sala ‑ observou Bea.
‑ O que queres dizer com esta sala? ‑ retorquiu enfaticamente Ria. ‑ Em toda esta maldita escola, deverias dizer.
Crash voltou novamente a sua atenção para Barbara.
‑ Então, Mãezinha, vamos ou não vamos ter hoje o dia livre? ‑ Ao fazer o pedido, as faces rechonchudas da jovem tremiam.
‑ Isso ‑ aprovou Bea ‑ vamos só brincar.
Percebendo que estava a crescer entre as jovens um sentimento de indisciplina, Barbara compreendeu que era chegado o momento de impôr de novo a sua autoridade. Primeiramente, tentou adoptar uma posição mais composta e assumiu um ar sério.
‑ Agora, oiçam vocês todas. Já conversámos o suficiente. Vamos agora estudar um pouco, quer vocês gostem quer não.
No meio do irromper das queixas, gemidos e suspiros, Christine manteve‑se completamente imóvel e alheia, considerando‑se completamente estranha ao meio. Instintivamente percebeu que se demonstrasse o mais ligeiro sinal de interesse pelas aulas, isso a afastaria das outras. Um simples movimento errado poderia provocar o antagonismo geral, tornando a sua vida ainda pior do que já era. Era a mesma coisa que mudar de residência e ser nova na rua. Alheia ao que estava a acontecer em seu redor, estava perfeitamente consciente de que a mantinham sob constante observação, se quizesse fazer parte do grupo, deveria seguir as regras não escritas. Ao mesmo tempo, desejava conquistar a amizade da professora. Via‑se, pois, numa situação muito difícil. Havia também aquela história da virgindade. Seria, realmente, a única virgem dentre as internas? Quando frequentava a escola pública do bairro, as meninas falavam muito acerca disso, mas, nunca abertamente na sala de aula, como faziam naquela. Sentia‑se imensamente desconfortável, porque um problema biológico somente seu, estava a ser abertamente debatido por uma dezena de raparigas desconhecidas.
Barbara não esperou que cessassem as queixas para impór definitivamente a sua autoridade. Apanhou sobre a mesa um ponteiro e declarou com voz alta e firme, para se fazer ouvir no meio do burburinho:
- Hoje teremos aula de geografia. - Em seguida, usando o ponteiro para indicar um ponto no mapa‑mundi, perguntou: - Que país é este?
Houve um momento de silêncio. Depois, algumas tossiram, outras pigarrearam e houve um inquieto arrastar
de cadeiras. Virando‑se para Denny, Barbara perguntou directamente:
- Denny, que país é este?
A interpelada franziu a testa, assumiu um ar de profunda concentração e respondeu, hesitante:
- Alemanha?
Barbara tentou ocultar o seu aborrecimento.
- Vamos, Denny, vamos. Sabes muito bem qual é este país. Tenta outra vez.
Denny assumiu uma expressão de alheamento e desviou os olhos da professora.
- Deixa lá - resmungou Barbara. Voltando‑se para a companheira de Moco, no banco do piano, perguntou: - E tu, Crash? Sabes que país é este?
- Imediatamente, a face rechonchuda de Carsh assumiu um ar de completo alheamento, tal como fizera Denny.
‑ Esqueci‑me ‑ murmurou em voz baixa.
Chris olhava espantada. Aquelas raparigas seriam assim tão burras? Safa, aprendera aquilo na primária! Não obstante, algo no seu íntimo a prevenia para que não respondesse. Quando Barbara voltou a sua atenção para ela, Chris moveu‑se na cadeira, visivelmente incomodada.
‑ E tu, Christine. Sabes que país é este? ‑ a voz de Barbara traía uma nota de alegria e esperança.
Então, impulsivamente, Chris respondeu:
‑ França.
E uma nuvem de apreenSão obscureceu o breve momento de alegria por ter satisfeito a esperança de Barbara.
Arrependeu‑se por ter respondido. Os olhos das outras internas, voltadas para si, eram poços de ódio, queimando‑lhe a pele e abrindo‑lhe buracos na carne.
Barbara sorriu e moveu o ponteiro ao longo do mapa.
‑ E este aqui? ‑ indagou, dirigindo‑se ainda a Chris.
‑ Espanha ‑ respondeu Chris sem reflectir.
‑ Bela porcaria ‑ rosnou Moco, ferindo as teclas do piano e tirando algumas notas numa escala cromática. Chris encolheu‑se na cadeira, desejando que a terra se abrisse aos seus pés e a engolisse.
‑ Que diferença faz isso? ‑ perguntou Denny, com os lábios torcidos numa expressão de desprezo.
‑ Certo, ‑ apoiou Bea. ‑ Para que é que temos que conhecer essas porcarias de países estrangeiros? Não teremos nunca a mínima oportunidade de lá ir
‑ E mesmo que tivéssemos, quem se importaria? ‑ sibilou depreciativamente Denny.
Barbara examinou demoradamente os rostos das jovens reunidas na sala e percebeu não só o extremo desconforto de Chris, como também a súbita tensão que poderia degenerar numa situação incontrolável. A professora raramente perdia a compostura, mas, quando o fazia, mostrando‑se irritada, isso produzia entre as jovens um choque paralisador, fazendo com que se voltassem a comportar bem. A despeito da indiferença e quase hostilidade com que as internas procediam, Barbara sabia que todas elas a respeitavam e que junto dela achavam um pouco de humanidade e compreensão, sentimentos difíceis de encontrar no meio do imenso batalhão de servidores dos tribunais juvenis dos Estados Unidos.
- Denny, és capaz de dizer com o que é que te importas? - perguntou Barbara.
- Em ficar grande.
‑ Não quero mais ouvir falar dessas coisas aqui nesta sala, meninas ‑ preveniu Barbara, com voz seca. ‑ Basta de brincadeiras e de conversas. ‑ E começou a andar de um lado para o outro, olhando‑as com firmeza
‑ Queremos apenas crescer. Arranjar um tipo. Ter um arranjo. ‑ Disse a professora imitando a expressão da voz de Denny. ‑ É nisso que vocês pensam. Querem saber uma coisa? Já estou por aqui - e levou a mão espalmada à garganta ‑ com essa conversa. Farta de ouvir vocês passarem o dia a dizerem palermices.
Bea, aparentemente preocupada com a atitude de Barbara, perguntou:
‑ O que é que tens, mãezinha?
Barbara cessou o seu nervoso caminhar, inspirou profundamente e respondeu:
‑ Nada, estou apenas um pouco cansada. Só isso. Por hoje chega de estudos.
Girando abruptamente sobre os calcanhares, a professora aproximou‑se da parede do fundo da sala e começou a enrolar o mapa‑mundi, exibindo, se a pudessem ver, um profundo abatimento, pois sentia‑se triste e frustrada. Oh, meu Deus, se ao menos eu pudesse aproximar‑me destas raparigas ‑ pensava Barbara enquanto enrolava maquinalmente o mapa. Se ao menos pudesse aproximar‑me de uma delas. Tornar‑me sua amiga.
Voltou‑se para examinar a jovem Christine. Tão vulnerável e sozinha, naquele grupo de garotas endurecidas pela vida, hostis a tudo e a todos. Barbara gostaria de poder, de alguma forma preservar Chris. Preveni‑la contra os perigos da hostilidade ao meio. Contudo, sabia que, colectivamente, as internadas teriam mais força do que ela, a professora. Poderiam, usando a força e a chacota, obrigá‑la a entrar naquela concha dura de indiferença hostil e cinismo da qual não havia saída possível. Precisava de encontrar, entre as internadas, uma jovem a quem se ligasse. Que a aceitasse, apesar de fazer parte do grupo desdenhosamente denominado pelas jovens "as velhas". Talvez, apenas talvez, Christine fosse a jovem através de quem pudesse tentar a aproximação.
Barbara dominou o seu aborrecimento, resolvida a terminar a aula com uma nota positiva. Colocou‑se diante da mesa, apoiando‑se nela e disse:
‑ Muito bem, por hoje chega de perguntas. Mas vou aproveitar o tempo que ainda nos resta para lhes contar uma história. A história de uma moça humilde, nascida numa fazenda, que se juntou a um exército como soldado combatente e chegou a comandar esse exército.
Bea, com os olhos brilhando de interesse, inclinou‑se para a frente e perguntou:
‑ Mãezinha, o que nos vai contar é só uma história da carochinha, ou aconteceu, de verdade?
‑ É uma história verdadeira, sobre uma moça que viveu há muitos e muitos anos. Chamava‑se Joana e vivia em França.
Chris, percebeu imediatamente qual seria a história que a professora iria contar e por isso, adoptou uma atitude mais descontraída, mais calma, tranquilizando‑se. E aos seus ouvidos soaram as palavras enunciadas por Barbara e que, encadeadas, narraram, uma vez mais, a conhecida história de Joana D'Arc. à medida que Barbara prosseguia na sua narrativa, mais descontraída Chris se sentia. Recostou‑se no espaldar da cadeira e ficou a olhar para fora, através da janela. Em breve, estava perdida nos seus próprios pensamentos. Lentamente, estes derivaram para Tom, seu irmão. Recordou todas as coisas que costumavam fazer; como se divertiam; os laços que os uniam e que ninguém poderia romper. E por alguns momentos, o tempo foi um elemento irrelevante. Na verdade deixou de existir, até que o estridente retinir da campainha, anunciando o fim da aula, a despertou para a feia realidade que a rodeava. Endireitou‑se na cadeira, como faziam as outras raparigas, preparando‑se para se levantar e sair imediatamente. Um ruído indistinto tomou conta da sala, enquanto as internas procuravam a porta da saída, quais avezinhas presas na gaiola debatendo‑se em busca da liberdade. à medida que convergiam para a porta, Barbara contava‑as e tirava o transmissor‑receptor do cinto para anunciar a saída das jovens.
Christine foi a última a sair da sala. Quando transpôs
a porta e se cruzou com Barbara, a professora pôs‑lhe
a mão no ombro.
- Christine - disse suavemente a professora.
Chris hesitou e voltou os olhos para encarar a professora.
‑ Sim? ‑ respondeu apreensivamente.
‑ Estive a examinar o teu boletim escolar e vi que as tuas notas são excelentes, apesar das faltas. Por que razão faltavas à escola? Problemas em casa?
Chris baixou os olhos, ficando a examinar as biqueiras dos sapatos.
- Sim ‑ respondeu finalmente. A sua voz pouco mais era do que um murmúrio.
O transmissor‑receptor no cinto de Barbara estalou e do pequeno altifalante saiu uma voz metálica.
‑ Onde está a Parker?
Barbara levou o aparelho à altura dos lábios, apertou o botão de transmissão e explicou:
‑ Está aqui, a conversar comigo. Já a vou mandar de volta. ‑ Repondo o aparelho no lugar perguntou a Christine: ‑ Gostarias de conversar comigo, sobre isto, um dia destes?
Chris fez um gesto de indiferença com os ombros, e voltou a cara para o lado a fim de olhar para as outras jovens que se afastavam. Desejava ardentemente revelar os seus pensamentos mais íntimos àquela mulher tão bela e tão amável. Contudo, algo a fazia fechar‑se sobre si mesma. Barbara que a observava atentamente, nada dizia. Chris gostaria de falar, mas, uma força desconhecida selava‑lhe 'os lábios. Obstinadamente, mantinha os olhos fixos no grupo de jovens que se afastava. Uma delas ‑ Denny ‑ parou e voltou‑se para olhar para ela. Havia algo de particularmente ameaçador e zombeteiro no olhar de Denny, provocando em Chris um estremecimento involuntário. Mas o incidente foi muito rápido e Denny voltou‑se para continuar o caminho, juntamente com o grupo das internas.
‑ Conheces, com certeza, o Mapa‑Mundi ‑ observou Barbara, tentando fazer Christine falar. ‑ Gostas de Geografia?
‑ Gosto ‑ respondeu Christine.
‑ Queres viajar pelo Mundo, quando cresceres?
‑ Claro. ‑ Ao dar essa resposta, a voz de Christine assumiu uma tonalidade mais vibrante e toda a sua fisionomia se iluminou. ‑ Sabe, o meu sonho é crescer e ser hospedeira do ar!
Barbara, ao ouvir aquilo, sentiu nascer no seu peito um sentimento de esperança. Agora, sim, havia algo em que trabalhar.
‑ Hospedeira Christine, apresente‑se para o voo rumo a Denver ‑ disse Barbara imitando o acento profissional das anunciadoras dos aeroportos, cujas vozes se fazem ouvir através dos altifalantes, espalhados pelas gares de passageiros.
Apesar de tudo, Christine sorriu.
‑ Isso, Chris ‑ disse Barbara animadamente. ‑ Não pares. Sorri. Sorri sempre.
- Oh, meu Deus! ‑ disse Barbara para si própria. - Para esta ainda há esperança. Se ao menos me pudesse aproximar dela. Fazê‑la minha amiga.
Passaram‑se vàrios dias, durante os quais Cristine lentamente se começou a adaptar à rotina da escola. Ainda ficava nervosa sempre que via Moco por perto. Quanto a Denny, havia em relação àquela rapariga de traços bonitos uma sensação indefinida que a fazia sentir‑se inquieta. Lembrava‑se do que lhe contara Josie sobre Denny. Tinha estado internada algum tempo num estabelecimento para tratamento de doenças mentais. Ás vezes, Chris ficava a imaginar o que teria feito Denny para ser considerada como louca. Evidentemente, a jovem não se ajustava aos seus padrões preconcebidos de comportamento para os loucos. Ainda assim, Denny era uma criatura estranha.
Havia também Miss Lasko. Ou Lasko, simplesmente, como lhe chamavam as raparigas. Ela não era, evidentemente, o monstro que Chris tinha imaginado, depois da brutal recepção que a responsàvel pelo dormitório lhe dispensara no primeiro dia de internamento. Contudo, não era decerto uma pessoa digna de confiança, como o era, evidentemente, Barbara. Barbara era diferente. Por isso gostava da professora. Não só Barbara era uma boa professora como também era bonita, simpática, amável, compreensiva, enfim alguém com quem se podia falar. Mas o que mais confortou Chris, naqueles dias dificeis de adaptação, foi o facto de Josie, ao terminar o seu período de isolamento no quarto, ter voltado à convivência no dormitório sem demonstrar qualquer ressentimento. Josie era uma criatura criada ao deus‑dará, pelas ruas de uma grande cidade e compreendia perfeitamente que Christine, nunca tendo visto aquele desafio de valentia, se deixasse absorver pelo espectáculo, em lugar de vigiar a chegada da responsável. Embora mantivesse alguma amizade com Josie e, por extensão com Ria, a companheira de quarto de Josie, Chris evitava cuidadosamente qualquer comprometimento maior com as outras internas.
Crash era de facto uma débil mental e ninguém, a não ser Moco, conseguia falar com ela. Tanto quanto Chris podia entender o relacionamento das duas, Crash faria tudo o que Moco mandasse, sendo, na realidade, uma extensão de mãos e dos pés desta. Por isso, Chris receava a dupla mais do que qualquer outra coisa, na escola. Jax não era má pessoa, mas vivia o tempo todo às voltas com Denny e o instinto dizia‑lhe que quanto menos se envolvesse com Denny melhor seria. De certa maneira, Chris tinha pena de Paula. Esta procurava decididamente isolar‑se e visto que, em certa medida, se sentia ainda intrusa e portanto com tendência para se afastar do grupo, decidiu respeitar escrupulosamente os desejos da jovem, pois, instintivamente, percebia que Paula era ainda mais infeliz do que ela própria.
Outra jovem cujo comportamento constituiu uma agradável surpresa, foi Janet, a sua companheira de quarto. É certo que no primeiro dia tinham entrado em choque mas, gradualmente, passando horas e horas sôzinhas, no mesmo quarto, começaram a gostar uma da outra. A india era uma criatura soturna, sempre a cismar e, como Chris acabou por descobrir, tremendamente envergonhada pelo seu estado de gravidez. Por isso tentara, por duas vezes, suicidar‑se. Rapidamente, Chris aprendeu a deixar a índia com os seus pensamentos quando esta desejava isolar‑se, e falar, quando Janet demonstrava vontade de conversar. Não se atrevendo sequer a pensar na possibilidade de consequências desagradáveis, evitava escrupulosamente fazer pergun tas de carácter pessoal, mas, sempre que Janet se dispunha a falar de si própria, Christine escutava‑a com delicada atenção. Em troca, revelava sobre si mesma aquilo que julgava conveniente e não comprometedor.
Pouco depois do almoço, certa tarde, quando podia gozar de uma espécie de recreio, Chris caminhava sôzinha pelo fundo do terreno, perto dos campos de jogos, onde duas equipas de raparigas disputavam acirradamente uma espécie de futebol de campo. Chris não nutria qualquer interesse mais acentuado por actividades desportivas e continuou o seu passeio até chegar ao campo de vôlei, onde estava a decorrer uma partida. Apreciou o jogo por algum tempo e depois vagueou a esmo pelo relvado até chegar a um local onde grupos de internas conversavam e apanhavam sol. Não querendo fazer parte de nenhum dos grupos, decidiu prosseguir o passeio. Cerca de dois metros à frente, havia um conjunto de baloiços que as raparigas desdenhavam usar. Lembranças de criança passaram rapidamente pela mente de Christine. Como gostava de baloiçar quando era garotinha! Para cá e para lá, sentadinha no banco e bem segura nas correntes. Lembrou‑se de como costumava fechar os olhos e fazer de conta que um dia o baloiço se soltaria das cordas e ela sairia voando, voando, pelos céus, como um pássaro grande e gracioso, até dar a volta ao Mundo, pairando sobre mares, cidades, montanhas, matas, desertos. Aquele era um dos seus pensamentos de faz-de-conta preferidos. Por um momento, pareceu‑lhe que toda uma existência tinha transcorrido, para ela, desde que brincara pela última vez em baloiço. Sorriu para si própria e, incapaz de controlar o impulso jovial, correu para um dos baloiços. Sentou‑se no banco, agarrou as correntes que o suspendiam na travessa superior, deitou a cabeça para trás e fechou os olhos.
Contraindo apropriadamente Os músculos, começou a impulsionar o baloiço.
Em alguns instantes, todo o velho encanto da meninice voltou. A qualquer minuto lançar‑se‑ia no espaço, voando bem alto, por cima daquela horrível cerca de arame farpado. Sim, seria uma águia a pairar muito acima das nuvens, brincando com os raios do Sol e cavalgando os ventos.
Começaram a fazer‑se ouvir ruidos à sua volta. Prestou atenção. Eram gargalhadas. Risos, dichotes. Abriu os olhos.
Ladeando‑a noutros baloiços, estavam Josie e Ria, balançando‑se o mais alto possível, gritando, rindo e desfrutando com delícia aqueles momentos de total abandono. Pela primeira vez desde que cruzara os portões da escola, Chris sentia‑se bem. Os raios do Sol eram mornos e acariciantes. A brisa afagava‑lhe as faces e revolvia‑lhe os cabelos. De olhos abertos, olhou para um lado e depois para outro, sorrindo para Josie e para Ria. Não muito distante delas, sentada na relva, estava Janet, que lhes sorria alegremente. A índia ergueu a mão e fez um aceno em direcção a Chris. Esta, com os cabelos revoWidos pelo vento, soltou momentâneamente uma das mãos com que segurava as correntes e correspondeu ao aceno.
De repente, houve naquele momento de puro encanto uma nota discordante. Alguém gritava escarninhamente:
‑Eh, eh!
Olhou para onde provinha a voz. Denny lá estava, com as mãos na cintura, encarando duas das suas amigas que corriam rapidamente em direcção aos baloiços vagos. Outras raparigas começaram também a correr para os baloiços. Em breve, todos eles estavam ocupados, oscilando como pêndulos, enquanto que as raparigas que não queriam andar de baloiço ou não tinham conseguido um baloiço ficavam em torno rindo, gritando e empurrando as companheiras, esperando a vez de também participar na brincadeira. Sômente Denny se mantinha afastada, deitada de costas na relva, uma expressão enigmática nos olhos negros, os belos braços a contraírem o rosto moreno, onde só Deus sabia que tristes pensamentos existiam. Chris observava Denny. Mas usava para isso o canto dos olhos, fazendo de conta que se não interessava pela outra, porque havia alguma coisa na expressão de Denny que lhe fazia calafrios na espinha. Porque seria que nunca se sentia segura naquela maldita escola?.
Quando o recreio terminou, o modo como as monitoras tentavam reunir as raparigas em grupos segundo os dormitórios, deu a Chris a impressão de que estava a assistir a um rodeio, com os vaqueiros a correr em torno do gado rebelde, para o separar em lotes. Quando finalmente as monitoras reuniram todas as internas num grupo, em colunas de duas, fizeram‑nas marchar, por pelotões, para os respectivos dormitórios. Quando se aproximavam do seu edifício, Chris avistou, parada em frente à porta, o vulto de Lasko tendo nas mãos o eterno transmissor‑receptor. Uma espécie de sexto sentido fê‑la voltar por momentos a cabeça. Denny estava exactamente atrás de si, Chris lutou para não revelar o susto que apanhou. Denny ria‑se. Para uma pessoa estranha aquele sorriso poderia parecer amigável e encorajador. Mas havia algo que encheu de medo o coração de Chris. Nos olhos da jovem havia uma luz fria e ameaçadora. Chris, hesitante, sorriu sem saber bem o que fazer. Reduziu o passo para esperar que Denny a alcançasse e juntas caminharam para a porta do dormitório.
‑ Como te sentes? ‑ perguntou Denny. ‑ Estás a gostar da jaula?
Chris fez um gesto de ignorância com os ombros.
‑ Não sei ‑ respondeu, usando a cautela que aprendera a empregar em todas as conversas com as demais internas, salvo Josie, Ria e Janet.
‑ Oh, sentir‑te‑ás melhor aqui dentro quando eu te apresentar ao Johnny ‑ disse Denny com um sorriso cheio de segundas intenções.
Christine encarou‑a atónita. O que queria Denny dizer com aquilo? Espantada com o oferecimento, Chris reflectiu, lembrando‑se de que na escola não havia rapazes.
Jax, que se aproximara, ainda ouviu parte da frase de Denny referindo‑se a Johnny.
‑ Oh! ‑ disse a negra a sorrir. ‑ Ele gosta muito de conhecer as calouras.
‑ Quem é o Johnny? ‑ indagou preocupada Christine, tentando ocultar a sua confusão.
Denny dirigiu‑lhe um sorriso estranho e fugaz e ergueu uma das sobrancelhas num gesto zombeteiro.
‑ Não te preocupes, linda. Ele está mesmo bem para ti.
‑ Vamos, meninas, vamos ‑ soou, aguda, a voz de Lasko. ‑ Vamos entrar. Querem ficar a tarde toda aí fora?
Chris nada mais disse e entrou na residência, indo directa para o seu quarto. Janet já estava no seu beliche, dormindo. Por isso, Chris começou a mover‑se com cuidado a fim de não acordar a companheira de quarto. Além disso, não se sentia com disposição para conversas. Ficou a pensar em quem seria esse tal Johnny.
Seria algum misterioso estranho que, à noite, se esgueirava para dentro do recinto da escola, ocultando‑se nos quartos das internas? Parecia inverosímil. Mas ali, tudo era possível. Pressupunha‑se que naquela instituição as jovens seriam preparadas para ocupar um lugar no contexto social e se tornariam boas cidadãs. Porém, a avaliar das correntes subterráneas que fluiam em torno dela, Chris estava inclinada a crer que os objectivos declarados jamais eram os realmente atingidos. Ali ela aprenderia tudo o que não deveria ser feito e como fazer esse ilícito com o mínimo de risco.
Subiu para o seu beliche e estirou‑se no colchão ficando a olhar, vagamente, para as paredes cobertas de grafitos.
O sol doirado da tarde inundava o quarto de uma luz amarela e morna que emprestava um brilho estranho a todas as coisas. Chris voltou a pensar no misterioso Johnny. Talvez fosse o apelido de uma garota que ainda não tivesse aparecido. Alguma igual a Moco. Chris estremeceu involuntariamente e encolheu‑se. Ora, com certeza só me querem assustar. Por certo é alguma espécie de prova à qual são submetidas as novatas.
Resolveu, pois, manter‑se calma. A pior coisa que poderia fazer era mostrar medo. Se elas descobrissem qual era a sua fraqueza iriam explorá-la. E a sua única protecção, o seu único escudo, era manter‑se calma. Indiferente, se possível. Esconderia as suas emoções e não lhes daria a menor demonstração de temor. A resolução teve o condão de a fazer sentir‑se melhor e de algum modo, mais descontraída. Era melhor dormir um pouco até à hora do jantar. Este ainda demoraria a ser servido e meia hora de sono seria melhor do que nada. Dormir era a coisa mais próxima de se sentir livre que podia imaginar. Fechou os olhos e, alguns minutos depois, estava mergulhada num sono leve e calmo, sem sonhos.
A despeito do sono da tarde, naquela noite Chris sentia‑se mais cansada do que o costume. Apesar de ter experimentado naquele dia, o que mais se poderia aproximar da satisfação, desde que transpusera os portões da escola, sentia‑se estranhamente deprimida. Tentou assistir a um programa de televisão na sala‑de‑estar mas foi‑lhe impossível concentrar a atenção nas imagens exibidas no "écran".
A despeito da presença de Miss Lasko, algumas das jovens envolveram‑se numa discussão sobre que canal de televisão deveria ser sintonizado, e a última coisa que Chris desejava, naquele momento, era participar de uma polémica. Ainda lhe faltava auto‑confiança suficiente para impor pontos de vista. Não pensava em ir conversar com Josie e Ria, pois as duas estavam no quarto e receava o que lhe poderia acontecer se desobedecesse aos regulamentos e fosse apanhada por Miss Lasko a fazer visitas a outros quartos. Janet logo depois do jantar, voltara a dormir e as únicas à mão eram Denny, Crash e Jax, as últimas pessoas do mundo com quem Chris pensaria em conversar. Também receava que se ficasse ali mais tempo, Moco acabaria por aparecer. Se isso acontecesse, elas certamente a atacariam outra vez com ou sem Miss Lasko.
Chris olhou em torno e viu que Crash tinha trazido um trabalho de agulha e estava a discutir pontos de tricot com Miss Lasco, que explicava à interna como fazer determinado ponto. Vendo Miss Lasko suficientemente absorvida, Chris decidiu que seria uma óptima ideia tomar um banho quente e ir para a cama, sem que ninguém a notasse.
O banheiro estava vazio o que provocou em Chris um profundo sentimento de alívio a despeito dos ladrilhos frios se mostrarem pouco convidativos. Decidiu tomar um banho rápido e sair imediatamente. Com essa resolução em mente, pendurou a toalha no toalheiro, despiu‑se rapidamente, empilhou as roupas num banquinho, no extremo oposto aos chuveiros e entrou numa das casas de banho. Abriu as torneiras de água quente e fria a fim de graduar a temperatura. Encontrando um ponto ideal, colocou‑se sob a água desfrutando aquele luxo, um dos poucos que ainda lhe restavam naquela vida miserável que levava, enjeitada pela sua própria família. O barulho da água a cair do chuveiro era o único ruido no recinto e isso contribuiu para aumentar a sensação de isolamento e de intimidade. Intimamente, agradecia não ser obrigada a usar, outra vez, aquele repulsivo shampoo desinfectante, com que a tinham obrigado a esfregar na cabeça quando fora admitida na escola. Por alguns momentos perdeu a consciência de si e do lugar, sob os fios de água morna e das acariciantes nuvens de espuma do sabonete.
Antevendo o momento de ir para a cama dormir, enxaguou‑se rapidamente, fechou as torneiras, pegou na toalha e começou a enxaguar‑se. Naquele momento estava totalmente descontraída e desprevenida, ansiosa por voltar para o seu quarto, onde mergulharia num sono pesado que duraria toda a noite, libertando‑a dos regulamentos, das grades e das cercas.
Suficientemente enxuta para vestir o pijama, envolveu o tronco na toalha e começou a atravessar o banheiro até ao banquinho onde deixara as suas roupas. Subitamente, parou apavorada. Diante dela, barrando‑lhe o caminho para as roupas, estavam Denny e Moco. Inspirou breve e profundamente. Campainhas de alarme retiniam‑lhe no cérebro.
As raparigas estavam entre Chris e as roupas e demonstravam mais do que obviamente que não tinham a menor intenção de a deixar passar. O coração começou a bater aceleradamente e torrentes de adrenalina foram injectadas no seu sangue, estimulando‑lhe as mínimas fibras do sistema nervoso. Tentou recuar para a casa de banho e fechar a porta, quando, pelo canto dos olhos, viu alguém emergir de uma das casas de banho ao lado daquela que tinha ocupado e agarrá‑la por trás. Uma mão grande e negra selou‑lhe os lábios e um braço poderoso rodeou‑lhe o peito, parecendo uma barra de ferro. Tentou gritar, mas, tudo o que conseguiu emitir foi um gemido abafado e que não passou da garganta. Tentou lutar para se libertar, esperneando violentamente e atingir a sua captora, que instintivamente sabia ser Jax. Enquanto se debatia e esperneava, Moco agarrou‑lhe ambos os braços, ao mesmo tempo que emitia pequenos rugidos, que mais se assemelhavam a sons emitidos pela garganta de um animal do que por um ser humano.
Puxaram‑na através do balneário e forçaram‑na a deixar‑se cair de costas sobre os ladrilhos frios do vestiário. Apesar do desespero com que lutava, era-lhe impossível libertar‑se das suas captoras, bem maiores e mais fortes do que ela. Aterrorizada, viu que Denny avançava na sua direcção, tendo nas mãos um grande bastão azul de plástico. Mais uma vez, Chris tentou gritar por socorro mas, a mão de Jax continuava a impedir‑lhe firmemente que emitisse qualquer som. Moco sem dizer palavra, com um movimento coleante de serpente, abaixou‑se e puxou violentamente a toalha que ainda envolvia o tronco e as pernas de Chris. Com isso, deixou‑a nua e vulnerável.
A frieza dos ladrilhos parecia queimar‑lhe a carne. Denny, sorrindo sarcasticamente, ajoelhou‑se entre as pernas de Chris, que Moco obrigava a abrir e brandiu o bastão de plástico diante dos olhos aterrorizados da sua vitima.
‑ Eh, Chris ‑ disse Denny docemente, fazendo longas pausas entre as palavras. ‑ Quero que conheças Johnny.
Com as forças multiplicadas pelo terror, Chris conseguiu libertar um dos braços, presos por Moco e com a mão livre tentou arranhar Jax.
Consciente de que alguém se colocava firmemente entre as suas coxas, impedindo‑a de voltar a cruzar as pernas para se defender, Chris sentiu o terror multiplicar‑se e, a despeito da mão que lhe selava os lábios, gritou e gritou até que lhe pareceu ter reduzido as cordas vocais a tiras.
Com um brilho selvagem nos olhos, Denny inclinou‑se para a frente e repentinamente, Chris experimentou uma gélida sensação entre as pernas e em seguida, abruptamente, uma insuportável onda de dor, que se irradiava da sua vagina, pareceu submergi-la num mar de negra inconsciência. Ondas de agonia emanavam‑lhe do sexo e percorriam‑lhe todo o sistema nervoso central até que lhe iam explodir no cérebro. As vagas de dor tinham o mesmo ritmo que os movimentos do braço de Denny. Chris sentiu ser dividida ao meio, como se a estivessem a esquartejar apenas pelas pernas. Um golpe com uma faca afiada, no peito, seria mais misericordioso e menos doloroso do que aquela agonia que a fazia padecer. Algo morno aqueceu‑lhe as virilhas, o períneo e o anus. Compreendeu que o sangue brotava da vagina, cujo hímen fora selvaticamente dilacerado por aquele objecto perfurante. Desejou morrer. Que a sua dor e a sua vergonha se dissolvessem no misericordioso negrume da morte.
‑ Muito bem, agora chega! ‑ Era a voz de Moco ordenando a Denny que parasse com as brutais introduções daquele bastão de plástico na sua vagina.
Gemendo doloridamente, Chris ficou imóvel, com os olhos fechados, a fim de evitar a odiosa visão de Denny empunhando o bastão, com a ponta ensanguentada e preparando‑se para novo ataque.
‑ Já te disse que chega ‑ repetiu Moco com firmeza. Os seus olhos pousaram na imóvel e violentada Christine, com horrorizada fascinação.
Denny recuou lentamente, e as três atacantes esgueiraram‑se em silêncio do balneário, como se fossem aparições malignas voltando às sombras, depois de um nefando trabalho. Entretanto, a vitima daquele brutal e inusitado ataque jazia de costas nos ladrilhos frios do vestiário, os membros contorcidos em posições estranhas, como se fosse uma boneca quebrada.
Finalmente, Chris reabriu os olhos, e as coisas voltaram lentamente à nitidez normal. Dobrando‑se sob os espasmos de choque, soluçava como um filhote ferido. Á medida que recuperava a consciência, aumentavam as dores.
Respirava curta e rapidamente, como alguém em estado de indizível terror. Finalmente, percebeu que estava sozinha. Que a tinham abandonado e que a provação terminara. Isso infundiu‑lhe uma nova reserva de forças e permitiu‑lhe lutar para se pôr de pé. Conseguiu, finalmente, levantar‑se cambaleando.
Tremia tanto e sentia‑se tão fraca que precisava de se apoiar às paredes para não voltar a cair. Aos poucos, sons de música e de risos, vindos de muito longe, começaram a penetrar‑lhe na consciência embotada para outras sensações que não fosse a dor lancinante entre as pernas.
Naquele instante, Chris sentiu‑se para sempre liberta das sensações e reacções da infância. Ali estava ela, dolorida, mas muito além das lágrimas. Muito além, inclusive, do ódio.
Um pequeno segmento da sua alma tinha sido arrancado à força do seu ser e destruido inapelâvelmente.
Nos dias que se seguiram, Chris retraiu‑se tão ostensivamente que Josie e Ria ficaram preocupadas com o que poderia ter acontecido à amiga. Nem uma só palavra foi pronunciada sobre a violação a que a tinham submetido no balneário. Nem mesmo quando Chris se encontrou com as suas assaltantes se fez qualquer menção ao incidente, circunstância que ela, bem mais do que as outras, agradecia. O horror do simples pensamento de admitir ter sido vítima de tão grande humilhação era maior do que a recordação do facto em si. Não sentia apetite e durante as refeições brincava abstractamente com a comida no prato.
Certa ocasião, Miss Lasko notou o facto e fez um comentário. Isso foi o bastante para que Chris tentasse engolir o alimento. Mas sentiu‑se profundamente nauseada, tendo que lançar mão de toda a sua força de vontade para não vomitar diante das outras internas. Se não fosse o facto de poder beber leite, acabaria por morrer de inanição. Sabia que estava a perder peso, que a sua compleição minguava e que tinha as faces profundamente cavadas. Mas não se importava com aquilo.
E havia também as noites. Antes de ser violentada o sono era o seu único refúgio contra o pesadelo da realidade. Agora, um novo pesadelo se introduzira no santuário do seu descanso. E, por isso, na escuridão da noite, jazia imóvel na cama, lutando para manter as pálpebras abertas, a fim de não cair no sono, com medo de ser assaltada por imagens odiosas e lembranças aterradoras. Não conseguia, contudo, evitar completamente o sono. Era constantemente vítima de sobressaltos, não por causa de pesadelos, mas por causa de receios subconscientes de que Os pesadelos lhe povoassem o sono.
Embora não fosse capaz de situar Os seus receios dentro de um quadro definitivo, tinha identificado inconscientemente o maior terror que ia, lentamente, cavando um ninho dentro do seu ego. Esse terror inominado era, na verdade, o medo de perder a razão.
Á medida que os dias passavam, nada parecia melhorar para Chris. Não importando o quão denodadamente ela procurava erradicar da sua mente as horríveis lembranças daquela noite, a persistente recordação daquela humilhação desenrolava‑se vezes sem conta no seu cérebro, como um rolo de fita cinematográfica a ser constantemente exibido na tela da memória.
Mãos que a arrastavam através do balneário para a área comparativamente mais ampla dos vestiários, onde a obrigavam a deitar‑se de costas no ladrilho gélido; o acre odor almiscarado dos corpos das suas atacantes, os rugidos animalescos de Moco, os rostos perversos e contorcidos daquelas que lhe queriam fazer mal e, acima de tudo, a dor lancinante... o desamparo. Era um pensamento ao qual se via presa, apesar da sua vontade e da sua determinação. Por isso, era obrigada a reviver o ultraje na tela da memória, repetidamente, vezes sem conta, pois tudo aquilo estava profundamente gravado no seu cérebro e, finalmente, acabou por fazer parte do seu ser, como os braços, as pernas, o rosto...
Tornou‑se medrosa. Lugares sombrios e cantos escuros passaram a ocultar terrores indiscritíveis, sentimentos que nunca antes tinha experimentado. Qualquer som inesperado, por mais leve que fosse, fazia‑a saltar. Respirava curta e dificilmente, como se sofresse de falta de ar. O simples facto de passar diante da porta do balneário fazia com que o coração lhe batesse apressadamente. O que fora refúgio, tornou‑se campo de provação. Quando estava nua sob os jactos mornos do chuveiro, qualquer ruído, qualquer barulho, qualquer palavra, a faziam pular, amedrontada.
Experimentou fechar os olhos, mas os rostos contorcidos das suas atacantes bailavam através das pálpebras cerradas, enquanto o gorgolejar da água, correndo para os ralos, se transformava em regougos viciosos das vozes das suas atormentadoras. Mesmo quando abria os olhos e se via sozinha no banheiro, o medo era tão grande que por várias vezes correu, nua e molhada, para o seu quarto, deixando um rasto de pingos de água à sua passagem.
Durante o dia, qualquer toque no seu corpo, mesmo o amigável pousar de mãos de Josie ou de Ria nos seus ombros a fazia encolher de medo. Era uma reacção que se tornara instintiva e ocorria todas as vezes, embora conscientemente Chris lutasse para expulsar esses desarrazoados sentimentos de terror. Desesperadamente procurava acalmar‑se, descontrair‑se e participar normalmente na rotina diária do seu dormitório. Tentava participar em tudo o que dela esperavam. No entanto, tornava‑se cada vez mais arredia. Nas horas de lazer, começou a tecer complexas teias de fantasias. Costumava imaginar que os pais lhe apareciam, cheios de arrependimento, por a terem rejeitado e mandado para aquele horrível lugar. Tomavam‑lhe carinhosamente as mãos e levavam‑na para casa, prometendo que doravante as coisas voltariam ao normal. Tudo então se tornava belo. Mais bonito. Perfeito. A mãe deixaria de beber. O pai deixaria de lhe bater e de brigar. A casa viveria cheia de risos e de amigos que a viriam visitar. Sentar‑se‑iam durante horas e ficariam a conversar baixinho, dando risadinhas, ouvindo discos ou fazendo coisas divertidas, mesmo que fossem disparatadas. E era assim que as coisas deveriam ter sido em sua casa. Nunca porém o tinham sido. Mas, no futuro, prometia a si própria, seriam.
Noutro dos seus devaneios, o seu irmão Tom aparecia e levava‑a para a sua casa, a fim de viver com ele. E então, era tal como fora quando crianças. Faziam todas aquelas coisas de outrora. Apesar de Tom já ser um homem casado, nada, na realidade, mudara. A esposa de Tom tratava Chris como uma irmã e os três viviam uma existência idílica, na qual os dias eram povoados de risos, de sol, de alegria e de amor.
Chris sabia que tudo aquilo não passava de fantasias. Mas, ao mesmo tempo, eram refúgios para os quais podia correr. Mesmo que o menor fragmento de qualquer delas se transformasse em realidade, era algo para ser ciosamente guardado, um raio de luz a iluminar a sua escuridão, uma esperança a que se agarrar. Nalguns dias, porém, até mesmo o sonhar acordada se lhe tornava impossível. E estes dias eram os piores de todos.
Parte de cada dia de Chris, como interna, era dedicada ao cumprimento de tarefas. Comparecia às aulas ministradas por Barbara, participava nos trabalhos do salão de beleza do dormitório, onde lavava e penteava os cabelos das outras raparigas e as ajudava a maquilharem‑se para que se tornassem mais bonitas, ainda que apenas umas para as outras.
O salão de beleza era uma pobre imitação dos Institutos que havia nas cidades. Era guarnecido com móveis velhos, equipamento em segunda mão e espelhos quebrados.
Uma tarde, Chris estava a pentear os cabelos de uma interna miúda e pálida que graças a Deus nada tinha para lhe dizer. Executava a sua tarefa em silêncio e por isso Chris podia dedicar o seu tempo, enquanto as mãos executavam os movimentos necessários, aos seus sonhos favoritos.
Então, repentinamente, Jax apareceu no salão. A simples visão daquela jovem negra, alta, forte e que tão cruelmente a tratara naquela horrível noite, fez com que Chris começasse a tremer e a sentir os joelhos bambos, a despeito de todos os esforços que fazia para se controlar. Lutou para evitar os olhos de Jax. A negra percebendo a profunda inquietação de Chris, tentou executar as suas tarefas com redobrada atenção, também evitando olhar para a jovem branca e procurando ficar fora do seu caminho. Agora, contudo, a tarde estava totalmente estragada para Chris
Vendo que o estado de Chris não melhorava com os seus cuidados, Jax aparentemente aborreceu‑se e começou
a aborrecer a vida da outra jovem. Propositadamente começou a pôr‑se no caminho de Chris interferindo em tudo o que esta fazia. Chris odiava cada aproximação de Jax e por alguns momentos conseguiu, depois de uma luta heróica, dominar os tremores e as lágrimas que teimavam em lhe toldar os olhos castanhos, grandes e luminosos, outrora claros e agora cobertos por um perpétuo véu de tristeza.
O que Christine achava pior em toda a situação era o facto de que não havia ninguém com quem se pudesse abrir. Contar o que lhe tinha acontecido, as suas preocupações, os seus temores, aliviar a alma, enfim.
A ideia das consequências que lhe poderiam advir se contasse o que lhe acontecera a alguma das vigilantes, à responsável ou mesmo a Barbara aterrorizava‑a. Até mesmo uma palavra sobre o caso a Josie, Ria ou qualquer outra rapariga poderia ter resultados imprevisíveis.
É verdade que elas poderiam compreender a sua necessidade de desabafar, ouvir a confidência e calar‑se. Mas, e se não o fizessem?
Se encarassem tudo aquilo como uma boa piada e se pusessem a rir, esquecendo a história? Por várias vezes, Chris ponderou sobre a conveniência de contar às suas duas amigas mais chegadas o que lhe acontecera e, dessa forma, aliviar um pouco a tensão interior em que vivia. As duas poderiam ajudá‑la a aumentar a crise. Mas, e se não fossem tão compreensivas como ela esperava? A incerteza sobre a reacção de Josie e Ria acabou por lhe travar a língua. Poderiam não ver o caso como uma piada e sim como uma inegável demonstração de fraqueza. Então, censurá‑la‑iam por ser tão fraca, tão cobarde, por não ter lutado, por não ter resistido. Na verdade, Chris nutria a impressão de que as amigas reconheciam que ela estava a passar por uma crise, algo que teria que ser ela a resolver. A certeza de que elas estavam ali prontas para a ajudar a repor as coisas no seu devido lugar, depois que ela conseguisse assentar a própria cabeça, já era um conforto. Se havia alguém em quem podia confiar, esse alguém era Janet, sua companheira de quarto. Mas, com Janet grávida e sentindo‑se mal todo o tempo, já tendo tentado o suicídio, Chris achou que não seria boa ideia.
Além disso, quando reflectia a este respeito, lembrou‑se de que ela e Janet nunca tinham, realmente, falado de coisas tão íntimas. Compreendiam‑se e respeitavam‑se mutuamente nas suas necessidades de intimidade e isolamento.
E tinham chegado ao ponto em que uma simples troca de olhares era suficiente para lhes proporcionar um volume de informações bem maior que na hora da conversa. Mas Janet tinha problemas de sobra e não era justo aborrecê‑la com os seus. Além do mais, o que Janet poderia fazer, senão ouvi‑la e lastimá‑la.
De todos os membros da administração da escola, Barbara Clark era a única que dedicava alguns momentos do seu tempo a Chris, a única que se preocupava com a jovem.
O seu comportamento era demasiado óbvio para ser ignorado, embora fosse parte do trabalho de todas as funcionárias observar e avaliar o comportamento de cada uma das internas. Barbara estava convencida de que algo de muito sério perturbava Christine Parker. Contudo, aprendera por amarga e dura experiência que fazer um movimento errado, no momento inoportuno, talvez cedo demais, poderia ser desastroso. Resolveu seguir atentamente a evolução da profunda crise intima que Christine atravessava, com toda a cautela, porque estava convencida de que se havia naquela escola uma jovem que poderia ser salva para a sociedade, essa jovem era Chris.
Á medida que os dias passavam, as suspeitas de Barbara evoluiam para uma séria preocupação. Observou como Chris reagia e se comportava sempre que Moco, Jax, Denny ou Crash estavam presentes. Era mais do que evidente que Chris as temia e que se sentia extremamente inquieta e desconfortável na presença do quarteto. Tentou reunir os pedaços de observações para ver se chegava a uma conclusão. As tendências lésbicas de Moco eram uma fonte de preocupação para toda a administração da escola e a dedicação canina de Crash à sua companheira de quarto agravava ainda mais o quadro. Denny, vivendo nos limites de uma psicopatia, constituia, por si só, um outro problema. Juntando‑se a Moco e a Crash tornava as coisas ainda piores. Denny, contudo não mostrava qualquer hostilidade aberta a Chris. Talvez por Denny e Jax serem tão chegadas, a grosseria natural de Jax era ampliada pela passividade da sua companheira de quarto. Havia, contudo, naquele quebra‑cabeças que Barbara procurava montar, uma peça desaparecida. A figura não se completava. Evidentemente, a situação criada entre aquelas internas era um factor rotineiro. Problemas semelhantes tinham surgido no passado. A maioria dos casos era provocada pelos naturais desajustes das novas internas. Com o passar dos dias, porém, todas se adaptavam aos padrões de comportamento esperados e a vida no dormitório transcorria tão suavemente como poderia ser num reformatório para raparigas difíceis.
A esperança de Barbara era a de que Chris estivesse a passar por um período de ajustamento com as suas naturais dificuldades. Até ao momento em que pudesse ganhar a confiança de Chris, ao ponto de a jovem lhe abrir o coração, Barbara decidiu que a única coisa a fazer era dar tempo ao tempo.
Vários dias se passaram e não notou qualquer mudança palpável para melhor no comportamento de Christine. Preocupada com a falta de mudanças positivas na jovem, Barbara começou a imaginar se não seria melhor provocar Christine, através de referências subtis, diante de todo o grupo, em lugar de tentar conversar com ela em particular.
Naquela manhã, especialmente, a atmosfera na sala de aula era tensa porque as jovens estavam à espera que o período de estudos fosse inteiramente tomado por alguma aula muito maçadora. A professora tinha aprendido que sempre que as jovens se mostravam hostis e avessas à ideia de uma aula completa, a mudança súbita no programa, deixando‑as participar de jogos e brincadeiras, em vez de estudar as lições, produzia nelas um alívio tão grande que tendiam baixar as suas defesas naturais. Quando abriam a guarda chegavam à catarsis emocional nunca atingida por outros meios.
Barbara não deu o menor indício de qual seria a sua intenção naquele dia. Ficou parada no umbral da sala de aula, transmissor‑receptor em punho, contando as jovens à medida que estas entravam e depois, anunciando quantas estavam presentes. Em seguida, com gestos seguros e eficientes, fechou a porta.
Depois, como de costume, voltou‑se para encarar a classe, recostando‑se na mesa, de modo informal e esperando pacientemente que as internas dispusessem as cadeiras, cada uma ao seu gosto pessoal, ao mesmo tempo que, sombriamente, se preparavam para o pior. Como de costume, Moco e Crash apossaram‑se do banco do piano. Crash ficou à espera do que Moco faria, seguindo com os olhos de adoração todos os movimentos da loura e abrutalhada jovem. Repentinamente, Crash voltou a atenção para Barbara. Inclinou‑se para a frente e apoiando os cotovelos nos joelhos, sustentou o rosto com as palmas das mãos.
Chris escolheu a cadeira mais afastada, junto à parede do lado oposto à porta de entrada. O rosto não demonstrava qualquer expressão e os olhos estavam inchados de choro e de noites sem dormir.
Depois de ouvir o usual coro de pigarros, tosses, arrastar de cadeiras e risadinhas, Barbara examinou as garotas e afastou‑se da borda da mesa. Caminhou até à janela, ficou a olhar para fora por alguns instantes e depois regressou ao seu lugar.
Inclinando‑se ligeiramente para a frente, perpassou um olhar brilhante pela sala e propôs:
‑ Eh, meninas, está um lindo dia hoje, portanto, que tal deixarmos as lições de lado e brincarmos um pouco? Amanhã, voltaremos às aulas normais, com ânimo mais alegre. Que tal? Gostam da ideia? Vamos, meninas, vamos, cheguem as vossas cadeiras mais para perto da minha mesa.
A reacção foi exactamente aquela que tinha previsto. Houve uma explosão de suspiros de alivio, a tensão desapareceu e surgiram murmúrios de alegre expectativa.
‑ Oh, mãezinha, és mesmo boa ‑ exclamou Denny juntando as mãos.
Bea abriu os lábios grossos num sorriso que mostrou os seus dentes alvos e fortes e puxou a cadeira mais para a frente. Crash pareceu emergir da sua habitual letargia. Deu uma olhadela em direcção a Moco em busca da aprovação da companheira e exclamou:
- Caramba, Bab, isto vai ser bestial.
Só Chris parecia alheia a tudo, olhando para um ponto no espaço, presumivelmente entre a porta e o quadro preto.
Janet com o ventre já desenvolvido pela gravidez, recostou‑se mais confortavelmente na sua cadeira e começou a tricotar.
A sua presença agiu como um catalizador e a conversa enveredou para o tema gravidez, desdobrando‑se sobre a maternidade e as suas consequentes implicações.
Durante algum tempo, tudo pareceu correr de maneira satisfatória quando, de repente, Moco ergueu a cabeça, arqueou desdenhosamente os lábios e rosnou:
‑ Crianças. Quem as quer, afinal de contas? São todas uma chatice! A gente tem que passar a vida a dar‑lhes de comer. A limpar o xixi e o cocó que fazem e toda essa porcaria. Não percebo como se pode dizer que é bom ter um desses filhinhos da puta de nariz ranhoso à nossa volta, dentro de casa, sempre a choramingar.
Janet parou repentinamente de tricotar, mas manteve os olhos presos no trabalho que tinha nas mãos. Barbara experimentou uma sensação de futilidade. Tudo o que fizera até aquele instante fora realmente inútil. Moco era uma força deletéria entre as jovens. Um elemento altamente negativo. Teve uma pontada de ódio. Pois pior para as outras ‑ pensou.
‑ Ninguém está a dizer que precisas de ter filhos, Moco ‑ disse a professora em voz tensa e irónica. ‑ O caso é que, quando os tiveres, ou se os tiveres, lhes deves dar uma oportunidade. Precisas de ter a certeza de que os teus filhos não cometerão os mesmos erros que tu. Ou que os teus pais cometeram. Deverás fazer com que os teus filhos se sintam amados e desejados...
- Merda para isso tudo, Bab ‑ disse Josie desdenhosamente. ‑ Foi exactamente o contrário disso o que a minha velha me fez. Ela só dizia que eu só prestava para ser..
‑ Não precisas de acreditar naquilo que a tua mãe te dizia, Josie ‑ interrompeu Barbara, cerrando os punhos.
‑ Quem te disse que precisas de acreditar em quem não te diz que és tudo para ela?
‑ Mas foi a mãe dela que disse que ela não prestava para nada ‑ repetiu sarcasticamente Ria.
‑ Não precisas de acreditar numa coisa dessas. ‑ Insistiu Barbara, lutando contra a vontade de as sacudir até que um pouco de bom senso lhes entrasse naquelas estúpidas cabeças.
‑ Vocês precisam de pensar no facto de que estão aqui por coisas que nem mesmo são consideradas como violações da lei, como, por exemplo, faltar à escola, fugir de casa...
‑ Então deixa‑nos ir embora ‑ desafiou Ria dando um pulo para ficar de pé' diante de Barbara.
‑ Eu gostaria de fazer isso ‑ disse Barbara com uma expressão de frustração no olhar. - Mas, para onde iriam vocês? Para quê saírem? Se tivessem pelo menos um objectivo, uma aspiração, uma finalidade. Meninas procurem ter uma finalidade na vida.
Voltou‑se ligeiramente e concentrou a atenção em Christine. Esta continuava sentada no canto mais afastado, com os olhos perdidos no espaço, completamente alheia à discussão em torno de si, como se vivesse num mundo à parte.
‑ Chris, por exemplo, - disse Barbara ‑ quer ser Hospedeira do ar. ‑ Os olhos da professora brilhavam desafiadoramente quando disse às outras. ‑ Estão a ver? Isto é ter um objectivo.
‑ Eh, mãezinha ‑ disse Josie ‑ eu gostava de ser domadora de leões. ‑ Ao mesmo tempo, levantou‑se e começou a manejar um chicote imaginário, fazendo largos gestos com o braço direito.
Os seus gestos foram saudados com risadas gerais. Moco continuou a olhar sonhadoramente por cima do piano e disse repentinamente como se fosse arrancada de um sonho:
‑ Pois eu. gostava de montar a cavalo e cavalgar, cavalgar...
‑ Até Tahiti e todas aquelas ilhas cheias de garotas bestiais ‑ acrescentou sarcasticamente Bea.
Apesar do receio que todas elas tinham a Moco, as risadas brotaram espontaneamente. As coisas não se estavam a passar exactamente como Barbara tinha planeado, mas, enfim, estava a provocar algumas reacções nas raparigas. Estimuladas, estavam a dar asas às suas imaginações.
Chris que se encontrava exactamente fora da linha de visão de Barbara, bastante para a direita, quando a professora voltava a sua atenção para a classe ergueu‑se como se estivesse em transe, exibindo uma expressão vazia no olhar. A princípio ninguém lhe prestou atenção.
‑ Muito bem, ‑ dizia Barbara à classe ‑ quem quer ser professora?
Estava tão preocupada em manter o diálogo em andamento que o barulho feito por Chris, arrastando a cadeira ao erguer‑se, lhe passou despercebido.
Como uma sonâmbula Chris começou a caminhar em direcção à porta. Andava lentamente, sem pressa, mas com determinação.
As jovens começaram a discutir entre si a proposta levantada por Barbara.
‑ Quem é que quer ser uma coisa assim tão estúpida?
‑ dizia Bea. Quando olhou em torno de si, à procura de
aprovação, viu Chris encaminhando‑se para a porta. Parou
por uns momentos e, depois, apontando com um dedo para
a jovem, gritou para as outras: ‑ Eh, meninas, onde será
que ela pensa que vai?
Barbara virou‑se, com o rosto súbitamente contorcido numa máscara de apreensão e alarme.
‑ Chris? ‑ Chamou. - Que estás a fazer, Chris?
Em vez de responder, Chris parou, hesitante, diante da maçaneta, tremendo convulsivamente. Então, como se fosse impulsionada por uma força estranha, abriu a porta com um gesto brusco e saiu.
‑ Chris ‑ tornou a gritar Barbara. ‑ Pelo amor de Deus, para onde é que vais?
Inútil, a pergunta. Era como se a tivesse feito a um autómato. Dando mostras de não ter prestado atenção a uma única palavra dos apelos da professora, Chris apressou o passo e começou a afastar‑se, rápida e resolutamente do edifício. Barbara, automaticamente, pôs a mão direita sobre o transmissor‑receptor e saiu a correr atrás de Chris. Postas em movimento pelo súbito desenrolar dos acontecimentos, as jovens levantaram‑se apressadamente dos seus lugares, chegando a derrubar as cadeiras, na pressa de se aglomerarem junto à porta; depois de Barbara ter passado, mantendo‑se todas juntas e excitadas, prevendo o drama que sempre se segue aos acontecimentos inesperados.
‑ o que é que ela está a fazer ‑ gritou Josie, sem esperar qualquer resposta.
Aumentando a distância dos seus perseguidores, Chris correu ainda mais, enquanto Barbara se apressava para a alcançar. A jovem sentia o coração pulsar cada vez mais ao mesmo tempo que aumentava o latejar nas suas têmporas. Concentrou toda a atenção na alta cerca de arame farpado, que se elevava à distância.
‑ Chris! ‑ gritou Barbara, ao mesmo tempo que corria desalmadamente alcançando por fim a fugitiva e segurando‑a pelo braço. Chris, contudo, com um repelão, libertou‑se da mão da professora.
‑ Não posso mais ficar aqui ‑ gritou, com os olhos cheios de lágrimas. Abriu a boca como se fosse dizer mais alguma coisa, mas, finalmente, preferiu calar‑se. Engoliu em seco e reiniciou a corrida para a cerca, mais decidida do que nunca a alcançá‑la e transpô‑la.
Barbara tentou segurar Chris outra vez:
‑ Chris, esta não é a melhor maneira de sair daqui. Estás apenas a piorar as coisas. Por favor, deixa‑me falar‑te um pouco. Talvez eu possa ‑ A voz da professora morreu‑lhe na garganta ao compreender a inutilidade das suas palavras, pois vira Chris disparar em corrida. Finalmente Barbara conseguiu falar de novo: ‑ Por favor não faças isso a ti própria
‑ gritou Barbara, tentando alcançar Chris. A jovem, porém, limitou‑se a aumentar a velocidade, os longos cabelos flutuando ao vento, chorando tão intensamente que as lágrimas lhe toldavam a visão. Corria às cegas, para a cerca que sabia estar adiante.
As internas, algumas reunidas no umbral, outras correndo atrás de Barbara, começaram, naquela altura a soltar gritos de encorajamento. Agiam como uma claque organizada de futebol incentivando o desportista preferido, que escapava com a bola, directamente para a baliza adversária.
‑ Vai, Chris, vai ‑ gritava Josie com a voz rouca de emoção.
Ria por seu lado, gritava, excitada:
- Corre, Chris. Corre!
Crash, cuja face rechonchuda e avermelhada vulgarmente se mostrava vazia de emoções, deixou‑se contagiar pelo entusiasmo geral e gritava, toda excitada:
‑ Vejam! Vejam o que está a fazer!
Abandonando todas as esperanças de chamar a fugitiva à razão, Barbara corria o mais rapidamente que lhe era possível, gritando e agitando freneticamente os braços. Contudo, a distancia entre ela e a fugitiva aumentava a olhos vistos.
Continuando na sua corrida, agora através do terreno poeirento e empedrado para além dos limites dos campos de jogos e dos relvados da escola, Chris lutava para respirar. A poeira quente combinada com o ar seco fazia‑lhe arder a garganta. Por isso, tossia e arquejava enquanto se dirigia, com o corpo inclinado para a frente, como um corredor a percorrer os últimos passos antes da fita de chegada. As lagrimas ainda lhe enchiam os olhos e torciam-lhe a visão. Na sua mente só havia um pensamento. Atingir e transpor a cerca.
- Preciso de chegar à cerca. Preciso de chegar à cerca - dizia mentalmente a fugitiva, reunindo as últimas forças. ‑ Preciso de sair daqui ‑ balbuciava numa ladaínha desesperada, enquanto cobria a distância que a separava do objectivo.
Como se tivesse descido do céu por um invisível mecanismo gigantesco, um carro, vindo do edifício da administração, apareceu à vista.
‑ Chris! ‑ gritou Barbara chorosa. ‑ Não faças isso. Não faças isso.
As internas que corriam a par da professora, estavam contagiadas pela excitação da caçada. Moco, parada diante da porta, sorria divertida. Josie, pulando como um coelho, punha as mãos em concha sobre os lábios e gritava:
‑ Chris, procura passar por baixo da cerca. Não tentes subir. Passa por baixo. Por baixo.
‑ Perto do campo de futebol há um buraco na cerca.
‑ Gritava Ria, instruindo a fugitiva. ‑ Desse lado, Chris, mais para lá, Chris ‑ berrava Ria, vermelha de excitação.
Naquela altura, o automóvel ja estava a par de Barbara
e diminuía de velocidade. Barbara reconheceu o motorista.
Era Elaine Ferraro, monitor desportivo da escola. Barbara
fez um gesto apontando a cerca. Elaine acenou em resposta
e acelerou, levantando uma nuvem de pó.
Indiferente ao que acontecia à sua volta e apenas decidida a chegar à cerca, Chris corria, cambaleando e chorando, as lágrimas abrindo‑lhe sulcos no rosto empoeirado. O seu objectivo já estava à vista. Ao seu alcance. Precisava apenas de dar mais alguns passos. Todos os músculos do seu corpo lhe doíam, mas continuava a corrida, inconsciente da presença de um homem que usava roupas de trabalho de algodão, que se deslocava à sua esquerda, derivando para o seu lado e rumo à cerca. Tudo o mais estava totalmente bloqueado e a fugitiva não ouvia sequer o ruído do motor do carro que se aproximava pela direita. Elaine travou com força e o automóvel parou com os pneus a arrastar levantando uma nova nuvem de poeira. A monitora desceu e correu para Chris que, naquela altura, atingira a cerca. Com a força do desespero, Chris alcançou com os dedos o fio de arame mais alto e içou‑se com o auxílio das mãos e dos pés, pela cerca acima, soluçando intensamente. O homem vestido de algodão chegou justamente a tempo de a segurar pelo tornozelo esquerdo, mas ela conseguiu livrar‑se da mão do homem, continuando a escalada. Murmurando uma praga, o homem começou também a galgar a cerca.
Elaine, que tinha atingido a cerca, pulou na direcção de Chris, com os braços erguidos, na esperança de lhe conseguir apanhar os pés, mas falhou na tentativa.
- Christine! ‑ gritou ela rispidamente.
‑ Anda cá, menina ‑ gritou o homem. ‑ Desce já daí.
Tendo alcançado Chris, o homem passou‑lhe um braço em volta da cintura mas a jovem contorceu‑se selvaticamente, libertou‑se e prosseguiu a escalada. Ouvia as vozes das outras raparigas a incentivá‑la, encorajando‑a a transpôr a cerca. Chegou ao alto. Impulsivamente, às cegas, espalmou as mãos sobre o arame farpado da última fieira e os bicos aguçados rasgaram‑lhe a carne tenra das mãos. Picados de dor percorreram‑lhe as mãos até ao cérebro. O sangue morno escorreu e molhou‑lhe os pulsos. Soluçando convulsivamente, Chris tinha apenas um objectivo em mente, a despeito das dores e dos ferimentos: transpôr a cerca.
Dominando a dor e o medo, passou uma perna pelo último fio de arame. Nesse momento, o homem agarrou‑a, dessa vez com um forte apertão no tornozelo. Chris tentou libertar‑se, mas, enfraquecida, pela dor e pela corrida, não podia enfrentar o homem. A outra mão calosa do perseguidor segurou‑a pelo ombro.
‑ Vem menina, vem ‑ disse gentilmente o homem, começando a arrastá‑la para baixo. Vamos voltar.
Horas mais tarde, Chris olhava teimosamente para o chão enquanto caminhava pelo corredor, ao lado de Cynthia Porter, a assistente do super intendente, que se mostrava toda eficiência e disciplina, com as suas calças de ganga e o inevitável transmissor‑receptor dentro de um coldre, à cintura, como se fosse um revólver. As palmas das mãos de Chris, rasgadas pelos bicos do arame farpado, tinham recebido um curativo e latejavam sem parar.
O coração batia‑lhe com força e uma sensação de temor incontrolável assaltava‑a à medida que se aproximavam de uma situação desconhecida. No rosto aparentemente calmo e indiferente, não se percebia o menor sinal do que lhe ia no intimo. Das turbulentas emoções que lhe varriam a alma.
Cynthia detem‑se diante de uma porta alta e reforçada com barras de aço, pintada de um cinzento escuro e feio. Chris imitou‑a. Uma abertura guarnecida por grossas barras de ferro, medindo cerca de trinta centímetros quadrados, abria‑se no centro da porta e ao nível do solo.
Ao examinar a porta, Chris ficou a imaginar porque razão aquela abertura não fora praticada ao nível dos olhos, para que pudesse olhar mais comodamente o que se passaria fora da cela. Com a abertura do respiradouro ao nível do chão, teria que rastejar como um réptil para olhar para o corredor.
Ao ouvir os passos que se aproximavam, vindos de outro lado do corredor, estremeceu ligeiramente. Chris voltou‑se, adivinhando que aquela estranha que se aproximava era a guarda da solitária. Tratava‑se de uma criatura de traços grosseiros, cobertos pela costumada máscara de indiferença exibida por todos os adultos que trabalhavam naquela escola (salvo Barbara), de corpo cheio e cuja idade deveria rondar os cinquenta e cinco anos. Usava uma severa saia preta e
cobria-lhe o tronco uma amarfanhada blusa branca. Tirou do cinto um molho de chaves. Os lábios eram finos e descoloridos. Os cabelos grisalhos, reunidos num carrapito na nuca. Os seus olhos ao pousarem sobre Chris, acusaram pouco ou nenhum interesse.
‑ Olha, Christine, a solitária não é um castigo ‑ recitou Cynthia na sua voz de fita magnética. ‑ Vais ficar aqui durante algum tempo a fim de meditares no que fizeste e na maneira de melhorares a tua conduta. Já tinhas atingido o segundo grau. Sabias, não sabias?
Chris fez um movimento afirmativo com a cabeça.
‑ Agora, infelizmente ‑ recomeçou Cynthia, ‑ voltaste para o nível zero. ‑ Fez uma pausa, esperando que aquela afirmação se introduzisse na consciência de Chris e acrescentou:
‑ Medita bem a respeito disso, Chris. Somente quando notarmos uma melhoria no teu comportamento é que te permitiremos que voltes para o teu dormitório, naquele belo edifício. Fui clara?
Chris nada respondeu. Que diferença fará dizer alguma coisa a esta chata? ‑ reflectiu.
Obviamente, Cynthia não esperava uma resposta, ou se esperava, não deu a Chris tempo suficiente para que respondesse. Sem dizer mais uma única palavra, girou sobre os calcanhares e afastou‑se, batendo com força os tacões contra o chão de betão. Na sua retirada, havia um ar de fria admoestação. Chris viu‑a a abrir a porta de entrada, sair, fechá‑la ao passar e, para a jovem, a assistente do superintendente deixou de existir.
Vendo‑se a sós com a castigada, a guarda Imediatamente começou a passar os dedos pelos cabelos de Chris. A jovem encolheu‑se e virou a cara para outro lado.
‑ Usas ganchos? ‑ perguntou a guarda rudemente.
Não obtendo resposta, continuou a inspecção até que, satisfeita, deixou os cabelos de Chris em paz.
Abrindo o ferrolho, escancarou a porta e fez um gesto com a cabeça para Chris, indicando-lhe que deveria entrar. Chris obedeceu e viu‑se numa pequena cela de paredes, chão e tecto de betão. Numas das paredes abria‑se uma pequena janela, protegida por barras de ferro. Não havia mobília. Apenas um colchão estreito e sujo num dos cantos. Perto um jarro de plástico. No canto oposto, um bacio velho e cheio de bocas. Parecia uma relíquia recuperada de uma cidade fantasma, dos dias de desbravamento do Oeste. Chris nunca tinha visto um objecto assim. Franziu a testa, intrigada, mas nada disse.
A guarda, vendo‑lhe a expressão apressou‑se a adverti‑la: ‑ Algumas de vocês não gostam de usar o penico, preferindo fazer as porcarias no chão. Aviso‑te de que se fizeres isso, és tu que vais ter que limpar tudo. Outras não gostam do colchão. Se quiseres dormir no chão, não me importo. Posso retirá‑lo.
Saiu da cela e ficou diante da porta, encarando a prisioneira. ‑ Pareces estar com um ar de quem não gosta disto. Pouco me importa. Digo - todas a mesma coisa. Afinal, vocês são todas iguais.
Dito isto, bateu com a porta violentamente e correu o ferrolho. O eco da porta que se fechava repercutindo‑se pelas paredes de betão da cela, fez com que Chris se assustasse e estremecesse ligeiramente.
Profundamente abatida, sentindo‑se totalmente desesperada e lamentando até ao mais Intimo do seu ser o abandono a que se via relegada, Chris ficou imóvel, depois da guarda ter trancado a porta. Ouvia os passos da mulher, afastando‑se, e o abrir e fechar de portas, no fim do corredor. Com sombria curiosidade examinou mais demoradamente a cela.
As paredes estavam cobertas de grafitos. Um deles chamou a atenção. Era a palavra AMOR escrita com letras grandes e grossas. Amor ‑ pensou consigo mesma, sentindo um soluço a subir‑lhe à garganta. O que sabiam, naquele lugar, sobre amor? Os olhos descobriram um outro grafito:
"Bebe, fuma e diverte‑te. O mais que vá para o Inferno". Os seus olhos continuaram a percorrer as paredes. Alguma Maria escreveu o seu nome e o do homem amado: "Maria e Raymond" proclamava a inscrição. Quem seria essa Maria? ‑ reflectiu Chris. Outra, mais positiva, proclamava a sua aversão ao local, ao escrever: "Isto aqui é uma merda".
Chris sorriu tristemente. Essa aí está certa ‑ aprovou mentalmente. Uma outra prisioneira proclamava: "As funcionárias daqui são todas umas imbecis". Essa também tem razão ‑ aprovou igualmente Chris. Logo uma ressalva lhe ocorreu. Nem todas as funcionárias são imbecis. Há uma que escapa. Tem que ser assim. Senão a gente dá em doida se todas as funcionárias forem umas filhas da puta.
Cansada de examinar as inscrições, caminhou lentamente até à janela e ficou a olhar para fora. Apesar das ligaduras e da dor, rodeou com as mãos as barras de ferro imbutidas na parede. Porque será que eles fazem isto? ‑ reflectiu. Não chega as grades pelo lado de fora? Examinando a paisagem para além do pequeno quadrado, pôde ver um pedaço de terra nua adiante do qual ficava a cerca com as suas fieiras de arame farpado. Era uma vista deprimente e isso fê‑la estremecer. Afastou‑se da janela e começou a percorrer a pequena cela com passos medidos, andando de um lado para o outro, sentindo‑se, ao fazer isso, como um animal enjaulado. O pensamento fê‑la deter‑se e deixou‑se cair sobre o colchão, apoiando as costas contra a parede. Encolheu as pernas e apoiou o queixo nos joelhos. Começou a experimentar uma profunda angústia desejando ardentemente aliviar‑se daquela opressão, pelo choro. Contudo, os olhos permaneciam secos. As lágrimas em outras ocasiões tão abundantes, teimavam, agora, em não vir. Ora, pensou consigo mesma, chorei tanto nestes últimos dias que já não tenho lágrimas.
Subitamente, um acesso de raiva brotou‑lhe no íntimo, dominando a até então preponderante apatia. Presa de um furor inexplicável, esmurrou raivosamente o colchão, totalmente alheia às dores que o gesto lhe provocava nas mãos feridas. Raivosamente, ainda, arranhou as próprias faces e deitando‑se de costas na enxerga, ficou a olhar para o tecto e a interrogar‑se ‑ Porquê a mim? Porquê?
A seguir, assumindo uma posição fetal, fechou os olhos e imaginou quão feliz se sentiria se adormecesse E, se tivesse sorte, nunca mais despertaria.
Chris acordou sobressaltada. Dormira tão profundamente que, por um momento se sentiu desorientada. Desamparo, solidão, frustração, foram os sentimentos que a assaltaram à medida que recobrava a consciência da sua presente situação. Além do doloroso latejar dos ferimentos nas palmas das mãos, todos os músculos do corpo lhe doíam, por causa do desconfortável colchão. Examinando as paredes sujas e cobertas de grafitos da cela, levantou‑se a custo do colchão e começou um curto e rápido vaivém. Inconscientemente, contava as ranhuras do chão de betão e procurava não as pisar enquanto caminhava para lá e para cá.
Algures, alguém abriu uma porta e o som despertou‑lhe a atenção. Alguém tinha entrado no corredor para o qual davam as portas das celas. Ouviu passos que se aproximavam. Parou, tensa, à escuta. Os passos aproximaram‑se ainda mais. Correu para o canto mais afastado da cela e encostou‑se à parede, meneando a cabeça de um lado para o outro, como se se quisesse livrar do ruido cada vez mais próximo. Quando estava exactamente à altura da porta da sua cela, os passos detiveram‑se. Chris inclinou a cabeça para um lado apurando o ouvido.
‑ Chris? ‑ chamou uma voz conhecida, do lado de fora da porta. ‑ Chris? - repetiu a voz. Christine identificou‑a. Era a voz de Barbara Clark.
A voz confirmou a identificação: ‑ Chris? Sou eu, Barbara
O primeiro impulso de Chris foi correr para a porta. Contudo, um segundo pensamento conteve aquele impulso juvenil. Ficou onde estava, calada, aguardando o que viria a seguir.
- Chris ‑ voltou a soar a voz de Barbara. ‑ Só disponho de alguns minutos para falar contigo. Estás‑me a ouvir? Responde, Chris, porque sei que me estás a ouvir.
Em lugar de responder à professora, Chris recomeçou
o seu caminhar de animal enjaulado, imaginando o que Barbara iria dizer em seguida. Estaria a professora a usar algum truque? Iria fazer promessas que, depois, não poderia cumprir?
‑ Chris? ‑ Agora a voz de Barbara continha uma nota de urgência. ‑ Ouve Chris ‑ agora um apelo. - Não me é permitido estar aqui. Mas disponho de alguns minutos para conversar contigo.
A prisioneira hesitou alguns momentos. Finalmente, com extrema lentidão, aproximou‑se da porta, diante da qual ficou imóvel, olhando para a abertura ao nível do chão.
A voz de Barbara voltou a soar no corredor. Agora, ela pedia. Implorava. ‑ Chris, ouve, Chris. Por favor, escuta‑me. Quero‑te ajudar. Fala comigo, Chris. Quero ouvir a tua voz. Quero ver o que posso fazer por ti.
Christine continuava imóvel, rígida como uma estátua. Concentrava toda a sua atenção na abertura sob a porta. Estará ela a falar verdade? Pretende de facto ajudar‑me?
‑ Interrogou‑se Chris. - Será que ela se importa de verdade comigo? Acaso fará alguma diferença o que eu lhe disser?
‑ Se queres a minha amizade, voltarei mais tarde, quando estiveres disposta a conversar, Chris. ‑ Barbara fez uma pausa antes de reafirmar: ‑ Ouve, Chris. Eu quero mesmo ajudar‑te. Acredita na minha sinceridade.
Chris fez um movimento hesitante em direcção à porta, ainda relutante em falar.
‑ Está bem, Chris. Se não queres falar comigo agora, vou‑me embora. Adeus. ‑ Disse finalmente, Barbara.
‑ Adeus ‑ respondeu Chris em voz quase inaudível.
Na verdade gostaria de falar com Barbara. Duvidava, porém, da sinceridade de propósitos da professora. Atrever‑se‑ia a falar com Barbara? Apesar das dúvidas? Bem, o facto é que precisava de falar com alguém. A dúvida, COntUdO, insinuava-se‑lhe nos pensamentos como uma força envolvente de invencível poder.
Alguém, de facto, teria interesse em ajudar Christine Parker?
Uma sensação de remorso e de comiseração feriu‑lhe a consciência quando ouviu os passos de Barbara afastando‑se pelo corredor.
Deveria ter dito alguma coisa ‑ dizia para consigo.
Terá ficado zangada comigo por não lhe ter respondido? Uma nova VOZ, cínica, fez‑se ouvir pela primeira vez no seu íntimo: ora, não te preocupes com isso, menina, se ela for verdadeiramente sincera voltará.
De novo sozinha, Chris reencetou o seu caminhar de animal enjaulado, solitária. Agora conhecia plenamente todas as implicações daquela espécie de punição. Cynthia poderia dizer‑lhe quantas vezes quizesse que aquilo não era um castigo. Mas, qualquer que fosse o nome que lhe dessem, era um castigo. Uma punição. Muito bem, conhecia a palavra, mas nunca se detivera a pensar em todo o seu significado psicológico. Também nunca tinha precisado. Naquele instante, porém, começou a reflectir e a estremecer, ao dar‑se conta da gravidade da situação.
Estava só. Completamente só; longe do calor das vozes e dos rostos amigos; ninguém com quem conversar; ninguém para a abraçar, se chorasse. Estava isolada de toda a humanidade
Com um suspiro triste e profundo, regressou à janela. E com as mãos envoltas em ligaduras segurou as barras de ferro. Observou, soturna e tristemente o sol que se punha no horizonte. Muito longe, na linha do horizonte, conseguiu divisar um avião a jacto que passava a grande altura. Ficou a observá‑lo durante alguns momentos, até que saísse do seu campo de viSãO. Dominou‑a um sentimento de isolamento na distância. Para onde iria aquele avião? Fechou os olhos e imaginou‑se no interior de um grande jacto comercial. Se ao menos pudesse estar dentro do avião em vez daquela cela suja e estreita. Sim, era isso mesmo. Um passarinho preso na gaiola. Abriu Os olhos. O jacto tinha desaparecido há muito. Apenas ténues rastos de vapor, saldos das suas turbinas, ainda permaneciam à vista, como que a testemunhar que Chris não sonhara. Não imaginara coisas.
Voltou a sua atenção para o colchão. Por mais repelente e incómodo que fosse, era tudo o que tinha entre o seu corpo e o betão frio e áspero, se quisesse repousar. Caminhou até à enxerga. Estirou‑se ao comprido cruzando as mãos sob a nuca. A dor dos ferimentos lembrou‑lhe que precisava de ter certos cuidados ao usar as mãos. O peso da cabeça sobre as palmas das mãos feridas fora suficiente para provocar novas ondas de dor latejante. Decidiu ficar com os braços esticados ao longo do corpo e com as palmas voltadas para cima. Sim. Assim estava melhor. Ficou a olhar fixamente para o tecto, imaginando quanto tempo ficaria na solitária.
Sem se dar conta, Chris voltou a mergulhar no sono. Encontrava‑se a bordo de um avião, sentada junto à janela, admirando as nuvens brancas e fofas. Estava sozinha. Repentinamente, o avião começou a cair. E ela estava também a cair, caindo, caindo através do espaço! O avião desaparecera. Estava sozinha no espaço, caindo e lutando para respirar. O vento assobiava‑lhe nos ouvidos. Ouviu‑se então um ruído de metal contra metal. Acordou assustada sentando‑se no colchão. Gotas de suor frio apertavam‑lhe a testa. Um pálido raiar de luar insinuava‑se dentro da cela através da pequena janela gradeada. Quando os olhos se acostumaram à semi‑escuridão viu uma pequena bandeja depositada no chão perto da abertura da porta.
Devo ter sonhado ‑ disse para si mesma. O barulho do choque do avião a despenhar‑se deve ter sido a porta que batia, quando a guarda a abriu para me trazer comida. Chris levantou‑se e caminhou até onde estava a bandeja. Nela havia uma pequena tijela de sopa, uma costeleta de porco quase torrada, um monte de feijões com mau aspecto, batatas amassadas a que chamariam puré, e um pacote, de papel encerado contendo leite. Aquilo era a mais detestável forma de comida que jamais vira em toda a sua vida, mas, pelo menos era alimento e precisava de comer alguma coisa. Assim, passaria o tempo.
Apressadamente, ergueu a bandeja com as mãos feridas e voltou para o colchão no qual se sentou de pernas cruzadas.
Por pouco apetitosa que fosse aquela comida deveria tentar engolir alguns bocados. Dando uma risadinha de pouco caso ao ver os utensílios de plástico, inclusive os talheres, hesitou um pouco, calculando que as ligaduras lhe dificultariam o manejo dos talheres para levar a comida à boca.
Começou pela sopa. Pegou na tigela com as duas mãos e cuidadosamente levou‑a aos lábios. Estava morna e muito salgada. Não gostou e voltou a pousá‑la na bandeja.
Pegando desajeitadamente no garfo, brincou alguns momentos com as batatas amassadas. Finalmente resolveu‑se e provou‑as. E foi o suficiente. Vieram, em seguida os feijões. Estavam cozidos demais e não tinham gosto. Chris franziu a testa, aborrecida. A costeleta de porco estava quase torrada e dura como couro. Deu algumas dentadas. Foram suficientes. Finalmente, imaginou que a única coisa que prestaria naquela bandeja seria o leite. Por isso, apesar da dificuldade em abrir o pacote de papel parafinado, lutou até consegui‑lo. O leite estava gelado e espesso. Era de boa qualidade. Engoliu‑o lentamente, saboreando- gota a gota.
Quando finalmente acabou devolveu os talheres e o pacote vazio à bandeja. Fez um esforço para se levantar do colchão. Tinha a perna esquerda dormente. Bateu várias vezes com o pé esquerdo no chão para restabelecer a cir'culação. Levou a bandeja até à abertura sob a porta e empurrou‑a por ali para o corredor. Incapaz de dominar o impulso, apesar de compreender a inutilidade do gesto, deitou a língua de fora, em direcção à bandeja.
Terminado aquele trabalho, recomeçou o seu passeio de animal enjaulado. Meia dúzia de passos para cá. Meia dúzia de passos para lá. Subitamente surgiram as notas de uma melodia na sua mente: Sozinha outra vez. Naturalmente. Trauteou, distraída, a melodia. Ao aperceber‑se disso, disse para consigo que, afinal, era muito apropriada para aquele momento. Depois de trautear mais alguns compassos cansou‑se e voltou a deitar‑se no colchão. Remexeu‑se algumas vezes sobre a enxerga procurando uma posição menos incómoda. As palmas das mãos latejavam, embora com menos intensidade. Contudo, persistiam as dores agudas nos músculos das pernas e dos braços. Depois de se virar inquietamente de um lado para o outro, algumas vezes, ajeitou‑se finalmente, deitada sobre o lado esquerdo.
Nada havia a fazer senão tentar dormir de novo. Ficou a imaginar o que Janet estaria a fazer naquele momento. E Josie? E Ria? As duas estariam provavelmente a assistir a algum programa de televisão. A visão da cara melosa e sorridente de Denny intrometeu‑se subitamente nas suas lembranças e involuntariamente sentiu uma contracção no estômago. Ali na solitária havia pelo menos uma vantagem. Ninguém a poderia ferir. Ao relaxar os nervos, animada por esse pensamento, um outro lhe ocorreu: sempre ouvira dizer e em todos os desenhos sempre se dera a entender que as pessoas que sofrem de insónia contam carneirinhos que saltam cercas, até que acabam por adormecer. Embora lhe parecesse uma tolice, experimentou contar carneiros pulando cercas. Mas, por mais que contasse, não conseguia conciliar o sono. Ouvia o coração a bater e o fluir do sangue nas artérias que conduzem ao cérebro. Eram sons muito baixos mas, devido ao silêncio absoluto do local, podia ouvi‑los. Algures, ao longe, ouvia os latidos de um cão. Deitada no escuro ficou a imaginar se algum dia voltaria a dormir. Mas, à medida que os seus pensamentos vagueavam de um tema para outro, lentamente, imperceptivelmente, a embriaguez do sono foi‑se apoderando dela e, finalmente, Chris compreendeu, satisfeita, que iria dormir.
Na manhã seguinte, depois do café, Chris estava diante da janela, olhando para fora quando, repentinamente, ouviu correr o ferrolho da porta da cela. O som fê-la virar‑se, apreensiva. Fora a guarda que destrancara a porta. Trajava a eterna saia preta, a blusa branca amarfanhada, nas mãos exibia um molho de chaves e na face a perpétua expressão de desdenhoso aborrecimento.
- Vamos lá, menina ‑ disse a guarda usando o tom de voz mais desagradável que pôde encontrar no seu arsenal de motivos para ferir as prisioneiras ‑ está na hora do teu exercício matinal.
‑ Para onde me vai levar? ‑ quis saber Chris.
‑ Não faças perguntas, rapariga. - Retorquiu, rudemente a guarda. ‑ Limita‑te a acompanhar‑me.
A mulher conduziu Chris por um corredor, fê‑la passar por uma porta e entrar noutro corredor perpendicular ao primeiro, percorrê‑lo em toda a sua extensão, transpor uma segunda porta e chegar a uma escada metálica, em caracol, subindo‑a. Chris chegou a um terraço rectangular, com piso de asfalto e rodeado por um alto muro de tijolos. Nesse terraço completamente isolado, não havia nem um banco, nem um arbusto. Nada.
‑ O que quer que eu faça? ‑ quis saber Chris.
A guarda fez um gesto de indiferença:
- A mim, tanto me faz. O regulamento diz que tens que fazer exercícios. Fica aqui e faz o que bem entenderes. Venho‑te buscar daqui a uma hora.
Com essa curta advertência, a mulher deu meia volta e regressou por onde viera, deixando Chris sôzinha. A jovem decidiu correr em torno do terraço. Era o melhor a fazer, dadas as circunstâncias.
Estava a meio da terceira volta quando a porta de acesso se abriu e apareceu Barbara. Pelo canto do olho, Chris viu a chegada da professora mas continuou a correr.
Incerta quanto à disposição de Chris naquela manhã, Barbara decidiu adoptar modos casuais e em tom amigável disse:
‑ Espero que não estejas muito ocupada para falares um bocadinho com uma amiga.
Secretamente contente por ver a professora, mas não querendo trair os seus sentimentos, Chris olhou por cima do ombro para Barbara quando passou por ela a correr e disse:
‑ Como vê, estou na minha sessão de treino.
Evitando cuidadosamente qualquer tentativa de perseguir a rapariga, Barbara deu alguns passos para a frente e disse:
‑ Chris, vim até aqui para que me digas como te posso ajudar.
Como um brinquedo cuja corda acaba, Chris ainda deu alguns passos a correr, passando depois para uma marcha normal e gritou por cima do ombro.
‑ Tire‑me daqui.
Barbara começou a andar ao lado da jovem:
‑ Vou tentar, Chris. Prometo que vou tentar. - Agora, estavam muito próximas. E Barbara acrescentou: ‑ Primeiro, porém, tens que me ajudar a compreender‑te. ‑ Apoiando a mão no transmissor‑receptor, perguntou:
‑ Chris, diz‑me uma coisa: porque é que tentaste fugir?
Christine, com o braço apoiado no muro, voltou a cabeça para evitar o olhar interrogativo da professora e manteve‑se calada.
‑ Chris ‑ insistiu Barbara. ‑ Por favor, fala comigo. Não te poderei ajudar, se não me ajudares primeiro.
Chris encostou‑se ao muro, cruzou os braços sobre o peito e perguntou em ar de desafio:
‑ Por que está tão interessada em me ajudar? ‑ A jovem queria acreditar na professora mas, primeiramente, precisava que esta lhe confirmasse os motivos.
Ficaram a olhar‑se intensamente, por algum tempo, sem dizer palavra. Naquele instante, Barbara percebeu no olhar de Chris uma luz clara que a encheu de apreensão. Era uma centelha de desafio, de beligerância, coisas que ela nunca manifestara. Era o tipo de olhar que as jovens passavam a ter depois de terem perdido todas as esperanças. Barbara experimentou a desconfortável impressão de que se dissesse, naquele instante, a palavra errada, se fizesse um movimento errado, perderia Chris para sempre.
Era como se estivesse a tocar com as pontas dos dedos em alguém que es afundava em areias movediças, sem saber se teria força para a salvar.
Orou para que Deus lhe inspirasse as palavras correctas.
‑ Porquê? ‑ começou a responder. ‑ Porque te posso imaginar fora daqui, Chris. Posso imaginar‑te construindo a tua vida longe daqui. Todos os dias vejo raparigas como tu a trabalharem em lojas, escritórios, fábricas, estudando, constituindo famílias. Raparigas como tu, Chris, como Bea, como Josie, Denny... ‑ a voz de Barbara falhou. - Contudo ‑ disse a professora quando readquiriu o domínio dos sentimentos, - Bea, Denny ou Josie jamais serão criaturas normais. ‑ Meneou a cabeça com uma expressão de derrota. ‑ Nunca! Mas tu, Chris, ainda tens possibilidades.
Chris permaneceu impassível. Tudo o que Barbara lhe dissera até ao momento era muito tocante. Mas precisava ainda de a convencer.
‑ Sabes porque não existem mais possibilidades para elas, Chris? ‑ Fez uma pausa, examinando o rosto da jovem, procurando nos olhos da rapariguinha uma centelha de reacção, que não veio. Inconformada prosseguiu: ‑ Porque Bea foi abandonada e adquiriu o vício de drogas aos nove anos de idade. Porque Josie foi treinada pela própria mãe para aliciar homens nas ruas. Para ser uma prostituta profissional. Porque Denny foi violentada e desde então e até que a trouxemos para cá, nunca se comportou de maneira normal...
A expressão fisionómica de Chris mostrou uma leve mudança. Adoçou‑se um pouco.
Estou a conquistá‑la ‑ reflectiu Barbara, mal podendo esconder a alegria. Estou a conquistá‑la. Endereçou à jovem um olhar suplicante. Crê em mim. Confia em mim. Dizia.
Prosseguiu, certa de que em breve obteria a vitória.
‑ Chris, contigo não aconteceu nada disto. Poderás voltar para a tua casa. Estudar, tornar‑te uma hospedeira do ar como gostarias de ser. Irás trabalhar nas linhas internacionais. Já te imaginaste a bordo de um jacto para o Brasil?
Pela expressão de Chris, naquele instante, Barbara viu que tinha tocado numa corda sensível. A impassividade desaparecera dos olhos da aluna. O que mostravam agora era interesse, excitação. As mãos da jovem contorciam de entusiasmo. Chris estava a imaginar‑se dentro do avião, a servir os passageiros, rumo ao Brasil, ou para outro lado qualquer.
Barbara decidiu tirar todo o partido possível da vantagem obtida: ‑ Sabes porque te antevejo fora daqui, Chris? Tirando partido de todas as oportunidades que te serão oferecidas? Porque tu ainda estás inteira. Ainda não foste corrompida. És inteligente, capaz. ‑ Barbara abaixou a voz e frisou as palavras: ‑ Ainda tens uma oportunidade, Chris. Aproveita‑a.
- Os olhos da rapariguinha encheram‑se de lágrimas. Barbara deu um suspiro de alívio. Era o tipo de suspiro que se poderia esperar de um atleta, depois de vencer um obstáculo difícil e estar a ponto de ter um colapso. Barbara apoiou‑se ao muro, ao lado de Chris e disse com expressão sonhadora. ‑ Espero, algum dia, receber um cartão postal do Brasil. - Virou‑se para Chris com um ligeiro sorriso nos lábios. ‑ É por isso que te quero ajudar. Para que me mandes um cartão postal do Brasil. Está bem?
Chris encarou longa e intensamente a professora, ao seu lado. Finalmente, abriu os lábios num sorriso lento e concordou:
‑Está bem.
Aquela era a palavra de encorajamento que Barbara precisava. O sinal de que o primeiro passo fora dado. A irrupção através das defesas da jovem. Exibindo um largo sorriso, pôs a mão no ombro de Chris.
- Agora, querida, tenho que me ir embora. Volto amanhã para falar mais um pouco contigo.
Em silêncio, Chris viu Barbara sair do pátio. Involuntariamente olhou para cima. Para o céu. Para muito além daquele horizonte estreito. Estava a olhar, com os olhos da imaginação, para o céu do Brasil. Para o céu da liberdade.
O resto do dia demorou muito a passar para Chris. Contudo, a solitária já não lhe pareceu tão terrível. A solidão já não era tão grande. Um raio de esperança insinuava‑se naquela densa escuridão e aquecia e iluminava as sombras. Embora a comida continuasse péssima, conseguia engolir alguns bocados. A dor nas palmas das mãos diminuia. O sofrimento dos músculos parecia-lhe mais suportável. Ainda estava amargurada. Ainda estava frustrada. Ainda não conseguia aceitar o facto de que os pais a tinham deixado naquele lugar horrível. Na verdade, a responsabilidade pelo seu internamento naquele reformatório era inteiramente dos pais. Porém, ela, agora aprendera que, por pior que fossem as coisas dentro da sua casa, ainda assim eram preferíveis a ficar ali, naquela prisão. Jurou para si mesma que iria regularmente à escola. Que deixaria de fazer gazeta às aulas. Afinal, a escola não era um lugar assim tão mau. Quando a aula terminava podia‑se ir para casa. E, em casa, era livre para dispor do tempo da maneira que desejasse. Ali, no reformatório, era diferente. Todo o dia, desde que se levantava até que adormecia, era pautado por regras, horários, obrigações. Ninguém, na sua casa, a iria trancar numa cela igual àquela em que estava, nem a obrigaria a dormir sobre um colchão estreito e sujo como aquele, atirado, assim, para cima do chão de betão.
Chris ficou a pensar nas coisas que Barbara lhe tinha dito... aquelas coisas sobre as outras raparigas. Tentou imaginar que espécie de vida Josie, Bea e Denny tinham levado antes de as mandarem para o reformatório. Se se atrevesse a falar em tóxicos, quando estava em casa, o pai matá‑la‑ia à pancada... E a mãe? Embora fosse uma pobre alcoólica, nunca chegaria ao ponto de a obrigar às indignidades que a mãe de Josie a submetia.
Nesta noite, o sono chegou mais facilmente para Christine, porque se aquecia ao calor das palavras de Barbara. Talvez a professora estivesse a falar a sério. Talvez Barbara esperasse, de facto, ver Chris fora do reformatório, empregada como hospedeira do ar numa linha internacional, voando para o Brasil, conhecendo o mundo, aproveitando tudo o que a vida tem de bom para oferecer.
Talvez...
Na manhã seguinte Chris estava impaciente esperando que a guarda a viesse buscar para os exercícios matinais no pátio. Embora não o quisesse admitir, ficou muito desapontada quando chegou ao local dos exercícios e não viu Barbara. Como a professora não viesse, Chris ficou a correr dando voltas em torno do pátio até cair exausta.
De regresso à solitária as emoções de Chris começaram a ficar agitadas. Sentia‑se profundamente desapontada, mas, o esgotamento físico produzido por aquela hora de corrida permitiu‑lhe fugir à realidade durante grande parte do dia, através do sono.
Quando acordou para o jantar estava tão aborrecida que mal pôde tocar nos alimentos. O que teria acontecido a Barbara? Porque não viera? Teria falado sinceramente quando lhe dissera todas aquelas coisas ou fora simplesmente uma conversa fiada para passar o tempo? Teria Barbara sido verdadeira nas suas palavras ou aquela conversa de que ela ainda era uma boa menina era história? Franzindo a testa, preocupada, ficou a olhar para a janela.
O Sol já desaparecera mas, a Lua ainda não surgira. A escuridão crescente começava a inquietá‑la. Sentia um peso físico sobre os ombros. Repentinamente ouviu a porta no fundo do corredor que se abria e fechava em seguida. Ouviu passos que se aproximavam. Chris correu para a porta, antecipando‑se à chegada da visitante e agachou‑se junto à abertura da porta da cela. Os passos tornaram‑se mais nítidos. Sentia o coração pulsar numa palpitante expectativa. Deus queira! Deus queira! Agarrou‑se às barras de ferro, espreitando para o corredor. Prendeu a respiração com o medo de ficar desapontada.
Lembrou‑se de que, quando era garotinha, muitas vezes ao saber que poderia esperar uma surpresa, fechava os olhos e esperava impaciente até que lhe dissessem que os podia abrir e ver o que lhe tinham trazido. Impulsivamente fechou‑os, apertando bem as pálpebras, durante alguns segundos e quando os reabriu viu que Barbara estava sentada no chão do corredor, inclinando‑se para a abertura da porta.
- Chris ‑ chamou a professora suavemente.
‑ Sim? ‑ respondeu a jovem prisioneira hesitante.
‑ Ainda não posso entrar na tua cela ‑ explicou a visitante, - mas, acho que mesmo assim podemos conversar um pouco.
Chris sentou-se no chão da cela, de pernas cruzadas, inclinando‑se o mais que pôde para a abertura. Por um momento, nada disse, pois não sabia o que dizer. Finalmente, pronunciou a primeira frase que lhe veio à cabeça.
‑ Se eu fosse professora nunca trabalharia aqui.
Barbara meteu a mão no bolso da saia e extraiu dele um molho de chaves. Olhou pensativamente para as chaves, balançando‑as ligeiramente para as fazer tilintar e disse:
‑ Eu tenho as chaves da porta de saída, Chris. Posso deixar este lugar no momento em que eu quiser. É por isso que fico com vocês.
Chris voltou a dizer:
‑ Pois eu não ficaria.
‑ E para onde é que tu ias?
‑Para casa.
Ao dar essa resposta, a voz de Chris saiu baixa e rouca devido à emoção.
‑ Tu ainda és feliz, Chris. Muitas pessoas não têm para onde ir ou não podem ir para as suas casas.
‑ Mas eu posso. ‑ A voz de Chris saiu incisiva e aguda, como se estivesse procurando convencer‑se a si própria.
Barbara aproximou‑se um pouco mais da porta e curvou‑se para espreitar pela abertura, mostrando a sua face a frustração que sentia por não poder ver Chris.
‑ Tens a certeza de que nunca mais vais fugir? ‑ perguntou a professora num tom de voz que denotava o desejo de ser convencida.
Apesar de estar fora do campo de visão da Barbara, Chris fez um gesto afirmativo com a cabeça.
‑ Tenho, sim. ‑ Declarou calma e convictamente fazendo uma breve pausa para em seguida acrescentar: ‑ depois de ter estado aqui ‑ Os olhos da jovem encheram‑se de lágrimas que começaram a descer lentamente pelo rosto. Lutou para que a voz não lhe falhasse ao retomar a palavra: ‑ Quero dizer: agora sei que, todas as vezes que fugir de casa me trazem para este lugar. É assim, não é.
‑ Sim, é assim ‑ respondeu imediatamente Barbara, sentindo as esperanças renascer no seu intimo.
‑ Então, tenho mesmo a certeza. Garanto. - Disse Chris, agora com voz firme e demonstrando ter tomado uma resolução definitiva.
Barbara, nessa altura, estava completamente certa de ter conseguido uma brecha na armadura de Chris. Mas precisava de se certificar. De ter a certeza absoluta. Por isso, em tom propositadamente casual:
‑ E quanto aos teus pais?
‑ Quanto aos meus pais, como? ‑ quis saber Chris, enxugando as lágrimas com as pontas dos dedos.
‑ Foram eles que te mandaram para cá, como já sabes.
Chris engoliu em seco, antes de responder:
‑ Eu sei, mas agora tudo vai ser diferente.
‑ Como? ‑ quis saber Barbara.
Chris hesitou, procurando encontrar as palavras adequadas, com a voz embargada pela emoção. As mãos envoltas em ligaduras estavam contraídas, mas a jovem não sentia a dor. A preocupação em manter o domínio de si própria e os sentimentos de isolamento eram mais fortes. Além disso, havia a libertação de todos os sentimentos há muito recalcados, sobrepondo‑se a todas as sensações físicas.
‑ Vou tentar espucar‑lhes tudo. E tentarei com todas as minhas forças.
‑ Como? O que é que lhes vais dizer? O que dirias à tua mãe se ela estivesse aqui, neste momento?
Chris voltou os olhos para o tecto, voltando as lágrimas a correrem‑lhe pelo rosto a despeito dos esforços que fazia para conter o pranto. Finalmente, devagar, respondeu:
‑Eu diria: mãe, eu não posso voltar para aquele lugar horrível. Preciso de ficar contigo. ‑ A voz de Chris tremeu
‑ Prometo que serei boazinha. Não irei aborrecer o pai. Prometo que te hei‑de ajudar.
‑ E como é que a tua mãe te responderia. Chris? ‑ A própria Barbara também lutava para não começar a chorar.
‑ Ela dir‑me‑ia: faz o que o teu pai te disser e não o aborreças. Não tenhas medo de nós e procura ficar quieta nas horas das refeições.. ‑ Chris não aguentou mais o peso da emoção e rompeu em soluços, inspirando profundamente para restabelecer o controlo dos nervos antes de poder prosseguir: - A minha mãe pegar‑me‑ia na mão, puxar‑me‑ia para ela, abraçar‑me‑ia e diria: Chrissie, agora, nós vamos ter uma vida maravilhosa. Então contar‑lhe‑ia... contar‑lhe‑ia o que me aconteceu.
Barbara abaixou‑se ainda mais apoiando‑se nos cotovelos, para que o rosto ficasse exactamente à altura da abertura e com as feições contraídas pela emoção perguntou:
‑ Chris? O que é que aconteceu, Chris?
A jovem, atormentada pelos soluços, murmurou:
‑Eu.. eu.. não.. posso
- Chris! Não podes o quê..
‑Contar...
‑ Querida, o que é que te aconteceu assim tão horrível que não me possas contar? Chris, sou tua amiga. Confia em mim. Conta‑me o que aconteceu
Soluçando incontrolavelmente, Chris, aos arrancos, conseguiu dizer:
‑ Elas fizeram‑me uma coisa horrível...
Barbara agarrou fortemente as barras da abertura. O esforço foi tão grande que as articulações dos dedos se tornaram brancas.
‑ Chris, por amor de Deus, o que é que te fizeram?
‑ Contarei à minha mãe sobre Johnny ‑ disse Chris procurando evitar a descrição directa do esturpo de que fora vítima.
‑ Chris, por favor, conta‑me tudo o que aconteceu
‑ implorou Barbara, ela própria com os olhos toldados pelo pranto.
‑ Mãe ‑ gritou Chris, presa de incontrolável emoção e no meio de uma grande angústia, atirando‑se para o chão. ‑ Mãezinha, elas agarraram‑me, atiraram‑me para o chão e aleijaram‑me! ‑ Agora, as palavras jorravam livremente, aliviando o ego da jovem. E Barbara, atónita, angustiada, impotente e abatida escutou toda a história do que aconteceu, certa noite no balneário.
Finalmente, chegou o dia em que Chris pôde sair da solitária. E à medida que as semanas passavam, as mudanças na personalidade da jovem tornavam‑se cada vez mais evidentes, embora essas mudanças fossem interpretadas de diferentes maneiras, segundo o ponto de vista de cada observador. As internas encaravam‑na com mais respeito. Afinal, ela tentara fugir e passara alguns dias na solitária. A partir daquele dia, nenhuma delas tornou a molestá‑la. Nem mesmo Moco e Jax. O que se tornou digno de nota foi a aceitação, pelas internas, do seu excelente desempenho, nas aulas ministradas por Barbara.
Embora Chris estivesse profundamente convicta da necessidade de ser aceite pelas suas companheiras, as suas maiores preocupações estavam agora na maneira de sair da escola e ficar longe dela. Sabia que, agora mais do que nunca, estava sob constante observação por parte das funcionárias. Por isso, desenvolveu todos os esforços possiveis para entrar em bons termos com elas sem criar antagonismos com as internas. Uma espécie de força de vontade desenvolveu‑se no seu intimo, tendo, respectivamente, como pontos de partida e de apoio, as traumáticas experiências e a determinação de ficar livre.
A sua percepção tornou‑se mais aguda e a capacidade de reconhecer sinais de perigo, proviessem donde proviessem, formou na jovem uma segunda natureza.
Fixou‑se, finalmente, um dia para Chris comparecer diante de uma junta de funcionárias, as quais deveriam avaliar o seu comportamento e decidir se ela já estava, ou não, em condições psicológicas para um regresso experimental à custódia dos pais. A reunião de avaliação foi marcada para uma sexta‑feira, logo depois do almoço. Chris tinha que se apresentar na sala onde a junta se reuniria, exactamente às duas da tarde.
Impaciente e nervosa, depois do almoço foi directamente para o quarto onde vestiu as roupas melhores e mais limpas que possuia. Escovou os cabelos até que estes ficassem macios e brilhantes. Queria causar boa impressão à junta. Portanto, tudo teria que ser pelo menos perfeito.
Excepto Janet, que não se sentia bem, todas as outras internas do dormitório de Chris estavam fora do edifício. Chris ficou aliviada, por se encontrar só. Não gostaria de ficar a conversar com as outras porque a excitação era muito grande. Felizmente, Janet preferiu dormir, com os cabelos compridos e negros espalhados na almofada branca e caindo até aos ombros. O ventre desenvolvido subia e descia ritmicamente, quando inspirava e expirava o ar.
CIrris deu uma escovadela final nos cabelos e consultou
o despertador sobre a escrivaninha. Tinha que estar no salão dentro de cinco minutos. Contudo, ansiosa, com receio de chegar atrasada, saiu do quarto nas pontas dos pés para não acordar Janet e percorreu, lentamente, o corredor em direcção à sala de estar.
A porta estava fechada e o edifício parecia estranhamente quieto e silencioso, sem as vozes das internas a ecoar pelos quartos e corredores, ruído ao qual frequentemente se misturava o som da TV ou a música do conjunto estereofónico, onde as jovens escutavam os discos do momento.
Chris sabia que os cinco minutos ainda não tinham passado. Por isso, hesitou diante da porta da sala de estar. Sentia uma certa relutância em entrar na sala antes da hora. Não por temer que isso fosse interpretado como demonstração do seu desejo de se ir embora, mas, receando ser tomada como intrusa e consequentemente, capaz de causar má Impressão às funcionárias integrantes da junta.
Quando elas diziam duas horas, é porque a internada deveria comparecer diante delas exactamente às duas horas. tudo deveria ser feito de acordo com os regulamentos; quem se antecipava ou se atrasava, perdia pontos. E Chris estava decidida a não cometer um único erro naquele dia.
Olhando com nervosismo para a porta e sem fazer a menor ideia da hora exacta, Chris, impulsivamente, voltou‑se e correu para o quarto a fim de olhar, mais uma vez, o despertador. Faltavam dois minutos para as duas horas. Supôs que poderia ir contando os segundos à medida que regressasse, lentamente, para a porta da sala de estar. Saiu do quarto nas pontas dos pés e caminhou lentamente pelo corredor, contando, em voz baixa, os segundos.
Safa ‑ reflectiu ‑ a gente não faz a menor ideia de como um segundo é comprido, até que se começa a contá‑los. Quando parou diante da porta ainda não chegara aos sessenta. Ficou parada diante da porta, impaciente. Então veio‑lhe a ideia de fazer uma contagem regressiva, como as que se fazem quando vão lançar foguetões espaciais. Lentamente, partiu de um número e quando chegou a "zero", inspirou profundamente, deu um passo em frente e bateu com os nós dos dedos na porta.
‑ Entra ‑ convidou uma voz vinda do interior da sala.
Lentamente, Christine abriu a porta da sala de estar. Entrou, fechou a porta atrás de si e olhou em torno.
Sentadas à volta de uma mesa estavam as funcionárias da escola. Nas mãos delas repousava a sorte de Christine Parker. Na cabeceira da mesa, sentava‑se Cynthia Porter, a assistente do superintendente. Junto dela estava Barbara Clark. A seguir, vinha Emma Lasko, a responsável pelo dormitório. Na cabeceira oposta da mesa, em frente de Cynthia, acomodava‑se Elaine Ferraro, a monitora que estava presente no dia em que Chris tentara a fuga. Do lado oposto da mesa, diante de Emma Lasko e de Cynthia, havia uma cadeira vazia.
Cynthia exibiu o seu sorriso luminoso "veja‑como‑a‑pasta‑de‑ dentes‑ que‑uso‑deixa‑os‑meus‑dentes‑alvos‑e‑brilhantes".
- Senta‑te, Christine ‑ disse Cynthia. ‑ Já estamos prontas para começar.
Chris hesitou uma fracção de segundo e, depois, acomodou‑se na cadeira que a assistente do superintendente lhe havia indicado. Arrastou a cadeira para que pudesse descansar os cotovelos sobre a mesa, mas, logo de seguida, lembrando‑se de que as funcionárias poderiam não gostar dessa posição, recolheu os braços, pousando as mãos sobre o colo e esforçou‑se por ficar com o tronco erecto e encostado ao espaldar. Deu uma rápida olhadela em torno de si examinando as mulheres que por sua vez a analisavam com igual curiosidade. Embora Barbara se mostrasse séria e concentrada, Chris pôde captar a alegria que emanava da professora. Cynthia e Elaine não demonstravam qualquer emoção. Os olhos de Emma Lasko, porém, traíam um traço de cautela.
‑ Muito bem ‑ disse alegremente Cynthia, ‑ vamos tratar do assunto em questão? ‑ Em seguida, voltando‑se para Lasko, disse: ‑ Emma, és a guarda do dormitório. Gostarias de começar o debate?
Lasko hesitou alguns momentos, provavelmente procurando um modo de expressar a sua opinião. Para ganhar tempo, passou as mãos pelos cabelos ajeitando‑os e, finalmente, assumiu uma atitude condescendente, dizendo:
‑ Bem, ela tem dado conta das suas tarefas, dentro do dormitório, acho eu. E cuida da sua vida não se envolvendo em complicações.
Cynthia voltou os olhos para Elaine:
‑ Elaine. ‑ A monitora fez um sinal afirmativo, com a cabeça.
‑ Ela tem sido bastante cooperativa. Não se empenha nos jogos para vencer. Mas muitas delas fazem o mesmo. Quero, contudo, lembrar que ela esteve na solitária ainda não faz muito tempo.
Cynthia franziu a testa e brincou com um lápis, antes de admitir: ‑ Claro que depois de uma tentativa de fuga costumamos cancelar o privilégio de visitas à família por algum tempo.
‑ Sabemos isso muito bem ‑ interrompeu Barbara Clark, impaciente. ‑ Aquela tentativa de fuga não foi planeada. Foi uma explosão emocional que lhe aconteceu.
‑ Não estamos muito certas do que aconteceu ‑ disse secamente Miss Lasko.
A fisionomia de Barbara assumiu uma expressão sombria:
‑ Nós já discutimos esse ponto, Emma.
A responsável pelo dormitório fixou os olhos em Chris.
‑ Porque não me contaste sobre aquela história do Johnny ‑ perguntou acusadoramente.
Chris arregalou os olhos. Sentiu um nó no estômago. NãO fazia a menor ideia de que iriam discutir aquele desagradável episódio. Corou embaraçada e evitou os olhos da responsável. Alarmada com a reacção de Chris e tentando controlar o seu aborrecimento com a intempestiva atitude da responsável pelo dormitório, Barbara concentrou a sua atenção em Lasko.
‑ Pensei que tínhamos concordado em não discutir o caso na presença de Çhris.
‑ Sinto muito ‑ desculpou‑se Miss Lasko, adoptando uma atitude defensiva. - Sinto realmente muito mas as raparigas negaram tudo.
‑ E o que esperavas que elas fizessem? ‑ Explodiu Barbara. ‑ Que te confessassem tudo por escrito?
Miss Lasko parecia estar realmente preocupada:
‑ Olha, Bab, eu não quero que nenhuma das minhas meninas seja ofendida. Isso é muito importante para mim.
Percebendo que a tensão crescia e procurando deitar um pouco de água na fervura, Cynthia tornou a apanhar o seu lápis e tamborilou com ele sobre o tampo da mesa.
‑ Está bem, Emma ‑ disse conciliatoriamente ‑ sabemos que com esses edifícios cheios de meninas, coisas como esse desagradável episódio podem acontecer de vez em quando. Só te peço que aumentes a tua vigilância.
‑ Eu tenho estado vigilante. Não me descuido ‑ respondeu Emma Lasko na defensiva. ‑ Simplesmente, não posso aceitar o que Christine Parker contou como um facto ocorrido nas dependências sob minha responsabilidade.
Barbara dessa vez não pôde ocultar o seu aborrecimento.
‑ Todas nós já tínhamos concordado em que o assunto não deveria ser trazido à baila nesta reunião. Portanto basta de falar nisso. O propósito desta reunião é estabelecer se podemos ou não permitir que Christine vá passar alguns dias com os pais. Digamos, quatro dias. Se ela se comportar bem, então poderemos dar-lhe a oportunidade de retornar à custódia temporária dos pais. Ela será, provavelmente uma das raparigas que nunca mais regressarão a esta escola. Como sabem, estatisticamente, apenas uma em cinco sai para não mais voltar. As demais, invariavel mente, regressam. Acho que Chris será uma das privilegiadas porque acredita em si. Ela quer ser alguém. Obter algo de bom na vida. Vamos dar‑lhe essa oportunidade.
Com uma expressão de dúvida no rosto, Cynthia começou a objectar:
- Mas, uma autorização de visita ao lar, concedidas poucas semanas depois de uma tentativa de fuga...
Barbara bateu com as mãos espalmadas sobre o tampo da mesa. Inclinou‑se para a frente, os músculos do pescoço formando cordas salientes.
‑ Não podemos viver amarradas aos nossos regulamentos. - A voz da professora era tensa e insistente. ‑ Se continuarmos a proceder assim, mais atentas à letra do que ao espírito, acabaremos por causar a essas raparigas mais mal do que bem. Deixemos que Chris saia por uns dias. Devemos‑lhe essa oportunidade.
Cynthia meditou por alguns momentos, ainda tamborilando com o lápis. Elaine parecia enfastiada, como se desejasse estar noutro lugar. Miss Lasko exibia um ar francamente hostil, como se ainda nutrisse a impressão de estar a ser enganada. Barbara continuava, porém, a sorrir, o que infundiu novo ânimo a Chris. Encarando a professora a jovem devolveu‑lhe o sorriso, sem poder, contudo, ocultar o nervosismo que a dominava.
Cynthia, finalmente, colocou cuidadosamente o lápis sobre a mesa e observou:
‑ Muito bem, nada mais há a discutir, de momento. - Voltou‑se para a internada. ‑ Chris, podes voltar para o teu quarto. Mais tarde avisar‑te‑emos da decisão a que chegarmos.
Chris, nervosa, inclinou‑se para a frente e agarrou fortemente a borda da mesa:
‑ Será que me vão dar uma oportunidade? Por favor.
‑ implorou ‑ gostaria tanto de ter essa oportunidade.
Cynthia exibiu um dos seus sorrisos neutros:
‑ Vamos ver, Chris, vamos ver. Agora tens que nos deixar sós e ir para o teu quarto. Na devida altura, far‑te‑emos saber a nossa decisão.
Chris dirigiu um sorriso nervoso a Barbara, esperando ardentemente obter da professora um indício, uma pista sobre se lhe permitiriam ou não ir passar alguns dias em casa. Embora Barbara se limitasse a manter o sorriso, Chris percebeu instintivamente que a professora ainda estava ao seu lado e que todas as esperanças deveriam repousar em Barbara Clark.
‑ Podes ir para o teu quarto, Chris ‑ disse‑lhe Barbara, acrescentando: ‑ Prometo‑te que serei a primeira a
ir‑te procurar para te dar a noticia, qualquer que seja a
decisão tomada.
Lentamente, Chris levantou‑se e afastou a cadeira.
‑ Sabem, estou realmente a falar a sério quando digo que desejo essa oportunidade e que saberei aproveitá‑la. Sei que agora darei valor a isso. ‑ Sem esperar resposta, virou‑se e encaminhou‑se para a porta. Abriu‑a, saiu para o corredor, fechou‑a atrás de si, o mais delicadamente que lhe foi possível, enquanto pensava. O que deveria fazer era bater a porta com toda a força e destruir todas as minhas oportunidades de ir para casa.
Repentinamente, sentiu uma grande necessidade de tomar um pouco de ar fresco. Contudo, conteve‑se. Se saisse para o pátio de recreio e elas não a pudessem encontrar de imediato, teria que esperar algum tempo para saber qual fora a decisão da junta. Não fazia a mínima ideia do que iriam decidir, mas, a sua mais ardente esperança era de que decidissem favoravelmente. Tinham dado oportunidade a ladras, a desordeiras, a raparigas que tinham cometido estupro. Porque não haveriam de lhe dar uma oportunidade? Afinal, que mal fiz eu? Que prejuízos causei aos outros? A única pessoa que prejudiquei foi a mim própria. Com esses pensamentos em mente, percorreu o corredor, dirigindo‑se directamente para o seu quarto. Agora nada mais lhe restava fazer senão esperar.
De volta ao quarto e na tentativa de passar o tempo, tentou ler. A ansiedade, porém, era tão grande e a possibilidade de uma resposta negativa preocupava‑a tanto que não foi capaz de concentrar a atenção no texto escrito. As letras impressas tornaram‑se símbolos ininteligíveis, pois o seu significado fugia‑lhe inteiramente. Apenas um pensamento lhe dominava a mente, gravado na sua consciência. Será que me deixarão ir para casa? No fundo da
consciência havia uma preocupação que aos poucos ia tomando corpo. O que aconteceria se elas decidissem permitir‑lhe uma visita a casa e, depois, não conseguissem entrar em contacto com os pais? E se o pai e a mãe estivessem a brigar e irritados dessem uma resposta errada a Cynthia, a Mister Thorpe ou mesmo a Barbara, quando ligassem para a sua casa, dizendo que Chris iria passar alguns dias em casa?
Meia deitada no beliche, com as costas apoiadas no travesseiro encostado à parede e o livro fechado no colo, Chris tentou tirar da sua mente os "se". Olhou para o despertador sobre a secretária. O tique‑taque parecia mais alto do que nunca e se não fosse pelo ruído da máquina, poderia jurar que os ponteiros estavam parados. Impacientemente desceu do beliche e foi até à porta para examinar o corredor. Estava vazio. Voltando ao quarto abriu a gaveta da cómoda e começou a examinar a roupa limpa e a verificar os objectos de toilete de uso pessoal. Estava a precisar de uma escova de dentes e o pente tinha alguns dentes partidos. Arrumou e voltou a arrumar as suas coisas cinco ou seis vezes. Finalmente, cansada, fechou a gaveta. Foi até à janela, olhou para fora por alguns momentos e regressou à porta. Mais uma vez examinou o corredor vazio. Ninguém à vista. Impaciente, galgou lentamente a escadinha para o beliche interrogando‑se se conseguiria adormecer a despeito do nervosismo. Não obstante, decidiu tentar. Mal tinha conseguido uma posição confortável lembrou‑se de que se esquecera de tirar Os sapatos.
Segundos mais tarde ouviu um ligeiro ruido na porta do quarto, que estava entreaberta.
Como que impulsionada por uma mola, Chris sentou-se na cama, assustada.
O coração começou a bater descontroladamente. Então ouviu a voz familiar perguntando gentilmente:
‑ Posso entrar?
Saltando para o chão correu para a porta. Era Barbara. Chris sentia‑se tão nervosa que não conseguia articular uma única palavra; ficou parada, encarando a professora. Os olhos muito arregalados, imploravam, mudamente, enquanto os dentes batiam uns nos outros.
Depois de examinar penalizada a patética figurinha à sua frente, Barbara explodiu num radiante sorriso.
Impulsivamente, abraçou a jovem ao mesmo tempo que lhe murmurava ao ouvido sem poder conter toda a alegria que lhe inundava a alma.
‑ Amanhã, Chris. amanhã.
Gentilmente acariciou os cabelos castanhos e macios da jovem.
‑ Amanhã, querida, podes ir a tua casa passar alguns dias.
Sábado, pouco depois do meio‑dia, ansiosa, Chris esperava impacientemente, sentada na borda de um sofá na sala de recepção. Conservava as costas muito direitas e os joelhos juntos. Apertava as mãos com força, no colo. Ao seu lado, a mala velha e estragada, ainda com as etiquetas de muitos países contendo todos os seus pertences. Além dela, na sala, só se encontrava a recepcionista, acomodada descuidadamente na sua mesa de trabalho e conversando interminavelmente com alguém pelo telefone.
Quatro dias ‑ reflectiu chrris. Disseram‑lhe que tinha o sábado, o domingo, a segunda‑feira e a terça‑feira. Então, se tudo corresse bem, não precisaria de voltar ao reformatório.
Ficou a reflectir sobre as palavras: se tudo corresse bem. Claro que tudo iria correr muito bem. A única coisa que podia trazê‑la de volta àquela detestável escola era uma nova fuga de casa. Era uma 'proposição muito simples que estava diante dela. Fugir de casa, era a mesma coisa que fugir directamente para o reformatório. Se ficasse em casa ‑ e era exactamente isso que pretendia fazer
‑ acontecesse o que acontecesse, ninguém a poderia obrigar a regressar ao reformatório.
Deu uma olhadela ao relógio de parede. Eram pouco mais de doze horas e trinta minutos. Tinham‑lhe dito para ficar pronta ao meio dia em ponto. Mas, Chris, desde as onze horas da manhã já estava pronta para partir.
‑ Por que será que o meu pai está a demorar tanto?
‑ perguntou para si própria. - Ele vem buscar‑me. Tenho
a certeza que vem. O meu coração diz‑me que ele está a
caminho. Mas, por que será que está a demorar tanto
tempo? Na administração da escola tinham‑lhe dito que o pai a viria buscar no sábado, ao meio dia para passar
alguns dias em casa, com a família.
Voltou a cabeça para a porta e franziu a testa ao ocorrer‑lhe um novo pensamento. E se a mãe estivesse nervosa e..? Sacudiu energicamente a cabeça, para se livrar daquele pensamento derrotista.
A recepcionista levantou os olhos para a jovem a tempo de a ver mexer a cabeça de um lado para o outro. à pessoa com quem falava ao telefone, pediu:
‑ Espere um minuto.
Voltando‑se para Chris perguntou, solícita:
‑ Estás bem?
Chris encarou espantada a recepcionista e depois compreendendo a razão da pergunta corou:
‑ Oh, eu estou muito bem, obrigada.
Naquele momento a porta da rua foi aberta por alguém que vinha a entrar. Numa enorme expectativa Chris levantou‑se e olhou fixamente para a porta. O coração parecia que ia sair pela boca. A pessoa que tinha aberto a porta entrou. Era o pai.
Ben Parker era um homem de compleição rude, rosto de traços grosseiros, demonstrando estar na metade da casa dos quarenta. Tinha os cabelos louros cortados rentes e os olhos eram de um azul glacial. Vestia informalmente, usando umas calças de tecido preto e uma camisa branca, sem gravata, aberta no peito.
Chris deu alguns passos hesitantes em direcção do pai que, por sua vez, se aproximava lentamente. A princípio parecia que iriam cair directamente nos braços um do outro. Mas pararam a alguma distância, contemplando-se embaraçados e nervosos. Havia uma certa reserva nos modos de Ben Parker e Chris percebeu imediatamente o embaraço do pai. Ben era o tipo de homem que considerava qualquer demonstração de afecto como um sinal de fraqueza masculina e embora estivesse visivelmente emocionado por tornar a ver a filha, lutou para se conter. Chris aproximou‑se do pai e a despeito das suas reservas, Ben segurou na mão da filha, engolindo em seco algumas vezes para ocultar o seu embaraço.
Finalmente, largou a mão de Chris, fez um gesto a aparentar a sua despreocupação e, depois de olhar em torno CUriOSO e hesitante, perguntou:
‑ Podemos... ‑ fez uma pausa e recomeçou a pergunta: ‑ Já podes... isto é, podemo‑nos ir embora?
Chris fez um movimento afirmativo com a cabeça e disse:
‑ Agora mesmo.
A jovem voltou‑se para apanhar a mala, mas ele antecipou‑se:
‑ Deixa. Eu levo isso. ‑ Parecia estar satisfeito por poder fazer algo pela filha. Virou‑se para a porta e Chris seguiu‑o. No umbral, a jovem parou um instante para dizer à recepcionista:
‑ Adeusinho.
‑ Adeusinho, querida ‑ respondeu a mulher.
Sem trocarem palavras, Chris e Ben encaminharam‑se para o automóvel, um "Sedam" brilhante e bem cuidado, de quatro portas e modelo antigo. Chris abriu a porta da frente do lado direito e sentou‑se no banco. Ben colocou a mala sobre o banco traseiro e subiu para o lugar do motorista.
- Caramba! ‑ dizia Chris consigo própria, mal podendo crer que estava realmente a caminho de casa!
Continuaram em silêncio enquanto Ben Parker ligava a ignição e punha o carro em andamento. Habilmente, dirigiu o velho carro para a rua. Naquele silêncio não havia, contudo, mútuo entendimento.
Chris estava sentada no seu lugar, muito direita, com as mãos cruzadas no colo, os olhos fixos no caminho em frente do carro. Depois de terem saído do acesso ao colégio e entrado na estrada principal, com o carro a ganhar velocidade, Ben pigarreou e, sem tirar OS olhos do caminho, observou:
‑ Estás com óptimo aspecto.
Chris esboçou um sorriso vago.
‑ Engordei um pouco. - disse à guisa de explicação, acrescentando: ‑ A alimentação... bem, o pai sabe como é nesses lugares. Eles são muito cuidadosos com a comida. Tudo cientificamente doseado...
Parker deu uma olhadela rápida em direcção à filha e nesse momento, pai e filha encararam‑se por alguns instantes.
‑ E a mãe? Como vai ela? ‑ indagou Chris.
‑ Vai andando muito bem ‑ respondeu Ben, ao mesmo tempo que a expressão do seu rosto se tornava mais sombria. ‑ Sabes como ela é...
Chris não queria falar sobre aquilo e por isso preferiu calar‑se.
Ben continuou a procurar palavras para descrever e justificar o comportamento da esposa:
‑ Sabes como ela se sentia por estares naquele colégio. Mas agora, ela está ainda mais nervosa, depois que soube que voltavas para casa. ‑ Encolheu‑se ligeiramente no banco, como se estivesse arrependido do que tinha dito. Ficou em silêncio por alguns instantes e, quando voltou a falar, procurou fazê‑lo de maneira alegre e despreocupada, tentando mudar o tema da conversa. ‑ Sara, Chris, ainda não me disseste nada sobre o carro. Estás a ver como o motor é silencioso? Ate' parece um relógio.
Aquele carro era o grande orgulho de Ben Parker. Era o tipo de homem que dedica ao automóvel todo o carinho e atenção que deveriam ser dispensados à família.
‑ Silenciador novo ‑ disse ela. O tom era o de uma constatação, não de uma pergunta.
‑ E uma nova afinação, também. Está óptimo. Mais afinado do que um piano de concerto ‑ disse Ben com orgulho. ‑ Ouve o motor, Chris. Afinado.
A despeito do seu ar descuidado, Ben Parker não conseguia dominar uma pergunta que lhe persistia na mente e que não fizera ainda, em parte porque temia uma resposta que não desejava ouvir. O sorriso forçado dissipou‑se. A despeito de o não querer admitir, um esmagador sentimento de vergonha dominava toda a gama das suas sensações.
Finalmente explodiu. Mas, Ben, construiu a pergunta de modo a indicar a Chris qual a resposta que desejava ouvir, para acalmar a própria consciência.
‑ Afinal, aquilo não é assim tão mau, pois não, filha?
No fundo, porém, sabia que o lugar era horrível, detestável.
Chris foi dominada por uma onda de angústia e voltou os olhos para o pai, encarando‑o profundamente com os seus olhos castanhos. Desviando os olhos da estrada, Ben encarou também rapidamente a filha, dirigindo-lhe um breve e inquisitivo olhar. A coisa mais fácil do mundo era dizer a Ben exactamente aquilo que ele queria ouvir. Bastar‑lhe‑ia responder ‑ Claro, pai ‑ e pronto. Todos ficariam satisfeitos. Contudo, foi capaz de ligar as palavras. Por isso, depois de alguns segundos, desviou os olhos sem responder.
Parker voltou a dedicar a sua atenção ao caminho.
‑ Ora, vamos, Chris ‑ disse, pondo o braço direito ao longo das costas do banco. Aquele foi o primeiro gesto de afeição que se atreveu a demonstrar a Chris e a jôvem apressou‑se a aninhar‑se junto do pai. Vieram‑lhe as lágrimas aos olhos, porém conseguiu dominá-las. Gosta de mim:
Pensou. Gosta de mim. E sei que está triste por me ter mandado para aquela escola. Chris sentiu uma sensação agradável espalhar‑se por todo o seu corpo. Aconchegou‑se ainda mais ao pai.
Os Parker viviam numa modesta casa de alvenaria e madeira, que excepto por alguns detalhes de decoração na fachada, pouca diferença fazia das demais construções residenciais das vizinhanças. Era uma espécie de caixa mais ou menos volumosa em que o construtor abriu a intervalos certos portas e janelas. O resto, eram detalhes decorativos acrescentados com extremo mau gosto, para atrair a atenção dos possíveis candidatos, na altura da construção. O que primitivamente se destinava a ser um relvado, era agora, um pedaço de terra coberta de vegetação selvagem. Ao longo dos muros externos da casa havia canteiros de petúnias, lilazes e malmequeres.
Os pneus guincharam quando Parker girou o volante para fazer o carro entrar no pequeno espaço de betão entre o limite do terreno e a porta da garagem. Abriu a porta desta e fez o carro avançar. O recinto estava ocupado por bancadas, ferramentas e instrumentos mecânicos mal deixando espaço para acomodar o automóvel. Embora no passado aquela casa tivesse servido de cenário para muitos momentos de tristeza, Chris sorriu alegremente ao ver a modesta e desgraciosa construção. Apesar de tudo o que lhe acontecera entre aquelas quatro paredes, era ali o seu lar. Ali é que era o seu lugar. Ela pertencia àquela casa.
- Bem ‑ murmurou Ben Parker, um tanto constrangido ‑ Cá estamos.
Chris, sem dizer palavra, saiu do automóvel. Enquanto Ben apanhava a mala do assento traseiro, dirigiu‑se para a varanda. Tinha pisado o ultimo degrau quando a porta se abriu e apareceu a mãe.
Mrs. Parker era uma mulher magra e de cabelos negros, exibindo profundas olheiras e prematuras rugas de preocupação. Usava um vestido estampado com motivos florais, posto descuidadamente sobre o corpo e todo enrugado. Não usava meias e calçava sapatos de saltos baixos.
Chris correu para se aninhar entre os braços da mãe e as duas, estreitamente abraçadas, começaram a chorar embora lutassem para conter o pranto.
‑ Que confusão! ‑ exclamou Mrs. Parker em voz trémula. - Oh, minha filha, que terrível confusão! - Separaram‑se e ficaram a olhar uma para a outra longamente.
‑ Não quero voltar para lá ‑ disse Chris fazendo um apelo desesperado enquanto o pai se aproximava trazendo a mala. Um lampejo de dúvida cruzou o olhar da senhora Parker.
- Querida, não sei bem o que fazer. Eles disseram que ficavas connosco apenas quatro dias
‑ Mas, se tudo correr bem ‑ interrompeu Chris, eu poderei ficar.
A senhora Parker mostrou‑se mais inquieta do que antes. Abriu a boca para dizer algo, mas, pensando melhor, resolveu calar‑se.
‑ Mãezinha ‑ pediu Chris, agarrando os braços da mãe. ‑ Não vou poder voltar para aquele lugar. Não posso, mãe. Juro que não posso. A mãe não imagina como aquilo lá é horrível!
Ben Parker aproximou‑se por trás e pôs a mão sobre o ombro da filha. Tentou parecer despreocupado e alegre:
- Ora vejam lá. A minha filha acaba de chegar a casa e já está a discutir com a mãezinha. Vamos> vamos todos lá para dentro.
Os três entraram, dirigindo‑se para a cozinha.
‑ Sentem‑se aí que eu já volto ‑ disse Ben Parker, saíndo e deixando a mulher e a filha sós na cozinha.
Com uma expressão de dúvida no olhar, Chris encarou a mãe. Não gostara da voz de Mrs. Parker quando esta lhe recordou que deveria ficar apenas quatro dias. Precisava de convencer a mãe de que não deveria regressar ao reformatório. Que precisava de ficar em casa, junto da família.
‑ Mãe, tem que acreditar quando lhe digo que não quero voltar para aquela escola. ‑ Chris falava com determinação, mas, evitando cuidadosamente qualquer inflexão que pudesse ser interpretada pela mãe como sinal de antagonismo.
‑ Bem, minha filha, não te queremos mandar para lá outra vez ‑ disse, do aposento vizinho a voz de Parker.
‑ Não estávamos muito satisfeitos por te termos naquele lugar ‑ acrescentou cauteloso.
‑ Eu sei, pai ‑ respondeu Chris, sem muita convicção.
‑ Não te trataram mal, pois não? pois não? ‑ Perguntou Ben Parker voltando à cozinha e parando diante de Chris.
A jovem sentiu um nó na garganta, mas estava resolvida a não demonstrar as suas emoções. Fechou os olhos e meneou negativamente a cabeça. ‑ Não, pai - murmurou em voz baixa.
‑ Ouviste? ‑ perguntou Parker avançando para a esposa, rodeando‑a e sentando‑se junto da mesa. ‑ Ouviste o que ela disse? Ninguém a maltratou, lá. Ninguém lhe fez mal.
Disse aquelas palavras em tom confiante, como prova de que tinha feito a coisa certa. Mas, ele, Chris e a senhora Parker, sabiam perfeitamente que era apenas aquilo que ele queria acreditar. Encarou a mulher em busca de um sinal de encorajamento ou de acordo. Sacudindo o dedo para dar ênfase às suas palavras prosseguiu:
‑ Eu perguntei ao juiz se eles lhe iriam bater. E ele respondeu‑me que não. Então, eu insisti: olhe, o melhor é dizer‑me a verdade. Sabia que a minha filha estaria lá muito bem. Caso contrário, jamais teria consentido que a levassem.
Chris dominou a vontade de gritar. Queria que o pai mudasse de assunto.
Fechando os olhos e cerrando os punhos, inspirou profundamente e, depois, respondeu numa voz sem o menor traço de emoção.
- Não, pai. Ninguém me bateu. Ninguém me tratou mal.
A senhora Parker aborrecida com as evidentes tentativas do marido para se livrar do sentimento de culpa disse em voz baixa, porém firme, igualmente despida de qualquer emoção
- Ben, nunca ninguém ergueu a mão para a tua filha, salvo tu próprio.
Parker ficou vermelho.
- Eh, e então? - Objectou o homem rapidamente traindo na sua voz um tom de ameaça. ‑ Não me comeces a pôr as culpas.
A mãe de Chris, assustada, respirou profundamente e murmurou:
- Não, Ben. eu não quis dizer...
‑ Quiseste sim - latiu Ben Parker. Voltou‑se para a filha com o rosto grosseiro contorcido pela raiva: ‑ E tu também, quando o teu irmão está ao pé de ti. Vocês Os dois sempre andavam juntos e estavam de acordo em tudo. Quem estava errado era eu. ‑ Parker, agora, berrava furiosamente.
Chris e a mãe trocaram olhares nervosos. A jovem brincava com os desenhos do oleado sobre a mesa.
‑ Oh, Ben ‑ pediu a senhora Parker. ‑ A nossa filha voltou não há meia hora. Não vamos começar tudo, outra vez.
Percebendo a apreensão estampada nos rostos da mulher e da filha Ben Parker procurou controlar‑se. A sua vida já era dura discutindo com a mulher. O que seria com as duas. Não queria aborrecimentos, não, pelo menos no primeiro dia do regresso de Chris. Sabia que se desejava tranquilidade no lar tinha que as mimar um pouco. Fazendo um esforço consciente para se dominar, virou‑se para Chris e disse‑lhe, com voz calma:
‑ Bem, às vezes erro ‑ levantou os ombros num gesto de indiferença - mas, pelo menos, tento. Sabes o quê, minha filha? Tento fazer as coisas funcionarem correctamente, nesta casa.
Ansiosa por explorar a vantagem enquanto ainda havia uma oportunidade, a senhora Parker voltou‑se para o marido:
‑ Está certo. Ela, agora, está em casa. Vamos esquecer tudo. Dirigindo‑se a Chris, perguntou: ‑ Queres descansar um bocadinho?
Chris fez um sinal afirmativo com a cabeça, aliviada pela oportunidade de poder afastar‑se antes de surgirem novos aborrecimentos. Empurrou a cadeira para trás e pôs‑se de pé.
‑ Tiveram alguma notícia de Tom? ‑ perguntou.
‑ Tivemos, sim ‑ respondeu a senhora Parker. ‑ Ele mudou‑se para perto de Tuscon.
Chris experimentou um interesse renovado, enquanto um plano germinava na sua mente.
‑ A mãe tem o endereço dele? ‑ perguntou o mais casualmente que lhe foi possível.
‑ Tenho ‑ respondeu a senhora Parker, com uma ligeira nota de tristeza maternal velando‑lhe a voz. ‑ O primeiro postal em seis meses.
Levantou‑se e foi até ao balcão que separava a cozinha da sala de jantar e remexeu numa pilha de papeis ‑ contas e facturas ‑ e apanhou um bilhete postal.
‑ Posso ver? ‑ pediu Chris, avançando em direcção à mãe.
A senhora Parker entregou‑lhe o cartão. Christine leu‑o ansiosamente enquanto Ben Parker observava. Um ar de desaprovação espalhou‑se pelo rosto da jovem.
‑ É Isso mesmo ‑ comentou Ben, interpretando os sentimentos da filha. ‑ Não está quieto. Muda‑se todos os meses.
‑ Mandou alguma fotografia? ‑ perguntou Chris.
‑ Não ‑ respondeu a senhora Parker temendo que o assunto degenerasse noutra discussão.
‑ Nem se deu ao trabalho de me mostrar o meu neto
‑ queixou‑se Ben Parker, com o ar de um garotinho a quem os outros meninos não deixam entrar na equipa.
Chris não deu atenção à observação do pai e encaminhou‑se para fora da cozinha, lendo ainda o postal. Nos lábios, bailava‑lhe um sorriso de satisfação.
Quando chegou à porta ouviu a mãe que a chamava:
‑ Chris, as tuas amigas Ellen e Carol disseram que te vinham visitar. ‑ Chris, contudo, não se preocupou em responder, continuando o caminho.
Ao chegar ao quarto olhou em torno de si examinando o ambiente familiar e um sorriso de satisfação irrompeu‑lhe nos lábios. O primeiro, real, profundo e gratificante, havia muito tempo. O seu ursinho panda, de peluche, ainda estava exactamente onde o tinha deixado, sobre o travesseiro. O seu "diário" que dispunha de um fecho de segurança cujo segredo só ela conhecia, estava sobre a mesinha de cabeceira. As fotografias, suas e das amigas, que colocara na moldura barata do espelho sobre a cómoda, ainda lá estavam sem ninguém lhes ter tocado.
Debruçou‑se na janela.
‑ Que vista maravilhosa - disse para si própria. - Nem grades, nem barras de ferro.
Afastou as cortinas e abriu as janelas de par em par, ficando a olhar para o jardim mal cuidado e para as árvores, mais adiante. Uma ligeira brisa correu pelo quarto acariciando‑lhe o rosto e ondulando as cortinas que enfunaram como uma vela de barco. Estalou uma tábua na sala de entrada. Voltou‑se. A mãe estava parada diante da porta.
‑ Chris ‑ disse a senhora Parker, mostrando‑se visivelmente embaraçada. ‑ Ninguém na vizinhança sabe onde
estiveste. Quando as tuas amigas perguntavam por ti, eu dizia que estavas fora da cidade, a visitar o Tom.
A jovem meneou a cabeça, num gesto de compreensão.
‑ Mãe, a mãe sabe muito bem que o que eu queria, de verdade, era ir morar com o Tom. Por que é que não me deixaram ir para a casa dele?
Impulsivamente, a senhora Parker correu para a filha, tomando‑a nos braços e cingindo‑a num apertado abraço:
‑ Filhinha! ‑ exclamou.
Gentilmente, Chris libertou‑se do abraço da mãe e afastou‑a de si um pouco.
‑ Está bem, está bem ‑ disse a jovem conciliatoriamente. Deu um passo para trás e sentou‑se à beira da cama, percebendo claramente a inquietação da mãe. Procurando evitar novos motivos de aborrecimento, cruzou os braços e encarou a mãe com fingida severidade e disse:
‑ Agora, olhe mãe: quero almoçar às onze e quarenta e cinco, em ponto. E ninguém poderá fumar aqui sem a minha autorização. Além disso, já elaborei um programa de trabalho para si. ‑ Isso quebrou a tensão e as duas sorriram.
‑ Sua marota ‑ disse a senhora Parker a brincar.
‑ Ah, há mais ‑ acrescentou Chris. ‑ Não é permitido o uso da linguagem menos própria.
Enquanto a senhora Parker se afastava, Chris continuava a sorrir e atirou‑se de costas para a cama, com toda a força, fazendo as molas oscilarem várias vezes. Queria certificar‑se de que estava, realmente, na sua própria cama, macia e confortável e não naquele horrível e estreito beliche que lhe deram no reformatório.
Impulsivamente, levantou‑se de um pulo e correu para a janela. Como era bonita a paisagem vista assim, livremente, a liberdade, a ausência de restrições provocaram‑lhe um sentimento de bem‑estar. Pelo simples prazer de sentir a liberdade, esticou o braço para fora da janela e moveu‑o em vários sentidos. Pulou para o peitoril e sentou‑se nele com OS Pés para fora. Tornou a saltar para dentro. Fazia isso pelo simples prazer de desfrutar a liberdade de ficar diante de uma janela sem grades e sem barras. Agora estava mais convencida de que nunca jamais voltaria para essa escola horrível, onde tudo estava trancado, limitado, cerceado. Não. Nunca mais voltaria para o reformatório.
Naquele mesmo dia, ao entardecer, Chris estava sentada, extremamente feliz, nos degraus da varanda, bebendo uma garrafa de laranjada enquanto apreciava o pai a trabalhar no automóvel, cujo motor procurava regular ainda melhor.
Sem levantar os olhos do que estava a fazer, Ben Parker perguntou a Chris: ‑ Então, já pensaste o que vais fazer hoje?
‑ Estou à espera da mãe ‑ respondeu Chris. - Vamos fazer compras.
‑ Compras? o que é que vocês as duas vão comprar?
‑ indagou Ben Parker, ainda ocupado nas suas afinações no motor do carro.
‑ Roupas ‑ respondeu Chris. Virando‑se para dentro gritou em voz aguda: ‑ Vamos já, mãe. ‑ Depois, sem reflectir, meneou negativamente a cabeça e disse em voz baixa: ‑ Há uma hora que estou aqui. Já devia estar pronta.
Ben Parker pós‑se de pé. Lentamente, passou um pano pelas mãos para limpar o óleo. Com o mesmo pano tirou uma mancha de óleo da testa e com a fronte franzida de preocupação perguntou - filha: Ela não está a beber, pois não?
- Não - retorquiu rapidamente Chris querendo ocultar a sua própria preocupação. Virando‑se para o interior da casa gritou, através da porta aberta: - Mãe!
Por alguns momentos Ben Parker olhou com ar de dúvida para a filha. Finalmente concluiu que a jovem falava verdade. ‑ Olha - propôs. ‑ Quando vocês voltarem vamos dar um passeio. Vamos comer uma pizza ou outra coisa qualquer que gostes. - Ben falava cauteloso e persuasivamente.
- Caramba, pai, que bom! ‑ exclamou Chris, verdadeiramente contente.
Ben apanhou uma ferramenta e voltou a curvar‑se sobre o motor do carro. Vendo o pai a trabalhar, curvado sobre o motor do carro, Chris pensou num domador de feras enfiando a cabeça na boca do leão.
‑ Lá naquela escola não vos davam pizzas, pois não?
‑ Perguntou Ben à filha.
‑Não. Só pão e água.
‑ Humm, e que tal o pão?
‑ Duro.
‑ mas aposto que a água não era assim tão má!
‑ Para água salgada não era muito má.
E assim recordaram naquela conversa inconsequente bons momentos dos velhos tempos provocando, contudo, nos dois uma saudade pungente, tal como acontece quando se descobre num monte de velhos discos um que foi favorito e ao tocá‑lo, sente‑se um misto de satisfação e tristeza.
Parker tirou a cabeça debaixo da tampa do motor do carro e encarou a filha com uma expressão sorridente nos olhos. Exactamente naquele instante a porta, por trás de Chris abriu‑se e os dois voltaram‑se e viram a senhora Parker que cambaleou ligeiramente ao sair de casa.
‑ Não sou capaz de encontrar a minha bolsa ‑ murmurou a senhora Parker com voz pastosa. ‑ Onde está a minha bolsa?
O ligeiro oscilar do corpo e a dificuldade em articular as palavras, traíram‑na. Estivera a beber, outra vez.
O coração de Chris quase parou de bater.
‑ Oh, mãe ‑ exclamou compungida, não sabendo o que fazer. As lágrimas vieram‑lhe aos olhos. Ben, deixando cair a ferramenta no chão, passou rapidamente ao lado de Chris, galgando os degraus da varanda de um pulo e dirigiu‑se para a esposa. Uma raiva profunda contorcia a fisionomia do homem. Chris ergueu‑se rapidamente tentando embargar os passos do pai.
‑ Espere, pai, espere! Eu tomo conta dela, por favor, pai, não...
Se Chris estivesse a fazer um apelo a um touro furioso, em plena arremetida, teria obtido o mesmo resultado. Não seria ouvida. Agarrando a mulher pelo braço, Ben arrastou‑a praticamente para dentro de casa. O ruído de uma bofetada foi seguido por um grito de dor. Na varanda, Chris estremeceu, encolhendo‑se instintivamente cheia de angústia. Estava amedrontada, triste e frustrada. Era como se estivesse a assistir a um filme velho e desagradável pela milésima vez. Cada vez que terminavam as crises familiares imaginava que seria a última e que, a partir daquele momento, tudo melhoraria. Contudo, nunca as coisas duravam o suficiente para que os Parker atingissem um estado de felicidade doméstica compatível com os desejos da jovem. Porque seria que os pais não tentavam entender‑se melhor? Porque agiriam daquela maneira estragando o prazer de todos quantos os rodeavam?
Parker irrompeu de dentro de casa, parecendo um touro furioso. A face avermelhada e os olhos arregalados e injectados de sangue davam a medida da sua ira. Quando ele ficava naquele estado Chris morria de medo. Contudo, desejava ardentemente consertar as coisas, fazer com que tudo melhorasse ‑ e sabia que somente poderia realizar esse desejo se os seus pais a ouvissem.
Ainda trémula, repetiu:
‑ Deixa lá, pai, que eu tomo conta dela. ‑ Ben Parker, porém, esquivou‑se à tentativa da jovem para lhe pegar no braço. Tentando imprimir um tom calmo à voz, Chris disse conciliadoramente ao pai:
‑ Olhe, pai, vamos deixar aquele passeio para mais tarde, está bem?
Sem responder à filha, Ben encaminhou‑se resolutamente para o carro, abaixou com violência a tampa do motor e, abrindo a porta do lado do motorista, entrou. Bateu com a porta e voltou‑se ainda irritado para a filha gritando:
‑ Este é o primeiro fim de semana que passo em casa, longe do trabalho e o que foi que arranjei? Um par de megeras tu e a tua mãe, para me aborrecerem a paciência. É só o que arranjo quando fico longe do trabalho. aborrecimentos. É tudo o que me dão nesta casa. Chatices. Primeiro, era com o teu irmão e, agora, é contigo! ‑ Parou para pôr o motor a trabalhar. Mas, ainda não tinha terminado. Furioso, voltou‑se mais uma vez para Christine e berrou: ‑ Queres saber uma coisa? Não devias estar aqui. Disseram‑me que ficarias naquela escola pelo menos quatro meses. E isso ensinar‑te‑ia a comportares‑te como deve ser. Fiquei contente com isso, mas, mandaram‑te para casa e aí estás tu para me aborreceres!
Chris ficou com os olhos cheios de lágrimas. Correu para o carro implorando:
‑ Pai, pelo amor de Deus, não
- Sim! Agora já sei porque é que não queres voltar para a escola. ‑ Ben estava apoplético e as palavras saíam‑lhe atropeladamente pelos lábios roxos: - Lá, tens que seguir um regulamento e obedecer a regras, não é isso? Tens que te comportar bem. Pois vou‑te dizer uma coisa:
quer queiras, quer não queiras, tens que voltar para lá.
‑ Pai, pelo amor de Deus, não posso voltar para aquele lugar horrível - implorou Chris, soluçando desesperadamente.
‑ Ai não se não pode. Vais voltar e direitinho. ‑ Ben Parker berrava como um doido.
Chris pendurou‑se na porta do carro com o rosto à altura da borda da janela e as lágrimas escorrendo livremente:
‑ Pai, paizinho, pelo amor de Deus, eu não posso voltar não faça isso comigo
‑ Porque é que não podes? O que há de mal em voltar? Lá é muito mau? Ou será que te julgas boa demais para isso?
‑ O pai quer saber porque é que não posso voltar para lá? Pois muito bem, pai, vou‑lhe contar tudo. ‑ Chris inspirou profundamente a fim de dominar o pranto e poder falar, pois estava a ponto de perder completamente o controlo. ‑ Tudo, tim tim por tim tim. As raparigas lá...
Ben Parker cortou cerce um relato que não queria ouvir:
‑ Deixa‑te de fitas, Chris. Então julgas que não sei que me irás contar o primeiro disparate que te venha à cabeça? És muito capaz de inventar qualquer coisa para me convenceres de que não deves voltar para lá e continuar a obedecer aos regulamentos. E porque não queres obedecer, que não queres voltar para lá. Não é isso?
Chris percebeu que o pai não estava a raciocinar no mesmo diapasão que ela. Ben Parker não queria ouvir o que ela lhe poderia contar; aferrava‑se àquilo em que queria acreditar e só ouviria aquilo que estivesse de acordo com a resolução que tomara.
Amargamente frustrada, Chris afastou‑se do automóvel
e ficou a olhar o pai a manobrar o veículo com violência
para sair do terreno, levantando nuvens de poeira quando
as rodas patinaram na saída da garagem. Envolta na poeira
e soluçando sentidamente, Chris viu o pai a afastar‑se,
pisando com força no acelerador.
O velho e familiar impulso de fugir, cegamente, para qualquer lugar, começou a crescer no seu Intimo. Involuntariamente, recordou‑se das palavras de Moco, naquele dia na aula: montar um cavalo e cavalgar, cavalgar. Oh, Deus do céu. Se ao menos pudesse estar longe dali, longe da escola, longe de tudo o que a mortificava.
Começou a andar em direcção à rua. Repentinamente, porém, a lembrança da mãe acudiu‑lhe à mente. Viu‑a provavelmente atirada para um canto qualquer, ferida e abandonada. Lentamente, deu meia volta e encaminhou‑se para casa.
De certa maneira, Chris e os pais conseguiram passar o fim de semana sem maiores incidentes. Possivelmente porque Ben Parker passou a maior parte do tempo fora de casa. Na manhã de segunda‑feira, a calma parecia ter voltado ao lar dos Parker. Ben partiu para o trabalho e durante algum tempo não haveria o perigo da sua repentina aparição, implicando com tudo e com todos, espancando a esposa e a filha sem qualquer motivo aparente.
A senhora Parker, usando o robe coçado, estava sentada na cozinha com os cotovelos sobre o tampo da mesa a fumar um cigarro. Diante dela uma chávena de café. Chris estava sentada à sua frente. Distraída, ofereceu um cigarro à filha e, igualmente distraída, Chris aceitou.
‑ Lá na escola há uma professora muito simpática
‑ contou Chris, tentando estabelecer uma conversa despreocupada. - E uma das raparigas, chamada...
‑ Olha, querida ‑ disse a senhora Parker ‑ durante dois dias não vamos falar daquele lugar horrível. ‑ Enquanto dizia isso batia com o cigarro no cinzeiro para fazer cair a cinza.
O rosto de Chris ficou sombrio.
‑ Mãe, ‑ começou a jovem. Contudo, a expressão perturbada que viu surgir no olhar da mãe levou‑a a calar‑se. A senhora Parker examinava um pedaço de pão que estava sobre a toalha da mesa, com uma perturbadora expressão de incerteza no olhar. Não se sentia capaz de encarar a filha. Baixinho e mantendo os olhos no pedaço de pão, com o qual brincava distraidamente a senhora Parker foi dizendo:
- Sabes, minha filha, as coisas agora estão um pouco diferentes por aqui. Afinal o teu pai não é assim tão mau
- A mãe quer dizer que, quando eu não estou aqui, as coisas correm melhor? ‑ Chris fez essa amarga pergunta ao mesmo que aspirava profundamente o cigarro, o primeiro que fumava depois de ter saído do reformatório, no sábado.‑ Então, por que é que o pai chama a polícia quando eu fujo de casa?
Ignorando a observação da filha e tentando obter a resposta que desejava ouvir, a senhora Parker finalmente conseguiu encarar a filha e perguntar‑lhe:
‑ Lá não é melhor para ti?
Chris mal podia crer no que ouvira. Então, os pais na verdade não a compreendiam. Não faziam a menor ideia de como aquilo lá era horrível! Como poderia fazê‑los ver a verdade? Hesitou, incapaz de imaginar um meio de fazer a mãe crer nas suas palavras. Inspirando profundamente, inclinou‑se para a frente na cadeira olhando a senhora Parker bem nos olhos.
‑ Não, mãe ‑ respondeu soletrando deliberadamente as sílabas. ‑ Aquilo lá não é melhor do que aqui. É mil vezes pior.
A senhora Parker só ouvia parte do que Chris dizia. Tal como Ben Parker, estabelecera um sistema selectivo inconsciente e apenas ouvia aquilo que lhe convinha escutar.
‑ Pensei que. ‑ mas não conseguiu continuar. Chris percebendo que a mente da mãe divagava algures, empurrou a cadeira para trás e ergueu‑se.
‑ Muito bem, mãe. Vou dar um pulo até à casa da Carol ‑ disse. Em seguida, achando que nada mais havia para dizer afastou‑se em silêncio deixando a mãe a sós com os seus pensamentos. Pouco depois, ouvia‑se alguém que batia a porta da rua.
A senhora Parker que erguera o olhar para acompanhar a saída da filha, voltou a atenção para a chávena de café e, automaticamente, acendeu novo cigarro.
- Acho que vou até ao meu quarto tomar um traguinho ‑ reflectiu a mãe de Chris. - Só um não me fará mal. Pelo contrário, acalmar‑me‑á os nervos.
Não é que não ame a minha filha ‑ disse para si própria. - Não é que não a queira perto de mim, mas, é impossível fazê‑la compreender qualquer coisa. Do que ela está a precisar é de um pouco de disciplina. E disciplina é o que não falta naquela escola, pelo que me disseram. Ben também diz a mesma coisa e o meu marido é um homem experiente e conhecedor das coisas. Ele falou com o juiz, não falou? O juiz disse que a minha filha seria bem tratada, não disse? E então?. Acaso um juiz iria mentir‑nos?
Suspirando e cheia de compaixão, empurrou a chávena de café e ergueu‑se da cadeira. Deu uma olhadela em direcção ao relógio pendurado na parede da cozinha. Sim, tinha tempo suficiente para beber um copinho milagroso e ficar com o hálito sem cheiro de álcool antes que Ben voltasse do trabalho.
Já estava escuro quando Chris voltou para casa. Lentamente atravessou o jardim mal tratado e aproximou‑se da varanda, prestando atenção aos ruídos que vinham do interior da casa. Galgou os degraus e atingiu a porta. Subitamente, parou. Apesar de não estar frio, um calafrio percorreu‑lhe a espinha. Os pais estavam a discutir, outra vez. Aproximou‑se mais da porta para ouvir.
‑ Eu sei, Ben, eu sei ‑ dizia a senhora Parker em tom de lamúria.
‑ Sabes ‑ berrou Ben sarcasticamente. ‑ Sabes mas não fazes outra coisa
‑ Eu tentei
‑ O diabo, é que tentaste.
‑ Tentei, sim ‑ insistiu ela. ‑ Não me acuses, Ben, por favor.
Ao ouvir a discussão entre os pais, Chris ficou desanimada. Ben estava a brigar com a senhora Parker porque esta andara a beber, outra vez. Conhecia muito bem o génio do pai e, por isso, receou que a sua aparição provocasse outra das características e temidas explosões de Ben. Não havia maneira de passar por eles sem ser vista. Mas talvez, apenas talvez, pudesse passar praticamente despercebida.
Assumiu o ar mais indiferente que lhe foi possível, abriu a porta e entrou em casa, como se estivesse totalmente alheia ao que ocorria no interior.
‑ Olá - saudou Chris alegremente, pretendendo continuar o caminho até ultrapassar a cozinha e poder ir para o quarto.
Ao vê‑la, a senhora Parker estremeceu e o pai lançou‑lhe um olhar frio e hostil.
‑ Olá! - gritou ele rudemente.
Imediatamente, Chris reconheceu o tom de comando do pai e o que ele pretendia. Estancou, pronta para ouvir. Virou‑se e encarou o pai. O olhar do pai tornou‑se mais intenso e hostil.
‑ Ben ‑ murmurou a senhora Parker ‑ por favor...
‑ Agora, vou ter uma palavrinha com a menina minha filha ‑ anunciou Ben num tom de voz que não prenunciava nada de bom. ‑ Está certo?
A senhora Parker meneou tristemente a cabeça em sinal de impotência, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe assomavam aos olhos.
‑ Está certo, Ben ‑ murmurou ela baixinho. Sem dirigir uma única palavra à filha, a senhora Parker levantou‑se da cadeira em que estivera sentada e saiu do aposento. Não lhe dispensou nem mesmo um olhar.
Chris conhecia perfeitamente aquela rotina. A mãe estava aterrorizada; era o estado psicológico da senhora Parker sempre que o marido a admoestava por ter bebido. Chris reflectiu: se ao menos eu a pudesse convencer a ficar. Talvez, entre nós, possamQs desviar do pensamento do pai o que o está a incomodar.
‑ Mãe ‑ chamou a jovem, mas a senhora Parker já tinha saído. Chris engoliu em seco e preparou‑se para enfrentar o pai.
‑ Que horas são? ‑ perguntou ele.
‑ Ainda não são dez horas ‑ respondeu Chris num tom que pouco faltava para ser de desafio.
‑ Perguntei‑te que horas são...
Chris fez um gesto com os ombros querendo exprimir a sua resignação.
‑ Faltam quinze para as dez ‑ respondeu, acrescentando: ‑ O pai sempre me disse que poderia ficar com as minhas amigas até às dez, não é?
Ben Parker ignorou completamente a pergunta da filha.
‑ Tu estiveste fora de casa durante quatro horas seguidas ‑ disse o homem em tom de acusação, levantando‑se e avançando para a filha. ‑ Quem é que esteve contigo?
Chris sacudiu novamente os ombros:
‑ Apenas Carol e o irmão dela.
‑ E os amiguinhos dela?
‑ Não, pai. ‑ Chris respondeu fazendo um grande esforço para ocultar o aborrecimento. Começou a voltar‑se para se encaminhar para o quarto.
‑ E o que estiveram vocês a fazer? - Ben avançou mais um passo, visivelmente irritado com a decisão óbvia que a filha mostrava de o deixar. ‑ Olha aqui, rapariga ‑ berrou ele. ‑ Estou a falar contigo!
Chris parou e voltou‑se para encarar o pai. A testa do homem brilhava, molhada de suor. ‑ Olha para essas calças ‑berrou ele, apontando para os "blue jeans" que a jovem usava. ‑ Para que é que servem essas calças, se as usas tão agarradas ao corpo que mostras tudo? Tu e a tal Carol apertam‑se todas para caber dentro dessas malditas calças, não é?
‑ Não senhor, pai ‑ respondeu Chris com uma expressão de enfado.
‑ Mentirosa! ‑ berrou Ben, aproximando‑se ainda mais.
Chris estava a começar a ficar com medo. O pai estava muito mais zangado do que ela julgara.
‑ Parece‑me que estou a engordar, pai ‑ respondeu a jovem, hesitante, tentando justificar‑se.
O génio de Ben estava a ultrapassar as últimas reservas de bom‑senso. O rosto rubro contorceu‑se numa horrível caricatura de si mesmo.
‑ Vem cá, rapariga. Agora, tens que me contar o que andaste a fazer na rua até esta hora! Quatro horas na rua! Fazendo o quê? ‑ ao desfechar essa última pergunta, Ben estava perigosamente perto de Chris.
‑ Não estava a fazer nada, pai. Nada, mesmo. ‑ Desviando‑se do pai, Chris deu a volta à mesa da cozinha com a intenção de apanhar uma chávena para tomar um pouco de café. Não que desejasse realmente beber aquele resto morno e amargo, mas, fazia‑o para desviar a atenção do pai e, assim, acalmá‑lo um pouco.
Subitamente, sem qualquer indício prévio da sua intenção, Ben Parker estendeu violentamente o braço, atingindo a chávena que Chris segurava e atirando o recipiente, aos pedaços, a voar pela cozinha, até bater na parede e cair no chão.
Aquilo foi a gota de água. Chris começou a tremer violentamente e correu a encolher‑se a um canto da cozinha, lutando para suster as lágrimas e esperando ser espancada a qualquer momento.
No aposento vizinho, a senhora Parker começou a chorar sentidamente.
Como um gigante lendário, Parker cresceu para Christine. - Quero que me contes tudo o que tu, Carol e o irmão dela fizeram durante essas quatro horas! ‑ berrou Ben Parker, com a face congestionada e a voz rouca pela fúria irracional que o dominava.
No meio dos soluços e das lágrimas, Chris conseguiu articular, aos arrancos, as palavras:
- A gente ficou a ouvir discos e a conversar...
Ben segurou rudemente, entre os dedos, o queixo da filha e obrigou‑a a erguer a cabeça, para que esta o encarasse.
- Vamos, Christine, olha‑me bem nos olhos e diz‑me que a minha filha ainda é virgem!
As palavras de Ben atingiram Chris com a força de uma descarga de mil canhões. Os olhos da jovem abriram‑se muito. A lembrança daquela noite horrível, nos chuveiros do reformatório, ocorreu‑lhe imediatamente ao pensamento. Ante as avassaladoras recordações que lhe percorriam o cérebro, Chris começou a ficar tonta.
- Se o pai soubesse o que aconteceu! ‑ disse para si mesma, horrorizada. Com a lembrança daquela noite horrível a desenrolar‑se na mente como grotescas sombras, começou a rir e a chorar, histericamente, descontroladamente.
Parker, por seu lado, ficou chocado e confuso. A raiva cresceu. Com a mão aberta, esbofeteou rancorosamente o rosto da jovem, deixando na pele molhada de lágrimas, as marcas rubras dos seus dedos. Tudo o que obteve da filha, porém, foi um aumento da histeria. Tornou a bater na jovem que, dando um grito de animal acossado, se contorceu para escapar ao cerco e fugiu cegamente, em direcção à porta dos fundos.
‑ Eh! ‑ berrava Parker num paroxismo de raiva.
- Volta já para aqui. Estou‑te a dizer que venhas para aqui! Impulsivamente, correu atrás da filha até chegar ao corredor da garagem. Aí, parou, olhando em volta. Não havia o menor sinal de Chris.
O autocarro travou bruscamente, iluminado pelas luzes frias das lâmpadas de mercúrio, no pátio fronteiro à estação dos comboios. O motorista levantou‑se do assento e, com expressão aborrecida, esperou pacientemente que os últimos passageiros descessem, para que pudesse recolher o carro ao abrigo. Um homem desceu e curvando‑se rumou para a estação. A seguir, desceu Chris com os olhos vermelhos e inchados. Tinha um arranhão com mau aspecto na bochecha esquerda. Depois de dar alguns passos, parou e olhou hesitante à sua volta. Não vendo ninguém, encaminhou‑se também para a estação rodoviária. Uma vez no interior da construção, examinou cuidadosamente aquele vazio cavernoso que era a sala de espera dos passageiros. Os postigos para a venda de bilhetes já estavam fechados e as lâmpadas fluorescentes iluminavam tudo com as suas luzes frias e azuladas.
Subitamente a expressão de apreensão nervosa de Chris transformou‑se num alívio e numa alegria radiante. Ali estava, saindo de trás de uma coluna e encaminhando‑se para ela, o seu irmãO Tom.
Este usava calças de rancheiro, calçava sapatos de lona e exibia uma camisa de desporto estampada já muito desbotada. Tom era um jovem simpático, de dezanove anos de idade, sardento e de cabelos ruivos e compridos. Um ligeiro sorriso aflorava‑lhe aos lábios quando se aproximou de Chris e abriu os braços para a abraçar.
- Oh, Tom! Tom, querido! - gritou Chris, aliviada e cheia de alegria, pelo reencontro. Lágrimas de alegria corriam‑lhe livremente pelas faces. Pela primeira vez em muitos meses, Chris sentia‑se segura e a salvo. Pudera! Ao seu lado estava a única pessoa no mundo inteiro em quem confiava. A única pessoa com quem podia abrir o coração. Livrar‑se de penas e agonias até que a última partícula de dor desaparecesse da sua alma dolorida e amargurada.
Tom, gentilmente, afastou a irmã e examinou‑a com atenção. Ao ver a arranhadela na bochecha esquerda da jovem estremeceu involuntariamente. Chris não precisaria de lhe contar o que acontecera. Sabia muito bem. O seu próprio corpo jovem e forte trazia demasiadas cicatrizes para que pudesse esquecer quem as provocara.
- Como odeio aquele desgraçado ‑ murmurou Tom, com os dentes cerrados.
- Tom, estou tão contente por estar aqui contigo - disse Chris, pendurando‑se confiantemente no braço do irmão. Abraçaram-se outra vez e Tom afastou‑a. Encararam‑se sorrindo.
‑ Caramba, Chris, já estás uma rapariguinha- disse Tom, depois de examinar novamente a figura da irmã. Mal podia acreditar que aquela jovem onde despontavam atrevidos seios, prometedoras curvas femininas, era a mesma menina escalavrada e magricela com quem brincava ainda não havia muito tempo.
Passando um braço em torno da cintura de Chris, Tom guiou‑a para a parte interna da zona de espera. Chris aconchegava‑se ao irmão, sentindo‑se absolutamente livre e segura, tão feliz que a atmosfera, em geral deprimente, das salas de espera das estações rodoviárias, não a afectava naquela altura. Estava junto de Tom e isso era tudo o que importava. Teria sido o mesmo em qualquer outro lugar. Ele tomaria conta dela. Agora, estaria a salvo, fora do alcance do pai, das autoridades escolares, da Polícia e de toda aquela gente que a consideravam um mero pedaço de carne e ossos, que poderiam atirar para o lado que bem entendessem, como se não tivesse alma nem sentimentos.
Encaminharam‑se para a parte da sala de espera onde se enfileiravam as máquinas automáticas para a venda de refrescos e sanduíches. Salvo um marinheiro, que se ocupava em perder moedas numa das máquinas caça‑niqueis, o lugar estava deserto.
‑ Estás com fome? ‑ indagou Tom, olhando em torno, para localizar as máquinas de venda de sanduíches, bolos e sorvetes. Havia também máquinas que vendiam refrescos e outras que forneciam sopas enlatadas.
Chris meneou negativamente a cabeça. Estava demasiado excitada para pensar em comida. Teria tempo bastante para comer quando chegassem a casa de Tom. Isso levou‑a a imaginar como seria a casa de Tom. Provavelmente não seria muito grande ‑ reflectiu. Havia milhares de perguntas que pretendia fazer ao irmão, planos que iria fazer.
Abraçados, percorreram uma longa fileira de mesas de tampo de fórmica e pés cromados, escolhendo uma delas, no canto mais afastado. Perto, havia uma das máquinas de vender sanduíches, da qual pendia um cartaz com o desenho de uma mão espalmada e o aviso de que não funcionava. Sentaram‑se um em frente do outro, tendo a mesa de permeio e apoiaram‑se sobre os cotovelos colocados sobre o tampo da mesa.
Chris estava tão empolgada pela emoção de estar perto de Tom que não percebeu os sinais de inquietação e desconforto que este começou a demonstrar.
‑ A mãe telefonou‑me esta noite ‑ disse ele, baixando cautelosamente a voz. Depois de alguns segundos acrescentou: ‑ A Polícia também me procurou.
‑ Para quê? ‑ indagou ela em ar de desafio, acrescentando: ‑ Agora, ninguém tem mais nada a ver comigo.
Uma expressão dolorosa cruzou a face de Tom:
‑ Chris ‑ disse ele tristemente ‑ gostava que não tivesses fugido, outra vez.
A jovem tomou entre as suas as mãos do irmão e apertou‑as fortemente, como se com isso quisesse transmitir‑lhe a sua própria convicção.
‑ Tom, eu tinha que fugir daquela casa. Será que não compreendes?
Tom encarou‑a com uma expressão de dúvida.
‑ Mas, agora, Chrissie - a voz do rapaz falhou. Fez um esforço para prosseguir e, finalmente, conseguiu‑o: ‑ Tiveste a tua oportunidade de ficar fora daquele reformatório. Agora, fugindo, deitaste tudo a perder. Vais ter que voltar para lá...
‑ Não - declarou peremptoriamente Chris, erguendo‑se da cadeira. ‑ Não preciso de voltar. Não, se puder ficar contigo.
Os olhos de Tom percorreram nervosamente o recinto, evitando encarar a irmã. Tom experimentava a mesma sensação de alguém que tivesse sido apanhado em flagrante, a olhar por cima do ombro de uma pessoa e lendo cartas que não lhe diziam respeito.
- Tom, deixa‑me ficar contigo. Só por pouco tempo. Eu durmo no chão... cuidarei do Tommy... - implorou Chris, não podendo continuar a ver a expressão de fria determinação no rosto do irmão.
Tom suspirou, mostrando‑se profundamente penalizado e cheio de remorsos.
‑ O que queres que eu faça, Chrissie? Tenho duas bocas para sustentar.
‑ Eu posso arranjar trabalho - disse ela esperançosamente.
‑ Para fazer o quê? - indagou ele desanimadamente. - Uma garota de catorze anos... Caramba, Chris... será que t'u não percebes as coisas? Fugiste de um reformatório. E queres tomar Conta do Tommy? O que iria dizer a Jennie?
Chris não podia crer nos seus ouvidos. Aquele não era Tom, falando com ela. Era algum estranho que apenas se parecia com o irmão querido. Levantou a cabeça e encarou o jovem à sua frente. No rosto de Chris havia descrença e, nos olhos, espanto.
‑ O que é que achas, Tom? ‑ perguntou calmamente.
Tom não respondeu logo. Nos olhos dele havia uma expressão dura. Lutou para reencontrar a voz e formar as palavras. Estas, finalmente, vieram, roucas, mecânicas, enquanto o rapaz meneava negativamente a cabeça.
‑ Eu acho que não vai dar certo, Chris. - Por sobre os ombros da irmã olhou para o fundo do salão. - Além disso, disse‑te que a Polícia me procurou.
‑ E daí? ‑ a voz de Chris era de desafio e os seus pequenos punhos estavam cerrados em sinal de feroz determinação. ‑ Eu não cometi nenhum crime... ‑ no rosto da jovem havia uma expressão de profunda angústia.
‑ Chris, será que não compreendes? Eles nunca te deixariam ficar comigo. Tenho apenas dezanove anos. Não tenho ainda idade suficiente para ser legalmente teu tutor. Eles vão‑te levar outra vez para a escola.
Chris abateu‑se na cadeira, profundamente deprimida. Nada mais havia que a amparasse. Nem amor nem esperança. Sonhara com aquele encontro e agora via‑se diante de um pesadelo. Já não reconhecia aquele rapaz, sentado à sua frente, como o seu querido irmão. Aquele sujeito sentado ali na cadeira, do outro lado da mesa, não era Tom. Tom costumava protegê‑la quando estava em perigo e confortá‑la quando se sentia triste. Não, com certeza que aquele rapaz não era Tom. Tom costumava defendê‑la do pai quando Ben Parker ficava enraivecido. Tom era carinhoso e bom. Costumava tirá‑la do caminho da mãe, quando a senhora Parker deambulava, bêbada, pela casa.
Ele não faz a menor ideia do que era aquela horrível escola. Por isso é que falava tão calmamente sobre a necessidade de voltar para lá. Quando souber, vai proteger‑me, vai tomar conta de mim, como antes fazia. Quando eu lhe contar o que é, na realidade, aquele horrível lugar, não consentirá que ninguém me leve outra vez para lá.
Curvou‑se outra vez para a frente, as mãos apertadas contra o tampo da mesa.
‑ Ouve, Tom ‑ disse Chris em voz baixa, os olhos brilhando conspiradoramente. ‑ Os "chuis" não sabem que estou aqui, não é verdade? Quando eles me encontrarem, já estarei a tomar conta da tua casa, cuidando do Tommy. Vão logo perceber que fugi de casa porque a vida com o pai e com a mãe é impossível.
Tom não prestava atenção ao que a irmã lhe dizia. O que o interessava era algo que havia do outro lado da sala. No seu rosto estampou‑se uma expressão de infinita tristeza. Mal podia falar. Esmagado pela vergonha, odiou‑se. Cada palavra representava uma punhalada no seu próprio coração.
‑ Não adiantará nada. Chrís, já não somos apenas nós dois.
As palavras atingiram Chris duramente. Pareceu‑lhe que tinha recebido um forte choque eléctrico. Isto é que ela não podia suportar. Que Josie, Jax, Moco, Denny ou qualquer outra das internas cometessem uma traição contra ela, ainda admitia. Mas ser traída por Tom? Traida pelo próprio irmão!
- Tenho família para sustentar e com quem me preocupar ‑ acrescentou Tom, à guisa de desculpa.
Havia qualquer coisa na voz de Tom, nas suas maneiras, no modo como olhava para o fundo da sala que fizeram Chris estremecer na cadeira. Lentamente, a ideia horrível abatia‑se sobre ela. Tom não encarava o espaço vazio por trás dela. Estava a olhar para alguma coisa, ou para alguém.
Voltou‑se rapidamente. O amargor final fê‑la sentir‑se doente. Um travo amargo de bílis chegou‑lhe aos lábios. Um polícia dirigia‑se para eles. Parecia‑lhe que o mundo se acabava naquele instante. O coração palpitava forte e o sangue corria‑lhe impetuoso nas veias, subindo à cabeça, fazendo‑a ver tudo vermelho.
‑ Não. Nada disto está a acontecer. É outro horrível pesadelo. Não pode ser assim!
Com o horror estampado na face voltou‑se para o irmão. Era a última e a maior das traições.
- Tom. Oh, Tom, porque fizeste isto comigo? Poderia esperar isto de qualquer pessoa, neste mundo. Menos de ti, meu irmão. De ti, não! ‑ Se ele lhe dissesse que iria matá‑la teria preferido que fosse assim, do que vê‑lo entregá‑la à Polícia. Traí‑la daquela forma ignóbil. Se a matasse naquele momento, Tom estaria a praticar um acto de misericórdia.
O polícia deteve‑se ao lado da mesa e, impassível, olhou para Chris. A Tom perguntou laconicamente:
‑ É esta?
O que ainda restava a Chris de alma e de bons sentimentos esvvaiu‑se naquele instante, consumido pelo fogo do desespero, diante da traição de que fora vítima. Sonhos, esperanças, tudo de bom que ainda lutava para conservar no seu íntimo se esvaiu.
Impassível, sem revelar no rosto qualquer traço de emoção, Chris submeteu‑se à inspecção de rotina de Emma Lasko. Embora estivesse a reviver um pesadelo, já não sentia a vergonha e o embaraço que sentira da primeira vez que passara por tal inspecção.
Desta vez, mantinha‑se imóvel enquanto a responsável pelo dormitório a revistava, com o ar impessoal de um inspector de fábrica a experimentar as condições de uma máquina.
- O que ficou combinado foi ficares na tua casa - observou Miss Lasko com uma expressão totalmente abstracta, enquanto a revistava. ‑ Até parece que vocês, raparigas, não podem ficar longe da gaiola... abre um pouco mais essas pernas...
Chris obedeceu como se fosse um autómato, guardando completo silêncio, o olhar vazio de expressão.
Lasko terminou a revista e comentou:
‑ Parece que gostaste deste lugar ‑ fez uma pausa e acrescentou sarcasticamente: ‑ Ou é de mim que gostas?
Chris não se deu ao trabalho de responder. Vendo que a jovem não lhe responderia, Lasko entregou‑lhe o frasco de plástico contendo o "shampoo" desinfectante.
‑ Toma. Trata de limpar bem esses cabelos. Vai para o chuveiro. - E saiu sem dizer mais palavra.
Quando Chris terminou, já estava quase na hora do almoço. Sabia que deveria ir para a solitária, mas decidiu tentar almoçar com as outras antes de começar a cumprir o castigo. Percorreu a distância entre os chuveiros e o seu quarto numa questão de segundos. Dirigindo‑se à janela gradeada, contemplou a desagradável paisagem. Tudo, dentro e fora, estava horrível, como sempre. Cinzento, deprimente e feio.
Imaginou que se estivesse morta pareceria assim. Então, a visão do rosto de Janet perpassou‑lhe pela mente. Janet, com os seus cabelos longos, brilhantes e negros, as maçãs do rosto salientes e os olhos tristes e profundos. É preciso ter muita coragem para tentar dar cabo da própria vida ‑ pensou Chris. Mas quando tudo corre mal, quando a existência se torna um fardo insuportável, então, sim, admitiu ela, a prática do suicídio não deve ser assim tão terrível. Chris continuou a pensar nisso e ficou a imaginar se fora preciso cortar muito fundo, quando Janet se tentou matar, seccionando as veias dos pulsos. Juntou as mãos e elevou os próprios pulsos à altura dos olhos, examinando‑os bem. Isso os ensinaria ‑ pensou. à mãe, ao pai, a Tom. Os olhos ficaram cheios de lágrimas ao ser assaltada por sentimentos de autocompaixão e ódio.
Uma explosão de gargalhadas soou no corredor e decidiu ir até à sala de jantar, quando foi arrancada aos devaneios, pelo barulho que as internas faziam no corredor.
Sacudindo os cabelos ainda húmidos, para apressar a secagem, Chris dirigiu‑se para o corredor. Os fios, húmidos e escorridos, pegavam‑se‑lhe no pescoço produzindo uma sensação desagradável.
Viu que Miss Lasko e Cynthia, paradas na porta da sala de jantar, conversavam em voz baixa. Estavam de costas para ela e, por isso, aproveitou para se esgueirar sem que a vissem. Logo depois do umbral, estava Janet usando o avental das ajudantes de cozinha. Uma expressão de pesar cruzou o olhar da jovem índia quando Chris se aproximou dela.
‑ Oh, Chris. Rezei tanto para que não voltasses ‑ disse ela com voz triste.
‑ Obrigada, Janet ‑ agradeceu Chris com os olhos virados para o chão e traçando um círculo com o bico do sapato. ‑ É que não serviu de nada voltar para casa. ‑ Fez uma pausa e ergueu os olhos para a índia. ‑ Como vai indo o bebé?
Janet fez um gesto de cansada indiferença:
‑ Sinto‑me horrivelmente enjoada todas as manhãs.
Os olhos de Chris percorreram o vazio do salão, com as suas filas de mesas e então voltou a encarar Janet.
‑ Parece que está tudo perfeitamente bem. ‑ Na sua voz havia uma nota de amarga ironia. ‑ A primeira coisa que uma criança faz é fazer a mãe sentir‑se mal. ‑ O tom da voz traía agora não ironia mas uma profunda amargura. ‑ Ainda hoje a minha mãe fica doente quando me vê... ‑ nessa altura faltou‑lhe a voz, transformada num suspiro muito mais eloquente do que tudo o que poderia dizer.
Janet demonstrava alguma dúvida quando contou: - Perguntaram‑me se eu queria ficar com o bebé, depois de ele nascer. Francamente, não sei o que fazer...
Chris encarou pensativamente a amiga. Então, numa súbita explosão emotiva, exclamou:
‑ Fica com ele, Janet. Fica com ele e ama‑o muito. Canta para ele. Brinca com ele... e faz todos esses disparates que as mães que gostam muito dos filhos fazem com os seus bebés. Arranja um carrinho e vai passear com ele. E ouve tudo o que ele disser quando aprender a falar. Presta‑lhe toda a tua atenção, Janet. E ri e fá‑lo rir e sentir‑se feliz e amado, Janet!
Chris estava mais admirada do que a própria Janet da sua explosão sentimental. A índia encarou intensamente a jovem e, aos poucos, a sua expressão intrigada foi‑se transformando em admiração e alívio. Chris sorriu para ela. Por um breve instante as duas partilharam aquela espécie de profunda e total comunicação jamais experimentada antes e sentiram‑se muito satisfeitas. A magia do momento quebrou‑se quando as jovens internas irromperam no salão para ocuparem os seus lugares. Miss Lasko enfiou a cabeça pela porta.
‑ Chris ‑ chamou ela, em tom cortante.
Janet parecia nervosa.
- Converso contigo mais tarde, no quarto.
‑ Não, hoje não ‑ respondeu Chris também aos murmúrios. - Vou para a solitária porque fugi de casa outra vez.
Uma expressão de pena estampou‑se nos traços fisionómicos da jovem pele‑vermelha. Chris voltou‑se e encaminhou‑se para fora da sala de jantar enquanto Miss Lasko mantinha a porta aberta para que ela passasse.
Quando ouviu o estrondo da porta batendo atrás de si, Chris experimentou uma sensação de total desamparo, parecendo‑lhe que nunca tinha estado naquela solitária. Olhando em redor para aquele ambiente triste e estragado, familiar, lembrou‑se de um filme intitulado "Incidente na Ponte do Ribeirão da Coruja". Era uma história do tempo da guerra civil. Um soldado condenado à morte iria ser enforcado. Já com a corda no pescoço e com o carrasco prestes a abrir o alçapão, conseguiu fugir e correu exultante por ter escapado à morte por tão pouco. E, a partir de então, tudo o que era bom lhe aconteceu. Depois, quase no final, quando pensava estar completamente livre, verificou que tudo aquilo tinha ocorrido apenas na sua imaginação. Com um terrível balanço e um estalar de ossos, a corda esticou‑se, partindo‑lhe Os ossos da nuca e matando‑o.
Chris estremeceu. Jesus! Era exactamente assim que se sentia naquele momento. Oh, Deus. Se tudo aquilo fosse apenas fruto de um sonho, uma horrível fantasia. Senhor. Se tudo aquilo que lhe acontecera nos últimos dias não tivesse ocorrido. Se pudesse ainda ir para casa e encontrar tudo mudado. Se, pelo menos, Senhor, eu não tivesse ido procurar Tom...
Conseguiu controlar‑se e começou a andar incansavelmente de um lado para o outro da cela. Raivosamente deu um pontapé no colchão. Tudo tinham sido sonhos vazios. Esperanças infundadas. Tudo aquilo realmente acontecera. Nada correra bem e ninguém se importara com ela. E o que pensariam se ela, de facto, morresse? Se morresse, talvez o máximo que aconteceria seria todos darem um suspiro de alívio por se verem, finalmente, livres dela. Então, armariam um grande espectáculo, chorariam e diriam que ela era boazinha. Tão novinha, coitadinha. Não deveria ter feito uma coisa dessas. Bem; mas, tudo aquilo seria fingimento porque, no fundo, ficariam muito contentes. Com ela morta, não teriam já uma Chris para voltar e lhes lembrar coisas que não gostariam de recordar.
- Bem ‑ pensou consigo mesma. ‑ Se é isso o que eles querem é isto que terão. Que vão todos para o inferno. - E essa frase ficou a ecoar na sua mente como um refrão de vingança. Nunca tinha dito tal coisa. Nem mesmo para si mesma. Mas agora não se importava. Qualquer dia desses, saio para o mundo e ninguém mais me põe os olhos em cima. Hei‑de encontrar alguém que me adopte. Muitas raparigas já saíram daqui e foram para casas de pessoas bondosas que as adoptaram. E as adopções deram certo. As raparigas nunca mais voltaram. Ela também seria adoptada. Não fugiria. Arranjaria um emprego, economizaria e, se acaso as coisas não corressem bem no lar adoptivo, usaria as economias para viajar para muito longe. Para uma cidade grande, como Nova Iorque ou Los Angeles. Duvido que me encontrem, algum dia, em Nova iorque ou Los Angeles ‑ reflectia com satisfação. - Vou mentir sobre a minha idade. Vou até trocar de nome. Vou tingir os cabelos. Juro que nunca mais ninguém me verá nestas bandas. Nunca! Nunca! Nunca! Nunca!
Esses pensamentos faziam‑na sentir‑se melhor e pôs‑se a andar em torno da cela, com um sentimento indefinido na mente. Começou a cantarolar para si mesma, abrindo e fechando as mãos, estalando os dedos para marcar o compasso da melodia. Subitamente, apercebeu‑se de ruido de passos no corredor. Os passos pararam diante da sua cela. Uma voz chamou:
‑ Chris.
Era a voz de Barbara Clark.
Contra a sua vontade, Chris sentiu‑se assaltada por uma emoção indescritível, Contudo, calou‑se e ficou imóvel. Do lado de fora da cela, Barbara Clark sentiu um nó no estômago. O cantarolar recomeçou, indiferente aos seus apelos. Barbara lembrou‑se imediatamente de Ofélia, ao ouvir o cantarolar inconsciente de Chris.
‑ Chris, o que aconteceu, Chris? ‑ perguntou a professora.
Dentro da cela, Chris encarava a parede lutando para não voltar a cabeça e para não chorar. Então, em tom baixo e monocórdico, respondeu:
- Não nos entendemos. Não deu certo. - Fez uma pausa, porque iria contar agora a pior parte: - E já nem
o meu irmão me quer. ‑ Chorando em silêncio apoiou‑se na parede usando o braço para descansar a cabeça.
Barbara estava com o coração despedaçado.
‑ Oh, meu Deus, o que fizeram a esta criança! Lamento muito, Chris ‑ murmurou a professora, consciente de quão inadequadas eram aquelas palavras, mas incapaz de encontrar outras apropriadas para consolar a jovem. Então, num tom de alegria artificial, para simular a própria tristeza, Barbara disse:
- Chris, da próxima vez vamos experimentar um lar adoptivo.
A princípio, Chris não se moveu. Depois começou a menear negativamente a cabeça. Finalmente, recomeçou a caminhar, cantarolando e estalando os dedos.
‑ Não levarás muito tempo a reconquistar os teus pontos ‑ disse Barbara o mais alegremente que lhe foi possível. Mas as palavras da professora produziram um efeito totalmente oposto em Chris que, para não perder o controlo, continuou a andar, cantarolando.
Queria que Barbara se fosse embora. Não estava com disposição para ouvir quem quer que fosse. Ninguém.
‑ Sabes como para ti as lições são fáceis ‑ lembrou‑lhe Barbara.
Chris tentou abafar o som da voz da professora, aumentando o tom do seu cantarolar. Do lado de fora da porta de ferro, Barbara tremia de pena e de frustração. Estava a mandá‑la embora. Rejeitada por Chris, como esta fora rejeitada por todos. Contudo, tentaria reconquistar outra vez a confiança da interna. Deveria ultrapassar a hostilidade desenvolvida na jovem e reconquistar-lhe a confiança.
‑ Chris ‑ voltou a chamar Barbara. A única resposta que obteve foi um cantarolar mais alto acompanhado agora de palmas vigorosas que marcavam o ritmo de um "rock".
Impulsivamente, Barbara avançou para a porta da cela. A meio do caminho, contudo, recuperou o bom‑senso. No momento não podia fazer nada. O desespero e a revolta na alma da jovem eram mais fortes do que tudo o que ela pudesse fazer. Precisava de sair e de reordenar os seus pensamentos. Voltando‑se com ar cansado, caminhou pelo corredor ao mesmo tempo que uma estranha sensação de claustrofobia a começava a invadir.
- Porque será que ainda não saí daqui? ‑ interrogou‑se amargamente Barbara. Chris tinha‑lhe feito essa mesma pergunta alguns dias antes. Apalpou as chaves que estavam no bolso. Havia ocasiões, como agora, em que procurava pôr a maior distância possível entre a sua pessoa e aquele lugar. - Oh, meu Deus ‑ suspirou ‑ às vezes isto parece tão desencorajador, tão vazio de propósitos...
Com a retirada de Barbara, Chris tornou‑se ainda mais consciente do seu isolamento. Tentando dominar os seus sentimentos e impedir o desmoronamento do seu ego, a jovem começou a cantar em voz alta e a bater palmas para marcar o ritmo. Enquanto andava de um lado para o outro gingava ao compasso da música que entoava. A despeito dos esforços que fazia para manter o controlo, sentia uma pesada onda de pânico a abater‑se sobre ela. A quantidade de emoções refreadas era demais. Solidão, amargura, desamparo, destruição do amor próprio. Rejeição por todos por quem procurou em busca de amparo. Tudo aquilo estava acima das suas forças. A voz partiu‑se-lhe em soluços angustiados. Avançou para a parede, golpeando a parede de betão com os impotentes punhos fechados. O choque das mãos fechadas contra a parede causava‑lhe ondas de dor. Apreensiva, recolheu a mão direita e examinou‑a julgando tê‑la quebrado.
Chorando, abafando como podia os soluços, voltou a andar em volta da sala. A mão latejava, dorida. Parando, esfregou a mão magoada nos cabelos. Sentiu alguma coisa metálica contra a palma da mão. Com os dedos localizou o objecto e tirou‑o dos cabelos. Era um gancho que, de algum modo tinha escapado à revista pela guarda da solitária. Examinou o pequeno objecto de metal por alguns momentos. Abrindo‑o, começou a esfregar uma das pontas no betão áspero do chão da cela, até produzir um fio cortante e afiado.
Erguendo o braço esquerdo e apoiando‑o contra a parede, Chris segurou cuidadosamente o gancho transformado em instrumento cortante, usando para isso os dedos indicador e polegar da sua dorida mão direita. Lenta e deliberadamente arranhou com a ponta cortante a pele do braço esquerdo. Mordendo os lábios para sufocar a dor, cortou, na carne macia, um grande "C". Não satisfeita e desprezando a dor e o sangue, traçou ao lado de "C> um "P". Examinando com estranha fascinação a automutilação, começou a tremer e o gancho escorregou-lhe dos dedos trémulos para o chão.
No dia seguinte, embora a mão direita de Chris ainda latejasse, examinou os dedos várias vezes, preocupada, até se convencer de que não havia fracturas. Passou a maior parte do tempo da hora de exercícios sentada a um canto do pátio, com os joelhos encolhidos sob o queixo, os olhos perdidos num ponto abstracto do espaço.
De volta à cela, teve vontade de quebrar o copo plástico, partir o bacio e reduzir o colchão a tiras. O seu lado prático, contudo, impediu‑a de praticar tal vandalismo. Era preciso ter cuidado. Se queria sair daquele buraco de betão deveria comportar‑se bem. Dar livre curso aos seus instintos primários não era o caminho mais curto para a liberdade. Podiam deixá‑la numa cela ainda mais desconfortável, metê‑la num colete de forças e dar‑lhe sedativos. Estremeceu perante aquelas perspectivas bem piores.
As horas deixaram de existir para Chris.
Não soube por quanto tempo ficou com as costas apoiadas à parede áspera de betão aparente da cela, olhando através da janela, pesadamente gradeada, para a feia paisagem, do lado de fora.
Veio a hora do almoço e prolongou-o o mais possível, como meio de passar o tempo.
Pelos seus cálculos tinha decorrido mais de uma hora depois da guarda ter recolhido a bandeja do almoço, quando ouviu passos no corredor.
Virou‑se para ouvir melhor e o coração bateu‑lhe mais depressa quando ouviu o ferrolho da porta de segurança, no meio do corredor, correr e a pesada grade de ferro girar nos gonzos. Novos passos e depois a própria porta da sua cela foi aberta. Barbara apareceu. Voltando‑se para alguém, que ficara do lado de fora, disse:
‑Espere aí.
Barbara entrou na cela e dirigiu‑se para onde estava Chris. A jovem considerou ponto de honra não dar à professora a menor demonstração da alegria que sentia pur ver outro ser humano. Barbara mantinha também o rosto sério. Durante alguns momentos ficaram em silêncio.
Chris virou‑se e voltou a olhar para a janela.
Numa voz que não traía qualquer emoção conseguiu, finalmente, dizer como que por acaso:
‑ Pensei que não eram permitidas visitas na solitária.
‑ Só em casos muito especiais ‑ respondeu Bárbara, tentando manter a voz firme e calma.
Chris fez uma careta de pouco caso. Mas Barbara não percebeu.
‑ Casos especiais como eu, Miss Barbara? ‑ perguntou desdenhosamente.
A professora deu um passo em direcção à jovem.
- Sim ‑ confirmou. A voz era firme e revelava a intensidade dos seus sentimentos. ‑ Sim, casos muito especiais, como tu.
‑ Christine Parker ‑ disse Chris amargamente. ‑ Fugitiva. Mandem‑na outra vez para a jaula e ponham‑na num canto onde não aborreça ninguém.
Voltou‑se e encarou Barbara.
‑ É isto o que os pais fazem quando não querem ter os filhos ao pé deles, não é? Metem‑nos numa porcaria como isto aqui.
Os traços de Barbara endureceram.
‑ Tu fugiste de casa quando estavas num período de experiência ‑ lembrou a Chris. ‑ Fugiste de casa depois de teres assumido, publicamente o compromisso de nunca mais fazeres isso. Estes, minha querida, são os factos.
Chris voltou‑se, agressiva.
‑ Os seus factos são definitivos e, portanto dignos de crédito. Os meus não são.
Barbara ficou calada por uns instantes. Aquela não era a jovem Chris em quem tinha depositado tão grandes esperanças, havia apenas alguns dias. Chris tinha sido uma internada com perspectivas de futuro. Agora tornara‑se uma cínica cópia a papel químico das endurecidas internadas que povoavam o colégio. Barbara sentia‑se mais desamparada do que nunca. Foi então que notou o braço esquerdo de Chris e impulsivamente, no meio de uma exclamação de espanto, agarrou‑a ficando a examinar, incapaz de pronunciar uma única palavra, os feios arranhões cobertos por uma estria de sangue coagulado. Chris tentou libertar o braço, porém, Barbara agarrou‑o com firmeza com os olhos a brilhar de angústia e desapontamento.
‑ Tu estás a deixar que algo de muito valioso se perca, Chris. Estás a abandonar o maior dos teus bens, minha querida, e eu desejo que retenhas os teus mais puros sentimentos. Isto é muito importante e tu precisas deles.
Chris encarou em ar de desafio a professora:
‑ Para quê? Diga‑me, por quê?
A centelha de esperança que Barbara alimentava apagou‑se. Nada mais podia dizer. Fechou os olhos, abanou tristemente a cabeça e voltou‑se para sair.
Chris, impassível, ficou a olhar para a professora caminhando para a porta da cela. No seu intimo apenas havia a curiosidade de saber porque não tinham fechado a porta.
‑ Muito bem ‑ ouviu a voz de Barbara vinda do corredor.
Chris foi apanhada completamente de surpresa ao ver surgir no umbral o vulto de Janet. Não podia acreditar nos próprios olhos.
Sorrindo calorosamente a índia saudou:
‑ Olá.
‑ Olá - respondeu Chris sentindo‑se verdadeiramente feliz ao ver a sua companheira de quarto. Contudo, era incapaz de expressar tais sentimentos.
Janet cruzou os dedos longos e esguios sobre o ventre proeminente. O seu rosto expressava uma profunda emoção. Emoção que Chris imediatamente percebeu e procurou corresponder.
Ficou parada por alguns momentos contemplando o próprio ventre, depois ergueu os olhos para Chris. Visivelmente, experimentava dificuldades para articular as palavras. Quando finalmente conseguiu, estas vieram lentas e soletradas.
‑ Chris, já resolvi. Fico com a criança. Mas não quero ficar sozinha com ela. Quero que me faças companhia.
Profundamente sensibilizada, Chris sentiu um calor espalhar‑se por todo o seu ser. Contudo este não foi ainda suficiente para derreter o gelo que fizera crescer sobre o encontro de há pouco com a professora.
‑ Porquê? ‑ perguntou.
Janet pareceu ficar embaraçada. Um pequeno e patético sorriso bailou‑lhe nos lábios quando respondeu:
‑ Nunca ninguém falou comigo, sobre o meu filho, como tu, Chris. ‑ Fez um gesto com os ombros e continuou a sorrir encarando a jovem. Chris entendeu então tudo e sorriu tambem oferecendo amor e simpatia.
- Caramba, alguém estava de verdade a precisar dela. Era, de facto, importante
‑ Por favor, Chris ‑ pediu Janet ‑ sai da solitária. Por amor da criança, Chris. E para o meu bem.
Chris acenou afirmativamente com vigoroso movimento de cabeça lutando para não chorar, as primeiras lágrimas de verdadeira alegria que sentia havia muito tempo. Mas, mesmo muito tempo.
Durante os dias que se seguiram à sua libertação da solitária, Chris reconquistou facilmente o seu amor próprio. Fazia exactamente o que dela esperavam. Nada mais. Nada menos. Consciente de que estava sob constante vigilância por parte das encarregadas da escola tomava um cuidado especial para dar a impressão de participar com o máximo interesse nos trabalhos da casa, nos jogos, ou nos deveres escolares. Embora já não se retraísse, como anteriormente fazia, não se adiantava também, esquivando‑se a tomar iniciativas, especialmente durante os recreios. Cautelosamente procurava evitar dar às raparigas com as quais acamaradara anteriormente, como Josie e Ria, qualquer indício de que algo de diferente havia entre elas.
Janet era a única a que mais se afeiçoara e embora o diálogo entre elas fosse frequentemente limitado e entremeado de longos períodos de silêncio, havia um forte laço de camaradagem entre as duas que se estreitava cada vez mais.
Lasko, com a sua experiência, reconheceu a alteração no comportamento de Chris. Contudo atribuiu‑a à crescente aceitação da situação por parte da jovem.
Chegando a essa conclusão, a responsável pelo dormitório abrandou a sua atitude anterior de suspeita e desconfiança, afrouxando a vigilância. Lasko evitava desenvolver sentimentos de favoritismo em relação às jovens confiadas à sua guarda e, a despeito de sentimentos íntimos de compaixão, evitava cuidadosamente qualquer sinal exterior de emoção. Tal como as próprias garotas, considerava a revelação de sentimentos como um sinal de fraqueza capaz de pôr em perigo a sua posição de autoridade e prejudicar a sua capacidade de manter a ordem.
De todos os elementos da direcção da escola, somente Barbara percebeu, angustiadamente, os sinais de mudança no ânimo de Chris. A jovem adoptara uma conduta controlada e cautelosa. Os seus olhos exibiam continuamente um brilho de desconfiança e dúvida. O jeito de Chris, revelando uma força adormecida, lembrou a Barbara a bandeira colonial da cascavel com o aviso: Não me ameace. Antes da estadia em casa, Chris raramente fumava. Agora vivia praticamente com o cigarro entre os lábios, nas horas permitidas e quando tragava o fumo fazia‑o com a pose sofisticada dos que cultivam o hábito durante a vida inteira.
Por mais de uma vez Barbara tentou falar com Chris empregando todos os estratagemas ao seu alcance mas a jovem tinha erguido uma muralha em torno de si, jamais se demorando na sala depois das aulas e nem lhe dando qualquer oportunidade. Além disso, a jovem não tornou a fazer qualquer tentativa para esconder os seus maiores conhecimentos. Tendo conquistado o respeito das companheiras devido à tentativa de fuga transformara subtilmente o que poderia ser uma qualidade negativa numa vantagem positiva.
O tempo passou sem grandes acontecimentos até que chegou o dia de visitas na escola. Para algumas era um momento de expectativa e excitação. Para outras, um deprimente período de tensão, apreensão e tristeza.
Emma Lasko detestava os dias de visitas. Para ela tais dias constituiam uma recordação em miniatura de um certo período da sua juventude, quando, como estudante solitária de Sociologia numa universidade distante de casa, foi deixada por sua própria conta, para cuidar de si como pudesse em dias solitários que pareciam não ter fim, em jantares desenxabidos a sós, em horas vazias, enquanto as outras iam para as suas casas a fim de participar em alegres e calorosas reuniões com os entes queridos.
O edifício estava anormalmente quieto naquele dia. A maioria das internadas recebera visitas e encontrava‑se nos campos relvados andando a esmo ou fazendo piqueniques. As que não receberam visitas aproveitaram‑se da quebra da rotina para um descanso.
Na semi‑obscuridade da sala de estar do edifício, Janet e Chris estavam refasteladas no sofá a assistir a um programa de televisão. Na verdade, nenhuma das duas prestava muita atenção às imagens mostradas no écran, imersas que estavam nos seus próprios pensamentos. Miss Lasko apareceu no umbral olhando nervosamente para as duas e anunciou:
‑ Os teus pais estão ali.
Arrancadas aos seus pensamentos pela voz da responsável, Janet e Chris encararam‑na. Chris deu um pulo. Janet com um movimento lento e difícil virou‑se. Lasko dera a notícia e retirara‑se para o corredor, de modo que já desaparecera quando Chris perguntou:
‑ Os pais de quem? Qual de nós duas tem visitas?
‑ Janet ‑ respondeu a voz de miss Lasko, vinda do lado de fora.
As duas jovens encararam‑se por instantes. Impassível Janet fez um esforço para se levantar do sofá e saiu da sala. Chris continuou a assistir ao programa. Na realidade o seu cérebro não registava as imagens mostradas no écran. A mente ocupava‑se com os seus próprios pensamentos. Contudo não ficou sozinha na sala de estar por mais de três minutos, se tanto.
Denny entrou e esparramou‑se no sofá do extremo oposto ao ocupado por Chris que dispensou à recém‑chegada um breve olhar, voltando a fixar a vista no televisor.
Denny remexeu‑se incomodada e acabou por tirar do bolso um maço de cigarros. Tirou um que pôs entre os lábios e estendeu o maço a Chris.
‑ Queres fumar? ‑ perguntou.
Sem olhar para ela, Chris estendeu o braço e tirou um
cigarro do maço que lhe era apresentado. Denny olhou para
o cigarro apagado e virando‑se chamou em tom autoritário:
‑ Lasko. ‑. A responsável apareceu exibindo uma clara
expressão de contrariedade.
‑ Disseste‑me que são vocês que têm que acender o cigarro para a gente ‑ observou Denny jocosamente.
Miss Lasko enfiou a mão no bolso do avental e tirou um isqueiro muito usado. Acendeu‑o e ofereceu lume primeiro a Denny e depois a Chris. Depois de apagar o isqueiro e de o guardar outra vez no bolso, Miss Lasko ficou parada por alguns instantes. Finalmente perguntou:
‑ O que estão vocês a ver?
Na realidade pouco se interessava pelo que as internas viam na TV. Fizera a pergunta apenas para aliviar um pouco a própria inquietação.
‑ Nada ‑ respondeu Chris com um gesto de mão a indicar que dispensava a encarregada.
Nesse momento, Josie entrou na sala de estar. Habitualmente alegre, a negrinha, naquele instante exibia uma máscara de profunda angústia. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Deu a volta e correu para o sofá sentando‑se entre Chris e Denny, procurando conter os soluços e sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.
‑ O que é que aconteceu? ‑ indagou Miss Lasko franzindo preocupada a testa.
Chris, sem tirar os olhos do aparelho de TV deu um suspiro de impaciência e disse:
‑ Lasko, quer fazer o favor de se ir embora e nos deixar sozinhas?
A responsável meneou a cabeça em sinal negativo como se não estivesse a compreender certas coisas e atravessou a sala de estar para se ir sentar diante de uma mesa perto da janela.
‑ Caramba ‑ murmurou Emma como que para si própria. ‑ Como odeio esses dias de visitas.
Sem tirar os olhos da TV, Chris aspirou o fumo profundamente e antes de o expelir passou o cigarro a Josie que o segurou entre os dedos como se faz com os cigarros de maconha. A negrinha também aspirou profundamente e devolveu o cigarro a Chris. Expeliu lentamente o fumo e observou:
‑ Oh, meu Deus, como gostaria que a minha mãe não me viesse ver. Vocês, raparigas que não têm pais que as venham visitar é que são felizes.
Miss Lasko encarou as três jovens com uma expressão de profunda tristeza na face.
‑ Alguma de vocês quer jogar um pouco às cartas? ‑ Convidou. - Tu, queres, Denny?
‑ Não ‑ respondeu Denny. Estou à espera de uma pessoa.
Lasco fez um gesto de impaciência e olhou para o relógio de pulso.
‑ Já começa a ser tarde ‑ observou sem se dirigir particularmente a alguém.
‑ Mas, eles ainda podem vir ‑ teimou Denny ansiosamente.
Chris cruzou as pernas e perguntou ironicamente:
‑ Porque não fazes uma paciência, Lasko? ‑ A voz de Chris era desdenhosa.
‑ Só queria ajudar ‑ respondeu Emma sinceramente preocupada.
‑ Pois tu nunca ajudaste ninguém em coisa alguma
‑ respondeu irritada Chris.
Lasko ergueu‑se e fechou os punhos num gesto de frustração.
‑ Não me fales assim! ‑ exclamou. ‑ Não sabes nada disso. Vivi solitária durante muitos anos esperando que uma alma boa me fosse visitar, quando estava na universidade. ‑ As emoções da mulher há muito refreadas, fluiam livremente naquele instante. Virou‑se para Denny e perguntou‑lhe: ‑ Denny, quantas vezes te consolei nos dias de visitas? Vamos, diz‑lhes quantas vezes te consolei!
A jovem pôs‑se de pé com os olhos a brilhar.
‑ Já te disse que hoje me vêm visitar. ‑ Gritou à beira da histeria.
- Não preciso de ti para nada.
Lasko fechou os olhos por alguns instantes para evitar a visão de desespero impresso na face de Denny. Como poderia ela suavisar feridas e cicatrizes que estavam incrivelmente impressas na alma daquela jovem? Se ao menos pudesse chamar Denny de volta à realidade
‑ Ninguém te virá ver ‑ disse Miss Lasko com expressão cansada ‑ e sabes isso muito bem.
Chris bateu com a mão espalmada no braço do sofá.
‑ Lasko, o que te custa dizer‑lhe que alguém virá? Custa‑te alguma coisa fazer isso? Diz‑lhe que vêm e assim ela ficará contente.
‑ Mas ninguém a virá ver ‑ teimou surdamente Emma, incapaz de revelar a compaixão que lhe dominava a alma, combatendo o desejo de correr para Denny e abraçá‑la com força. Quando finalmente conseguiu andar os poucos passos que a separavam de Denny esta contorceu‑se para se livrar do abraço de Emma Lasko e enrolando‑se numa poltrona gritou:
- Tu, malvada, é que não queres que eles venham. És tu, malvada, que não queres os outros aqui.
Perdendo momentaneamente o controlo, Lasko esbofeteou Denny em pleno rosto. Imediatamente se arrependeu. Atónita com o próprio gesto, Emma Lasko saiu da sala com passos rápidos desejando com desespero que as suas próprias fraquezas se não revelassem tão facilmente aos olhos das internas.
No dia seguinte, tudo estava novamente dentro da rotina do costume. Acordar à hora certa. Comer à hora certa. Ter recreio à hora certa.
Naquela tarde, a aula de Barbara decorria num ambiente informal e completamente livre das contenções usuais entre as internas. Janet era o ponto focal de todas as atenções. Tal como um casulo pronto para entrar numa nova vida, acomodava‑se numa banqueta baixa apoiando as costas na parede e visivelmente deslumbrada com a pilha de presentes que caíam no seu colo, presentes esses reunidos pelas internas a fim de obsequiar a criança ainda não nascida. Acabara de desdobrar um cobertor de tricô e erguia‑o para que todos vissem. A maioria das raparigas estava reunida em torno dela, soltando exclamações de entusiasmo ou de admiração cada vez que abria um embrulho.
Paula, geralmente retraída e reticente estava simplesmente maravilhada com a reacção que o seu presente ‑ o cobertorzinho ‑ despertara entre as companheiras.
‑ É cor de rosa de um lado e azul do outro ‑ explicou excitada
‑ para que possa servir ao bebé, se for menino ou menina, tanto faz.
‑ Mas que coisa tão bonita ‑ comentou Barbara do seu lugar por trás da mesa.
‑ Bonito? ‑ gritou Chris no auge do entusiasmo. ‑ É muito mais do que isso. É simplesmente divino. ‑ Chris postava‑se diante da mesa lugar usualmente ocupado pela professora e dali encarava a classe com um ar de confiança que foi reforçado pela atitude da professora que disse:
‑ Já é tempo de termos um pouco de música. Chris, trata tu disso.
Chris voltou a atenção para Moco que, como de costume, estava sentada no banco do piano.
‑ Moco ‑ ordenou Chris batendo as palmas para chamar a atenção. ‑ Toca um pouco de música.
Sem sequer erguer os olhos do livro que estava a ler, Moco resmungou:
‑ Agora estou a ler.
O primeiro impulso de Chris foi desafiar Moco a provocar uma discussão. Contudo, o instinto disse‑lhe que não deveria perturbar a alegria geral, o que, em última análise iria prejudicar Janet, tão feliz.
Felizmente o ruído do papel ao desdobrar‑se, quando Janet desfez outro embrulho, atraiu as atenções gerais.
Com os olhos a brilhar, Josie observou sem se dirigir a ninguém em particular.
‑ Esse bebé vai ser um felizardo. Tem uma data de irmãs mais velhas para cuidarem dele.
Lançando um olhar para o piano Chris observou jocosamente:
‑ E Moco como irmão mais velho.
A observação foi saudada com um coro de risadas.
‑ Muito engraçadinho ‑ observou Moco resmungando.
‑ Quando todas sairmos daqui ‑ disse Chris ‑ iremos visitar Janet e encontrar‑nos‑emos em casa dela.
‑ Isso mesmo ‑ berrou Josie no auge do entusiasmo.
Chris agarrou‑se á borda da mesa e inclinando‑se para a frente disse, procurando incutir a força da sua convicção ás demais:
‑ Na verdade, durante os próximos vinte anos, todas nós vamos manter contacto com Janet e o bebé.
Barbara estava muito alegre por ver Chris sair da sua habitual retracção e assumir o controlo, envolvendo‑se no movimento geral das internas. Era uma lufada de ar fresco num quarto há muito fechado e cheirando a mofo. Chris continuou a falar mostrando uma iniludível sinceridade no seu tom de voz.
‑ Vamos sempre saber onde eles estão e sempre que precisarem de alguma coisa nós todas ajudaremos.
‑ Juro que roubo tudo o que precisares, Janet ‑ disse Ria com uma risada de contentamento. Todas acompanharam a risada excepto Moco que continuou impassível, com os olhos voltados para o seu livro. Barbara gostaria que a jovem participasse das brincadeiras, mas, descobrira há muito, que aquele seu ar soturno encobria uma incapacidade fundamental de Moco para comunicar com as outras pessoas.
Bea arrastou a cadeira para a frente:
- Vamos tomar conta do tipo com que te casares. ‑ Fez uma pausa olhando em torno e concluiu: ‑ Se é que és suficientemente parva para te casares.
Todas riram e Chris aprovou, dizendo:
‑ É isso mesmo. E é melhor que o tipo seja bom para o bebé. ‑ Ao dizer isso havia uma nota de dureza na sua voz.
Uma por uma, as raparigas calaram‑se e concentraram toda a atenção para Janet. Os olhos grandes e luminosos da índia estavam cheios de lágrimas. Nos seus lábios bailava um leve sorriso. Estava comovida demais para falar.
Tentando manter a alegria geral da sala e impedir que a reunião degenerasse em sentimentalismo piegas, Barbara voltou a fazer um apelo a Moco.
‑ Vamos lá, Moco. Toca um pouco de música para nós.
‑ Toca tu ‑ disse Moco fechando irritadamente o livro.
Chris encarou firmemente Moco.
‑ Precisas de fazer alguma coisa, Moco. Afinal, tu és o homem da casa.
Rebentaram gargalhadas pela sala. Moco levantou‑se visivelmente irritada e Chris levantou o braço para se proteger do livro que Moco raivosamente lhe atirou.
Subitamente Moco ficou imóvel. Lançou um prolongado olhar a Janet e lentamente voltou ao banco do piano. Os dedos movimentaram‑se com graciosidade sobre as teclas
e as notas da Marcha Nupcial misturadas com ruídos de risadas, encheram a sala. E assim houve música, naquela tarde, durante a aula de Barbara Clark.
Era a hora do jantar, dois dias depois. O tilintar dos talheres contra os pratos de loiça e o bater das bandejas ecoava por todo o refeitório, misturando‑se com o arrastar de cadeiras, o arrastar dos pés no chão e o tom agudo das vozes das internas. Chris sentava‑se a uma das mesas, em companhia de Janet, Josie, Ria e Bea. Do lado oposto acomodavam‑se Crash, Jax, Denny, Moco e Paula.
‑ Que porcaria é esta? ‑ perguntou Crash erguendo o rosto com expressão de contrariedade depois de ter remexido a comida com aponta do garfo.
‑ Ora, cala a boca ‑ disse Jax meio a brincar. ‑ Ajudei a cozinhar isto.
‑ Nojento - exclamou Denny tapando o nariz com os dedos e fazendo com a garganta ruídos que imitavam o vómito.
Paula tentou evitar que a discussão alastrasse. Por isso anunciou:
‑ ouvi dizer que o superintendente encontrou duas novas famílias que se dispõem a aceitar internas.
Josie lançou à outra um olhar de indiferença:
‑ O que não falta aqui são boatos sobre famílias que se dispõem a adoptar uma de nós.
‑ É isso mesmo ‑ acrescentou Bea, esclarecendo: ‑ E o que essas pessoas querem é apenas uma escrava para trabalhar a troco de casa e comida.
Ria, impaciente, bateu com o garfo no prato:
‑ Ora, cala a boca, Bea! Será que nunca tens um comentário amável?
Não querendo ser envolvida na discussão, Chris manteve‑se calada. Limitou‑se a dar uma olhadela à bandeja de Janet. A jovem grávida estava a comer por duas e nunca havia comida que chegasse na sua bandeja. Querendo ajudar, pegou numa porção da sua própria comida e colocou‑a na bandeja de Janet. Josie, que se sentava à esquerda da índia, percebeu o gesto e, sem dizer palavra, seguiu o exemplo de Chris. Embora não estivesse no momento com fome, Janet sentiu‑se profundamente comovida pela demonstração de altruismo das suas duas amigas. Era, contudo, demasiado retraída para dizer alguma coisa.
Moco, sentada mesmo em frente parou de comer para apreciar o que as outras estavam a fazer. Com a sua costumeira expressão desdenhosa, Moco explodiu:
‑ Jesus! Para que é que ela quer mais desta porcaria?
‑ Sabes muito bem porquê ‑ respondeu Chris.
‑ Linda coisa ter um bebé ‑ resmungou Moco. Chris manteve a sua voz controlada a fim de não perturbar Janet.
‑ Sim, é uma linda coisa ter um bebé ‑ disse, desejando que Moco não se metesse onde não era chamada.
Moco, contudo, estava em maré de aborrecer os outros. Pôs os cotovelos sobre o tampo da mesa, inclinou o tronco para a frente e contemplou as duas durante alguns instantes com os seus olhos protuberantes. Levantou‑se e inclinou‑se ainda mais de modo a aproximar o seu rosto ainda mais do de Janet.
‑ Olha aqui, ó índia. Até uma cadela pode apanhar uma barrigada ‑ disse em voz baixa e insultuosa. Voltou a sentar‑se com expressão satisfeita, convencida de que tinha dito a última palavra.
Chris e Janet ergueram as cabeças vivamente. Janet corada de vergonha. Chris, incapaz de controlar o impulso apanhou a sua bandeja e atirou‑a ao rosto de Moco. Algumas das raparigas gritaram advertindo do perigo. Chris presa de um incontrolável acesso de raiva não lhes deu atenção e avançou para a bandeja mais próxima e atirou‑se também para a atónita Moco, coberta por uma camada pastosa de puré de batata, verduras e molho. Todas as atenções se voltaram para ela enquanto as vozes se elevavam a um grau de excitação raramente visto.
Subitamente Crash pegou com as mãos num punhado de puré de batata do seu próprio prato e atirou‑o ao rosto de Chris. Janet, embora com dificuldades, pôs‑se de pé e atirou a sua própria bandeja sobre Moco antes que a jovem se pudesse abrigar. O gesto da índia foi uma fagulha num barril de pólvora. Numa questão de segundos toda a sala de jantar explodiu numa confusão de pontapés, gritos, ameaças e pragas. Bandejas voavam pelo ar indo chocar ruidosamente contra as paredes. Mesas eram reviradas com toda a loiça que se partia ao cair no chão. Cadeiras caiam estrondosamente no chão e as mais medrosas corriam sem saber para onde ir em busca de abrigo. Chris e Janet, completamente empolgadas pelo calor da batalha que estavam a travar apanhavam tudo o que lhes caía ao alcance das mãoS para atirar às adversárias. Moco, completamente desamparada era o alvo principal. Meio cega pela massa gelatinosa que lhe cobria os olhos, pouco mais fazia do que erguer os braços para se defender dos projécteis improvisados. Lentamente, recuava, esperando encontrar algum lugar em que se pudesse abrigar das suas decididas atacantes.
Alarmada pelo barulho, que assumira proporções de uma revolta, Miss Lasko correu para o salão acompanhada de uma cozinheira que se limitava a seguir de olhos arregalados aquele pandemónio. Por alguns instantes as internas não se aperceberam da chegada da responsável. Finalmente algumas conseguiram acalmar as demais e o caos cessou. As que tinham fugido em busca de abrigo começaram a voltar para o meio do salão, mostrando no rosto um misto de confusão e de alívio. As que não tinham participado directamente na confusão corriam para a porta tentando fugir à inevitável confrontação.
Abrindo caminho através dos montes de comida, da louça partida e por entre os móveis revirados, Miss Lasko finalmente chegou até onde Chris e Moco se encontravam. As duas jovens mantinham‑se tenazmente engalfinhadas, arranhando‑se, mordendo‑se e puxando os cabelos uma da outra. Janet, com os olhos arregalados e cheios de lágrimas assistia à luta incapaz de um único movimento.
Miss Lasko, aproximando‑se das raparigas que lutavam sem dizer palavra, pegou‑as pelos braços, separou‑as e começou a empurrá‑las para fora da sala de jantar.
‑ Tu também ‑ disse Emma Lasko voltando ligeiramente a cabeça em direcção a Janet. A sobremesa delas seria a punição.
Na manhã seguinte, bem cedo, uma calma estranha reinava na residência sobe a responsabilidade de Emma Lasko. Nenhuma das internas podia sair do seu quarto até que se chegasse a uma decisão sobre o incidente da véspera, no refeitório. Barbara Clark estava com Emma Lasko no escritório desta. Emma acomodava‑se numa cadeira por trás da mesa e tentava ocupar a mente numa pilha de documentos que aguardavam o seu exame. Barbara andava nervosamente de um lado para o outro.
‑ Posso agir baseada apenas no que vi. Janet e Chris é que começaram a desordem ‑ dizia Emma.
‑ Emma, mas, Janet, tem tido um comportamento exemplar ultimamente. ‑ Lembrou Barbara acrescentando.
‑ As duas, Janet e Chris têm feito parte do quadro de honra nos últimos tempos.
Emma com um gesto de impaciência afastou os papeis e dirigiu um olhar aborrecido à outra.
‑ Certo. Mas isso não constitui desculpa. Se eu deixar passar isto em branco, as outras...
‑ Está bem, então mantém as duas confinadas ao quarto, mas não as mandes para a solitária ‑ pediu Barbara. - A solitária não ajuda nada, Emma.
O aborrecimento de Emma Lasko tornou‑se ainda mais patente. A responsável ressentia‑se da contínua interferência da professora na sua maneira de dirigir o edifício, especialmente quando Chris Parker estava envolvida.
‑ Barbara, não és tu quem dirige este edifício. Sou eu. E mandá‑las para a solitária ajuda‑me a manter a ordem aqui dentro.
- Ah, então é isso? ‑ respondeu Barbara irritada. - O objectivo é esse? Dirigir o edifício sem problemas para ti? Manter a ordem, não importa que meios violentos forem empregues? Foi por isso que esbofeteaste Denny? Para que possas...
‑ Eh, Barbara, agora, espera um pouco! ‑ interrompeu Emma Lasko, atingida pela acusação implícita.
‑ proceder desse modo ajuda‑te a dirigires o edifício?
‑ insistiu Barbara fazendo pressão sobre o ponto que julgava capital.
Emma ergueu‑se da cadeira, avançou o peito, o rosto contorcido pela raiva, os nós dos dedos brancos da força que fazia contraindo os punhos:
‑ Olha lá, Barbara. Não me comeces com essa história de me transformares numa espécie de monstro... ‑ Ao dizer a palavra, aplicando‑a a si mesma, Emma Lasko sentiu toda a ira desaparecer. - Barbara não te atrevas a... ‑ tendo a raiva desaparecido, a responsável não sabia como prosseguir na invectiva. Suspirou e, já calma, retomou a palavra: ‑ Olha, sinto muito pelo que fiz a Denny. Como sabes, muito raramente perco o controlo...
Interrompeu o que estava a dizer porque Barbara voltou o rosto com uma expressão de repugnância.
‑ Ouve‑me, Barbara ‑ pediu Emma Lasko agora já numa desesperada defensiva. ‑ Há dez anos, quando aqui cheguei, a primeira coisa que fiz foi lutar pela abolição dos castigos corporais. Hoje, estas moças estão livres das tareias com o chicote e das palmatórias, graças a mim. protegi‑as e protejo‑as. Ouviste?
Barbara encarou novamente a responsável. Nos seus olhos, a compaixão substituira a raiva. Não tinha a menor intenção de transformar Emma Lasco em bode expiatório. Ela era apenas um outro peão, no grande tabuleiro, demasiado temerosa de si mesma, para se atrever a fazer um movimento errado.
‑ Certo, Emma. Já ouvi muitas histórias sobre o que aqui acontecia antigamente. Era horrível, eu sei. Mas o facto capital permanece. Essas raparigas, quase todas meninas, são fechadas aqui porque os pais não as querem nas suas casas. Este é o crime que cometeram: foram rejeitadas pelos pais.
Lasko desviou os olhos. Ela também sabia, no mais recôndito do coração o que era ser rejeitada. Indesejada.
‑ Sobre isso, nada posso fazer ‑ disse em voz baixa, sentindo‑se derrotada, sem argumentos.
‑ Temos lugares onde animais indesejados são recolhidos e cuidados com carinho ‑ lembrou Barbara. Temos asilos para pessoas idosas onde os velhos recebem carinho e atenção. Mas, para as 'crianças abandonadas, rejeitadas, expulsos dos seus lares por pais sem coração, o que temos? Estes horríveis reformatórios.
Emma Lasko, com os olhos reflectindo um novo ardor disse com voz firme:
‑ São reformatórios, sim. Mas antigamente eram bem piores. Os de agora, são parques de divertimentos comparados com o que acontecia há dez anos atrás.
Barbara meneou a cabeça com impaciência.
‑ Emma, o que importa não é o que foi, mas o que é. O que vamos fazer com elas, agora?
- Oh, meu Deus ‑ reflectiu Emma Lasko. Será que não poderei fazê‑la entender que isto agora é um céu? - Endereçou à professora um olhar penetrante e batendo no rosto para dar ênfase ao que iria dizer, afirmou: - Eu dei‑lhes um lugar onde viver. Dei‑lhes quartos limpos, comida decente e não deixo que as magoem... Aqui estão protegidas contra aqueles que lá fora as magoavam e feriam. - E a completar o sentido da frase, apontou com o polegar para a janela.
Barbara não se acalmaria tão facilmente.
‑ Ainda não é o bastante ‑ disse a professora. ‑ Admite, Emma, que ainda não é o bastante porque isto não quebra a rotina. Vivem a entrar e a sair. Passam uns tempos aqui e saem voltando para o mundo lá fora, onde continuam a ser crianças enjeitadas... - Parou abruptamente, agarrou com força o braço da outra e pediu: ‑ Emma, ajuda‑me a quebrar a rotina. A estabelecer um precedente. Pelo menos um... Apenas uma dessas raparigas... se ela se salvar do destino negro que espera todas elas... Emma, por favor!
E ao dizer isto, Barbara sabia que a rapariga que tinha em mente era Christine Parker. De algum modo, ela ainda poderia ser salva.
Emma Lasko, embora intimamente abalada pelo ardor de Barbara, já estava muito além desses sonhos. Há muito perdera as ilusões. Ás vezes perguntava a si própria o que a fazia continuar ali, não se atrevendo a admitir que era tão prisioneira daquele reformatório quanto as jovens confiadas à sua guarda. Contemplou Barbara com um olhar frio. Na professora cheia de ideias viu o retrato do que fora quando ali chegara há muitos anos. Antes que a realidade lhe desbaratasse os olhos. Antes que o horror do dia a dia se instalasse no seu pensamento.
Sem malícia, dirigiu‑se a Barbara:
‑ Tu pensas que és boazinha, não é? Pensas que vais salvar uma das meninas. Resgatá‑la de um destino negro. Está certo, Barbara. Farás isto com uma delas. E quanto às outras? O que acontecerá amanhã, quando eu estiver aqui, sendo obrigada a explicar‑lhes porque foi outra e não uma delas a escolhida para ser salva? Quando mando uma delas para a solitária o que é que lhes devo dizer? Que por isso não merecerá, também, ser salva?
Empurrando a cadeira, da qual se levantara, para perto da mesa, Lasco voltou‑se e encaminhou‑se para a porta, antes de sair parou e virou‑se para Barbara.
‑ Responde‑me apenas a uma pergunta, Barbara. E quanto a amanhã?
Sem esperar a resposta da professora, saiu do escritório.
Mais tarde, naquela mesma manhã, Chris e Janet foram trancadas em celas separadas, na solitária. Contudo, puseram‑nas em celas em frente uma da outra, de cada lado do corredor.
Chris não sentia o menor remorso pelo que tinha feito. Aquela estúpida da Moco há muito que andava a pedir uma lição. Contudo, até aquele dia, ninguém tivera coragem, dentro do reformatório para ensinar à machona um pouco de bons modos.
Era por causa de Janet que Chris se sentia triste. Meu Deus, como eram estúpidas aquelas sujeitas da administração. Como era possível colocar uma jovem já no sétimo mês de gestação, presa numa cela solitária, fria, nua, suja e miserável? Especialmente uma criatura que tinha tentado o suicídio.
Em que medida isso afectaria o bebé quando crescesse? Chris estremeceu ao vir-lhe ao pensamento todas aquelas coisas que lhe contaram e que tinha lido, de como as crianças são afectadas pelo que acontece de mau às mães durante a gestação. Está certo, elas tem as suas estúpidas regras e regulamentos ‑ reflectiu Chris. Mas podiam ter feito uma excepção para Janet. Não perderiam nem o respeito nem a autoridade se mandassem que Janet ficasse confinada no quarto. A única que se poderia importar era Moco.
Chris deu um pontapé num objecto imaginário no frio e áspero chão da cela.
Encaminhando‑se para a porta, abaixou‑se até ficar com os lábios à altura da abertura gradeada, no rodapé da porta. Apertando o rosto de encontro à grade, chamou baixinho:
‑ Janet?
‑ Sim? ‑ respondeu a outra do outro lado do corredor.
‑ Quero trocar de cela contigo.
‑ Porquê?
‑ Porque já li todos os escritos nas paredes desta em que estou ‑ replicou Chris, tentando dar às suas palavras uma nota de humor na sua voz.
Houve uma longa pausa. Depois, a voz de Janet, com uma nota de infinita tristeza, chegou aos seus ouvidos:
- Sinto muito, Chris.
‑ A culpa não foi tua ‑ apressou‑se Chris a afirmar.
‑ Agora vamos perder os nossos pontos. ‑ Nova pausa.
‑ E eu queria tanto estar em casa quando o bebé nascesse.
‑ A voz de Janet era um murmúrio que mal se percebia.
‑ Não te preocupes com isso ‑ respondeu Chris. - Mandar‑te‑ão para casa quando chegar a altura do bebé nascer.
‑ E quanto a ti?
Chris sentiu‑se oprimida mas procurou não revelar esse sentimento ao responder:
‑ Não sei, Janet. Mas não te preocupes comigo. Procura não te preocupares, cuida do bebé.
O resto do dia decorreu numa horrível lentidão para as duas. Chris pediu à guarda que as deixasse fazer os exercícios juntas, mas a mulher recusou‑se a atendê‑las, alegando:
‑ Solitária é solitária. E ficar na solitária significa ficar isolada de tudo e de todos. Sabes muito bem que isto aqui não é nenhuma colónia de férias.
Quando Chris tentou explicar à mulher que fizera o pedido unicamente movida pelo desejo de tomar conta de Janet, a guarda respondeu‑lhe com um remoque:
‑ Ora, ela não é a única mulher no mundo a ficar grávida. Trata de cuidar de ti porque a índia é forte como uma égua.
Chris já estava tão acostumada com a solitária que não teve dificuldade em adormecer, após o jantar.
Para Janet, porém, o confinamento total era algo inteiramente novo. Tinha passado o dia inteiro enjoada, com dores de cabeça e frequentes pontadas nas costas. Embora tentasse o que lhe foi possível, não conseguiu encontrar uma posição confortável dentro da cela. Aquele colchão era simplesmente abominável. Sentia frio e por mais que procurasse aquecer‑se, os dentes batiam e todo o corpo tremia. Não fazia a menor ideia das horas que eram. Tudo estava escuro e silencioso. Tentou chamar Chris uma ou duas vezes. Não obtendo resposta, desistiu. Concluiu que a amiga adormecera.
à medida que o tempo passava e ela permanecia deitada sobre o duro e incómodo colchão, deitada de costas e encarando com os olhos insones o tecto escuro, sentia‑se cada vez mais desconfortável. As dores nas costas tornaram‑se mais agudas e frequentes. Tentou aliviar a dor mudando de posição, quando uma dor lancinante explodiu nas suas entranhas.
Transpirou abundantemente, começou a tremer como uma folha.
- Oh, não! ‑murmurou com um gemido. ‑Oh, não! - A dor no estômago aumentou. ‑ Chris! ‑ gemeu. - Chris!
Tentou erguer‑se do colchão mas não conseguiu. A dor alastrava pela sua carne como fogo na palha seca. Ao procurar enxugar a transpiração que lhe inundava a fronte, viu que estava a arder em febre. Reunindo todas as forças conseguiu erguer‑se um pouco. Apoiando‑se nos cotovelos gritou:
‑ Chris! Chris!
A voz angustiada e cheia de terror de Janet conseguiu invadir o sono de pedra em que Chris mergulhara e esta acordou ainda meio tonta.
‑ Chris! ‑ o grito torturado de Janet atravessou paredes de betão e portas de aço para ir ferir, com toda a força e angústia os ouvidos de Chris, ainda meio adormecida.
Sentando‑se na enxerga e ainda incerta sobre a natureza do grito, se fora real ou produto de um pesadelo, Chris piscou os olhos para a escuridão.
- Chris! ‑ novamente o grito de Janet se fez ouvir. Instantaneamente, Chris mergulhou para a abertura no rodapé da porta.
- O que foi? O que foi? ‑ perguntou aos gritos.
‑ Acho que me aconteceu alguma coisa - respondeu Janet, aos gritos, com a voz cheia de angústia.
Chris, em desespero, sacudia a grade da porta.
‑ O que foi que aconteceu? ‑ gritou em resposta. - O que foi que aconteceu, Janet?
- Acho que foi alguma coisa com o bebé!
Chris, com os movimentos ligeiros e precisos de um animal enjaulado, abaixou‑se o mais que pôde a fim de tentar fazer chegar mais claramente a sua voz à outra.
‑ Janet, ouve ‑ gritou, agarrando as barras da abertura com os dedos. ‑ Não sei o que deves fazer.
‑ Chris, estou a sangrar muito. Estou‑me a esvair em sangue!
Chris, desesperada, começou a bater na folha de aço da porta com os punhos fechados. O som ecoava no corredor.
‑ Eh, - gritava desesperada. ‑ Acudam. Socorro. Acudam, por favor. Estamos a precisar de ajuda ‑ Em voz baixa disse a Janet: ‑ Vou gritar até que apareça alguém. Está descansada, Janet, vou chamar alguém. Vou chamar.
‑ Por favor, por favor, Chris ‑ implorava Janet.
Chris golpeava a porta com toda a sua força, ao mesmo tempo que gritava:
- Socorro! Acudam!
Para além das portas de segurança, a guarda estava sentada no seu posto, meio adormecida, com uma revista muito linda entre as mãos. Erguendo a cabeça ao ouvir o barulho vindo das celas, olhou com uma expressão aborrecida para a área das celas e voltou a adormecer.
Nessa altura, Chris estava literalmente frenética. Dava pontapés na porta, gritava com toda a força que podia.
‑ Socorro! Socorro!
Janet, contorcendo‑se com dores, jazia atirada para o chão com parte do corpo sobre a enxerga, as mãos sobre o estômago, arquejando a cada inspiração. Ondas de náusea alternavam com insuportáveis vagas de uma dor lancinante nas suas entranhas. Sentia‑se queimar por dentro. Vagamente consciente, percebia uma humidade, algo saindo de dentro de si.
Chris continuava a bater na porta e a gritar com toda a força dos seus pulmões para chamar a atenção da guarda.
‑ Socorro! Socorro!
Apanhou a jarra de plástico usada para a água e atirou‑a de encontro à porta. Atirou também o copo. Não obteve ainda desta vez resposta. Bateu, bateu, bateu. Nada. Apanhou então o bacio e pôs‑se a martelar com ele a folha de aço da porta, provocando um ruído capaz de acordar qualquer pessoa.
‑ Socorro! Precisamos de ajuda! Precisamos de ajuda!
‑ berrava Chris.
Nessa altura, completamente acordada, a guarda supôS que todo aquele barulho não estava a ser provocado por alguma peça de canalização e sim por uma maldita garota malcriada, disposta a não deixar ninguém tranquilo. Profundamente irritada por ter sido arrancada ao seu sono, a guarda empurrou a cadeira para trás, apanhou o molho de chaves e encaminhou‑se para o corredor das celas.
O martelar contra a porta de uma das celas tornou‑se ainda mais claro quando abriu a primeira porta de segurança. Penetrou no corredor murmurando uma praga. O barulho do martelar de Chris contra a porta com o bacio e Os gritos frenéticos da jovem atingiram-lhe os ouvidos quando se encaminhou para as celas.
Irritada, correu o ferrolho da porta da cela de Chris, de onde vinha todo o barulho e escancarou a porta com um repelão.
‑ Afinal, o que é que está aqui a acontecer? ‑ indagou a guarda, zangada.
Chris empurrou a mulher para um lado e saiu da cela correndo para a cela em frente, em cuja porta se pôs a bater.
- Janet! Janet!
A ideia de que algo de muito grave estava a acontecer penetrou, finalmente, no cérebro da guarda, que puxou Chris para um lado e rapidamente correu o ferrolho, abrindo a porta da cela de Janet.
‑ Oh, meu Deus! ‑ arquejou a mulher, parando abruptamente, quando pisou numa camada lisa e brilhante de sangue, formando uma poça no chão da cela.
Voltou‑se, passou por Chris como se esta não existisse e correu para o fundo do corredor.
Chris, por seu turno, correu para Janet e tomou a índia nos braços. Janet soluçava descontroladamente e agarrou‑se a Chris tomada de desespero.
Depois de Janet ter sido levada para o hospital, permitiram que Chris regressasse ao seu quarto, no edifício, onde se atirou para o beliche. Até ao raiar do dia ficou acordada, ora soluçando mansamente, ora olhando, muito quieta, para o tecto.
Profundamente abalada pela notícia do que acontecera a Janet e atormentada por sentimentos de culpa, Emma Lasko também se sentia incapaz de dormir naquela noite. Cansada de se revolver, insone, na cama, colocou o roupão por cima da camisa de noite e, depois de verificar se todas as internas estavam nos seus quartos, dirigiu‑se para a sala de estar deserta. Acomodou‑se no sofá diante da televisão, ligando‑a na esperança de encontrar um programa que a distraísse. Finalmente, adormeceu.
O avermelhado clarão do amanhecer começava a penetrar pelos vidros das janelas quando o retinir da campainha do telefone no escritório de Emma a despertou do seu sono inquieto. Meio tonta, apertou o robe em torno da cintura e correu para fora da sala de estar, rumo ao seu escritório.
Andava em passos apressados, quase correndo, quando as primeiras jovens acordadas começaram a surgir, ansiosas, nas portas dos seus quartos.
Entrando no escritório, pegou no auscultador na altura em que a campainha soava pela nona vez. Ouviu atentamente o que lhe diziam do outro lado da linha, murmurando de vez em quando um breve ‑ Sim... ‑ Sim...
‑ Oh... ‑ Que pena!... ‑ Claro... ‑ Claro.
Lentamente, voltou a colocar o auscultador no descanso e voltou‑se para a porta, com uma expressão de profunda preocupação e tristeza estampada no rosto.
Seis ou sete internas estavam reunidas no umbral. Tensas e silenciosas, esperavam notícias.
‑ Janet vai ficar no hospital durante alguns dias - anunciou Emma, em voz trémula. ‑ O bebé morreu.
Nenhuma das internas que ouviu a notícia disse uma única palavra. Contudo, as suas faces demonstraram imediatamente a tristeza e desdém ao mesmo tempo. Chris, que estava um pouco afastada das outras, imaginou que iria explodir em sentidos soluços. As suas emoções, porém, estavam muito além daquele ponto. Encarou Miss Lasko, mas nenhuma das duas pronunciou uma única palavra. Por alguns momentos, ambas partilharam um sentimento de perda. Depois desse momento de comunhão, Chris virou‑se abruptamente e, devagar, encaminhou‑se para o seu quarto. Detendo‑se diante de uma porta aberta, olhou para o interior e depois de alguns momentos de hesitação, entrou. Crash, ainda de pijama, estava distante da cómoda. A surpresa que sentiu ao ver Chris entrar revelou‑se claramente no seu rosto usualmente inexpressivo. Ainda mal acordada, Moco estava sentada na beira do seu beliche. Chris contemplou‑as com uma expressão amarga nos olhos.
‑ O bebé morreu ‑ anunciou em voz baixa e tensa.
Foram precisos um ou dois segundos para que o cabal significado das suas palavras calasse nas duas jovens. Piscaram os olhos e Moco lutou visivelmente para se manter aparentemente fria e calma. Abriu a boca, mas não conseguiu emitir um único som. Os olhos da garota sentada na beira do beliche encheram‑se de lágrimas. Chris nunca tivera oportunidade de ver Moco demonstrando tanta emoção, excepto quando estava irritada. A visão daquela garota, tida e havida por todas como "machona", chorando como qualquer mocinha piegas foi mais do que Çhris poderia suportar. Saiu para o corredor e regressou ao seu quarto, os passos pesados e o coração a sangrar de dor.
Um Sol forte brilhava num céu sem nuvens, dardejando os seus raios sobre um autocarro escolar, pintado de amarelo, que avançava aos solavancos por um caminho estreito bordejado por terras áridas onde se erguiam, a espaços irregulares, montes de pedras. Iam no autocarro as internas do edifício número três e que eram as mais chegadas a Janet. Todas mantinham uma expressão tristonha e guardavam silêncio. Quando falavam, era em sussurros. A mesma expressão de luto e de dor estampava‑se nos quatro funcionários que acompanhavam o grupo: Barbara Clark, Emma Lasko, Betty Ramos e Cynthia Porter.
Depois de quarenta e cinco minutos balançando com os buracos da estrada, o autocarro fez uma curva apertada, saindo da estrada e entrou num caminho estreito e poeirento que serpenteava entre enormes pedras e depois subia abruptamente para o alto de uma colina. Adiante, localizava‑se o cemitério. Era pequeno e rodeado por uma cerca de rede, pintada de preto.
Dispostas em torno de um pequeno túmulo recém-escavado, viam‑se algumas pessoas, inclusivé alguns índios, de faces coriáceas e impassíveis. No meio do grupo de peles‑vermelhas, ainda profundamente abalada e tristonha, estava Janet, rodeada por membros da sua família. Quando o autocarro parou, na entrada do cemitério, as pessoas que estavam à' volta da cova ergueram os olhos e examinaram‑no com expressão desinteressada.
A porta do veículo abriu‑se e as raparigas começaram a descer. Lentamente, aproximaram‑se da sepultura. Um vento quente erguia a poeira. As jovens desfilaram diante do pequeno caixão que estava depositado sobre o solo nu. Algumas delas traziam flores que gentilmente depositavam sobre a tampa do pequeno esquife. Ria ajoelhou‑se, benzeu‑se e desdobrou o pequeno cobertor rosa e azul. Chris, com os olhos marejados de lágrimas, curvou‑se e depositou uma única rosa branca.
Janet acompanhava as homenagens das companheiras ao seu filho nado‑morto, enquanto os seus olhos reflectiam toda a imensidão da tragédia íntima. As jovens formaram um círculo em torno da sepultura, preenchendo os intervalos deixados pelos que tinham chegado antes. Lasko juntou‑se a elas, a mão descansando sobre o transmissor‑recep tor, omnipresente na sua cintura. Barbara e Cynthia adiantaram‑se flanqueando o padre, nos pés da sepultura. Algumas pessoas pigarrearam inquietas, outras tossiram constrangidas, mas não se ouviram outros sons. Barbara olhou para o padre, que lhe fez um sinal afirmativo. Parecendo prestes a chorar, Barbara examinou os arredores e viu que Betty Ramos se mantinha mais afastada, reclinada contra a carroçaria do autocarro, vigiando atentamente o grupo de internas, enquanto o Sol arrancava cintilações das partes cromadas do transmissor‑receptor que ela empunhava.
Barbara examinou Janet e os seus pais. A índia tentou, sem sucesso, esboçar um ligeiro sorriso. A professora, então, examinou as jovens. Estavam todas compenetradas e tocadas pela solenidade do momento. Tentou aclarar a voz e começou a falar, procurando tanto quanto possível, dirigir‑se a cada um dos presentes em particular.
‑ Sei que esta criança representa algo de muito especial para vocês, meninas. ‑ Fez uma pausa. ‑ Quando vocês deixarem a nossa escola ‑ prosseguiu ‑ espero que os sentimentos que hoje as movem, ainda estejam nos vossos íntimos. Não os destruam. ‑ A voz da professora tornou‑se mais aguda, devido à' emoção. ‑ Haverá muitas outras crianças. Uma, talvez, de Janet... ‑ A voz de Barbara falhou. Com esforço, tornou a retornar à frase. ‑ Razões para desejar estar fora daqui. ‑ Calou‑se. Nada mais havia para dizer. As lágrimas brilharam‑lhe nos olhos.
Agora era a vez de Cynthia dizer alguma coisa. Dando um passo em frente com a facilidade de um orador profissional, a assistente do superintendente fez um sinal com a cabeça, saudando Janet e os seus pais e depois dirigiu‑se às jovens internas:
‑ Já expressei a profunda consternação de toda a escola. ‑ A voz da mulher era solene e pomposa. ‑ Para compreender o que aconteceu temos que compreender o povo de Janet, um povo muito orgulhoso. ‑ Fez uma pausa para dar ênfase ao que dissera e voltou a encarar Janet e os pais. Nenhum dos índios demonstrou qualquer sinal de emoção. Cynthia prosseguiu, dramaticamente: ‑ Quando chegou o momento de sofrer, suportou a dor em silêncio, dentro da melhor tradição...
Chris, repentinamente, deu um passo em frente, a face contorcida pela angústia e gritou:
‑ Ela gritou e gemeu! ‑ Chris não pôde suportar a untuosa hipocrisia exibida pela assistente do superintendente, que nem sequer estivera perto quando a tragédia ocorreu.
Totalmente apanhada de surpresa, Cynthia gaguejou, corada e embaraçada.
‑ Eu só vim a saber que... muito tarde...
‑ Ela gritou e chorou! ‑ berrou Chris mais alto do que nunca.
Jane't começou a chorar e a mãe dela colocou‑lhe o braço em torno dos ombros. Barbara voltou‑se e começou a dirigir‑se para o local onde Chris se encontrava.
A jovem continuava a repetir histericamente:
‑ Ela gritou. Ela gritou. Ela gritou.
Então, Barbara, amorosamente, passou o braço em torno dos ombros de Chris, abalados por soluços contínuos e, muito ternamente, conduziu‑a até ao autocarro, onde Chris não conseguiu encontrar alívio nas lágrimas que lhe corriam abundantemente dos olhos.
O resultado mais imediato da tragédia que se abateu sobre Janet foi uma notória calma que pairou sobre todos os que eram mais chegados a ela, internas e funcionárias. As conversas durante as horas das refeições eram mais comedidas e as brincadeiras na hora dos exercícios, levadas a cabo sem muito esforço. Até mesmo Barbara Clark ministrava as suas aulas com uma atitude de visível autoridade. As funcionárias consideram a situação como uma fase transitória de introspecção reflexiva. O que daí resultaria era impossível de prever. Ou as jovens evoluiriam para um estado de introspecção ainda mais profundo ou desenvolveriam a barreira do cinismo defensivo.
à medida que transcorriam as semanas, os sinais exteriores da tragédia iam paulatinamente desaparecendo até que a rotina foi restabelecida em toda a sua força. Moco retomou a sua velha atitude de hostilidade defensiva, continuando com Crash a gravitar em torno de si como um satélite. Adejando continuamente em torno de Moco, mostrando‑se francamente hostil a quem quer que se aproximasse da amiga, Crash parecia uma grotesca caricatura de um cortesão medieval a defender ciosamente as suas prerrogativas diante do senhor do castelo.
Denny retomou a sua atitude cambiante. Ora adejava como inconsequente borboleta, ora se ensimesmava prevendo desgraças, como uma nova Cassandra.
De todas, somente Chris pareceu ter passado por uma profunda metamorfose. Para os olhos observadores de Barbara Clark, que passara a considerar a jovem como sua responsabilidade pessoal, surgiram pequenos indícios de que Chris perdera, definitivamente, a candura, a doçura, a suavidade que eram seu apanágio quando chegou à escola.
O modo como andava, o modo como enfrentava situações potencialmente difíceis, a sua conduta geral na aula tornaram‑se muito mais duros, muito mais defensivos. Quando falava, fazia‑o com ar de liberada segurança e na sua conduta notava‑se um auto‑controlo defensivo, como uma camada de metal pastoso cobrindo um cadinho cheio de ferro em estado líquido. Barbara concluiu que a transformação se tornara permanente. Mas, as esperanças ainda não estavam de todo mortas.
Várias semanas se passaram sem que ninguém fizesse, nem mesmo casualmente, qualquer referência a Janet que, depois da tragédia, voltara para casa. Quaisquer que fossem as lembranças dos acontecimentos, cada interna guardava as suas próprias recordações bem no fundo da alma. Aparentemente era como se Janet nunca tivesse existido.
Certo dia, ao entardecer, várias internas estavam espalhadas pela sala de estar, assistindo a um programa de TV. Paula, como de costume, acomodara‑se numa cadeira, sob um quebra‑luz, ficando a lutar com a linha e as agulhas, procurando tricotar algo que não havia meio de tomar forma. Lasko sentara‑se no braço da poltrona ocupada por Paula, fazendo o melhor que podia para ensinar a jovem a manejar as agulhas de tricô.
Lasko meneou negativamente a cabeça.
‑ Já não vejo nada. Se não parar agora mesmo acabo por fazer três fileiras. ‑ Paula teve um sorrizinho compreensivo.
Nenhuma das duas se apercebeu que Chris se aproximara de Miss Lasko, usando um roupão e com os cabelos soltos sobre os ombros. Fixando a sua atenção em Miss Lasko, Chris disse como se estivesse a dar uma ordem:
- Preciso de "shampoo".
Lasko ergueu os olhos do trabalho de "tricô" de Paula e encarou Chris, piscando os olhos, atónita. Depois, correu o olhar por todas. A seguir examinou o relógio e disse:
- Devias‑me ter vindo procurar, para isso, quando eu estava com o armário aberto.
Chris fechou os olhos e exibiu um ar de quem se enche
de paciência.
‑ Hoje foi o meu dia de ajudar na cozinha.
Só agora acabei o serviço. ‑ O tom assemelhava‑se ao de
um adulto tentando explicar algo a uma criança obtusa
e aborrecida por se ver obrigada a demonstrar o que é óbvio.
‑ Então, dás‑me o "shampoo"?
Josie, que estava sentada no sofá, assistindo ao programa de TV, teve a sua atenção despertada pela troca de palavras.
‑ Jesus, como és preguiçosa, Lasko! ‑ observou em tom brincalhão e casual sem qualquer intenção de ofender.
Ainda incerta sobre a intenção contida na observação de Josie, Emma Lasko ergueu a cabeça e encarando a negrinha explicou:
‑ Estou morta de cansaço. As pernas doem‑me tanto de andar para cima e para baixo, nesta casa, o dia todo.
- Como essa mulher é chata! ‑ pensou Josie para si própria, voltando a atenção para o programa de TV.
Moco, que juntamente com Jax estava junto do gira‑discos escolhendo algumas gravações, pôs o álbum com os discos de lado e encarou Emma. Jax mantinha‑se calada, observando. Moco, colocando as mãos nos seus amplos quadris, empurrou o queixo para a frente e disse em tom mordaz:
‑ Ora, Lasko, dá esse maldito "shampoo" a ela, vá lá.
‑ Isso mesmo, Lasko ‑ papagueou Jax.
Emma ergueu‑se de um salto e encarou as raparigas reunidas na sala, fuzilando uma por uma com o olhar.
‑ Dá o "shampoo" ‑ repetiu, imitando a voz de Moco.
‑ Acende‑me o cigarro, Assina esta nota. Faz isto. Faz aquilo. Será que vocês não me podem deixar em paz um momento?
Dessa vez não havia humor na voz de Josie:
‑ Ora, Lasko, deixa de te lamentar. Passas o tempo todo sem fazeres nada...
Paula pousou o trabalho de tricô que fazia e olhou nervosamente, primeiro para a responsável e depois para Chris, que encarava em ar de desafio Emma, exibindo nos olhos um brilho de determinação. Naquela altura, Emma dirigia‑se, furiosa, a Josie:
‑ Ora, cala a boca. Não sei porque se queixam. Cuido muito bem de vocês todas.
‑ Mas não cuidou de Janet. ‑ A voz de Denny, fazendo essa observação, ecoou na sala. Embora Denny falasse em voz normal a Emma, a acusação implícita pareceu ter sido feita aos berros.
Um sentimento de inquietação abateu‑se sobre todas as que estavam no salão naquele momento. Durante alguns segundos não se ouviu outra coisa senão o som da TV. Lasko encarou Denny com os olhos a brilhar num misto de raiva e de mágoa.
‑ Não tive culpa nenhuma do que aconteceu ‑ defendeu‑se a responsável.
Denny resolveu continuar o ataque:
‑ Mas, foste tu que a mandaste para a solitária ‑ redarguiu a jovem em voz gélida.
‑ É isso mesmo, Lasko ‑ gritou Josie, apoiando Denny.
‑ Ouçam! ‑ gritou Emma com os nervos à flor da pele. Contudo, não foi capaz de terminar a frase.
Chris, fortalecida pelo evidente apoio que estava a receber de todas as internas, interrompeu teimosamente:
- Lasko, preciso de lavar os cabelos.
Decidida agora a enfrentá‑las, Emma partiu para uma recusa frontal:
‑ Então, lava‑os amanhã.
Chris, fria, com a voz mantendo o tom de delicadeza adequado, decidiu levantar a luva e aceitar o desafio. - Acontece, Lasko, que gostaria de lavar os cabelos hoje. Portanto, dá‑me o "shampoo", se fazes favor. ‑ Quando pronunciou a expressão "por favor" é que a voz passou da cortesia para a zombaria.
Bea, que até àquele instante se mantivera fora da contenda, ergueu a voz para gritar:
‑ Que lugar tão estúpido, este. ‑ Então, como se sentisse estimulada pelo crescimento da tensão, gritou: ‑ Já não somos crianças!
‑ Então, Lasko ‑ interpelou Chris, ignorando a explosão de Bea. ‑ Vais ou não vais dar‑me esse "shampoo"?
Percebendo o risco iminente de perder o controlo e sentindo‑se ao mesmo tempo incomodada por ser o foco de atenção de todas as internas, Lasko viu que não lhe restava outra alternativa senão manter a posição anteriormente assumida.
‑ Já te disse que te dou o "shampoo" amanhã.
Ninguém falou. Paula baixou os olhos para o tricô. Jax e Moco cruzavam os braços e encaravam a responsável com os olhos brilhando de expectativa e hostilidade. Denny cerrou os punhos. Bea e Josie saíram dos seus lugares e aproximaram‑se de Chris que continuava a encarar em ar de desafio a responsável pelo edifício.
‑ Lasko ‑ começou Chris, suavemente.
‑ O que é que quéres? ‑ A voz de Emma traía a sua apreensão.
‑ Quero lavar os meus cabelos ‑ repetiu Chris, empregando o mesmo tom de voz calmo e gélido, lutando para não revelar o seu alarme. Repentinamente, percebera que estava a entrar em choque aberto com a responsável pelo edifício. Mas, no pé em que as coisas estavam, já não podia recuar.
Lasko percebeu a mudança ocorrida no animo de Chris. Pela maneira como a jovem abaixava os olhos concluiu que esta já não estava tão segura de si.
‑ Que tal passar alguns dias fechada no quarto? ‑ perguntou casualmente, tentando virar de uma vez por todas a maré a seu favor.
‑ Não. O que quero, apenas, é um pouco de "shampoo" para lavar os cabelos. "Por favor".
Lasko semicerrou os olhos. ‑ Olha que estás prestes a perder pontos ‑ preveniu.
Chris começou a tremer imperceptivelmente. A voz desceu‑lhe a pouco mais do que um murmúrio:
‑ Lasko, por favor, dá‑me o "shampoo".
Levada ao desespero, Emma ergueu um dedo ossudo e apontou para Chris.
‑ Então é assim? Já para o teu quarto.
Chris não respondeu nem se moveu. Emma, decidida a resolver o impasse de uma vez por todas, agarrou Chris pelo braço e começou a puxá‑la para fora da sala de estar. Então, numa súbita e inesperada explosão de fúria, com os traços do rosto transformados numa máscara de ódio, Chris lutou para se livrar das mãos de Ema.
‑ Não! ‑ Cerrando os punhos, desfechou com a mão direita um golpe que revelava toda a agilidade de um pugilista em acção e encaixou um forte soco no rosto de Lasko. Gritos de horror e de aprovação elevaram‑se quando Emma, momentaneamente aturdida pelo golpe, cambaleou para trás, perdeu o equilíbrio e caiu atravessada numa poltrona.
Totalmente fora de si, Chris avançou para a indefesa Emma, gritando ainda:
‑ Não! Não! ‑ e começou a golpeá‑la selvaticamente, desfechando murro após murro.
Procurando proteger‑se, Emma ergueu as mãos, ao mesmo tempo em que as demais internas se reuniam em torno das duas formando um círculo ameaçador. Finalmente, Lasko conseguiu agarrar um dos braços de Chris e tentou empurrá‑la para um lado. A força de Chris, todavia, era multiplicada pelo desespero e puxou Emma para o chão, caindo as duas. Chocaram contra uma das mesas, quebrando a perna do móvel, que se virou. Chris caíra por cima de Emma e, soltando ainda gritos agudos, tentava atingir novamente a responsável. Ergueram‑se gritos de triunfo da assistência quando Chris conseguiu atingir novamente o rosto de Emma. Enquanto esta, aturdida, se via incapaz de lutar com êxito, rápida como uma serpente que salta, Chris apossou‑se do molho de chaves existente no cinto de Emma e, pondo‑se de pé num salto, correu para a porta.
Soluços de raiva contorciam o corpo da jovem.
Emma Lasko lutou para ficar de pé e tentou perseguir Chris, mas os seus passos foram embargados por Moco.
‑ Sai do meu caminho ‑ berrou a responsável. Antes' que Moco tivesse uma oportunidade de reagir, Denny apanhou um dos quebra‑luzes e com ele golpeou Emma no parietal.
A sala encheu‑se de gritos, enquanto Emma, totalmente desamparada, caía no sofá, deslizando depois para o chão. De um corte na têmpora escorria‑lhe sangue. Paula correu a acudir à mulher ferida. Denny, com os olhos esgazeados, empunhava ainda o quebra‑luz. Sem dizer palavra e usando o pedestal do quebra‑luz como um bastão, golpeou a tela do aparelho de televisão. Pequenas explosões de curto‑circuitos eléctricos e faiscas que saiam do aparelho danificado provocaram novas confusões. Erguia‑se fumaça acre do aparelho partido. Nesse momento, a sala de estar transformou‑se numa orgia de destruição. Como loucas, as internas começaram a destruir tudo o que havia ao alcance das suas mãos. Quebravam cadeiras, viravam mesas, rasgavam estofos e cortinas, destruiam os vidros das janelas. Moco hesitou diante do gira‑discos e estava a ponto de o atirar para o chão quando Ria interveio.
‑ Não, isto não!
Compreendendo lentamente o ponto de vista da outra, Moco acenou concordando. O gira‑discos ficaria inteiro.
Pouco depois, enquanto o tumulto prosseguia à sua volta, Emma Lasko conseguiu recobrar a consciência. Abrindo os olhos, não pôde crer no pesadelo. As internas, como um bando de demónios, continuavam na fúria destruidora. Pareciam hordas mongólicas reencarnadas. A custo, tentou pôr‑se de pé, ajudada por Paula, que chorava.
Diante do armário do banheiro, Chris, surda ao tumulto que vinha da sala de estar, atirava para o chão, atabalhoadamente, tudo o que havia no móvel. Jarras e frascos eram destruidos na pressa de encontrar o desejado "shampoo". Subitamente, Josie e Moco apareceram à sua procura.
‑ Vem, Chris ‑ convidaram ‑ vamos fugir. ‑ A negrinha, agilmente avançou para o molho de chaves pendendo ainda da fechadura do armário.
- Anda depressa! - disse Moco.
Josie apossou‑se do chaveiro e as duas jovens começaram a correr para fora do banheiro quando ouviram a sineta de alarme soar insistentemente. Josie parou repentinamente.
‑ O que é que aconteceu? ‑ perguntou Moco, impaciente. - Anda depressa, vamos fugir daqui.
Com voz rouca, Josie murmurou:
‑ Não posso, não posso.
‑ Vamos, depressa, Josie ‑ disse Moco. - Se não queres ir, entrega‑me as chaves. ‑ Estendendo a mão, Moco apossou‑se das chaves até então em poder da negrinha, que chorava e correu para fora. Chris seguiu‑lhe os passos.
Depois de correr pelo corredor, já diante da porta da saída, Moco procurava a chave apropriada. Não sabia qual era a que servia. As mãos tremiam‑lhe tanto que mal podia sustentar o molho de chaves.
‑ Vamos lá, depressa com isso! - disse Chris.
Naquela altura, cinco ou seis internas corriam a juntar‑se a elas, dispostas a atravessar as barreiras e a desaparecer na noite.
‑ Não consigo abrir! ‑ gritou Moco, desesperada. Não consigo abrir!
As jovens que desejavam fugir começaram a bater desesperadamente na porta.
‑ Maldita! Maldita! ‑ praguejava Moco, desesperada diante da inutilidade dos seus esforços.
A sineta de alarme continuava a soar, abafando os ruidos que vinham da sala de estar. Lentamente, estes começaram a diminuir. As jovens, amontoadas contra a porta fechada tentavam abri‑la, golpeando‑a com os punhos, até que compreenderam a inutilidade daqueles esforços para ganhar a liberdade.
Depois de vários dias de investigações, o inquérito preliminar estabeleceu que, embora Chris fosse claramente a instigadora do motim, existiam outros factores que deveriam ser devidamente apurados. Quanto às demais internas, ficou decidido que elas tinham participado das depradações movidas por uma pressão psicológica que as levou àquele estado de frenesi.
Embora nenhuma das funcionárias se atrevesse a admitir o facto com franqueza, o episódio deve ter exercido um tal efeito catártico sobre as emoções das internas, que todas elas estavam mentalmente mais sãs do que antes da destruição. Tendo aliviado as emoções mais prementes, dando vasão às suas frustrações, as raparigas constituíam agora um grupo muito mais receptivo do que antes aos ditados da autoridade. Em alguns casos, resíduos dos sentimentos de culpa tiveram profunda influência nas suas atitudes. Isso tornou‑se evidente durante os dias imediatos ao motim, quando rígidos horários de trabalho foram estabelecidos a fim de que as próprias internas providenciassem a remoção dos escombros e a recuperação, na medida do possível, do que fora danificado. Contudo, apesar daquela calmaria após a tempestade, todas as funcionárias sabiam que nenhuma mudança real ocorrera, e que era apenas questão de tempo até outro incidente trivial deflagrar novas demonstrações de vandalismo com consequências possivelmente mais graves.
A preocupação imediata, contudo, era sondar sobre a superfície a fim de determinar o que levara Chris a ser a fagulha que ateara o perigoso incêndio.
No dia da reunião final da comissão de inquérito, a sala de estar foi isolada do resto do edifício. Depois de passar em revista, durante várias horas, todos os detalhes do caso, a comissão integrada por Cynthia Porter, Elaine Ferraro, Betty Ramos e Barbara Clark, estava pronta para uma confrontação directa com Christine Parker. Esta foi introduzida na sala de estar e colocada diante da comissão, ocupando uma cadeira do outro lado da mesa. Deram‑lhe a oportunidade de explicar os seus motivos de rebelião sem a presença inibidora de Emma Lasko.
Chris, que adoptara uma atitude formal, sentou‑se na cadeira que lhe indicaram. Estava com muito boa aparência. O rosto recentemente lavado, os cabelos bem tratados e usava roupas limpas e passadas a ferro.
Calma e muito segura de si, era a imagem bem acabada da adolescente bem comportada.
Cynthia, folheando distraidamente alguns papeis que estavam à sua frente, disse:
‑ Chris, agora que a fumaça já passou, por assim dizer, talvez possamos chegar ao fundo do problema. Queres ajudar‑nos?
‑ Quero ‑ respondeu pressurosamente a jovem.
Elaine franziu a testa.
‑ Há uma coisa que não entendo. Durante meses e meses, Chris não nos causou a menor dificuldade...
‑Ora, vamos, Elaine ‑interrompeu Betty Ramos. - Emma ainda está cheia de marcas roxas e de arranhões para provar o que alega.
‑ Sim, sim ‑ disse Cynthia, batendo com o lápis no tampo da mesa. ‑ Mas estamos aqui para apurar porque é que isto aconteceu.
‑ Só porque Emma não quis dar o "shampoo" a esta rapariguinha? ‑ observou Betty com expressão de dúvida.
‑ Oh, não ‑ disse Christine apressadamente, inclinando‑se para a frente e cruzando as mãos sobre o tampo da mesa. ‑ Ela bateu‑me primeiro.
‑ Não é verdade! ‑ replicou vivamente Betty Ramos.
Chris olhou para Cynthia.
‑ Sei que Miss Betty não crê em mim, mas...
- Miss Lasko agrediu‑te? ‑ indagou Barbara, enca rando fixamente a jovem. Havia nos modos de Chris algo indefinível que Barbara gostaria de analisar melhor. Nutria a impressão de que a comissão estava a ser vítima de uma audaciosa, porém muito bem urdida mentira. E isso causou‑lhe uma profunda tristeza.
‑ Bem ‑ explicou Chris ‑ acontece que ela não gostou mesmo nada quando a procurei para pedir o "shampoo" e ficou como louca quando insisti. ‑ E ao concluir a frase fez um leve movimento com os ombros.
Betty não parecia convencida:
‑ Acho que esta garota está a mentir e as outras também mentiram para a ajudar.
Chris voltou‑se para Betty mostrando um ar de dignidade ofendida. Suspirou para traduzir a sua infinita tristeza e paciência e disse com voz calma e firme:
‑ Estou muito sentida porque a senhora não crê em mim.
‑ Chris, todas nós aqui somos pessoas de mentalidade aberta - observou Cynthia Porter.
A assistente do superintendente estava satisfeita. Ouvia exactamente aquilo que desejava ouvir e via em Chris um protótipo de adolescente arrependida. Encarando as companheiras da comissão acrescentou:
‑ Não temos qualquer registo de mentiras pregadas por Chris, anteriormente...
‑ Todas nós sabemos que Emma, uma vez por outra, esbofeteia as garotas ‑ concordou Elaine.
Barbara não disse nada. Convencia‑se cada vez mais de que Chris estava a mentir e a consciência de uma frustração levava‑a ao desespero.
‑ Sempre que Chris se envolveu em problemas ‑ lembrou Cynthia ‑ admitiu abertamente a sua culpa de tudo o que fez. ‑ Calou‑se por alguns instantes a fim de encarar Chris, que desviou os olhos ao mesmo tempo que um ar de profundo arrependimento se lhe estampava no rosto.
Ao retomar a palavra, Cynthia parecia a ponto de pedir desculpas. ‑
Receio que percas todos os teus pontos. O mesmo acontecerá com todas as jovens que tomaram parte no motim.
Chris inclinou‑se para a frente, com todos os seus gestos cuidadosamente estudados para inspirar compaixão:
‑ Por favor, eu estou no quarto grau. Há várias semanas que figuro no quadro de honra. Por favor, não se esqueçam disso
Os olhos de Barbara cemicerraram‑se, mas a professora continuou calada.
- Betty mostrou‑se francamente irritada: Depois do que fizeste? ‑ disse com voz dura, fixando na jovem um olhar gélido.
Chris, ao princípio limitou‑se a corresponder ao olhar carrancudo de Betty com uma expressão magoada. Abriu a boca, voltou a fechá‑la e engoliu com dificuldade, olhando em torno como se estivesse prestes a explodir em lágrimas. Agarrou‑se à borda da mesa e disse em voz baixa e magoada:
- Fui agredida. Fui esbofeteada. Só depois disso é que perdi a cabeça e... Mas, na verdade, sinto muito o que fiz. ‑ Fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e prosseguiu: ‑ Acho que as outras raparigas perderam a cabeça. Eu... eu... gostaria que nada disso tivesse acontecido. Sei que ainda preciso de aprender a controlar‑me, mas, as senhoras devem concordar que o meu comportamento melhorou bastante, desde que cheguei aqui. ‑ Encarou Cynthia, sustentando o olhar e prosseguiu: ‑ Este lugar, na verdade, ajudou‑me bastante..,
Barbara sentia‑se doente. Uma dorzinha na boca do estômago fazia‑a pensar em sair dali e ir vomitar.
- Não posso acreditar nisto ‑ dizia para si própria. ‑ Não posso acreditar nisto!
Chris continuava a encarar Cynthia com olhos de cão castigado:
‑ Acho que se a senhora me der outra oportunidade, eu... eu não perderei os meus pontos. Comportar‑me‑ei bem aqui e lá fora.
Pelo canto dos olhos, Chris percebeu que Elaine Ferraro ouvia com simpatia as suas palavras ao mesmo tempo que meneava afirmativamente a cabeça em sinal de aprovação.
Fazendo uma pausa para que as suas palavras calassem no íntimo das mais receptivas dentre as componentes da comissão, Chris endereçou a todas um olhar profundamente contrito.
‑ E, acima de tudo ‑ acrescentou, dando à voz o máximo de sinceridade de que foi capaz ‑ gostaria de pedir desculpa a Miss Lasko.
Cynthia fez um movimento afirmativo com a cabeça, profundamente impressionada.
‑ Muito bem, Chris. Por enquanto é só. Mais tarde, dir‑te‑emos qual a nossa decisão. Mostraste ser muito bem comportada e um desejo sincero de melhorar. Far‑te‑emos saber, mais tarde, qual a nossa decisão. ‑ Voltando‑se para as demais integrantes da comissão, disse: ‑ Ouviremos as outras raparigas depois do almoço.
Chris percebeu que a estavam a mandar embora. O seu curto momento de glória terminara. Restava‑lhe agora fazer as vénias de agradecimento e sair da cena.
‑ Obrigada ‑ disse. ‑ Obrigada a todas sinceramente, por me terem escutado.
Afastou a cadeira, ergueu‑se e esperou que a conduzissem para fora da sala.
Betty Ramos, mostrando claramente a sua insatisfação e que não tinha acreditado em Chris, levantou‑se para conduzir a jovem para fora da sala.
Fora do edifício, sób a luz do Sol, Betty e Chris começaram a caminhar para a área do recreio, devidamente cercada, próxima ao edifício. Barbara seguia‑as a alguns passos atrás. Um grupo de internas ficou a apreciar a aproximação do trio. Chris avançou para se juntar às companheiras. Barbara, porém, estendeu a mão e fez parar a jovem.
‑ Chris, por favor, queres dar‑me um minuto de atenção? Gostaria de falar contigo. ‑ Virando‑se para Betty, pediu: ‑ Podes deixar‑nos a sós?
Lançando um último olhar de desagrado a Chris, Betty virou‑se e afastou‑se.
Chris voltou‑se para encarar Barbara. Os seus olhares cruzaram‑se durante um intervalo de tempo razoável e Barbara percebeu que o olhar de completa inocência, exibido pela jovem durante a audiência com a comisão, tinha desaparecido, substituído por um duro brilho de desafio.
‑ Mentiste, Chris ‑ disse Barbara, suavemente.
Não se registou o menor indício de reacção no rosto impassível de Chris. Ficou ali, diante da professora, as mãos profundamente enterradas nos bolsos dos "blue jeans".
‑ Grande coisa ‑ murmurou.
Barbara lutou para encontrar as palavras adequadas mas tudo o que encontrou para dizer foi:
- Agora não tenho a menor ideia do que fazer.
‑ E qual é a diferença que isso faz? ‑ perguntou Chris com um desdenhoso erguer de ombros. E sem acrescentar uma única palavra, virou‑se e afastou‑se para se juntar às demais internas.
As jovens reuniram‑se em torno de Chris, que estalou autoritariamente os dedos, ordenando:
‑ Moco, dá‑me um cigarro.
Moco apressou‑se a atender o pedido de Chris. Esta pôs o cigarro entre os lábios e voltou‑se para Betty Ramos:
‑ Acenda.
Barbara contemplava a cena com evidente tristeza nos olhos.
‑ Eh, mãezinha ‑ gritou Josie para ela ‑ podemos ir para o salão mais tarde.
Barbara não respondeu. Não podia.
‑ Mãezinha, depois encontramo‑nos ‑ gritou Moco.
‑ Mãezinha ‑ disse por sua vez Jax. ‑ Como vai ser, se hoje à tarde a senhora não estiver na aula?
Barbara continuou calada. Chris olhou de revés e, impassível, viu a professora começar a soluçar mansamente. Uma enorme tristeza dominou a professora quando viu Chris agindo de acordo com a sua nova posição de líder do grupo.
Chorava pela inocência perdida, pela frustração e pelo fracasso de Barbara Clark nos seus esforços, o que finalmente admitiu
Tinha penetrado nas defesas da jovem e, por um breve espaço de tempo, cuidara de uma débil chama de esperança apenas para a ver crepitar e apagar‑se como a chama de uma vela batida pelo vento. Não havia a possibilidade de acender novamente aquela chama; o vento tornara‑se muito forte e o último fósforo há muito fora gasto...
B. J. Hurwood & G. Dipego
Emma Lasko entreabriu a porta dos balneários e observou a trémula rapariguinha, que acabava de se vestir, de pé sobre os mosaicos. Era quase uma criança e puxava desajeitadamente o vestido de algodão às flores, que se lhe colava ao corpo húmido. Metade da vida de Lasko fora passada como vigilante, mas ainda se comovia, de vez em quando, com a entrada de uma caloura. E aquela tinha o tipo desamparado e ingénuo que a fazia amaldiçoar a sua profissão. Era franzina, morena e de grandes e assustados olhos verdes, a contrastarem com o cabelo liso e escuro. E aquela maldita expressão de desamparo em cada gesto! Uns minutos antes, a vigilante mandara‑a despir‑se e submetera‑a à inspecção rigorosa. Depois, tivera de lhe repetir três vezes que tomasse duche e lavasse a cabeça com o champó desinfectante. A garota parecia prestes a desmaiar de terror. Lasko deixou‑a por algum tempo sozinha e aguardou no corredor, escutando o ruído da água a correr, ao qual se vinham misturar soluços abafados. A jovem fitava‑a, agora, com olhos avermelhados, como apanhada em falta.
‑ Se já acabaste, levar‑te-ei ao dormitório ‑ disse Lasko, em tom neutro. ‑ Poderás deixar lá as tuas coisas e descansar um pouco antes de jantar.
A rapariga anuiu, calçando os sapatos com lentidão. A vigilante deu meia volta e começou a caminhar pelo corredor. A rapariguinha foi rapidamente no seu encalço. Saíram para um pátio ajardinado e seguiram na direcção dos dormitórios. Durante todo o percurso, a jovem não ergueu a cabeça.
A essa hora, a maior parte das internas estava a descansar ou a conversar nos quartos, mas um grupo de três ou quatro assomou à galeria, ao ouvir os passos inconfundíveis da vigilante.
‑ Carne fresca, hem, Lasko? ‑ zombou uma delas.
‑ O que e. que essa criancinha fez? ‑ perguntou outra. ‑ Fugiu da terra da parvoeira?
‑ Engaiolaram‑na por fazer chichi nas fraldas
‑ explicou uma terceira.
Todas se puseram a rir e outras cabeças curiosas assomaram às esquinas da galeria.
‑ Vamos a ver se se calam ‑ replicou Lasko sem se deter. ‑ Ou já se esqueceram como se sentiram no primeiro dia em que para cá vieram?
Uma loura alta e forte, de rosto anguloso, postou‑se diante da vigilante, interceptando‑lhe o caminho. A pequena novata deu um salto e ocultou‑se, aterrada...
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