Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NECROTERIO / Patricia Cornwell
NECROTERIO / Patricia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Embora esta seja uma obra de ficção, não se trata de ficção científica. Os procedimentos médicos e forenses e as tecnologias e armas que vocês verão aqui são os utilizados hoje. Parte do que estão prestes a encontrar é extremamente perturbador. Mas tudo isso é possível.
Várias entidades citadas no livro também são reais e estão em plena operação, incluindo as seguintes:
Necrotério Militar da Base Aérea de Dover
Sistema de médicos-legistas das Forças Armadas (AFMES)
Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas (AFDIL)
Instituto de Patologia das Forças Armadas (AFIP)
Departamento de Defesa
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA)
Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança (RUSI)
Sistema de Armamento Especial, Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta (SWORDS)
Já o Centro Forense de Cambridge (CFC), o Instituto Correcional de Chatham, a Otwahl Technologies e o Transporte de Remoção Operacional Funerária (MORT) são minhas  criações, assim como todos os personagens da narrativa e o enredo em si.
Dito isso, agradeço a todos os homens e mulheres admiráveis do Sistema de Medicina Legal das Forças Armadas e do Instituto de Patologia das Forças Armadas, que, ao longo de minha carreira, foram generosos o suficiente para compartilhar suas ideias e seu conhecimento altamente avançado e me impressionar com sua disciplina, integridade e amizade.
Como sempre, sou profundamente grata à dra. Staci Gruber, diretora do Núcleo de Neuroimagem Clínica e Cognitiva do Hospital McLean e professora assistente do departamento de psiquiatria da escola de medicina de Harvard.
E, claro, agradeço à dra. Marcella Fierro, ex-legista-chefe da Virginia, e ao dr. Jamie Downs, médico-legista em Savannah, Georgia, por sua competência em todas as questões patológicas.


X
X
X

X
X


No vestiário feminino, atiro a roupa suja do hospital em um coletor de risco biológico e tiro o restante das roupas e o calçado. Pergunto-me se CEL. SCARPETTA, gravado
em letras pretas em meu armário, será removido no minuto em que eu retornar a New England pela manhã. Esse pensamento não havia me passado pela cabeça até agora
e me incomoda. Uma parte minha não quer deixar este lugar.
A vida na Base Aérea de Dover tem seus confortos, apesar dos seis meses de treinamento árduo e da desolação de lidar diariamente com a morte em nome do governo dos
Estados Unidos. Minha estada aqui foi surpreendentemente simples. Posso dizer que foi até mesmo agradável. Vou sentir saudades de me levantar antes do amanhecer
em meu modesto quarto, vestir uma calça, uma polo, botas e cruzar a pé o estacionamento, na escuridão gelada, até o campo de golfe para tomar café e comer alguma
coisa antes de seguir de carro até o necrotério, onde não estou no comando. Quando estou de serviço como médica-legista das Forças Armadas, não sou chefe. Na realidade,
um grande número de pessoas tem patente superior à minha e não sou eu que tomo as decisões críticas. Quando muito, sou consultada. Não é assim quando retorno a Massachusetts,
onde todos dependem de mim.
É segunda-feira, 8 de fevereiro. Iluminado em vermelho, como um aviso, o relógio acima das pias brancas reluzentes marca 16h33. Em menos de noventa minutos, vou
aparecer na CNN para explicar o que é um patologista radiológico forense e por que me tornei uma, e o que Dover, o Departamento de Defesa e a Casa Branca têm a ver
com isso. Em outras palavras, já não sou mais apenas médica-legista, tampouco apenas reservista do AFMES. Desde o Onze de Setembro, desde a invasão ao Iraque, e
agora com o aumento das tropas no Afeganistão - ensaio os pontos que devo abordar -, a fronteira entre as esferas militar e civil desapareceu para sempre. Um exemplo
que eu poderia dar: em novembro, por um período de quarenta e oito horas, treze soldados mortos foram trazidos para cá do Oriente Médio de avião, e exatamente o
mesmo número de corpos chegou de Fort Hood, no Texas. Grandes contingentes de vítimas não se restringem ao campo de batalha, embora eu já não saiba ao certo o que
constitui um campo de batalha. Talvez todos os lugares sejam campos de batalha, vou dizer na TV. Casas, escolas, igrejas, aviões comerciais e os locais onde trabalhamos,
fazemos compras e passamos férias.
Seleciono artigos de higiene pessoal como seleciono os comentários que vou precisar fazer sobre radiologia 3-D, TC, a tomografia computadorizada e os exames no necrotério
e lembro-me de enfatizar que meu novo centro de operações em Cambridge, Massachusetts, é a primeira instituição civil nos Estados Unidos a realizar autópsias virtuais,
Baltimore será a próxima e, por fim, a tendência vai se difundir. A tradicional investigação post mortem de dissecção, em que você comparece, bate fotografias após
a ocorrência e espera não deixar passar nada nem modificar a cena do crime pode, e deve, ser dramaticamente aprimorada e tornada mais precisa pela tecnologia.
É uma pena não participar do World News esta noite, porque, agora que estou pensando nisso, percebo que preferia ter esse diálogo com Diane Sawyer. O problema da
minha presença constante na CNN é que a familiaridade muitas vezes leva a uma diminuição do respeito. Eu deveria ter pensado nisso antes. A entrevista pode se tornar
pessoal, e eu devia ter mencionado essa possibilidade ao general Briggs antes. Devia ter contado o que aconteceu hoje pela manhã quando a mãe enraivecida de um soldado
morto gritou comigo ao telefone, acusando-me de preconceituosa e ameaçando levar a queixa à imprensa.
A porta de metal do meu armário soa como um tiro ao ser fechada. Caminho sobre o ladrilho canela, sempre frio e liso sob meus pés descalços, carregando minha cesta
plástica com xampu e condicionador à base de oliva, um creme esfoliante feito de algas marinhas fossilizadas, uma gilete, espuma para pele sensível, detergente líquido,
uma toalha, enxaguante bucal, escova de dente, uma escovinha para as unhas e óleo Neutrogena perfumado para quando terminar tudo. No interior de um boxe aberto,
arrumo primorosamente meus objetos pessoais na prateleira e abro a água no mais quente que consigo suportar, o jato forte explodindo à medida que me desloco para
me molhar inteira, depois ergo o rosto, então olho para o chão, para meus próprios pés brancos. Deixo a água bater na nuca e na cabeça na esperança de que os músculos
tensos relaxem um pouco enquanto entro mentalmente no closet do meu alojamento na base e procuro o que vestir.
O general Briggs - John, como o chamo quando estamos sozinhos - quer que eu use um uniforme de aviador ou, melhor ainda, o uniforme azul da Força Aérea, mas discordo.
Eu deveria usar roupas civis, que é o que as pessoas me veem usar quando dou entrevistas na televisão, algo como um terninho escuro simples, blusa marfim de gola
alta e o sóbrio relógio Breguet com pulseira de couro que minha sobrinha Lucy me deu. Não o Blancpain com o mostrador preto grande demais e engaste de cerâmica,
também presente dela, que é obcecada por relógios e qualquer coisa tecnicamente complicada e cara. Nunca calça comprida, e, sim, saia e salto alto, assim pareço
menos intimidadora e mais acessível, truque que aprendi há tempos no tribunal. Por alguma razão, os jurados gostam de ver minhas pernas enquanto descrevo ferimentos
fatais em detalhes anatômicos vívidos e os últimos momentos de vida da vítima agonizante. Briggs vai ficar irritado com minha escolha de roupa, mas lembrei, enquanto
bebíamos durante o Super Bowl na noite passada, que um homem não deve dizer a uma mulher o que vestir, a menos que ele seja Ralph Lauren.
O vapor em meu chuveiro desloca-se, perturbado por uma corrente de ar, e penso ouvir alguém. Fico instantaneamente irritada. Pode ser qualquer um, qualquer funcionária
militar, médica ou não, que esteja autorizada a permanecer nestas instalações altamente restritas e necessite de um banheiro, de desinfecção ou de uma troca de roupa.
Penso nas colegas com quem estava na sala de autópsia principal e tenho o pressentimento de que se trata, mais uma vez, da capitã Avallone. Ela foi presença inevitável
na maior parte da manhã durante o exame de TC, como se eu não soubesse realizá-lo a esta altura, e ficou perambulando como uma névoa baixa em torno de minha estação
de trabalho o restante do dia. Provavelmente, foi ela que acabou de entrar. Tenho certeza disso, na verdade, pois é sempre ela, e sinto um ressentimento. Vá embora.
"Dra. Scarpetta?", grita a voz familiar, insossa e desprovida de emoção, que parece me seguir por toda parte. "Telefone para a senhora."
"Acabei de entrar", grito por sobre o jato forte de água.
É meu jeito de lhe pedir que me deixe em paz. Um pouco de privacidade, por favor. Não quero ver a capitã Avallone nem ninguém neste momento, o que nada tem a ver
com o fato de estar nua.
"Desculpe. Mas Pete Marino precisa conversar com a senhora." A voz inexpressiva aproxima-se.
"Vai ter que esperar", berro.
"Ele disse que é importante."
"Você pode perguntar o que ele quer?"
"Ele só disse que é importante, senhora."
Prometo telefonar mais tarde e provavelmente pareço grosseira, mas, apesar de bem-intencionada, nem sempre consigo ser agradável. Pete Marino é um investigador com
quem trabalhei durante metade da minha vida. Espero que nada terrível tenha acontecido em casa. Não, ele se certificaria de me informar se houvesse uma emergência
real, como alguma coisa errada com meu marido, Lucy, ou se houvesse um problema grave no Centro Forense de Cambridge, que eu chefiava. Marino faria mais que apenas
pedir a alguém que me informasse que está ao telefone e que é importante. Isso nada mais é que seu escasso controle dos próprios impulsos, concluo. Quando tem uma
ideia, Marino acha que deve compartilhá-la comigo no mesmo instante.
Abro bem a boca, enxaguando o gosto de carne humana crestada e decomposta preso no fundo da garganta. O fedor do trabalho de hoje sobe em ondas de vapor e penetra
fundo em meus seios paranasais, as moléculas de biologia pútrida me fazendo companhia no chuveiro. Esfrego por baixo das unhas com sabonete antibacteriano que esguicho
de um frasco, o mesmo que uso nos pratos e para descontaminar minhas botas quando saio da cena do crime, e escovo os dentes, as gengivas e a língua. Lavo o interior
das narinas tão longe quanto consigo alcançar, esfregando cada centímetro do corpo, em seguida lavo o cabelo, não uma, mas duas vezes, e o fedor persiste. Tenho
a sensação de não conseguir ficar limpa.
O nome do soldado morto de quem acabo de me ocupar é Peter Gabriel, como o astro do rock, só que esse Peter Gabriel era um soldado de primeira classe do Exército
e não estava há nem um mês na província de Badghis, no Afeganistão, quando uma bomba à beira improvisada com um tubo plástico de esgoto lotado de PE-4, tampado com
uma folha de cobre, perfurou a blindagem de seu Humvee, provocando uma explosão de metal derretido em seu interior. O soldado de primeira classe Gabriel consumiu
a maior parte de meu último dia aqui neste imenso espaço high-tech, onde patologistas e cientistas das Forças Armadas envolvem-se rotineiramente em casos que a maioria
do público não associa conosco: o assassinato de JFK; as identificações de DNA recentes da família Romanov e dos tripulantes do submarino H.L. Hunley, que afundou
durante a Guerra Civil. Somos uma organização importante, mas pouco conhecida, com raízes que remontam a 1862 e ao Museu Médico do Exército, cujos cirurgiões cuidaram
de Abraham Lincoln após o tiro e realizaram sua autópsia, coisas que eu deveria mencionar na CNN. Focar no positivo. Esquecer o que disse a sra. Gabriel. Não sou
um monstro nem preconceituosa. Você não pode culpar a pobre mulher por estar descontrolada, digo a mim mesma. Ela acaba de perder o único filho. Os Gabriel são negros.
Como você se sentiria, pelo amor de Deus? É claro que você não é racista.
Percebo novamente uma presença. Alguém entrou no vestiário, que consegui enevoar como um grande chuveiro a vapor. Meu coração bate forte devido ao calor.
"Dra. Scarpetta?" A capitã Avallone parece menos hesitante, como se tivesse novidades.
Fecho a água e saio do boxe, agarrando uma toalha para me enrolar. A capitã Avallone é uma presença indistinta pairando na névoa perto das pias e dos secadores de
mão sensíveis ao movimento. Tudo o que consigo distinguir é o cabelo escuro, a calça cáqui e a polo preta com o emblema do AFMES bordado em dourado e azul.
"Pete Marino...", ela começa a dizer.
"Vou ligar para ele em um minuto." Apanho outra toalha em uma prateleira.
"Ele está aqui, senhora."
"O que você está querendo dizer com aqui?" Quase espero que Marino se materialize no vestiário como uma criatura pré-histórica emergindo da névoa.
"Está esperando lá atrás, perto das baias", informa ela. "Vai levar a senhora até o Eagle's Rest para pegar suas coisas." A capitã Avallone diz isso como se o FBI
tivesse vindo me buscar, como se eu tivesse sido presa ou despedida. "Minhas instruções são para conduzir a senhora até ele e ajudar no que for necessário."
O primeiro nome da capitã Avallone é Sophia. Ela é do Exército, acabou de sair da residência de radiologia e é sempre militarmente correta e servilmente educada
enquanto perambula e perde tempo. Agora não é hora. Carrego minha cestinha, pisando no ladrilho, e ela segue logo atrás de mim.
"Só vou embora amanhã, e sair com Marino não faz parte dos meus planos de viagem", digo.
"Posso cuidar do seu carro. Pelo que entendi, a senhora não vai dirigir..."
"Você perguntou a ele do que se trata?" Retiro do armário minha escova de cabelo e meu desodorante.
"Eu tentei, senhora", responde a capitã. "Mas ele não colaborou."
Um C-5 Galaxy ruge no alto, rumo a um dezenove. Como sempre, o vento está vindo do sul.
Um dos muitos princípios aeronáuticos que aprendi com Lucy, que, entre outras coisas, é piloto de helicóptero, é que os números da pista de pouso e decolagem correspondem
à bússola. Dezenove, por exemplo, quer dizer cento e noventa graus, o que significa que a ponta oposta vai ser um, assim orientada devido ao efeito Bernoulli e às
leis de movimento de Newton. Tem tudo a ver com a velocidade com que o ar precisa fluir sobre a asa, com decolar e aterrissar na direção do vento, que nesta parte
de Delaware sopra a partir do mar, da alta para a baixa pressão, do sul para o norte. Entra dia sai dia, os aviões de transporte trazem e levam os mortos ao longo
de uma pista de asfalto que corre como o rio Estige por trás do necrotério.
O Galaxy cinza tem o comprimento de um campo de futebol americano, tão imenso e pesado que mal parece se mover no céu claro com nuvens leves, que os pilotos chamam
de rabo de égua. Sei de que tipo de transporte aéreo se trata sem olhar, reconheço os guinchos e silvos agudos. A esta altura, conheço o som das turbinas produzindo
cento e sessenta mil libras de propulsão, consigo identificar um C-5 ou um C-17 a quilômetros de distância e também conheço helicópteros e aeronaves com rotor, diferencio
um Chinook de um Black Hawk ou de um Osprey. Com tempo bom, quando tenho alguns momentos para espairecer, sento no banco diante de meu alojamento e observo as aeronaves
de Dover como se fossem criaturas exóticas, como peixes-bois, elefantes ou aves pré-históricas. Nunca me canso de seu corpo pesado, seu ruído atroador e das sombras
que projetam quando passam no alto.
As rodas aterrissam tão perto, com baforadas de fumaça, que sinto o estrépito em meus órgãos ocos à medida que atravesso a recepção com suas quatro imensas baias,
seu paredão de alta privacidade e geradores de reserva. Aproximo-me de uma van azul que nunca vi, e Pete Marino não faz nenhum movimento para me cumprimentar ou
abrir a porta, o que não quer dizer nada. Ele não gasta energia com boas maneiras, e ser cortês ou agradável nunca foi sua prioridade, pelo que sei. Faz mais de
vinte anos que nos conhecemos no necrotério de Richmond, Virginia. Ou talvez tenhamos nos encontrado pela primeira vez em alguma cena de homicídio. Realmente não
lembro.
Entro e fecho a porta, enfiando a mochila entre as botas, o cabelo ainda úmido do banho. Ele me avalia em silêncio e acha que estou péssima. Sempre percebo por seus
olhares de esguelha que me inspecionam da cabeça aos pés, demorando-se em certas partes que não lhe dizem respeito. Marino não gosta que eu use o uniforme do AFMES,
a calça cáqui, a polo preta e a jaqueta tática, e nas poucas vezes em que me viu assim acho que ficou assustado.
"Onde você roubou a van?", pergunto enquanto ele dá ré.
"Em uma locadora da Civil Air." A resposta ao menos garante que não aconteceu nada com Lucy.
O terminal não oficial na extremidade norte da pista é usado por funcionários civis autorizados a pousar na base aérea. Minha sobrinha trouxe Marino até aqui e me
passa pela cabeça que os dois vieram me fazer uma surpresa. Apareceram sem avisar para me desobrigar do voo comercial pela manhã e me acompanhar até em casa. Doce
ilusão. Não pode ser isso e procuro respostas no rosto de traços irregulares de Marino, captando sua aparência geral, quase da mesma forma que inspeciono um paciente
à primeira vista. Tênis de corrida, jeans, jaqueta de couro Harley-Davidson com forro de lã que ele tem há uma eternidade, boné de beisebol dos Yankees que usa por
sua própria conta e risco, levando-se em conta que agora mora no território dos Red Sox, e óculos de aro de metal antiquados.
Não sei dizer se ele raspou o pouco que lhe restou de cabelo grisalho, mas está limpo e relativamente bem cuidado, e não está vermelho de uísque nem tem a barriga
inchada de cerveja. Os olhos não estão injetados de sangue. As mãos parecem firmes. Não sinto cheiro de cigarro. Ele continua longe do álcool e longe de outras coisas.
Marino teve a sabedoria de se afastar de uma porção de coisas, um trem que se imiscui nos territórios instáveis de suas inclinações aborígines. Sexo, birita, drogas,
tabaco, comida, grosseria, intolerância, indolência. Eu provavelmente deveria acrescentar falsidade. Quando lhe convém, ele é evasivo ou simplesmente mente.
"Imagino que Lucy esteja no helicóptero...", começo a dizer.
"Você sabe como é esta espelunca quando se está trabalhando num caso. Pior que a porra da CIA", diz ele enquanto viramos na Purple Heart Avenue. "A casa da pessoa
pode estar pegando fogo e ninguém diz merda nenhuma. Devo ter ligado umas cinco vezes. Então tomei uma decisão executiva e Lucy e eu viemos para cá."
"Seria útil se você me dissesse por que está aqui."
"Ninguém quis te interromper enquanto estava cuidando do soldado de Worcester", diz ele para meu espanto.
O soldado de primeira classe Gabriel era de Worcester, Massachusetts, e não consigo entender por que Marino saberia em que caso eu estava trabalhando em Dover. Ninguém
deveria ter contado. Tudo o que fazemos no necrotério é extremamente sigiloso, quando não estritamente confidencial. Pergunto-me se a mãe do soldado morto cumpriu
a ameaça e convocou a imprensa. Pergunto-me se contou à imprensa que a médica-legista de seu filho, militar e branca, é racista.
Antes que eu consiga perguntar, Marino acrescenta: "Ao que tudo indica, ele é a primeira vítima de guerra de Worcester, e a mídia local está em cima. Recebemos algumas
ligações, imagino que as pessoas estejam confusas e achem que qualquer defunto ligado a Massachusetts acabe com a gente".
"Os repórteres acharam que íamos fazer a autópsia em Cambridge?"
"Bom, o CFC também é um necrotério. Talvez tenha sido por isso."
"Seria de esperar que a imprensa a essa altura soubesse que todas as baixas de operações vêm direto para cá", refuto. "Você tem certeza dos motivos do interesse
deles?"
"Por quê?" Marino olha para mim. "Você sabe de algum outro motivo que eu desconheça?"
"Só estou perguntando."
"Tudo o que sei é que recebemos alguns telefonemas e encaminhamos para Dover. Você estava no meio do trabalho com o garoto de Worcester e ninguém quis te chamar,
então liguei para o general Briggs quando estávamos a vinte minutos de distância, abastecendo em Wilmington. Ele fez a capitã Abelhinha te procurar no chuveiro.
Ela é solteira ou toca na banda de Lucy? Porque não é feia."
"Como você sabe?", pergunto, perplexa.
"Ela deu uma passada no CFC quando foi visitar a mãe no Maine. Você não estava."
Tento recordar se fui informada disso e ao mesmo tempo lembro que não faço ideia do que acontece na repartição que devo chefiar.
"Fielding se encarregou do tour real, o anfitrião com algo mais." Marino não gosta do meu sub, Jack Fielding. "A questão é que tentei avisar. Eu não pretendia simplesmente
dar as caras assim."
Marino está sendo evasivo e toda essa história é uma tática. É invenção. Por algum motivo, achou necessário simplesmente aparecer por aqui sem avisar. Talvez por
querer se certificar de que eu vá com ele sem demora. Percebo que o problema é sério.
"Não pode ter sido pelo Gabriel que você deu as caras assim, como você mesmo disse", aponto.
"Receio que não."
"O que aconteceu?"
"Temos um problema." Ele olha direto para a frente. "E eu disse a Fielding e a todos os outros que o corpo não ia ser examinado antes de você chegar."
Jack Fielding é um patologista forense experiente que não recebe ordens de Marino. Se meu sub optou por não intervir e transferir para mim o corpo, isso significa
que temos um caso que pode ter implicações políticas ou terminar em processo. O fato de Fielding não ter tentado me telefonar ou me passado um e-mail me incomoda
bastante. Torno a verificar meu iPhone. Nada da parte dele.
"Por volta das três e meia ontem à tarde em Cambridge", diz Marino, e agora estamos na Atlantic Street, dirigindo devagar na semiescuridão, no meio da base. "Em
Norton's Woods, na Irving, a menos de um quarteirão da sua casa. Uma merda você não estar em casa. Podia ter ido até a cena, a pé, e talvez as coisas tivessem acabado
de forma diferente."
"Que coisas?"
"Um homem de pele morena clara, na casa dos vinte. Estava passeando com o cachorro e caiu morto. Ataque cardíaco, certo? Errado", continua ele enquanto passamos
por fileiras de instalações de manutenção em concreto e metal, hangares e outras estruturas que têm números em vez de nomes. "É plena luz do dia de uma tarde de
domingo, muita gente por perto, porque tinha um evento no que quer que seja aquele lugar, o com um telhado verde de metal."
Norton's Woods é a sede da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, uma propriedade arborizada com uma impressionante construção em madeira e vidro que é
alugada para cerimônias especiais. Fica várias casas adiante daquela para a qual Benton e eu nos mudamos na primavera passada, a fim de que eu ficasse perto do CFC
e ele de Harvard, onde faz parte do corpo docente do departamento de psiquiatria da faculdade de medicina.
"Em outras palavras, olhos e ouvidos", continua Marino. "Um bom lugar e uma boa hora para matar alguém."
"Pensei que você tivesse dito que ele sofreu um ataque do coração. Só que, sendo tão jovem, deve ter sido uma arritmia cardíaca."
"É, era essa a hipótese inicial. Algumas testemunhas viram o sujeito colocar a mão no peito de repente e cair. Ele morreu ali... pelo jeito. Foi transportado direto
para nossa repartição e passou a noite na geladeira."
"O que você quer dizer com 'pelo jeito'?"
"Hoje cedo, Fielding entrou na geladeira e notou gotas de sangue no chão e muito sangue na bandeja, então foi chamar Anne e Ollie. O cara morto tinha sangue saindo
pelo nariz e pela boca. Não estava ali na tarde anterior, quando ele foi dado como morto. Não havia sangue na cena, nem uma gota, e agora ele está sangrando, e não
é hipóstase, claro, porque o cara não está em decomposição. O lençol com que está coberto está ensanguentado e tem mais ou menos um litro de sangue no saco que contém
o corpo, o que é uma merda. Eu nunca tinha visto um morto começar a sangrar assim. Então eu disse que tínhamos a porra de um problema sério e todo mundo ficou de
boca fechada."
"O que Jack disse? O que ele fez?"
"Você está de gozação, não está? Que braço-direito o seu. Não vou nem começar."
"Temos alguma identificação? E por que Norton's Woods? Ele mora ali perto? Estuda em Harvard? Talvez na faculdade de teologia, ali perto? Duvido que ele estivesse
indo ao evento. Não com um cachorro." Pareço muito mais calma do que me sinto ao ter essa conversa no estacionamento da pousada Eagle's Rest.
"Ainda não temos muitos detalhes, mas parece que era um casamento", explica Marino.
"No domingo do Super Bowl? Quem marca um casamento no mesmo dia do Super Bowl?"
"Alguém que não quer que ninguém apareça. Ou que não é americano, ou que é antiamericano. Sei lá, mas acho que o morto não era um convidado do casamento, e não só
por causa do cachorro. Ele levava uma Glock nove milímetros por baixo do casaco. Não tinha documentos e estava ouvindo um rádio portátil via satélite. Você já imagina
aonde quero chegar com isso."
"Na verdade não."
"Lucy vai falar mais sobre a parte do rádio via satélite, mas parece que ele estava fazendo vigilância, espionando, e talvez a pessoa que ele estava sacaneando tenha
decidido retribuir o favor. Resumindo, acho que alguém fez alguma coisa com ele e causou um ferimento que de alguma forma passou despercebido aos paramédicos; o
serviço de remoção também não notou nada. Então o zíper do saco é fechado e ele começa a sangrar durante o transporte. Bom, isso não aconteceria a não ser que ele
tivesse alguma pressão sanguínea, ou seja, ainda estava vivo quando foi deixado no necrotério e trancado dentro da porra da geladeira. Com catorze, quinze graus
negativos lá dentro, ele deve ter morrido esta manhã por exposição ao frio. Supondo que não tenha sangrado até a morte primeiro."
"Se ele tinha um ferimento que causaria sangramento externo", pergunto, "por que não havia sangue na cena?"
"Explique você."
"Por quanto tempo tentaram ressuscitar o cara?"
"Quinze, vinte minutos."
"Não é possível que um vaso sanguíneo tenha sido de alguma forma perfurado nesse período?", pergunto. "Lesões anteriores e posteriores à morte, quando suficientemente
graves, podem causar sangramento significativo. Talvez durante a reanimação cardiopulmonar uma costela tenha fraturado e causado uma perfuração ou secção em uma
artéria. Um tubo torácico pode ter sido inserido e causado um ferimento e o sangramento que você descreveu."
Mas sei que não é nada disso antes mesmo de dizer. Marino é um investigador de homicídios experiente. Não teria requisitado minha sobrinha e seu helicóptero para
vir a Dover sem aviso prévio se houvesse uma explicação lógica ou mesmo plausível, e Jack Fielding certamente reconheceria um ferimento como o que eu sugeri. Por
que ele não tentou falar comigo?
"O quartel do Corpo de Bombeiros de Cambridge deve ficar a um quilômetro e meio de Norton's Woods, e o pelotão chegou em poucos minutos", informa Marino.
Estamos sentados na van com o motor desligado. Está quase completamente escuro, o horizonte e o céu se fundem, com um débil vestígio de luz a oeste. Quando Fielding
lidou com algum revés sem mim? Nunca. Ele se afasta. Deixa a sujeira para os outros limparem. Foi por isso que não tentou fazer contato comigo. Talvez tenha largado
o emprego de novo. Quantas vezes precisa fazer isso para que eu pare de recontratá-lo?
"De acordo com eles, o sujeito morreu instantaneamente", acrescenta Marino.
"A menos que um explosivo arrebente alguém em centenas de pedaços, na verdade não existe essa coisa de morrer instantaneamente", retruco, porque detesto quando Marino
fala clichê. Morrer instantaneamente. Cair morto. Morreu antes de atingir o solo. Vinte anos de generalidades como essas, não importa quantas vezes eu tenha dito
que paradas cardíaca e respiratória não são causas, mas sintomas da morte, o que em termos clínicos leva no mínimo alguns minutos. Nunca é instantânea. Não é um
processo simples. Torno a lembrá-lo dessa questão médica porque não consigo pensar em mais nada para dizer.
"Bom, só estou relatando o que me contaram. De acordo com eles, o cara não pôde ser ressuscitado", responde Marino como se os paramédicos soubessem mais sobre a
morte do que eu. "Não reagiu. É o que está no prontuário."
"Você interrogou os paramédicos?"
"Um deles. Por telefone esta manhã. Sem pulso, sem nada. O cara estava morto. Ou foi o que disse o paramédico. Mas o que você acha que ele ia dizer? Que eles não
tinham certeza, mas mesmo assim mandaram o sujeito para o necrotério?"
"Então você contou a ele por que estava perguntando."
"Porra, não, não sou nenhum retardado. Ninguém precisa disso na primeira página do Globe. Se chegar aos noticiários, posso muito bem voltar para o departamento de
polícia de Nova York ou, quem sabe, terminar na Wackenhut, só que ninguém está contratando."
"Que procedimento você seguiu?"
"Não segui merda nenhuma. Foi Fielding. É claro que ele está dizendo que fez tudo como manda o figurino, e que a DP de Cambridge informou que não havia nada de suspeito
na cena, uma morte natural evidente, com testemunhas. Fielding deu permissão para que o corpo fosse transferido ao CFC desde que os policiais ficassem com a custódia
da arma e a levassem de imediato para o laboratório para que descobríssemos em nome de quem está registrada. Um caso de rotina, e não é culpa nossa se os paramédicos
fizeram besteira, ou assim diz Fielding. E você sabe o que eu digo? Não importa. Vamos levar a culpa. A imprensa vai nos perseguir como você nunca viu e vai dizer
que tudo deveria voltar para Boston. Já imaginou?"
Antes que o CFC começasse a trabalhar nos primeiros casos no verão passado, a agência estatal de medicina legal localizava-se em Boston e vivia cercada por problemas
políticos e econômicos, sem mencionar os escândalos que estavam constantemente nos noticiários. Corpos eram perdidos, enviados à funerária errada ou cremados sem
exame minucioso, e em pelo menos uma suspeita de morte de criança por maus-tratos foram testados os globos oculares errados. Novos chefes chegaram e partiram, e
órgãos distritais tiveram de ser fechados devido à falta de financiamento. Mas nada de negativo que já tenha sido dito a respeito daquela instituição se compara
ao que Marino está sugerindo a nosso respeito.
"Prefiro não imaginar nada." Abro a porta. "Vou me concentrar nos fatos."
"Isso é um problema, já que parece que não temos nada que faça muito sentido."
"E você contou a Biggs o que acabou de me contar?"
"Contei o que ele precisava saber", responde Marino.
"A mesma coisa que acabou de me contar?", repito a pergunta.
"Praticamente."
"Não devia ter feito isso. Devia ter me deixado contar. Eu decido o que ele precisa saber." Estou sentada com a porta do carona bem aberta e o vento entrando. Ainda
estou úmida do banho e sinto frio. "Não pode quebrar a cadeia de comando só porque estou ocupada."
"Bom, você estava muito ocupada, então contei a ele."
Desço da van e me tranquilizo dizendo que o que Marino acaba de descrever não pode estar correto. Os paramédicos de Cambridge jamais cometeriam um erro tão absurdo;
tento evocar uma explicação para um ferimento fatal não sangrar na cena e depois sangrar de forma profusa e penso em como computar a hora da morte ou mesmo a causa
de alguém que morreu dentro da geladeira de um necrotério. Estou confusa. Não faço a menor ideia do que está acontecendo e, acima de tudo, estou angustiada por ele,
por esse jovem entregue a mim, dado como morto. Visualizo-o envolto em um lençol e acondicionado em um saco, o zíper fechado, e é essa a essência dos velhos horrores.
Alguém que recupera os sentidos dentro de um caixão. Alguém que é enterrado vivo. Nunca me aconteceu nada tão terrível, nem de perto, nem uma única vez em minha
carreira. E nunca conheci ninguém que tenha passado por isso.
"Pelo menos não há nenhum sinal de que ele tentou sair do saco." Marino está tentando fazer com que ambos nos sintamos melhor. "Nada que indique que ele pode ter
acordado a certa altura e entrado em pânico. Você sabe, sinais de que tentou abrir o zíper, chutar ou coisa parecida. Acho que, se ele tivesse lutado, estaria em
outra posição na bandeja quando o encontramos esta manhã, ou talvez tivesse até rolado para fora dela. Não tinha pensado nisso, mas uma pessoa não sufocaria num
saco daqueles? Supostamente eles são à prova d'água. Ainda que vazem. Queria ver um que não vazasse. E essa é a outra questão. Os pingos de sangue no chão vão na
direção da baia para a geladeira."
"Por que não continuamos isso mais tarde?" É hora do check-in. Há muita gente no estacionamento quando nos dirigimos à entrada moderna, mas simples, da pousada,
e Marino tem uma voz grossa que se projeta como se ele estivesse sempre falando de um palco.
"Duvido que Fielding tenha se dado o trabalho de ver a gravação", continua Marino. "Duvido que tenha feito qualquer coisa. Não vi nem tive notícias do filho da puta
desde hoje cedo. Desapareceu na hora H de novo." Marino abre a porta principal de vidro. "Espero que não tenhamos que fechar por causa daquele imprestável. Não seria
incrível? Você faz ao cara a porra de um favor lhe dando um emprego depois que ele se mandou e ele destrói o CFC antes mesmo que o lugar comece a decolar."
No interior do hall de entrada com mostruários contendo prêmios e memorabilia da Força Aérea, cadeiras confortáveis e uma TV gigantesca, uma placa dá as boas-vindas
aos hóspedes na sede do C-5 Galaxy e do C-17 Globemaster III. Na recepção, espero silenciosamente atrás de um homem que veste as listras de tigre extravagantes e
indistintas dos uniformes de combate do Exército, enquanto compra creme de barbear, água e várias garrafinhas de Johnnie Walker. Informo ao recepcionista que estou
fechando a conta antes do planejado e, sim, vou me lembrar de entregar as chaves, e é claro que compreendo que vão me cobrar a diária de trinta e oito dólares mesmo
que eu não passe a noite lá.
"Como é que se diz?", continua Marino. "O inferno está cheio de boas intenções?"
"Vamos tentar não ser tão negativos."
"Você e eu abrimos mão de bons empregos em Nova York e fechamos o escritório em Watertown, e é isso o que acontece."
Não me pronuncio.
"Realmente espero que isso não acabe com a nossa carreira", prossegue ele.
Não respondo, porque já ouvi o bastante. Depois das lojinhas e das máquinas de refrigerante, salgadinho e doce, pegamos a escada para o segundo andar e é então que
ele me informa que Lucy não está esperando com o helicóptero no Terminal Aéreo Civil. Está em meu quarto. Fazendo minhas malas, tocando em meus pertences, tomando
decisões sobre eles, esvaziando meu armário, minhas gavetas, desligando meu laptop, minha impressora, o roteador. Ele esperou para me dizer porque sabe muito bem
que, em circunstâncias normais, isso me irritaria absurdamente - não importaria que se tratasse da minha sobrinha, o gênio da informática, ex-policial federal, que
criei como uma filha.
As circunstâncias são tudo menos normais, e sinto-me aliviada que Marino esteja aqui e Lucy esteja em meu quarto, que tenham vindo me buscar. Preciso chegar em casa
e resolver tudo. Percorremos o longo corredor com tapete vermelho-escuro, passamos pela varanda decorada com reproduções coloniais e uma cadeira eletrônica de massagem
atenciosamente instalada para os pilotos cansados. Insiro o cartão magnético na abertura na porta do quarto e me pergunto quem teria deixado Lucy entrar, então torno
a pensar em Briggs e na CNN. Não posso nem pensar em aparecer na TV. E se a imprensa tomou conhecimento do que aconteceu em Cambridge? A essa altura eu saberia.
Marino saberia. Bryce, meu administrador, saberia e teria me contado imediatamente. Tudo vai ficar bem.
Lucy está sentada em minha cama bem-feita, fechando o zíper de minha nécessaire de cosméticos. Detecto o perfume cítrico apurado de seu xampu quando a abraço e percebo
o quanto ela me fez falta. Um macacão de voo preto acentua seus olhos verdes atrevidos, o cabelo curto dourado, as feições angulosas e a magreza, o que me faz lembrar
o quanto ela é atraente de um jeito pouco comum, com ar de menino, porém feminina, vigorosamente esculpida, com seios em evidência e tão intensa que parece selvagem.
Independentemente de estar brincando ou sendo educada, minha sobrinha tende a intimidar e tem poucos amigos, talvez nenhum a não ser Marino, e seus amores nunca
duram. Nem mesmo Jaime, embora eu não tenha revelado minhas suspeitas. Não perguntei. Mas não engulo a história de Lucy de ter se mudado de Nova York para Boston
por razões financeiras. Mesmo que sua empresa investigativa de informática forense estivesse em declínio, no que tampouco acredito, ela estava ganhando mais em Manhattan
do que recebe agora do CFC, que é nada. Minha sobrinha trabalha para mim pro bono. Ela não precisa de dinheiro.
"Qual é a história do rádio via satélite?" Observo-a com atenção, tentando interpretar seus sinais, que são sempre sutis e desconcertantes.
As cápsulas chocalham enquanto ela verifica quantos Advils há em um frasco, decidindo que não o bastante para perder tempo e o atira no lixo. "Vamos pegar mau tempo,
então eu gostaria de sair logo daqui." Ela destampa um frasco de Zantac, descartando-o a seguir. "Conversamos durante o voo. Vou precisar da sua ajuda como copiloto.
Vai ser complicado escapar das nevascas e da chuva no caminho. Trezentos milímetros, começando por volta das dez."
Meu primeiro pensamento é Norton's Woods. Preciso fazer uma visita retrospectiva, mas quando chegar lá, o lugar vai estar coberto de neve.
"É uma pena", comento. "A cena do crime não foi investigada como deveria."
"Pedi à DP de Cambridge para voltar lá esta manhã." Os olhos de Marino se deslocam como se fosse meu alojamento que necessitasse ser investigado. "Não encontraram
nada."
"Perguntaram por que você quis que investigassem?" A mesma preocupação outra vez.
"Eu disse que tínhamos dúvidas. Coloquei a culpa na Glock. O número de série foi apagado. Acho que não contei isso", acrescenta ele enquanto olha ao redor, atento
a tudo menos a mim.
"Podemos tentar recuperar o número com ácido. Se não der certo, ainda temos o microscópio eletrônico de varredura", concluo. "Se restou algum traço, vamos encontrar.
E vou pedir a Jack para ir a Norton's Woods e fazer uma retrospectiva."
"Tenho certeza de que ele vai começar a trabalhar nisso", diz Marino em tom sarcástico.
"Ele pode tirar fotografias antes que a neve comece", acrescento. "Ou alguma outra pessoa. Quem estiver de plantão..."
"É perda de tempo", diz Marino me interrompendo. "Nenhum de nós estava lá ontem. Não sabemos qual a porra do local exato... só que ficava perto de uma árvore e de
um banco verde. Bom, isso é de grande ajuda quando você está falando de cerca de três hectares de árvores e bancos verdes."
"E fotografias?", pergunto enquanto Lucy continua a vasculhar minha pequena farmácia de pomadas, analgésicos, antiácidos, vitaminas, colírios e antissépticos espalhada
sobre a cama. "A polícia deve ter batido fotos do corpo in situ."
"Ainda estou esperando o detetive me mandar. O cara que responde pela cena trouxe a pistola hoje de manhã. Lester Law, atende por Les Law, mas nas ruas é mais conhecido
como Lawless, corrupto exatamente como o pai e o avô antes dele. Os tiras de Cambridge voltando à porra do Mayflower. Mas não conheci o sujeito."
"Bom, acho que é isso." Lucy se levanta da cama. "Quer conferir se não esqueci nada?", acrescenta ela.
O lixo está abarrotado, minhas malas estão arrumadas e enfileiradas em uma das paredes, a porta do armário está escancarada, sem nada dentro exceto cabides vazios.
Equipamentos de informática, arquivos impressos, artigos de jornal e livros desapareceram da minha escrivaninha, e não há nada no cesto de roupas sujas, nem no banheiro
ou nas gavetas da cômoda que inspeciono. Abro a pequena geladeira. Está vazia e foi limpa. Enquanto ela e Marino começam a carregar minhas coisas para fora, teclo
o número de Briggs no meu iPhone. Olho para o prédio de estuque de três andares no outro lado do estacionamento, para a ampla janela espelhada no meio do terceiro
andar. Ontem à noite eu estava nessa suíte com ele e outros colegas assistindo ao jogo, e a vida era boa. Aplaudimos o New Orleans Saints e nosso próprio trabalho
e brindamos ao Pentágono e a sua Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, a DARPA, que haviam tornado possíveis as autópsias virtuais com o auxílio de
TC em Dover e agora no CFC. Comemoramos a missão cumprida, o trabalho bem-feito, e agora isso, como se a noite passada não fosse real, como se eu tivesse sonhado.
Respiro fundo e aperto ENVIAR em meu iPhone, sentindo-me oca por dentro. Briggs não pode estar satisfeito comigo. Imagens lampejam na TV de tela plana instalada
na parede da sala de estar, então ele passa pelo vidro vestindo seu uniforme de combate do Exército, verde e marrom com gola chinesa, o que normalmente usa quando
não está no necrotério ou em uma cena de crime. Vejo-o atender ao telefone e retornar à ampla janela, onde para, olhando direto para mim. A certa distância, estamos
cara a cara, uma extensão de asfalto e carros estacionados entre mim e o legista-chefe das Forças Armadas, como se estivéssemos à beira de um impasse.
"Coronel." Ele me cumprimenta em tom sombrio.
"Acabo de saber. E garanto que vou cuidar disso. Estarei no helicóptero em uma hora."
"Você sabe o que sempre digo." A voz profunda e autoritária soa em meu fone de ouvido e tento detectar seu grau de mau humor e o que ele vai fazer. "Tudo tem uma
resposta. O problema é encontrar essa resposta e a melhor maneira de fazer isso. A maneira mais correta e adequada." Ele parece calmo. Cauteloso. Muito sério. "O
resto fica para outra ocasião", acrescenta.
Briggs está fazendo menção ao último briefing que havíamos programado. Tenho certeza de que também se refere à CNN, e me pergunto o que Marino contou. O que exatamente
ele disse?
"Concordo, John. Tudo deve ser cancelado."
"Já foi."
"É a coisa certa." Soo trivial. Não vou deixar que ele perceba minha insegurança e sei que a está farejando. Sei muito bem que está. "Minha prioridade é determinar
se a informação que me foi passada está correta. Porque não vejo como pode ser possível."
"Não é uma boa hora para você ir ao ar. Não preciso que Rockman nos diga isso."
Rockman é o assessor de imprensa. Briggs não precisa falar com ele porque já fez isso. Tenho certeza.
"Entendo", respondo.
"Um sincronismo incrível. Se eu fosse paranoico, podia simplesmente pensar que alguém orquestrou algum tipo bizarro de sabotagem."
"Com base no que me contaram, não vejo como isso seria possível."
"Eu disse se fosse paranoico", retruca Briggs e, de onde estou, distingo a figura musculosa magnífica, mas não consigo ver a expressão em seu rosto. E não preciso.
Ele não está sorrindo. Os olhos cinzentos são aço galvanizado.
"A sincronia pode ser coincidência ou não", digo. "É o pressuposto básico em investigações criminais, John. É sempre uma coisa ou outra."
"Não vamos banalizar a situação."
"Estou fazendo tudo menos isso."
"Não consigo pensar em nada muito pior que uma pessoa viva ser colocada na porra da sua geladeira", diz ele sem rodeios.
"Nós não sabemos..."
"É uma pena depois de tudo isso." Como se tudo o que construímos ao longo dos últimos anos estivesse à beira da ruína.
"Não sabemos se o que foi relatado é exato...", começo a dizer.
"Acho que seria melhor trazer o corpo para cá", interrompe ele mais uma vez. "O AFDIL pode trabalhar na identificação. Rockman vai se certificar de que a situação
fique sob controle. Temos tudo de que precisamos bem aqui."
Estou pasma. Briggs quer mandar um avião a Hanscom Field, a base aérea afiliada ao CFC. Quer que o Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas, provavelmente
com outros laboratórios militares e outra pessoa que não eu, cuide do que aconteceu porque acha que não tenho competência para isso. Ele não confia em mim.
"Não sabemos se estamos falando da jurisdição federal", lembro-lhe. "A menos que você saiba alguma coisa que eu não sei."
"Olhe. Estou tentando fazer o que é melhor para todos os envolvidos." Briggs tem as mãos às costas, as pernas ligeiramente afastadas, os olhos fixos em mim no outro
lado do estacionamento. "Podemos despachar um C-17 para Hanscom. Podemos ter o corpo aqui por volta de meia-noite. O CFC é um necrotério também, e é isso que os
necrotérios fazem."
"Não é isso que os necrotérios fazem. A ideia não é que os corpos sejam recebidos, então transferidos para as autópsias e análises de laboratório. O CFC não foi
projetado para ser uma primeira triagem para Dover, uma verificação preliminar à intervenção dos peritos. Essa nunca foi minha intenção nem o que foi acordado quando
trinta milhões de dólares foram gastos na repartição em Cambridge."
"Você devia ficar em Dover, Kay. Trazemos o corpo para cá."
"Estou pedindo a você que não intervenha, John. Neste momento, o caso pertence à alçada do legista-chefe de Massachusetts. Por favor, não desafie a minha autoridade."
Há uma longa pausa, então ele afirma, em vez de perguntar: "Você realmente quer essa responsabilidade".
"Ela é minha, eu querendo ou não."
"Estou tentando te proteger. Tenho tentado."
"Não faça isso." Não é o que ele está tentando fazer. Não tem confiança em mim.
"Posso mobilizar a capitã Avallone para ajudar. Não é má ideia."
Mal posso acreditar que ele tenha sugerido isso. "Não é necessário", refuto em tom firme. "O CFC é perfeitamente capaz de lidar com a situação."
"Que fique registrado que ofereci."
Que fique registrado junto a quem? Ocorre-me, de forma estranha, que talvez haja outra pessoa na linha. Briggs continua de pé diante da janela. Não sei se há mais
alguém na suíte com ele.
"O que você decidir", diz então. "Não vou passar por cima de você. Ligue assim que souber de alguma coisa. Me acorde se for preciso." Ele não diz adeus, nem boa
sorte, nem foi bom ter você por aqui por seis meses.
2
Lucy e Marino saíram do quarto. Minhas malas, mochilas e caixas de arquivo desapareceram e não restou nada. É como se eu nunca tivesse estado aqui e me sinto só
como não ocorre há anos, talvez décadas.
Olho ao redor pela última vez, para me certificar de que nada foi esquecido, minha atenção viajando para além do micro-ondas, da pequena geladeira e da cafeteira
elétrica, rumo às janelas com vista do estacionamento e da suíte iluminada de Briggs e mais além, rumo ao céu negro sobre o vazio do campo de golfe desocupado. Grossas
nuvens passam pela lua oblonga, que acende e apaga como uma lanterna de sinalização, como se me informasse o que há adiante e se devo parar ou seguir, e não vejo
estrela nenhuma. Preocupa-me que o mau tempo esteja se deslocando rápido, conduzido pelo mesmo vento sul poderoso que traz os grandes aviões e sua triste carga.
Eu deveria me apressar, mas o espelho do banheiro me distrai, a pessoa nele, na verdade, e paro para me olhar sob a claridade da luz fluorescente. Quem é você agora?
De verdade?
Meus olhos azuis e meu cabelo louro e curto, o talhe forte de meu rosto e minha silhueta não estão muito diferentes, concluo, parecem notadamente os mesmos, levando-se
em conta minha idade. Resisti bem às salas de concreto e aço inoxidável sem janelas, e muito disso é genético, um desejo hereditário de prosperar em uma família
trágica como uma ópera de Verdi. Os Scarpetta descendem de italianos fortes do norte, com feições proeminentes, cabelo e pele claros, e músculos e ossos bem definidos
que resistem à adversidade e aos abusos da permissividade que a maioria das pessoas não associaria comigo. Mas as tendências estão presentes, uma paixão pela comida,
pela bebida, por todas as coisas que a carne deseja, não importa quão destrutivas. Almejo a beleza e sinto com profundidade, mas também sou uma aberração. Posso
ser firme e impenetrável. Posso ser imutável e implacável, e esses comportamentos são aprendidos. Acredito que sejam necessários. Não são naturais em mim, nem em
ninguém em minha família instável e dramática, e sei que isso é verdade sobre minhas origens. Quanto ao resto, não tenho tanta certeza.
Meus antepassados eram agricultores e trabalharam nas estradas de ferro, mas nos últimos anos, quando começou a pesquisar nossa genealogia, minha mãe acrescentou
artistas, filósofos, mártires e Deus sabe o que mais à mistura. Segundo ela, sou descendente dos artesãos que construíram o altar principal e os assentos do coro
e elaboraram os mosaicos da Basílica de São Marcos e criaram os afrescos do teto da Chiesa dell'Angelo San Raffaele. De alguma forma, tenho vários frades e monges
em meu passado, e mais recentemente - não sei com base em que - compartilho sangue com o pintor Caravaggio, que foi um assassino, e tenho uma tênue ligação com o
matemático e astrônomo Giordano Bruno, queimado na fogueira por heresia durante a Inquisição romana.
Minha mãe ainda mora numa casinha de Miami e está imersa em suas tentativas de me explicar isso tudo. Até onde se sabe, sou a única médica da árvore genealógica
e ela não entende por que escolhi pacientes que já estão mortos. Nem minha mãe nem minha única irmã, Dorothy, conseguem compreender que sou parcialmente definida
pelos horrores de uma infância absorvida em cuidar de meu pai com uma doença terminal antes de me tornar chefe de família aos doze anos. Por intuição e formação,
sou especialista em violência e morte. Estou em guerra com o sofrimento e a dor. De alguma forma, sempre acabo no comando ou levando a culpa. Isso nunca falha.
Fecho a porta do que foi meu lar não apenas durante seis meses, mas na verdade por mais que isso. Briggs conseguiu me lembrar de onde vim e para onde vou. Uma trajetória
que se definiu muito antes do último mês de julho, no passado distante de 1987, quando descobri que meu destino era o serviço público e não sabia como pagar meu
empréstimo estudantil para a faculdade de medicina. Permiti que algo tão banal quanto o dinheiro, algo tão vergonhoso quanto a ambição mudassem tudo de forma irrevogável,
e não no bom sentido - na realidade, no pior dos sentidos. Mas eu era jovem e idealista. Era arrogante e queria mais, sem entender na ocasião que mais é sempre menos
quando você não se sacia.
Tendo conseguido bolsa integral na escola paroquial, em Cornell e na faculdade de direito de Georgetown, eu poderia ter iniciado minha vida profissional isenta das
obrigações de uma dívida. Mas havia rejeitado a faculdade de medicina Bowman Gray por querer muito a Johns Hopkins. Eu queria a Johns Hopkins mais que qualquer outra
coisa e fui para lá sem benefícios nem auxílio financeiro, o que resultou numa dívida impossível de ser paga. Meu único recurso foi aceitar uma bolsa de estudos
militar, como alguns de meus colegas haviam feito, inclusive Briggs, a quem fui apresentada no início da carreira, ao ser designada para o Instituto de Patologia
das Forças Armadas, o AFIP, a organização precursora do AFMES. Uma temporada tranquila revisando relatórios de autópsias militares no Centro Médico Walter Reed,
do Exército, em Washington, D. C., Briggs me levou a crer, e assim que minha dívida estivesse paga, eu sairia e assumiria uma posição sólida na medicina legal civil.
O que não planejei foi a África do Sul em dezembro de 1987, o que era verão naquele continente distante. Noonie Pieste e Joanne Rule estavam filmando um documentário
e tinham mais ou menos a mesma idade que eu quando foram amarradas a uma cadeira, espancadas e cortadas. Enfiaram uma garrafa de vidro quebrada na vagina de cada
uma e arrancaram a traqueia. Crimes de ódio contra duas jovens americanas.
"Você vai à Cidade do Cabo", anunciou Briggs. "Para investigar e trazer as garotas para casa." O apartheid. Mentiras e mais mentiras. Por que elas e por que eu?
Enquanto desço as escadas rumo ao hall de entrada, digo a mim mesma para não pensar nesse assunto agora. Por que estou lembrando tudo isso? Mas sei por quê. Gritaram
comigo ao telefone esta manhã. Fui xingada, e o que aconteceu mais de duas décadas atrás está diante de mim novamente. Recordo relatórios de autópsia que desapareceram
e minha bagagem que foi vasculhada. Recordo a certeza de que apareceria morta, um acidente ou suicídio conveniente, ou um assassinato encenado, como aquelas duas
mulheres que continuo a ver em minha mente. Vejo-as de forma tão clara quanto na ocasião, pálidas e rígidas em mesas de aço, o sangue escorrendo por drenos no chão
de um necrotério tão primitivo que usamos serras simples para abrir os crânios; não havia aparelho de raios X e precisei levar minha própria câmera.
Deixo a chave na recepção e repasso a conversa que acabo de ter com Briggs; então vejo com clareza. Não sei por que não enxerguei a verdade de imediato; penso em
seu tom distante, na deliberação fria enquanto eu o observava através do vidro. Já o ouvi falar assim antes, mas em geral se dirigindo a outras pessoas quando há
um problema de tal magnitude que sai de suas mãos. Isso está além de uma opinião pessoal a meu respeito. Está além de suas maquinações típicas e de nosso passado
conflituoso.
Alguém o importunou, e não foi o assessor de imprensa nem ninguém em Dover, e, sim, alguém mais graúdo. Tenho certeza de que Briggs teve que falar com Washington
depois que Marino divulgou a informação, abrindo a boca e desfiando suas especulações desvairadas antes de eu ter tido a chance de dizer uma palavra. Marino não
deveria ter discutido o caso. Pôs em movimento alguma coisa que não entende, porque existem muitas coisas que ele não entende. Nunca foi militar. Nunca trabalhou
para o governo federal e é ignorante em assuntos internacionais. Sua ideia de burocracia e intriga são as políticas da polícia local, que considera bobagem. Não
tem nenhuma noção de poder, a espécie de poder capaz de afetar uma eleição presidencial ou deflagrar uma guerra.
Briggs não teria sugerido enviar um avião militar a Massachusetts para a transferência de um corpo para Dover a menos que tivesse recebido autorização do Departamento
de Defesa - em outras palavras, do Pentágono. Uma decisão foi tomada e não faço parte dela. Fora, no estacionamento, subo na van e não olho para Marino de tão furiosa
que estou.
"Fale mais sobre o rádio via satélite", peço a Lucy, pois pretendo ir até o fundo da questão. Pretendo descobrir o que Briggs sabe ou foi levado a acreditar.
"É um Sirius Stiletto", diz Lucy do banco de trás, enquanto intensifico o aquecimento, porque Marino está sempre com calor ao passo que o restante de nós congela.
"Basicamente, nada mais é que armazenagem de arquivos, além de ser uma fonte de energia. É claro que funciona como um rádio XM portátil, para o que foi projetado,
mas a diferença são os fones de ouvido. Não geniais, mas tecnicamente inteligentes."
"Eles têm uma câmera pinhole e um microfone embutidos", esclarece Marino enquanto dirige. "É por isso que acho que o morto estava espionando alguém. Como ele podia
não saber que tinha um sistema de gravação audiovisual embutido nos fones de ouvido?"
"Talvez não soubesse. É possível que alguém estivesse espionando o sujeito e ele não fizesse a menor ideia", diz Lucy, e percebo que ela e Marino andaram discutindo
a respeito. "A pinhole fica no topo da armação na cabeça, mas bem na beirada, e é difícil de ver. Mesmo que ele percebesse, não necessariamente lhe passaria pela
cabeça que lá dentro havia uma câmera via rádio menor que um grão de arroz, um transmissor de áudio do mesmo tamanho e um sensor de movimento que fica inativo depois
de noventa segundos sem nada se mexendo. O cara estava andando por aí com uma webcam que estava gravando no disco rígido do rádio e tinha um cartão SD adicional
de oito gigas. Para mim, é muito cedo para dizer que ele sabia disso - em outras palavras, que ele mesmo montou o equipamento. Sei que é o que Marino acha, mas não
tenho certeza."
"O cartão SD veio com o rádio ou foi anexado depois?", indago.
"Anexado depois. Em outras palavras, é muito espaço de armazenamento. O que me deixa curioso é se esses arquivos eram periodicamente baixados em outro lugar, como
um PC, por exemplo. Se a gente conseguir pegar esse material, talvez descubra do que se trata."
Lucy está dizendo que os arquivos de vídeo que examinou até então não dizem muita coisa. Ela tem razões para suspeitar que a memória está ligada a um PC, talvez
mais de um, mas não descobriu nada que informe onde o sujeito morava ou quem é.
"O que está armazenado no disco rígido e no cartão SD remonta só até 5 de fevereiro, sexta-feira passada", continua ela. "Não sei se isso significa que a vigilância
acabou de começar ou, o que é mais provável, que os arquivos de vídeo são grandes e ocupam muito espaço no disco rígido. Eles provavelmente são baixados em outro
lugar e o que está no disco rígido e no cartão SD foi gravado por cima. Então, provavelmente temos só as gravações mais recentes, o que não significa que não existam
outras."
"Então esses vídeos provavelmente foram baixados de forma remota."
"É o que eu faria se estivesse espionando", diz Lucy. "Me conectaria remotamente com a webcam e baixaria o que quisesse."
"E a vigilância em tempo real?", pergunto.
"Se ele estivesse sendo espionado, quem estivesse fazendo isso poderia se conectar com a webcam e vigiar o sujeito enquanto as coisas aconteciam."
"Para perseguir o cara, para ir atrás dele?"
"Seria um motivo lógico. Ou para colher informações, para espionar. Como algumas pessoas fazem quando desconfiam que estão sendo enganadas. Tudo o que você imaginar
é possível."
"Então é possível que ele tenha gravado a própria morte sem querer." Sinto um lampejo de esperança e ao mesmo tempo esse pensamento me deixa profundamente perturbada.
"Estou dizendo 'sem querer' porque não sabemos com o que estamos lidando. Por exemplo, não sabemos se ele gravou intencionalmente a própria morte, se ele é um suicida,
e não vou descartar nada ainda."
"Ele não é um suicida", diz Marino.
"A essa altura, não podemos descartar nada", repito.
"Como um terrorista suicida", diz Lucy. "Como Columbine e Fort Hood. Talvez ele fosse matar o maior número de pessoas que conseguisse em Norton's Woods e depois
se matar, mas alguma coisa aconteceu e ele não teve chance."
"Não sabemos com que estamos lidando", torno a dizer.
"A Glock tinha dezessete rodadas no pente e uma na câmara", menciona Lucy. "Muita potência de fogo. Dava com certeza para arruinar o casamento de alguém. Precisamos
saber quem se casou e quem compareceu."
"A maioria dessas pessoas tem pentes extra", retruco. Sei tudo a respeito do tiroteio em Fort Hood, no Instituto Politécnico da Virginia e em muitos outros locais,
onde atacantes abrem fogo sem necessariamente se preocupar com quem matam. "Em geral, essas pessoas têm muita munição e armas adicionais, já que estão planejando
um assassinato em massa. Mas concordo com você. A Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos é um local conhecido e deveríamos descobrir quem casou lá ontem
e quem foram os convidados."
"Espero que você seja sócia", diz Marino. "Talvez tenha um contato para conseguir uma lista de sócios e a programação de eventos."
"Não sou sócia."
"Você está brincando."
Não menciono que não ganhei um Nobel, nem um Pulitzer e não sou ph.D., só tenho um diploma de medicina e outro de direito, e isso não importa. Eu poderia lembrá-lo
de que, de qualquer forma, a Academia talvez não seja relevante, porque não sócios podem alugar o prédio. Basta ter contatos e dinheiro. Mas não estou a fim de dar
explicações detalhadas a Marino. Ele não deveria ter telefonado para Briggs.
"Tenho uma boa e uma não tão boa notícia sobre a gravação." Lucy estende a mão para o encosto do assento e me entrega seu iPad. "A boa notícia, como já indiquei,
é que não parece que alguma coisa tenha sido deletada, pelo menos não recentemente. O que poderia ser um argumento a favor de que era ele que estava espionando.
Se alguém tinha o sujeito sob vigilância e tem alguma coisa a ver com a morte dele, essa pessoa provavelmente teria se conectado ao endereço na rede e apagado o
disco rígido e o SD antes que outras pessoas vissem o material."
"Ou que tal tirar o maldito rádio e os malditos fones de ouvido da maldita cena?", pergunta Marino. "E se ele estivesse sendo seguido, caçado e quem quer que estivesse
fazendo isso tenha dado uma porrada no cara? Bom, se fosse eu, teria pegado os fones de ouvido, o rádio e continuado a andar. Então aposto que era ele quem estava
fazendo a gravação. Não acredito, nem por um minuto, que tenha sido outra pessoa. Aposto que esse cara estava envolvido em alguma coisa, e qualquer que fosse o motivo
para o equipamento de vigilância, ele era o único que tinha conhecimento disso. A merda é que não existe nenhuma gravação do perpetrador, ou de quem quer que tenha
atacado o sujeito, o que é significativo. Se ele encontrou alguém enquanto estava passeando com o cachorro, por que os fones de ouvido não registraram?"
"Os fones de ouvido não registraram porque ele não viu a pessoa", responde Lucy. "Ele não estava olhando para quem quer que tenha sido."
"Supondo que tenha havido uma pessoa que de alguma forma causou a morte dele", lembro a ambos.
"Certo", diz ela. "Os fones de ouvido captam o que quer que o portador esteja vendo. A câmera no alto da cabeça, apontando direto para a frente, funciona como um
terceiro olho."
"Então quem quer que tenha atacado o cara veio por trás", declara Marino à guisa de conclusão. "E aconteceu tão rápido que a vítima nem deu meia-volta. Ou isso,
ou foi um franco-atirador. Talvez ele tenha sido atingido por alguma coisa à distância. Tipo um dardo com veneno. Não existem venenos que causam hemorragia? Pode
parecer absurdo, mas essas merdas acontecem. Lembra o espião da KGB que foi espetado com um guarda-chuva com ricina na ponta? Ele estava esperando em um ponto de
ônibus e ninguém viu nada."
"Foi um dissidente búlgaro que trabalhava para a BBC e não é certeza de que foi um guarda-chuva", digo.
"De qualquer forma, a ricina não mata instantaneamente", diz Lucy. "A maioria dos venenos não faz isso. Nem mesmo gás cianídrico. Não acho que ele tenha sido envenenado."
"Isso não está ajudando em nada", retruco.
"Só estou usando minha experiência policial e minhas habilidades dedutivas", diz Marino. "Não é à toa que me chamam de Sherlock." Ele dá um tapinha em seu boné de
beisebol com o grosso dedo indicador.
"Ninguém te chama de Sherlock", vocifera Lucy do banco de trás.
"Isso não está ajudando", repito, contemplando a silhueta avantajada de Marino enquanto dirige, as imensas mãos ao volante, que roça sua pança mesmo quando ele está
no que considera sua forma de combate.
"Não é você que está sempre me dizendo para pensar de forma criativa?" A atitude defensiva endurece seu tom de voz.
"Acho que isso não está ajudando. Unir pontos que podem ser errados é precipitado, e você sabe disso", digo-lhe.
Marino sempre teve tendência a tirar conclusões precipitadas, mas isso piorou desde que aceitou o trabalho em Cambridge e foi trabalhar outra vez para mim. Responsabilizo
por isso a presença militar em nossas vidas, tão constante quanto as aeronaves pesadas voando baixo sobre Dover. De forma mais direta, responsabilizo Briggs. Marino
é ridiculamente fascinado por esse poderoso patologista forense, que também é general do Exército. Minha ligação com os militares nunca teve muita importância para
ele, ou sequer foi reconhecida, nem quando fazia parte de meu passado, nem quando fui reconvocada com status especial depois do Onze de Setembro. Marino sempre ignorou
minhas afiliações ao governo, como se não existissem.
Ele olha direto para a frente e os faróis de um carro que se aproxima iluminam seu rosto, marcado pelo descontentamento e por certa falta de compreensão que fazem
parte de quem ele é. Eu poderia sentir pena dele devido à afeição que não posso negar, mas não agora. Não nestas circunstâncias. Não vou deixar transparecer que
estou aborrecida.
"O que mais você compartilhou com Briggs - além das suas opiniões?", pergunto a Marino.
Quando ele não responde, Lucy o faz. "Briggs viu a mesma coisa que você está prestes a ver", diz ela. "Não foi ideia minha e não fui eu que mandei os e-mails, só
para que fique claro."
"Não mandou que e-mails?" Mas sei exatamente quais e minha incredulidade cresce. Marino enviou provas a Briggs. O caso é meu e Briggs recebeu informação primeiro.
"Ele queria saber", explica Marino, como se isso fosse motivo suficiente. "O que eu ia dizer a ele?"
"Você não devia ter dito nada. Passou por cima de mim. O caso não é dele", respondo.
"Bom, é, sim", diz Marino. "Ele foi designado pelo médico-chefe, o que significa que foi praticamente contratado pelo presidente, então eu diria que isso quer dizer
que ele é superior a todos nesta van."
"O general Briggs não é o legista-chefe de Massachusetts e você não trabalha para ele. Você trabalha para mim." Sou cuidadosa ao dizer isso. Tento parecer razoável
e calma como quando um advogado hostil está tentando me desarmar no banco das testemunhas, como quando Marino está prestes a irromper em um espetáculo inconveniente
de xingamentos em alto e bom som e portas batidas. "O CFC tem jurisdição mista, pode aceitar casos federais em certas situações, e entendo que isso gere confusão.
Somos uma iniciativa conjunta entre os governos estadual e federal, o MIT e Harvard. Compreendo que seja um conceito inédito e complicado, e é por isso que você
devia ter me deixado tratar disso em vez de passar por cima de mim." Tento parecer natural e prática. "O problema de envolver prematuramente o general Briggs é que
as coisas podem adquirir vida própria. Mas o que está feito está feito."
"O que você quer dizer com 'o que está feito'?" Marino parece menos seguro de si. Detecto um tom ansioso e não vou ajudá-lo. Ele precisa pensar a respeito do que
foi feito, porque a culpa é única e exclusivamente dele.
"Qual é a notícia não tão boa?", giro e pergunto a Lucy.
"Dê uma olhada", diz ela. "São as três últimas gravações, inclusive um minuto quando os fones de ouvido foram manuseados pelos paramédicos, pelos policiais e por
mim, quando comecei a examinar o material no laboratório hoje de manhã."
A tela do iPad brilha, viva e colorida, no escuro; toco o ícone do primeiro arquivo de vídeo que Lucy selecionou e começa a reprodução. Vejo o que o morto estava
vendo ontem às 15h04, um galgo preto e branco enroscado em um sofá azul em uma sala de estar com assoalho de pinho e um tapete azul e vermelho.
A câmera se move conforme o homem se desloca, porque ele está usando os fones de ouvido, que estão gravando: uma mesinha de centro coberta de livros e papéis ordenadamente
empilhados e o que parece um desenho de arquitetura ou engenharia em papel vegetal com um lápis em cima; uma janela com venezianas de madeira fechadas; uma escrivaninha
com dois monitores grandes de tela plana, dois MacBooks prateados, um celular conectado a um carregador, possivelmente um iPhone, e um cachimbo de vidro âmbar em
um cinzeiro; um abajur de pé com quebra-luz verde; uma cama de cachorro e brinquedos espalhados. Tenho um vislumbre de uma porta que possui uma fechadura com tranca
e outra deslizante, e na parede há fotografias e pôsteres emoldurados que passam rápido demais para que eu perceba os detalhes. Vou examiná-las mais tarde.
Até aqui não observo nada que me diga quem é o homem ou onde mora, mas fico com a impressão de um apartamento pequeno, ou talvez a casa de alguém que gosta de animais,
tem situação financeira confortável e preocupa-se com segurança e privacidade. O sujeito, presumindo-se que esses sejam sua casa e seu cachorro, é altamente desenvolvido
em termos intelectuais e técnicos, é criativo e organizado, provavelmente fuma maconha e escolheu como animal de estimação um companheiro necessitado, não um troféu,
mas um ser que sofreu maus-tratos e talvez não consiga se defender sozinho. Fico aflita pelo cão e preocupada com o que lhe aconteceu.
É lógico que os paramédicos e a polícia não deixaram um galgo indefeso em Norton's Woods ontem, perdido e abandonado ao tempo de New England. Benton me contou que
estava fazendo onze graus negativos esta manhã em Cambridge e ia nevar antes que a noite caísse. Talvez o cachorro esteja no quartel dos bombeiros, bem alimentado
e cuidado durante todo o dia. Talvez o detetive Law ou algum outro policial tenha levado o animal para casa. Também é possível que ninguém tenha percebido que o
cão pertencia ao homem que morreu. Meu Deus, isso seria horrível.
"O que aconteceu com o galgo?", preciso perguntar.
"Não faço ideia", diz Marino, para minha tristeza. "Ninguém sabia dele até esta manhã quando Lucy e eu vimos o que você está vendo. Os paramédicos não se lembram
de ter visto um galgo correndo solto, não que tenham procurado, mas o portão que conduz a Norton's Woods estava aberto quando eles chegaram lá. Como você provavelmente
sabe, o portão nunca é trancado e fica escancarado boa parte do tempo."
"Ele não vai sobreviver no frio intenso. Como é que as pessoas não perceberam o pobrezinho fora da guia e correndo solto? Porque não consigo imaginar que ele não
tenha corrido pelo parque ao menos por alguns minutos antes de sair pelo portão aberto. O bom senso diria que, quando o dono caiu, o cachorro não fugiu de repente
do bosque para a rua."
"Muita gente tira o cachorro da guia e deixa o animal correr solto em parques como o Norton's Woods", diz Lucy. "Eu faço isso com Jet Ranger."
Jet Ranger é um buldogue velho que não chega a correr exatamente.
"Então talvez ninguém tenha percebido porque aquilo não pareceu fora do comum", acrescenta ela.
"Além disso, acho que estava todo mundo preocupado com um cara caindo morto", Marino anuncia o óbvio.
Vejo residências militares em uma rua mal iluminada, aeronaves resplandecentes e grandes como planetas na escuridão enevoada. Não consigo entender o que estão me
dizendo. Estou surpresa que o galgo não tenha continuado perto do dono. Talvez o cão tenha entrado em pânico ou exista outro motivo para que ninguém tenha reparado
nele.
"O cachorro deve aparecer", continua Marino. "Em um local assim, não vão de jeito nenhum ignorar um galgo vagando sozinho. Meu palpite é que ele está com alguém
da vizinhança ou um estudante. A não ser que o cara tenha sido morto e o assassino tenha levado o cachorro."
"Por quê?", surpreendo-me.
"Como você costuma dizer, precisamos manter a mente aberta", responde ele. "Como podemos saber se quem fez isso não estava observando nas proximidades? E então,
em um momento oportuno, escapou com o cachorro, agindo como se fosse o dono."
"Mas por quê?"
"Podia ser uma prova que levasse ao assassino por algum motivo", sugere ele. "Talvez levasse a uma identificação. Um jogo. Uma brincadeira. Uma reação. Uma lembrança.
Como vou saber? Mas você vai perceber pelos vídeos que, a certa altura, a guia é tirada dele e adivinhe... Ainda não apareceu. Não chegou com os fones de ouvido
nem com o corpo."
O nome do cachorro é Sock. Na tela do iPad, o homem está andando e estalando a língua, dizendo ao cachorro que é hora de sair. "Vamos, Sock", persuade ele em uma
agradável voz de barítono. "Vamos lá, seu preguiçoso, é hora de dar um passeio e fazer cocô." Detecto um leve sotaque, possivelmente britânico ou australiano. Poderia
ser sul-africano, o que seria estranho, uma estranha coincidência, e preciso tirar a África do Sul da cabeça. Concentre-se no que está diante de você, digo a mim
mesma enquanto Sock salta do sofá e percebo que está sem coleira. Sock - um macho, presumo, com base no nome - é magro e tem as costelas ligeiramente à mostra, como
é típico dos galgos, é adulto, provavelmente velho, e uma de suas orelhas é imperfeita, como se já tivesse sido rasgada. Um resgate das pistas de corrida, com certeza,
e me pergunto se o animal tem um microchip. Se for o caso e conseguirmos encontrá-lo, podemos descobrir de onde veio e talvez quem o adotou.
Um par de mãos entra na tela enquanto o sujeito se curva para colocar uma coleira vermelha em torno do pescoço longo e afilado de Sock e reparo no relógio prateado
com taquímetro na moldura; capto um lampejo dourado, um anel de sinete, possivelmente de formatura. Se tiver chegado com o corpo, pode ser útil, porque talvez contenha
alguma gravação. As mãos são delicadas, com dedos finos e pele morena clara, e vislumbro um casaco verde-escuro, calça larga de brim preto e a ponta desgastada dos
tênis de trilha marrons.
A câmera focaliza a parede acima do sofá, os painéis castanhos tortuosos e a parte inferior da moldura de metal de uma fotografia, em seguida surge um pôster ou
uma gravura, quando o homem se levanta e vejo de perto a reprodução de um desenho familiar. Reconheço o esboço de Da Vinci, do século XVI, de um dispositivo com
asas que batem, uma máquina voadora, e recuo alguns anos - quando foi exatamente? No verão anterior ao Onze de Setembro. Levei Lucy a uma exposição na galeria Courtauld,
em Londres, "Leonardo, o inventor", e passamos muitas horas extasiadas, ouvindo palestras de alguns dos mais notáveis cientistas do mundo enquanto examinávamos os
desenhos conceituais de Da Vinci da água, da terra e de suas máquinas de guerra: o parafuso aéreo, o equipamento de mergulho, o paraquedas, o arco e flecha gigante,
o carro autopropelido e o cavaleiro mecânico.
O grande gênio renascentista acreditava que arte é ciência e ciência é arte, e que a solução para todos os problemas pode ser encontrada na natureza se a pessoa
for meticulosa e observadora, se buscar fielmente a verdade. Tentei ensinar essas lições à minha sobrinha durante a maior parte de sua vida. Disse-lhe várias vezes
que somos instruídos por aquilo que está ao nosso redor se formos humildes, calmos e corajosos. O homem que estou vendo no pequeno aparelho que seguro nas mãos possui
as respostas de que preciso. Fale comigo. Conte. Quem é você e o que aconteceu?
Ele caminha em direção a uma porta trancada a chave e uma trava deslizante puxada, então a perspectiva muda de forma abrupta, o ângulo da câmera se altera e me pergunto
se ele ajustou a posição dos fones de ouvido. Talvez não cobrissem as orelhas por inteiro, e agora ele vai ligar a música e sair. Passa por alguma coisa mecânica
de aspecto rudimentar, como uma escultura grotesca feita de restos de metal. Pauso a imagem, mas não consigo enxergar direito o que é e decido que, quando puder
me dar o luxo de perder algum tempo, vou reprisar os vídeos tantas vezes quanto quiser e estudar com cuidado cada detalhe; ou, se necessário, pedir a Lucy que amplie
as imagens. Mas, neste momento, preciso acompanhar o homem e seu cão à propriedade coberta de árvores, que não dista nem um quarteirão da minha casa. Preciso ver
o que aconteceu. Daqui a alguns minutos, ele vai morrer. Mostre e vou entender. Vou descobrir a verdade. Deixe-me cuidar de você.
O homem e o cachorro descem quatro lances de degraus em uma escada mal iluminada e passos leves e rápidos soam de encontro à madeira exposta; os dois saem em uma
rua barulhenta, movimentada. O sol está baixo e os trechos de neve apresentam uma crosta de sujeira preta no topo, o que me faz recordar biscoitos Oreo esmagados;
sempre que o homem olha para baixo, vejo paralelepípedos molhados e asfalto, além da areia e do sal oriundos da remoção da neve. Os carros e pessoas deslocam-se
em movimentos espasmódicos e balançam quando ele vira a cabeça, colhendo informações enquanto caminha; a música toca ao fundo, Annie Lennox no rádio via satélite,
e ouço somente o que pode ser escutado fora dos fones de ouvido, o que é captado pelo microfone inserido no topo da faixa que lhe cinge a cabeça. O volume da música
é alto, o que nunca é bom, pois não se pode ouvir alguém que se aproxime por trás. Se está preocupado com sua segurança, preocupado ao ponto de usar duas trancas
na porta do apartamento e portar uma arma, por que não está preocupado em não ouvir o que se passa ao seu redor?
Mas as pessoas são imprudentes. Mesmo gente razoavelmente cautelosa faz coisas absurdas. Enviam mensagens de texto e leem e-mails ao dirigir ou operar máquinas perigosas,
até mesmo enquanto atravessam uma rua movimentada. Conversam no celular andando de bicicleta, de patins ou mesmo voando. Quantas vezes peço a Lucy para não atender
o telefone no helicóptero; não importa que tenha Bluetooth habilitado e não precise usar as mãos. Vejo o que o homem está vendo e reconheço onde ele está caminhando,
na Concord Avenue, avançando em ritmo bom com Sock, passando por prédios de apartamento de tijolos vermelhos, pelo Departamento de Polícia de Harvard e pelo toldo
vermelho-escuro do Hotel Sheraton Commander, na calçada oposta ao Cambridge Common. Ele mora perto dali, em um prédio antigo com pelo menos quatro andares.
Pergunto-me por que não leva Sock ao Common. É um parque popular para cachorros, mas ele e o galgo passam por estátuas e canhões, postes e carvalhos desfolhados,
bancos e carros estacionados diante dos controles que demarcam a rua. Um labrador amarelo persegue um esquilo gordo e Anne Lennox canta "No more I-love-yous... I
used to have demons in my room at night...". Sou os olhos e ouvidos do homem no momento em que os fones de ouvido estão gravando e não tenho razões para suspeitar
que ele tenha conhecimento da câmera e do microfone escondidos ou sequer tenha em mente uma coisa como essa.
Não fico com a impressão de que ele tem um plano obscuro ou está espionando enquanto passeia com o cachorro. Exceto pelo fato de ter uma pistola Glock semiautomática
e dezoito rodadas de munição nove milímetros sob o casaco verde. Por quê? Talvez fosse um hábito, uma rotina, andar por aí armado. Existem pessoas assim. Que não
pensam duas vezes a respeito. Mas por que ele raspou o número de série da Glock? Ou alguma outra pessoa o fez? Passa por minha mente que os dispositivos de gravação
ocultos embutidos em seus fones de ouvido podem ser um experimento ou um projeto de pesquisa. Cambridge e seus arredores são seguramente a meca das inovações tecnológicas,
um dos motivos pelos quais o Departamento de Defesa, o estado de Massachusetts, Harvard e o MIT concordaram em fundar o CFC na margem norte do rio Charles, em um
prédio de biotecnologia na Memorial Drive. Talvez o homem fosse um estudante de pós-graduação. Talvez fosse um cientista da computação ou engenheiro. Presto atenção
ao que surge na tela do iPad, imagens trêmulas do condomínio Mather Court, um playground, a Garden Street e as lápides inclinadas e desgastadas do Old Burying Ground.
Na Harvard Square, sua atenção se fixa na banca de jornal da Crimson Corner, e ele parece pensar em seguir nessa direção, talvez para comprar um jornal da imensa
seleção que Benton e eu adoramos. Este é nosso bairro, onde zanzamos em busca de café e comida étnica, jornais e livros, terminando com quentinhas e braçadas de
coisas maravilhosas para ler que empilhamos em cima da cama nos fins de semana e feriados em que estou em casa. O New York Times e o Los Angeles Times, o Chicago
Tribune e o Wall Street Journal; para quem não se importa com notícias de um ou dois dias atrás, há os grossos jornais de Londres, Berlim e Paris. Às vezes encontramos
La Nazione e L'espresso, e leio em voz alta a respeito de Florença e Roma, examinamos anúncios de villas para alugar e fantasiamos viver como os moradores locais,
explorar ruínas e museus, o campo italiano e a costa amalfitana.
O homem para na calçada lotada e parece mudar de ideia a respeito de alguma coisa. Ele e Sock trotam até o outro lado da rua, na Massachusetts Avenue agora, e sei
para onde estão indo, ou penso que sei. Eles viram à esquerda na Quincy Street; estão andando mais rápido, e o homem traz um saco plástico na mão como se Sock não
fosse aguentar por mais tempo. Passam pela moderna Biblioteca Lamont e pela restauração georgiana em tijolos do Clube da Faculdade de Harvard e do Museu Fogg, pela
igreja gótica, em pedra, da Nova Jerusalém, então dobram à direita na Kirkland Avenue. Somos nós três. Estou com eles, cortando até a Irving, dobrando à esquerda,
a minutos do Norton's Woods, a minutos da minha casa, ouvindo Five for Fighting no rádio via satélite... "even heroes have the right to bleed..."
Sinto uma sensação de urgência crescente a cada passo, à medida que nos aproximamos da morte do homem e do sumiço do cachorro naquele frio terrível, e quero desesperadamente
que isso não aconteça. Caminho com eles como se os conduzisse para esse desfecho porque sei o que há adiante e eles não; quero detê-los e fazê-los voltar. Então
surge a casa à nossa esquerda, de três andares, branca com venezianas pretas e telhado de ardósia, em estilo federal, construída em 1824 por um transcendentalista
que conhecia Emerson, Thoreau e o Norton da Norton's Anthology e de Norton's Woods. No interior da casa, minha e de Benton, há objetos em madeira e molduras originais,
tetos de gesso com traves expostas e, acima dos patamares da escada principal, janelas de vitrais franceses magníficos com cenas da vida selvagem que se iluminam
como joias ao sol. Há um Porsche 911 na estreita entrada da garagem em tijolos, com gás escapando dos canos de descarga cromados.
Benton está dando ré em seu carro esporte e as lanternas traseiras brilham como olhos flamejantes quando ele freia por causa de um homem e seu cachorro; o homem
tem os fones de ouvido voltados na direção dele, quem sabe admirando o Porsche, um Turbo Cabriolet preto com tração nas quatro rodas, que Benton conserva sempre
lustroso. Pergunto-me se ele vai se lembrar do jovem vestindo um casaco verde volumoso e seu galgo preto e branco, ou se nem chegou a registrar a ocasião, mas conheço
Benton. Ele vai ficar obcecado, talvez tão obcecado pelo homem e seu cão quanto estou, e vasculho minha memória atrás do que fez ontem. No final da tarde, passou
em seu consultório no McLean porque havia se esquecido de levar para casa a pasta contendo o caso do paciente que ia avaliar hoje. Alguns graus de separação, um
jovem e seu cão velho, que estão prestes a se separar para sempre, e meu marido sozinho no carro dirigindo-se ao hospital para pegar uma coisa que esqueceu. Vejo
tudo isso se desdobrar como se eu fosse Deus, e, se é assim que é ser Deus, deve ser um horror. Sei o que vai acontecer e não posso fazer nada para impedir.
3
Percebo que a van parou e Marino e Lucy estão saltando. Estacionamos diante do Terminal Aéreo Civil John B. Wallace e permaneço no lugar. Continuo a ver o que está
passando na tela do iPad enquanto Lucy e Marino começam a descarregar meus pertences.
O ar frio entra pelo porta-malas aberto e me intrigo com a decisão do homem de levar Sock para passear em Norton's Woods, na Mid-Cambridge, quase Somerville. Por
que ali? Por que não mais perto de onde morava? Ele ia encontrar alguém? Um portão preto de ferro parcialmente aberto preenche a tela; a mão dele o abre mais e percebo
que colocou luvas pretas grossas, que parecem de motociclista. Suas mãos estão frias ou há outro motivo? Talvez ele tenha um plano sinistro. Talvez pretenda usar
a arma. Imagino-me puxando para trás o cão de uma pistola nove milímetros e apertando o gatilho vestindo luvas volumosas e me parece ilógico.
Ouço-o sacudir o saco plástico para abri-lo, então o vejo quando ele olha para baixo e vislumbro mais alguma coisa, o que parece ser uma caixinha de madeira. Uma
caixa de fumo, penso. Algumas são feitas de cedro e têm até mesmo um minúsculo higrômetro dentro, como uma caixa de charutos, e recordo o cachimbo de vidro âmbar
em cima da escrivaninha no apartamento. Talvez ele goste de passear com o cachorro em Norton's Woods por ser afastado e em geral muito reservado, e de pouco interesse
para a polícia, a menos que haja algum evento VIP ou de alto nível que exija segurança. Talvez goste de ir até lá para fumar maconha. Ele assovia para Sock, curva-se,
retira a coleira do cão e o ouço dizer: "Ei, rapaz, lembra do nosso lugar? Me mostre". Então diz mais alguma coisa, que soa abafada. Mal consigo entender. "E para
você", ele parece dizer, seguido de "Quer mandar um...?" Ou "Manda um...?". Depois de reproduzir duas vezes, continuo sem entender o que ele diz, e talvez seja por
ele estar curvado, falando pra dentro do colarinho do casaco.
Com quem está conversando? Não vejo ninguém por perto, somente o cachorro e as mãos enluvadas, então o ângulo da câmera muda quando o homem endireita o corpo e vejo
o parque outra vez, uma paisagem de árvores e bancos, e, a um lado, um caminho de pedras próximo à construção com o telhado verde de metal. Vislumbro pessoas e concluo,
pela maneira como estão agasalhadas, que não são os convidados do casamento, só estão passeando pelo parque, assim como o homem. Sock trota em direção aos arbustos
e o dono se embrenha ainda mais na agradável propriedade arborizada, com olmos antigos e bancos verdes.
Ele assovia e diz: "Ei, rapaz, me segue".
Em áreas sombreadas ao redor de grupos compactos de rododendros, a neve está alta e remexida, com folhas mortas, pedras e galhos quebrados no meio, o que me faz
morbidamente lembrar sepulturas clandestinas, pele esfolada e ossos envelhecidos, roídos e espalhados. Ele está explorando, olhando ao redor, e a câmera oculta para
no telhado verde de metal em três níveis da construção em vidro e madeira que consigo enxergar da varanda ensolarada de casa. Quando o homem gira a cabeça, vejo
no primeiro andar uma porta que conduz ao exterior, e a câmera torna a parar em uma mulher de cabelo grisalho do lado de fora, diante da porta. Ela veste um terninho
e um longo casaco de couro marrom, e está falando ao telefone.
O homem assovia e produz um som rascante à medida que caminha sobre a trilha de cascalho em direção a Sock, para recolher o que o cão deixou... "And this emptiness
fills my heart...", canta Peter Gabriel. Penso no jovem soldado de mesmo nome que morreu queimado em seu Humvee e sinto seu cheiro, visto que os odores fétidos ainda
estão presos no fundo do meu nariz. Penso em sua mãe, em sua tristeza e raiva ao telefone quando me ligou de manhã. Patologistas forenses nem sempre recebem agradecimentos
e, por vezes, as pessoas agem como se eu fosse o motivo de seus entes queridos estarem mortos. Não leve para o lado pessoal, tento lembrar.
As mãos enluvadas tornam a agitar o saco plástico dobrado, e então alguma coisa acontece. A mão enluvada do homem voa até a cabeça e ouço o baque dela atingindo
os fones de ouvido como se golpeasse alguma coisa, então ele exclama: "O que...? Ei...!", como se estivesse sem fôlego e assustado. Ou talvez seja um grito de dor.
Mas não vejo nada nem ninguém, só o bosque e figuras distantes. Não vejo o cachorro e não vejo o sujeito. Volto a gravação e reproduzo-a novamente. A mão preta enluvada
invade a tela de repente e ele deixa escapar: "O que...?" e depois "Ei...!". Concluo que ele parece atordoado e angustiado, como se alguma coisa o tivesse pego de
surpresa.
Reproduzo a gravação mais uma vez, tentando ouvir alguma outra coisa, e o que detecto em seu tom é protesto e talvez medo e, sim, dor, como se alguém tivesse lhe
dado uma cotovelada ou se chocado contra ele com força em uma calçada movimentada. Então o topo das árvores nuas precipita-se para o alto e gira na tela. Lascas
de ardósia aproximam-se quando ele cai com um baque; ou está deitado de costas ou os fones de ouvido se soltaram. A tela está parada em uma imagem contendo galhos
nus e céu cinzento, e então a borda de um longo casaco preto passa fazendo barulho e ondulando quando alguém caminha com rapidez. Ouço outra pancada alta e a imagem
torna a mudar. Galhos nus e céu cinzento, mas galhos diferentes mostrando-se através das ripas de um banco verde. Acontece muito rápido, incrivelmente rápido, em
seguida as vozes e os sons das pessoas ficam mais altos.
"Alguém ligue para a emergência!"
"Acho que ele não está respirando."
"Estou sem telefone. Liguem para a emergência!"
"Alô? Tem... hã, sim, em Cambridge. É, Massachusetts. Meus Deus! Depressa, depressa! Eles me colocaram em espera. Meu Deus, depressa! Não acredito nisso. É, é, um
homem, ele desmaiou e parece não estar respirando... Em Norton's Woods, na esquina da Irving com a Bryant... Sim, alguém está tentando ressuscitação. Vou ficar esperando...
estou esperando. Sim, quer dizer, não... Ela quer saber se ele continua sem respirar. Não, não, ele não está respirando! Não está se mexendo. Ele não está respirando!...
Eu realmente não vi, só olhei e percebi que ele estava no chão, de repente ele estava no chão...
Aperto pause e salto da van; faz frio e venta muito quando entro depressa no terminal. É pequeno, com banheiros, uma área de espera e uma televisão velha ligada.
Por um momento, assisto à Fox News e adianto o vídeo no iPad enquanto Lucy se debruça na recepção e paga a taxa aeroportuária com cartão de crédito. Continuo a contemplar
as imagens dos galhos desfolhados que aparecem por entre as ripas da madeira pintada de verde, certa, agora, de que os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco,
a câmera voltada direto para cima enquanto o rádio toca... "Dark lady laughed and danced..." A música está mais alta porque os fones não estão pressionados contra
a cabeça do homem e me parece absurdamente incongruente estar ouvindo Cher.
As vozes fora da câmera soam urgentes e agitadas; ouço o som de pés e o ruído distante de uma sirene enquanto minha sobrinha conversa com um homem mais velho, um
piloto de caça aposentado que agora trabalha meio período em Dover como operador fixo da base, ele alegra-se em contar.
"No Vietnã? Então devia ser o quê, um F-4?" Lucy conversa com ele.
"Ah, isso, e o Tomcat. Foi o último que pilotei. Mas os Phantoms ainda ficaram por aí, sabe, até a década de 1980. Você constrói essas máquinas direito e depois
não acredita no quanto elas duram. Olha há quanto tempo os C-5 estão aí. E ainda existem alguns Phantoms em Israel, acho. Talvez no Irã. Hoje, os que sobraram nos
Estados Unidos são usados para voos não tripulados, como aviões teleguiados. Um avião assim bom. Você já viu algum?"
"Em Belle Chasse, Louisiana, na Estação Aeronaval. Levei meu helicóptero até lá para ajudar no Katrina."
"Eles têm feito experiências no combate aos furacões usando os Phantoms para voar dentro do olho." O homem balança a cabeça.
A tela do iPad fica preta. Os fones de ouvido não estavam mais gravando, e estou convencida de que quando a vítima caiu no chão devem ter acabado a alguma distância
embaixo do banco. O sensor de movimento não estava detectando atividade suficiente para impedi-lo de ficar inativo, o que é curioso. Como exatamente os fones de
ouvido foram arremessados e acabaram onde acabaram? Talvez alguém os tenha chutado para fora do caminho. Pode ter sido acidental, provocado por uma pessoa tentando
ajudar, ou pode ter sido premeditado pela pessoa que estava gravando o sujeito em segredo, que o estava espreitando. Penso na borda do casaco preto ondulando de
passagem e avanço de forma intermitente, procurando as próximas imagens, tentando ouvir sons, mas não há nada até as 16h37, quando as árvores balançam loucamente
e o céu está escurecendo; mãos expostas agigantam-se e papel estala quando os fones de ouvidos são colocados dentro de um saco marrom; ouço uma voz dizer: "... Colts
o tempo todo". E outra voz: "Os Saints vão levar. Eles têm...". Depois a escuridão turva, vozes abafadas e mais nada.
Ao encontrar o controle remoto da TV no braço de um sofá no terminal, troco para a CNN, ouço o noticiário e leio as legendas na parte inferior da tela, mas não há
uma palavra a respeito do homem nos vídeos. Penso sobre Sock outra vez. Onde está o cachorro? É inaceitável que ninguém saiba. Fito Marino quando entra na área de
espera, fingindo não me ver por estar amuado, ou quem sabe arrependido pelo que fez e envergonhado. Recuso-me a lhe perguntar alguma coisa e tenho a sensação de
que o cão desaparecido é de alguma forma culpa dele, de que tudo é culpa de Marino. Não quero perdoá-lo por ter enviado os vídeos por e-mail para Briggs, por ter
conversado com ele primeiro. Se, para variar, não o perder, talvez aprenda a lição, mas o problema é que nunca consigo me convencer a manter uma posição contra ele,
contra qualquer pessoa de quem goste. É a culpa católica. Já estou amolecendo em relação a ele, minha determinação está ficando mais fraca. Sinto isso acontecer
enquanto procuro canais na televisão, em busca de notícias que possam prejudicar o CFC, e ele caminha até Lucy, mantendo as costas voltadas para mim. Não quero brigar
com Marino. Não quero ferir seus sentimentos.
Afasto-me da TV, convencida, ao menos por enquanto, de que a imprensa ignora o corpo que me espera no necrotério de Cambridge. Uma coisa tão sensacional como essa
seria manchete, concluo. As mensagens estariam chegando sem parar em meu iPhone. Briggs teria sido informado a respeito e dito alguma coisa. Até mesmo Fielding teria
me alertado. Só que não tive notícia absolutamente nenhuma de Fielding a respeito de nada e tento telefonar para ele outra vez. Ele não atende o celular e não está
no escritório. É claro que não. Fielding nunca trabalha até tão tarde, pelo amor de Deus. Tento encontrá-lo em sua casa em Concord e sou novamente atendida pelo
correio de voz.
"Jack? É Kay", deixo outra mensagem. "Estamos prestes a decolar de Dover. Talvez você possa enviar uma mensagem de texto ou um e-mail me colocando a par da situação.
O detetive Law não retornou a ligação, imagino. Ainda estamos esperando pelas fotografias? E você ouviu alguma coisa sobre um cão desaparecido, um galgo? O cão da
vítima, chamado Sock, visto pela última vez em Norton's Woods." Minha voz soa ríspida. Fielding está fugindo de mim, e não é a primeira vez. Ele é mestre em desaparecimentos,
e tem de ser. Já os encenou o suficiente. "Bom, vou tentar fazer contato novamente quando aterrissar. Imagino que você vá nos encontrar no escritório, entre nove
e meia e dez. Enviei mensagens a Anne e Ollie. Garanta que eles estejam lá. Precisamos cuidar disso esta noite. Informe-se com a polícia de Cambridge sobre o cachorro.
Ele pode ter um microchip..."
Parece bobagem entrar em detalhes excessivos a respeito de Sock. Que diabos Fielding ia saber sobre o animal? Ele não ia se dar o trabalho de ir até a cena, e Marino
está certo. Alguém já deve ter ido.
O Bell 407 de Lucy é preto com vidro escuro matizado na parte traseira. Ela destranca as portas e o compartimento de bagagem enquanto o vento golpeia a rampa.
Uma biruta aponta rigidamente para o norte, como um cone de trânsito horizontal, e isso é bom e ruim. O vento vai continuar na nossa cauda, assim como a frente da
tempestade, chuvas pesadas misturadas com granizo e neve. Marino começa a carregar minha bagagem enquanto Lucy contorna o helicóptero, verificando as antenas, os
orifícios de pressão estática, as pás do rotor, os flutuadores de emergência e as garrafas de nitrogênio para inflá-los, em seguida o estabilizador da cauda em liga
de alumínio e sua caixa de marchas, a bomba hidráulica e o reservatório.
"Se alguém estava espionando, gravando o cara em segredo, e percebeu que ele estava morto, então tem alguma coisa a ver com isso", digo a Lucy, do nada. "Então não
seria de esperar que essa pessoa tivesse deletado à distância os arquivos de vídeo gravados pelo fone de ouvido, ou pelo menos se livrado deles no disco rígido e
no cartão SD? Não ia querer se certificar de que não encontrássemos nenhuma gravação e de que ficássemos sem pista nenhuma?"
"Depende." Ela agarra uma alça na fuselagem, insere a ponta da bota em um degrau embutido e sobe.
"E se fosse você que estivesse fazendo isso?", pergunto.
"Se fosse eu?" Ela abre uma tranca e um painel com revestimento leve de alumínio. "Se eu achasse que nada de significativo ou incriminador tivesse sido gravado,
não teria deletado." Usando uma pequena mas potente lanterna, ela inspeciona o motor e seus encaixes.
"Por que não?"
Antes que ela consiga responder, Marino caminha até mim e diz para ninguém em particular: "Tenho que ir ao banheiro. Se alguém mais tiver que ir, agora é a hora".
Como se fosse o comissário nos lembrando de que não há banheiro no helicóptero. Está tentando reparar o erro.
"Obrigada, estou bem", digo, e ele se afasta pela rampa escura de volta ao terminal.
"Se fosse eu, isso é o que eu faria depois que ele estivesse morto", continua Lucy, enquanto a luz forte desloca-se sobre mangueiras e tubulações, e ela se certifica
de que não há nada frouxo ou danificado. "Eu me conectaria à webcam e faria imediatamente o download dos arquivos de vídeo. Se não visse nada que me preocupasse,
não interferiria."
Ela sobe mais para verificar o rotor principal, seu mastro, seu disco oscilante, e espero até que retorne à pista de decolagem para perguntar: "Por que não?".
"Pense nisso."
Sigo Lucy ao redor do helicóptero, para que ela possa subir e verificar o outro lado. Parece quase divertida com minhas perguntas, como se fossem óbvias.
"Se fossem deletados depois da morte dele, então outra pessoa teria feito isso, certo?", Lucy diz, verificando por baixo da coberta do motor, a luz esquadrinhando
atentamente.
Então ela torna a descer.
"É claro que ele não poderia fazer isso depois de morto." Espero para responder porque ela poderia se machucar ao escalar o helicóptero, especialmente estando lá
em cima, perto do mastro do rotor. Não quero que se distraia.
"Então, é por isso que você deixaria os vídeos se estivesse espionando o sujeito e soubesse que ele estava morto ou fosse a responsável pela morte dele?"
"Se eu estivesse espionando, se estivesse seguindo o homem para matar, sim, eu deixaria as últimas gravações de vídeo, e também não tiraria os fones de ouvido da
cena." Ela torna a emitir a luz brilhante ao longo da fuselagem. "Porque se as pessoas o viram usando os fones de ouvido no parque e a caminho dele, por que teriam
desaparecido? Os fones são bem grandes e perceptíveis."
Caminhamos até o nariz do helicóptero.
"E se eu levasse os fones de ouvidos, teria que levar o rádio via satélite também, procurar dentro do bolso do casaco e tirar dali, teria que gastar um tempo e ter
todo esse trabalho depois que o cara já estava no chão, esperando que ninguém me visse. E os arquivos anteriores baixados em algum lugar, supondo que a espionagem
venha acontecendo há certo tempo? Como isso se explica se não aparecem aparelhos de gravação e encontramos gravações em um PC ou servidor em alguma parte? Você sabe
o que dizem." Ela abre um painel de acesso acima do tubo de Pitot e lança a luz lá dentro. "Para cada crime, existem dois - o ato em si, e depois o que você faz
para encobri-lo. Ser esperto para abandonar os fones de ouvido e os arquivos de vídeo, para deixar que os policiais ou pessoas como você e eu imaginem que ele estava
gravando a si mesmo, que é o que Marino acredita, mas eu duvido."
Ela reconecta a bateria. A justificativa para desconectar sempre que deixa o helicóptero por qualquer período de tempo é que se alguém conseguisse entrar na cabine
e por acaso manuseasse o acelerador e os comutadores poderia acidentalmente dar partida no motor. Mas não se a bateria estiver desconectada. Independentemente da
pressa, Lucy sempre dá uma geral antes do voo, especialmente se tiver deixado a aeronave sem assistência, mesmo que em uma base militar. Mas não escapa à minha atenção
o fato de ela estar verificando tudo mais a fundo que de costume, como se desconfiasse de alguma coisa ou estivesse apreensiva.
"Está tudo absolutamente certo?", pergunto.
"Estou me certificando disso", diz ela, e sinto mais fortemente sua distância. Percebo seus segredos.
Lucy não confia em ninguém. Nem deveria. Eu também não deveria ter confiado em certas pessoas, voltando no tempo. Pessoas que manipulam, mentem e alegam que fazem
isso por uma causa. A causa certa, uma causa piedosa ou justa. Noonie Pieste e Joanne Rule foram mortas na cama, provavelmente sufocadas com um travesseiro. Por
isso não houve resposta dos tecidos aos ferimentos. Os estupros, os cortes de machete e talhos feitos com vidro quebrado, e até mesmo as cordas que as amarravam
quando foram presas às cadeiras, tudo depois da morte. Uma causa piedosa, uma causa justa na mente dos responsáveis. Um sofrimento inconcebível, e eles se safaram.
Até hoje. Não pense nisso. Concentre-se no que está diante de você, não no passado.
Abro a porta da frente e subo, o vento soprando forte. Contornando o coletivo e o cíclico e me acomodando no assento esquerdo, aperto meu cinto de quatro pontos
enquanto ouço Marino abrir a porta atrás de mim. Ele é barulhento e grande, e sinto o helicóptero acomodar-se a seu peso quando ele sobe na parte de trás, onde sempre
se senta. Mesmo quando Lucy voa apenas com ele como passageiro, Marino não tem permissão para ir na frente, onde há controles duplos que ele pode empurrar, golpear
ou usar como encosto para o braço porque não pensa. Ele simplesmente não pensa.
Lucy entra, dá início a outra verificação pré-voo e eu a auxilio, segurando a lista, que repassamos juntas. Nunca tive desejo de pilotar as várias aeronaves que
minha sobrinha já possuiu ao longo dos anos, nem de andar em suas motocicletas ou dirigir seus carros italianos velozes, mas sou ótima copiloto, habilidosa com mapas
e aviônica. Sei colocar os rádios nas frequências necessárias, inserir informações no transponder ou no sistema de voo. Se surgisse uma emergência, eu provavelmente
conseguiria levar o helicóptero em segurança até o chão, mas não gostaria disso.
"Comutadores suspensos na posição desligado", continuo a percorrer a lista.
"Sim."
"Disjuntores em posição."
"Sim." Os dedos ágeis de Lucy tocam tudo o que ela verifica enquanto percorremos a lista plastificada.
Ela liga por um instante a bomba de reforço e gira o acelerador para voo lento.
"Livre à direita", diz, enquanto olha por sua janela lateral.
"Livre à esquerda", digo, enquanto olho para a rampa escura, para o pequeno prédio com as janelas iluminadas e um Piper Cub amarrado a uma distância segura em meio
às sombras, seu oleado balançando ao vento.
Lucy pressiona o botão de partida; a pá do rotor principal começa a girar de forma lenta, pesada, batendo cada vez mais rápido como uma pulsação, e penso no sujeito.
Penso em seu medo, no que detectei em suas últimas palavras.
"O que...? Ei...!"
O que ele sentiu? O que viu? A parte inferior de um casaco preto, a borda solta passar farfalhando. O casaco de quem? Um sobretudo de lã ou uma capa de chuva? Não
era pele. Quem estava usando o casaco longo e preto? Alguém que não parou para ajudá-lo.
"O que...? Ei...!" Um grito assustado de dor.
Repasso várias vezes a imagem na mente. O ângulo da câmera baixa de repente, depois se fixa nos galhos nus e no céu cinzento, então a borda do longo casaco preto
passa pela tela por um instante, talvez um segundo. Quem passaria por alguém precisando de socorro como se fosse um objeto inanimado, como uma pedra ou um tronco
de madeira? Que espécie de ser humano ignoraria alguém que agarra o peito e cai? Possivelmente a pessoa que provocou isso. Ou alguém que não queria se envolver por
algum motivo. Como testemunhar um acidente ou um assalto e se afastar correndo para não tomar parte na investigação. Um homem ou uma mulher? Vi sapatos? Não, só
a bainha ou a borda do casaco ondulando, depois outro som semelhante a um baque e a imagem é substituída por árvores desfolhadas distintas, aparecendo através da
parte de baixo de um banco pintado de verde. A pessoa que vestia o casaco preto longo chutou os fones de ouvido para baixo do banco para que não gravassem alguma
coisa que fez?
Preciso examinar os vídeos com mais atenção, mas não posso fazer isso agora. O iPad está atrás e não há tempo. As pás golpeiam o ar com rapidez e o gerador está
on-line. Lucy e eu colocamos nossos fones. Ela aciona mais interruptores no alto, o controle da aviônica, os instrumentos de voo e navegação. Giro o botão do sistema
de comunicação interna para a posição "tripulação", de forma que Marino não possa nos ouvir e não possamos ouvi-lo enquanto Lucy fala com o controlador de tráfego
aéreo. Os estroboscópios, o pulso e as luzes de aterrissagem noturna brilham na pista, pintando-a de branco enquanto esperamos que a torre nos libere para a decolagem.
Inserindo os dados de destino no GPS touch screen, no indicador cartográfico numérico e no sistema de voo, corrijo os altímetros. Verifico se o indicador digital
de combustível coincide com o medidor, executando a maioria das coisas pelo menos duas vezes, porque Lucy acredita em redundância.
A torre nos libera e voamos devagar até a pista; ganhamos altura rumo a nosso curso nordeste, cruzando o rio Delaware a mil e cem pés de altura. A água está escura
e encrespada pelo vento, como metal fundido fluindo em abundância. As luzes em terra piscam através das árvores como pequenas fogueiras.
4
Mudamos nossa direção, desviando rumo à Filadélfia porque a visibilidade se deteriora mais perto da costa. Aperto o botão do sistema de comunicação interna para
falar com Marino.
"Tudo bem aí atrás?" Estou mais calma agora, preocupada demais com o casaco preto longo e a exclamação assustada do homem para ficar irritada com Marino.
"É mais rápido cortar caminho por New Jersey." Ele sabe onde estamos porque há um mapa de bordo em uma tela de vídeo no compartimento do passageiro.
"Nevoeiro e chuva gelada, condições IFR em Atlantic City. E não é mais rápido", contesta Lucy. "Vamos ficar em 'tripulação' a maior parte do tempo para eu poder
me ocupar do acompanhamento de voo."
Marino é cortado da conversa novamente enquanto somos transferidos de uma torre à seguinte. O mapa secional de Washington está aberto em meu colo; insiro um novo
destino no GPS, Oxford, Connecticut, para uma eventual parada para abastecer, e monitoramos o tempo no radar, observando os sólidos blocos verdes e amarelos avançarem
sobre nós provenientes do Atlântico. Podemos acelerar, mergulhar e evitar as tempestades, diz Lucy, desde que nos mantenhamos afastados do mar e o vento continue
a nos favorecer, aumentando nossa velocidade em relação ao solo para o que, neste momento, são impressionantes duzentos e oitenta e dois quilômetros por hora.
"Como você está?" Prossigo com meu rastreamento em busca de torres de celular e outras aeronaves.
"Vou melhorar quando chegarmos aonde estamos indo. Tenho certeza de que vamos ficar bem e conseguir escapar dessa confusão." Ela aponta para a tela do radar meteorológico.
"Mas, se houver uma sombra de dúvida, vamos descer."
Ela não teria ido me buscar se achasse que poderíamos passar a noite em algum campo em um lugar qualquer. Não estou preocupada. Talvez não tenha restado espaço em
mim para me preocupar com mais nada.
"E no geral? Como você está?", pergunto, tocando o lábio. "Tenho pensado muito em você nas últimas semanas." Tento fazer Lucy falar.
"Sei o quanto é difícil se adaptar nestas circunstâncias", diz ela. "Sempre que achamos que você vai voltar, então paramos de pensar nisso."
Era a terceira vez que o pagamento da minha bolsa de estudos foi adiado por um assunto urgente. Dois helicópteros derrubados em um só dia no Iraque com vinte e três
mortos. O assassinato em massa em Fort Hood. Mais recentemente, o terremoto no Haiti. Os médicos-legistas das Forças Armadas ficaram de prontidão. Ninguém podia
ser dispensado, e Briggs não me liberava de meu programa de treinamento. Há algumas horas, tentou mais uma vez adiar minha partida, sugerindo que eu continuasse
em Dover. Como se não quisesse que eu fosse para casa.
"Pensei que íamos chegar a Dover e descobrir que você tinha outra semana, duas, um mês", acrescenta Lucy. "Mas acabou."
"Aparentemente, eles cansaram de mim."
"Vamos esperar que você não chegue em casa só para dar meia-volta e voltar."
"Já passei nas provas. Eu terminei. Tenho uma repartição para administrar."
"Alguém precisa administrar. Isso é certo."
Não quero ouvir mais comentários desagradáveis sobre Jack Fielding.
"E as coisas vão bem fora isso?", pergunto.
"A garagem está quase pronta, grande o suficiente para três carros, mesmo com a baia de lavagem. Supondo que vocês estacionem um atrás do outro." Ela inicia um relatório
da construção, fazendo-me lembrar do quanto me desliguei do que está acontecendo em minha própria casa. "O piso emborrachado foi colocado, mas o sistema de alarme
não está pronto. Eles não iam perder tempo com arrombadores, mas eu disse que era necessário. Infelizmente, uma das antigas janelas de vidro ondulado original não
sobreviveu à modernização. Então, você tem um pouco de brisa na garagem no momento. Sabia de tudo isso?"
"Benton está no comando."
"Bom, ele tem andado ocupado. Você tem a frequência de Millville? Acho que é um-dois-três-vírgula-seis-cinco."
Verifico o mapa secional, confirmo a frequência e a insiro em Comm 1. "Como você está?", tento outra vez.
Quero saber o que vou encontrar ao chegar em casa, além do morto que está me esperando na geladeira do necrotério. Lucy não vai me dizer como vai e está querendo
dizer que Benton anda ocupado. Quando diz alguma coisa assim, não é realmente o quer dizer. Ela está tensa. Vigia os instrumentos, as telas do radar e o que está
ocorrendo fora da cabine de forma obsessiva, como se esperasse entrar em um combate aéreo, ser atingida por um raio ou ter uma falha mecânica. Há alguma coisa errada
com ela, ou talvez eu só esteja irritada.
"Ele está com um caso grande", continuo. "Muito ruim."
Ambas sabemos a que estou me referindo. Johnny Donahue está em todos os noticiários. O paciente do McLean e aluno de Harvard que na semana passada confessou ter
matado um menino de seis anos com uma pistola de pregos. Benton acredita que a confissão seja falsa e os policiais e o promotor público estão descontentes com ele
por isso. As pessoas querem que a confissão seja verdadeira para não precisar pensar que alguém assim continua solto. Eu gostaria de saber como foi a avaliação de
hoje quando visualizo o Porsche preto de Benton dando ré na entrada de nossa garagem no vídeo que acabei de ver. Ele estava a caminho do McLean para pegar a pasta
do caso de Johnny Donahue quando um jovem e um galgo passaram por nossa casa. Alguns graus de separação. A teia humana conectando a todos nós, conectando a todos
na Terra.
"Vamos manter um-dois-sete-vírgula-três-cinco em Comm 2 para poder monitorar Filadélfia", diz Lucy, "mas vou tentar ficar fora da Classe B deles. Acho que conseguimos,
a menos que esse troço nos empurre com mais força a partir da costa."
Ela aponta para as formas verdes e amarelas na tela do radar meteorológico via satélite, que mostram a precipitação se aproximando, como se tentasse nos intimidar
a fim de seguirmos para noroeste, rumo ao horizonte claro do centro da Filadélfia, voando de encontro aos arranha-céus.
"Eu vou bem", ela então diz. "Quem não está é ele." Ela aponta o polegar em direção à parte de trás do helicóptero, pensando em Marino. "Dá pra ver que você está
chateada. O que ele ia fazer além de ser a pessoa de sempre?"
"Você ouviu quando ele conversou com Briggs?"
"Isso foi em Wilmington. Eu estava ocupada pagando pelo combustível."
"Ele não devia ter telefonado."
"É o mesmo que dizer ao Jet Ranger para não babar quando mostro o saco de biscoitos. É normal Marino dar com a língua nos dentes para Briggs, para se exibir. Por
que você está mais surpresa que o habitual?" Lucy pergunta como se já soubesse a resposta, como se estivesse sondando, procurando por alguma coisa.
"Talvez por isso ter causado um problema pior que o habitual." Conto-lhe que Briggs queria que o corpo fosse transportado para Dover.
Explico que o legista-chefe das Forças Armadas está retendo informações, ou ao menos desconfio que esteja escondendo de mim alguma coisa importante. Provavelmente
por causa de Marino, digo. Por causa do que ele conseguiu provocar ao passar por cima de mim.
"Acho que não é bem assim", diz Lucy enquanto seu número de cauda é chamado.
Ela pressiona o botão do rádio em seu cíclico e atende; enquanto conversa com o acompanhamento de voo, insiro a frequência seguinte. Saltamos de um espaço aéreo
a outro, as formas no radar meteorológico agora na maioria amarelas e nos perseguindo a partir do sudeste, indicando chuvas fortes que, a esta altitude, vão gerar
condições perigosas como partículas de água super-resfriada que atingem as bordas dianteiras das pás do rotor e congelam. Observo a umidade no vidro Plexiglas dianteiro
e não vejo nada, nem uma gota, enquanto me pergunto a que Lucy está se referindo. O que não é bem assim?
"Você percebeu o que havia no apartamento dele?", soa a voz dela em meu fone de ouvido e suponho que esteja se referindo ao morto e ao que vi nos vídeos.
"Você disse que não é bem assim." Insisto no primeiro ponto. "Do que está falando?"
"Não queria tocar no assunto na frente do Marino. Ele não percebeu e de qualquer forma não saberia o que é; não chamei sua atenção porque queria conversar com você
e não tenho certeza se ele deveria tomar conhecimento disso, ponto final."
"Não chamou minha atenção para quê?"
"Meu palpite é que Briggs não precisou que chamassem a atenção dele", continua Lucy. "Teve muito mais tempo para examinar os vídeos que você, e ele, ou quem quer
que tenha visto os vídeos, teria reconhecido a geringonça de metal perto da porta, que parece um réptil assustador de seis pernas, soldado com fios, peças e partes
compostas, mais ou menos do tamanho de uma máquina de lavar em cima de uma secadora. Foi captado pela câmera por um segundo quando o homem e Sock saíram a caminho
de Norton's Woods. Não pode ter passado despercebido a você, de todas as pessoas."
"Captei um vislumbre do que pensei que fosse uma escultura de metal grosseira." Obviamente, não entendi a relação que ela fez. Uma relação importante.
"É um robô, e não um robô qualquer", informa Lucy. "Um protótipo desenvolvido para as Forças Armadas, o que deveria ser um PackBot tático para as tropas no Iraque;
então outro objetivo criativo foi sugerido e fracassou notória e completamente."
Um lampejo de reconhecimento e um sentimento sinistro começam a abrir caminho entre as minhas entranhas, apertando meu peito, gerando conscientização, em seguida
uma lembrança.
"Esse modelo em particular não durou muito tempo", continua ela, e acho que sei ao que está se referindo.
MORT. Transporte de Remoção Operacional Funerária. Deus do céu.
"Nunca chegou a entrar em funcionamento e está obsoleto. Foi substituído por robôs com pernas, biologicamente inspirados, que carregam fardos pesados em terreno
difícil ou escorregadio", diz ela. "Como o quadrúpede chamado BigDog que está no YouTube. Aquela coisa consegue carregar centenas de quilos o dia inteiro nas piores
condições imagináveis, salta como um cervo e recupera o equilíbrio quando tropeça, escorrega ou leva um chute."
"MORT", vou em frente e digo. "Por que ele teria um PackBot como um MORT em seu apartamento? Não estou entendendo."
"Você viu o robô pessoalmente na época, quando começou o debate sobre ele em Capitol Hill? E você está entendendo. É disso mesmo que estou falando."
"Nunca vi um MORT pessoalmente." Vi o robô somente em demonstrações de vídeo e entrei em mais de uma discussão sobre seu uso, especialmente com Briggs. "Por que
ele teria uma coisa dessas?", torno a perguntar.
"Assustador. Como uma formiga mecânica gigante, movida a gasolina", diz ela. "Parece uma motosserra quando anda devagar com aquelas pernas curtas, desajeitadas,
com dois conjuntos de garras na frente, como Edward Mãos de Tesoura. Se visse aquilo vindo na sua direção, você ia correr como louca ou atirar uma granada nele."
"Mas no apartamento dele? Por quê?" Me lembro de demonstrações que achei horríveis e discussões acaloradas que se tornaram brigas desagradáveis com colegas, inclusive
Briggs no AFMES, no Walter Reed e no Russell Senate Office Building.
MORT. O epítome da automação equivocada que se tornou fonte de controvérsia em inteligência militar e médica. A péssima ideia não foi a tecnologia, e, sim, a sugestão
de como usá-la. Recordo uma manhã quente de verão em Washington, o calor subindo de uma calçada lotada de escoteiros excursionando pela capital enquanto Briggs e
eu discutíamos. Estávamos com calor em nosso uniforme, frustrados e estressados, e me lembro de ter passado pela Casa Branca, com gente por toda parte, imaginando
o que viria a seguir. Que outras desumanidades a tecnologia ofereceria? E isso foi há quase uma década, a Idade da Pedra comparada aos dias atuais.
"Tenho certeza - na realidade, mais que certeza - de que era o que tinha no apartamento do cara", diz Lucy. "E não se compra uma coisa dessas no eBay."
"Talvez seja uma maquete", sugiro. "Um fac-símile."
"De jeito nenhum. Quando dei zoom, vi a combinação de partes em detalhes, algumas gastas e rompidas pelo uso, provavelmente devido aos testes do setor de Pesquisa
e Desenvolvimento em terreno difícil; ele ficou um pouco arranhado. Vi até os conectores de fibra óptica. MORT não era um artefato sem fio, o que era só uma das
muitas coisas erradas nele. Não era o que estão fazendo hoje com os robôs autônomos que têm computadores internos e recebem informação através de sensores controlados
por unidades usadas por seres humanos, em vez de ficarem se arrastando em volta de uma mala Pelican no meio do caminho. É como os caras do Exército estão fazendo
para que seus operadores em campo fiquem com as mãos livres quando saem com os esquadrões robóticos. Todo esse negócio novo com processadores leves e reforçados
que você pode usar no colete se, digamos, estiver operando um veículo terrestre não tripulado ou os robôs armados, a unidade SWORDS, o Sistema de Armamento Especial,
Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta. Uma infantaria robótica armada com metralhadoras M249. Não é uma coisa que me agrade e sei como você se sente a
respeito."
"Não sei bem se existem palavras para como me sinto a respeito disso", retruco.
"Tem três unidades SWORDS até agora no Iraque, mas eles ainda não dispararam. Ninguém sabe ao certo como conseguir que um robô faça esse tipo de julgamento. Quociente
ético artificial. Uma perspectiva um tanto assustadora, mas tenho certeza de que não é impossível."
"Os robôs devem ser usados para a manutenção da paz, para vigilância."
"Isso para você, mas não para todos."
"Eles não devem tomar decisões sobre vida e morte", continuo. "Seria como o piloto automático decidindo se devemos voar através das nuvens que estão vindo em nossa
direção."
"O piloto automático poderia fazer isso se meu helicóptero tivesse sensores de umidade e temperatura. Acrescente transdutores de força e ele pousa sozinho, leve
como uma pluma. Com os sensores adequados, você não precisa mais de mim. É só embarcar e apertar um botão, como os Jetsons. Parece loucura, mas quanto mais louco
melhor. Pergunte à DARPA. Você faz ideia de quanto dinheiro eles investem na área de Cambridge?"
Lucy baixa o coletivo, perdendo altitude e velocidade à medida que outro trecho de nuvens fantasmagóricas flutua em nossa direção no escuro.
"Além do que foi investido no CFC?", completa ela.
Seu comportamento está diferente, até seu rosto está diferente, e ela já não tenta esconder o que a está afetando. Conheço esse estado de espírito. Conheço muito
bem. É uma disposição de ânimo antiga, que não vejo há algum tempo, mas que reconheço como se fossem os sintomas de uma doença que esteve em remissão.
"Computadores, robótica, biologia sintética, nanotecnologia, quanto mais absurdo melhor", continua Lucy. "Porque não existe mais essa coisa de cientistas malucos.
Não sei se existe mais essa coisa de ficção científica. Você propõe a invenção mais radical que consegue imaginar e ela provavelmente está sendo implementada em
algum lugar. É notícia velha."
"Você está sugerindo que esse homem que morreu em Norton's Woods está ligado à DARPA."
"De alguma forma está, em alguma extensão. Não sei quão direta ou indiretamente", responde Lucy. "O MORT não está mais sendo usado, não pelas Forças Armadas, nem
para qualquer finalidade, mas era coisa de Star Wars oito ou nove anos atrás, quando a DARPA intensificou o financiamento para dispositivos militares e de inteligência
em robótica, bioengenharia e engenharia da computação. E aplicações forenses e outras, relevantes para nossos mortos de guerra, para o que acontece em combate, no
teatro de operações."
Foi a DARPA que financiou a pesquisa e o desenvolvimento da tecnologia RadPath que empregamos nas autópsias virtuais em Dover e agora no CFC. A DARPA financiou minha
bolsa de estudos de quatro meses, que se transformaram em seis.
"Uma percentagem substancial de subvenção para pesquisa vem para os laboratórios da área de Cambridge, Harvard e MIT", diz Lucy. "Lembra quando tudo começou a girar
em torno da guerra?"
Está ficando cada vez mais difícil lembrar um tempo em que isso não era verdade. A guerra está se tornando nossa indústria nacional, como antes eram os automóveis,
o aço e as ferrovias. É este o perigoso mundo em que vivemos. Não creio que possa mudar.
"A brilhante ideia de que robôs como MORT podiam ser utilizados para recuperar baixas de modo que as tropas não arriscassem a vida por um companheiro morto?", lembra
Lucy.
Não uma ideia brilhante, e, sim, infeliz. Uma ideia extremamente idiota, eu achava na época e continuo a achar. Briggs e eu não estávamos do mesmo lado a esse respeito.
Ele nunca vai me dar crédito por tê-lo salvado de um passo em falso em RP que poderia tê-lo prejudicado muito.
"A ideia foi agressivamente pesquisada por um tempo e então engavetada", acrescenta Lucy.
Foi engavetada porque empregar robôs para tal finalidade supõe que eles sejam capazes de decidir se um soldado caído, um ser humano, está mortalmente ferido ou morto.
"O Departamento de Defesa se deu mal por causa disso, pelo menos internamente, porque pareceu frio e desumano", diz ela.
Merecidamente. Ninguém deveria morrer nas garras de algo mecânico que arrasta a pessoa para fora do campo de batalha, ou a retira de um veículo estraçalhado, ou
dos escombros de um edifício que desabou.
"O que estou dando a entender é que as primeiras gerações dessa tecnologia foram enterradas pelo Departamento de Defesa, relegadas a um ferro-velho secreto ou teve
peças reaproveitadas", diz Lucy. "Mesmo assim, o cara que está na sua geladeira tem um no apartamento dele. Onde conseguiu? Ele tem alguma ligação com a história.
Tem papel de desenho na mesinha de centro. É inventor, engenheiro, algo do tipo, e estava de alguma forma envolvido em projetos sigilosos que exigem certificado
de segurança de alto nível, mas é civil."
"Como você pode ter tanta certeza de que ele é civil?"
"Acredite em mim, tenho certeza. Ele não tem experiência nem treinamento e é absolutamente certo que não faz parte do serviço de informações militar nem é agente
do governo, ou não andaria por aí ouvindo música alta armado com uma pistola cara que teve o número de série raspado - em outras palavras, ele provavelmente comprou
a arma na rua. Teria uma coisa que nunca seria atribuída a ele nem a ninguém, uma coisa que você usa uma vez e joga fora..."
"Não sabemos a quem a arma está relacionada?" Quero ter certeza disso.
"Não que eu saiba, ainda não, o que é ridículo. Esse cara não estava encoberto. Acho que ele está assustado", diz Lucy como se soubesse disso com certeza. "Estava",
acrescenta. "Ele estava. Alguém o tinha sob vigilância - é o que eu acho, de qualquer maneira -, e agora ele está morto. Na minha opinião, não é coincidência. Sugiro
que você tenha extremo cuidado ao falar com Marino.
"Às vezes, ele tem um discernimento terrível, mas não está tentando me enganar."
"Ele não faz parte do serviço de inteligência médico como você, e sua compreensão só vai até o ponto de não discutir casos com seus amigos no boliche e não falar
com repórteres. Acha perfeitamente possível confiar em pessoas como Briggs porque é um ignorante no que se refere às altas patentes militares." Não consigo lembrar
desde quando não vejo Lucy com um comportamento tão inquieto e sombrio. "Em um caso como esse, você conversa comigo ou com Benton."
"Você contou a Benton o que acabou de me contar?"
"Vou te deixar explicar a respeito do MORT porque ele provavelmente não vai entender o que é. Não estava por perto quando você passou por tudo isso com o Pentágono.
Você conta a ele e então todos nós podemos conversar. Você, ele, eu e chega, pelo menos por enquanto, porque você não sabe o que está acontecendo, e é melhor esclarecer
os fatos e saber quem somos nós e quem são eles."
"Se não posso confiar em Marino em um caso como esse, ou em qualquer caso por sinal, por que estou com ele?" A atitude defensiva aviva meu tom de voz, porque Marino
também foi ideia dela.
Lucy me encorajou a contratá-lo como chefe de investigações operacionais do CFC e também o convenceu a aceitar, embora não tenha sido uma negociação muito difícil.
Ele nunca admitiria, mas não queria estar em lugar nenhum em que eu não estivesse, e, quando percebeu que eu ficaria em Cambridge, desencantou-se de repente com
o departamento de polícia de Nova York. Perdeu interesse na promotora-adjunta Jaime Berger, para cujo escritório foi designado. Entrou em conflito com seu senhorio
no Bronx. Começou a se queixar dos impostos de Nova York, mesmo que os pagasse havia vários anos. Disse que era intolerável não ter lugar para andar de moto ou para
estacionar uma caminhonete, mesmo que não possuísse nenhum dos dois na ocasião. Disse que precisava se mudar.
"Não é uma questão de confiança. É questão de reconhecer limitações." É estranhamente generoso da parte de Lucy dizer isso. Em geral, as pessoas são simplesmente
ruins ou inúteis e merecem seja qual for o castigo que ela determine.
Lucy reduz a pressão sobre o coletivo e faz ajustes sutis com o cíclico, aumentando nossa velocidade e se certificando de que não ganhemos altura, entrando nas nuvens.
A escuridão da noite à nossa volta é impenetrável, e há trechos onde vejo luzes no solo, sugerindo que estamos voando acima de árvores. Insiro a frequência da base
aérea de McGuire para monitorar seu espaço aéreo enquanto ficamos de olho no Sistema Anticolisão de Tráfego. Ele não mostra outra aeronave em parte alguma. Talvez
sejamos os únicos a voar esta noite.
"Não posso me dar o luxo de levar em conta limitações", digo à minha sobrinha. "O que significa que provavelmente cometi um erro contratando Marino. E outro maior
ainda contratando Fielding."
"E não pela primeira vez. Jack te largou em Watertown e foi para Chicago, e você devia ter deixado o cara por lá."
"Na verdade, perdemos nosso financiamento em Watertown. Ele sabia que o escritório talvez fechasse, e realmente fechou."
"Não foi por isso que ele saiu."
Não argumento porque Lucy está certa. Não foi por isso. Fielding queria se mudar para Chicago porque sua mulher havia recebido uma oferta de emprego lá. Dois anos
mais tarde, perguntou se podia voltar. Disse que sentia falta de trabalhar para mim. Disse que sentia falta de sua família. Lucy, Marino, Benton e eu. Uma família
grande e feliz.
"Não são só eles. Você tem problema com todo mundo ali", diz Lucy.
"Então ninguém deveria ter sido contratado. Inclusive você, imagino."
"Provavelmente. Não sou boa no trabalho em equipe." Ela foi demitida do FBI e da ATF. Acho que Lucy não pode ser supervisionada por ninguém, nem mesmo por mim.
"Bom, é ótimo voltar para casa e para isso", retruco.
"É esse o perigo de uma instituição-modelo que, não importa o que se diga, é na verdade tanto civil quanto militar, é da alçada tanto local quanto federal, além
de ter vínculos acadêmicos", diz Lucy. "Você não é uma coisa nem outra. Os membros da equipe não sabem exatamente como agir ou não conseguem respeitar os limites,
supondo que alguém os compreenda. Alertei você sobre isso faz tempo."
"Não me lembro de você ter me alertado. Só me lembro de ter chamado minha atenção para o fato."
"Vamos inserir a frequência de Lakehurst e indicar voo VFR, porque estou descartando o acompanhamento de voo", decide Lucy. "Se formos empurrados ainda mais para
oeste, vamos ter vento contrário, o que vai reduzir nossa velocidade para menos de quarenta quilômetros por hora e vamos ter que pousar para passar a noite em Harrisburg
ou Allentown."
5
Os flocos de neve ficam loucos como mariposas sob as luzes de aterrissagem e o vento das pás do rotor, à medida que descemos sobre a plataforma de madeira. Os skids
pousam de forma hesitante, então se separam pesadamente, quando o peso se instala e quatro pares de faróis começam a se mover em nossa direção desde o portão de
segurança próximo à base de operações.
Os faróis movem-se devagar pela rampa, iluminando a neve que cai com rapidez e reconheço a silhueta do Porsche SUV verde de Benton. Reconheço o Suburban e o Range
Rover, ambos pretos. Não conheço o quarto carro, um sedã escuro elegante, com aço cromado. Lucy e Marino devem ter vindo em carros separados hoje e deixado seus
SUVs com a equipe da base, o que faz sentido. Minha sobrinha sempre chega ao aeroporto bem antes das outras pessoas para preparar o helicóptero, assim pode checar
do aparelho do tubo de Pitot, no nariz, ao estabilizador de cauda. Não a vejo assim faz algum tempo, e enquanto aguardamos os dois minutos em ponto morto antes que
ela conclua o desligamento, tento me lembrar da última vez, localizá-la com exatidão, na esperança de entender o que está acontecendo. Porque Lucy não vai me contar.
Não vai fazer isso, a menos que se encaixe em seu plano geral, e não há como extrair dela a informação quando não está preparada para compartilhar, o que, em situações
extremas, pode ser nunca. Lucy prospera no comportamento dissimulado, sente-se muito mais à vontade sendo quem não é do que quem é, e foi sempre assim, desde os
primeiros anos. Ela se alimenta do poder do silêncio e se energiza com o drama do risco, do perigo real. Quanto mais ameaçador, melhor. Tudo o que me revelou até
agora é que um robô obsoleto no apartamento do morto é um PackBot chamado MORT, financiado pela DARPA e que, no passado, foi destinado a intervenções funerárias
no teatro de operações; em outras palavras, à remoção de corpos na guerra, um Anjo da Morte mecânico. O MORT era insensível e inadequado e o combati agressivamente
há anos, mas a peculiaridade de o morto ter tal objeto em seu apartamento não explica o comportamento de Lucy.
Quando foi que ela me assustou tanto, não que tenha sido só uma vez, mas no dia em que achei que ela poderia acabar na prisão? Há sete ou oito anos, concluo, quando
voltou da Polônia, onde esteve envolvida em uma missão que tinha a ver com a Interpol e operações especiais que até hoje não estão claras para mim. Nunca vou ficar
sabendo quanto ela me contaria se eu a pressionasse o suficiente, porque não vou fazer isso. Optei por permanecer na obscuridade acerca do que ela fez por lá. O
que sei é suficiente. É mais que suficiente. Eu jamais diria isso a respeito dos sentimentos, da saúde ou do bem-estar geral de Lucy, porque me preocupo muito com
cada molécula sua, mas posso dizer isso acerca de alguns aspectos complexos e clandestinos da forma como viveu. Para seu próprio bem e o meu, há detalhes sobre os
quais não vou perguntar. Há histórias que não quero que me contem.
Durante a última hora de nosso voo para Hanscom Field, ela foi ficando cada vez mais preocupada, impaciente e incrivelmente vigilante, e é sua vigilância que tem
um calibre especial. É o que reconheço. A vigilância é a arma que ela saca quando se sente ameaçada e entra no modo de atuação que eu costumava temer. Em Oxford,
Connecticut, onde paramos para abastecer, ela não deixou o helicóptero sem supervisão, nem por um segundo. Supervisionou o caminhão de combustível e me colocou de
guarda no frio enquanto trotava até o interior da base de operações para pagar, porque não confiava em Marino para o serviço de guarda, conforme explicou. Contou
que, quando eles reabasteceram em Wilmington, Delaware, hoje cedo, a caminho de Dover, ele ficou muito ocupado ao telefone para se preocupar com a segurança ou reparar
no que estava acontecendo ao redor dos dois.
Disse que o havia observado pela janela enquanto ele passeava pela pista de pouso, conversando e gesticulando, sem dúvida empolgado contando a Briggs a respeito
do homem que supostamente continuava vivo quando foi trancafiado dentro da geladeira. Marino não olhou para o helicóptero uma única vez sequer, Lucy me contou. Estava
distraído quando outro piloto aproximou-se para fazer o check-out, agachando-se para inspecionar o sensor de visão frontal infravermelha, o holofote Nightsun, e
espreitar pelo Plexiglas o interior das cabines. Não entrava na cabeça de Marino que as portas estavam destrancadas, assim como a tampa do combustível, e é óbvio
que não há como trancar a capota do motor. Alguém pode ter acesso à transmissão, ao motor, às caixas de marchas, os órgãos vitais de um helicóptero, pela simples
liberação das travas.
Água no tanque de combustível é o bastante para uma pane em voo. Lá se vai o motor. Ou uma pequena quantidade de contaminante no fluido hidráulico, possivelmente
terra, óleo, ou água no reservatório, e os controles vão falhar como a direção hidráulica em um automóvel, o que é um pouco mais sério quando você está a seiscentos
metros de altura. Se realmente quer criar confusão, contamine tanto o combustível quanto o fluido hidráulico, assim vai ter uma pane e uma falha hidráulica ao mesmo
tempo, descreveu Lucy em detalhes sórdidos enquanto voávamos com o sistema de comunicação interna na posição "tripulação", para que Marino não ouvisse. Isso seria
especialmente desastroso depois do anoitecer, disse ela, quando os pousos de emergência, já bastante difíceis, ficam muito piores porque você não consegue enxergar
o que há embaixo, e é melhor esperar que não sejam árvores, linhas de energia ou outro tipo de obstrução.
É claro que a sabotagem que ela mais teme é um explosivo; ela é obcecada por explosivos em geral e o motivo pelo qual são de fato usados, quem os usaria, inclusive
o governo dos Estados Unidos, se for conveniente. Assim, tive de ouvir isso por algum tempo antes que ela me deprimisse ainda mais ao explicar quão simples seria
plantar tal coisa, de preferência embaixo da bagagem ou de um tapete atrás, para que quando o artefato detonasse destruísse o tanque de combustível principal sob
os bancos traseiros. Em seguida o helicóptero se transforma em um crematório, disse ela, o que me fez pensar outra vez no soldado no Humvee e em sua mãe devastadora
me atacando ao telefone. Eu fazia associações infelizes durante a maior parte do tempo que estávamos voando porque, para o bem ou para o mal, qualquer calamidade
descrita evoca exemplos vívidos de meus próprios casos. Sei como as pessoas morrem. Sei exatamente o que vai acontecer comigo se eu morrer.
Lucy corta a aceleração e baixa o freio do rotor; no instante em que as pás param de girar, a porta do motorista no utilitário de Benton se abre. A luz interna não
acende. Não vai acender em nenhum dos três utilitários na rampa, porque policiais e agentes federais, inclusive os que já não exercem mais a profissão, têm suas
peculiaridades. Não se sentam com as costas voltadas para a porta. Detestam apertar o cinto de segurança e não gostam de luzes internas nos veículos. São programados
para evitar emboscadas e restrições que os impeçam de fugir. Resistem a se transformar em um alvo iluminado. São precavidos, mas não tão precavidos quanto Lucy nas
últimas horas.
Benton caminha em direção ao helicóptero e aguarda perto da plataforma com as mãos nos bolsos de um velho casaco preto de camurça que lhe dei há muitos Natais, o
cabelo prateado bagunçado pelo vento. Ele é alto e magro contra a noite coberta de neve, e seu semblante parece ansioso à sombra e luz desiguais. Sempre que o vejo
após uma longa separação é com os olhos de uma estranha, e me sinto outra vez atraída por ele, exatamente como da primeira vez, há muito tempo na Virginia quando
eu era a nova chefe, a primeira mulher nos Estados Unidos a dirigir um sistema médico-legal daquele porte, e ele era uma lenda no FBI, o talentoso psicólogo criminal
e diretor do que era então a Unidade de Ciência Comportamental em Quantico. Ele entrou em minha sala de reuniões e de repente me senti nervosa e insegura, o que
nada tinha a ver com os assassinatos em série que estávamos ali para discutir.
"Você conhece esse cara?", pergunta ele em meu ouvido quando nos abraçamos. Ele me beija de leve nos lábios; sinto a fragrância amadeirada de sua loção pós-barba
e o couro macio de seu casaco de encontro ao meu rosto.
Olho para além dele na direção do homem que salta do sedã, que agora vejo que é um Bentley azul-escuro ou preto que tem o ronco gutural de um motor V12. O sujeito
é grande e está acima do peso, possui queixo duplo e uma franja rala que se agita ao vento. Vestindo um casaco longo com a gola levantada, que lhe cobre as orelhas
e luvas, mantém-se de pé a uma distância educada, com a postura alheia de um motorista de limusine. Mas percebo sua atenção sobre nós. Ele parece mais interessado
em Benton.
"Deve estar esperando alguém", concluo enquanto o homem olha para o helicóptero, então torna a olhar para Benton. "Ou está confuso."
"Em que posso ajudar?" Benton se aproxima do sujeito.
"Estou procurando por Scarpetta."
"E por que você estaria procurando Scarpetta?" Benton é simpático, porém firme, e não revela nada.
"Fui enviado aqui com uma entrega e me disseram que o encontraria saindo do helicóptero. Você é de onde? Da segurança nacional? Estou vendo que o helicóptero tem
sensor de visão frontal infravermelha, holofote de busca, um bocado de equipamento especial. Bem high-tech. A que velocidade ele voa?"
"O que posso fazer por você?"
"Preciso entregar algo diretamente a Scarpetta. É você? Me mandaram pedir um documento." O motorista observa Lucy e Marino retirarem meus pertences dos compartimentos
do passageiro e de bagagem. Não está interessado em mim, não mais que para me lançar um olhar de relance. Sou a mulher do homem alto e atraente com cabelo grisalho.
O motorista acha que Benton é Scarpetta e que o helicóptero pertence a ele.
"Vamos tirar você daqui antes que vire uma nevasca", diz Benton, caminhando em direção ao Bentley de um jeito que não deixa escolha ao motorista a não ser segui-lo.
"Ouvi dizer que vamos ter de quinze a dezoito centímetros, mas tudo é extremo nesse inverno. De onde você é? Não daqui. De algum lugar no sul. Imagino que do Tennessee."
"Você percebeu depois de vinte e sete anos? Acho que preciso trabalhar na minha fala ianque. Nashville. Estacionamos aqui com a 66a Unidade Aérea e nunca saímos.
Não sou piloto, mas dirijo muito bem." Ele abre a porta do passageiro e se debruça para dentro. "Você mesmo pilota aquela coisa? Nunca estive em um daqueles. Percebi
na mesma hora que aquele helicóptero não era da Força Aérea. Acho que se você for da CIA, não vai me dizer..."
A voz flutuou até a rampa, onde Benton me deixou. Sei que é melhor não o seguir até o Bentley, mas reluto em me sentar em nosso carro sem fazer ideia de quem é o
homem, a que entrega está se referindo ou como sabia que alguém chamado Scarpetta estaria em Hanscom, seja em um helicóptero ou para encontrá-lo, e a que horas pousaria.
A primeira pessoa que me vem à mente é Jack Fielding. É provável que ele conhecesse meu itinerário e verifico meu iPhone. Anne e Ollie responderam minhas mensagens
de texto e já estão no CFC, esperando por nós. Mas não há nada da parte de Fielding. O que está acontecendo? Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa séria. Isso
não deve ser só a irresponsabilidade, a indiferença ou seu comportamento errático habituais. Espero que esteja bem, que não esteja doente, ferido ou brigando com
a mulher, e vejo Benton enfiar alguma coisa no bolso do casaco. Ele se encaminha direto para o SUV, e essa é sua mensagem para mim. Entrar e não fazer perguntas.
Alguma coisa que o desagrada aconteceu, apesar de sua atitude relaxada e amigável com o motorista.
"O que foi?", pergunto quando fechamos as portas ao mesmo tempo que Marino abre o bagageiro e começa a enfiar ali minhas caixas e malas.
Benton aumenta o aquecimento e não responde enquanto mais pertences meus são carregados, em seguida Marino vem até minha porta. Bate com o nó do dedo no vidro.
"O que foi isso?" Ele olha na direção do Bentley; a neve cai espessa e firme, cobrindo a viseira de seu boné de beisebol e derretendo em seus óculos.
"Quem sabia que você e Lucy iam a Dover hoje?", Benton apoia o ombro em mim enquanto conversa com ele.
"O general. E a capitã Avallone ficou sabendo quando telefonei tentando deixar uma mensagem para a doutora. E algumas pessoas no nosso escritório. Por quê?"
"Mais ninguém? Você não mencionou aos paramédicos, à polícia de Cambridge?"
Marino faz uma pausa, pensando, e uma expressão passou por seu rosto. Ele não sabe ao certo a quem contou. Está tentando lembrar, está calculando. Se fez alguma
coisa imprudente, não vai querer admitir, já ouviu o bastante sobre o quanto é indiscreto. Não pretende ser castigado mais uma vez, ainda que, para ser justa, ele
não tivesse motivo para se comportar como se o fato de ele e Lucy voarem até Delaware para me buscar fosse informação sigilosa. Não é segredo de Estado onde eu estava
e, de qualquer forma, eu ia voltar para casa amanhã.
"Não tem importância se você fez isso." Benton parece estar pensando o mesmo que eu. "Só estou tentando entender como um mensageiro sabia que encontraria o helicóptero
aqui."
"Que espécie de mensageiro dirige um Bentley?", pergunta Marino.
"Aparentemente, a espécie que foi informada do seu itinerário, inclusive o número de cauda do helicóptero", responde Benton.
"Maldito Fielding. Que diabos ele está fazendo? O cara é um louco, é o que ele é." Marino retira os óculos, então não tem com que os limpar, e seu rosto parece nu
e estranho sem os velhos aros de metal. "Comentei com algumas pessoas que você provavelmente voltaria hoje em vez de amanhã. Quer dizer, é óbvio que algumas pessoas
sabiam por causa do problema que temos com o morto sangrando e tudo mais." Ele endereça isso a mim. "Mas Fielding era o único que sabia exatamente o que você estava
fazendo e com certeza conhece o helicóptero de Lucy, porque já esteve nele. Merda, você não sabe da missa a metade", acrescenta com ar sombrio.
"Vamos conversar no escritório." Benton quer que ele cale a boca.
"O que sabemos sobre ele? Que merda ele está aprontando? Está mais que na hora de parar de proteger esse cara. Ele com certeza não está te protegendo", diz Marino.
"Vamos conversar sobre isso mais tarde", retruca Benton com um sinal de advertência na voz.
"Ele está te ferrando de alguma forma", diz Marino.
"Não é hora de discutir isso." A voz de Benton assume um tom monótono.
"Ele quer seu emprego. Ou talvez não queira que você fique com ele." Marino olha para mim enquanto enfia as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e se afasta da janela.
"Bem-vinda ao lar, doutora." Sinto os flocos de neve frios e úmidos soprados para dentro do carro em meu rosto e pescoço. "É bom ser lembrado de em quem você pode
realmente confiar, certo?" Ele olha para mim enquanto ergo o vidro da janela.
Faróis anticolisão vermelhos e brancos piscam na ponta das asas dos jatos estacionados à medida que atravessamos a rampa devagar rumo ao portão de segurança, que
acaba de abrir.
O Bentley passa pelo portão; estamos logo atrás e reparo que a placa de Massachusetts não possui o logo que indica que o carro pertence a uma empresa de limusines.
Não me surpreendo. Bentleys são raros, especialmente por aqui, onde as pessoas são modestas e conservadoras, mesmo aquelas que fazem voos particulares. Raras vezes
vejo Bentleys ou Rolls-Royces, são quase sempre Toyotas ou Saabs. Passamos pela base de operações VIP, um dos vários serviços de voo na parte civil do aeroporto,
e coloco a mão na camurça macia do bolso do casaco de Benton, sem tocar o envelope branco leitoso que mal se projeta para fora dele.
"Você quer me explicar o que acaba de acontecer?" Ele parece ter recebido uma carta.
"Ninguém devia saber que você fez um voo para cá, ninguém devia saber nada sobre você ou sobre o seu paradeiro, ponto final", diz Benton com o rosto e a voz severos.
"É óbvio que ela ligou para o CFC e Jack passou a informação. Ela com certeza já ligou para lá antes, e quem mais a não ser Jack?"
Na verdade, ele não enuncia isso como uma pergunta e não faço ideia de a quem possa estar se referindo.
"Não entendo por que ele ou qualquer outra pessoa falaria com ela, pelo amor de Deus", continua Benton, mas não acredito que não compreenda seja o que for a que
esteja se referindo. Seu tom exprime algo completamente diferente. Percebo que ele não está nem mesmo surpreso.
"Quem?" Porque não faço a menor ideia. "Quem telefonou para o CFC?"
"A mãe de Johnny Donahue. Ao que parece, aquele é o motorista dela", disse ele, indicando o carro mais à frente.
Os limpadores de para-brisa produzem um alto som de borracha sendo arrastada sobre o vidro, afastando a neve, que se derrete. Olho para as lanternas traseiras do
Bentley à nossa frente e tento entender o que Benton está me contando.
"Devemos examinar, independentemente do que for." Estou me referindo ao envelope em seu bolso.
"É prova. Deve ser examinada no laboratório", diz ele.
"Eu tenho que saber o que é."
"Terminei de avaliar Johnny esta manhã", Benton me faz lembrar. "Sei que a mãe dele telefonou várias vezes para o CFC."
"Como você sabe?"
"Johnny me contou."
"Um paciente psiquiátrico te contou. E isso é informação confiável?"
"Passei um total de quase sete horas com ele desde que foi admitido. Não acredito que tenha matado ninguém. Existe um monte de coisas nas quais não acredito. Mas
acredito que a mãe dele telefonaria para o CFC, com base no que sei", diz Benton.
"Ela não pode realmente imaginar que discutiríamos o caso de Mark Bishop com ela."
"Atualmente as pessoas pensam que tudo é informação pública, que elas têm o direito de saber", diz ele. Não é de seu feitio fazer conjecturas e ceder a generalidades.
A declaração soa superficial e evasiva. "E a sra. Donahue tem um problema com Jack", acrescenta Benton, e o comentário me parece genuíno.
"Johnny contou a você que a mãe dele tem um problema com Jack. E por que ela teria qualquer opinião sobre ele?"
"Parte desse assunto não posso abordar." Ele olha direto para a frente enquanto dirige na via coberta de neve. A neve está caindo mais rápido; açoita os faróis dianteiros
e estala de encontro ao vidro.
Sei quando Benton está me escondendo coisas. Em geral, por mim tudo bem. Agora, não está nada bem. Sinto a tentação de extrair o envelope de seu bolso e examinar
o que alguém, ao que tudo indica a sra. Donahue, quer que eu veja.
"Você conheceu a mulher, conversou com ela?", pergunto.
"Até agora, consegui evitar, ainda que ela tenha telefonado para o hospital, tentando me localizar; telefonou várias vezes desde que ele foi admitido. Mas não convém
que eu converse com ela. Não convém que eu converse sobre muitas coisas, e sei que você entende."
"Se Jack ou alguém divulgou detalhes sobre Mark Bishop, isso é sério", retruco. "E entendo sua discrição, ou acho que entendo, mas tenho o direito de saber se ele
fez isso."
"Eu não sabia o que você sabe. Se Jack te contou alguma coisa", diz ele.
"A respeito do que especificamente?"
Não quero admitir para Benton e sobretudo para mim mesma que não consigo lembrar exatamente quando conversei com Fielding pela última vez. Nossas conversas, quando
as tivemos, foram superficiais e breves, e não o vi uma vez sequer quando estive em casa por vários dias durante as festas de fim de ano. Ele havia ido a algum lugar,
supostamente levado a família para algum lugar, mas não tenho certeza. Faz longos meses que Fielding deixou de compartilhar comigo os detalhes de sua vida pessoal.
"Deste caso especificamente, do caso de Mark Bishop", responde Benton. "Quando aconteceu, por exemplo, Jack discutiu com você?"
No sábado, 30 de janeiro, Mark Bishop, de seis anos, estava brincando em seu quintal a mais ou menos uma hora daqui, em Salem, quando alguém o atacou com pregos
na cabeça.
"Não", respondo. "Jack não conversou comigo sobre isso."
Eu estava em Dover quando o menino foi assassinado, e Fielding assumiu o caso, o que estava em completo desacordo com ele, e pensei assim na ocasião. Fielding nunca
foi capaz de lidar com crianças, mas por algum motivo decidiu lidar com isso e me chocou. No passado, se o corpo de alguma criança estivesse a caminho do necrotério,
Fielding se ausentava. Não fazia o menor sentido que ele assumisse o caso de Mark Bishop, e lamento não ter voltado para casa, que foi meu primeiro impulso. Eu deveria
ter agido de acordo com ele, mas não quis fazer a meu segundo em comando o que Briggs acabara de fazer comigo. Não quis demonstrar falta de confiança.
"Examinei o caso detalhadamente, mas Jack e eu não discutimos a respeito, ainda que com certeza eu tenha indicado que estaria à disposição se houvesse necessidade."
Sinto que estou na defensiva e detesto quando isso acontece. "Tecnicamente, o caso era dele. Tecnicamente, eu não estava aqui." Não consigo me controlar e sei que
parece fraqueza, como se eu estivesse arrumando desculpas, e me sinto irritada comigo mesma.
"Em outras palavras, Jack não compartilhou os detalhes. Quer dizer, os detalhes dele", declara Benton.
"Leve em conta onde eu estava e o que estava fazendo", tento lembrar.
"Não estou dizendo que seja culpa sua, Kay."
"O que é culpa minha? E o que você está querendo dizer com os detalhes 'dele'?"
"Estou perguntando se você fez perguntas a Jack. Se ele evitou discutir o caso com você."
"Você sabe como ele é quando se trata de crianças. Na ocasião, enviei uma mensagem dizendo que um dos outros médicos-legistas poderia lidar com aquilo, mas Jack
tomou conta do caso. Fiquei surpresa, mas foi o que aconteceu. Como já disse, examinei todos os registros. Os dele, os da polícia, os relatórios do laboratório..."
"Então, você na verdade não sabe o que está acontecendo?"
"Parece que o que você está dizendo é que não sei."
Benton fica em silêncio.
"Você sabe o que passou, além dos fatos mais recentes? Da confissão feita por Donahue?"
Tento novamente: "É claro que sei o que foi informado nos noticiários. Um estudante de Harvard confessando uma coisa dessas não poderia passar despercebido pela
imprensa. É óbvio que o que você está insinuando é que existem detalhes dos quais não fui informada".
Outra vez Benton não responde. Imagino Fielding conversando com a mãe de Johnny Donahue. É possível que ele tenha lhe fornecido detalhes de onde eu estaria hoje
à noite, e ela enviou seu motorista para me entregar um envelope, embora o motorista tenha dado a impressão de não saber que Scarpetta era uma mulher. Olho para
o casaco de camurça preta de Benton. No escuro, distingo a borda branca indistinta do envelope em seu bolso.
"Por que alguém do seu escritório falaria com a mãe da pessoa que confessou o crime?" A pergunta de Benton soa mais como uma afirmação. Parece retórica. "Temos absoluta
certeza de que nada vazou para os meios de comunicação sobre sua partida de Dover hoje, talvez por causa do novo caso?" Ele está se referindo ao homem que sofreu
o colapso em Norton's Woods. "Talvez exista uma explicação lógica para que ela saiba. Uma explicação lógica diferente de Jack. Estou tentando manter a mente aberta."
Não me parece que ele esteja tentando manter a mente aberta. Benton parece acreditar que Fielding contou à sra. Donahue por um motivo, que não faço ideia de qual
seja. A menos que seja o que Marino disse há alguns minutos, que Fielding quer que eu perca o emprego.
"Você e eu sabemos a resposta." Ouço a convicção em meu tom de voz e percebo minha certeza do que Jack Fielding seria capaz de fazer. "Que eu saiba, nada apareceu
nos noticiários. E mesmo que a sra. Donahue tenha descoberto dessa forma, isso não explica o fato de ela saber o número de cauda do helicóptero de Lucy. Não explica
como soube que eu estava chegando de helicóptero e que pousaria em Hanscom, ou a que horas."
Benton dirige-se a Cambridge em meio à nevasca de flocos cada vez menores. O vento fustiga o utilitário, com rajadas e empuxos, a noite volátil e traiçoeira.
"Só que o motorista pensou que você fosse eu", acrescento. "Percebi pelo modo como ele estava lidando com você. Ele acha que você é Scarpetta, e a mãe de Johnny
Donahue com certeza deve saber que não sou um homem."
"É difícil dizer o que ela sabe", retruca Benton. "Fielding é o legista no caso, não você. Como você mesma disse, tecnicamente não tem nada a ver com isso. Tecnicamente,
não é a responsável."
"Eu sou a chefe e, no fim das contas, a responsável. No fim do dia, todos os casos de medicina legal de Massachusetts são meus. Então tenho alguma coisa a ver com
isso, sim."
"Não foi o que eu quis dizer, mas fico satisfeito em te ouvir dizer isso."
É claro que não foi o que ele quis dizer. Não quero pensar a respeito do que ele quis dizer. Estive fora. De alguma forma, eu precisava estar em Dover e ao mesmo
tempo manter o CFC em funcionamento sem mim. Talvez fosse pedir demais. Talvez eu tenha sido programada para o fracasso.
"Estou dizendo que, desde que o CFC inaugurou, você tem sido invisível", diz Benton. "Desapareceu em um blecaute de notícias."
"Propositadamente", retruco. "O AFMES não procura publicidade."
"É claro. Não estou culpando você."
"Escolha de Briggs." Dou voz ao que suspeito que Benton pode estar insinuando.
Ele não confia em Briggs. Nunca confiou. Sempre atribuí esse fato ao ciúme. Briggs é um homem muito poderoso e intimidador, e Benton não se sente poderoso ou intimidador
desde que deixou o FBI; além disso, eu e Briggs temos um passado. Ele é uma das pouquíssimas pessoas que antecederam Benton e que continuam em minha vida. Tenho
a sensação de que mal havia acabado de me tornar adulta quando o conheci.
"O AFMES não queria que você desse entrevistas a respeito do CFC ou fizesse qualquer referência pública relacionada a Dover até que o CFC tivesse sido inaugurado
e seu treinamento fosse concluído", prossegue Benton. "Isso a manteve longe dos holofotes por algum tempo. Estou tentando lembrar a última vez em que você esteve
na CNN. Foi, pelo menos, há um ano."
"E, coincidentemente, eu devia voltar à ribalta esta noite. E, coincidentemente, tive que cancelar. Pela terceira vez, já que minha volta foi várias vezes adiada."
"É. Coincidentemente. Muitas coincidências", diz Benton.
Talvez Briggs tivesse me exposto e feito isso de propósito. Quão inteligente seria me preparar para um emprego mais importante, o mais importante até aqui, enquanto
me tornava sistematicamente menos visível? Para me silenciar. No fim das contas, para se livrar de mim. A ideia é chocante. Não acredito nela.
"Coincidências de quem, é isso que você precisa saber", diz Benton então. "E não estou dando como fato consumado que Briggs tenha feito alguma coisa maquiavélica.
Ele não é a totalidade do Pentágono. É só uma engrenagem em uma máquina muito grande."
"Sei que você antipatiza com ele."
"É com a máquina que antipatizo. Ela vai estar sempre presente. Tenha a certeza de que compreende isso para não ser triturada por ela."
A neve estala e salta de encontro ao vidro à medida que passamos por campos abertos e bosques cerrados; um córrego corre acelerado contra o parapeito à nossa direita
quando cruzamos uma ponte. O ar deve estar mais frio aqui, a neve cai miúda e gelada à medida que entramos e saímos de bolsões de tempo inconstante que julgo inquietantes.
"A sra. Donahue sabe que o legista-chefe e diretor do CFC, alguém chamado Scarpetta, é o chefe de Jack", diz Benton então. "Tinha que saber já que se deu o trabalho
de mandar te entregar alguma coisa. Mas talvez seja a única coisa que ela saiba", resume ele, propondo uma explicação para o que acaba de acontecer no aeroporto.
"Vamos examinar o que quer que seja." Quero o envelope.
"Isso devia ir para o laboratório."
"Ela sabe que eu sou chefe de Jack, mas não sabe que sou mulher." Parece absurdo, mas é possível. "Ainda que tudo que ela tivesse que fazer fosse colocar meu nome
no Google."
"Nem todos usam o Google."
Lembro como me esqueço fácil de que no mundo existem pessoas pouco sofisticadas em termos tecnológicos, inclusive alguém que pode ter um chofer e um Bentley. Suas
lanternas traseiras estão muito à nossa frente agora na via estreita de duas pistas, diminuindo e se distanciando à medida que o carro segue rápido demais para as
condições.
"Você mostrou alguma identificação ao motorista?", pergunto.
"O que você acha?"
É evidente que Benton não faria isso. "Então ele não percebeu que você não é Scarpetta."
"Não com base em nada que eu tenha feito ou dito."
"Acho que a sra. Donahue vai continuar a pensar que Jack trabalha para um homem. É estranho Jack não ter dito a ela como me encontrar nem tenha indicado como seu
motorista poderia me reconhecer, ao menos sugerido que sou uma mulher. Estranho. Não sei." Não estou convencida do que estamos pressupondo. Não parece certo.
"Eu não sabia que você estava com tantas dúvidas a respeito de Jack. Não que elas não sejam justificadas." Benton está tentando me fazer falar. É o agente do FBI
que existe dentro dele. Não o vejo há algum tempo.
"Só não venha me dizer que eu deveria saber", protesto com sentimento. "Já ouvi isso hoje o suficiente."
"Só estou dizendo que eu não sabia."
"E tudo que eu sabia era das minhas dúvidas e negações de sempre com respeito a ele", retruco. "Não tinha informações suficientes para estar mais preocupada que
o normal." É meu jeito de pedir a Benton que me dê informações suficientes se ele as tem, que não aja como policial ou como profissional da área de saúde mental.
Não retenha informação, estou pedindo.
Mas ele se segura. Não diz uma palavra. Sua atenção está voltada para a frente, seu perfil surge distinto sob a fraca claridade das luzes do painel. No nosso caso,
foi sempre assim. Contornamos informação confidencial e privilegiada. Dançamos ao redor de segredos. Às vezes, mentimos. No início, enganamos, porque Benton era
casado com outra pessoa. Ambos sabemos ludibriar. Não é algo de que me orgulhe e gostaria que isso não continuasse a ser necessário em termos profissionais. Especialmente
neste exato momento. Benton está dançando ao redor de segredos e quero a verdade. Preciso dela.
"Olha, nós dois sabemos como ele é, e realmente ando invisível desde que o CFC inaugurou", continuo. "Estive em um vácuo, fazendo o melhor possível para lidar com
tudo à distância enquanto cumpria jornadas de dezoito horas, sem tempo nem mesmo para conversar com minha equipe por telefone. Foi tudo eletrônico, na maioria das
vezes via e-mails e PDFs. Quase não vi ninguém. Eu nunca deveria ter colocado Jack no comando sob tais circunstâncias. Quando o recontratei e saí da cidade, sujeitei
todo mundo exatamente ao que aconteceu. Você me disse isso, e não foi o único."
"Você nunca quis acreditar que tem um problema sério com ele", diz Benton de um jeito que me deixa ainda mais insegura. "Mesmo que já tenha tido muitos. Às vezes
não existem provas suficientes que façam você aceitar uma verdade na qual não suporta acreditar. Não consegue ser objetiva quando se trata dele, Kay. Não sei bem
se alguma vez entendi o motivo."
"Você está certo e detesto admitir isso." Limpo a garganta e acalmo minha voz. "Sinto muito."
"Não sei se algum dia vou entender." Ele olha para mim de relance, com ambas as mãos ao volante; estamos sozinhos em uma via fustigada pela neve e mal iluminada,
dirigindo em meio à escuridão coberta de flocos de gelo. O Bentley já não é visível à frente. "Não estou te julgando."
"Ele destruiu a vida dele e precisa de mim outra vez."
"Não é culpa sua que ele tenha destruído a própria vida, a menos que você tenha deixado de me contar alguma coisa. Na verdade, aconteça o que acontecer, não seria
culpa sua. As pessoas destroem a própria vida. Não precisam dos outros para isso."
"Não é inteiramente verdade. Ele não tem culpa do que aconteceu quando criança."
"Nem você", diz Benton, como se soubesse mais sobre o passado de Fielding do que lhe contei, os poucos detalhes que conheço. Sempre tive o cuidado de não sondar
minha equipe, especialmente Fielding. Sei o suficiente a respeito das tragédias precoces pelas quais passou para dar atenção ao que ele talvez não queira discutir.
"É claro que isso parece uma bobagem", acrescento.
"Não uma bobagem. Só um drama que vai sempre acabar do mesmo jeito. Nunca entendi completamente por que você sente a necessidade de fazer esse jogo. Tenho a impressão
de que alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que você não me contou."
"Eu te conto tudo."
"Nós sabemos que isso não é verdade com relação a nenhum dos dois."
"Talvez eu deva ficar só com os mortos." Ouço a amargura em minha voz, o ressentimento se infiltrando nas barreiras que construí cuidadosamente durante a maior parte
da vida. Talvez eu já não saiba viver sem elas. "Sei lidar muito bem com os mortos."
"Não fale assim", diz Benton baixinho.
É porque estou cansada, digo a mim mesma. É por causa do que aconteceu esta manhã quando a mãe negra de um soldado negro morto me denegriu e xingou ao telefone,
dizendo que sigo não a Regra de Ouro, e, sim, a Regra dos Brancos. Depois Briggs tentou sobrepujar minha autoridade. É possível que ele tenha armado para cima de
mim. É possível que queira que eu me dê mal.
"É um estereótipo", diz Benton então.
"O engraçado é que os estereótipos normalmente se baseiam em alguma coisa."
"Não diga coisas desse tipo."
"Não vai haver mais problemas com Jack. O drama vai acabar, prometo. Supondo que ele já não tenha dado um fim nisso, que já não tenha saído do emprego. Afinal, já
fez isso antes. Ele tem que ser demitido."
"Ele não é você, nunca poderia ser, e não é seu filho." Benton acha que é simples assim, mas não é.
"Ele precisa ficar solto", retruco.
"Ele é um patologista forense de quarenta e seis anos, que nunca mereceu sua confiança nem nada que você faz por ele."
"Meu assunto com ele está encerrado."
"Seu assunto com ele está encerrado. Temo que isso seja verdade e você vá ter que deixar Fielding ir embora", diz Benton, como se a decisão já tivesse sido tomada,
como se não dependesse de mim. "Por que você se sente tão culpada?" Há alguma coisa em seu tom de voz, alguma coisa em seu comportamento. Não consigo reconhecer
o que é. "Lá atrás, em Richmond, quando você estava começando a trabalhar com ele. Por que a culpa?"
"Sinto muito ter causado tantos problemas." Eu me esquivo da pergunta. "Estou com a sensação de ter deixado todo mundo na mão. Desculpe por não estar aqui. Não consigo
expressar o quanto lamento. Assumo a responsabilidade por Jack e não vou mais permitir que isso aconteça."
"Você não pode assumir a responsabilidade por certas coisas. Certas coisas não são culpa sua e sempre vou te lembrar disso, mas você provavelmente vai continuar
acreditando que é culpada", diz meu marido, o psicólogo.
Não vou discutir o que é ou não culpa minha, pois não posso contar por que motivo sempre fui irracionalmente leal a Jack Fielding. Voltei da África do Sul e minha
penitência foi ele. Meu serviço público, o castigo que me dei. Eu estava desesperada para fazer justiça por Fielding, por estar convencida de ter prejudicado todos
os demais.
"Vou dar uma olhada." Estou me referindo ao que se encontra no bolso do casaco de Benton. "Sei como examinar uma carta sem comprometer o material e preciso ver o
que a sra. Donahue me escreveu."
Puxo o envelope segurando-o de leve pelas bordas e descubro que a aba está lacrada com fita adesiva cinza, que cobre parcialmente um endereço impresso em uma fonte
serifada em estilo antigo. Reconheço a rua em Beacon Hill, Boston, próxima ao jardim público, muito perto de onde Benton tem uma casa que está em sua família há
gerações. Na frente do envelope está escrito KAY SCARPETTA: CONFIDENCIAL, com letra elaborada, feita com caneta-tinteiro, e tenho o cuidado de não tocar mais nada
com as mãos nuas, especialmente a fita. É uma boa fonte de impressões digitais, DNA e materiais microscópicos. Impressões escondidas podem ser reveladas em superfícies
porosas tais como papel por meio de um reagente como a ninidrina.
"Tem uma faca?" Pouso o envelope no colo. "E preciso que me empreste suas luvas."
Benton estende o braço e abre o porta-luvas; no interior há um canivete multifuncional Leatherman, uma lanterna, uma pilha de guardanapos. Ele puxa um par de luvas
de camurça do bolso do casaco e minhas mãos se perdem dentro delas, mas não quero deixar impressões digitais nem apagar as de outra pessoa. Não acendo a luz interna
do carro, mas a visibilidade está ruim e continua a piorar. Iluminando com a lanterna, introduzo uma pequena lâmina em um dos cantos do envelope.
Corto ao longo do topo e extraio duas folhas dobradas de papel de carta amarelado de gramatura alta com uma marca d'água que não consigo entender claramente, mas
parece algum tipo de brasão ou insígnia de família. O cabeçalho é o mesmo endereço em Beacon Hill, e as duas páginas foram datilografadas em uma máquina de escrever
com fonte cursiva, que é algo que não vejo há muitos anos, talvez há pelo menos uma década. Leio em voz alta:
Kay Scarpetta,
Espero que desculpe o que tenho certeza de que deve parecer um gesto inconveniente e arrogante de minha parte. Mas sou uma mãe desesperada, tão desesperada quanto
é possível.
Meu filho Johnny confessou um crime que sei que ele não cometeu e que não poderia ter cometido. Ele decerto teve dificuldades ultimamente que resultaram em nossa
busca de tratamento, mas, mesmo assim, nunca manifestou problemas sérios de comportamento, nem mesmo quando comecou Harvard como um garoto introvertido e amedrontado
de quinze anos. Se era para ter um colapso nervoso, acho que teria sido nessa ocasião, quando saiu de casa pela primeira vez, sem possuir as habilidades para interagir
com as outras pessoas e fazer amigos. Ele se saiu extraordinariamente bem até o outono passado, em seu último ano, quando sua personalidade mudou de forma alarmante.
Mas ele não matou ninguém!
O dr. Benton Wesley, consultor do fbI e integrante da equipe do Hospital McLean, conhece bem o histórico e os obstáculos evolucionários, e talvez tenha a liberdade
de discutir esses detalhes com o senhor, visto que não pareceu inclinado a discuti-los com seu assistente, o dr. Fielding. A história de Johnny é longa e complexa,
e preciso que a ouca. Basta dizer que quando ele foi admitido no McLean, na segunda-feira passada, foi por ter sido considerado um perigo para si próprio. Ele não
havia ferido nenhuma outra pessoa, nem insinuado que poderia fazê-lo. Então, de repente, do nada, ele confessou esse crime odioso e terrível e foi rapidamente transferido
a uma ala trancada, para os clinicamente insanos. Pergunto ao senhor, como é possível que as autoridades tenham acreditado tão prontamente em suas histórias absurdas
e delirantes?
Preciso conversar com o senhor. Sei que sua instituicão realizou a autópsia do menino que morreu em Salem e creio que seja razoável solicitar uma segunda opinião.
É evidente que tem conhecimento da conclusão do dr. Fielding - que o assassinato foi premeditado, cuidadosamente planejado, uma execucão a sangue-frio, que foi uma
iniciacão para um culto satânico. Algo monstruoso assim é absolutamente inconsistente com qualquer coisa que meu filho poderia fazer a alguém, e ele nunca teve nada
a ver com cultos de qualquer espécie. É absurdo presumir que sua predilecão por livros e filmes de terror, sobrenaturais ou violentos o tenha influenciado dessa
maneira.
Johnny sofre da síndrome de Asperger. É espetacularmente dotado em certas áreas e completamente incompetente em outras. É obcecado por hábitos e rotinas muito rígidos,
e, em 30 de janeiro, estava tomando um brunch no Biscuit com a pessoa mais próxima dele, uma aluna de pós-graduacão de extremo talento chamada Dawn Kincaid, exatamente
como os dois fazem todas as manhãs de sábado das dez à uma da tarde. Ele não poderia, portanto, estar em Salem quando o menino foi morto, às três.
Johnny possui a extraordinária capacidade de lembrar e papagaiar os detalhes mais obscuros, e para mim está claro que o que disse às autoridades saiu direto do que
lhe contaram sobre o caso e do que apareceu nos noticiários. Ele realmente parece acreditar que é culpado (por motivos que não compreendo) e afirma até mesmo que
uma "perfuracão" em sua mão esquerda provém de um mau disparo da pistola de pregos quando ele a usou no garoto, o que é falso. O ferimento foi causado por ele mesmo,
uma perfuracão proveniente de uma faca e um dos muitos motivos por que o levamos ao McLean para início de conversa. Meu filho parece decidido a ser severamente punido
por um crime que não cometeu, e, da forma como as coisas estão caminhando, vai ter seu desejo realizado.
Abaixo estão meus números de contato. Espero que o senhor tenha compaixão e que eu receba notícias suas em breve.
Atenciosamente,
Erica
Erica Donahue
6
Devolvo as folhas do papel de carta grosso e firme ao envelope, em seguida embrulho tudo em guardanapos que encontrei no porta-luvas e coloco no compartimento com
zíper da minha bolsa. Uma das coisas que aprendi é que não é possível voltar atrás. Sempre que uma prova em potencial é cortada, contaminada ou perdida, é como a
espátula de um arqueólogo despedaçando um tesouro antigo.
"Ela não sabe que somos casados", comento enquanto as árvores se agitam ao vento ao longo da rodovia, a neve rodopiando lívida.
"Parece que não", retruca Benton.
"O filho dela sabe?"
"Não discuto você nem minha vida pessoal com os pacientes."
"Então ela não deve saber muita coisa sobre mim."
Tento imaginar como é possível que Erica Donahue não tenha dito ao motorista que a pessoa a quem ele deveria entregar a carta é uma loura miúda, não um homem alto
de cabelo grisalho.
"Ela usa máquina de escrever, supondo que tenha datilografado isso", continuo a deduzir. "Mas quem quer que se dê o trabalho de lacrar o envelope para garantir confidencialidade
provavelmente não vai deixar que outra pessoa datilografe a carta. Se ela ainda usa máquina de escrever, é pouco provável que utilize a internet ou o Google. O papel
com marca d'água, a caneta-tinteiro, a fonte manuscrita da máquina, talvez seja uma pessoa purista, muito precisa, alguém que tem uma maneira muito estabelecida
de fazer as coisas."
"Ela é uma artista", diz Benton. "Uma pianista clássica que não compartilha os interesses altamente tecnológicos do resto da família. O marido é físico nuclear.
O filho mais velho é engenheiro em Langley. E Johnny, como ela salientou, é incrivelmente talentoso. Em matemática, ciências. Ter escrito essa carta não vai ajudar
o filho. Eu gostaria que ela não tivesse feito isso."
"Você parece muito envolvido com ele."
"Detesto quando pessoas vulneráveis se tornam uma saída fácil para os outros. Só porque alguém é diferente e não age como o restante de nós deve ser culpado de alguma
coisa."
"Tenho certeza de que o promotor público de Essex não ficaria satisfeito ao ouvir você dizer isso." Parto do princípio de que foi ele quem contratou Benton para
avaliar Johnny Donahue, mas Benton não está agindo como consultor, e certamente não como consultor do gabinete do advogado distrital. Está agindo como outra coisa.
"Declarações enganosas, ausência de contato visual, confissões falsas. Um rapaz com Asperger e seu interminável isolamento e busca de amigos", diz Benton. "Não é
incomum que uma pessoa assim seja excessivamente influenciável."
"E por que alguém ia querer influenciar Johnny para que ele assumisse a culpa por um crime violento?"
"Tudo que é necessário é a sugestão de alguma coisa suspeita. Por exemplo, que estranha coincidência você falar nessa coisa de ir para Salem e depois aparecer um
menino assassinado lá. Tem certeza de que você se machucou quando prendeu a mão na gaveta, ou aconteceu de outro jeito e você não está lembrado? As pessoas veem
culpa, então Johnny também vê. Ele é levado a dizer o que acha que os outros querem ouvir e a acreditar no que acha que querem acreditar. Não tem nenhuma compreensão
das consequências do seu comportamento. Pessoas com síndrome de Asperger, em especial adolescentes, estão estatisticamente sobrerrepresentadas entre gente inocente
que é presa e condenada."
Os flocos de neve aumentam de repente e voam selvagemente como pétalas de corniso sob efeito do vento forte. Benton reduz a marcha no tiptronic e pisa de leve no
freio.
"Talvez seja melhor encostar." Não enxergo a rodovia; os faróis refletem a brancura que enxameia ao nosso redor.
"É só um foco de tempestade, como uma microprecipitação." Ele debruça-se sobre o volante, olhando direto para a frente, enquanto somos fustigados por rajadas de
vento ameaçadoras. "Acho que é melhor passar por isso."
"Talvez seja melhor parar."
"Estamos em uma via asfaltada. Estamos na pista. Não tem nada vindo." Ele checa os espelhos. "Nada atrás de nós."
"Espero que você esteja certo." Não me refiro apenas à neve. Tudo parece ameaçador, como se forças sinistras nos rodeassem, como se estivéssemos sendo advertidos.
"Não foi uma coisa inteligente. Foi bem-intencionada, mas não inteligente." Benton dirige bem devagar através da brancura caótica. "É uma opinião, mas não vai ser
útil. É melhor você não telefonar para ela."
"Vou ter que mostrar a carta à polícia", retruco. "Ou pelo menos contar a respeito, para eles decidirem o que querem fazer."
"Ela só piorou a situação." Ele diz isso como se fosse o responsável. "Não se envolva nisso, telefonando para ela."
"Além de tentar influenciar o serviço médico legal, de que forma ela piorou a situação?", pergunto.
"Vários pontos-chave estão incorretos. Johnny não lê terror, sobrenatural ou violento, nem assiste a filmes desse tipo, não que eu saiba, pelo menos, e esse detalhe
não vai ajudar. Além disso, Mark Bishop não foi assassinado às três. Foi por volta das quatro. A sra. Donahue pode não se dar conta do que acaba de insinuar a respeito
do filho", diz Benton à medida que a ventania branca termina de forma tão repentina quanto começou.
Os flocos estão outra vez pequenos e gelados, rodopiando como areia sobre o asfalto e formando pequenos montes na beira da rodovia.
"Johnny estava no Biscuit com a amiga, isso é verdade", prossegue Benton, "mas, segundo ele, ficou lá até as duas, não até uma. Aparentemente, os dois vão bastante
lá, mas não estou ciente de ter um sistema rígido de ir ao Biscuit todos os sábados com ela das dez à uma."
O Biscuit fica na Washington Street, a apenas quinze minutos de caminhada de nossa casa em Cambridge, e penso nos sábados em que Benton e eu entramos no pequeno
café com cardápio escrito no quadro-negro e bancos de madeira. Pergunto-me se Johnny e sua amiga alguma vez estiveram lá quando Benton e eu estávamos presentes.
"O que a amiga diz sobre a hora em que eles saíram do café?", pergunto.
"Ela alega que se levantou da mesa por volta da uma da tarde e saiu, deixando ele sentado lá porque estava agindo de forma estranha e se recusou a ir com ela. Segundo
a declaração dela à polícia, Johnny estava falando em ir até Salem para ler sua sorte, estava falando desenfreadamente nisso e continuava sentado à mesa quando ela
saiu."
Acho interessante que Benton tenha examinado uma declaração à polícia ou conheça os detalhes do que disse uma testemunha. Seu papel não é determinar culpa ou inocência,
nem se preocupar com isso, mas avaliar se o paciente está dizendo a verdade e está apto a ir a julgamento.
"Alguém com Asperger teria dificuldade diante do conceito de leitura de cartas ou qualquer coisa dessa natureza", Benton diz, e quanto mais ele relata, mais perplexa
fico.
Benton está falando comigo como se fosse um detetive e estivéssemos trabalhando juntos no caso, ainda que seja enigmático quando se trata de Jack Fielding. Não há
nada de casual nisso. Meu marido raramente deixa escapar informação, mesmo que aparente o contrário. Quando acha que devo tomar conhecimento de alguma informação
que não pode me contar, ele descobre um jeito de fazer com que eu descubra. Quando decide que é melhor que eu não saiba, ele não me ajuda. É dessa forma frustrante
que vivemos e posso ao menos dizer que nunca fico entediada com ele.
"Johnny não consegue pensar de forma abstrata, não consegue entender metáforas. Ele é muito concreto", diz Benton.
"E as outras pessoas no café?", pergunto. "Alguém poderia confirmar o que a amiga relatou ou o que Johnny afirma?"
"Nada mais conclusivo que ele e Dawn Kincaid terem ficado lá na manhã de sábado", responde Benton, e não me recordo de tê-lo visto tão preocupado com alguém que
avaliou. "Desconheço que isso fosse uma rotina semanal e, quando Johnny confessou, vários dias já haviam se passado. É incrível como as pessoas não se lembram das
coisas, e então começam a fazer suposições."
"Tudo que você tem é o que Johnny está dizendo e agora o que a mãe dele escreveu", reitero. "Johnny diz que saiu do Biscuit às duas, então não teria tempo de ir
até Salem e cometer o assassinato por volta das quatro. Mas a mãe dele diz que saiu à uma, e aí ele teria tempo suficiente."
"Como eu disse, isso não vai ajudar. O conteúdo da carta é muito ruim para ele. Até agora, o único álibi que mostraria que a confissão é conversa fiada é a cronologia.
Mas uma hora poderia fazer toda a diferença."
Imagino Johnny erguendo-se da mesa no Biscuit por volta da uma da tarde e dirigindo-se a Salem. Dependendo do tráfego e de quando ele de fato saiu de Cambridge ou
de Somerville e seguiu rumo ao norte pela I-95, pode ter chegado à casa dos Bishop por volta das duas, duas e meia.
"Johnny tem carro?", pergunto.
"Ele não sabe dirigir."
"Um táxi, o trem? Não a balsa nesta época do ano. Só começa a funcionar na primavera, e ele teria que embarcar em Boston. Mas você está certo. Sem carro, Johnny
levaria mais tempo para chegar lá. Uma hora faria diferença para alguém que precisava procurar transporte."
"Só não entendo onde ela conseguiu esse detalhe", diz Benton. "Bom, talvez através dele. Talvez ele tenha mudado a história novamente. Johnny disse que saiu do Biscuit
às duas, não à uma, mas talvez tenha alterado esse detalhe bastante decisivo porque acha que é o que alguém quer ouvir. Mas seria esquisito, muito esquisito."
"Você esteve com ele esta manhã."
"Eu não o influenciaria a alterar um detalhe."
Benton está dizendo que o detalhe é novo e que não acredita que Johnny tenha mudado sua história no que diz respeito à hora em que deixou o café. Parece que a sra.
Donahue simplesmente cometeu um engano, mas, quando tento imaginar a situação, parece estranho.
"De todo jeito, como ele teria chegado a Salem?", pergunto.
"Ele pode ter pegado um táxi ou o trem, mas também não existem provas de que tenha feito isso. Não foi visto por ninguém, não foram encontrados recibos, nada que
prove que já esteve em Salem ou que tinha alguma ligação com a família Bishop. Não há nada a não ser a confissão", diz Benton, enquanto seus olhos se deslocam para
o espelho retrovisor. "A história dele é exatamente o que tem saído nos noticiários, e Johnny modifica os detalhes conforme as notícias e teorias mudam. Essa parte
da carta da mãe está certa. Ele papagueia os detalhes palavra por palavra. Inclusive se alguém sugere um novo cenário ou informação - se o comanda, em outras palavras.
Sugestionabilidade, vulnerabilidade à manipulação, agir de forma a gerar desconfiança são sinais inconfundíveis da síndrome de Asperger." Ele torna a olhar de relance
para o espelho. "E atenção aos detalhes, a minúcias que podem parecer esquisitas para os outros. Como a hora. Ele sempre sustentou que saiu do Biscuit às duas da
tarde. Duas e três, para ser exato. Você pergunta a Johnny que horas são ou a que horas ele fez alguma coisa e ele vai informar com a precisão de segundos."
"Então por que mudaria esse detalhe?"
"Na minha opinião, não mudaria."
"Se ele realmente quer que as pessoas acreditem que assassinou Mark Bishop, parece que o melhor seria dizer que saiu mais cedo."
"Não é que queira que as pessoas acreditem nisso. É que ele acredita nisso. Não por causa daquilo que lembra, mas por causa do que não lembra e por causa do que
tem sido sugerido."
"Por quem? Parece que Johnny confessou antes mesmo de se tornar um suspeito e ser interrogado. Portanto, não foi induzido a uma falsa confissão pela polícia, por
exemplo."
"Ele não lembra. Está convencido de que sofreu um episódio dissociativo depois que saiu do Biscuit às duas da tarde, de alguma forma chegou a Salem e matou o garoto
com uma pistola de pregos..."
"Ele não fez isso", interrompo. "Garanto. Ele não matou Mark Bishop com uma pistola de pregos. Ninguém matou."
Benton nada diz à medida que acelera, os flocos de neve pequenos novamente, parecendo brita de encontro ao carro.
"Além disso, é evidente que a sra. Donahue interpretou mal a opinião médica de Jack." Falo com convicção enquanto outra parte minha não para de se preocupar com
a forma como devemos lidar com ela. Cogito fazer o que disse Benton e não telefonar. Em vez disso, vou pedir a meu assistente administrativo, Bryce, que faça contato
com ela cedo pela manhã para dizer que lamento, mas não estou autorizada a discutir o caso de Mark Bishop ou nenhum outro. É importante que Bryce não dê a impressão
de que estou muito ocupada, de que estou impassível diante da angústia da sra. Donahue, o que me faz pensar novamente na mãe do soldado de primeira classe Gabriel,
nas coisas dolorosas que ela me disse de manhã em Dover. "Imagino que você tenha examinado o relatório da autópsia", digo a Benton.
"Examinei."
"Então você sabe que não há nada no relatório de Jack que mencione uma pistola de pregos, só que ferimentos causados por pregos, que penetraram o cérebro, foram
a causa da morte." Concluo que não posso permitir que Bryce faça uma chamada como essa em meu nome. Eu mesma vou telefonar e pedir à sra. Donahue que não entre em
contato comigo novamente. Vou enfatizar que é para sua própria proteção. Então me sinto cheia de dúvidas, indo e voltando a respeito do que fazer, já não tão segura
de mim. Sempre tive confiança em minha capacidade de lidar com gente inconsolável, despojada e furiosa, mas não entendo o que aconteceu esta manhã. A sra. Gabriel
me chamou de preconceituosa. Ninguém nunca me chamou de preconceituosa.
"Uma pistola de pregos não foi descartada pelas pessoas que contam", informa Benton. "Inclusive Jack."
"Acho isso quase impossível de acreditar."
"Foi o que ele andou dizendo."
"É a primeira vez que ouço isso."
"Jack disse para todo mundo. Não me interessa o que está escrito no relatório dele, na papelada que você viu", repete Benton enquanto olha pelo retrovisor.
"Por que ele diria algo diferente dos relatórios?"
"Estou simplesmente retransmitindo a você que sei com certeza que ele andou dizendo que uma pistola de pregos foi a arma."
"Dizer que foi usada uma pistola de pregos é absolutamente contrário a provas científicas e médicas." No espelho lateral, vejo faróis atrás de nós. "Uma pistola
de pregos deixa marcas consistentes com um único golpe mecanizado, semelhante à impressão de um gatilho na cápsula de um cartucho. Em vez disso, o que temos nesse
caso são as marcas de um instrumento sobre pregos, que são consistentes com um martelo de mão, e havia marcas de martelo no couro cabeludo e no crânio do garoto,
além de contusões de padrão compatível. As pistolas de pregos muitas vezes deixam um resíduo semelhante ao de um tiro, mas os ferimentos de Mark Bishop deram negativo
para chumbo e bário. Não foi usada uma pistola de pregos e estou francamente surpresa se o que você está insinuando é que a polícia e o promotor acreditam no contrário."
"Não é difícil entender algumas coisas em que as pessoas optam por acreditar nesse caso", diz Benton e acelera, atingindo o limite de velocidade.
Torno a olhar para o espelho lateral e os faróis estão muito mais próximos. Luzes brilhantes branco-azuladas resplandecem. Um SUV grande, com faróis de xenônio e
de neblina. Marino, penso. E atrás dele, espero, está Lucy.
"E querem acreditar que a confissão de Johnny é verdadeira, como eu disse", prossegue Benton. "Querem achar que foi um ataque de surpresa, que Mark Bishop não imaginava
que isso ia acontecer, ou teria lutado. Ninguém quer pensar que uma criança foi subjugada e sabia o que ia acontecer enquanto alguém enfiava pregos em seu crânio
com um martelo, pelo amor de Deus."
"Ele não tinha nenhum ferimento de defesa, não havia evidências de luta ou de sujeição. Está no relatório de Jack. Tenho certeza de que você viu, e tenho certeza
que ele explicou tudo isso ao promotor, à polícia."
"Quem me dera você tivesse feito a autópsia." Benton desvia o olhar para os espelhos.
"O que exatamente Jack andou dizendo além do que li? Além da possibilidade da pistola de pregos?"
Benton não responde.
"Talvez você não saiba", acrescento então, mas acho que sabe.
"Ele disse que não podia descartar a pistola de pregos", esclarece Benton. "Disse que não é possível afirmar de forma definitiva. Disse isso depois que foi questionado
por causa do que Johnny alegou na confissão. Jack foi específica e diretamente questionado se uma pistola de pregos poderia ter sido usada."
"A resposta é definitivamente não."
"Ele garantiu que não era possível dizer de forma definitiva nesse caso. Que pode ter sido uma pistola de pregos."
"Estou te dizendo que não é possível, e que é possível afirmar de forma definitiva", retruco. "E essa foi a primeira vez que ouvi falar de uma pistola de pregos,
a não ser pelo que foi publicado na internet, que descartei, como descarto sempre, a menos que confie na fonte."
"Jack sugeriu que, se você pressionasse uma pistola de pregos contra a cabeça de alguém, obteria uma ferida de contato similar à produzida pelo disparo de uma arma
de fogo. E é possível que seja o que observamos no couro cabeludo e no tecido subjacente. E isso explicaria por que não há evidência de luta ou de que o garoto soubesse
o que estava acontecendo."
"Você não obteria uma ferida de contato similar ao disparo de uma arma de fogo e não é possível", retruco. "Os ferimentos que vi em fotografias são marcas de martelo,
e só porque não havia evidência de luta não significa que o menino não tenha sido de alguma forma coagido, persuadido ou manipulado no sentido de cooperar. Parece
que certas partes estão optando por ignorar as provas do caso por causa daquilo em que querem acreditar. Isso é extremamente perigoso."
"Acho que é Fielding quem está ignorando as provas do caso. Talvez intencionalmente."
"Meu Deus, Benton. Ele pode ser um monte de coisas..."
"Ou é negligência. Um ou outro", diz Benton e creio que ele tem alguma coisa em mente. "Escute. Você fez o melhor que pôde nos últimos seis meses."
"O que isso quer dizer?" Sei o que quer dizer. Exatamente o que temi todos os dias em que estive fora.
"Lembra quando ele era seu amigo na idade das trevas, em Richmond?" Benton está se aproximando de uma zona proibida, mesmo que não saiba disso. "Desde o primeiro
dia, ele não suportava trabalhar com crianças, isso é a mais absoluta verdade, como você já apontou. Quando entrava uma, ele desaparecia no ato, às vezes durante
dias seguidos. E você circulava de carro, tentando encontrar Jack, indo à casa dele, ao seu bar preferido, à academia ou ao tae kwon do, e ele bebia até cair ou
quase matava alguém de porrada. Não que algum de nós goste de lidar com crianças mortas, pelo amor de Deus, mas ele tinha um problema sério."
Eu deveria ter incentivado Fielding a ingressar na patologia cirúrgica, a trabalhar em algum laboratório hospitalar, fazendo biópsias. Em vez disso, fui sua mentora
e o promovi.
"Mas ele pegou o caso de Mark Bishop", diz Benton. "Poderia ter passado o garoto para um dos outros médicos. Só espero que ele não tenha mentido; acima de tudo,
realmente espero que ele não tenha feito isso." Mas Benton acha que Fielding está mentindo. Dá para notar.
"Acima do quê?", pergunto enquanto olho para o espelho lateral, perguntando-me por que Marino está colando no nosso para-choque.
"Espero que não tenha sido incentivado a sugerir a possibilidade da pistola de pregos quando ele sabe que é impossível." Benton tem o hábito de olhar para os espelhos
sem mover a cabeça. Devido a todos os anos de trabalho como agente secreto, vigiando as próprias costas. Certos hábitos nunca desaparecem.
"Quem?", pergunto.
"Não sei."
"Você parece saber. Mas não vai me dizer." Não adianta pressioná-lo. Se não diz, é porque não pode. Vinte anos dessa dança e nunca fica mais fácil.
"Os policiais querem o caso resolvido, isso é certo", diz Benton. "Querem que a pistola de pregos seja a arma porque foi o que Johnny confessou e porque é mais fácil
de lidar com essa ideia do que com a do martelo. Mas me preocupo com a influência sobre Jack."
"Você sabe que alguém o influenciou? Ou é só uma hipótese?"
"Acho que ele está influenciando as pessoas", diz Benton em seguida, e é isso o que realmente pensa.
"Queria que Marino saísse da nossa cola. Esses faróis estão me cegando. O que ele está fazendo?"
"Não é Marino", diz Benton. "Ele não tem faróis assim e tem placa dianteira. Esse carro não. É de um estado que não exige placa dianteira, ou então ela foi removida
ou coberta."
Viro-me para ver e os faróis ferem meus olhos. O utilitário está a pouca distância de nós.
"Talvez seja alguém tentando ultrapassar", reflito em voz alta.
"Vamos ver. Mas acho que não." Benton reduz a velocidade e o utilitário faz o mesmo. "Então vou te obrigar a nos ultrapassar, o que acha?" Ele está falando com o
motorista atrás de nós. "Pegue o número da placa traseira quando ele passar."
Quase paramos, e o utilitário também. Dá uma ré rápida e uma guinada de cento e oitenta graus, seguindo em sentido contrário, rabeando à medida que acelera noite
adentro na rodovia coberta de neve. Não consigo distinguir a placa na traseira nem qualquer detalhe do utilitário, exceto que é escuro e grande.
"Por que alguém estaria nos seguindo?", pergunto a Benton como se ele soubesse a resposta.
"Não faço ideia do que tenha sido isso."
"Alguém estava nos seguindo. Foi isso. Muito de perto por causa do tempo, porque a visibilidade está tão ruim que você tem que ficar perto ou pode perder a pessoa
de vista se ela fizer uma curva."
"Algum idiota", diz Benton. "Ninguém sofisticado. A menos que quisesse que a gente soubesse, ou tenha pensado que não íamos perceber."
"Como é possível? Acabamos de passar por uma nevasca. De onde esse carro saiu? Do nada?"
Benton pega seu telefone e tecla um número.
"Onde você está?", pergunta a quem quer que tenha atendido. Após uma pausa, acrescenta: "Um utilitário grande com faróis de neblina e xenônio, sem placa dianteira,
colado na gente. Isso mesmo. Fez a volta e disparou em sentido contrário. Isso, na Rota Dois. Algum carro assim passou por você? Bom, é estranho. Ele deve ter entrado
em algum desvio. Bom, se... Certo. Obrigado."
Benton recoloca o telefone no console e explica: "Marino está alguns minutos atrás de nós, e Lucy está logo atrás dele. O utilitário desapareceu. Se alguém foi idiota
o suficiente para nos seguir, vai tentar outra vez e vamos descobrir. Se o objetivo é nos intimidar, então quem quer que seja não conhece o alvo".
"Agora nós somos alvos."
"Alguém mais esperto não tentaria isso."
"Por sua causa."
Benton não responde. Mas o que eu disse é verdade. Quem sabe alguma coisa sobre Benton estaria ciente do quão imprudente é achar que ele pode ser intimidado. Sinto
sua rispidez, sua aura dura como aço. Sei o que ele é capaz de fazer quando ameaçado. Ele e Lucy são parecidos. Recebem com prazer o confronto. Benton só é mais
calmo, mais calculista e contido que minha sobrinha.
"Erica Donahue." É o primeiro pensamento que me vem à mente. "Ela já mandou uma pessoa nos interceptar e duvido que perceba quão perigoso é o bonito e charmoso psicólogo
de Harvard que atende o filho dela."
Benton não sorri. "Isso não tem lógica."
"Quantas pessoas sabem do nosso paradeiro?" Não faz sentido tentar aliviar o clima, que é tenso. Benton tem seu próprio esquema de vigilância. É diferente do esquema
de Lucy, e ele esconde muito melhor. "Ou do meu paradeiro. Quantas pessoas sabem?", continuo. "Não só a mãe ou o motorista. O que Jack fez?"
Benton torna a acelerar e não responde.
"Você não acha que Jack tem algum motivo para nos intimidar, não é? Ou tentar", digo então.
Benton não responde e seguimos em silêncio; não há sinal do utilitário com faróis de neblina e xenônio.
"Lucy acha que ele está bebendo muito." Benton por fim recomeça a falar. "Mas você deve ouvir isso dela. E de Marino." Seu tom de voz é monótono e percebo falta
de clemência nele. Não sente nada além de desprezo por Fielding, mesmo que silencie a respeito na maioria das vezes.
"Por que Jack ia mentir? Por que tentaria influenciar alguém?" Estou de volta a esse tópico.
"Aparentemente, ele tem chegado tarde e desaparecido, e está com problemas de pele outra vez." Benton não responde minha pergunta. "Espero que não esteja tomando
esteroides, especialmente na idade dele."
Abro mão da defesa habitual de que quando Fielding está intensamente estressado tem problemas de eczema e alopecia que não consegue evitar. Ele sempre foi obcecado
pelo próprio corpo, é um caso clássico de vigorexia ou transtorno dismórfico muscular, e muito provavelmente isso pode ser atribuído ao abuso sexual que sofreu quando
menino. Seria absurdo percorrer a lista, e não vou fazê-lo dessa vez. Para variar. Continuo a inspecionar o espelho lateral. Mas os faróis de xenônio e neblina se
foram.
"Por que ele ia mentir sobre esse caso?", torno a perguntar. "Por que ia querer influenciar qualquer um?"
"Não consigo imaginar como é possível fazer uma criança ficar parada para aquilo", diz Benton, e ele está pensando na morte de Mark Bishop. "A família estava em
casa e diz que não ouviu gritos, não ouviu nada. Eles alegam que Mark estava brincando num minuto e no outro estava caído de bruços no quintal. Estou tentando visualizar
o que aconteceu e não consigo."
"Tudo bem. Vamos conversar sobre isso, já que você não vai responder minha pergunta."
"Tentei imaginar o ocorrido, tentei reconstruir a situação e não consegui. A família estava em casa. Não é um quintal grande. Como é possível que ninguém tenha visto
uma pessoa ou ouvido alguma coisa?"
Seu rosto está sombrio quando passamos pelo Lanes & Games, onde Marino joga boliche. Como se chama a equipe? Não poupe ninguém. Seus novos amigos, policiais e militares.
"Pensei que já tivesse visto tudo, mas não consigo imaginar como aconteceu", Benton continua nesse assunto porque não pode ou não vai me falar o que de fato tem
em mente a respeito de Fielding.
"Uma pessoa que sabia exatamente o que estava fazendo." Visualizo a cena. Imagino em detalhes penosos o que o assassino executou. "Alguém que conseguiu deixar o
garoto à vontade, talvez o tenha seduzido para que fizesse o que pedia. Talvez Mark tenha pensado que aquilo fazia parte de um jogo, uma fantasia."
"Um estranho apareceu no quintal e fez com que o menino participasse de um jogo que envolvia ter pregos martelados em sua cabeça - ou fingir que isso estava ocorrendo,
o que é mais provável", reflete Benton. "Talvez. Mas um estranho? Não sei. Senti falta de conversar com você."
"Não foi um estranho, ou pelo menos não para Mark. Desconfio que tenha sido alguém de quem ele não tinha motivos para desconfiar - não importa o que a pessoa tenha
lhe pedido para fazer." Tomo por base o que sei a respeito de seus ferimentos ou da ausência deles. "O corpo não mostrava sinais de que ele estivesse aterrorizado
ou em pânico, de alguém tentando lutar ou fugir. Acho que é provável que estivesse familiarizado com o assassino e se sentisse inclinado a cooperar por algum motivo.
Também senti falta de conversar com você, mas estou aqui agora e você não está conversando comigo."
"Estou conversando com você."
"Um dia desses vou colocar pentotal sódico na sua bebida. E descobrir tudo que você nunca me contou."
"Se funcionasse, eu pagaria na mesma moeda. Mas então nós dois teríamos problemas sérios. Você não quer saber tudo. Ou não deve. E eu provavelmente também não."
"Quatro da tarde de 30 de janeiro." Estou pensando em quão escuro estava quando Mark foi assassinado. "A que horas o sol se pôs? Como estava o tempo?"
"Estava completamente escuro às quatro e meia, frio, nublado", diz Benton, que, se estivesse investigando o caso, teria se informado sobre esses detalhes antes de
qualquer outra coisa.
"Estou tentando lembrar se havia neve no chão."
"Não em Salem. Muita chuva por causa do porto. A água aquece o ar."
"Então ninguém recuperou pegadas no quintal dos Bishop."
"Não. Às quatro estava escurecendo e o quintal estava na sombra dos arbustos e árvores", informa Benton como se fosse o detetive no caso. "De acordo com a família,
a sra. Bishop, a mãe, saiu às quatro e vinte para chamar Mark para entrar e encontrou o menino caído de bruços em cima das folhas."
"Por que estamos supondo que ele tinha acabado de ser morto quando a mãe o encontrou? Os achados físicos com certeza não permitem precisar a hora da morte exatamente
às quatro da tarde."
"Pelo fato de que os pais se recordam de ter olhado pela janela aproximadamente às quinze para as quatro e terem visto Mark brincando", esclarece Benton.
"Brincando? O que isso quer dizer exatamente? Que tipo de brincadeira?"
"Não sei ao certo." Benton e sua atitude evasiva outra vez. "Eu gostaria de conversar com a família." Desconfio que já tenha conversado. "Há um monte de detalhes
faltando. Mas ele estava brincando sozinho no quintal e, quando a mãe olhou pela janela por volta das quatro e quinze, não viu o filho. Então saiu para chamar o
garoto e o encontrou. Tentou acordar o menino, depois o pegou e levou correndo para dentro. Ligou para a emergência exatamente às quatro e vinte e três, estava histérica,
disse que o filho não estava se mexendo nem respirando, que estava preocupada que ele estivesse engasgado."
"Por que ela achou que ele pudesse estar engasgado?"
"Aparentemente, antes de sair para brincar, ele enfiou no bolso algumas balas que tinham sobrado do Natal. Balas duras, e a última coisa que ela disse ao filho quando
ele saiu porta afora foi para não chupar enquanto estivesse correndo ou pulando."
Não posso evitar pensar que esse é o tipo de detalhe que Benton teria obtido dos Bishop em pessoa. Conversou com eles.
"E não sabemos do que estava brincando? Ele estava sozinho, correndo e pulando?", pergunto.
"Acabei envolvido nesse caso depois que Johnny confessou." Benton está sendo evasivo novamente. Por algum motivo, não quer conversar a respeito do que Mark estava
fazendo no quintal. "A sra. Bishop disse mais tarde à polícia que não viu ninguém na área, que não havia sinais de que tivesse entrado na propriedade e que não sabia,
até os médicos o examinarem, que ele tinha sido assassinado. Os pregos foram martelados até o fundo; o cabelo escondeu e não havia sangue. E os sapatos desapareceram.
Ele estava com tênis Adidas enquanto brincava no quintal. Eles sumiram e ainda não apareceram."
"Um menino brincando no quintal perto de escurecer. Mais uma vez, é difícil imaginar que fosse cooperar com um estranho. A menos que fosse alguém que representava
alguma coisa em que ele instintivamente confiava." Continuo a defender essa tese.
"Um bombeiro. Um policial. O cara que dirige o caminhão de sorvete. Esse tipo de coisa", Benton reflete com facilidade, como se fosse seguro conversar sobre isso.
"Ou pior. Um membro da própria família."
"Um membro da família mataria o garoto de forma tão sádica e depois tiraria seus sapatos? Tirar os sapatos dá a ideia de que o assassino queria uma lembrança."
"Ou queria que pensassem nisso", diz Benton.
"Não sou psicóloga forense", digo então. "Estou desempenhando seu papel e não devia fazer isso. Eu gostaria de ver onde aconteceu. Jack não foi à cena do crime e
devia ter feito uma visita retrospectiva." Meu humor piora quando digo isso. Ele não foi à cena de Mark Bishop e não foi a Norton's Woods.
"Ou outro garoto. Crianças jogando um jogo que acabou se tornando mortal", diz Benton.
"Se foi outro garoto", retruco, "estava muito bem informado em termos anatômicos."
Visualizo as fotografias da autópsia, a cabeça do garoto com o couro cabeludo iluminado por trás. Visualizo as tomografias computadorizadas, imagens tridimensionais
de quatro pregos de ferro de cinco centímetros penetrando o cérebro.
"Quem quer que tenha feito isso não podia ter escolhido posições mais letais para introduzir os pregos", explico. "Três atravessaram o osso temporal acima da orelha
esquerda e penetraram a ponte. Um foi pregado na parte posterior do crânio, direcionado para o alto, então lesionou a junção cérvico-medular, ou a medula cervical
superior."
"Em quanto tempo ele morreu?"
"Quase instantaneamente. Só o prego na parte posterior da cabeça o teria matado em minutos, tanto quanto uma pessoa leva para morrer quando não consegue mais respirar.
Lesões nos níveis C-1 e C-2 da medula espinhal interferem na respiração. A polícia, o promotor, um corpo de jurados, por sinal, teriam dificuldade em acreditar que
outra criança poderia ter feito isso. Parece que causar a morte, a morte quase imediata, era a intenção, e o ato foi premeditado, a menos que houvesse martelo e
pregos na cena do crime, no quintal ou na casa e, segundo todos os registros, não havia. Certo?"
"Havia um martelo. Mas que casa não tem um martelo? E as marcas da ferramenta não coincidem. Você sabe disso pelos relatórios do laboratório. Não havia pregos como
os que mataram o menino. Não foram encontrados na residência da família, nem uma pistola de pregos", informa Benton.
"Eram pregos em L, usados para pregar assoalhos."
"Segundo a polícia, nenhum prego desses foi encontrado na residência", repete ele.
"Ferro, não aço inoxidável." Prossigo com detalhes das fotografias, dos relatórios do laboratório, e simultaneamente ouço a mim mesma, estou ciente de que examino
o caso com Benton como se fosse meu. Como se fosse dele. Como costumávamos investigar casos no início do relacionamento. "Com traços de ferrugem apesar da camada
protetora de zinco, o que sugere que não eram novos", continuo. "Que talvez tivessem sido expostos a umidade, possivelmente água salgada."
"Não havia nada assim na cena do crime. Nenhum prego em L, absolutamente nenhum prego de ferro", diz Benton. "O pai andou espalhando o boato da pistola de pregos,
pelo menos publicamente."
"Publicamente. O que significa que ele contou à imprensa", presumo.
"Isso."
"Mas quando? Ele contou à imprensa quando? É isso que importa. De onde saiu o boato e quando. Sabemos que isso começou com o pai, e, se foi assim, é significativo.
Pode implicar que está oferecendo um álibi, sugerindo uma arma que não possui, que está tentando conduzir a polícia na direção errada."
"Concordo", diz Benton. "O sr. Bishop pode ter sugerido isso aos meios de comunicação, mas a questão é: alguém sugeriu isso a ele primeiro?"
Detecto mais sutilezas. Ocorre-me que Benton sabe como o boato da pistola de pregos começou. Sabe quem o originou e não é difícil adivinhar o que ele está insinuando.
Jack Fielding está tentando influenciar as pessoas sobre o caso. Talvez esteja por trás do boato que agora está em todos os noticiários.
"Devíamos fazer uma retrospectiva. Estou tentando lembrar o nome do detetive em Salem." Há tanto por fazer, tanta coisa que deixei escapar. Mal sei por onde começar.
"Saint Hilaire. James."
"Não conheço." Sou uma estranha em minha própria vida.
"Ele está convencido da culpa de Johnny Donahue e estou realmente preocupado que seja só uma questão de tempo até que Johnny seja acusado de assassinato em primeiro
grau. Precisamos agir rápido. Quando Saint Hilaire ler o que a sra. Donahue escreveu, as coisas vão piorar. Ele vai ficar mais convencido da culpa de Johnny. Temos
que fazer alguma coisa rápido", diz Benton. "Eu não devia me preocupar, mas me preocupo. Johnny não fez isso e nenhum júri vai gostar dele. Ele é inconveniente.
Interpreta mal as pessoas e elas o interpretam mal. Acham que é insensível e arrogante. Ri de coisas que não são engraçadas. É rude e obtuso, e não faz ideia disso.
A coisa toda é absurda. Uma caricatura. Provavelmente, um dos exemplos de confissão falsa mais claros que já vi."
"Então por que continua em uma unidade fechada no McLean?"
"Ele precisa de tratamento psiquiátrico, mas não, não devia estar trancafiado em uma unidade com pacientes psicóticos. Essa é minha opinião, mas ninguém me dá ouvidos.
Talvez você possa falar com Renaud e Saint Hilaire e eles te ouçam. Vamos até Salem e analisamos o caso com eles. Enquanto estivermos lá, damos uma olhada em tudo."
"E o colapso nervoso de Johnny?", pergunto. "Se acreditarmos na mãe, ele estava bem nos primeiros três anos em Harvard e de repente teve que ser hospitalizado. Quantos
anos Johnny tem?"
"Dezoito. Voltou a Harvard no outono passado para começar o último ano e estava visivelmente alterado", explicou Benton. "Verbal e sexualmente agressivo e cada vez
mais agitado e paranoico. Com o pensamento desorganizado e as percepções distorcidas. Sintomas semelhantes à esquizofrenia."
"Drogas?"
"Não existe absolutamente nenhuma evidência. Ele foi submetido a exames quando confessou o assassinato e deram negativo; até seu cabelo deu negativo para drogas
e álcool. Sua amiga da pós, Dawn Kincaid, está no MIT, e ela e Johnny estavam trabalhando juntos em um projeto. Ela ficou tão preocupada que por fim ligou para a
família dele. Isso foi em dezembro. Então, há uma semana, Johnny foi internado no McLean com uma facada na mão e disse ao psiquiatra que tinha assassinado Mark Bishop,
alegando que pegou o trem para Salem levando uma pistola de pregos na mochila. Disse que precisava de um sacrifício humano para se livrar de uma entidade maligna
que tinha assumido o controle de sua vida."
"Por que pregos? Por que não outra arma?"
"Tem alguma coisa a ver com os poderes mágicos do ferro. E grande parte disso apareceu no noticiário."
Eu me lembro de ter visto alguma coisa na internet sobre osso do diabo e menciono o fato.
"Exatamente. É como o ferro era chamado no antigo Egito", retruca Benton. "Vendem osso do diabo em algumas lojas em Salem."
"Dispostos em X. A pessoa carrega em uma bolsa de cetim vermelho. Já vi em algumas lojas de bruxaria. Mas não o mesmo tipo de pregos. Os das lojas de bruxaria parecem
mais cravos, têm que parecer antiguidade. E duvido que sejam tratados com zinco, que sejam galvanizados."
"Supostamente, o ferro protege contra espíritos malignos, daí a explicação dele para ter usado pregos de ferro. E a história não tem nada de original; como você
já sinalizou, foi uma das teorias que apareceram em todos os noticiários nos dias que antecederam a confissão dele do assassinato." Benton faz uma pausa, depois
acrescenta: "Sua própria repartição sugeriu a magia negra como motivador, aparentemente por causa da ligação com Salem".
"Não é nosso trabalho apresentar teorias. Nosso trabalho é sermos imparciais e objetivos, então não sei o que você está querendo dizer quando afirma que sugerimos
tal coisa."
"Só estou dizendo que isso foi discutido."
"Com quem?" Mas sei a resposta.
"Jack sempre foi irresponsável. Mas parece ter perdido o pouco controle que tinha", diz Benton.
"Acho que já constatei que Jack é um problema que não posso mais tentar resolver. Sobre o que era o projeto?" Volto ao que Benton mencionou a respeito da amiga de
Johnny Donahue no MIT. "E qual é o curso dele?"
"Ciências da computação. Desde o início do verão passado, ele estava estagiando na Otwahl Technologies em Cambridge. Como salientou a mãe, Johnny é excepcionalmente
talentoso em algumas áreas..."
"Fazendo o quê?" Visualizo a sólida fachada de concreto que se ergue como a represa Hoover a pouca distância do local por onde acabamos de passar, a parte de Cambridge
onde o utilitário com faróis de xenônio nos seguiu antes de desaparecer.
"Engenharia de software para UGVs e tecnologias relacionadas", informa Benton como se não fosse nada demais porque ele não sabe o que faço no que concerne aos UGVs.
Veículos terrestres não tripuláveis. Robôs militares como o protótipo MORT no apartamento do homem morto.
"O que está acontecendo aqui, Benton?", pergunto, carregada de sentimento. "Por Deus, o que está acontecendo?"
7
A tempestade aquietou, o vento está muito mais brando agora e a neve já tem vários centímetros de profundidade. O tráfego é constante na Memorial Drive, sendo o
clima de pouca importância para as pessoas acostumadas ao inverno de New England.
O telhado das repúblicas e os campos esportivos do MIT estão cobertos por um branco compacto no lado esquerdo da rodovia e, no outro lado, a neve flutua como fumaça
na ciclovia e no ancoradouro e desaparece no negrume gelado do Charles. Mais a leste, onde o rio deságua no porto, o horizonte de Boston exibe formas retangulares
fantasmagóricas e manchas de luz na noite leitosa; não há tráfego aéreo sobre Logan, nenhum avião à vista.
"Devíamos encontrar Renaud logo que possível - quanto mais cedo, melhor." Benton acha que o promotor distrital de Essex, Paul Renaud, deveria saber que talvez haja
algo mais na confissão de Johnny Donahue e que, de alguma forma, o aluno do último ano da Harvard e o morto em minha geladeira talvez estejam relacionados. "Mas
e se isso envolver a DARPA?", acrescenta Benton.
"A Otwahl é financiada pela DARPA. Mas não é a DARPA, não é o Departamento de Defesa. É civil, uma indústria privada internacional", respondo. "Mas é certo que está
intimamente ligada ao governo através de subvenções substanciais, dezenas de milhões, talvez muito mais que isso, desde a invenção dos MORT."
"A questão é no que mais eles estão concentrados, agora que podem ser importantes para essa história toda."
"Honestamente, não sei. Mas o óbvio vai dar para perceber só de olhar para o lugar." Se seguíssemos em direção a Hanscom, passaríamos a menos de dois quilômetros
da Otwahl Technologies e das instalações de teste em supercondutividade contíguas, um complexo gigantesco e autônomo com sua própria força policial particular. "Nêutrons,
muito provavelmente, e como se aplicam às novas tecnologias."
"A robótica", diz Benton.
"Robôs, nanotecnologia, engenharia de software, biologia sintética. Lucy sabe alguma coisa a respeito."
"Provavelmente mais que alguma coisa."
"Conhecendo minha sobrinha, sim. Muito mais que alguma coisa."
"Eles provavelmente estão criando humanoides, para nunca ficarmos sem soldados."
"Talvez estejam." Não estou brincando.
"E Briggs sabia sobre o robô no apartamento do sujeito." Benton está se referindo ao apartamento do morto. "Por causa dos vídeos? O que mais? Fico me perguntando
se ele disse alguma coisa a Jack, se telefonou e o alertou ao fazer perguntas."
Dou mais explicações, fazendo um relato detalhado do homem e das gravações que Lucy descobriu - gravações que Marino, de forma inapropriada, enviou a Briggs por
e-mail antes que eu tivesse a chance de examiná-las. Quando pude vê-las, foi apenas superficialmente, a caminho do Terminal Aéreo Civil em Dover. Conto a Benton
tudo a respeito do malfadado robô de seis pernas, o Transporte de Remoção Operacional Funerária, conhecido como MORT, perto da porta, e o faço recordar as controvérsias,
as desavenças que tive com alguns políticos e especialmente com Briggs sobre o uso da máquina para recuperar baixas no teatro de operações ou em qualquer outro lugar.
Descrevo a crueldade, o horror de uma estrutura de metal movida a combustível, que mais parecia uma motosserra, bamboleando através do terreno para recuperar seres
humanos feridos ou mortos, segurando-os com pegadeiras que lembravam a mandíbula de uma formiga-buldogue. "Pense na mensagem que isso transmite se você está morrendo
no campo de batalha e é essa máquina que seus companheiros enviam para te buscar", explico. "E aos conhecidos das vítimas que a veem no noticiário?"
"Você usou uma linguagem exaltada como essa quando testemunhou perante um subcomitê do Senado responsável pelas verbas de defesa", presume Benton.
"Não lembro o que disse exatamente."
"Tenho certeza de que não fez amigos na Otwahl. Provavelmente tem inimigos ali que nem conhece."
"Aquilo não teve nada a ver com a Otwahl nem com qualquer outra empresa de tecnologia. Tudo que fizeram foi criar um veículo robótico não tripulado. Foi o Pentágono
que propôs a máquina. Acho que, originalmente, o MORT foi criado para ser um packbot, mais nada. Eu nem lembrava que a Otwahl era a desenvolvedora até esta noite.
Eles nunca foram uma preocupação minha. Meu desentendimento foi com o Pentágono, e eu tinha que me manter firme." Quase digo dessa vez. Mas me seguro. Benton nada
sabe a respeito da vez em que não me mantive firme.
"Inimigos que não esqueceram. Esse tipo de inimigo nunca esquece. Lamento não ter participado de tudo isso quando estava acontecendo", desculpa-se Benton, pois não
estava presente quando fiz inimigos em Capitol Hill. Ele estava participando de um programa de proteção a testemunha e não podia me dar opiniões, conselhos ou mesmo
garantir que não estava morto. "Você deve ter arquivos sobre o assunto, registros da época."
"Por quê?"
"Eu queria dar uma olhada, para me inteirar da situação. Talvez explique certas coisas."
"Que coisas?"
"Eu queria dar uma olhada no que você tem sobre aquela época", repete Benton.
Transcrições do meu testemunho, gravações de vídeo dos segmentos que foram ao ar na C-SPAN: o que tenho estaria em meu cofre no nosso porão de Cambridge - junto
com certos itens que não quero que ele veja. Uma grossa pasta sanfonada cinza e fotografias que bati com minha própria câmera. Quadrados de cartolina branca manchados
de sangue, improvisados antes do dia dos kits de coleta de DNA nos cartões FTA, porque se o sangue seca ao ar pode durar para sempre e eu sabia para onde se encaminhava
a tecnologia. Envelopes brancos simples com pedaços de unha, pelos pubianos e cabelo. Esfregaços orais, anais e vaginais, calcinhas cortadas, rasgadas e ensanguentadas.
Uma garrafa de Chablis vazia, uma lata de cerveja. Materiais que contrabandeei de outro continente a meio mundo de distância mais de duas décadas atrás, provas que
não deveria possuir, itens que não deveria ter testado em particular, mas testei. Julgo seriamente que se Benton tivesse conhecimento dos casos da Cidade do Cabo,
talvez não se sentisse da mesma forma com relação a mim.
"Você conhece o ditado: a vingança é um prato que se come frio", continua ele. "Ferrou um projeto multimilionário gigantesco, uma joint venture entre o Departamento
de Defesa e a Otwahl Technologies, irritou muita gente e, ainda que alguns anos tenham se passado, desconfio que exista gente lá que não esqueceu, mesmo que você
tenha esquecido. E agora está aqui, trabalhando com o Departamento de Defesa no quintal da Otwahl. A oportunidade perfeita para planejar a vingança, para dar o troco."
"Dar o troco? Um homem que morre em Norton's Woods é o troco?"
"Só acho que devíamos saber com quem estamos lidando."
Então paramos de conversar, porque chegamos à ponte que liga Cambridge a Boston, a Mass Ave, a ponte de Harvard ou a ponte do MIT, como dizem os moradores, dependendo
de quem preferem. Logo adiante, meu centro de operações ergue-se como um farol, em forma de silo com uma cúpula de vidro no topo, sete andares ladeados por titânio
reforçado com aço. Na primeira vez que Marino viu o CFC, resolveu que parecia uma bala dundum e, na escuridão repleta de neve, acho que parece mesmo.
Saindo da Memorial Drive e nos afastando do rio, pegamos a primeira à esquerda e entramos na área de estacionamento, iluminada por lâmpadas solares de segurança
e circundada por uma cerca revestida de PVC preto que não pode ser escalada nem cortada. Retiro um controle remoto da bolsa, pressiono um botão para abrir o alto
portão e avançamos sobre marcas de pneus quase completamente cobertas de pó branco recente. Os carros de Anne e Ollie estão aqui, estacionados perto das vans de
carga e dos utilitários de tração integral. Deveria haver quatro, mas um deles está fora desde antes de começar a nevar, provavelmente o do investigador médico-legal
de plantão.
Pergunto-me quem está de serviço hoje e por que saiu em um de nossos veículos. Está em alguma cena de crime ou em casa? Para além da cerca, há prédios de laboratório
que pertencem ao MIT, em vidro e tijolo, com antenas e parabólicas de rádio no telhado, as janelas às escuras, exceto por algumas aleatórias que brilham fracamente,
como se alguém tivesse deixado uma luminária de mesa ou abajur aceso. A neve risca a noite e ressoa como chuva forte enquanto Benton para perto do meu prédio, no
espaço destinado ao diretor, próximo à vaga de Fielding, que está vazia e cheia de neve.
"Podemos parar na entrada de serviço", diz Benton, com ar esperançoso.
"Seria um pouco antipático, já que ninguém mais pode", retruco. "E não é permitido de qualquer forma. Só para coletas e entregas."
"Dover te estragou. Vou ter que bater continência?"
"Só em casa."
Saltamos; a neve chega aos tornozelos das minhas botas e não compacta embaixo delas porque faz muito frio; os flocos são miúdos e gelados. Insiro um código em um
teclado numérico ao lado de uma porta de enrolar automática, que começa a se erguer com ruído enquanto Marino e Lucy entram no estacionamento. A área de recebimento
parece um pequeno hangar pintado com tinta epóxi branca; o teto é equipado com um guindaste monotrilho, um levantador motorizado para deslocar corpos grandes demais
para tratamento manual. No interior, há uma rampa que conduz a uma porta de metal e, estacionada a um lado, acha-se nossa van branca para transporte de corpos, o
que em Dover chamamos de caminhão do pão, destinada a transportar até seis corpos em macas ou caixas de transporte e servir de laboratório criminal móvel quando
necessário.
Enquanto espero por Marino e Lucy, lembro que não estou vestida para New England. Minha jaqueta tática era perfeitamente adequada em Delaware, mas agora estou gelada.
Tento não pensar em como seria bom sentar diante da lareira com um uísque escocês single malt ou um bourbon de produção limitada para conversar com Benton sobre
outras coisas além de acontecimentos trágicos, traição e inimigos com boa memória. Para fugir de todos. Quero beber e conversar de forma honesta com meu marido,
deixar de lado os jogos e subterfúgios, sem ficar me perguntando o que ele sabe. Anseio por um período normal com ele, mas não sabemos o que é isso. Até mesmo quando
fazemos amor temos nossos segredos e nada é normal.
"Nenhuma novidade a não ser Lawless." Marino responde uma pergunta que ninguém fez enquanto a porta automática desce ruidosamente atrás de nós. "Ele enviou um e-mail
com fotos da cena - finalmente. Mas disse que não tiveram sorte com o cachorro. Ninguém ligou para dar parte de um galgo perdido."
"Que galgo?", pergunta Benton.
Estive ocupada demais descrevendo o MORT e não mencionei outras coisas que vi nos vídeos. Sinto-me ridícula. "Norton's Woods", respondo. "Um galgo preto e branco
chamado Sock que, ao que tudo indica, fugiu enquanto os paramédicos estavam ocupados com nosso caso."
"Como você sabe que o nome dele é Sock?"
Explico enquanto mantenho o polegar sobre o sensor de vidro da fechadura biométrica para que escaneie minha digital. Abrindo a porta que conduz ao nível inferior
do edifício, menciono que o cão talvez tenha um microchip que poderia fornecer informação útil sobre a identificação do proprietário. Alguns grupos de resgate colocam
microchips em antigos galgos de corrida antes de enviá-los para adoção, acrescento.
"Isso é interessante", diz Benton. "Acho que vi os dois."
"Ele olhou direto para você quando estava saindo da garagem por volta de três e quinze da tarde ontem", explica Lucy quando entramos na área de processamento, um
espaço aberto com um escritório de segurança, uma balança digital e uma parede com portas de aço inoxidável maciças que se abrem para compartimentos refrigerados
e um freezer grande.
"Do que você está falando?", pergunta Benton à minha sobrinha.
"Esse tempo todo no carro dirigindo em uma nevasca e você não colocou Benton a par das coisas?" Lucy dirige-se a mim e não é fácil estar por perto quando ela fica
desse jeito.
Sinto uma ponta de aborrecimento, mesmo que ela esteja certa. Lucy conhece você, começa minha mente. Ela conhece você tão bem quanto você a ela. Lucy sabe muito
bem quando estou silenciando alguma coisa que me incomoda e que estou tensa desde que deixei Dover. Foi idiotice minha não entrar no tipo de detalhe com o qual Benton
pode fazer alguma coisa. Não conheço ninguém mais perspicaz em termos psicológicos, e ele teria muito a dizer sobre as minúcias captadas pelos gravadores ocultos
nos fones de ouvido do morto.
Em vez disso, fiquei obcecada pela DARPA porque, na realidade, estava obcecada por Briggs. Não consigo superar o que aconteceu hoje mais cedo, o que aconteceu décadas
atrás, a forma como o que ele causou parece nunca terminar. Briggs conhece meu passado sombrio, um lugar ao qual não levo ninguém, e uma parte minha nunca vai perdoá-lo
por ter participado disso. Minha ida à Cidade do Cabo foi ideia dele. Foi a porra do plano brilhante dele.
"O cara e o galgo passaram direto pela sua garagem poucos minutos antes de ele morrer." Lucy está contando a Benton, mas olha fixo para mim. "Se não tivesse saído,
teria ouvido as sirenes. Provavelmente teria ido até lá para ver o que estava acontecendo e talvez tivesse alguma informação útil para nós."
Lucy me olha como se olhasse para meu passado. Não é possível que tenha conhecimento disso, então me tranquilizo. Nunca lhe contei, nunca contei a Benton, a Marino,
a ninguém. Os documentos foram destruídos, exceto pelo que tenho. Briggs prometeu isso décadas atrás, quando deixei o AFIP e me mudei para a Virginia, e eu já sabia
que faltavam relatórios sem ter sido informada disso. Lucy não possui a combinação do meu cofre, lembro a mim mesma. Nem Benton. Nem ninguém.
"Se você passar em meu laboratório", ela diz a Benton, "te mostro os vídeos."
"Você ainda não viu?", pergunto a Benton, porque não tenho certeza. Ele está agindo como se não tivesse visto, mas não sei se são só mais segredos.
"Ainda não", diz ele, e parece verdade. "Mas quero e vou."
"É estranho você estar nele", diz Lucy. "A casa de vocês estar nele. Muito estranho. Eu meio que pirei quando vi."
O segurança noturno está sentado atrás da janela de vidro e balança a cabeça em nossa direção, mas não se levanta da mesa. Seu nome é Ron, um sujeito grande, musculoso,
de pele escura, com cabelo cortado rente e olhos inamistosos. Parece ter medo de mim ou ser cético, e é evidente que foi instruído para se manter em seu posto, não
ser sociável, não importa de quem se trate. Só posso imaginar as histórias que ouviu e Fielding torna a entrar em meus pensamentos. O que aconteceu? Que problemas
causou? Que prejuízos trouxe a este lugar?
Vou até a janela do segurança e verifico o registro de entradas. Desde as três da tarde, três corpos chegaram: uma morte causada por um veículo, um homicídio por
arma de fogo e uma asfixia por saco plástico.
"O dr. Fielding está aqui?", pergunto.
Policial militar aposentado dos fuzileiros navais, Ron está sempre bem cuidado e imponente em seu uniforme azul-marinho com distintivos da bandeira americana e do
AFMES nos ombros e um emblema metálico de segurança do CFC preso à camisa. O rosto é desconfiado e nem um pouco amistoso por trás da divisória de vidro quando responde
que não viu Fielding. Ele comunica que Ollie e Anne estão aqui, mais ninguém. Nem mesmo o investigador de plantão. Janelle, informa ele em tom monótono, e toda segunda
palavra é senhora, o que me faz lembrar quão frio e condescendente senhora isso, senhora aquilo pode soar e o quanto me cansei de ouvir essa palavra em Dover. Janelle
está trabalhando em casa por causa do tempo, informa Ron. Aparentemente, Fielding disse que tudo bem, mesmo que não seja o caso. Vai contra as regras que estabeleci.
Investigadores de plantão não trabalham em casa.
"Vamos estar na sala de raios X", informo a Ron. "Se aparecer mais alguém, pode nos encontrar lá. Mas, a menos que seja o dr. Fielding, preciso saber quem é e dar
autorização. Na verdade, também quero saber se o dr. Fielding aparecer. Não importa quem seja, preciso ser informada."
"Se o dr. Fielding chegar, a senhora quer que eu avise", repete Ron como se não tivesse certeza de que foi o que eu quis dizer, ou talvez esteja argumentando.
"Isso", esclareço. "Ninguém deve simplesmente entrar, mesmo que trabalhe aqui. A menos que eu diga o contrário. Quero tudo controlado agora."
"Certo, senhora."
"Algum sinal da imprensa?"
"Estou alerta, senhora." Há monitores instalados em três paredes, cada um deles dividido em quadrantes que alternam constantemente as imagens captadas pelas câmeras
de segurança no exterior do edifício e áreas internas estratégicas, como entradas, corredores, elevadores, o saguão e todas as portas que conduzem ao prédio. "Sei
que existe certa preocupação com o homem que foi encontrado no parque." Ron olha para Marino atrás de mim, como se os dois tivessem um acordo.
"Bom, você sabe onde vamos estar por enquanto." Abro outra porta. "Obrigada."
Um longo corredor branco com piso de ladrilho cinza conduz a uma série de dependências situadas em uma ordem lógica que facilita o fluxo de nosso trabalho. A primeira
parada é ID, onde os corpos são fotografados, as impressões digitais colhidas e os objetos pessoais que não foram apreendidos pela polícia são removidos e guardados
em armários. Em seguida, há os raios X em grande escala, que inclui o scanner de tomografia computadorizada, depois a sala de autópsias, a sala de material em decomposição,
a antessala, os vestiários, a sala dos armários, o laboratório de antropologia, o laboratório de contenção Bio4, reservado para os casos suspeitos de doenças infecciosas
ou contaminação. O corredor perfaz um círculo que termina onde começou, na baia de recepção.
"O que Ron sabe sobre nosso paciente de Norton's Woods?", pergunto a Marino. "Por que acha que existe uma preocupação?"
"Eu não disse nada a ele."
"Estou perguntando o que ele sabe."
"Ron não estava de serviço quando saímos mais cedo. Eu ainda não o tinha visto hoje."
"Eu gostaria de saber o que foi que disseram a ele", repito em tom paciente, porque não quero brigar com Marino na frente dos outros. "Essa é uma situação muito
delicada, é claro."
"Dei a ordem antes de sair de que todos tinham que ficar atentos à imprensa", diz Marino, retirando a jaqueta de couro quando chegamos à sala de raios X, onde a
luz vermelha acima da porta indica que o aparelho se encontra em uso. Anne e Ollie não teriam começado sem mim, mas têm o costume de dissuadir as pessoas de entrar
em uma área onde há níveis de radiação muito mais altos do que é seguro para pacientes vivos. "Também não foi ideia minha que Janelle ou os outros trabalhassem em
casa", acrescenta Marino.
Não pergunto há quanto tempo isso vem acontecendo nem quem são os "outros". Quem mais tem trabalhado em casa? Esta é uma instituição do governo estadual, uma instalação
paramilitar, não uma indústria caseira, sinto vontade de dizer.
"O babaca do Fielding", resmunga Marino. "Ele está fodendo com tudo."
Não retruco. Agora não é hora de discutir o quanto tudo está fodido.
"Você sabe onde estou." Lucy afasta-se em direção ao elevador e, com o cotovelo, aperta um botão tão grande que dispensa o uso das mãos. Desaparece atrás de portas
de aço deslizantes enquanto passo o polegar sobre outro sensor biométrico e a fechadura se abre com um clique.
No interior da sala de controle, o radiologista forense dr. Oliver Hess está sentado em uma estação de trabalho atrás de vidro revestido de chumbo, o rosto sonolento
como se eu o tivesse tirado da cama. Para além dele, por uma porta aberta, vejo o Siemens Somatom Sensation branco e ouço o ventilador de seu sistema de refrigeração
a água. O scanner é uma versão modificada daquele empregado em Dover, equipado com suporte adaptável para a cabeça e correias de segurança, fiação subterrânea, seu
parâmetro selado, a mesa coberta por uma pesada capa de vinil para proteger o aparelho multimilionário de contaminantes, tais como fluidos corporais. Ligeiramente
inclinado em direção à porta para facilitar o deslizamento dos corpos para dentro e para fora, o scanner está pronto e a tecnóloga Anne Mahoney está aplicando marcadores
radiopacos de pele no morto de Norton's Woods. Tenho uma sensação estranha quando entro. O corpo é familiar, embora eu nunca o tenha visto, apenas partes dele nas
gravações a que assisti em um iPad.
Reconheço seu tom moreno de pele e as mãos afiladas, que se encontram ao lado do corpo em cima de um lençol azul descartável, os dedos longos e finos ligeiramente
curvados e rígidos devido ao rigor mortis.
Nos vídeos, ouvi sua voz e vislumbrei suas mãos, suas botas, suas roupas, mas não seu rosto. Não sei ao certo o que imaginei, mas fico vagamente perturbada pelas
feições delicadas e o cabelo castanho longo e encaracolado, pela sucessão de leves sardas nas faces lisas. Afasto o lençol e ele é muito magro. Tem cerca de um metro
e setenta e cinco e, se muito, cinquenta e oito quilos, deduzo, com muito pouco pelo. Poderia passar facilmente por um rapaz de dezesseis anos, o que me faz lembrar
Johnny Donahue, que não é muito mais velho. Jovens. Seria esse um denominador comum? Ou é a Otwahl Technologies?
"Alguma coisa?", pergunto a Anne, uma mulher de aparência simples na casa dos trinta, com cabelo castanho revolto e olhos sensíveis cor de avelã. Ela é provavelmente
a melhor pessoa em minha equipe, capaz de fazer qualquer coisa, quer se trate de diversos tipos de imagens radiográficas, de ajudar no necrotério, ou em cenas de
crime. Está sempre disposta.
"Isso. Notei quando tirei as roupas dele." Suas mãos cobertas por luvas de látex agarram o corpo pela cintura e pelo quadril, virando-o de lado para que eu veja
um defeito minúsculo no lado esquerdo das costas na altura dos rins. "Deve ter passado despercebido na cena porque não sangrou, pelo menos não muito. Você está sabendo
do sangramento, que eu mesma vi quando fui fazer os exames dele hoje cedo pela manhã? Que o corpo sangrou profusamente pelo nariz e pela boca depois que foi ensacado
e transportado?"
"É por isso que estou aqui." Abro uma gaveta para pegar uma lente de aumento e então Benton está a meu lado, usando máscara e avental cirúrgico e luvas. "Ele sofreu
algum tipo de ferimento", explico enquanto me debruço sobre o corpo e amplio uma lesão irregular que parece uma pequena casa de botão. "Definitivamente, não é a
entrada de um tiro. É uma facada produzida por uma lâmina muito estreita, como uma faca para desossar, mas com duas bordas. Alguma coisa parecida com um estilete."
"Um estilete nas costas derrubaria o cara?" O olhar de Benton acima da máscara é cético.
"Não. A menos que ele fosse esfaqueado na base do crânio e o ferimento rompesse a medula espinhal." Penso em Mark Bishop e nos pregos que o mataram.
"Como eu disse em Dover, talvez alguma coisa tenha sido injetada", propõe Marino ao entrar coberto da cabeça aos pés com vestimenta de proteção, inclusive viseira
e touca, como se estivesse preocupado com patógenos aéreos e esporos mortais, tal como o antraz. "Talvez algum tipo de anestesia. Uma injeção letal, em outras palavras.
Isso com certeza derrubaria alguém."
"Em primeiro lugar, uma anestesia como tiopental sódico é injetada na veia, assim como o brometo de pancurônio ou o cloreto de potássio." Coloco um par de luvas
de exame. "Não são injetadas nas costas da pessoa. A mesma coisa serve para o mivacúrio e a succinilcolina. Se você quer matar alguém de forma decisiva e rápida
com um bloqueador neuromuscular, o melhor é injetar por via intravenosa."
"Mas se eles fossem injetados no músculo ainda matariam, certo?" Marino abre um armário e pega uma câmera. Vasculha uma gaveta e encontra uma régua plástica de quinze
centímetros para uma referência das dimensões. "Durante as execuções, às vezes a injeção perde a veia e penetra no músculo, mas o preso ainda assim morre."
"Uma morte lenta e muito dolorosa", retruco. "Pelo que todos disseram, a morte desse homem não foi lenta e esse ferimento não foi provocado por uma agulha."
"Não vou dizer que os técnicos na prisão façam de propósito, mas acontece. Bom, provavelmente é de propósito. Alguns deles esfriam o coquetel para se certificar
de que o canalha sinta o rebote, a mão gelada da morte", diz Marino para Anne, que é veementemente contra a pena capital. Sua forma de flertar é chocá-la sempre
que possível.
"Que horror", diz ela.
"Ei. Eles não estão nem aí para as pessoas que matam, certo? Não se importam que sofram. O que vai, volta. Quem escondeu o etiquetador?"
"Fui eu. Fiquei acordada à noite tentando descobrir maneiras de irritar você."
"Ah, é? Por quê?"
"Só por ser você."
Marino procura em outra gaveta e encontra o etiquetador. "Ele parece muito mais jovem do que os paramédicos disseram. Alguém mais percebe isso? Você não acha que
ele parece ter menos de vinte?" Marino pergunta a Anne. "É um garoto."
"Que mal chegou à puberdade", concorda ela. "Mas, para mim, todos os universitários agora têm essa aparência. Parecem bebês."
"Não sabemos se ele era universitário", recordo a todos.
Marino descola o verso de uma etiqueta impressa com a data e o número do caso e prende-a na régua plástica. "Vou pesquisar a área perto do parque, ver se o síndico
de algum prédio reconhece o cara, e vou fazer isso sozinho para manter a indústria dos boatos em silêncio. Se ele mora por ali, o que certamente é o que parece com
base no que vimos nos vídeos, alguém vai ter que se lembrar dele e do galgo. Sock. Isso lá é nome para um cachorro?"
"Provavelmente não é o nome completo", diz Anne. "Cães de raça têm aqueles nomes muito elaborados, registrados em canis, como Sock it to Me, ou Darned Sock ou Sock
Hop."
"Vivo dizendo que ela devia ir a algum programa de perguntas e respostas", declara Marino.
"É possível que o nome esteja em algum registro", comento. "Alguma coisa com Sock, na hipótese de não termos sorte com um microchip."
"Isso se você encontrar o cachorro", diz Marino.
"Estamos correndo atrás das impressões digitais e do DNA do sujeito. Agora mesmo, espero." Benton fita atentamente o corpo, como se estivesse conversando com ele.
"Colhi as impressões esta manhã, mas não tivemos sorte; não tem nada no sistema de identificação de impressão digital. Vamos ter o DNA amanhã e passamos as informações
pelo sistema CODIS." As grandes mãos enluvadas de Marino posicionam a régua sob o queixo do homem. "Mas é meio estranho esse negócio do cachorro. Alguém tem que
estar com ele. Acho que a gente devia publicar informações na imprensa sobre um galgo perdido. Talvez as pessoas liguem."
"Não podemos nos identificar", retruco. "Vamos ficar longe da imprensa agora."
"Exatamente", diz Benton. "Não queremos que os bandidos saibam que estamos cientes do cachorro, muito menos procurando por ele."
"Bandidos?", pergunta Anne.
"O que mais?" Contorno a mesa, fazendo o que Lucy chama de "reconhecimento grosseiro", examinando atentamente o corpo da cabeça aos pés.
Marino está batendo fotografias e diz: "Antes de colocar o cara de volta na geladeira esta manhã, examinei as mãos em busca de resíduos. Coletei alguma coisa em
caráter preliminar, inclusive objetos pessoais".
"Você não me falou de objetos pessoais. Só que ele parecia não ter nenhum", contraponho.
"Um anel com uma insígnia, um relógio Casio de aço. Chaves em um chaveiro. Uma nota de vinte dólares. Uma caixinha de fumo vazia, mas colhi esfregaços em busca de
drogas. Era a caixinha de fumo que aparece no vídeo. Por um segundo, deu para ver o sujeito segurando a caixa pouco depois de chegar a Norton's Woods."
"Onde estava?", pergunto.
"No bolso dele. Foi onde a encontrei."
"Então ele tirou a caixa do bolso no parque e depois tornou a colocar antes do incidente." Recordo o que assisti no iPad, a caixinha sendo segurada pela luva preta.
"Devíamos procurar também inalação e fumo", diz Marino. "Aposto que era maconha. Não sei se você percebeu", continua ele, dirigindo-se a mim, "mas ele tinha um cachimbo
em um cinzeiro em cima da escrivaninha."
"Vamos ver o que aparece no exame toxicológico", retruco. "Vamos fazer um exame do teor alcoólico e agilizar a triagem de drogas. O pessoal lá em cima está ajudando?"
"Vou pedir a Joe para passar para a frente da fila." Anne está se referindo ao toxicologista-chefe, que eu trouxe de Nova York, roubando descaradamente do laboratório
de criminalística do departamento de polícia. "Você é a chefe. Tudo que precisa fazer é pedir." Ela me olha nos olhos. "Bem-vinda de volta."
"Que tipo de insígnia? E como é o chaveiro?", Benton pergunta a Marino.
"Um brasão, um livro aberto com três coroas", responde ele, e percebo que está gostando de Benton estar em desvantagem. O CFC é o território de Marino. "Não tem
nada escrito, nenhuma frase em latim, nada desse tipo. Não sei como são as insígnias do MIT e de Harvard."
"Não são o que você descreveu", diz Benton. "Tudo bem se eu usar isso?" Ele indica um computador em uma bancada.
"O chaveiro é uma daquelas argolas de aço presas a um laço de couro, como os que as pessoas prendem no cinto", continua Marino. "E, como todo mundo já sabe, ele
não levava carteira, nem mesmo um telefone celular. Acho isso incomum. Quem anda por aí sem celular?"
"Ele estava levando o cachorro para passear e ouvindo música. Talvez não estivesse planejando ficar muito tempo fora e não quisesse falar ao telefone", responde
Benton enquanto digita palavras para pesquisa.
Giro o corpo para o lado direito e olho para Marino. "Você quer me ajudar com isso?"
"Três coroas e um livro aberto", diz Benton. "Universidade da Cidade de San Francisco." Ele digita um pouco mais. "Uma universidade on-line especializada em ciências
da saúde. Esse tipo de universidade tem anéis de turma?"
"Os objetos pessoais dele estão em qual armário?", pergunto a Marino.
"Um. Tenho a chave se você quiser."
"Sim, por favor. Alguma coisa que o laboratório precise examinar?"
"Não vejo por quê."
"Então vamos guardar esses objetos até enviar para alguma casa funerária ou para a família quando descobrirmos quem ele é", anuncio.
"E além disso há Oxford", diz Benton em seguida, ainda pesquisando na internet. "Mas, se o anel que ele estava usando era de Oxford, teria os dizeres Universidade
de Oxford, e você disse que não havia nada escrito, nenhum lema."
"Não, nada escrito", retruca Marino. "Mas parece que alguém mandou fazer, sabe, ouro comum com a insígnia gravada, então talvez não seja o oficial, que você encomenda
na faculdade, e por isso não tem nenhum lema nem nada escrito."
"Pode ser", diz Benton. "Mas, se mandaram fazer o anel, acho difícil imaginar que tenha sido para Oxford; eu tenderia a pensar que, se alguém cursou uma faculdade
on-line, talvez tivesse mandado fazer um anel porque não há outro jeito de conseguir um, supondo que a pessoa queira dizer ao mundo que é ex-aluno de uma faculdade
on-line. Esse é o brasão da Universidade da Cidade de San Francisco." Benton se desloca para o lado para que Marino veja o que há na tela do computador, uma insígnia
elaborada com um manto azul e dourado e uma coruja dourada no topo, com três flores-de-lis douradas, então abaixo três coroas douradas e no meio um livro aberto.
Marino está segurando o corpo de lado; aperta os olhos em direção à tela do computador e dá de ombros. "Pode ser. Se foi gravado, se alguém mandou fazer, talvez
não seja tão detalhado."
"Vou olhar o anel", prometo enquanto examino o corpo externamente e faço anotações em uma prancheta.
"Não há motivos para pensar que ele tenha se envolvido em alguma briga; acho difícil a gente conseguir o DNA de um perpetrador ou alguma outra coisa a partir do
relógio ou seja o que for. Mas você me conhece." Marino retoma o que estava dizendo a respeito da verificação dos pertences do morto. "Colhi esfregaços de tudo mesmo
assim. Nada me pareceu fora do comum, a não ser o fato de que o relógio tinha parado, um daqueles automáticos que Lucy gosta, um cronógrafo."
"A que horas ele parou?"
"Eu anotei. Em algum momento depois das quatro da manhã. Cerca de doze horas depois que o cara morreu. Lembrando que esse sujeito tinha uma nove milímetros com dezoito
rodadas, mas não celular", diz Marino. "A menos que ele não tenha deixado o telefone em casa ou alguém levou. Como pode ter levado o cachorro. É isso que fico me
perguntando."
"Vi um telefone em cima de uma mesa nos vídeos", recordo. "Conectado a um carregador perto de um dos laptops. Perto do cachimbo que você mencionou."
"Não conseguimos ver tudo que ele fez lá antes de sair. Acho que pode ter pegado o telefone a caminho da porta", conjectura Marino. "Ou pode ter mais de um. Quem
vai saber?"
"Vamos saber quando encontrarmos o apartamento", diz Benton enquanto imprime o que descobriu na internet. "Eu gostaria de ver as fotos da cena."
"O que você está querendo dizer é quando eu encontrar o apartamento." Marino pousa a câmera em uma bancada. "Porque sou eu que vou investigar. Policiais fofocam
mais que velhas. Descubro onde o cara mora, depois peço ajuda."
8
Em um diagrama do corpo, anoto que às 23h15 o morto está completamente rígido e gelado devido à refrigeração. Apresenta um padrão vermelho-escuro de descoloração
e lividez postural que indica que estava deitado de costas com os braços estendidos ao lado do corpo, palmas das mãos para baixo, completamente vestido, usando um
relógio no pulso esquerdo e um anel no dedo mínimo esquerdo por pelo menos doze horas antes de morrer.
A hipóstase cadavérica, mais conhecida como lividez ou livor mortis, é um de meus indícios preferidos, embora muitas vezes seja mal interpretada, até mesmo por aqueles
que deveriam conhecê-la. Pode parecer com contusões decorrentes de trauma quando, na realidade, é causada pelo fenômeno fisiológico mundano do sangue não circulante
que se concentra nos pequenos vasos devido à gravidade. A lividez apresenta um tom vermelho-escuro, ou pode ser arroxeada, com áreas mais claras onde o corpo permaneceu
apoiado em uma superfície dura; independentemente das informações que recebo a respeito das circunstâncias de uma morte, o corpo em si não mente.
"Não vejo nenhum padrão secundário que indique que o corpo se moveu enquanto o livor ainda estava se formando", observo. "Tudo que estou vendo é consistente com
o fato de ele ter sido fechado dentro de um saco, colocado em uma bandeja e não ter se movido." Prendo um diagrama do corpo em uma prancheta e registro as marcas
produzidas por cós, cinto, joias, sapatos e meias, áreas claras na pele que indicam a forma de um elástico, de uma fivela, de um tecido ou padrão de costura.
"Isso com certeza sugere que ele não moveu nem os braços, não se debateu, o que é bom", conclui Anne.
"Exato. Se ele tivesse voltado a si, teria pelo menos movido os braços. Então isso é muito bom", concorda Marino, chaves tilintando enquanto uma imagem preenche
a tela do computador sobre uma bancada.
Faço uma anotação indicando que o homem não tinha piercings nem tatuagens no corpo e é limpo, com unhas bem aparadas e a pele macia de quem não faz trabalhos manuais
nem se dedica a atividades físicas que possam causar calos nas mãos ou nos pés. Apalpo a cabeça, tateando em busca de defeitos, como fraturas ou outras lesões, e
não encontro nada.
"Resta saber se ele caiu de bruços." Marino está examinando o que o investigador Lester Law enviou por e-mail. "Ou se está deitado de costas nestas fotos porque
os paramédicos mudaram o corpo de posição."
"Para fazer reanimação cardiopulmonar teriam que virar o corpo para cima." Chego perto para ver.
Marino clica em várias fotos, todas na mesma posição, mas a partir de perspectivas diferentes: o homem deitado de costas, a jaqueta verde-escura e a camisa de brim
abertas, a cabeça virada para o lado, os olhos parcialmente fechados; um close do rosto, detritos, que parecem partículas de folhas mortas, grama e brita, agarrados
aos lábios.
"Dê mais zoom nesta", peço a Marino e, a um clique do mouse, a imagem fica maior, o rosto infantil do homem preenchendo a tela.
Retorno ao corpo atrás de mim e procuro ferimentos no rosto e na cabeça, notando uma abrasão embaixo do queixo. Puxo o lábio inferior e encontro uma pequena laceração,
provavelmente produzida pelos dentes inferiores quando ele caiu e bateu com o rosto no caminho de cascalho.
"Isso não pode explicar todo o sangue que vi", diz Anne.
"Não, não pode", concordo. "Mas sugere que ele deu com a cara no chão primeiro, o que também sugere que caiu direto, não cambaleou nem tentou aparar a queda. Onde
está o saco em que ele chegou?"
"Estendi em uma mesa na sala de autópsias, porque imaginei que você fosse querer dar uma olhada", diz Anne. "E as roupas estão secando lá dentro. Quando as tirei,
coloquei tudo na estufa perto da sua estação. Estação um."
"Bom. Obrigada."
"Talvez alguém tenha dado um soco no sujeito", propõe Marino. "Talvez tenha distraído o cara com um soco ou uma cotovelada no rosto, depois lhe dado uma facada nas
costas. Só que provavelmente isso teria sido gravado, estaria nos vídeos."
"Ele teria mais do que só essa laceração se tivesse levado um soco na boca. Se olharem para os detritos no rosto dele e a localização dos fones de ouvido" - estou
de volta ao computador, clicando nas imagens para mostrar - "ele parece ter caído de bruços. Os fones de ouvido estão longe, a mais ou menos dois metros de distância
embaixo do banco, o que indica que o corpo caiu com força suficiente para atirar os fones a boa distância e desconectar o rádio via satélite, que acredito que estivesse
dentro de algum bolso."
"A não ser que alguém tenha deslocado os fones, talvez chutado para fora do caminho", diz Benton.
"Esse foi meu outro pensamento", retruco.
"Quer dizer, alguém que estava tentando ajudar o cara", diz Marino. "As pessoas se amontoaram ao redor dele e os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco."
"Ou alguém fez isso deliberadamente."
Há outra coisa na qual reparo. Clicando nas imagens, paro em uma fotografia do pulso esquerdo do homem. Amplio o relógio de aço equipado com taquímetro, aproximo
o mostrador de fibra de carbono. A hora impressa na imagem é 17h17, que foi quando o oficial de polícia bateu a fotografia, no entanto o relógio marca 22h14, cinco
horas mais tarde.
"Quando recolheu o relógio esta manhã", pergunto a Marino, "você disse que ele parecia ter parado. Tem certeza de que não foi só a hora que era diferente da local?"
"Não. Ele tinha parado. Como eu disse, era um daqueles relógios automáticos e parou em algum momento na madrugada, por volta das quatro."
"Parece que ele estava ajustado cinco horas a mais que o horário da costa leste." Indico o que estou vendo na fotografia.
"Tudo bem. Então deve ter parado por volta das onze da noite pelo nosso horário", diz Marino. "Estava errado desde o início e depois parou."
"Talvez ele estivesse em outro fuso horário porque tinha acabado de chegar do exterior", sugere Benton.
"Assim que a gente terminar aqui, vou encontrar o apartamento dele", diz Marino.
Verifico os números de controle de qualidade no registro para me certificar de que o desvio padrão seja zero e o nível de ruído do sistema esteja dentro dos limites.
"Estamos prontos?", pergunto a todos.
Estou ansiosa para fazer a tomografia. Quero ver o que encontramos dentro dele.
"Vamos fazer um topograma, depois reunir o conjunto de dados antes de passar ao exame 3-D com pelo menos cinquenta por cento de sobreposição", digo a Anne enquanto
ela aperta um botão para que a mesa deslize para o interior do aparelho. "Mas vamos mudar o protocolo e começar pelo tórax, não pela cabeça, a não ser, é claro,
para usar a glabela como referência."
Eu me refiro ao espaço entre as sobrancelhas, acima do nariz, que usamos para orientação espacial.
"Um corte transversal do tórax exatamente correlato à área de interesse que você marcou." Percorro a lista enquanto retornamos à sala de controle. "Uma localização
in situ do ferimento; vamos isolar aquela área e qualquer lesão associada, qualquer pista no prolongamento da ferida."
Sento-me entre Ollie e Anne, e em seguida Marino e Benton puxam cadeiras atrás de nós. Pela janela de vidro, vejo os pés descalços do homem na abertura do túnel
do scanner.
"TM automática e inteligente, ruído dezoito. Rotação de zero vírgula cinco, configuração de detectores de zero vírgula seis", instruo. "Cortes bem finos de alta
resolução. Colimação de dez milímetros."
Ouço os ruídos eletrônicos pulsantes enquanto o detector começa a girar no interior do tubo de raios X. O primeiro exame dura sessenta segundos. Assisto a tudo em
tempo real na tela do computador, sem saber ao certo o que estou vendo, o que é incomum. O aparelho deve estar com defeito ou mostra o exame de algum outro paciente,
acessando o arquivo errado. O que estou vendo?
"Jesus", diz Ollie baixinho, olhando com ar carrancudo para as imagens em uma grade, estranhas imagens que devem ser um engano.
"Oriente no tempo e no espaço e vamos posicionar o ferimento de trás para a frente, da esquerda para a direita e para cima", comando. "Conecte pontos para obter
a penetração da ferida, assim como está. Existe um ferimento e depois ele desaparece? Não sei o que é isso."
"O que estamos vendo?", pergunta Marino, perplexo.
"Nada que eu já tenha visto, com certeza não em uma facada", respondo.
"Bom, em primeiro lugar, ar", anuncia Ollie. "Estamos vendo uma porrada de ar."
"Essas áreas escuras aqui, aqui e aqui." Mostro a Marino e a Benton. "Na TC, o ar aparece escuro. Em contraste com as áreas brancas brilhantes, que mostram densidade
mais alta. Os ossos e as calcificações são brilhantes. Dá para ter uma boa ideia das coisas pela densidade dos pixels."
Estendo a mão para o mouse e posiciono o cursor sobre uma costela para que vejam o que estou querendo dizer.
"A janela da TC é mil cento e cinquenta e um. Enquanto essa área aqui, não tão brilhante" - coloco o cursor sobre uma área de pulmão - "é quarenta. Isso é sangue.
Essas áreas escuras embaçadas que vocês estão vendo são hemorragia."
Recordo os tiros de alta velocidade que causam tremendas lacerações e rompimentos de tecido, semelhantes aos ferimentos causados pela onda de propulsão de uma explosão.
Mas esse não é um caso de ferimento a bala. Isso não se deve a algum dispositivo explosivo detonado. Não vejo como uma ou outra opção possa ser verdade.
"Algum tipo de ferimento que se desloca pelo rim esquerdo, no nível superior através do diafragma e do coração, causando profunda devastação ao longo do caminho.
E tudo isso", indico áreas escuras em torno de órgãos internos que estão deslocados e distorcidos, "é mais ar subcutâneo. Ar na musculatura próxima à coluna. Ar
retroperitonial. Como todo esse ar entrou nele? E aqui e aqui. Lesões nos ossos. Fratura de costela. Fratura da apófise transversa. Hemopneumotórax, contusão pulmonar,
hemopericárdio. E mais ar. Aqui, aqui e aqui." Toco a tela. "Ar em torno do coração e nas câmaras cardíacas, bem como nas artérias e veias pulmonares."
"E você nunca viu uma coisa assim?", pergunta Benton.
"Sim e não. Devastação semelhante causada por fuzis militares, canhões antitanque, algumas semiautomáticas que usam munição de alta velocidade e extremo choque de
fragmentação, por exemplo. Quanto maior a velocidade, mais energia cinética se dissipa no impacto e maior é o prejuízo, especialmente para os órgãos ocos, como os
intestinos e pulmões, e tecidos sem elasticidade, como os do fígado e dos rins. Mas, nesses casos, a gente espera uma trajetória clara do ferimento e um míssil,
ou fragmentos de um. Que não estamos vendo aqui."
"E o ar?", pergunta Benton. "Você vê esses bolsões de ar nesses casos?"
"Não exatamente", respondo. "Uma onda de propulsão pode causar embolia gasosa através da barreira sangue-ar. Em outras palavras, o ar acaba fora de lugar, mas isso
é muito ar."
"Uma porrada de ar", concorda Ollie. "E como a pessoa é atingida por uma onda de propulsão a partir de uma facada?"
"Faça um corte bem nessas coordenadas", peço a ele, indicando a área de interesse marcada por uma gota branca brilhante - o marcador de pele radiopaco de TC que
foi colocado perto do ferimento no lado esquerdo das costas do homem. "Comece por aqui e se desloque cinco milímetros para baixo e para cima da área de interesse
especificada pelos marcadores. Esse corte. Isso. E vamos reformatar para a versão 3-D de dentro para fora. Cortes finos, bem finos, de um milímetro. E o aumento
entre eles? O que você acha?"
"Zero vírgula setenta e cinco por zero vírgula cinco vai resolver."
"Tudo bem. Vamos ver que aparência tem isso quando seguimos virtualmente a trajetória do ferimento, seja ela qual for."
Os ossos parecem vívidos, como se estivessem expostos diante de nós, e órgãos e outras estruturas internas estão bem definidos em tons de cinza à medida que a parte
superior do corpo do morto, seu tórax, começa a girar devagar em três dimensões na tela de vídeo. Usando um software modificado, originalmente desenvolvido para
colonoscopias virtuais, penetramos no corpo através do minúsculo ferimento que parece uma casa de botão, viajando com uma câmera virtual como se nos encontrássemos
em uma nave espacial microscópica, voando lentamente através de nuvens de tecido acinzentadas e melancólicas para além do rim esquerdo rebentado como um asteroide.
Uma abertura irregular se patenteia à nossa frente e passamos através de um largo buraco no diafragma. Adiante há laceração, cisalhamento e contusão. O que aconteceu
com você? O que provocou isso? Não faço ideia. Dá uma sensação de impotência encontrar danos que parecem desafiar a física, um efeito sem causa. Não há nenhum projétil.
Não há fragmentos, nada metálico que eu consiga enxergar. Não há ferimento de saída, só na entrada em forma de casa de botão no lado esquerdo das costas do homem.
Estou pensando em voz alta, repetindo pontos importantes para me certificar de que todos entendam o que é incompreensível.
"Sempre esqueço que nada funciona aqui embaixo", comenta Benton com ar distraído enquanto examina seu iPhone.
"Nada saiu e não tem nada iluminado." Avalio o que deve ser feito a seguir. "Nenhum sinal de nada ferroso, mas precisamos ter certeza disso."
"Não faço a menor ideia do que pode ter causado", declara Benton quando se levanta da cadeira, produzindo um farfalhar à medida que desata o avental descartável.
"Vocês conhecem o velho ditado: nada se cria, tudo se transforma. Como muitos velhos ditados, acho que esse não é verdade."
"Isso é novo. Pelo menos para mim", retruco.
Ele se curva e retira a cobertura dos sapatos. "É sem dúvida um homicídio."
"A menos que tenha almoçado comida mexicana muito estragada", diz Marino.
Passa vagamente por meus pensamentos que Benton está agindo de forma suspeita.
"Um projétil de alta velocidade, mas não existe projétil. E se ele saiu do corpo, onde está o ferimento de saída?" Fico repetindo as mesmas coisas. "Onde está o
metal? Com o que ele foi atingido? Um projétil de gelo?"
"Vi alguma coisa a respeito no Caçadores de Mitos. Eles provaram que é impossível por causa do calor", responde Marino como se eu estivesse falando sério. "Mas não
sei. Me pergunto o que aconteceria se você carregasse a arma e guardasse no congelador até estar preparado para atirar."
"Talvez se você fosse um franco-atirador na Antártica", diz Ollie. "De onde saiu essa ideia afinal? De Dick Tracy? É uma pergunta séria."
"Acho que James Bond. Esqueci o filme."
"O ferimento de saída pode não ser óbvio", diz Anne, dirigindo-se a mim. "Lembra aquela vez que o cara foi atingido na mandíbula e a bala saiu pela narina?"
"Então onde está a trajetória do ferimento?", contraponho. "Precisamos de contraste melhor entre os tecidos, precisamos ter certeza de que não estamos deixando passar
nada antes que eu abra o sujeito."
"Se você precisar da minha ajuda, posso ligar para o hospital", diz Benton enquanto abre a porta. Percebo que ele está com pressa, mas não sei ao certo por quê.
O caso não é dele.
"Caso contrário, vou checar o que Lucy descobriu", diz Benton. "Dar uma olhada nos vídeos. Checar outras coisas. Você não se importa que eu use o telefone lá em
cima?"
"Eu ligo", Anne diz a Benton quando ele sai. "Deixo tudo ajeitado com o McLean e cuido do exame."
Era uma possibilidade teórica que esse dia chegasse, mas temos autorização da Secretaria de Saúde, de Harvard e do Hospital McLean, instituição afiliada à universidade
que possui quatro magnetos que abrangem densidade de fluxo de um vírgula cinco a nove teslas. Há muito tempo, certifiquei-me de que os protocolos estivessem em vigor
para realizar RMs em cadáveres no laboratório de neuroimagem do McLean, onde Anne trabalha meio período como técnica de RM para pesquisa psiquiátrica. Foi como a
consegui. Benton a conheceu primeiro e a recomendou. Ele escolhe bem, é um excelente avaliador de caráter. Eu deveria deixar que contratasse minha equipe. Gostaria
de saber quem ele ia chamar. Nem sei bem por que continua aqui.
"Se você quiser, podemos fazer isso agora", Anne está me dizendo. "Não deve ter nenhum problema, não vai haver ninguém por lá. Paramos direto na porta da frente
e entramos com ele e saímos."
A esta hora, os pacientes psiquiátricos do McLean não vão estar perambulando pelo campus. O risco de toparem com um cadáver sendo carregado para dentro ou para fora
do laboratório é pequeno.
"E se alguém atingiu o cara com um canhão de água?" Marino olha atônito para o tronco girando na tela de vídeo, as costelas encurvadas cintilando brancas em 3-D.
"Sério, sempre ouvi que esse era o crime perfeito. Você enche de água o cartucho de um fuzil e é como uma bala quando atravessa o corpo. Mas não deixa marcas."
"Nunca tive um caso assim", retruco.
"Mas pode acontecer", diz Marino.
"Teoricamente, no entanto, o ferimento de entrada não seria como esse", contesto. "Vamos lá. Quero esse sujeito transferido e fora dali antes que as pessoas comecem
a chegar para o trabalho." É quase meia-noite.
Anne clica no ícone FERRAMENTAS para fazer medições e me informa que a largura da trajetória do ferimento antes que este rebente através do diafragma é de zero vírgula
setenta e sete a um vírgula cinquenta e nove milímetros com quatro vírgula dois milímetros de profundidade.
"Então isso me mostra...", começo a dizer.
"Prefiro trabalhar com polegadas", Marino reclama.
"... algum tipo de objeto ou lâmina de dois gumes não muito mais larga que doze milímetros", explico. "E quando penetrou o corpo até a profundidade aproximada de
cinquenta milímetros, aconteceu outra coisa que causou danos internos profundos."
"O que quero saber é quanto da anomalia que estamos vendo é iatrogênica", diz Ollie. "Causada pelo trabalho dos paramédicos durante vinte minutos. Essa é provavelmente
a primeira pergunta que vão nos fazer. Temos que manter a mente aberta."
"De jeito nenhum. A menos que o King Kong tenha feito a reanimação", retruco. "Esse homem parece ter sido apunhalado com alguma coisa que lhe causou uma tremenda
pressão no peito e uma embolia grande de ar. Sentiu dor forte e morreu em alguns minutos, o que é compatível com o que foi descrito pelas testemunhas: que ele apertou
o peito e caiu."
"Então por que todo aquele sangue depois da ocorrência?", pergunta Marino. "Por que não teve a hemorragia instantaneamente? Como é possível que só tenha começado
a sangrar depois que foi declarado morto, a caminho daqui?"
"Não sei a resposta, mas ele não morreu na nossa geladeira." Disso, ao menos, tenho certeza. "Morreu antes de chegar aqui. Na cena."
"Mas vamos ter que provar que ele começou a sangrar depois de morto. E mortos não começam a sangrar como um porco no espeto. Como provamos que ele estava morto antes
de chegar aqui?", insiste Marino.
"Para quem precisamos provar isso?" Olho para ele.
"Não sei a quem Fielding contou, já que não temos ideia de onde ele está. E se tiver falado com alguém?"
Como você fez, penso, mas não digo. "É por isso que é preciso ter cuidado com a divulgação de detalhes quando não se tem toda a informação." Eu não poderia soar
mais controlada.
"Não tivemos escolha." Marino não vai dar o braço a torcer. "Agora temos que explicar por que motivo um morto começou a sangrar."
Pego meu casaco e digo a Anne: "Primeiro uma TC de corpo inteiro. E uma bobina de RM de corpo inteiro, cada centímetro dele. Faça um upload do que você encontrar.
Quero ver imediatamente".
"Eu dirijo", anuncia Marino.
"Bom, coloquem o corpo no compartimento de carga para ficar aquecido. Em uma das vans."
"Não queremos que ele fique aquecido. Na verdade, vou ligar o ar-condicionado no máximo."
"Então podem ir só os dois. Encontro vocês lá."
"É sério. Se ele aquecer, pode começar a sangrar de novo."
"Você tem assistido muito Saturday Night Live."
"Dan Aykroyd imitando Julia Child. Lembra? 'Você vai precisar de uma faca, uma faca bem, bem afiada.' E sangue jorrando para todo lado."
Os três estão brincando.
"Foi muito engraçado."
"Os antigos eram melhores."
"Nem fala. Roseanne Roseannadanna."
"Ah, meu Deus, adoro a Roseanne."
"Tenho todos em DVD."
Ouço-os rir enquanto me afasto.
Escaneando meu polegar, libero minha entrada à primeira parada depois da recepção, onde fazemos as identificações, uma sala branca com bancadas cinza que chamamos
simplesmente de ID.
Embutidos em uma parede, há armários de metal cinza numerados onde ficam guardadas as provas, e uso a chave que Marino me entregou para abrir o de cima à esquerda,
onde os objetos pessoais do morto foram guardados com segurança até passarmos uma nota a alguma funerária ou para a família quando por fim soubermos quem ele é e
quem deve reclamá-lo. No interior, há sacos de papel e envelopes primorosamente rotulados e, preso a cada um deles, um formulário que Marino preencheu e rubricou
para preservar a cadeia de custódia. Encontro o pequeno envelope em papel manilha que contém o anel de sinete, rubrico o formulário e anoto a hora que o retirei
do armário. Em uma estação de computador, acesso um protocolo e insiro a mesma informação, então me lembro das roupas do morto.
Eu deveria examinar tudo enquanto estou aqui embaixo, não esperar até ter feito a autópsia, daqui a algumas horas. Quero ver o orifício produzido pela lâmina que
penetrou a região lombar do homem e gerou tanta destruição dentro dele. Quero ver quanto ele pode ter sangrado devido ao ferimento e deixo a ID e percorro o corredor
de ladrilhos cinza, voltando atrás. Passo pela sala de raios X e, através da porta aberta, vejo de relance Marino, Anne e Ollie ainda ali, preparando o corpo para
transportá-lo ao McLean, brincando e rindo. Passo rapidamente sem que eles percebam e abro as portas duplas de aço que conduzem à sala de autópsias.
É um vasto espaço aberto pintado com tinta epóxi branca, ladrilhos brancos e trilhos de aço expostos e reluzentes, com luz fria filtrada que corre horizontalmente
ao longo da extensão do teto branco. Onze mesas de aço acham-se posicionadas ao lado de pias de aço instaladas na parede, todas com torneira acionada por pedal,
esguicho de alta pressão, triturador de resíduos, um recipiente para lavagem das amostras e outro para material cortante. As estações que cuidadosamente pesquisei
e mandei instalar são minicentros cirúrgicos modulados com sistemas de ventilação e exaustão que permuta o ar a cada cinco minutos, e há computadores, exaustores,
carrinhos de instrumentos cirúrgicos, luzes de halogênio em braços flexíveis, superfícies de dissecção com tábuas de corte, contêineres de formalina com torneira
e prateleiras de tubos de ensaio e frascos plásticos para histologia e toxicologia.
Minha estação, a estação do chefe, é a primeira e me ocorre que alguém a tem usado; então me sinto ridícula por pensar assim. É claro que as pessoas a usaram enquanto
estive fora. É claro que Fielding provavelmente usou. Não faz diferença e por que eu deveria me importar?, digo a mim mesma quando percebo que os instrumentos cirúrgicos
no carrinho não estão alinhados da forma ordenada que eu os teria deixado. Estão desordenadamente dispostos em um tabuleiro branco grande de polietileno para dissecção
como se alguém os tivesse lavado, mas não com cuidado. Retiro um par de luvas de látex de uma caixa e as coloco, porque não quero tocar em nada com as mãos descobertas.
Em geral não me preocupo com isso, não tanto quanto deveria, acho, pois descendo da escola antiga de patologistas forenses, que eram estoicos, marcados pelas cicatrizes
de batalha e tinham o orgulho perverso de não sentir medo nem repulsa diante de nada. Nem dos vermes, nem dos fluidos de purga, nem de carne putrefata inchada, esverdeada
e viscosa, nem mesmo da aids, pelo menos não as preocupações que temos hoje quando vivemos com fobias e regulamentos federais acerca de absolutamente tudo. Lembro
quando eu circulava sem roupas protetoras, fumando, bebendo café e tocando os pacientes mortos como qualquer médico faria, minha pele em contato com a deles enquanto
examinava um ferimento, avaliava uma contusão ou tirava uma medida. Mas nunca fui descuidada com minha estação de trabalho ou meus instrumentos cirúrgicos. Nunca
fui negligente.
Eu nunca devolveria nem mesmo uma agulha de exploração a um carrinho cirúrgico sem primeiro lavá-la com água quente e sabão, e o tamborilar da água quente na pia
de metal funda foi um som dominante nos necrotérios do meu passado. Já na minha época em Richmond - mesmo antes, quando estava só começando no Walter Reed -, eu
sabia sobre o DNA, que este estava prestes a ser aceito perante um tribunal e se tornar o padrão-ouro forense; desse ponto em diante, tudo que fazíamos nas cenas
de crime, no seguimento da autópsia e nos laboratórios seria questionado no banco das testemunhas. A contaminação estava prestes a se tornar o castigo supremo e,
embora não tivéssemos o hábito de esterilizar nossos instrumentos cirúrgicos em autoclave no CFC, certamente não lhes dávamos uma enxaguada superficial sob a torneira
para depois atirá-los em uma tábua de corte que tampouco estava limpa.
Pego uma faca de dissecção de quarenta e cinco centímetros e reparo em vestígios de sangue seco no cabo de aço inoxidável entalhado e que a lâmina de aço está arranhada,
rombuda e manchada em lugar de afiada e resplandecente como prata polida. Encontro sangue na lâmina serrilhada de um serrote de ossos, manchas de sangue seco no
carretel de um cadarço encerado de cinco fios e em uma agulha de dupla curva. Pego fórceps, tesoura, a tesoura de cortar costelas, cinzel e uma sonda flexível e
fico consternada diante das más condições em que tudo se encontra.
Vou enviar a Anne uma mensagem para que dê uma arrumada em minha estação e lave todos os instrumentos antes de realizarmos a autópsia do homem de Norton's Woods.
Vou mandar limpar toda a sala de autópsias do teto ao chão. Vou mandar inspecionar todos os sistemas antes que minha primeira semana aqui tenha transcorrido, decido
enquanto puxo um novo par de luvas e me encaminho a uma ampla bancada onde um grande rolo de papel branco - que chamamos de papel parafinado - se acha afixado a
um porta-papel instalado na parede. O papel produz um ruído alto quando rasgo um pedaço e cubro uma mesa de autópsia na metade da sala, que pelo menos parece mais
limpa que a minha.
Cubro meus trajes do AFMES com um avental descartável, sem me preocupar com as longas tiras de amarrar, então retorno à minha estação desordenada. Encostada à parede,
há uma estufa branca grande de polipropileno sobre rodízios de borracha vulcanizada com porta dupla em acrílico transparente, que destravo ao inserir um código no
teclado digital. Pendurados no interior, há uma jaqueta de náilon verde com colarinho de lã preta, uma camisa azul de brim, uma calça cargo preta, uma cueca boxer,
cada qual em seu próprio cabide de aço inoxidável; a bandeja na parte inferior contém botas de couro marrom surradas e, ao lado delas, um par de meias cinza de lã.
Reconheço algumas peças de roupa dos vídeos a que assisti e sinto inquietação. O ventilador de centrifugação e os filtros HEPA de exaustão da estufa produzem seu
zumbido baixo enquanto examino as botas e meias pegando uma a uma, sem encontrar nada de extraordinário. A cueca é de algodão branco com braguilha sobreposta e cós
de elástico, e não noto nada fora do comum, nem uma mancha.
Abrindo o casaco sobre a mesa coberta por papel parafinado, enfio as mãos nos bolsos para me certificar de que nada restou dentro deles; pego um diagrama de vestuário
e uma prancheta e começo a tomar notas. O colarinho de pele sintética espessa está coberto de terra, areia e pedaços de folhas secas que aderiram a ele quando caiu
no chão; os grossos punhos de malha também estão sujos. O revestimento em náilon verde é um material muito resistente, que parece à prova de rompimentos e impermeável,
com isolante de fibra preta, nenhum dos quais facilmente penetrável, a menos que a lâmina fosse forte e muito afiada. Não encontro evidência de sangue no forro do
casaco, nem mesmo ao redor da pequena abertura na parte de trás, mas o revestimento externo, os ombros, as mangas e as costas estão enegrecidos e duros do sangue
que se acumulou no fundo do saco depois que o zíper foi fechado e o homem foi transportado ao CFC.
Não sei por quanto tempo ele pode ter sangrado enquanto estava no interior do saco e depois dentro da geladeira, mas não sangrou do ferimento. Quando abro a camisa
de brim de mangas longas, um tamanho masculino pequeno, que ainda cheira de leve a colônia ou loção pós-barba, encontro somente uma mancha escura de sangue que secou
e endureceu ao redor da fenda produzida pela lâmina. O que Marino e Anne relataram parece estar correto: que o homem começou a sangrar pelo nariz e pela boca enquanto
estava completamente vestido dentro do saco, a cabeça voltada para o lado, provavelmente o mesmo lado para o qual estava virada quando o examinei na sala de raios
X. O sangue deve ter gotejado com regularidade de seu rosto para o interior do saco, empoçando e vazando, e verifico facilmente isso quando em seguida o examino,
um receptáculo para transporte de cadáveres adultos, típico daqueles usados pelos serviços de remoção, preto com zíper de náilon. Nas laterais há alças confeccionadas
com correias presas com rebites, e é muitas vezes aí onde ocorre o problema de vazamento, supondo que o saco esteja intacto, sem rasgos nem defeitos nas junturas
seladas a calor. O sangue goteja pelos rebites, especialmente se o saco for muito barato, e este deve ter cerca de vinte e cinco dólares de PVC resistente.
Quando recordo o que acabei de ver na TC e me dou conta da rapidez com que os danos ocorreram no que foi claramente um ataque repentino, o sangramento não faz o
menor sentido. Faz ainda menos sentido do que quando Marino me contou em Dover. A destruição maciça dos órgãos internos do homem teria resultado em hemorragia pulmonar,
que teria provocado sangramento pelo nariz e pela boca. Mas isso teria acontecido quase instantaneamente. Não entendo por que ele não sangrou na cena do crime. Quando
os paramédicos estavam trabalhando para ressuscitá-lo, ele deveria ter sangrado pelo rosto e isso teria sido uma clara indicação de que não caíra devido a arritmia.
Quando deixo a sala de autópsias para me dirigir aos andares superiores, torno a visualizar os vídeos e me recordo de ter pensado sobre as luvas pretas e o motivo
por que ele as colocou quando entrou no parque. Onde estão elas? Não vi as luvas. Não estavam no armário de provas nem na estufa, e verifiquei os bolsos do casaco
e não as encontrei. Com base no que vi nas gravações efetuadas em segredo pelos fones de ouvido do homem, ele vestia luvas quando morreu e visualizo o que acompanhei
no iPad de Lucy quando estava na van a caminho do Terminal Aéreo Civil. A mão colocando a luva preta invadiu a imagem como se o homem estivesse golpeando alguma
coisa, então houve um baque quando a mão atingiu os fones de ouvido e ele deixou escapar: "O que...? Ei...!". Depois árvores nuas girando no alto, então lascas de
ardósia se aproximando no chão e a pancada provocada pela queda; em seguida a bainha de um longo casaco preto farfalhando de passagem. Silêncio, depois as vozes
das pessoas ao redor, que gritavam que ele não estava respirando.
A porta da sala de raios X está fechada quando chego e verifico o interior, mas todos se foram, a sala de controle está vazia e silenciosa, o scanner de TC reluz
branco sob a luz fraca no outro lado do vidro revestido de chumbo. Dou uma parada para tentar o telefone lá dentro, na esperança de que Anne atenda o celular, mas
se ela já estiver no McLean e no laboratório de neuroimagem vai ser impossível alcançá-la através das grossas paredes de concreto do local. Fico surpresa quando
ela atende.
"Onde você está?", pergunto e ouço música ao fundo.
"Estacionando", responde ela, que deve estar dentro da van com Marino na direção e o rádio ligado.
"Quando tirou as roupas dele", pergunto, "você viu um par de luvas pretas? Ele devia estar usando luvas pretas grossas."
Uma pausa; ouço-a perguntar alguma coisa a Marino, em seguida ouço a voz dele, mas não entendo o que estão dizendo. Então ela responde: "Não. E Marino disse que
quando levou o corpo para a ID não viu luva nenhuma".
"Me conte exatamente o que aconteceu ontem pela manhã."
"Fique aqui um instante", ouço-a dizer a Marino. "Não, ali ainda não, ou eles vão sair. Os caras da segurança. Espere aqui", pede Anne. "Tudo bem", diz ela, agora
se dirigindo a mim. "Pouco depois das sete ontem de manhã, o dr. Fielding foi até a sala de raios X. Como você sabe, Ollie e eu sempre chegamos cedo, por volta das
sete; mas ele estava preocupado por causa do sangue. Tinha percebido gotas no chão fora da geladeira e também dentro dela. Percebeu que o corpo estava sangrando
ou tinha sangrado. Tinha muito sangue no saco."
"O corpo ainda estava completamente vestido."
"Estava. O fecho do casaco estava aberto e a camisa tinha sido cortada, os paramédicos fizeram isso, mas ele estava vestido quando chegou e nada foi feito até o
dr. Fielding ir até lá para preparar o sujeito para nós."
"Como assim?"
Fielding nunca prepara um corpo para autópsia, nem se dava o trabalho de transferi-lo da geladeira para a sala de raios X ou a sala de autópsias, pelo menos não
desde os velhos tempos, quando ainda estava em treinamento. Ele deixa o que considera tarefas mundanas para aqueles a quem continua a chamar de servos e a quem chamo
de técnicos.
"Só sei que ele encontrou o sangue e então correu para nos chamar porque atendeu a ligação da polícia de Cambridge e, como você sabe, a hipótese era de que o homem
tinha sofrido morte súbita natural, como uma arritmia, um aneurisma ou coisa parecida."
"E depois?"
"Depois Ollie e eu examinamos o corpo, chamamos Marino, ele chegou, viu, e decidimos não fazer os exames nem o resto."
"Ele foi deixado na geladeira?"
"Não. Marino quis passar com ele pela ID primeiro, para colher digitais e material para os exames de laboratório, para poder ativar a identificação das impressões,
do DNA e qualquer coisa que nos ajude a descobrir quem ele é. Não havia luvas naquela hora, porque Marino teria precisado tirar do corpo para colher as impressões."
"Então onde elas estão?"
"Ele não sabe, eu também não."
"Pode colocar Marino na linha, por favor?"
Ouço Anne entregar o telefone a Marino, e ele diz: "Foi isso. Abri o zíper do saco, mas não retirei o corpo; tinha muito sangue lá dentro, como você já sabe".
"E você fez o que exatamente?"
"Colhi as impressões com ele dentro do saco. Se ele estivesse usando luvas, eu com certeza teria visto."
"É possível que os policiais tenham removido as luvas na cena do crime, colocado dentro do saco e você não tenha percebido? E então de alguma forma elas se extraviaram?"
"Não. Eu procurei por objetos pessoais, como já disse. O relógio, o anel, o chaveiro, a caixinha de fumo, a nota de vinte dólares. Tirei tudo dos bolsos dele e sempre
olho dentro do saco exatamente pelo motivo que você acabou de mencionar. Caso a polícia ou o serviço de remoção enfie alguma coisa ali, como um chapéu, óculos de
sol ou qualquer outra coisa. Os fones de ouvido e o rádio via satélite estavam em um saco e chegaram junto com o corpo."
"E a polícia de Cambridge? Sei que o investigador Lawless levou a Glock."
"Ele passou recibo pela arma para o laboratório de armas de fogo por volta das dez da manhã. Só levou isso."
"E quando Anne guardou as roupas na estufa, bom, é óbvio que ela não tinha as luvas, se você está dizendo que não estavam lá desde o início."
Ouço Marino dizer alguma coisa e então Anne volta ao telefone para explicar. "Não. Não vi as luvas quando guardei tudo na estufa. Isso foi por volta das nove da
noite, há quase quatro horas, quando retirei as roupas para preparar o corpo para o exame, pouco antes de você chegar ao CFC. Limpei a estufa para me certificar
de que estivesse esterilizada antes de colocar as roupas dele lá dentro."
"Fico satisfeita que alguma coisa esteja esterilizada. Precisamos limpar minha estação."
"Tudo bem, tudo bem", diz ela, mas não se dirigindo a mim. "Espere. Jesus, Pete. Só um minuto."
Em seguida a voz de Marino soa em meu ouvido: "Houve outros casos".
"Como é que é?"
"Tivemos outros casos ontem de manhã. Então talvez alguém tenha removido as luvas, mas não faço a mínima ideia do motivo. A menos que tenham sido pegas por engano."
"Quem trabalhou nos casos?"
"O dr. Lambotte, o dr. Booker."
"E Jack?"
"Dois casos além do cara de Norton's Woods", diz Marino. "Uma mulher atingida por um trem e um velho que não estava sob cuidados médicos. Jack não fez merda nenhuma,
desapareceu", continua Marino. "Ele não se preocupa com a cena do crime e terminamos com um corpo que começa a sangrar na geladeira. Agora precisamos provar que
o cara estava morto."
9
A direção do que oficialmente se chama Centro Forense e Necrotério de Cambridge fica no último andar, e descobri que é difícil explicar às pessoas como me encontrar
quando um edifício é redondo.
O melhor que fui capaz de fazer nas raras ocasiões em que estive no prédio foi instruir os visitantes a saltar do elevador no sétimo andar, virar à esquerda e procurar
pelo número cento e onze. Fica uma porta antes do cento e um, e compreender que cento e um é o número de sala mais baixo neste andar e que o cento e onze é o mais
alto requer certa imaginação. As salas que abrigam meu escritório, portanto, ocupariam a extremidade de um longo corredor se houvesse extremidades e corredores longos,
mas não há. Aqui em cima existe apenas um grande círculo com seis escritórios, uma sala de reuniões ampla, a sala de leitura para reconhecimento de voz, a biblioteca,
a sala de descanso e, no centro, um refúgio sem janelas onde Lucy optou por instalar o computador e os documentos duvidosos do laboratório.
Passando pelo escritório de Marino, paro diante do cento e onze, o que ele chama de COMCENT, ou Comando Central. Tenho certeza de que Marino propôs essa denominação
pretensiosa não por me considerar sua comandante, mas por pensar em si mesmo obedecendo a uma ordem superior patriótica análoga a uma vocação religiosa. Sua veneração
pelo militarismo é nova. É só mais um de seus paradoxos, como se Peter Rocco Marino precisasse de mais um paradoxo para definir sua natureza incoerente e conflituosa.
Preciso me acalmar com ele, digo a mim mesma enquanto destranco a pesada porta com camada de titânio de meu escritório. Ele não é tão ruim e não fez nada de tão
terrível. É previsível, e eu não deveria estar nem um pouco surpresa. Afinal, quem o entende melhor que eu? A pedra de Roseta para Marino não é Bayonne, em New Jersey,
onde cresceu como lutador de rua que se tornou boxeador e depois policial. A chave, no caso dele, não é nem mesmo o pai alcoólatra e imprestável. Marino pode ser
explicado acima de tudo pela mãe e pela namorada de infância, Doris, agora sua ex-esposa, duas mulheres aparentemente dóceis, subservientes e carinhosas, mas não
inofensivas. Longe disso.
Aperto botões para acender as luzes embutidas nos suportes da cúpula geodésica de vidro energeticamente eficiente que me faz lembrar de Buckminster Fuller sempre
que olho para cima. Se o famoso arquiteto e inventor continuasse entre os vivos, aprovaria meu prédio e possivelmente a mim, mas não nossa mórbida raison d'être,
desconfio, embora, no estágio em que as coisas estão, eu também lhe fizesse algumas críticas. Por exemplo, não concordo com sua crença de que a tecnologia possa
nos salvar. É certo que ela não está nos tornando mais civilizados; na realidade, acho que o oposto é verdadeiro.
Paro sobre o carpete cor de bronze atrás da porta como se aguardasse permissão para entrar, ou talvez hesite porque me apropriar deste espaço é abraçar uma vida
que adiei por boa parte de dois anos. Para ser honesta, eu diria que a venho adiando há décadas, desde meus primeiros dias no Walter Reed, onde cuidava da minha
própria vida em uma sala abarrotada e sem janelas na sede do AFIP quando Briggs entrou sem bater e deixou cair um envelope cinza de vinte por vinte e sete em minha
mesa no qual estava impresso CONFIDENCIAL.
Quatro de dezembro de 1987. Eu me lembro de modo tão vívido que posso descrever o que estava vestindo, o tempo e o que comi. Sei que tinha fumado muito naquele dia
e tomado várias doses de uísque puro, porque estava agitada e amedrontada. O caso de todos os casos e o Departamento de Defesa queria a mim, tinha me escolhido entre
todos os outros. Ou, mais precisamente, Briggs. Na primavera do ano seguinte, fui dispensada prematuramente pela Força Aérea, não por bom comportamento, mas porque
a administração Reagan me queria longe, e saí sob certas condições escandalosas que ainda hoje me atormentam. É cármico que eu me encontre em um prédio circular.
Nada terminou ou começou em minha vida. O que estava distante está bem ao meu lado. De alguma forma, é tudo a mesma coisa.
A indicação mais gritante de meus seis meses de ausência de um cargo que preciso de fato ocupar é que o escritório administrativo de Bryce, vizinho ao meu, acha-se
confortavelmente atravancado, ao passo que o meu é desabitado e austero. A sensação é de desamparo e solidão; minha pequena mesa de reuniões em aço escovado está
vazia, sem um vaso de plantas sequer, e quando habito um espaço há sempre plantas. Orquídeas, gardênias, plantas carnívoras e árvores para ambientes internos, tais
como a areca e o sagueiro, pois quero vida e fragrâncias. Mas o que eu tinha aqui quando cheguei desapareceu e veio desaparecendo devido ao excesso de água e fertilizantes.
Dei a Bryce instruções detalhadas e três meses para matar tudo. Ele levou menos de dois.
Não há quase nada em minha mesa, uma estação de trabalho modular arqueada, montada em aço calibre vinte e dois com superfície laminada preta e um jogo compatível
de gavetas de arquivo e prateleiras livres entre as amplas janelas com vista para o Charles e o horizonte de Boston. Uma bancada de granito preto atrás de minha
cadeira Aeron estende-se ao longo do comprimento da parede e é o lugar do meu Sistema Leica de Microdissecção a Laser, seus monitores de vídeo e acessórios, e, ao
lado, da minha fiel Leica auxiliar para uso diário e de um microscópio de pesquisa laboratorial mais básico que posso operar com uma das mãos e sem software ou seminário
de treinamento. Não há muito mais que isso, nenhuma pasta de arquivo à vista, nenhum atestado de óbito nem outros documentos para examinar e rubricar, nenhuma correspondência
e muito poucos objetos pessoais. Concluo que não é bom ter um escritório tão perfeitamente arrumado, tão imaculado. Eu preferia um depósito de lixo. É estranho que
o fato de ser confrontada com um espaço de trabalho vazio me faça sentir tão oprimida e, enquanto lacro a carta de Erica Donahue em um saco plástico, finalmente
me dou conta do motivo por que não sou fã de um mundo que está rapidamente se livrando do papel. Gosto de ver o inimigo, as pilhas do que devo vencer, e extraio
conforto das resmas de amigos.
Estou trancando a carta em um armário quando Lucy se apresenta, silenciosa como uma aparição, no grosso jaleco branco que usa para se aquecer e para esconder coisas
dentro, além de sua predileção pelos bolsos amplos. O casaco grande demais a faz parecer enganosamente inofensiva e muito mais jovem que seus trinta e poucos anos,
segundo ela, mas para mim Lucy vai ser sempre uma garotinha. Eu me pergunto se as mães sempre se sentem assim com relação às filhas, mesmo quando elas já são mães
ou, como no caso de Lucy, andam armadas e são perigosas.
Lucy talvez tenha uma pistola enfiada na parte posterior do cós de sua calça cargo, e me dou conta do quanto me sinto egoisticamente feliz pelo fato de ela estar
em casa. Lucy está de volta à minha vida, não na Flórida ou com pessoas das quais preciso me forçar a gostar, como a promotora pública de Manhattan, Jaime Berger.
Enquanto vejo minha sobrinha, minha filha única substituta, entrar em meu escritório, não posso evitar uma verdade que não vou lhe contar. Estou satisfeita que ela
e Jaime tenham terminado a relação. Esse foi de fato o motivo por que não indaguei a respeito.
"Benton ainda está com você?", pergunto.
"Está no telefone." Lucy fecha a porta atrás de si.
"Com quem ele está conversando a esta hora?"
Lucy pega uma cadeira, puxa as pernas para cima do assento e as cruza nos tornozelos. "Com o pessoal dele", responde, como se insinuasse que Benton está conversando
com colegas do McLean, mas não é isso. Anne está lidando com o hospital, e ela e Marino estão lá, iniciando o exame. Por que Benton estaria conversando com eles
ou com qualquer outra pessoa no McLean?
"Somos só nós três então", comento em tom incisivo. "Além de Ron, imagino. Mas, se você quiser a porta fechada, acho que tudo bem." É meu jeito de deixá-la saber
que seu comportamento hipervigilante e dissimulado não me passou despercebido e quero que ela o explique. Eu gostaria que explicasse por que considera necessário
ser evasiva, quando não ostensivamente insincera comigo, sua tia, quase sua mãe, e agora sua chefe.
"Eu sei." Ela retira uma pequena caixa de provas do bolso do casaco.
"Você sabe? O que você sabe?"
"Que Anne e Marino foram ao McLean porque você quer uma RM. Benton me contou. Por que você não foi?"
"Não sou necessária e não seria particularmente útil, já que os exames de RM não são minha especialidade." Não há scanner de RM no necrotério de Dover, onde a maioria
é de mortos de guerra cujo corpo contém metal. "Pensei em cuidar de algumas coisas e, quando estiver convencida de que sei o que estou procurando, vou começar a
autópsia."
"É meio que um jeito inverso de ver as coisas quando você para e pensa", reflete Lucy, os olhos verdes fixos em mim. "Antes você fazia a autópsia para saber o que
estava procurando. Agora ela é só uma confirmação do que você já sabe e um meio de coletar provas."
"Não exatamente. Ainda tenho surpresas. O que tem nessa caixa?"
"Falando no diabo..." Ela faz a caixinha branca deslizar sobre a superfície desobstruída de minha mesa ridiculamente limpa. "Pode tirar da caixa e não precisa de
luvas. Mas tome cuidado com isso."
Dentro da caixa, sobre uma camada de algodão, encontra-se o que parece a asa de um inseto, talvez uma mosca.
"Vá em frente, pegue", encoraja Lucy, inclinando-se para a frente na cadeira, o rosto radiante de entusiasmo, como se estivesse me vendo abrir um presente.
Sinto a rigidez dos suportes de arame e uma fina membrana transparente, alguma coisa parecida com plástico. "Artificial. Interessante. O que é exatamente, e onde
você conseguiu isso?"
"Você conhece o Santo Graal dos flybots?"
"Confesso que me deu um branco."
"Anos e anos de pesquisa. Milhões e milhões de dólares de pesquisa gastos na construção do flybot perfeito."
"Não estou muito informada a respeito. Na verdade, acho que não sei do que você está falando."
"Equipado com microcâmeras e transmissores para vigilância dissimulada, literalmente para grampear pessoas. Ou para detectar substâncias químicas, explosivos ou
até possíveis riscos biológicos. O trabalho vem sendo feito em Harvard, no MIT, em Berkeley e em vários outros locais aqui e no exterior, antes mesmo dos ciborgues,
aqueles insetos com sistemas microeletromecânicos embutidos, com interface máquina-inseto. Que então se difundiram para fazer merdas como esta para outros seres
vivos, como tartarugas e golfinhos. Não foi o auge da DARPA, se você me perguntar."
Devolvo a asa ao quadrado de algodão. "Vamos voltar um pouco. Comece por onde você conseguiu isso."
"Estou preocupada."
"Você e eu, nós duas estamos."
"Quando Marino estava com o cara na ID esta manhã" - Lucy está se referindo ao morto de Norton's Woods - "eu quis contar a ele sobre o sistema de gravação que descobri
nos fones de ouvido. Ele estava colhendo as digitais do corpo e reparei no que de relance parecia uma asa de mosca grudada no colarinho do casaco do morto junto
com outros detritos, como terra e pedaços de folhas mortas."
"Ela não foi desalojada pelos paramédicos", comento. "Quando abriram o casaco dele."
"Não. Estava presa no colarinho de pele falsa", diz Lucy. "Fiquei impressionada com aquilo, sabe, tive uma sensação estranha e dei uma olhada mais de perto."
Retiro uma lupa da gaveta em minha mesa, acendo uma luminária de exame e, sob a luz forte, a asa aumentada já não parece natural. O que se presumiria que fosse a
base da asa, onde esta se ligaria ao corpo, é na verdade uma espécie de articulação dobrável, e as veias que correm através do tecido da asa são brilhantes como
fios.
"Provavelmente um composto de carbono, e são quinze articulações em cada unidade de asa, o que é incrível." Lucy descreve o que estou vendo. "A asa em si é uma estrutura
de polímero eletroativo, que responde a sinais elétricos que fazem com que as asas batam tão rápido quanto as verdadeiras, as da mosca doméstica comum. Historicamente,
um flybot decola na vertical como um helicóptero e voa como um anjo, o que tem sido um dos principais obstáculos do projeto. Isso e a invenção de uma coisa micromecânica
que é autônoma, mas não volumosa - em outras palavras, biologicamente inspirada para que tenha a energia necessária para se deslocar livremente em qualquer ambiente
em que seja colocada."
"Biologicamente inspirada, como as invenções conceptuais de Da Vinci." Eu me pergunto se ela está lembrada da exposição a que a levei em Londres e se reparou no
pôster na sala do apartamento do morto. É claro que reparou. Lucy repara em tudo.
"O pôster em cima do sofá", diz ela.
"É, eu vi."
"Em um dos vídeos, quando ele estava colocando a coleira no cachorro. Não é assustador?", pergunta Lucy.
"Não tenho certeza se sei por que motivo é assustador."
"Bom, pude me dar o luxo de examinar as gravações com mais cuidado que você." O comportamento de Lucy outra vez, as nuances que consigo reconhecer de forma tão segura
quanto detecto mudanças sutis em um tecido ao microscópio. "É da mesma exposição a que você me levou no Courtauld, tem a data daquele mesmo verão", diz ela em tom
tranquilo e com determinado objetivo em mente. "A gente pode ter visitado ao mesmo tempo, supondo que ele tenha visitado."
É isso o que Lucy acha. Que há uma ligação entre o morto e nós.
"Ter o pôster não significa que ele foi até lá", continua ela. "Sei disso. Não se sustentaria em um tribunal", acrescenta com uma ponta de ironia, como se estivesse
dando uma alfinetada em Jaime Berger, a promotora com quem desconfio que ela não esteja mais.
"Lucy, você tem alguma ideia de quem é esse homem?", adianto-me e pergunto.
"Só acho estranho pensar que ele talvez estivesse naquela galeria quando nós estivemos. Mas com certeza não estou afirmando isso. Não mesmo."
Não é o que ela de fato pensa. Vejo isso em seus olhos, ouço em sua voz. Lucy desconfia que o sujeito esteve lá quando estivemos. Como concluiu tal coisa a respeito
de um morto cujo nome desconhecemos?
"Você não está dando uma de hacker outra vez, não é?", digo sem meias palavras, como se perguntasse sobre fumar, beber ou algum outro hábito prejudicial à saúde.
Já pensei mais de uma vez que Lucy pode ter encontrado um jeito de rastrear os arquivos de vídeo gravados em segredo até um computador pessoal ou servidor em algum
lugar. Para ela, um firewall e outras medidas de segurança para proteger dados reservados nada mais são que lombadas em seu caminho para obter o que quer.
"Eu não sou hacker", declara ela com simplicidade.
Isso não é resposta, penso, mas não digo.
"Só acho uma coincidência incrível", continua ela. "E acho provável que ele tenha esse pôster por causa de alguma ligação com aquela exposição. Agora você pode comprar
essas imagens. Eu chequei. Quem teria um pôster desse, a não ser que tivesse ido até lá ou tivesse alguém chegado que foi até lá?"
"A menos que seja muito mais velho do que parece, ele era uma criança na época", observo. "Foi no verão de 2001."
Lembro que o relógio dele estava cinco horas adiantado. Estava ajustado ao fuso horário do Reino Unido e a exposição havia sido em Londres. Isso não prova nada.
Uma consistência, mas não uma prova, digo a mim mesma.
"Aquela exposição era exatamente o tipo de coisa que um inventorzinho precoce ia adorar", comenta Lucy.
"Assim como você", retruco. "Acho que foi quatro vezes. E comprou a série de palestras em CD, de tão fascinada."
"É uma ideia e tanto. Um garotinho na galeria no momento exato em que estávamos lá."
"Você fica dizendo isso como se fosse um fato." Continuo a bater na mesma tecla.
"E quase uma década mais tarde eu estou aqui, você está aqui, e o cadáver dele está aqui. Nem me fale em seis graus de separação."
Fico perturbada ao ouvir Lucy se referir a outra coisa que andei pensando mais cedo. Primeiro a exposição de Londres, agora a imensa teia constituída por todos nós,
a forma como as vidas ao redor do planeta se interconectam de alguma forma.
"Na verdade, eu nunca me acostumei com isso", ela diz. "Ver uma pessoa e então, mais tarde, ela é assassinada. Não que eu consiga visualizar o cara quando menino
na galeria em Londres, não que veja algum rosto de criança na mente. Mas posso ter estado ao lado dele ou até ter conversado com ele. Em retrospecto, é sempre difícil
entender que, se soubesse o que vinha mais à frente, você talvez pudesse ter mudado o destino de alguém. Ou o seu."
"Benton te contou que o homem de Norton's Woods foi assassinado ou você soube disso por outra pessoa?"
"Colocamos a fofoca em dia."
"E você mencionou o flybot enquanto colocavam a fofoca em dia há um instante no seu laboratório." Não é uma pergunta.
Tenho certeza de que Lucy contou a Benton sobre a asa de mosca robótica e qualquer outra coisa que julgue que ele deveria saber. Ela foi enfática há pouco no helicóptero
sobre ele ser a única pessoa em quem realmente confia agora além de mim. Embora eu não me sinta exatamente confiável. Tenho a sensação de que ela está peneirando
informação e sendo seletiva quanto ao que oferece quando não desejo que esconda nada. Não desejo que seja evasiva ou minta. Mas uma coisa que aprendi acerca de Lucy
é que desejar não torna as coisas verdadeiras. Posso desejar o que for e isso não vai mudar seu comportamento. Não vai mudar o que ela pensa ou faz.
Apago a luminária e devolvo a caixinha branca. "O que você quis dizer com 'voa como um anjo'?"
"Aquelas reproduções artísticas de anjos pairando. Sei que você já viu algumas." Lucy pega um bloco e uma caneta primorosamente dispostos ao lado do telefone. "Os
corpos ficam na vertical, como o de alguém com um jato nas costas, ao contrário dos insetos e pássaros, cujo corpo fica na horizontal durante o voo. Esses flybots
pequenos voam na vertical, como anjos, e essa é uma de suas falhas, isso e o tamanho. A busca de uma solução é como a do Santo Graal. Já frustrou os melhores e mais
brilhantes."
Ela faz um esboço para me mostrar, um boneco de palitinhos que parece uma cruz voando pelos ares.
"Se você quiser que um inseto como a mosca doméstica comum seja literalmente uma mosca na parede realizando vigilância dissimulada", continua ela, "deve parecer
com uma mosca, não com um corpo minúsculo com asas na vertical. Se eu estivesse em uma reunião com Ahmadinejad no Irã e alguma coisa passasse voando na vertical,
então pousasse na vertical no peitoril da janela como uma Sininho minúscula, acho que eu perceberia e ficaria meio desconfiada."
"Se você fosse a uma reunião com Ahmadinejad no Irã, eu ficaria muito desconfiada por várias razões. Esquecendo por que motivo meu paciente tinha a asa de uma dessas
coisas no casaco, supondo que essa asa faça parte de um flybot completo...", começo a dizer.
"Não exatamente um flybot", interrompe ela. "Também não é necessariamente um spybot. É aonde estou querendo chegar. Acho que isso é o Santo Graal."
"Então, seja o que for, para que ele teria sido usado?"
"A imaginação é o limite", responde ela. "Eu poderia fazer uma boa lista, mas não dá para saber de forma definitiva, não a partir de uma asa, embora eu possa dizer
algumas coisas importantes. Infelizmente, não consegui encontrar o resto do objeto."
"Você está querendo dizer no corpo, no casaco? Encontrar o resto onde?"
"Na cena do crime."
"Você foi a Norton's Woods."
"Com certeza", diz ela. "Assim que percebi a origem da asa. É claro que fui direto para lá."
"Passamos várias horas juntas." Lembro Lucy que poderia ter me contado antes. "Só você e eu naquela cabine a viagem inteira desde Dover."
"É engraçado esse sistema de comunicação interna. Mesmo quando tenho certeza de que está desligado lá atrás, não me sinto segura. Não se é alguma coisa que não posso
me permitir que alguém ouça. Marino não deve tomar conhecimento disso." Ela aponta para a caixinha branca que contém a asa.
"Por que exatamente?"
"Acredite em mim, você não quer que ele saiba porra nenhuma sobre isso. É uma peça muito pequena de alguma coisa muito maior em mais de um sentido."
Ela continua a me assegurar que Marino nada sabe a respeito de sua ida a Norton's Woods. Desconhece a existência da pequena asa mecânica ou que há um fator motivador
no fato de ela tê-lo encorajado a me buscar em Dover mais cedo, para me escoltar em segurança no helicóptero. Lucy não mencionou nada disso até agora, continua a
explicar, porque não confia em ninguém no momento. A não ser em Benton, acrescenta. E em mim, acrescenta. E está sendo muito cuidadosa com os locais onde tem certas
conversas, e todos nós deveríamos ser.
"A menos que a área esteja liberada", diz ela, e o que tem em vista é vasculhado; a implicação disso é que meu escritório é seguro ou não estaríamos tendo esta conversa
nele.
"Você verificou meu escritório à procura de dispositivos de vigilância?" Não estou chocada. Lucy sabe vasculhar um local à procura de gravadores escondidos porque
sabe espionar. O melhor ladrão é o chaveiro. "Quem você acha que estaria interessado em grampear meu escritório?"
"Não sei bem quem está interessado no quê ou por quê."
"Não Marino", digo então.
"Bom, isso seria fácil de descobrir. Mas é claro que não. Não estou preocupada que ele faça alguma coisa assim. Só me preocupa que não consiga ficar de boca fechada",
retruca Lucy. "Pelo menos não quando se trata de certas pessoas."
"Você conversou sobre o MORT no helicóptero. Não ficou preocupada com o sistema de comunicação interna nem com Marino quando fez referência ao MORT."
"Não é a mesma coisa. Não chega nem perto", diz ela. "Não importa se Marino abrir a boca para certas pessoas a respeito de um robô no apartamento do cara. Outras
pessoas já têm conhecimento disso, pode ter certeza. Não posso correr o risco de ter Marino falando da minha amiguinha aqui." Ela olha para a caixinha branca. "E
ele não teria em vista nada de ruim. Mas não entende certas realidades sobre certas pessoas. Especialmente o general Briggs e a capitã Avallone."
"Eu não imaginava que você soubesse alguma coisa sobre ela." Nunca mencionei Sophia Avallone a Lucy.
"Jack mostrou as instalações quando ela esteve aqui. Marino comprou almoço, ficou lambendo o rabo uniformizado dela. Ele não entende gente assim, não entende a porra
do Pentágono. Simplesmente assume que todo mundo é como a gente."
Fico aliviada que Lucy perceba isso, mas não quero incentivá-la a desconfiar de Marino, nem de leve. Ela passou por muita coisa com ele e os dois são finalmente
amigos de novo, tão chegados quanto quando Lucy era criança e ele lhe ensinou a dirigir sua caminhonete e a atirar e ela o irritava para valer, o que era recíproco.
Lucy recebeu de minha genética a ciência, mas recebeu dele sua afinidade pela matéria policial, como ela diz. Foi ele o detetive importante e durão em sua vida enquanto
criança prodígio sabe-tudo e difícil, e ele a amou e a odiou em tantas ocasiões diferentes quanto Lucy o amou e o odiou. Mas os dois são amigos e colegas agora.
Faço tudo para que continuem assim. Tenha cuidado com o que diz, previno a mim mesma. Deixe que a paz perdure.
"De onde concluo que Briggs não tem conhecimento disso." Indico a caixinha branca em cima de minha mesa. "Nem a capitã Avallone."
"Não vejo como."
"Meu escritório tem alguma escuta agora?"
"Nossa conversa é completamente segura", declara ela, o que não é uma resposta.
"E Jack? É possível que ele saiba sobre o flybot? Bom, você não contou a ele."
"De jeito nenhum."
"Então, só se alguém tiver ligado procurando pelo objeto. Ou talvez pela asa do objeto."
"O que você está querendo dizer é: só se o assassino tiver telefonado para cá à procura de um flybot desaparecido", diz Lucy. "E vou chamar assim para simplificar,
embora isso não seja um flybot comum. Isso seria uma idiotice. Indicaria que o autor da ligação tinha alguma coisa a ver com o homicídio do sujeito."
"Não podemos descartar nada. Às vezes os assassinos fazem coisas idiotas", retruco. "Quando estão muito desesperados."
10
Lucy se levanta e entra em meu banheiro privativo, onde há uma máquina de café sobre uma bancada. Ouço-a encher o reservatório com água da torneira e verificar o
pequeno refrigerador. É quase uma da manhã e a neve não diminuiu, está caindo com força e rápido, e quando os pequenos flocos são soprados de encontro às janelas
o som parece o de areia explodindo contra o vidro.
"Leite desnatado ou creme?", chama Lucy do que deveria ser meu vestiário particular, que inclui um chuveiro. "Bryce é uma ótima esposa. Encheu sua geladeira."
"Ainda bebo café preto." Começo a abrir as gavetas em minha mesa, sem saber ao certo o que estou procurando.
Penso em minha estação de trabalho suja na sala de autópsias. Penso nas pessoas usando o que não deveriam usar.
"Bom, então por que você tem leite e creme?" É a voz alta de Lucy. "Green Mountain ou Black Tiger? Também tem com avelã. Desde quando você bebe café sabor avelã?"
As perguntas são retóricas. Ela sabe as respostas.
"Desde nunca", resmungo, vendo lápis, canetas, adesivos Post-it, clipes e, na gaveta de baixo, chiclete de hortelã.
A embalagem está pela metade e não masco chiclete. Quem gosta de chiclete de hortelã e teria motivos para usar minha escrivaninha? Não Bryce. Ele é pretensioso demais
para mascar chiclete e, se eu o apanhasse fazendo isso, desaprovaria, pois considero uma grosseria mascar chiclete na frente de outras pessoas. Além disso, Bryce
não fuçaria minha mesa, não sem permissão. Ele não se atreveria.
"Jack gosta de hortelã, baunilha francesa, essas merdas, e bebe café com leite desnatado, a não ser que esteja fazendo uma das dietas ricas em proteína e gordura
dele", continua Lucy de dentro do banheiro. "Aí usa creme de verdade, creme gordo como esse aqui. Imagino que, se você tivesse visita, ou estivesse esperando alguma,
teria creme."
"Não quero nada com sabor e, por favor, prepare o café forte."
"Ele é um superconsumidor, exatamente como você", soa a voz de Lucy. "As digitais dele estão em todas as fechaduras deste lugar, tanto quanto as suas."
Ouço o esguicho de água quente através da embalagem de K-Cup e recebo a interrupção com alegria. Recuso-me a me engajar na especulação venenosa de que Jack Fielding
esteve em meu escritório durante minha ausência, de que talvez o tenha usado enquanto bebia café, mascava chiclete ou sabe-se lá o que mais. Mas, quando olho ao
redor, não parece possível. Meu escritório dá a sensação de não habitado. Certamente não parece que alguém andou trabalhando por aqui.
"Fui a Norton's Woods antes da polícia de Cambridge. Marino pediu a eles que voltassem por causa do número de série apagado da Glock. Mas cheguei lá primeiro." Lucy
continua a falar alto de dentro do banheiro. "Mas tive a desvantagem de não saber exatamente onde o cara caiu, onde foi esfaqueado, como agora sabemos. Sem as fotografias
da cena, é impossível conseguir a localização exata, só uma estimativa, então vasculhei todas as trilhas do parque."
Ela surge com café fumegante em canecas pretas com a insígnia pouco comum do AFMES, a mão de pôquer de cinco cartas composta por ases e oitos, conhecida como a mão
do homem morto, o que Wild Bill Hickok estava segurando quando foi morto a tiros.
"Foi como procurar agulha em palheiro", continua ela. "O flybot tem provavelmente a metade do tamanho de um clipe de papel pequeno, é mais ou menos do tamanho de,
bom, de uma mosca. Não encontrei nada."
"Só porque você encontrou uma asa não significa que o resto estava lá", lembro quando ela deposita o café a minha frente.
"Se estiver, está mutilado." Lucy retorna à sua cadeira. "Debaixo de neve enquanto conversamos e sem uma asa. Mas muito possivelmente ainda vivo, sobretudo quando
exposto à luz, supondo que não tenha sofrido outras avarias."
"Vivo?"
"Não literalmente. Provavelmente alimentado por micropainéis solares, em vez de uma bateria, que já estaria inativa. A luz bate no objeto e abracadabra. É para onde
tudo está se encaminhando. E o nosso amiguinho, onde quer que esteja, é futurista, uma obra-prima da microtecnologia."
"Como você pode ter tanta certeza se não conseguiu encontrar a maior parte dele? Só tem uma asa."
"Não uma asa qualquer. O ângulo e as juntas flexíveis são engenhosos e sugerem um plano de voo diferente. Não mais o voo de um anjo. Mas horizontal, como o de um
inseto de verdade. O que quer que seja essa coisa e qualquer que seja sua função, estamos falando de um objeto extremamente avançado, que eu nunca vi. Nada foi publicado
a respeito, porque recebo praticamente todas as revistas técnicas on-line. Além disso, andei fazendo pesquisas a respeito, sem sucesso. Ao que tudo indica, é um
projeto sigiloso, altamente secreto. Espero que o resto dele esteja lá no chão em algum lugar, coberto de neve e a salvo."
"O que isso estava fazendo em Norton's Woods para início de conversa?" Visualizo a mão enluvada invadindo a imagem da câmera de vídeo escondida, como se o homem
estivesse golpeando alguma coisa.
"Sim. E era dele ou de outra pessoa?" Ela sopra o café, segurando a caneca com ambas as mãos.
"Tem alguém procurando por isso? Alguém acha que está aqui ou que sabemos onde está?", torno a perguntar. "Alguém te contou que as luvas dele desapareceram? Você
reparou nisso lá embaixo enquanto Marino estava colhendo as digitais do corpo? Parece que a vítima colocou um par de luvas pretas quando chegou ao parque, o que
achei estranho quando assisti aos vídeos. Imagino que ele tenha morrido de luvas, então onde elas estão?"
"Interessante", diz Lucy, e não consigo perceber se já sabia que as luvas desapareceram.
Não consigo descobrir o que ela sabe e se está mentindo.
"Elas não estavam no parque quando andei por lá ontem de manhã", informa. "Eu teria visto um par de luvas pretas se tivesse sido acidentalmente deixado pelos técnicos,
pelo serviço de remoção ou pelos policiais. É claro que elas podem ter sido recolhidas por alguém que passou por ali."
"No vídeo, alguém usando um casaco preto longo passa pouco depois que o homem cai no chão. É possível que quem matou o sujeito tenha parado só o tempo suficiente
para pegar as luvas?"
"O que você tem em mente é se elas são luvas de dados ou luvas inteligentes, do tipo que é usado em combate, luvas com sensores para sistemas de computadores portáveis,
a robótica portável", diz Lucy como se fosse normal deliberar sobre um par de luvas desaparecido.
"Só estou querendo saber por que as luvas são tão importantes para que alguém tenha se dado o trabalho de pegar, se é que foi o que aconteceu", retruco.
"Se elas forem munidas de sensores e era assim que ele estava controlando o flybot, supondo que o flybot seja dele, então as luvas seriam extremamente importantes",
diz Lucy.
"E você não perguntou sobre as luvas quando esteve lá embaixo com Marino? Não pensou em examinar todas as roupas à procura de sensores?"
"Se eu estivesse com as luvas, teria muito mais chance de encontrar o flybot quando voltei a Norton's Woods", declara Lucy. "Mas elas não estão comigo nem sei onde
estão, se é o que está perguntando."
"Estou perguntando porque seria adulteração de provas."
"Não fiz isso. Prometo. Não sei com certeza se são luvas de dados, mas faz sentido se levarmos em conta outras coisas. Como o que ele diz no vídeo pouco antes de
morrer", acrescenta ela com ar pensativo, refletindo, ou talvez já tenha refletido, mas esteja me levando a crer que o que está dizendo é um raciocínio novo. "O
homem fica repetindo 'Ei, rapaz'."
"Pensei que ele estivesse falando com o cachorro."
"Talvez sim. Talvez não."
"E ele disse outras coisas que não consegui entender", recordo. "'E para você' ou 'Você manda um', alguma coisa assim. Uma mosca robótica consegue entender comandos
de voz?"
"É completamente possível. Essa parte foi abafada. Também ouvi e achei confuso", diz Lucy. "Mas talvez não se ele estivesse controlando um flybot. Ele pode ter emitido
algum comando numérico ou de direção. Vou escutar outra vez com som mais alto."
"Mais?"
"Já apliquei um pouco. Não ajudou. Ele pode ter dado coordenadas de GPS ao flybot, o que seria um comando comum para um dispositivo que responde à voz - se você
estiver dizendo a ele aonde ir, por exemplo."
"Se conseguisse entender alguma coordenada de GPS, talvez você encontrasse o lugar, descobrisse onde ele está."
"Sinceramente, duvido. Se o flybot era controlado pelas luvas, controlado pelo menos em parte por sensores nela, e quando a vítima acenou com a mão, talvez no momento
em que foi esfaqueada?"
"O quê?"
"Não sei, mas não tenho o flybot e não tenho as luvas", diz Lucy me encarando com ar sério, os olhos direto nos meus. "Não encontrei nenhum deles, mas com certeza
gostaria de ter encontrado."
"Marino comentou que alguém pode ter seguido Benton e eu depois que saímos de Hanscom?", pergunto.
"Procuramos o SUV grande com faróis de xenônio e de neblina. Não estou dizendo que signifique alguma coisa, mas Jack comprou em outubro um Navigator azul-escuro.
Usado. Você não estava aqui, então acho que não viu."
"Por que Jack nos seguiria? E não, não sabia que ele tinha comprado um Navigator. Pensei que tivesse um jipe Cherokee."
"Ele trocou, acho." Lucy bebe o café. "Eu não disse que ele seguiria vocês. Ou que seria idiota o suficiente para colar no seu para-choque. A não ser em uma nevasca
ou um nevoeiro, quando a visibilidade é muito ruim, alguém bastante inexperiente pode seguir muito de perto se não souber para onde o alvo está indo. Não vejo por
que Jack se daria esse trabalho. Ele não imaginaria que você estava a caminho daqui?"
"Você tem ideia do motivo por que alguém se daria esse trabalho?"
"Se alguém sabe que o flybot está desaparecido", responde Lucy, "com toda certeza está procurando por ele e possivelmente não pouparia nada para encontrar o objeto
antes que caia nas mãos erradas. Ou nas mãos certas. Dependendo de com quem ou o que estamos lidando. Posso dizer isso com base em uma asa. Se foi por isso que vocês
foram seguidos, fico menos propensa a desconfiar que quem matou o sujeito tenha encontrado o flybot. Em outras palavras, o dispositivo pode muito bem estar desaparecido.
Provavelmente não preciso te dizer que uma invenção técnica patenteada ultrassecreta como essa pode valer uma fortuna, especialmente se alguém roubar a ideia e levar
o crédito por ela. Se essa pessoa está procurando pelo dispositivo e tem motivos para temer que ele tenha vindo para cá junto com o corpo, talvez quisesse ver aonde
vocês estavam indo, o que estavam fazendo. Ele ou ela poderia pensar que o flybot está aqui no CFC ou que você o guardou em algum outro lugar. Inclusive em casa."
"Por que estaria na minha casa? Ainda não fui para casa."
"Pessoas sob pressão não têm lógica", responde Lucy. "Se eu fosse a pessoa que está procurando, talvez imaginasse que você instruiu seu marido, que já pertenceu
ao FBI, a esconder o flybot em casa. Poderia imaginar todo tipo de coisas. E se o flybot ainda está à solta, continuaria a procurar."
Recordo as exclamações do homem, ouço sua voz em minha imaginação. "O que...? Ei...!" Talvez a reação assustada não se devesse unicamente à dor aguda repentina na
região lombar e à tremenda pressão no peito. Talvez alguma coisa tenha voado de encontro ao seu rosto. Talvez ele estivesse usando luvas de dados e sua reação de
surpresa tenha ocasionado a avaria no flybot. Imagino o minúsculo dispositivo a meio voo, sendo atingido pela mão enluvada do homem e esmagado contra o colarinho
do casaco.
"Se alguém está de posse da luva de dados e procurou pelo flybot antes da neve começar, é realmente possível que não tenha encontrado o dispositivo?", pergunto à
minha sobrinha.
"É claro que é possível. Depende de uma série de coisas. Do quanto ele está avariado, por exemplo. Houve muita atividade ao redor do homem depois que ele caiu. Se
o flybot estava por ali, no chão, pode ter sido esmagado ou ainda mais danificado e parou completamente de responder. Ou pode estar embaixo de alguma coisa, em alguma
árvore, no meio do mato ou em qualquer lugar lá fora."
"Imagino que um inseto robótico possa ser usado como arma", sugiro. "Já que não faço ideia do que causou as lesões internas desse homem, preciso pensar em todas
as possibilidades imagináveis."
"Esse é o problema", diz Lucy. "Hoje, quase tudo que você imaginar é possível."
"Benton contou o que vimos na TC?"
"Não vejo como um inseto micromecânico possa ter causado danos internos assim", responde Lucy. "A menos que tenham injetado alguma coisa na vítima com um dispositivo
microexplosivo."
Minha sobrinha e suas fobias. Sua obsessão por explosivos. Sua grave desconfiança do governo.
"E com certeza espero que não", continua ela. "Na verdade, estaríamos falando em nanoexplosivos quando se trata de um flybot."
Minha sobrinha e suas teorias; recordo o comentário de Jaime Berger da última vez que a vi no dia de Ação de Graças, quando estávamos todos em Nova York, jantando
em sua cobertura. "O amor não vence tudo", disse Berger. "É impossível", disse ela, bebendo muito vinho e passando tempo demais na cozinha discutindo com Lucy a
respeito do Onze de Setembro, a respeito de explosivos usados em demolições, nanomateriais pintados em infraestruturas que causariam uma terrível destruição se sofressem
o impacto de grandes aviões repletos de combustível.
Já desisti de argumentar com minha fóbica e cínica sobrinha, que é inteligente demais para seu próprio bem e não me ouve. Para ela, não importa que simplesmente
não haja fatos suficientes que confirmem aquilo de que está convencida, apenas alegações sobre resíduos encontrados na poeira logo depois que as torres desabaram.
Então, semanas mais tarde, mais poeira foi coletada, contendo os mesmos resíduos de óxido de ferro e alumínio, um nanocompósito usado na produção de fogos e explosivos.
Admito que foram escritos artigos a respeito em revistas científicas dignas de crédito, mas não o suficiente, e eles nem mesmo começam a provar que nosso próprio
governo ajudou a planejar o Onze de Setembro como desculpa para dar início a uma guerra no Oriente Médio.
"Sei o que você pensa sobre teorias da conspiração", diz Lucy. "Essa é uma grande diferença entre nós. Já vi o que os supostos mocinhos são capazes de fazer."
Ela nada sabe sobre a África do Sul. Se soubesse, perceberia que não há diferença entre nós duas. Sei muito bem o que os supostos mocinhos são capazes de fazer.
Mas não o Onze de Setembro. Eu não iria tão longe e penso em Jaime Berger e imagino o quanto devia ser difícil para a poderosa e consagrada promotora pública de
Manhattan ter Lucy como companheira. O amor não vence tudo. É realmente verdade. Talvez a paranoia de Lucy acerca do Onze de Setembro e o país em que vivemos a tenha
reconduzido a um isolamento social que historicamente nunca é interrompido por muito tempo. Achei que Jaime fosse de fato a pessoa certa, que ia durar. Agora tenho
certeza de que não. Quero dizer a Lucy que sinto muito por isso, que sempre vou estar presente e conversar sobre tudo que ela quiser, mesmo que vá de encontro a
minhas crenças. Agora não é o momento.
"Acho que precisamos levar em conta que talvez estejamos lidando com algum cientista renegado, talvez mais de um, que não está tramando nada de bom", diz Lucy em
seguida. "É esse o ponto importante que estou tentando avaliar. E estou me referindo a coisas ruins, muito ruins, tia Kay."
Sinto alívio ao ouvir Lucy me chamar de tia Kay. Sinto que está tudo bem conosco quando ela me chama assim, o que raras vezes faz agora. Não consigo lembrar quando
tinha sido a última vez. Quando sou sua tia Kay, quase consigo ignorar o que é Lucy Farinelli, um gênio sociopata limítrofe, diagnóstico que Benton ridiculariza,
gentil mas firmemente. Ser sociopata limítrofe é como estar meio grávida ou meio morta, diz ele. Amo minha sobrinha mais do que minha própria vida, mas vim a aceitar
que, quando ela se comporta bem, é um ato de vontade ou simplesmente lhe convém. A moralidade tem muito pouco a ver com isso. Tudo está relacionado ao fim justificando
os meios.
Analiso Lucy com cuidado, embora não tenha esperança de entender o que existe ali. Seu rosto nunca revela informação que possa de fato machucá-la.
"Preciso fazer uma pergunta", digo.
"Pode fazer mais de uma." Ela sorri e parece incapaz de ferir alguma coisa ou alguém, a menos que a pessoa reconheça a força e a agilidade em suas mãos serenas e
as rápidas mudanças em seus olhos à medida que os pensamentos lampejam por trás deles como relâmpagos.
"Você não está envolvida no que quer que seja isso?" Eu me refiro à caixinha branca e à asa do flybot dentro dela. Refiro-me ao morto que está fazendo uma ressonância
magnética no McLean - alguém que talvez tenha cruzado nosso caminho em uma exposição de Da Vinci em Londres meses antes do Onze de Setembro, que Lucy incrivelmente
acredita ter sido orquestrado pelo nosso próprio governo.
"Não." Ela responde sem afetação, não hesita e não parece nem um pouco constrangida.
"Porque agora você está aqui." Lembro Lucy de que ela trabalha para o CFC, ou seja, de que trabalha para mim, e estou sujeita ao governador de Massachusetts, ao
Departamento de Defesa e à Casa Branca. Estou sujeita a muita gente. "Não posso ter..."
"É claro que não. Não vou criar problemas."
"Não é mais só você..."
"Não precisamos ter essa conversa", ela torna a interromper, e seus olhos chispam. São tão verdes que não parecem reais. "De qualquer forma, ele não tem lesões térmicas,
certo? Nenhuma queimadura."
"Nada que eu tenha visto até agora. Isso é certo", respondo.
"Tudo bem. Então e se alguém espetou o cara com uma arma subaquática modificada? Sabe, um daqueles arpões com alguma coisa parecida com um cartucho de espingarda
na ponta? Só que, nesse caso, uma carga muito pequena, minúscula, contendo nanoexplosivos?"
Aperto o botão liga/desliga para acionar meu computador de mesa. "Não teria a aparência do que acabei de ver. Ia parecer o ferimento provocado por um disparo de
contato, menos a abrasão típica produzida pelo cano da arma. Mesmo que estivéssemos falando do uso de nanoexplosivos em oposição a algum tipo de munição de arma
de fogo na ponta de uma lança ou de alguma coisa parecida com uma lança, você está certa, veria lesões térmicas. Haveria queimaduras na entrada e no tecido subjacente.
Imagino que esteja sugerindo que alguma coisa como um flybot poderia ser usado para lançar nanoexplosivos. É o que teme que esse suposto cientista renegado, ou mais
de um, esteja fazendo?"
"Lançar. Detonar. Nanoexplosivos, drogas, venenos. Como eu disse, a imaginação é o limite do que um dispositivo desses é capaz de fazer."
"Preciso dar uma olhada na filmagem de segurança que mostra o vazamento do saco contendo o corpo", digo, enquanto procuro arquivos em meu computador. "Não vou ter
que procurar Ron para isso, vou?"
Lucy contorna a mesa e começa a digitar em meu teclado, inserindo sua senha do administrador do sistema, que confere total acesso aos meus domínios.
"Moleza." Ela pressiona uma tecla para abrir um arquivo.
"Ninguém pode entrar nos meus arquivos sem seu conhecimento."
"Não no ciberespaço. Mas não sei se alguém esteve no seu espaço físico, principalmente porque não fico aqui o tempo todo; na verdade, não fico aqui nem a maior parte
do tempo, porque trabalho à distância sempre que posso", diz ela, mas não estou convencida de que não saberia.
Na realidade, não acredito nisso.
"Mas não existe a menor possibilidade de que alguém tenha entrado nos seus arquivos protegidos por senha", continua ela, e nisso eu acredito. Lucy não permitiria.
"Você pode monitorar as câmeras de segurança de qualquer lugar, por sinal. Até do seu iPhone, se quiser. Tudo de que precisa é acesso à internet. Encontrei isso
mais cedo e salvei como arquivo. Cinco e quarenta e dois da tarde. Que foi a hora de ontem em que as imagens foram captadas por uma câmera de segurança na recepção."
Lucy clica no play, aumenta o volume e vejo dois atendentes vestindo casaco de inverno empurrando uma maca que conduz um saco preto ao longo do corredor de ladrilho
cinza no andar de baixo.
As rodas estalam quando eles estacionam a maca em frente à geladeira e agora vejo Janelle, gorducha e com cabelo castanho curto, com ar agressivo e uma quantidade
surpreendente de tatuagens, tão bem quanto a recordo. Alguém que Fielding encontrou e contratou.
Janelle abre a maciça porta de aço e ouço a precipitação do golpe de ar.
"Coloque isso..." Ela aponta e noto que está usando uma jaqueta escura com PERÍCIA em grandes letras amarelas brilhantes na parte de trás. Ela veste o uniforme externo,
inclusive o boné de beisebol do CFC, como se fosse sair no frio ou tivesse acabado de entrar.
"Naquela bandeja ali?", um dos atendentes pergunta enquanto ele e o companheiro retiram da maca o saco contendo o corpo. O saco se dobra à vontade enquanto eles
o carregam, o corpo em seu interior tão flexível quanto em vida. "Merda, ele está pingando. Droga. É bom que não tenha aids nem nada parecido. Na minha calça, na
porra do meu sapato."
"Na mais baixa." Janelle guia os dois homens até uma bandeja no interior da geladeira, saindo do caminho e nem um pouco interessada no sangue que goteja do saco
e mancha o chão cinza. Ela parece não notar.
"Janelle, a maravilhosa", comenta Lucy, quando a gravação de vídeo termina de repente.
"Você tem os registros do IML?" Quero ver a que horas o investigador médico-legal - em outras palavras, Janelle - chegou e saiu ontem. "É óbvio que ela estava de
plantão durante a noite."
"Ela fez dois turnos no domingo, maníaca por trabalho do jeito que é", diz Lucy. "Substituiu Randy, que estava escalado para as noites do fim de semana, mas pediu
dispensa por estar doente. O que significa que ficou em casa para assistir ao Super Bowl."
"Espero que não."
"E o fresco do Randy não está aqui agora por causa do tempo. Supostamente, está de plantão em casa. Deve ser bom ter um utilitário para levar embora e ser pago para
ficar em casa", diz Lucy, e ouço o desprezo em seu tom áspero e o vejo na dureza em seu rosto. "Acho que você já percebeu onde está metida. Supondo que tenha desistido
de arranjar desculpas para as pessoas."
"Não arranjo desculpas para você."
"Isso porque não precisa."
Examino os registros que Janelle deixou ontem, um documento-padrão em minha tela de vídeo com muito poucos campos preenchidos.
"Não pretendo explicar o que é evidente como o nariz no meu rosto, mas você sabe muito pouco sobre o que acontece por aqui", diz Lucy. "Não conhece os detalhes do
dia a dia neste lugar. E como poderia?" Ela volta para o outro lado da mesa e pega seu café, mas não torna a se sentar. "Nunca está aqui. Desde que começamos a funcionar."
"É só isso? Esse é o registro inteiro do dia de ontem?"
"É isso aí. Janelle chegou às quatro. Se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro." Lucy continua de pé bebendo o café e me observando. "E ela anda
com uma quadrilha e tanto, por sinal. Os merdas dos amigos forenses dela. A maioria policiais, alguns da área de processamento de dados ou gente de escritório. Qualquer
pessoa para quem ela possa posar de heroína. Sabia que faz parte de um time de queimada? Que tipo de pessoa joga queimada? Alguém com finesse."
"Se ela entrou às quatro, por que está vestindo o uniforme externo, inclusive a jaqueta? Como se tivesse acabado de chegar do frio?"
"Como eu disse, se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro."
"E David estava de serviço antes disso e também não respondeu?", pergunto. "Jack podia ter mandado David a Norton's Woods. Ele estava aqui à toa, então por que Jack
não pediu que fosse até a cena? Fica a uns quinze minutos daqui."
"E você não sabe disso também." Lucy entra no banheiro e enxágua sua caneca. "Você não sabe se David estava aqui à toa", diz enquanto torna a sair e se põe a circular
perto da porta fechada do escritório. "Não quero ser eu a te contar..."
"Parece que você é a única. Ninguém me conta porra nenhuma", retruco. "O que está acontecendo por aqui? As pessoas só aparecem quando sentem vontade?"
"Praticamente. Os outros legistas, os investigadores, todos entram e saem ao seu bel-prazer. Isso vem de cima."
"Vem de Jack."
"Ao menos por esse lado. Os laboratórios são outra história, porque ele não está interessado neles. A não ser o de armas de fogo." Ela se apoia na porta fechada,
enfiando as mãos nos bolsos do jaleco.
"Ele devia estar no comando na minha ausência. Jack é codiretor de todo o necrotério do CFC." Não consigo afastar de minha voz o tom de queixa, de indignação.
"Jack não se interessa pelos laboratórios e, de qualquer forma, os pesquisadores não prestam a menor atenção nele. A não ser o de armas de fogo, como eu já disse.
Você conhece Fielding com revólveres, facas, balestras, arcos. Nunca encontrei uma arma que ele não adorasse. Então se mete no laboratório de armas e marcas e já
conseguiu ferrar com eles também. Encheu a paciência de Morrow até ele ficar à beira da demissão. Sei que está procurando outro emprego. E não existe nenhum bom
motivo para que o laboratório dele não terminasse com a Glock do morto. O número de série apagado. Merda. Ele se mandou hoje de manhã e nem se preocupou."
"Ele se mandou hoje de manhã?"
"Estava saindo de carro quando voltei de Norton's Woods. Por volta das dez e meia."
"Você falou com ele?"
"Não. Talvez ele não estivesse se sentindo bem. Não sei, mas não entendi por que não se certificou de que alguém se encarregasse da Glock. Usar ácido em um número
de série apagado? Quanto tempo leva para pelo menos tentar? Ele devia saber que era importante."
"Talvez não soubesse", retruco. "Se o detetive de Cambridge foi o único a falar com ele, por que ia achar que a Glock era importante? Na ocasião, ninguém fazia ideia
de que é um homicídio."
"Bom, acho que esse é um ponto relevante. Morrow provavelmente nem sabe que fomos te buscar, que você voltou de Dover. Fielding também desapareceu, quando sabia
muito bem que havia um problema grave que a maioria das pessoas com um cérebro na cabeça ia concluir que era culpa dele. Foi Fielding que recebeu a chamada sobre
o cara em Norton's Woods. Foi ele que deixou de ir até a cena do crime e não garantiu que alguém fosse. O motivo por que Janelle está toda vestida para sair, na
minha opinião? Ela não chegou aqui às quatro, na hora em que anotou no registro. Chegou a tempo de fazer os atendentes entrarem, registrar a entrada do corpo e depois
deu meia-volta e saiu. Posso descobrir. Existe um registro de quando ela desativou o alarme para entrar no prédio. Depende de você querer tornar isso um caso federal."
"Estou surpresa que Marino não tenha se certificado de que eu tomasse conhecimento da extensão dos problemas." É só no que consigo pensar para dizer. O interior
da minha cabeça está vazio.
"Na verdade é a história de Pedro e o lobo", diz Lucy e é verdade.
Marino reclama tanto de tantas pessoas que mal ouço. Agora de volta às minhas falhas. Não prestei atenção. Não escutei. Talvez não escutasse independentemente de
quem tivesse contado.
"Tenho que cuidar de algumas coisas. Você sabe como me encontrar", diz Lucy, abrindo a porta e a deixando aberta depois que saiu.
Pego o telefone e torno a ligar para Fielding. Não deixo mensagem nenhuma dessa vez e me passa pela cabeça que sua mulher também não atende o telefone de casa. Ela
veria o nome e o número de meu escritório no identificador de chamadas. Talvez seja por isso, por saber que sou eu. Ou talvez a família tenha ido a algum lugar,
saído da cidade. Em uma segunda-feira à noite, no meio de uma tempestade de neve, quando ele sabe muito bem que voltei de Dover às pressas para cuidar de um caso
de emergência?
Saio e digitalizo o polegar para destrancar a porta à direita da minha. Entro no escritório do meu sub e o examino devagar, como se fosse a cena de um crime.
11
Escolhi o escritório de Fielding, tendo insistido em um tão bom quanto o meu, bem grande, com chuveiro privativo. Ele tem vista do rio e da cidade, embora as venezianas
estejam baixadas, o que acho inquietante. Ele deve ter fechado quando ainda estava claro lá fora, e não sei por que faria isso. Não por um bom motivo, penso. É um
mau presságio, independentemente de qualquer coisa.
Circulo pelo aposento, abro todas as venezianas e, através das amplas vidraças refletivas em tons de cinza, distingo as luzes embaçadas do centro de Boston e ondas
crescentes de umidade congelada, uma neve frígida que clica e fere como dentes. O topo dos arranha-céus, as torres Prudential e Hancock estão encobertos e as rajadas
de vento gemem em tons baixos ao redor da cúpula sobre minha cabeça. Abaixo, a Memorial Drive está movimentada devido ao tráfego, mesmo a esta hora, e o Charles
parece amorfo e negro. Eu me pergunto quantos centímetros de neve temos até agora e quanto vamos ter antes que se desloque para o sul. Eu me pergunto se Fielding
nunca mais vai voltar à sala que projetei e mobiliei para ele, e por algum motivo sinto que não, mesmo que não existam provas de que ele se foi para sempre.
A maior diferença entre nossos espaços de trabalho é que o dele está repleto de lembretes do ocupante, seus vários diplomas, certificados e condecorações, suas peças
de coleção em prateleiras, bolas e bastões de beisebol autografados, troféus e placas de tae kwon do, maquetes de aviões de guerra e um pedaço de um de verdade que
caiu. Vou até sua mesa e examino relíquias da Guerra Civil: uma fivela de cinto, um balde de cacarecos, um polvorinho, algumas balas Minié que recordo que ele colecionava
em nosso início na Virginia. Mas não há fotografias e isso me deixa triste. Em alguns locais, vejo o que desapareceu nos espaços vazios na parede onde ele não se
deu o trabalho de preencher os orifícios diminutos deixados pelos ganchos que removeu.
Dói que ele não mais exponha as fotografias rotineiras, batidas quando ele era meu colega na patologia forense, fotos inocentes nossas no necrotério ou de nós dois
em cenas de morte com Marino, o principal detetive de homicídios da polícia de Richmond no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando tanto Fielding quanto
eu estávamos apenas começando, ainda que de maneiras completamente diferentes. Ele era o médico bem aparentado em início de carreira, ao passo que eu estava mudando
para o setor privado, em transição para a vida civil e o papel de chefe, fazendo o possível para não olhar para trás. Talvez Fielding não olhe para trás, embora
eu não saiba por quê. Seu passado foi bom comparado ao meu. Ele não ajudou a ocultar um crime. Nunca precisou se esconder de nada semelhante a isso. Não que eu saiba,
mas gostaria de saber. O que mais sei?
Não muito, exceto pela sensação de que ele se livrou de mim, talvez tenha se livrado de todos nós. Parece que se livrou de mais coisas do que realmente fez. Estou
convencida disso sem saber bem por quê. Seus objetos pessoais certamente continuam aqui, suas roupas de chuva Gore-Tex em um cabide, suas botas de neoprene, sua
bolsa com o equipamento de mergulho e o estojo com instrumentos de trabalho guardados em um armário, e sua coleção de emblemas da polícia e moedas de torneios policiais
e militares. Eu me lembro de tê-lo ajudado a se mudar para este escritório. Ajudei meu sub a arrumar até os móveis, nós dois nos queixando, rindo e então reclamando
mais um pouco enquanto deslocávamos a escrivaninha, depois a mesa de reuniões, e então trocávamos tudo de lugar novamente.
"O que é isso? O Gordo e o Magro?", perguntou ele. "A próxima coisa que você vai empurrar escada acima é uma mula?"
"Você não tem escada."
"Estou pensando em comprar um cavalo", disse ele enquanto deslocávamos cadeiras que antes havíamos transferido para outro local. "Tem um haras a um quilômetro e
meio de casa. Posso hospedar o cavalo lá e quem sabe vir trabalhar a cavalo ou cavalgar até as cenas dos crimes."
"Vou acrescentar isso ao manual do funcionário. Nada de cavalos."
Brincamos e provocamos um ao outro, e ele me pareceu bem naquele dia - animado e otimista, seus músculos deformando as mangas curtas do jaleco. Exibia uma boa forma
e uma aparência saudável inacreditáveis na ocasião, o rosto ainda infantilmente bonito, o cabelo louro-escuro despenteado, e fazia vários dias que não se barbeava.
Ele era atraente e divertido, e recordo os sussurros e risinhos de algumas das funcionárias quando passavam pela porta aberta de seu escritório, procurando desculpas
para olhar para ele. Fielding parecia muito feliz por estar aqui comigo e me lembro de nós dois arrumando fotografias e recordando nosso início juntos - fotos que
agora desapareceram.
Em seu lugar há outras das quais não me lembro. As fotos estão arrumadas nas prateleiras e paredes, em locais de destaque, poses formais com políticos e altas patentes
militares, uma com o general Briggs e até mesmo a capitã Avallone, talvez procedente da visita de que eu agora sabia. Ele parece rígido e entediado. Em uma foto
sua vestindo as roupas brancas do tae kwon do, a meio voo e chutando um inimigo imaginário, parece zangado, com o rosto vermelho e cheio de ódio. Enquanto examino
retratos recentes de família, concluo que tampouco ali ele parece satisfeito, nem mesmo quando está segurando suas duas filhinhas ou tem os braços ao redor da mulher,
Laura, uma loura delicada cuja beleza está se desgastando, como se a vida difícil estivesse mapeando seu curso, gravando linhas e rugas em uma topografia antes graciosa
e elegante.
Ela é a terceira mulher de Fielding, e rastreio o declínio dele ao examinar esses momentos captados em ordem cronológica. Quando se casou com ela, ele parecia bem-disposto,
sem sinais de erupções cutâneas e não apresentava os trechos inconvenientes de calva. Paro para admirar quão incrível ele estava, sem camisa e com o corpo rijo como
pedra nos shorts de corrida, lavando seu Mustang 67 vermelho-cereja com as listras de Le Mans no centro do capô. Então recentemente, no outono passado, o espessamento
na região da cintura; a pele coberta de manchas e avermelhada; os fios de cabelo penteados para trás e mantidos no lugar com gel para esconder a alopecia. Em uma
competição de artes marciais há menos de um mês, ele não parece em boas condições físicas nem espiritualmente equilibrado em seu uniforme de mestre faixa-preta.
Não parece encontrar alegria nem na boa forma nem na técnica. Não tem a aparência de quem reverencia as outras pessoas, possui autocontrole ou respeita qualquer
coisa. Parece desregrado. Meio perturbado. Completamente infeliz.
Por quê?, pergunto em um sussurro à foto inicial com seu adorado carro, quando ele estava deslumbrante de ver, com ar despreocupado e vigoroso, o tipo de homem por
quem seria fácil se apaixonar, colocar no comando ou confiar a própria vida. O que mudou? O que te deixou tão infeliz? O que foi desta vez? Ele detesta trabalhar
para mim. Detestou da última vez, em Watertown, onde não ficou muito tempo, e agora no CFC, que detesta ainda mais, isso é óbvio. Foi no final do verão passado,
quando ele começou a ficar tão mal que finalmente abrimos nossas portas à justiça penal, recebendo casos. Mas eu nem mesmo estava em Massachusetts na ocasião, passei
só o feriado do Dia do Trabalho. Não pode ser culpa minha. A culpa sempre foi minha. Sempre me culpei pelas quedas de Fielding, que foram em número maior do que
estou disposta a contar.
Faço com que se recupere e ele torna a cair, de forma cada vez mais séria. Cada vez mais feia. Cada vez mais sangrenta. Vezes sem conta. Como uma criança que não
consegue andar e não vou aceitar até que ela esteja ferida para além de qualquer conserto. O drama que vai sempre terminar de forma previsível, como Benton descreveu.
Fielding não deveria ser patologista forense e é por minha causa que exerce a profissão. Ele estaria melhor se não tivesse me conhecido na primavera de 1988, quando
não tinha certeza do que queria da vida e eu lhe disse que sabia o que deveria fazer. Eu mostro. Eu ensino. Se não tivesse ido a Richmond, ele não teria esbarrado
em mim e talvez tivesse escolhido uma maneira condizente de passar seus dias. Sua carreira e sua vida teriam a ver consigo mesmo, e não comigo.
Este é sem dúvida o ponto principal: Fielding faz o melhor possível em um ambiente totalmente destrutivo para ele e por fim não suporta mais, descompensa, se desintegra
e lembra por que ele é o que é e quem o formou; então assomo como um imenso outdoor em sua vida desprezível. Sua reação a essas crises é sempre a mesma. Desaparecer.
Um dia ele simplesmente some do radar e o que encontro em seu rastro é horrível. Casos com os quais lidou de forma inapropriada ou negligenciou. Memorandos que demonstravam
sua falta de controle e uma capacidade de julgamento perigosa. Mensagens de voz ofensivas que ele não se preocupou em apagar porque queria que eu ouvisse. E-mails
e outros comunicados prejudiciais que esperava que eu encontrasse. Sento na cadeira em sua mesa e começo a abrir as gavetas. Não preciso vistoriar por muito tempo.
A pasta de arquivo não está etiquetada e contém quatro folhas impressas às oito e três de ontem, 8 de fevereiro, com um discurso que, com base em outras informações
no cabeçalho e na seção de notícias, procede do site do Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança. Um instituto de pesquisas inglês centenário
com filiais em locais estratégicos em todo o mundo, o RUSI dedica-se a inovações avançadas em segurança nacional e internacional, e não consigo imaginar o interesse
de Fielding. Não compreendo sua preocupação com um discurso programático proferido por Russell Brown, o secretário de Estado de Defesa, com suas opiniões a respeito
do "debate de defesa". Passo os olhos pelos comentários não tão surpreendentes do membro conservador do Parlamento de que a constante participação do Reino Unido
em uma aliança não é um axioma e que o impacto econômico da guerra é catastrófico. Brown faz repetidas alusões à desinformação metodicamente propagada, que é o mais
próximo que o respeitável membro do Parlamento vai chegar de acusar francamente os Estados Unidos de orquestrar a invasão do Iraque e arrastar o Reino Unido nessa
jornada.
Como seria de esperar, o discurso é político, como quase tudo agora na Inglaterra, que organiza eleições gerais para daqui a três meses. Seiscentos e cinquenta cadeiras
estão em disputa e uma questão importante de campanha são as mais de dez mil tropas britânicas que estão combatendo o Talibã no Afeganistão. Fielding não é militar,
nunca prestou muita atenção a questões ou eleições estrangeiras, e não sei por que motivo teria o menor interesse no que está ocorrendo no Reino Unido. Sequer me
lembro de ele já ter ido ao Reino Unido. Ele não é do tipo que se interesse por eleições gerais nesse país, nem pelo RUSI, nem por grupos de pesquisa, e conhecendo-o
bem como conheço, desconfio que pretendia que eu encontrasse essa pasta. Queria que eu a visse depois que realizou outro de seus truques de desaparecimento. O que
ele quer que eu saiba?
Por que está interessado no RUSI? E ele mesmo encontrou o discurso na internet ou alguém o enviou? Se o material foi enviado, por quem? Penso na possibilidade de
pedir a Lucy que entre no e-mail de Fielding, mas não estou preparada para pegar tão pesado e não quero ser pega. Posso trancar a porta, mas ainda assim meu sub
poderia entrar, pois não confio que Ron ou qualquer outra pessoa vá mantê-lo na área de segurança se ele aparecer. Não levo a menor fé que Ron, que sempre foi hostil
e parece ter pouca consideração por mim, vá deter Fielding ou tentar me contatar para pedir sua liberação. Não acredito que minha equipe seja leal a mim, nem que
se sinta segura comigo ou siga minhas ordens, e Fielding pode reaparecer a qualquer momento.
Isso tem tudo a ver com ele. Desaparecer sem aviso, então aparecer da mesma forma inesperada e me pegar em flagrante, sentada em sua mesa, vasculhando seus arquivos
eletrônicos. É só mais uma coisa que ele vai usar contra mim, e já usou muitas assim ao longo dos anos. O que Fielding andou aprontando pelas minhas costas? Vejamos
o que mais descubro, e então vou saber o que fazer. Presto atenção mais uma vez à hora impressa no documento e o imagino sentado nesta mesma cadeira às oito e três,
imprimindo o discurso enquanto todos - Lucy, Marino, Anne e Ollie - estavam alvoroçados devido ao conteúdo da geladeira no térreo.
Estranho Fielding permanecer aqui no escritório enquanto isso estava acontecendo, e me pergunto se chegou a se importar com a possibilidade de um homem ter sido
trancado em nossa geladeira ainda vivo. É claro que Fielding teria que se importar. Como não se importaria? Se o pior se revelasse verdadeiro, ele seria responsabilizado.
No fim das contas, seria eu a aparecer em todos os noticiários e provavelmente perder o emprego, mas ele afundaria comigo. Ainda assim, estava aqui, no sétimo andar,
em seu escritório e longe da confusão, como se já tivesse tomado uma decisão, e me ocorre que seu desaparecimento pode estar relacionado a outra coisa. Reclino-me
na cadeira, olho em volta e minha atenção pousa em um bloco e uma caneta esferográfica perto do telefone. Reparo nas marcas leves na folha de papel no topo.
Acendendo uma luminária, pego o bloco e o seguro em vários ângulos, tentando decifrar as marcas de escrita deixadas como pegadas quando alguém faz uma anotação na
primeira folha, que foi arrancada. Uma das características de Fielding é não ter o toque leve, não quando empunha um bisturi, digita em um teclado ou escreve alguma
coisa. Para um devoto das artes marciais, ele é surpreendentemente bruto, fica facilmente frustrado e se inflama rápido. Tem um jeito infantil de segurar o lápis
ou a caneta, com dois dedos em cima em vez de um, como se estivesse usando pauzinhos orientais. Costuma quebrar grafite e ponta de lápis e é um inferno com marcadores
de texto.
Não preciso de um detector eletrostático, de um Docustat, de uma caixa de vácuo nem de uma unidade de recuperação de escrita para detectar o que consigo enxergar
à moda antiga com luz indireta e meus próprios olhos. Os garranchos quase ilegíveis de Fielding. O que parecem duas anotações separadas. Uma delas é um número de
telefone com código de área quinhentos e oito e MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8. Então a segunda: U DE SHEFFIELD HOJE WHITEHALL. CÂMBIO E DESLIGO. Torno a olhar
para me certificar de ter lido as últimas palavras de forma correta. Câmbio e desligo. O fim de uma transmissão de rádio, como em Roger Wilco câmbio e desligo, mas
também a canção interpretada por uma banda heavy metal que Fielding costumava colocar para tocar o tempo todo no carro quando chegou a Richmond. "Câmbio e desligo.
Todo cão tem seu dia." O que ele cantava para mim quando ameaçava sair, quando estava farto ou me provocando, flertando, fingindo estar de saco cheio. Ele escreveu
câmbio e desligo no bloco de notas pensando em mim ou por alguma outra razão?
Encontro um bloco tamanho ofício em uma gaveta, escrevo o que descobri por intermédio das marcas no bloco de notas e começo a fazer o melhor que posso para entender
o que Fielding estava fazendo e pensando a respeito do que deseja que eu saiba. Se entrasse aqui para bisbilhotar, eu encontraria o material impresso e as marcas
das anotações. Ele me conhece. Pensaria dessa forma porque sabe muito bem como funciona minha mente. A Universidade de Sheffield é uma das principais instituições
de pesquisa do mundo, e Whitehall é onde está sediado o RUSI, literalmente no antigo palácio de Whitehall, a localização original da Scotland Yard.
Entro no Intelliquest, o programa de busca que Lucy criou para o CFC, e digito RUSI, a data de 8 de fevereiro e Whitehall. O que surge é o título de um discurso,
"Colaboração entre civis e militares", a palestra que Fielding deve ter consultado e que foi proferida no RUSI às dez da manhã pelo horário do Reino Unido, o que
para mim agora é a manhã de ontem. O orador foi o dr. Liam Saltz, o controverso ganhador do Nobel cujas opiniões apocalípticas a respeito da tecnologia militar o
tornaram um inimigo natural da DARPA. Eu não sabia que ele pertencia ao corpo docente da Universidade de Sheffield. Pensei que estivesse em Berkeley. Ele passou
por Berkeley e agora está na Sheffield, leio na internet enquanto penso, um tanto impressionada, na exposição da Courtauld no verão anterior ao Onze de Setembro,
onde Lucy e eu assistimos à palestra do dr. Saltz. Pouco depois disso, assim como eu, o dr. Saltz foi um eloquente crítico do MORT.
Reflito sobre o título da palestra que proferiu nem vinte e quatro horas atrás. "Colaboração entre civis e militares". Parece muito brando para o incitador dr. Saltz,
que é chocante como uma sirene de ataque aéreo em suas advertências de que a destinação de mais de duzentos bilhões de dólares por parte dos Estados Unidos para
futuros sistemas de combate - especificamente veículos não tripulados - nos colocaram na estrada da aniquilação total. Os robôs talvez pareçam fazer sentido quando
se cogita enviá-los ao campo de batalha, censura ele, mas o que acontece quando voltam para casa como jipes e outros acessórios militares usados? Com o tempo, abrem
caminho rumo ao mundo civil, e o que vamos ter é mais policiamento e vigilância, mais máquinas insensatas realizando o trabalho de seres humanos, só que essas máquinas
vão estar armadas e equipadas com câmeras e dispositivos de gravação.
Ouvi o dr. Saltz nos noticiários, pintando cenários aterrorizantes de "policiais-robôs" respondendo por cenas de crime e "carros-robôs" não tripulados perseguindo
veículos a fim de multar os ocupantes por infrações de trânsito, parando gente com mandatos de prisão ou, Deus nos livre, recebendo mensagens de seus sensores para
usar a força. Robôs dando choques. Robôs atirando para matar. Robôs que parecem insetos enormes arrastando mortos e feridos para fora do campo de batalha. O dr.
Saltz testemunhou perante o mesmo subcomitê do Senado diante do qual testemunhei, mas não ao mesmo tempo. Ambos causamos estragos a uma empresa de tecnologia chamada
Otwahl, da qual havia me esquecido por completo até poucas horas atrás.
Encontrei-o apenas uma vez quando, por coincidência, estávamos os dois na CNN, e ele apontou para mim e brincou: "Robotópsias".
"Como?", retruquei, desprendendo meu microfone enquanto ele se encaminhava ao set.
"Autópsias robóticas. Um dia eles vão tomar o seu lugar, minha boa doutora, talvez mais cedo do que pensa. Devíamos sair para beber alguma coisa depois do programa."
Ele era um homem de olhos brilhantes, que parecia um hippie perdido, com seu longo rabo de cavalo grisalho e rosto desgastado e a eletricidade de um condutor carregado.
Isso ocorreu há dois anos e eu deveria ter esperado perto da CNN e aceitado o convite. Deveria ter tomado uma bebida com ele. Deveria ter me informado melhor sobre
aquilo em que ele acredita porque nem tudo é loucura. Não o vi mais desde então, embora não possa escapar de sua presença na imprensa e tento lembrar se por algum
motivo já fiz alguma referência a ele junto a Fielding. Acho que não. Não consigo imaginar por que faria isso. Conexões. Onde estão elas? Pesquiso um pouco mais.
A Universidade de Sheffield, em South Yorkshire, possui uma excelente faculdade de medicina, isso eu já sei. Rerum Cognoscere Causas, seu lema, descobrir as causas
das coisas, é muito apropriado, muito irônico. Preciso de causas. Clico em PESQUISAR. Aquecimento global, degradação global do solo, repensando a engenharia com
softwares pioneiros, novas descobertas nas alterações de DNA de células-tronco embrionárias humanas. Volto às marcas das anotações na folha de bloco.
MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8.
MAV é nossa abreviatura para morte por acidente com veículo motorizado e dou outra busca, dessa vez explorando o banco de dados do CFC. Insiro MAV, a data, 18 de
agosto do verão passado, e um arquivo retorna, o caso de um inglês de vinte anos chamado Damien Patten, morto em um acidente com táxi em Boston. Fielding não realizou
a autópsia, que foi feita por um de meus outros legistas, e na narrativa reparo que Damien Patten era um anspeçada do 14o Regimento Signal, estava de férias e tinha
ido a Boston para se casar quando morreu no acidente. Tenho uma sensação estranha. Alguma coisa se encaixa.
Realizo outra busca usando as palavras-chaves 8 de fevereiro e Diário do Ministério da Defesa RU. Acabo no blog oficial da instituição e uma entrada lista os soldados
britânicos mortos ontem no Afeganistão. Percorro a lista de baixas, procurando qualquer coisa que tenha algum significado para mim. Um anspeçada do 1o Batalhão dos
Guardas de Coldstream. Um sargento temporário do 1o Batalhão dos Guardas de Grenadier. Um soldado do 2o Batalhão do Regimento do Duque de Lancaster. Depois há um
sapador, ou engenheiro militar, com a Força-Tarefa de Dispositivos Explosivos Anti-improvisados, que foi morto em terreno montanhoso no noroeste do Afeganistão.
Na província de Badghis. Onde meu paciente, o soldado de primeira classe Gabriel, foi morto no domingo, 7 de fevereiro.
Faço outra busca, apesar de saber sem ter que procurar quantos soldados da Otan morreram no Afeganistão em 7 de fevereiro. Em Dover, sempre sabemos. É tão rotineiro
quanto se preparar para as tempestades, um informe mórbido e depressivo que controla nossa vida. Nove baixas, e quatro delas foram americanos mortos pelo mesmo dispositivo
explosivo improvisado na beira da estrada que transformou o Humvee do soldado de primeira classe Gabriel em um alto-forno. Mas, novamente, isso aconteceu no dia
7, não no dia 8. Ocorre-me que o soldado britânico que morreu no dia 8 talvez tenha se ferido no dia anterior.
Verifico e estou certa. O sapador Geoffrey Miller tinha vinte e três anos, era recém-casado e foi ferido em um atentado a bomba na província de Badghis domingo cedo,
mas morreu no dia seguinte em um centro médico militar na Alemanha. Possivelmente o mesmo atentado à beira da estrada que matou os americanos de quem cuidamos em
Dover ontem pela manhã - na realidade, provavelmente. Pergunto-me se o sapador Miller e o soldado de primeira classe Gabriel se conheciam e, como o inglês morto
no táxi, Damien Patten, pode estar relacionado a eles. Patten foi apresentado a Miller e Gabriel no Afeganistão, mas o que Fielding tem a ver com tudo isso? Como
o dr. Saltz, o MORT ou o rapaz de Norton's Woods estão relacionados, ou não estão?
O corpo de Miller vai ser repatriado nesta quinta-feira, porque sua família vive em Oxford, na Inglaterra, continuo a ler, mas não descubro mais nada a seu respeito,
embora certamente consiga obter mais informações sobre um soldado inglês morto se necessário. Posso ligar para Rockman, o assessor de imprensa. Posso ligar para
Briggs, e de qualquer forma preciso fazer isso, recordo. Briggs me pediu - na realidade, ordenou - que eu o mantivesse informado a respeito do caso de Norton's Woods,
acordando-o se necessário no instante em que tiver informações. Mas não vou fazer isso. De jeito nenhum. Não agora. Não sei ao certo em quem posso confiar e, enquanto
esse pensamento persiste, dou-me conta da encrenca em que estou metida.
O que diz o fato de não poder pedir ajuda às pessoas com quem trabalha? Tudo, e é como se o chão estivesse se abrindo sob meus pés e eu estivesse resvalando para
o desconhecido, um espaço frio, escuro, vazio, onde já estive. Briggs quis passar por cima de mim, usurpar minha autoridade e transferir o caso de Norton's Woods
para Dover. Fielding andou se esgueirando por aí na minha ausência, metendo-se em assuntos que não são da conta dele, até mesmo usando meu escritório, e agora está
fugindo de mim, ou pelo menos espero que seja só isso. Minha equipe está se amotinando e algumas pessoas, que me são estranhas, parecem conhecer os detalhes de meu
regresso para casa.
São quase duas da manhã e me sinto tentada a discar o número de telefone que Fielding rabiscou na folha de bloco, surpreender quem quer que atenda, acordar a pessoa
e, quem sabe, conseguir uma pista do que está acontecendo. Em vez disso, faço uma pesquisa no computador da polícia para ver a quem ou a que o número com o código
de área quinhentos e oito pertenceria. A informação sumária me choca e por um instante fico completamente imóvel e tento me acalmar. Tento afastar as muralhas do
horror e da confusão que abrem caminho e me oprimem.
Julia Gabriel, mãe do soldado de primeira classe Gabriel.
Na tela à minha frente estão os endereços de casa e do trabalho, seu estado civil, o salário que recebe como farmacêutica em Worcester, Massachusetts, e nome e idade
de seu único filho, que morreu no Afeganistão no domingo, aos dezenove anos. Permaneci ao telefone com a sra. Gabriel durante quase uma hora antes de fazer a autópsia,
tentando explicar, da forma mais delicada possível, a impossibilidade de coletar o esperma dele enquanto ela levantava a voz, gritava e me acusava de fazer escolhas
pessoais que não deveria fazer, não fiz e nunca faria.
Recolher esperma de mortos e usá-lo para engravidar vivos envolve um dilema moral. Não tenho opiniões pessoais acerca do que é, na realidade, uma questão médica
e legal, não religiosa ou ética, e certamente os envolvidos deveriam optar, não o médico. O que me interessa é que o procedimento, que se tornou cada vez mais popular
por causa da guerra, seja realizado de forma correta e legítima e, de qualquer forma, minhas supostas opiniões sobre os direitos póstumos de reprodução eram controversas
no caso do soldado de primeira classe Gabriel. Seu corpo estava queimado e se decompondo, sua pélvis, tão carbonizada que os testículos haviam desaparecido e o canal
deferente contendo o sêmen, sumido junto com eles, e eu não ia dizer isso à sra. Gabriel. Fui o mais compassiva e delicada possível e não levei para o lado pessoal
o fato de ela descarregar sua dor e sua raiva no último médico que seu filho veria nesta terra.
Peter tinha uma namorada que estava disposta a ter os filhos dele, assim como seu amigo, era um pacto, continuou a sra. Gabriel, e eu não fazia ideia de a que amigo
e a que exatamente ela estava se referindo. O amigo de Peter havia mencionado outro amigo que tinha morrido no dia do casamento no verão anterior, só que a sra.
Gabriel não se referiu a Damien Patten pelo nome, o inglês morto no táxi em 18 de agosto passado. "Agora os três estão mortos, três rapazes bonitos mortos", disse
a sra. Gabriel ao telefone, e eu não fazia ideia do que ela estava falando. Agora acho que sei. Ela com certeza estava se referindo a Patten, o amigo do amigo com
quem o soldado de primeira classe Gabriel tinha uma espécie de pacto. Eu me pergunto se o amigo de Patten é a outra vítima a quem Fielding parece ter me conduzido,
Geoffrey Miller, o sapador.
Agora os três estão mortos.
x
x
x
CONTINUA
x
x
x
Teria Fielding discutido o caso de Patten com a sra. Gabriel, e com quem ela falou primeiro, com Fielding ou comigo? Ela telefonou para Dover por volta de sete e quarenta e cinco. Sempre preencho um registro de chamadas e me lembro de ter anotado a hora quando me sentei em meu pequeno escritório no necrotério de Dover, examinando as tomografias e suas coordenadas, que me ajudariam a localizar, com a precisão de um GPS, o fragmento e outros objetos que haviam penetrado o corpo muito queimado de seu filho. Com base no que me contou, enquanto tento agora reconstruir a conversa, ela provavelmente falou primeiro com Fielding. Isso talvez explique suas repetidas referências a "outros casos".
x
x
x
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/NECROTERIO_2.jpg
x
x
x
Alguém havia colocado em sua cabeça uma ideia do que fazemos em outros casos. Ela estava com a clara impressão de que extraíamos sêmen das vítimas de forma rotineira e que, na realidade, encorajávamos isso, e lembro-me de ter ficado surpresa, pois o procedimento precisa ser aprovado e está repleto de complicações legais. Eu não imaginava o que lhe havia dado essa ideia e poderia ter feito perguntas se ela não estivesse tão ocupada em me criticar e xingar. Que espécie de monstro impediria uma mulher de ter os filhos do namorado morto ou proibiria que a mãe de um filho morto se tornasse avó? Nós fazemos isso em outros casos, por que não no do filho dela? "Não tenho mais ninguém", gritou. "Isso é burocracia sem sentido, admita", vociferou ela. "Burocracia sem sentido para encobrir mais um crime motivado por preconceito."
"Tem alguém em casa?" É Benton no vão da porta.
A sra. Gabriel me chamou de militar preconceituosa. "Você faz para os outros, contanto que sejam brancos", disse ela. "Você cuidou daquele outro rapaz que morreu em Boston e ele nem era um soldado americano, mas não do meu filho, que morreu por seu país. Imagino que tenha a cor errada", continuou ela e eu não fazia ideia do que estava querendo dizer ou no que estava baseando tal acusação. Não tentei descobrir porque me pareceu histeria, nada mais, e a perdoei no mesmo instante. Ainda que aquilo obviamente tenha me magoado muito e eu não tenha conseguido...Embora esta seja uma obra de ficção, não se trata de ficção científica. Os procedimentos médicos e forenses e as tecnologias e armas que vocês verão aqui são os utilizados hoje. Parte do que estão prestes a encontrar é extremamente perturbador. Mas tudo isso é possível.
Várias entidades citadas no livro também são reais e estão em plena operação, incluindo as seguintes:
Necrotério Militar da Base Aérea de Dover
Sistema de médicos-legistas das Forças Armadas (AFMES)
Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas (AFDIL)
Instituto de Patologia das Forças Armadas (AFIP)
Departamento de Defesa
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA)
Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança (RUSI)
Sistema de Armamento Especial, Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta (SWORDS)
Já o Centro Forense de Cambridge (CFC), o Instituto Correcional de Chatham, a Otwahl Technologies e o Transporte de Remoção Operacional Funerária (MORT) são minhas  criações, assim como todos os personagens da narrativa e o enredo em si.
Dito isso, agradeço a todos os homens e mulheres admiráveis do Sistema de Medicina Legal das Forças Armadas e do Instituto de Patologia das Forças Armadas, que, ao longo de minha carreira, foram generosos o suficiente para compartilhar suas ideias e seu conhecimento altamente avançado e me impressionar com sua disciplina, integridade e amizade.
Como sempre, sou profundamente grata à dra. Staci Gruber, diretora do Núcleo de Neuroimagem Clínica e Cognitiva do Hospital McLean e professora assistente do departamento de psiquiatria da escola de medicina de Harvard.
E, claro, agradeço à dra. Marcella Fierro, ex-legista-chefe da Virginia, e ao dr. Jamie Downs, médico-legista em Savannah, Georgia, por sua competência em todas as questões patológicas.
X
X
X
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/NECROTERIO.jpg
X
X
X
No vestiário feminino, atiro a roupa suja do hospital em um coletor de risco biológico e tiro o restante das roupas e o calçado. Pergunto-me se CEL. SCARPETTA, gravado
em letras pretas em meu armário, será removido no minuto em que eu retornar a New England pela manhã. Esse pensamento não havia me passado pela cabeça até agora
e me incomoda. Uma parte minha não quer deixar este lugar.
A vida na Base Aérea de Dover tem seus confortos, apesar dos seis meses de treinamento árduo e da desolação de lidar diariamente com a morte em nome do governo dos
Estados Unidos. Minha estada aqui foi surpreendentemente simples. Posso dizer que foi até mesmo agradável. Vou sentir saudades de me levantar antes do amanhecer
em meu modesto quarto, vestir uma calça, uma polo, botas e cruzar a pé o estacionamento, na escuridão gelada, até o campo de golfe para tomar café e comer alguma
coisa antes de seguir de carro até o necrotério, onde não estou no comando. Quando estou de serviço como médica-legista das Forças Armadas, não sou chefe. Na realidade,
um grande número de pessoas tem patente superior à minha e não sou eu que tomo as decisões críticas. Quando muito, sou consultada. Não é assim quando retorno a Massachusetts,
onde todos dependem de mim.
É segunda-feira, 8 de fevereiro. Iluminado em vermelho, como um aviso, o relógio acima das pias brancas reluzentes marca 16h33. Em menos de noventa minutos, vou
aparecer na CNN para explicar o que é um patologista radiológico forense e por que me tornei uma, e o que Dover, o Departamento de Defesa e a Casa Branca têm a ver
com isso. Em outras palavras, já não sou mais apenas médica-legista, tampouco apenas reservista do AFMES. Desde o Onze de Setembro, desde a invasão ao Iraque, e
agora com o aumento das tropas no Afeganistão - ensaio os pontos que devo abordar -, a fronteira entre as esferas militar e civil desapareceu para sempre. Um exemplo
que eu poderia dar: em novembro, por um período de quarenta e oito horas, treze soldados mortos foram trazidos para cá do Oriente Médio de avião, e exatamente o
mesmo número de corpos chegou de Fort Hood, no Texas. Grandes contingentes de vítimas não se restringem ao campo de batalha, embora eu já não saiba ao certo o que
constitui um campo de batalha. Talvez todos os lugares sejam campos de batalha, vou dizer na TV. Casas, escolas, igrejas, aviões comerciais e os locais onde trabalhamos,
fazemos compras e passamos férias.
Seleciono artigos de higiene pessoal como seleciono os comentários que vou precisar fazer sobre radiologia 3-D, TC, a tomografia computadorizada e os exames no necrotério
e lembro-me de enfatizar que meu novo centro de operações em Cambridge, Massachusetts, é a primeira instituição civil nos Estados Unidos a realizar autópsias virtuais,
Baltimore será a próxima e, por fim, a tendência vai se difundir. A tradicional investigação post mortem de dissecção, em que você comparece, bate fotografias após
a ocorrência e espera não deixar passar nada nem modificar a cena do crime pode, e deve, ser dramaticamente aprimorada e tornada mais precisa pela tecnologia.
É uma pena não participar do World News esta noite, porque, agora que estou pensando nisso, percebo que preferia ter esse diálogo com Diane Sawyer. O problema da
minha presença constante na CNN é que a familiaridade muitas vezes leva a uma diminuição do respeito. Eu deveria ter pensado nisso antes. A entrevista pode se tornar
pessoal, e eu devia ter mencionado essa possibilidade ao general Briggs antes. Devia ter contado o que aconteceu hoje pela manhã quando a mãe enraivecida de um soldado
morto gritou comigo ao telefone, acusando-me de preconceituosa e ameaçando levar a queixa à imprensa.
A porta de metal do meu armário soa como um tiro ao ser fechada. Caminho sobre o ladrilho canela, sempre frio e liso sob meus pés descalços, carregando minha cesta
plástica com xampu e condicionador à base de oliva, um creme esfoliante feito de algas marinhas fossilizadas, uma gilete, espuma para pele sensível, detergente líquido,
uma toalha, enxaguante bucal, escova de dente, uma escovinha para as unhas e óleo Neutrogena perfumado para quando terminar tudo. No interior de um boxe aberto,
arrumo primorosamente meus objetos pessoais na prateleira e abro a água no mais quente que consigo suportar, o jato forte explodindo à medida que me desloco para
me molhar inteira, depois ergo o rosto, então olho para o chão, para meus próprios pés brancos. Deixo a água bater na nuca e na cabeça na esperança de que os músculos
tensos relaxem um pouco enquanto entro mentalmente no closet do meu alojamento na base e procuro o que vestir.
O general Briggs - John, como o chamo quando estamos sozinhos - quer que eu use um uniforme de aviador ou, melhor ainda, o uniforme azul da Força Aérea, mas discordo.
Eu deveria usar roupas civis, que é o que as pessoas me veem usar quando dou entrevistas na televisão, algo como um terninho escuro simples, blusa marfim de gola
alta e o sóbrio relógio Breguet com pulseira de couro que minha sobrinha Lucy me deu. Não o Blancpain com o mostrador preto grande demais e engaste de cerâmica,
também presente dela, que é obcecada por relógios e qualquer coisa tecnicamente complicada e cara. Nunca calça comprida, e, sim, saia e salto alto, assim pareço
menos intimidadora e mais acessível, truque que aprendi há tempos no tribunal. Por alguma razão, os jurados gostam de ver minhas pernas enquanto descrevo ferimentos
fatais em detalhes anatômicos vívidos e os últimos momentos de vida da vítima agonizante. Briggs vai ficar irritado com minha escolha de roupa, mas lembrei, enquanto
bebíamos durante o Super Bowl na noite passada, que um homem não deve dizer a uma mulher o que vestir, a menos que ele seja Ralph Lauren.
O vapor em meu chuveiro desloca-se, perturbado por uma corrente de ar, e penso ouvir alguém. Fico instantaneamente irritada. Pode ser qualquer um, qualquer funcionária
militar, médica ou não, que esteja autorizada a permanecer nestas instalações altamente restritas e necessite de um banheiro, de desinfecção ou de uma troca de roupa.
Penso nas colegas com quem estava na sala de autópsia principal e tenho o pressentimento de que se trata, mais uma vez, da capitã Avallone. Ela foi presença inevitável
na maior parte da manhã durante o exame de TC, como se eu não soubesse realizá-lo a esta altura, e ficou perambulando como uma névoa baixa em torno de minha estação
de trabalho o restante do dia. Provavelmente, foi ela que acabou de entrar. Tenho certeza disso, na verdade, pois é sempre ela, e sinto um ressentimento. Vá embora.
"Dra. Scarpetta?", grita a voz familiar, insossa e desprovida de emoção, que parece me seguir por toda parte. "Telefone para a senhora."
"Acabei de entrar", grito por sobre o jato forte de água.
É meu jeito de lhe pedir que me deixe em paz. Um pouco de privacidade, por favor. Não quero ver a capitã Avallone nem ninguém neste momento, o que nada tem a ver
com o fato de estar nua.
"Desculpe. Mas Pete Marino precisa conversar com a senhora." A voz inexpressiva aproxima-se.
"Vai ter que esperar", berro.
"Ele disse que é importante."
"Você pode perguntar o que ele quer?"
"Ele só disse que é importante, senhora."
Prometo telefonar mais tarde e provavelmente pareço grosseira, mas, apesar de bem-intencionada, nem sempre consigo ser agradável. Pete Marino é um investigador com
quem trabalhei durante metade da minha vida. Espero que nada terrível tenha acontecido em casa. Não, ele se certificaria de me informar se houvesse uma emergência
real, como alguma coisa errada com meu marido, Lucy, ou se houvesse um problema grave no Centro Forense de Cambridge, que eu chefiava. Marino faria mais que apenas
pedir a alguém que me informasse que está ao telefone e que é importante. Isso nada mais é que seu escasso controle dos próprios impulsos, concluo. Quando tem uma
ideia, Marino acha que deve compartilhá-la comigo no mesmo instante.
Abro bem a boca, enxaguando o gosto de carne humana crestada e decomposta preso no fundo da garganta. O fedor do trabalho de hoje sobe em ondas de vapor e penetra
fundo em meus seios paranasais, as moléculas de biologia pútrida me fazendo companhia no chuveiro. Esfrego por baixo das unhas com sabonete antibacteriano que esguicho
de um frasco, o mesmo que uso nos pratos e para descontaminar minhas botas quando saio da cena do crime, e escovo os dentes, as gengivas e a língua. Lavo o interior
das narinas tão longe quanto consigo alcançar, esfregando cada centímetro do corpo, em seguida lavo o cabelo, não uma, mas duas vezes, e o fedor persiste. Tenho
a sensação de não conseguir ficar limpa.
O nome do soldado morto de quem acabo de me ocupar é Peter Gabriel, como o astro do rock, só que esse Peter Gabriel era um soldado de primeira classe do Exército
e não estava há nem um mês na província de Badghis, no Afeganistão, quando uma bomba à beira improvisada com um tubo plástico de esgoto lotado de PE-4, tampado com
uma folha de cobre, perfurou a blindagem de seu Humvee, provocando uma explosão de metal derretido em seu interior. O soldado de primeira classe Gabriel consumiu
a maior parte de meu último dia aqui neste imenso espaço high-tech, onde patologistas e cientistas das Forças Armadas envolvem-se rotineiramente em casos que a maioria
do público não associa conosco: o assassinato de JFK; as identificações de DNA recentes da família Romanov e dos tripulantes do submarino H.L. Hunley, que afundou
durante a Guerra Civil. Somos uma organização importante, mas pouco conhecida, com raízes que remontam a 1862 e ao Museu Médico do Exército, cujos cirurgiões cuidaram
de Abraham Lincoln após o tiro e realizaram sua autópsia, coisas que eu deveria mencionar na CNN. Focar no positivo. Esquecer o que disse a sra. Gabriel. Não sou
um monstro nem preconceituosa. Você não pode culpar a pobre mulher por estar descontrolada, digo a mim mesma. Ela acaba de perder o único filho. Os Gabriel são negros.
Como você se sentiria, pelo amor de Deus? É claro que você não é racista.
Percebo novamente uma presença. Alguém entrou no vestiário, que consegui enevoar como um grande chuveiro a vapor. Meu coração bate forte devido ao calor.
"Dra. Scarpetta?" A capitã Avallone parece menos hesitante, como se tivesse novidades.
Fecho a água e saio do boxe, agarrando uma toalha para me enrolar. A capitã Avallone é uma presença indistinta pairando na névoa perto das pias e dos secadores de
mão sensíveis ao movimento. Tudo o que consigo distinguir é o cabelo escuro, a calça cáqui e a polo preta com o emblema do AFMES bordado em dourado e azul.
"Pete Marino...", ela começa a dizer.
"Vou ligar para ele em um minuto." Apanho outra toalha em uma prateleira.
"Ele está aqui, senhora."
"O que você está querendo dizer com aqui?" Quase espero que Marino se materialize no vestiário como uma criatura pré-histórica emergindo da névoa.
"Está esperando lá atrás, perto das baias", informa ela. "Vai levar a senhora até o Eagle's Rest para pegar suas coisas." A capitã Avallone diz isso como se o FBI
tivesse vindo me buscar, como se eu tivesse sido presa ou despedida. "Minhas instruções são para conduzir a senhora até ele e ajudar no que for necessário."
O primeiro nome da capitã Avallone é Sophia. Ela é do Exército, acabou de sair da residência de radiologia e é sempre militarmente correta e servilmente educada
enquanto perambula e perde tempo. Agora não é hora. Carrego minha cestinha, pisando no ladrilho, e ela segue logo atrás de mim.
"Só vou embora amanhã, e sair com Marino não faz parte dos meus planos de viagem", digo.
"Posso cuidar do seu carro. Pelo que entendi, a senhora não vai dirigir..."
"Você perguntou a ele do que se trata?" Retiro do armário minha escova de cabelo e meu desodorante.
"Eu tentei, senhora", responde a capitã. "Mas ele não colaborou."
Um C-5 Galaxy ruge no alto, rumo a um dezenove. Como sempre, o vento está vindo do sul.
Um dos muitos princípios aeronáuticos que aprendi com Lucy, que, entre outras coisas, é piloto de helicóptero, é que os números da pista de pouso e decolagem correspondem
à bússola. Dezenove, por exemplo, quer dizer cento e noventa graus, o que significa que a ponta oposta vai ser um, assim orientada devido ao efeito Bernoulli e às
leis de movimento de Newton. Tem tudo a ver com a velocidade com que o ar precisa fluir sobre a asa, com decolar e aterrissar na direção do vento, que nesta parte
de Delaware sopra a partir do mar, da alta para a baixa pressão, do sul para o norte. Entra dia sai dia, os aviões de transporte trazem e levam os mortos ao longo
de uma pista de asfalto que corre como o rio Estige por trás do necrotério.
O Galaxy cinza tem o comprimento de um campo de futebol americano, tão imenso e pesado que mal parece se mover no céu claro com nuvens leves, que os pilotos chamam
de rabo de égua. Sei de que tipo de transporte aéreo se trata sem olhar, reconheço os guinchos e silvos agudos. A esta altura, conheço o som das turbinas produzindo
cento e sessenta mil libras de propulsão, consigo identificar um C-5 ou um C-17 a quilômetros de distância e também conheço helicópteros e aeronaves com rotor, diferencio
um Chinook de um Black Hawk ou de um Osprey. Com tempo bom, quando tenho alguns momentos para espairecer, sento no banco diante de meu alojamento e observo as aeronaves
de Dover como se fossem criaturas exóticas, como peixes-bois, elefantes ou aves pré-históricas. Nunca me canso de seu corpo pesado, seu ruído atroador e das sombras
que projetam quando passam no alto.
As rodas aterrissam tão perto, com baforadas de fumaça, que sinto o estrépito em meus órgãos ocos à medida que atravesso a recepção com suas quatro imensas baias,
seu paredão de alta privacidade e geradores de reserva. Aproximo-me de uma van azul que nunca vi, e Pete Marino não faz nenhum movimento para me cumprimentar ou
abrir a porta, o que não quer dizer nada. Ele não gasta energia com boas maneiras, e ser cortês ou agradável nunca foi sua prioridade, pelo que sei. Faz mais de
vinte anos que nos conhecemos no necrotério de Richmond, Virginia. Ou talvez tenhamos nos encontrado pela primeira vez em alguma cena de homicídio. Realmente não
lembro.
Entro e fecho a porta, enfiando a mochila entre as botas, o cabelo ainda úmido do banho. Ele me avalia em silêncio e acha que estou péssima. Sempre percebo por seus
olhares de esguelha que me inspecionam da cabeça aos pés, demorando-se em certas partes que não lhe dizem respeito. Marino não gosta que eu use o uniforme do AFMES,
a calça cáqui, a polo preta e a jaqueta tática, e nas poucas vezes em que me viu assim acho que ficou assustado.
"Onde você roubou a van?", pergunto enquanto ele dá ré.
"Em uma locadora da Civil Air." A resposta ao menos garante que não aconteceu nada com Lucy.
O terminal não oficial na extremidade norte da pista é usado por funcionários civis autorizados a pousar na base aérea. Minha sobrinha trouxe Marino até aqui e me
passa pela cabeça que os dois vieram me fazer uma surpresa. Apareceram sem avisar para me desobrigar do voo comercial pela manhã e me acompanhar até em casa. Doce
ilusão. Não pode ser isso e procuro respostas no rosto de traços irregulares de Marino, captando sua aparência geral, quase da mesma forma que inspeciono um paciente
à primeira vista. Tênis de corrida, jeans, jaqueta de couro Harley-Davidson com forro de lã que ele tem há uma eternidade, boné de beisebol dos Yankees que usa por
sua própria conta e risco, levando-se em conta que agora mora no território dos Red Sox, e óculos de aro de metal antiquados.
Não sei dizer se ele raspou o pouco que lhe restou de cabelo grisalho, mas está limpo e relativamente bem cuidado, e não está vermelho de uísque nem tem a barriga
inchada de cerveja. Os olhos não estão injetados de sangue. As mãos parecem firmes. Não sinto cheiro de cigarro. Ele continua longe do álcool e longe de outras coisas.
Marino teve a sabedoria de se afastar de uma porção de coisas, um trem que se imiscui nos territórios instáveis de suas inclinações aborígines. Sexo, birita, drogas,
tabaco, comida, grosseria, intolerância, indolência. Eu provavelmente deveria acrescentar falsidade. Quando lhe convém, ele é evasivo ou simplesmente mente.
"Imagino que Lucy esteja no helicóptero...", começo a dizer.
"Você sabe como é esta espelunca quando se está trabalhando num caso. Pior que a porra da CIA", diz ele enquanto viramos na Purple Heart Avenue. "A casa da pessoa
pode estar pegando fogo e ninguém diz merda nenhuma. Devo ter ligado umas cinco vezes. Então tomei uma decisão executiva e Lucy e eu viemos para cá."
"Seria útil se você me dissesse por que está aqui."
"Ninguém quis te interromper enquanto estava cuidando do soldado de Worcester", diz ele para meu espanto.
O soldado de primeira classe Gabriel era de Worcester, Massachusetts, e não consigo entender por que Marino saberia em que caso eu estava trabalhando em Dover. Ninguém
deveria ter contado. Tudo o que fazemos no necrotério é extremamente sigiloso, quando não estritamente confidencial. Pergunto-me se a mãe do soldado morto cumpriu
a ameaça e convocou a imprensa. Pergunto-me se contou à imprensa que a médica-legista de seu filho, militar e branca, é racista.
Antes que eu consiga perguntar, Marino acrescenta: "Ao que tudo indica, ele é a primeira vítima de guerra de Worcester, e a mídia local está em cima. Recebemos algumas
ligações, imagino que as pessoas estejam confusas e achem que qualquer defunto ligado a Massachusetts acabe com a gente".
"Os repórteres acharam que íamos fazer a autópsia em Cambridge?"
"Bom, o CFC também é um necrotério. Talvez tenha sido por isso."
"Seria de esperar que a imprensa a essa altura soubesse que todas as baixas de operações vêm direto para cá", refuto. "Você tem certeza dos motivos do interesse
deles?"
"Por quê?" Marino olha para mim. "Você sabe de algum outro motivo que eu desconheça?"
"Só estou perguntando."
"Tudo o que sei é que recebemos alguns telefonemas e encaminhamos para Dover. Você estava no meio do trabalho com o garoto de Worcester e ninguém quis te chamar,
então liguei para o general Briggs quando estávamos a vinte minutos de distância, abastecendo em Wilmington. Ele fez a capitã Abelhinha te procurar no chuveiro.
Ela é solteira ou toca na banda de Lucy? Porque não é feia."
"Como você sabe?", pergunto, perplexa.
"Ela deu uma passada no CFC quando foi visitar a mãe no Maine. Você não estava."
Tento recordar se fui informada disso e ao mesmo tempo lembro que não faço ideia do que acontece na repartição que devo chefiar.
"Fielding se encarregou do tour real, o anfitrião com algo mais." Marino não gosta do meu sub, Jack Fielding. "A questão é que tentei avisar. Eu não pretendia simplesmente
dar as caras assim."
Marino está sendo evasivo e toda essa história é uma tática. É invenção. Por algum motivo, achou necessário simplesmente aparecer por aqui sem avisar. Talvez por
querer se certificar de que eu vá com ele sem demora. Percebo que o problema é sério.
"Não pode ter sido pelo Gabriel que você deu as caras assim, como você mesmo disse", aponto.
"Receio que não."
"O que aconteceu?"
"Temos um problema." Ele olha direto para a frente. "E eu disse a Fielding e a todos os outros que o corpo não ia ser examinado antes de você chegar."
Jack Fielding é um patologista forense experiente que não recebe ordens de Marino. Se meu sub optou por não intervir e transferir para mim o corpo, isso significa
que temos um caso que pode ter implicações políticas ou terminar em processo. O fato de Fielding não ter tentado me telefonar ou me passado um e-mail me incomoda
bastante. Torno a verificar meu iPhone. Nada da parte dele.
"Por volta das três e meia ontem à tarde em Cambridge", diz Marino, e agora estamos na Atlantic Street, dirigindo devagar na semiescuridão, no meio da base. "Em
Norton's Woods, na Irving, a menos de um quarteirão da sua casa. Uma merda você não estar em casa. Podia ter ido até a cena, a pé, e talvez as coisas tivessem acabado
de forma diferente."
"Que coisas?"
"Um homem de pele morena clara, na casa dos vinte. Estava passeando com o cachorro e caiu morto. Ataque cardíaco, certo? Errado", continua ele enquanto passamos
por fileiras de instalações de manutenção em concreto e metal, hangares e outras estruturas que têm números em vez de nomes. "É plena luz do dia de uma tarde de
domingo, muita gente por perto, porque tinha um evento no que quer que seja aquele lugar, o com um telhado verde de metal."
Norton's Woods é a sede da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, uma propriedade arborizada com uma impressionante construção em madeira e vidro que é
alugada para cerimônias especiais. Fica várias casas adiante daquela para a qual Benton e eu nos mudamos na primavera passada, a fim de que eu ficasse perto do CFC
e ele de Harvard, onde faz parte do corpo docente do departamento de psiquiatria da faculdade de medicina.
"Em outras palavras, olhos e ouvidos", continua Marino. "Um bom lugar e uma boa hora para matar alguém."
"Pensei que você tivesse dito que ele sofreu um ataque do coração. Só que, sendo tão jovem, deve ter sido uma arritmia cardíaca."
"É, era essa a hipótese inicial. Algumas testemunhas viram o sujeito colocar a mão no peito de repente e cair. Ele morreu ali... pelo jeito. Foi transportado direto
para nossa repartição e passou a noite na geladeira."
"O que você quer dizer com 'pelo jeito'?"
"Hoje cedo, Fielding entrou na geladeira e notou gotas de sangue no chão e muito sangue na bandeja, então foi chamar Anne e Ollie. O cara morto tinha sangue saindo
pelo nariz e pela boca. Não estava ali na tarde anterior, quando ele foi dado como morto. Não havia sangue na cena, nem uma gota, e agora ele está sangrando, e não
é hipóstase, claro, porque o cara não está em decomposição. O lençol com que está coberto está ensanguentado e tem mais ou menos um litro de sangue no saco que contém
o corpo, o que é uma merda. Eu nunca tinha visto um morto começar a sangrar assim. Então eu disse que tínhamos a porra de um problema sério e todo mundo ficou de
boca fechada."
"O que Jack disse? O que ele fez?"
"Você está de gozação, não está? Que braço-direito o seu. Não vou nem começar."
"Temos alguma identificação? E por que Norton's Woods? Ele mora ali perto? Estuda em Harvard? Talvez na faculdade de teologia, ali perto? Duvido que ele estivesse
indo ao evento. Não com um cachorro." Pareço muito mais calma do que me sinto ao ter essa conversa no estacionamento da pousada Eagle's Rest.
"Ainda não temos muitos detalhes, mas parece que era um casamento", explica Marino.
"No domingo do Super Bowl? Quem marca um casamento no mesmo dia do Super Bowl?"
"Alguém que não quer que ninguém apareça. Ou que não é americano, ou que é antiamericano. Sei lá, mas acho que o morto não era um convidado do casamento, e não só
por causa do cachorro. Ele levava uma Glock nove milímetros por baixo do casaco. Não tinha documentos e estava ouvindo um rádio portátil via satélite. Você já imagina
aonde quero chegar com isso."
"Na verdade não."
"Lucy vai falar mais sobre a parte do rádio via satélite, mas parece que ele estava fazendo vigilância, espionando, e talvez a pessoa que ele estava sacaneando tenha
decidido retribuir o favor. Resumindo, acho que alguém fez alguma coisa com ele e causou um ferimento que de alguma forma passou despercebido aos paramédicos; o
serviço de remoção também não notou nada. Então o zíper do saco é fechado e ele começa a sangrar durante o transporte. Bom, isso não aconteceria a não ser que ele
tivesse alguma pressão sanguínea, ou seja, ainda estava vivo quando foi deixado no necrotério e trancado dentro da porra da geladeira. Com catorze, quinze graus
negativos lá dentro, ele deve ter morrido esta manhã por exposição ao frio. Supondo que não tenha sangrado até a morte primeiro."
"Se ele tinha um ferimento que causaria sangramento externo", pergunto, "por que não havia sangue na cena?"
"Explique você."
"Por quanto tempo tentaram ressuscitar o cara?"
"Quinze, vinte minutos."
"Não é possível que um vaso sanguíneo tenha sido de alguma forma perfurado nesse período?", pergunto. "Lesões anteriores e posteriores à morte, quando suficientemente
graves, podem causar sangramento significativo. Talvez durante a reanimação cardiopulmonar uma costela tenha fraturado e causado uma perfuração ou secção em uma
artéria. Um tubo torácico pode ter sido inserido e causado um ferimento e o sangramento que você descreveu."
Mas sei que não é nada disso antes mesmo de dizer. Marino é um investigador de homicídios experiente. Não teria requisitado minha sobrinha e seu helicóptero para
vir a Dover sem aviso prévio se houvesse uma explicação lógica ou mesmo plausível, e Jack Fielding certamente reconheceria um ferimento como o que eu sugeri. Por
que ele não tentou falar comigo?
"O quartel do Corpo de Bombeiros de Cambridge deve ficar a um quilômetro e meio de Norton's Woods, e o pelotão chegou em poucos minutos", informa Marino.
Estamos sentados na van com o motor desligado. Está quase completamente escuro, o horizonte e o céu se fundem, com um débil vestígio de luz a oeste. Quando Fielding
lidou com algum revés sem mim? Nunca. Ele se afasta. Deixa a sujeira para os outros limparem. Foi por isso que não tentou fazer contato comigo. Talvez tenha largado
o emprego de novo. Quantas vezes precisa fazer isso para que eu pare de recontratá-lo?
"De acordo com eles, o sujeito morreu instantaneamente", acrescenta Marino.
"A menos que um explosivo arrebente alguém em centenas de pedaços, na verdade não existe essa coisa de morrer instantaneamente", retruco, porque detesto quando Marino
fala clichê. Morrer instantaneamente. Cair morto. Morreu antes de atingir o solo. Vinte anos de generalidades como essas, não importa quantas vezes eu tenha dito
que paradas cardíaca e respiratória não são causas, mas sintomas da morte, o que em termos clínicos leva no mínimo alguns minutos. Nunca é instantânea. Não é um
processo simples. Torno a lembrá-lo dessa questão médica porque não consigo pensar em mais nada para dizer.
"Bom, só estou relatando o que me contaram. De acordo com eles, o cara não pôde ser ressuscitado", responde Marino como se os paramédicos soubessem mais sobre a
morte do que eu. "Não reagiu. É o que está no prontuário."
"Você interrogou os paramédicos?"
"Um deles. Por telefone esta manhã. Sem pulso, sem nada. O cara estava morto. Ou foi o que disse o paramédico. Mas o que você acha que ele ia dizer? Que eles não
tinham certeza, mas mesmo assim mandaram o sujeito para o necrotério?"
"Então você contou a ele por que estava perguntando."
"Porra, não, não sou nenhum retardado. Ninguém precisa disso na primeira página do Globe. Se chegar aos noticiários, posso muito bem voltar para o departamento de
polícia de Nova York ou, quem sabe, terminar na Wackenhut, só que ninguém está contratando."
"Que procedimento você seguiu?"
"Não segui merda nenhuma. Foi Fielding. É claro que ele está dizendo que fez tudo como manda o figurino, e que a DP de Cambridge informou que não havia nada de suspeito
na cena, uma morte natural evidente, com testemunhas. Fielding deu permissão para que o corpo fosse transferido ao CFC desde que os policiais ficassem com a custódia
da arma e a levassem de imediato para o laboratório para que descobríssemos em nome de quem está registrada. Um caso de rotina, e não é culpa nossa se os paramédicos
fizeram besteira, ou assim diz Fielding. E você sabe o que eu digo? Não importa. Vamos levar a culpa. A imprensa vai nos perseguir como você nunca viu e vai dizer
que tudo deveria voltar para Boston. Já imaginou?"
Antes que o CFC começasse a trabalhar nos primeiros casos no verão passado, a agência estatal de medicina legal localizava-se em Boston e vivia cercada por problemas
políticos e econômicos, sem mencionar os escândalos que estavam constantemente nos noticiários. Corpos eram perdidos, enviados à funerária errada ou cremados sem
exame minucioso, e em pelo menos uma suspeita de morte de criança por maus-tratos foram testados os globos oculares errados. Novos chefes chegaram e partiram, e
órgãos distritais tiveram de ser fechados devido à falta de financiamento. Mas nada de negativo que já tenha sido dito a respeito daquela instituição se compara
ao que Marino está sugerindo a nosso respeito.
"Prefiro não imaginar nada." Abro a porta. "Vou me concentrar nos fatos."
"Isso é um problema, já que parece que não temos nada que faça muito sentido."
"E você contou a Biggs o que acabou de me contar?"
"Contei o que ele precisava saber", responde Marino.
"A mesma coisa que acabou de me contar?", repito a pergunta.
"Praticamente."
"Não devia ter feito isso. Devia ter me deixado contar. Eu decido o que ele precisa saber." Estou sentada com a porta do carona bem aberta e o vento entrando. Ainda
estou úmida do banho e sinto frio. "Não pode quebrar a cadeia de comando só porque estou ocupada."
"Bom, você estava muito ocupada, então contei a ele."
Desço da van e me tranquilizo dizendo que o que Marino acaba de descrever não pode estar correto. Os paramédicos de Cambridge jamais cometeriam um erro tão absurdo;
tento evocar uma explicação para um ferimento fatal não sangrar na cena e depois sangrar de forma profusa e penso em como computar a hora da morte ou mesmo a causa
de alguém que morreu dentro da geladeira de um necrotério. Estou confusa. Não faço a menor ideia do que está acontecendo e, acima de tudo, estou angustiada por ele,
por esse jovem entregue a mim, dado como morto. Visualizo-o envolto em um lençol e acondicionado em um saco, o zíper fechado, e é essa a essência dos velhos horrores.
Alguém que recupera os sentidos dentro de um caixão. Alguém que é enterrado vivo. Nunca me aconteceu nada tão terrível, nem de perto, nem uma única vez em minha
carreira. E nunca conheci ninguém que tenha passado por isso.
"Pelo menos não há nenhum sinal de que ele tentou sair do saco." Marino está tentando fazer com que ambos nos sintamos melhor. "Nada que indique que ele pode ter
acordado a certa altura e entrado em pânico. Você sabe, sinais de que tentou abrir o zíper, chutar ou coisa parecida. Acho que, se ele tivesse lutado, estaria em
outra posição na bandeja quando o encontramos esta manhã, ou talvez tivesse até rolado para fora dela. Não tinha pensado nisso, mas uma pessoa não sufocaria num
saco daqueles? Supostamente eles são à prova d'água. Ainda que vazem. Queria ver um que não vazasse. E essa é a outra questão. Os pingos de sangue no chão vão na
direção da baia para a geladeira."
"Por que não continuamos isso mais tarde?" É hora do check-in. Há muita gente no estacionamento quando nos dirigimos à entrada moderna, mas simples, da pousada,
e Marino tem uma voz grossa que se projeta como se ele estivesse sempre falando de um palco.
"Duvido que Fielding tenha se dado o trabalho de ver a gravação", continua Marino. "Duvido que tenha feito qualquer coisa. Não vi nem tive notícias do filho da puta
desde hoje cedo. Desapareceu na hora H de novo." Marino abre a porta principal de vidro. "Espero que não tenhamos que fechar por causa daquele imprestável. Não seria
incrível? Você faz ao cara a porra de um favor lhe dando um emprego depois que ele se mandou e ele destrói o CFC antes mesmo que o lugar comece a decolar."
No interior do hall de entrada com mostruários contendo prêmios e memorabilia da Força Aérea, cadeiras confortáveis e uma TV gigantesca, uma placa dá as boas-vindas
aos hóspedes na sede do C-5 Galaxy e do C-17 Globemaster III. Na recepção, espero silenciosamente atrás de um homem que veste as listras de tigre extravagantes e
indistintas dos uniformes de combate do Exército, enquanto compra creme de barbear, água e várias garrafinhas de Johnnie Walker. Informo ao recepcionista que estou
fechando a conta antes do planejado e, sim, vou me lembrar de entregar as chaves, e é claro que compreendo que vão me cobrar a diária de trinta e oito dólares mesmo
que eu não passe a noite lá.
"Como é que se diz?", continua Marino. "O inferno está cheio de boas intenções?"
"Vamos tentar não ser tão negativos."
"Você e eu abrimos mão de bons empregos em Nova York e fechamos o escritório em Watertown, e é isso o que acontece."
Não me pronuncio.
"Realmente espero que isso não acabe com a nossa carreira", prossegue ele.
Não respondo, porque já ouvi o bastante. Depois das lojinhas e das máquinas de refrigerante, salgadinho e doce, pegamos a escada para o segundo andar e é então que
ele me informa que Lucy não está esperando com o helicóptero no Terminal Aéreo Civil. Está em meu quarto. Fazendo minhas malas, tocando em meus pertences, tomando
decisões sobre eles, esvaziando meu armário, minhas gavetas, desligando meu laptop, minha impressora, o roteador. Ele esperou para me dizer porque sabe muito bem
que, em circunstâncias normais, isso me irritaria absurdamente - não importaria que se tratasse da minha sobrinha, o gênio da informática, ex-policial federal, que
criei como uma filha.
As circunstâncias são tudo menos normais, e sinto-me aliviada que Marino esteja aqui e Lucy esteja em meu quarto, que tenham vindo me buscar. Preciso chegar em casa
e resolver tudo. Percorremos o longo corredor com tapete vermelho-escuro, passamos pela varanda decorada com reproduções coloniais e uma cadeira eletrônica de massagem
atenciosamente instalada para os pilotos cansados. Insiro o cartão magnético na abertura na porta do quarto e me pergunto quem teria deixado Lucy entrar, então torno
a pensar em Briggs e na CNN. Não posso nem pensar em aparecer na TV. E se a imprensa tomou conhecimento do que aconteceu em Cambridge? A essa altura eu saberia.
Marino saberia. Bryce, meu administrador, saberia e teria me contado imediatamente. Tudo vai ficar bem.
Lucy está sentada em minha cama bem-feita, fechando o zíper de minha nécessaire de cosméticos. Detecto o perfume cítrico apurado de seu xampu quando a abraço e percebo
o quanto ela me fez falta. Um macacão de voo preto acentua seus olhos verdes atrevidos, o cabelo curto dourado, as feições angulosas e a magreza, o que me faz lembrar
o quanto ela é atraente de um jeito pouco comum, com ar de menino, porém feminina, vigorosamente esculpida, com seios em evidência e tão intensa que parece selvagem.
Independentemente de estar brincando ou sendo educada, minha sobrinha tende a intimidar e tem poucos amigos, talvez nenhum a não ser Marino, e seus amores nunca
duram. Nem mesmo Jaime, embora eu não tenha revelado minhas suspeitas. Não perguntei. Mas não engulo a história de Lucy de ter se mudado de Nova York para Boston
por razões financeiras. Mesmo que sua empresa investigativa de informática forense estivesse em declínio, no que tampouco acredito, ela estava ganhando mais em Manhattan
do que recebe agora do CFC, que é nada. Minha sobrinha trabalha para mim pro bono. Ela não precisa de dinheiro.
"Qual é a história do rádio via satélite?" Observo-a com atenção, tentando interpretar seus sinais, que são sempre sutis e desconcertantes.
As cápsulas chocalham enquanto ela verifica quantos Advils há em um frasco, decidindo que não o bastante para perder tempo e o atira no lixo. "Vamos pegar mau tempo,
então eu gostaria de sair logo daqui." Ela destampa um frasco de Zantac, descartando-o a seguir. "Conversamos durante o voo. Vou precisar da sua ajuda como copiloto.
Vai ser complicado escapar das nevascas e da chuva no caminho. Trezentos milímetros, começando por volta das dez."
Meu primeiro pensamento é Norton's Woods. Preciso fazer uma visita retrospectiva, mas quando chegar lá, o lugar vai estar coberto de neve.
"É uma pena", comento. "A cena do crime não foi investigada como deveria."
"Pedi à DP de Cambridge para voltar lá esta manhã." Os olhos de Marino se deslocam como se fosse meu alojamento que necessitasse ser investigado. "Não encontraram
nada."
"Perguntaram por que você quis que investigassem?" A mesma preocupação outra vez.
"Eu disse que tínhamos dúvidas. Coloquei a culpa na Glock. O número de série foi apagado. Acho que não contei isso", acrescenta ele enquanto olha ao redor, atento
a tudo menos a mim.
"Podemos tentar recuperar o número com ácido. Se não der certo, ainda temos o microscópio eletrônico de varredura", concluo. "Se restou algum traço, vamos encontrar.
E vou pedir a Jack para ir a Norton's Woods e fazer uma retrospectiva."
"Tenho certeza de que ele vai começar a trabalhar nisso", diz Marino em tom sarcástico.
"Ele pode tirar fotografias antes que a neve comece", acrescento. "Ou alguma outra pessoa. Quem estiver de plantão..."
"É perda de tempo", diz Marino me interrompendo. "Nenhum de nós estava lá ontem. Não sabemos qual a porra do local exato... só que ficava perto de uma árvore e de
um banco verde. Bom, isso é de grande ajuda quando você está falando de cerca de três hectares de árvores e bancos verdes."
"E fotografias?", pergunto enquanto Lucy continua a vasculhar minha pequena farmácia de pomadas, analgésicos, antiácidos, vitaminas, colírios e antissépticos espalhada
sobre a cama. "A polícia deve ter batido fotos do corpo in situ."
"Ainda estou esperando o detetive me mandar. O cara que responde pela cena trouxe a pistola hoje de manhã. Lester Law, atende por Les Law, mas nas ruas é mais conhecido
como Lawless, corrupto exatamente como o pai e o avô antes dele. Os tiras de Cambridge voltando à porra do Mayflower. Mas não conheci o sujeito."
"Bom, acho que é isso." Lucy se levanta da cama. "Quer conferir se não esqueci nada?", acrescenta ela.
O lixo está abarrotado, minhas malas estão arrumadas e enfileiradas em uma das paredes, a porta do armário está escancarada, sem nada dentro exceto cabides vazios.
Equipamentos de informática, arquivos impressos, artigos de jornal e livros desapareceram da minha escrivaninha, e não há nada no cesto de roupas sujas, nem no banheiro
ou nas gavetas da cômoda que inspeciono. Abro a pequena geladeira. Está vazia e foi limpa. Enquanto ela e Marino começam a carregar minhas coisas para fora, teclo
o número de Briggs no meu iPhone. Olho para o prédio de estuque de três andares no outro lado do estacionamento, para a ampla janela espelhada no meio do terceiro
andar. Ontem à noite eu estava nessa suíte com ele e outros colegas assistindo ao jogo, e a vida era boa. Aplaudimos o New Orleans Saints e nosso próprio trabalho
e brindamos ao Pentágono e a sua Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, a DARPA, que haviam tornado possíveis as autópsias virtuais com o auxílio de
TC em Dover e agora no CFC. Comemoramos a missão cumprida, o trabalho bem-feito, e agora isso, como se a noite passada não fosse real, como se eu tivesse sonhado.
Respiro fundo e aperto ENVIAR em meu iPhone, sentindo-me oca por dentro. Briggs não pode estar satisfeito comigo. Imagens lampejam na TV de tela plana instalada
na parede da sala de estar, então ele passa pelo vidro vestindo seu uniforme de combate do Exército, verde e marrom com gola chinesa, o que normalmente usa quando
não está no necrotério ou em uma cena de crime. Vejo-o atender ao telefone e retornar à ampla janela, onde para, olhando direto para mim. A certa distância, estamos
cara a cara, uma extensão de asfalto e carros estacionados entre mim e o legista-chefe das Forças Armadas, como se estivéssemos à beira de um impasse.
"Coronel." Ele me cumprimenta em tom sombrio.
"Acabo de saber. E garanto que vou cuidar disso. Estarei no helicóptero em uma hora."
"Você sabe o que sempre digo." A voz profunda e autoritária soa em meu fone de ouvido e tento detectar seu grau de mau humor e o que ele vai fazer. "Tudo tem uma
resposta. O problema é encontrar essa resposta e a melhor maneira de fazer isso. A maneira mais correta e adequada." Ele parece calmo. Cauteloso. Muito sério. "O
resto fica para outra ocasião", acrescenta.
Briggs está fazendo menção ao último briefing que havíamos programado. Tenho certeza de que também se refere à CNN, e me pergunto o que Marino contou. O que exatamente
ele disse?
"Concordo, John. Tudo deve ser cancelado."
"Já foi."
"É a coisa certa." Soo trivial. Não vou deixar que ele perceba minha insegurança e sei que a está farejando. Sei muito bem que está. "Minha prioridade é determinar
se a informação que me foi passada está correta. Porque não vejo como pode ser possível."
"Não é uma boa hora para você ir ao ar. Não preciso que Rockman nos diga isso."
Rockman é o assessor de imprensa. Briggs não precisa falar com ele porque já fez isso. Tenho certeza.
"Entendo", respondo.
"Um sincronismo incrível. Se eu fosse paranoico, podia simplesmente pensar que alguém orquestrou algum tipo bizarro de sabotagem."
"Com base no que me contaram, não vejo como isso seria possível."
"Eu disse se fosse paranoico", retruca Briggs e, de onde estou, distingo a figura musculosa magnífica, mas não consigo ver a expressão em seu rosto. E não preciso.
Ele não está sorrindo. Os olhos cinzentos são aço galvanizado.
"A sincronia pode ser coincidência ou não", digo. "É o pressuposto básico em investigações criminais, John. É sempre uma coisa ou outra."
"Não vamos banalizar a situação."
"Estou fazendo tudo menos isso."
"Não consigo pensar em nada muito pior que uma pessoa viva ser colocada na porra da sua geladeira", diz ele sem rodeios.
"Nós não sabemos..."
"É uma pena depois de tudo isso." Como se tudo o que construímos ao longo dos últimos anos estivesse à beira da ruína.
"Não sabemos se o que foi relatado é exato...", começo a dizer.
"Acho que seria melhor trazer o corpo para cá", interrompe ele mais uma vez. "O AFDIL pode trabalhar na identificação. Rockman vai se certificar de que a situação
fique sob controle. Temos tudo de que precisamos bem aqui."
Estou pasma. Briggs quer mandar um avião a Hanscom Field, a base aérea afiliada ao CFC. Quer que o Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas, provavelmente
com outros laboratórios militares e outra pessoa que não eu, cuide do que aconteceu porque acha que não tenho competência para isso. Ele não confia em mim.
"Não sabemos se estamos falando da jurisdição federal", lembro-lhe. "A menos que você saiba alguma coisa que eu não sei."
"Olhe. Estou tentando fazer o que é melhor para todos os envolvidos." Briggs tem as mãos às costas, as pernas ligeiramente afastadas, os olhos fixos em mim no outro
lado do estacionamento. "Podemos despachar um C-17 para Hanscom. Podemos ter o corpo aqui por volta de meia-noite. O CFC é um necrotério também, e é isso que os
necrotérios fazem."
"Não é isso que os necrotérios fazem. A ideia não é que os corpos sejam recebidos, então transferidos para as autópsias e análises de laboratório. O CFC não foi
projetado para ser uma primeira triagem para Dover, uma verificação preliminar à intervenção dos peritos. Essa nunca foi minha intenção nem o que foi acordado quando
trinta milhões de dólares foram gastos na repartição em Cambridge."
"Você devia ficar em Dover, Kay. Trazemos o corpo para cá."
"Estou pedindo a você que não intervenha, John. Neste momento, o caso pertence à alçada do legista-chefe de Massachusetts. Por favor, não desafie a minha autoridade."
Há uma longa pausa, então ele afirma, em vez de perguntar: "Você realmente quer essa responsabilidade".
"Ela é minha, eu querendo ou não."
"Estou tentando te proteger. Tenho tentado."
"Não faça isso." Não é o que ele está tentando fazer. Não tem confiança em mim.
"Posso mobilizar a capitã Avallone para ajudar. Não é má ideia."
Mal posso acreditar que ele tenha sugerido isso. "Não é necessário", refuto em tom firme. "O CFC é perfeitamente capaz de lidar com a situação."
"Que fique registrado que ofereci."
Que fique registrado junto a quem? Ocorre-me, de forma estranha, que talvez haja outra pessoa na linha. Briggs continua de pé diante da janela. Não sei se há mais
alguém na suíte com ele.
"O que você decidir", diz então. "Não vou passar por cima de você. Ligue assim que souber de alguma coisa. Me acorde se for preciso." Ele não diz adeus, nem boa
sorte, nem foi bom ter você por aqui por seis meses.
2
Lucy e Marino saíram do quarto. Minhas malas, mochilas e caixas de arquivo desapareceram e não restou nada. É como se eu nunca tivesse estado aqui e me sinto só
como não ocorre há anos, talvez décadas.
Olho ao redor pela última vez, para me certificar de que nada foi esquecido, minha atenção viajando para além do micro-ondas, da pequena geladeira e da cafeteira
elétrica, rumo às janelas com vista do estacionamento e da suíte iluminada de Briggs e mais além, rumo ao céu negro sobre o vazio do campo de golfe desocupado. Grossas
nuvens passam pela lua oblonga, que acende e apaga como uma lanterna de sinalização, como se me informasse o que há adiante e se devo parar ou seguir, e não vejo
estrela nenhuma. Preocupa-me que o mau tempo esteja se deslocando rápido, conduzido pelo mesmo vento sul poderoso que traz os grandes aviões e sua triste carga.
Eu deveria me apressar, mas o espelho do banheiro me distrai, a pessoa nele, na verdade, e paro para me olhar sob a claridade da luz fluorescente. Quem é você agora?
De verdade?
Meus olhos azuis e meu cabelo louro e curto, o talhe forte de meu rosto e minha silhueta não estão muito diferentes, concluo, parecem notadamente os mesmos, levando-se
em conta minha idade. Resisti bem às salas de concreto e aço inoxidável sem janelas, e muito disso é genético, um desejo hereditário de prosperar em uma família
trágica como uma ópera de Verdi. Os Scarpetta descendem de italianos fortes do norte, com feições proeminentes, cabelo e pele claros, e músculos e ossos bem definidos
que resistem à adversidade e aos abusos da permissividade que a maioria das pessoas não associaria comigo. Mas as tendências estão presentes, uma paixão pela comida,
pela bebida, por todas as coisas que a carne deseja, não importa quão destrutivas. Almejo a beleza e sinto com profundidade, mas também sou uma aberração. Posso
ser firme e impenetrável. Posso ser imutável e implacável, e esses comportamentos são aprendidos. Acredito que sejam necessários. Não são naturais em mim, nem em
ninguém em minha família instável e dramática, e sei que isso é verdade sobre minhas origens. Quanto ao resto, não tenho tanta certeza.
Meus antepassados eram agricultores e trabalharam nas estradas de ferro, mas nos últimos anos, quando começou a pesquisar nossa genealogia, minha mãe acrescentou
artistas, filósofos, mártires e Deus sabe o que mais à mistura. Segundo ela, sou descendente dos artesãos que construíram o altar principal e os assentos do coro
e elaboraram os mosaicos da Basílica de São Marcos e criaram os afrescos do teto da Chiesa dell'Angelo San Raffaele. De alguma forma, tenho vários frades e monges
em meu passado, e mais recentemente - não sei com base em que - compartilho sangue com o pintor Caravaggio, que foi um assassino, e tenho uma tênue ligação com o
matemático e astrônomo Giordano Bruno, queimado na fogueira por heresia durante a Inquisição romana.
Minha mãe ainda mora numa casinha de Miami e está imersa em suas tentativas de me explicar isso tudo. Até onde se sabe, sou a única médica da árvore genealógica
e ela não entende por que escolhi pacientes que já estão mortos. Nem minha mãe nem minha única irmã, Dorothy, conseguem compreender que sou parcialmente definida
pelos horrores de uma infância absorvida em cuidar de meu pai com uma doença terminal antes de me tornar chefe de família aos doze anos. Por intuição e formação,
sou especialista em violência e morte. Estou em guerra com o sofrimento e a dor. De alguma forma, sempre acabo no comando ou levando a culpa. Isso nunca falha.
Fecho a porta do que foi meu lar não apenas durante seis meses, mas na verdade por mais que isso. Briggs conseguiu me lembrar de onde vim e para onde vou. Uma trajetória
que se definiu muito antes do último mês de julho, no passado distante de 1987, quando descobri que meu destino era o serviço público e não sabia como pagar meu
empréstimo estudantil para a faculdade de medicina. Permiti que algo tão banal quanto o dinheiro, algo tão vergonhoso quanto a ambição mudassem tudo de forma irrevogável,
e não no bom sentido - na realidade, no pior dos sentidos. Mas eu era jovem e idealista. Era arrogante e queria mais, sem entender na ocasião que mais é sempre menos
quando você não se sacia.
Tendo conseguido bolsa integral na escola paroquial, em Cornell e na faculdade de direito de Georgetown, eu poderia ter iniciado minha vida profissional isenta das
obrigações de uma dívida. Mas havia rejeitado a faculdade de medicina Bowman Gray por querer muito a Johns Hopkins. Eu queria a Johns Hopkins mais que qualquer outra
coisa e fui para lá sem benefícios nem auxílio financeiro, o que resultou numa dívida impossível de ser paga. Meu único recurso foi aceitar uma bolsa de estudos
militar, como alguns de meus colegas haviam feito, inclusive Briggs, a quem fui apresentada no início da carreira, ao ser designada para o Instituto de Patologia
das Forças Armadas, o AFIP, a organização precursora do AFMES. Uma temporada tranquila revisando relatórios de autópsias militares no Centro Médico Walter Reed,
do Exército, em Washington, D. C., Briggs me levou a crer, e assim que minha dívida estivesse paga, eu sairia e assumiria uma posição sólida na medicina legal civil.
O que não planejei foi a África do Sul em dezembro de 1987, o que era verão naquele continente distante. Noonie Pieste e Joanne Rule estavam filmando um documentário
e tinham mais ou menos a mesma idade que eu quando foram amarradas a uma cadeira, espancadas e cortadas. Enfiaram uma garrafa de vidro quebrada na vagina de cada
uma e arrancaram a traqueia. Crimes de ódio contra duas jovens americanas.
"Você vai à Cidade do Cabo", anunciou Briggs. "Para investigar e trazer as garotas para casa." O apartheid. Mentiras e mais mentiras. Por que elas e por que eu?
Enquanto desço as escadas rumo ao hall de entrada, digo a mim mesma para não pensar nesse assunto agora. Por que estou lembrando tudo isso? Mas sei por quê. Gritaram
comigo ao telefone esta manhã. Fui xingada, e o que aconteceu mais de duas décadas atrás está diante de mim novamente. Recordo relatórios de autópsia que desapareceram
e minha bagagem que foi vasculhada. Recordo a certeza de que apareceria morta, um acidente ou suicídio conveniente, ou um assassinato encenado, como aquelas duas
mulheres que continuo a ver em minha mente. Vejo-as de forma tão clara quanto na ocasião, pálidas e rígidas em mesas de aço, o sangue escorrendo por drenos no chão
de um necrotério tão primitivo que usamos serras simples para abrir os crânios; não havia aparelho de raios X e precisei levar minha própria câmera.
Deixo a chave na recepção e repasso a conversa que acabo de ter com Briggs; então vejo com clareza. Não sei por que não enxerguei a verdade de imediato; penso em
seu tom distante, na deliberação fria enquanto eu o observava através do vidro. Já o ouvi falar assim antes, mas em geral se dirigindo a outras pessoas quando há
um problema de tal magnitude que sai de suas mãos. Isso está além de uma opinião pessoal a meu respeito. Está além de suas maquinações típicas e de nosso passado
conflituoso.
Alguém o importunou, e não foi o assessor de imprensa nem ninguém em Dover, e, sim, alguém mais graúdo. Tenho certeza de que Briggs teve que falar com Washington
depois que Marino divulgou a informação, abrindo a boca e desfiando suas especulações desvairadas antes de eu ter tido a chance de dizer uma palavra. Marino não
deveria ter discutido o caso. Pôs em movimento alguma coisa que não entende, porque existem muitas coisas que ele não entende. Nunca foi militar. Nunca trabalhou
para o governo federal e é ignorante em assuntos internacionais. Sua ideia de burocracia e intriga são as políticas da polícia local, que considera bobagem. Não
tem nenhuma noção de poder, a espécie de poder capaz de afetar uma eleição presidencial ou deflagrar uma guerra.
Briggs não teria sugerido enviar um avião militar a Massachusetts para a transferência de um corpo para Dover a menos que tivesse recebido autorização do Departamento
de Defesa - em outras palavras, do Pentágono. Uma decisão foi tomada e não faço parte dela. Fora, no estacionamento, subo na van e não olho para Marino de tão furiosa
que estou.
"Fale mais sobre o rádio via satélite", peço a Lucy, pois pretendo ir até o fundo da questão. Pretendo descobrir o que Briggs sabe ou foi levado a acreditar.
"É um Sirius Stiletto", diz Lucy do banco de trás, enquanto intensifico o aquecimento, porque Marino está sempre com calor ao passo que o restante de nós congela.
"Basicamente, nada mais é que armazenagem de arquivos, além de ser uma fonte de energia. É claro que funciona como um rádio XM portátil, para o que foi projetado,
mas a diferença são os fones de ouvido. Não geniais, mas tecnicamente inteligentes."
"Eles têm uma câmera pinhole e um microfone embutidos", esclarece Marino enquanto dirige. "É por isso que acho que o morto estava espionando alguém. Como ele podia
não saber que tinha um sistema de gravação audiovisual embutido nos fones de ouvido?"
"Talvez não soubesse. É possível que alguém estivesse espionando o sujeito e ele não fizesse a menor ideia", diz Lucy, e percebo que ela e Marino andaram discutindo
a respeito. "A pinhole fica no topo da armação na cabeça, mas bem na beirada, e é difícil de ver. Mesmo que ele percebesse, não necessariamente lhe passaria pela
cabeça que lá dentro havia uma câmera via rádio menor que um grão de arroz, um transmissor de áudio do mesmo tamanho e um sensor de movimento que fica inativo depois
de noventa segundos sem nada se mexendo. O cara estava andando por aí com uma webcam que estava gravando no disco rígido do rádio e tinha um cartão SD adicional
de oito gigas. Para mim, é muito cedo para dizer que ele sabia disso - em outras palavras, que ele mesmo montou o equipamento. Sei que é o que Marino acha, mas não
tenho certeza."
"O cartão SD veio com o rádio ou foi anexado depois?", indago.
"Anexado depois. Em outras palavras, é muito espaço de armazenamento. O que me deixa curioso é se esses arquivos eram periodicamente baixados em outro lugar, como
um PC, por exemplo. Se a gente conseguir pegar esse material, talvez descubra do que se trata."
Lucy está dizendo que os arquivos de vídeo que examinou até então não dizem muita coisa. Ela tem razões para suspeitar que a memória está ligada a um PC, talvez
mais de um, mas não descobriu nada que informe onde o sujeito morava ou quem é.
"O que está armazenado no disco rígido e no cartão SD remonta só até 5 de fevereiro, sexta-feira passada", continua ela. "Não sei se isso significa que a vigilância
acabou de começar ou, o que é mais provável, que os arquivos de vídeo são grandes e ocupam muito espaço no disco rígido. Eles provavelmente são baixados em outro
lugar e o que está no disco rígido e no cartão SD foi gravado por cima. Então, provavelmente temos só as gravações mais recentes, o que não significa que não existam
outras."
"Então esses vídeos provavelmente foram baixados de forma remota."
"É o que eu faria se estivesse espionando", diz Lucy. "Me conectaria remotamente com a webcam e baixaria o que quisesse."
"E a vigilância em tempo real?", pergunto.
"Se ele estivesse sendo espionado, quem estivesse fazendo isso poderia se conectar com a webcam e vigiar o sujeito enquanto as coisas aconteciam."
"Para perseguir o cara, para ir atrás dele?"
"Seria um motivo lógico. Ou para colher informações, para espionar. Como algumas pessoas fazem quando desconfiam que estão sendo enganadas. Tudo o que você imaginar
é possível."
"Então é possível que ele tenha gravado a própria morte sem querer." Sinto um lampejo de esperança e ao mesmo tempo esse pensamento me deixa profundamente perturbada.
"Estou dizendo 'sem querer' porque não sabemos com o que estamos lidando. Por exemplo, não sabemos se ele gravou intencionalmente a própria morte, se ele é um suicida,
e não vou descartar nada ainda."
"Ele não é um suicida", diz Marino.
"A essa altura, não podemos descartar nada", repito.
"Como um terrorista suicida", diz Lucy. "Como Columbine e Fort Hood. Talvez ele fosse matar o maior número de pessoas que conseguisse em Norton's Woods e depois
se matar, mas alguma coisa aconteceu e ele não teve chance."
"Não sabemos com que estamos lidando", torno a dizer.
"A Glock tinha dezessete rodadas no pente e uma na câmara", menciona Lucy. "Muita potência de fogo. Dava com certeza para arruinar o casamento de alguém. Precisamos
saber quem se casou e quem compareceu."
"A maioria dessas pessoas tem pentes extra", retruco. Sei tudo a respeito do tiroteio em Fort Hood, no Instituto Politécnico da Virginia e em muitos outros locais,
onde atacantes abrem fogo sem necessariamente se preocupar com quem matam. "Em geral, essas pessoas têm muita munição e armas adicionais, já que estão planejando
um assassinato em massa. Mas concordo com você. A Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos é um local conhecido e deveríamos descobrir quem casou lá ontem
e quem foram os convidados."
"Espero que você seja sócia", diz Marino. "Talvez tenha um contato para conseguir uma lista de sócios e a programação de eventos."
"Não sou sócia."
"Você está brincando."
Não menciono que não ganhei um Nobel, nem um Pulitzer e não sou ph.D., só tenho um diploma de medicina e outro de direito, e isso não importa. Eu poderia lembrá-lo
de que, de qualquer forma, a Academia talvez não seja relevante, porque não sócios podem alugar o prédio. Basta ter contatos e dinheiro. Mas não estou a fim de dar
explicações detalhadas a Marino. Ele não deveria ter telefonado para Briggs.
"Tenho uma boa e uma não tão boa notícia sobre a gravação." Lucy estende a mão para o encosto do assento e me entrega seu iPad. "A boa notícia, como já indiquei,
é que não parece que alguma coisa tenha sido deletada, pelo menos não recentemente. O que poderia ser um argumento a favor de que era ele que estava espionando.
Se alguém tinha o sujeito sob vigilância e tem alguma coisa a ver com a morte dele, essa pessoa provavelmente teria se conectado ao endereço na rede e apagado o
disco rígido e o SD antes que outras pessoas vissem o material."
"Ou que tal tirar o maldito rádio e os malditos fones de ouvido da maldita cena?", pergunta Marino. "E se ele estivesse sendo seguido, caçado e quem quer que estivesse
fazendo isso tenha dado uma porrada no cara? Bom, se fosse eu, teria pegado os fones de ouvido, o rádio e continuado a andar. Então aposto que era ele quem estava
fazendo a gravação. Não acredito, nem por um minuto, que tenha sido outra pessoa. Aposto que esse cara estava envolvido em alguma coisa, e qualquer que fosse o motivo
para o equipamento de vigilância, ele era o único que tinha conhecimento disso. A merda é que não existe nenhuma gravação do perpetrador, ou de quem quer que tenha
atacado o sujeito, o que é significativo. Se ele encontrou alguém enquanto estava passeando com o cachorro, por que os fones de ouvido não registraram?"
"Os fones de ouvido não registraram porque ele não viu a pessoa", responde Lucy. "Ele não estava olhando para quem quer que tenha sido."
"Supondo que tenha havido uma pessoa que de alguma forma causou a morte dele", lembro a ambos.
"Certo", diz ela. "Os fones de ouvido captam o que quer que o portador esteja vendo. A câmera no alto da cabeça, apontando direto para a frente, funciona como um
terceiro olho."
"Então quem quer que tenha atacado o cara veio por trás", declara Marino à guisa de conclusão. "E aconteceu tão rápido que a vítima nem deu meia-volta. Ou isso,
ou foi um franco-atirador. Talvez ele tenha sido atingido por alguma coisa à distância. Tipo um dardo com veneno. Não existem venenos que causam hemorragia? Pode
parecer absurdo, mas essas merdas acontecem. Lembra o espião da KGB que foi espetado com um guarda-chuva com ricina na ponta? Ele estava esperando em um ponto de
ônibus e ninguém viu nada."
"Foi um dissidente búlgaro que trabalhava para a BBC e não é certeza de que foi um guarda-chuva", digo.
"De qualquer forma, a ricina não mata instantaneamente", diz Lucy. "A maioria dos venenos não faz isso. Nem mesmo gás cianídrico. Não acho que ele tenha sido envenenado."
"Isso não está ajudando em nada", retruco.
"Só estou usando minha experiência policial e minhas habilidades dedutivas", diz Marino. "Não é à toa que me chamam de Sherlock." Ele dá um tapinha em seu boné de
beisebol com o grosso dedo indicador.
"Ninguém te chama de Sherlock", vocifera Lucy do banco de trás.
"Isso não está ajudando", repito, contemplando a silhueta avantajada de Marino enquanto dirige, as imensas mãos ao volante, que roça sua pança mesmo quando ele está
no que considera sua forma de combate.
"Não é você que está sempre me dizendo para pensar de forma criativa?" A atitude defensiva endurece seu tom de voz.
"Acho que isso não está ajudando. Unir pontos que podem ser errados é precipitado, e você sabe disso", digo-lhe.
Marino sempre teve tendência a tirar conclusões precipitadas, mas isso piorou desde que aceitou o trabalho em Cambridge e foi trabalhar outra vez para mim. Responsabilizo
por isso a presença militar em nossas vidas, tão constante quanto as aeronaves pesadas voando baixo sobre Dover. De forma mais direta, responsabilizo Briggs. Marino
é ridiculamente fascinado por esse poderoso patologista forense, que também é general do Exército. Minha ligação com os militares nunca teve muita importância para
ele, ou sequer foi reconhecida, nem quando fazia parte de meu passado, nem quando fui reconvocada com status especial depois do Onze de Setembro. Marino sempre ignorou
minhas afiliações ao governo, como se não existissem.
Ele olha direto para a frente e os faróis de um carro que se aproxima iluminam seu rosto, marcado pelo descontentamento e por certa falta de compreensão que fazem
parte de quem ele é. Eu poderia sentir pena dele devido à afeição que não posso negar, mas não agora. Não nestas circunstâncias. Não vou deixar transparecer que
estou aborrecida.
"O que mais você compartilhou com Briggs - além das suas opiniões?", pergunto a Marino.
Quando ele não responde, Lucy o faz. "Briggs viu a mesma coisa que você está prestes a ver", diz ela. "Não foi ideia minha e não fui eu que mandei os e-mails, só
para que fique claro."
"Não mandou que e-mails?" Mas sei exatamente quais e minha incredulidade cresce. Marino enviou provas a Briggs. O caso é meu e Briggs recebeu informação primeiro.
"Ele queria saber", explica Marino, como se isso fosse motivo suficiente. "O que eu ia dizer a ele?"
"Você não devia ter dito nada. Passou por cima de mim. O caso não é dele", respondo.
"Bom, é, sim", diz Marino. "Ele foi designado pelo médico-chefe, o que significa que foi praticamente contratado pelo presidente, então eu diria que isso quer dizer
que ele é superior a todos nesta van."
"O general Briggs não é o legista-chefe de Massachusetts e você não trabalha para ele. Você trabalha para mim." Sou cuidadosa ao dizer isso. Tento parecer razoável
e calma como quando um advogado hostil está tentando me desarmar no banco das testemunhas, como quando Marino está prestes a irromper em um espetáculo inconveniente
de xingamentos em alto e bom som e portas batidas. "O CFC tem jurisdição mista, pode aceitar casos federais em certas situações, e entendo que isso gere confusão.
Somos uma iniciativa conjunta entre os governos estadual e federal, o MIT e Harvard. Compreendo que seja um conceito inédito e complicado, e é por isso que você
devia ter me deixado tratar disso em vez de passar por cima de mim." Tento parecer natural e prática. "O problema de envolver prematuramente o general Briggs é que
as coisas podem adquirir vida própria. Mas o que está feito está feito."
"O que você quer dizer com 'o que está feito'?" Marino parece menos seguro de si. Detecto um tom ansioso e não vou ajudá-lo. Ele precisa pensar a respeito do que
foi feito, porque a culpa é única e exclusivamente dele.
"Qual é a notícia não tão boa?", giro e pergunto a Lucy.
"Dê uma olhada", diz ela. "São as três últimas gravações, inclusive um minuto quando os fones de ouvido foram manuseados pelos paramédicos, pelos policiais e por
mim, quando comecei a examinar o material no laboratório hoje de manhã."
A tela do iPad brilha, viva e colorida, no escuro; toco o ícone do primeiro arquivo de vídeo que Lucy selecionou e começa a reprodução. Vejo o que o morto estava
vendo ontem às 15h04, um galgo preto e branco enroscado em um sofá azul em uma sala de estar com assoalho de pinho e um tapete azul e vermelho.
A câmera se move conforme o homem se desloca, porque ele está usando os fones de ouvido, que estão gravando: uma mesinha de centro coberta de livros e papéis ordenadamente
empilhados e o que parece um desenho de arquitetura ou engenharia em papel vegetal com um lápis em cima; uma janela com venezianas de madeira fechadas; uma escrivaninha
com dois monitores grandes de tela plana, dois MacBooks prateados, um celular conectado a um carregador, possivelmente um iPhone, e um cachimbo de vidro âmbar em
um cinzeiro; um abajur de pé com quebra-luz verde; uma cama de cachorro e brinquedos espalhados. Tenho um vislumbre de uma porta que possui uma fechadura com tranca
e outra deslizante, e na parede há fotografias e pôsteres emoldurados que passam rápido demais para que eu perceba os detalhes. Vou examiná-las mais tarde.
Até aqui não observo nada que me diga quem é o homem ou onde mora, mas fico com a impressão de um apartamento pequeno, ou talvez a casa de alguém que gosta de animais,
tem situação financeira confortável e preocupa-se com segurança e privacidade. O sujeito, presumindo-se que esses sejam sua casa e seu cachorro, é altamente desenvolvido
em termos intelectuais e técnicos, é criativo e organizado, provavelmente fuma maconha e escolheu como animal de estimação um companheiro necessitado, não um troféu,
mas um ser que sofreu maus-tratos e talvez não consiga se defender sozinho. Fico aflita pelo cão e preocupada com o que lhe aconteceu.
É lógico que os paramédicos e a polícia não deixaram um galgo indefeso em Norton's Woods ontem, perdido e abandonado ao tempo de New England. Benton me contou que
estava fazendo onze graus negativos esta manhã em Cambridge e ia nevar antes que a noite caísse. Talvez o cachorro esteja no quartel dos bombeiros, bem alimentado
e cuidado durante todo o dia. Talvez o detetive Law ou algum outro policial tenha levado o animal para casa. Também é possível que ninguém tenha percebido que o
cão pertencia ao homem que morreu. Meu Deus, isso seria horrível.
"O que aconteceu com o galgo?", preciso perguntar.
"Não faço ideia", diz Marino, para minha tristeza. "Ninguém sabia dele até esta manhã quando Lucy e eu vimos o que você está vendo. Os paramédicos não se lembram
de ter visto um galgo correndo solto, não que tenham procurado, mas o portão que conduz a Norton's Woods estava aberto quando eles chegaram lá. Como você provavelmente
sabe, o portão nunca é trancado e fica escancarado boa parte do tempo."
"Ele não vai sobreviver no frio intenso. Como é que as pessoas não perceberam o pobrezinho fora da guia e correndo solto? Porque não consigo imaginar que ele não
tenha corrido pelo parque ao menos por alguns minutos antes de sair pelo portão aberto. O bom senso diria que, quando o dono caiu, o cachorro não fugiu de repente
do bosque para a rua."
"Muita gente tira o cachorro da guia e deixa o animal correr solto em parques como o Norton's Woods", diz Lucy. "Eu faço isso com Jet Ranger."
Jet Ranger é um buldogue velho que não chega a correr exatamente.
"Então talvez ninguém tenha percebido porque aquilo não pareceu fora do comum", acrescenta ela.
"Além disso, acho que estava todo mundo preocupado com um cara caindo morto", Marino anuncia o óbvio.
Vejo residências militares em uma rua mal iluminada, aeronaves resplandecentes e grandes como planetas na escuridão enevoada. Não consigo entender o que estão me
dizendo. Estou surpresa que o galgo não tenha continuado perto do dono. Talvez o cão tenha entrado em pânico ou exista outro motivo para que ninguém tenha reparado
nele.
"O cachorro deve aparecer", continua Marino. "Em um local assim, não vão de jeito nenhum ignorar um galgo vagando sozinho. Meu palpite é que ele está com alguém
da vizinhança ou um estudante. A não ser que o cara tenha sido morto e o assassino tenha levado o cachorro."
"Por quê?", surpreendo-me.
"Como você costuma dizer, precisamos manter a mente aberta", responde ele. "Como podemos saber se quem fez isso não estava observando nas proximidades? E então,
em um momento oportuno, escapou com o cachorro, agindo como se fosse o dono."
"Mas por quê?"
"Podia ser uma prova que levasse ao assassino por algum motivo", sugere ele. "Talvez levasse a uma identificação. Um jogo. Uma brincadeira. Uma reação. Uma lembrança.
Como vou saber? Mas você vai perceber pelos vídeos que, a certa altura, a guia é tirada dele e adivinhe... Ainda não apareceu. Não chegou com os fones de ouvido
nem com o corpo."
O nome do cachorro é Sock. Na tela do iPad, o homem está andando e estalando a língua, dizendo ao cachorro que é hora de sair. "Vamos, Sock", persuade ele em uma
agradável voz de barítono. "Vamos lá, seu preguiçoso, é hora de dar um passeio e fazer cocô." Detecto um leve sotaque, possivelmente britânico ou australiano. Poderia
ser sul-africano, o que seria estranho, uma estranha coincidência, e preciso tirar a África do Sul da cabeça. Concentre-se no que está diante de você, digo a mim
mesma enquanto Sock salta do sofá e percebo que está sem coleira. Sock - um macho, presumo, com base no nome - é magro e tem as costelas ligeiramente à mostra, como
é típico dos galgos, é adulto, provavelmente velho, e uma de suas orelhas é imperfeita, como se já tivesse sido rasgada. Um resgate das pistas de corrida, com certeza,
e me pergunto se o animal tem um microchip. Se for o caso e conseguirmos encontrá-lo, podemos descobrir de onde veio e talvez quem o adotou.
Um par de mãos entra na tela enquanto o sujeito se curva para colocar uma coleira vermelha em torno do pescoço longo e afilado de Sock e reparo no relógio prateado
com taquímetro na moldura; capto um lampejo dourado, um anel de sinete, possivelmente de formatura. Se tiver chegado com o corpo, pode ser útil, porque talvez contenha
alguma gravação. As mãos são delicadas, com dedos finos e pele morena clara, e vislumbro um casaco verde-escuro, calça larga de brim preto e a ponta desgastada dos
tênis de trilha marrons.
A câmera focaliza a parede acima do sofá, os painéis castanhos tortuosos e a parte inferior da moldura de metal de uma fotografia, em seguida surge um pôster ou
uma gravura, quando o homem se levanta e vejo de perto a reprodução de um desenho familiar. Reconheço o esboço de Da Vinci, do século XVI, de um dispositivo com
asas que batem, uma máquina voadora, e recuo alguns anos - quando foi exatamente? No verão anterior ao Onze de Setembro. Levei Lucy a uma exposição na galeria Courtauld,
em Londres, "Leonardo, o inventor", e passamos muitas horas extasiadas, ouvindo palestras de alguns dos mais notáveis cientistas do mundo enquanto examinávamos os
desenhos conceituais de Da Vinci da água, da terra e de suas máquinas de guerra: o parafuso aéreo, o equipamento de mergulho, o paraquedas, o arco e flecha gigante,
o carro autopropelido e o cavaleiro mecânico.
O grande gênio renascentista acreditava que arte é ciência e ciência é arte, e que a solução para todos os problemas pode ser encontrada na natureza se a pessoa
for meticulosa e observadora, se buscar fielmente a verdade. Tentei ensinar essas lições à minha sobrinha durante a maior parte de sua vida. Disse-lhe várias vezes
que somos instruídos por aquilo que está ao nosso redor se formos humildes, calmos e corajosos. O homem que estou vendo no pequeno aparelho que seguro nas mãos possui
as respostas de que preciso. Fale comigo. Conte. Quem é você e o que aconteceu?
Ele caminha em direção a uma porta trancada a chave e uma trava deslizante puxada, então a perspectiva muda de forma abrupta, o ângulo da câmera se altera e me pergunto
se ele ajustou a posição dos fones de ouvido. Talvez não cobrissem as orelhas por inteiro, e agora ele vai ligar a música e sair. Passa por alguma coisa mecânica
de aspecto rudimentar, como uma escultura grotesca feita de restos de metal. Pauso a imagem, mas não consigo enxergar direito o que é e decido que, quando puder
me dar o luxo de perder algum tempo, vou reprisar os vídeos tantas vezes quanto quiser e estudar com cuidado cada detalhe; ou, se necessário, pedir a Lucy que amplie
as imagens. Mas, neste momento, preciso acompanhar o homem e seu cão à propriedade coberta de árvores, que não dista nem um quarteirão da minha casa. Preciso ver
o que aconteceu. Daqui a alguns minutos, ele vai morrer. Mostre e vou entender. Vou descobrir a verdade. Deixe-me cuidar de você.
O homem e o cachorro descem quatro lances de degraus em uma escada mal iluminada e passos leves e rápidos soam de encontro à madeira exposta; os dois saem em uma
rua barulhenta, movimentada. O sol está baixo e os trechos de neve apresentam uma crosta de sujeira preta no topo, o que me faz recordar biscoitos Oreo esmagados;
sempre que o homem olha para baixo, vejo paralelepípedos molhados e asfalto, além da areia e do sal oriundos da remoção da neve. Os carros e pessoas deslocam-se
em movimentos espasmódicos e balançam quando ele vira a cabeça, colhendo informações enquanto caminha; a música toca ao fundo, Annie Lennox no rádio via satélite,
e ouço somente o que pode ser escutado fora dos fones de ouvido, o que é captado pelo microfone inserido no topo da faixa que lhe cinge a cabeça. O volume da música
é alto, o que nunca é bom, pois não se pode ouvir alguém que se aproxime por trás. Se está preocupado com sua segurança, preocupado ao ponto de usar duas trancas
na porta do apartamento e portar uma arma, por que não está preocupado em não ouvir o que se passa ao seu redor?
Mas as pessoas são imprudentes. Mesmo gente razoavelmente cautelosa faz coisas absurdas. Enviam mensagens de texto e leem e-mails ao dirigir ou operar máquinas perigosas,
até mesmo enquanto atravessam uma rua movimentada. Conversam no celular andando de bicicleta, de patins ou mesmo voando. Quantas vezes peço a Lucy para não atender
o telefone no helicóptero; não importa que tenha Bluetooth habilitado e não precise usar as mãos. Vejo o que o homem está vendo e reconheço onde ele está caminhando,
na Concord Avenue, avançando em ritmo bom com Sock, passando por prédios de apartamento de tijolos vermelhos, pelo Departamento de Polícia de Harvard e pelo toldo
vermelho-escuro do Hotel Sheraton Commander, na calçada oposta ao Cambridge Common. Ele mora perto dali, em um prédio antigo com pelo menos quatro andares.
Pergunto-me por que não leva Sock ao Common. É um parque popular para cachorros, mas ele e o galgo passam por estátuas e canhões, postes e carvalhos desfolhados,
bancos e carros estacionados diante dos controles que demarcam a rua. Um labrador amarelo persegue um esquilo gordo e Anne Lennox canta "No more I-love-yous... I
used to have demons in my room at night...". Sou os olhos e ouvidos do homem no momento em que os fones de ouvido estão gravando e não tenho razões para suspeitar
que ele tenha conhecimento da câmera e do microfone escondidos ou sequer tenha em mente uma coisa como essa.
Não fico com a impressão de que ele tem um plano obscuro ou está espionando enquanto passeia com o cachorro. Exceto pelo fato de ter uma pistola Glock semiautomática
e dezoito rodadas de munição nove milímetros sob o casaco verde. Por quê? Talvez fosse um hábito, uma rotina, andar por aí armado. Existem pessoas assim. Que não
pensam duas vezes a respeito. Mas por que ele raspou o número de série da Glock? Ou alguma outra pessoa o fez? Passa por minha mente que os dispositivos de gravação
ocultos embutidos em seus fones de ouvido podem ser um experimento ou um projeto de pesquisa. Cambridge e seus arredores são seguramente a meca das inovações tecnológicas,
um dos motivos pelos quais o Departamento de Defesa, o estado de Massachusetts, Harvard e o MIT concordaram em fundar o CFC na margem norte do rio Charles, em um
prédio de biotecnologia na Memorial Drive. Talvez o homem fosse um estudante de pós-graduação. Talvez fosse um cientista da computação ou engenheiro. Presto atenção
ao que surge na tela do iPad, imagens trêmulas do condomínio Mather Court, um playground, a Garden Street e as lápides inclinadas e desgastadas do Old Burying Ground.
Na Harvard Square, sua atenção se fixa na banca de jornal da Crimson Corner, e ele parece pensar em seguir nessa direção, talvez para comprar um jornal da imensa
seleção que Benton e eu adoramos. Este é nosso bairro, onde zanzamos em busca de café e comida étnica, jornais e livros, terminando com quentinhas e braçadas de
coisas maravilhosas para ler que empilhamos em cima da cama nos fins de semana e feriados em que estou em casa. O New York Times e o Los Angeles Times, o Chicago
Tribune e o Wall Street Journal; para quem não se importa com notícias de um ou dois dias atrás, há os grossos jornais de Londres, Berlim e Paris. Às vezes encontramos
La Nazione e L'espresso, e leio em voz alta a respeito de Florença e Roma, examinamos anúncios de villas para alugar e fantasiamos viver como os moradores locais,
explorar ruínas e museus, o campo italiano e a costa amalfitana.
O homem para na calçada lotada e parece mudar de ideia a respeito de alguma coisa. Ele e Sock trotam até o outro lado da rua, na Massachusetts Avenue agora, e sei
para onde estão indo, ou penso que sei. Eles viram à esquerda na Quincy Street; estão andando mais rápido, e o homem traz um saco plástico na mão como se Sock não
fosse aguentar por mais tempo. Passam pela moderna Biblioteca Lamont e pela restauração georgiana em tijolos do Clube da Faculdade de Harvard e do Museu Fogg, pela
igreja gótica, em pedra, da Nova Jerusalém, então dobram à direita na Kirkland Avenue. Somos nós três. Estou com eles, cortando até a Irving, dobrando à esquerda,
a minutos do Norton's Woods, a minutos da minha casa, ouvindo Five for Fighting no rádio via satélite... "even heroes have the right to bleed..."
Sinto uma sensação de urgência crescente a cada passo, à medida que nos aproximamos da morte do homem e do sumiço do cachorro naquele frio terrível, e quero desesperadamente
que isso não aconteça. Caminho com eles como se os conduzisse para esse desfecho porque sei o que há adiante e eles não; quero detê-los e fazê-los voltar. Então
surge a casa à nossa esquerda, de três andares, branca com venezianas pretas e telhado de ardósia, em estilo federal, construída em 1824 por um transcendentalista
que conhecia Emerson, Thoreau e o Norton da Norton's Anthology e de Norton's Woods. No interior da casa, minha e de Benton, há objetos em madeira e molduras originais,
tetos de gesso com traves expostas e, acima dos patamares da escada principal, janelas de vitrais franceses magníficos com cenas da vida selvagem que se iluminam
como joias ao sol. Há um Porsche 911 na estreita entrada da garagem em tijolos, com gás escapando dos canos de descarga cromados.
Benton está dando ré em seu carro esporte e as lanternas traseiras brilham como olhos flamejantes quando ele freia por causa de um homem e seu cachorro; o homem
tem os fones de ouvido voltados na direção dele, quem sabe admirando o Porsche, um Turbo Cabriolet preto com tração nas quatro rodas, que Benton conserva sempre
lustroso. Pergunto-me se ele vai se lembrar do jovem vestindo um casaco verde volumoso e seu galgo preto e branco, ou se nem chegou a registrar a ocasião, mas conheço
Benton. Ele vai ficar obcecado, talvez tão obcecado pelo homem e seu cão quanto estou, e vasculho minha memória atrás do que fez ontem. No final da tarde, passou
em seu consultório no McLean porque havia se esquecido de levar para casa a pasta contendo o caso do paciente que ia avaliar hoje. Alguns graus de separação, um
jovem e seu cão velho, que estão prestes a se separar para sempre, e meu marido sozinho no carro dirigindo-se ao hospital para pegar uma coisa que esqueceu. Vejo
tudo isso se desdobrar como se eu fosse Deus, e, se é assim que é ser Deus, deve ser um horror. Sei o que vai acontecer e não posso fazer nada para impedir.
3
Percebo que a van parou e Marino e Lucy estão saltando. Estacionamos diante do Terminal Aéreo Civil John B. Wallace e permaneço no lugar. Continuo a ver o que está
passando na tela do iPad enquanto Lucy e Marino começam a descarregar meus pertences.
O ar frio entra pelo porta-malas aberto e me intrigo com a decisão do homem de levar Sock para passear em Norton's Woods, na Mid-Cambridge, quase Somerville. Por
que ali? Por que não mais perto de onde morava? Ele ia encontrar alguém? Um portão preto de ferro parcialmente aberto preenche a tela; a mão dele o abre mais e percebo
que colocou luvas pretas grossas, que parecem de motociclista. Suas mãos estão frias ou há outro motivo? Talvez ele tenha um plano sinistro. Talvez pretenda usar
a arma. Imagino-me puxando para trás o cão de uma pistola nove milímetros e apertando o gatilho vestindo luvas volumosas e me parece ilógico.
Ouço-o sacudir o saco plástico para abri-lo, então o vejo quando ele olha para baixo e vislumbro mais alguma coisa, o que parece ser uma caixinha de madeira. Uma
caixa de fumo, penso. Algumas são feitas de cedro e têm até mesmo um minúsculo higrômetro dentro, como uma caixa de charutos, e recordo o cachimbo de vidro âmbar
em cima da escrivaninha no apartamento. Talvez ele goste de passear com o cachorro em Norton's Woods por ser afastado e em geral muito reservado, e de pouco interesse
para a polícia, a menos que haja algum evento VIP ou de alto nível que exija segurança. Talvez goste de ir até lá para fumar maconha. Ele assovia para Sock, curva-se,
retira a coleira do cão e o ouço dizer: "Ei, rapaz, lembra do nosso lugar? Me mostre". Então diz mais alguma coisa, que soa abafada. Mal consigo entender. "E para
você", ele parece dizer, seguido de "Quer mandar um...?" Ou "Manda um...?". Depois de reproduzir duas vezes, continuo sem entender o que ele diz, e talvez seja por
ele estar curvado, falando pra dentro do colarinho do casaco.
Com quem está conversando? Não vejo ninguém por perto, somente o cachorro e as mãos enluvadas, então o ângulo da câmera muda quando o homem endireita o corpo e vejo
o parque outra vez, uma paisagem de árvores e bancos, e, a um lado, um caminho de pedras próximo à construção com o telhado verde de metal. Vislumbro pessoas e concluo,
pela maneira como estão agasalhadas, que não são os convidados do casamento, só estão passeando pelo parque, assim como o homem. Sock trota em direção aos arbustos
e o dono se embrenha ainda mais na agradável propriedade arborizada, com olmos antigos e bancos verdes.
Ele assovia e diz: "Ei, rapaz, me segue".
Em áreas sombreadas ao redor de grupos compactos de rododendros, a neve está alta e remexida, com folhas mortas, pedras e galhos quebrados no meio, o que me faz
morbidamente lembrar sepulturas clandestinas, pele esfolada e ossos envelhecidos, roídos e espalhados. Ele está explorando, olhando ao redor, e a câmera oculta para
no telhado verde de metal em três níveis da construção em vidro e madeira que consigo enxergar da varanda ensolarada de casa. Quando o homem gira a cabeça, vejo
no primeiro andar uma porta que conduz ao exterior, e a câmera torna a parar em uma mulher de cabelo grisalho do lado de fora, diante da porta. Ela veste um terninho
e um longo casaco de couro marrom, e está falando ao telefone.
O homem assovia e produz um som rascante à medida que caminha sobre a trilha de cascalho em direção a Sock, para recolher o que o cão deixou... "And this emptiness
fills my heart...", canta Peter Gabriel. Penso no jovem soldado de mesmo nome que morreu queimado em seu Humvee e sinto seu cheiro, visto que os odores fétidos ainda
estão presos no fundo do meu nariz. Penso em sua mãe, em sua tristeza e raiva ao telefone quando me ligou de manhã. Patologistas forenses nem sempre recebem agradecimentos
e, por vezes, as pessoas agem como se eu fosse o motivo de seus entes queridos estarem mortos. Não leve para o lado pessoal, tento lembrar.
As mãos enluvadas tornam a agitar o saco plástico dobrado, e então alguma coisa acontece. A mão enluvada do homem voa até a cabeça e ouço o baque dela atingindo
os fones de ouvido como se golpeasse alguma coisa, então ele exclama: "O que...? Ei...!", como se estivesse sem fôlego e assustado. Ou talvez seja um grito de dor.
Mas não vejo nada nem ninguém, só o bosque e figuras distantes. Não vejo o cachorro e não vejo o sujeito. Volto a gravação e reproduzo-a novamente. A mão preta enluvada
invade a tela de repente e ele deixa escapar: "O que...?" e depois "Ei...!". Concluo que ele parece atordoado e angustiado, como se alguma coisa o tivesse pego de
surpresa.
Reproduzo a gravação mais uma vez, tentando ouvir alguma outra coisa, e o que detecto em seu tom é protesto e talvez medo e, sim, dor, como se alguém tivesse lhe
dado uma cotovelada ou se chocado contra ele com força em uma calçada movimentada. Então o topo das árvores nuas precipita-se para o alto e gira na tela. Lascas
de ardósia aproximam-se quando ele cai com um baque; ou está deitado de costas ou os fones de ouvido se soltaram. A tela está parada em uma imagem contendo galhos
nus e céu cinzento, e então a borda de um longo casaco preto passa fazendo barulho e ondulando quando alguém caminha com rapidez. Ouço outra pancada alta e a imagem
torna a mudar. Galhos nus e céu cinzento, mas galhos diferentes mostrando-se através das ripas de um banco verde. Acontece muito rápido, incrivelmente rápido, em
seguida as vozes e os sons das pessoas ficam mais altos.
"Alguém ligue para a emergência!"
"Acho que ele não está respirando."
"Estou sem telefone. Liguem para a emergência!"
"Alô? Tem... hã, sim, em Cambridge. É, Massachusetts. Meus Deus! Depressa, depressa! Eles me colocaram em espera. Meu Deus, depressa! Não acredito nisso. É, é, um
homem, ele desmaiou e parece não estar respirando... Em Norton's Woods, na esquina da Irving com a Bryant... Sim, alguém está tentando ressuscitação. Vou ficar esperando...
estou esperando. Sim, quer dizer, não... Ela quer saber se ele continua sem respirar. Não, não, ele não está respirando! Não está se mexendo. Ele não está respirando!...
Eu realmente não vi, só olhei e percebi que ele estava no chão, de repente ele estava no chão...
Aperto pause e salto da van; faz frio e venta muito quando entro depressa no terminal. É pequeno, com banheiros, uma área de espera e uma televisão velha ligada.
Por um momento, assisto à Fox News e adianto o vídeo no iPad enquanto Lucy se debruça na recepção e paga a taxa aeroportuária com cartão de crédito. Continuo a contemplar
as imagens dos galhos desfolhados que aparecem por entre as ripas da madeira pintada de verde, certa, agora, de que os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco,
a câmera voltada direto para cima enquanto o rádio toca... "Dark lady laughed and danced..." A música está mais alta porque os fones não estão pressionados contra
a cabeça do homem e me parece absurdamente incongruente estar ouvindo Cher.
As vozes fora da câmera soam urgentes e agitadas; ouço o som de pés e o ruído distante de uma sirene enquanto minha sobrinha conversa com um homem mais velho, um
piloto de caça aposentado que agora trabalha meio período em Dover como operador fixo da base, ele alegra-se em contar.
"No Vietnã? Então devia ser o quê, um F-4?" Lucy conversa com ele.
"Ah, isso, e o Tomcat. Foi o último que pilotei. Mas os Phantoms ainda ficaram por aí, sabe, até a década de 1980. Você constrói essas máquinas direito e depois
não acredita no quanto elas duram. Olha há quanto tempo os C-5 estão aí. E ainda existem alguns Phantoms em Israel, acho. Talvez no Irã. Hoje, os que sobraram nos
Estados Unidos são usados para voos não tripulados, como aviões teleguiados. Um avião assim bom. Você já viu algum?"
"Em Belle Chasse, Louisiana, na Estação Aeronaval. Levei meu helicóptero até lá para ajudar no Katrina."
"Eles têm feito experiências no combate aos furacões usando os Phantoms para voar dentro do olho." O homem balança a cabeça.
A tela do iPad fica preta. Os fones de ouvido não estavam mais gravando, e estou convencida de que quando a vítima caiu no chão devem ter acabado a alguma distância
embaixo do banco. O sensor de movimento não estava detectando atividade suficiente para impedi-lo de ficar inativo, o que é curioso. Como exatamente os fones de
ouvido foram arremessados e acabaram onde acabaram? Talvez alguém os tenha chutado para fora do caminho. Pode ter sido acidental, provocado por uma pessoa tentando
ajudar, ou pode ter sido premeditado pela pessoa que estava gravando o sujeito em segredo, que o estava espreitando. Penso na borda do casaco preto ondulando de
passagem e avanço de forma intermitente, procurando as próximas imagens, tentando ouvir sons, mas não há nada até as 16h37, quando as árvores balançam loucamente
e o céu está escurecendo; mãos expostas agigantam-se e papel estala quando os fones de ouvidos são colocados dentro de um saco marrom; ouço uma voz dizer: "... Colts
o tempo todo". E outra voz: "Os Saints vão levar. Eles têm...". Depois a escuridão turva, vozes abafadas e mais nada.
Ao encontrar o controle remoto da TV no braço de um sofá no terminal, troco para a CNN, ouço o noticiário e leio as legendas na parte inferior da tela, mas não há
uma palavra a respeito do homem nos vídeos. Penso sobre Sock outra vez. Onde está o cachorro? É inaceitável que ninguém saiba. Fito Marino quando entra na área de
espera, fingindo não me ver por estar amuado, ou quem sabe arrependido pelo que fez e envergonhado. Recuso-me a lhe perguntar alguma coisa e tenho a sensação de
que o cão desaparecido é de alguma forma culpa dele, de que tudo é culpa de Marino. Não quero perdoá-lo por ter enviado os vídeos por e-mail para Briggs, por ter
conversado com ele primeiro. Se, para variar, não o perder, talvez aprenda a lição, mas o problema é que nunca consigo me convencer a manter uma posição contra ele,
contra qualquer pessoa de quem goste. É a culpa católica. Já estou amolecendo em relação a ele, minha determinação está ficando mais fraca. Sinto isso acontecer
enquanto procuro canais na televisão, em busca de notícias que possam prejudicar o CFC, e ele caminha até Lucy, mantendo as costas voltadas para mim. Não quero brigar
com Marino. Não quero ferir seus sentimentos.
Afasto-me da TV, convencida, ao menos por enquanto, de que a imprensa ignora o corpo que me espera no necrotério de Cambridge. Uma coisa tão sensacional como essa
seria manchete, concluo. As mensagens estariam chegando sem parar em meu iPhone. Briggs teria sido informado a respeito e dito alguma coisa. Até mesmo Fielding teria
me alertado. Só que não tive notícia absolutamente nenhuma de Fielding a respeito de nada e tento telefonar para ele outra vez. Ele não atende o celular e não está
no escritório. É claro que não. Fielding nunca trabalha até tão tarde, pelo amor de Deus. Tento encontrá-lo em sua casa em Concord e sou novamente atendida pelo
correio de voz.
"Jack? É Kay", deixo outra mensagem. "Estamos prestes a decolar de Dover. Talvez você possa enviar uma mensagem de texto ou um e-mail me colocando a par da situação.
O detetive Law não retornou a ligação, imagino. Ainda estamos esperando pelas fotografias? E você ouviu alguma coisa sobre um cão desaparecido, um galgo? O cão da
vítima, chamado Sock, visto pela última vez em Norton's Woods." Minha voz soa ríspida. Fielding está fugindo de mim, e não é a primeira vez. Ele é mestre em desaparecimentos,
e tem de ser. Já os encenou o suficiente. "Bom, vou tentar fazer contato novamente quando aterrissar. Imagino que você vá nos encontrar no escritório, entre nove
e meia e dez. Enviei mensagens a Anne e Ollie. Garanta que eles estejam lá. Precisamos cuidar disso esta noite. Informe-se com a polícia de Cambridge sobre o cachorro.
Ele pode ter um microchip..."
Parece bobagem entrar em detalhes excessivos a respeito de Sock. Que diabos Fielding ia saber sobre o animal? Ele não ia se dar o trabalho de ir até a cena, e Marino
está certo. Alguém já deve ter ido.
O Bell 407 de Lucy é preto com vidro escuro matizado na parte traseira. Ela destranca as portas e o compartimento de bagagem enquanto o vento golpeia a rampa.
Uma biruta aponta rigidamente para o norte, como um cone de trânsito horizontal, e isso é bom e ruim. O vento vai continuar na nossa cauda, assim como a frente da
tempestade, chuvas pesadas misturadas com granizo e neve. Marino começa a carregar minha bagagem enquanto Lucy contorna o helicóptero, verificando as antenas, os
orifícios de pressão estática, as pás do rotor, os flutuadores de emergência e as garrafas de nitrogênio para inflá-los, em seguida o estabilizador da cauda em liga
de alumínio e sua caixa de marchas, a bomba hidráulica e o reservatório.
"Se alguém estava espionando, gravando o cara em segredo, e percebeu que ele estava morto, então tem alguma coisa a ver com isso", digo a Lucy, do nada. "Então não
seria de esperar que essa pessoa tivesse deletado à distância os arquivos de vídeo gravados pelo fone de ouvido, ou pelo menos se livrado deles no disco rígido e
no cartão SD? Não ia querer se certificar de que não encontrássemos nenhuma gravação e de que ficássemos sem pista nenhuma?"
"Depende." Ela agarra uma alça na fuselagem, insere a ponta da bota em um degrau embutido e sobe.
"E se fosse você que estivesse fazendo isso?", pergunto.
"Se fosse eu?" Ela abre uma tranca e um painel com revestimento leve de alumínio. "Se eu achasse que nada de significativo ou incriminador tivesse sido gravado,
não teria deletado." Usando uma pequena mas potente lanterna, ela inspeciona o motor e seus encaixes.
"Por que não?"
Antes que ela consiga responder, Marino caminha até mim e diz para ninguém em particular: "Tenho que ir ao banheiro. Se alguém mais tiver que ir, agora é a hora".
Como se fosse o comissário nos lembrando de que não há banheiro no helicóptero. Está tentando reparar o erro.
"Obrigada, estou bem", digo, e ele se afasta pela rampa escura de volta ao terminal.
"Se fosse eu, isso é o que eu faria depois que ele estivesse morto", continua Lucy, enquanto a luz forte desloca-se sobre mangueiras e tubulações, e ela se certifica
de que não há nada frouxo ou danificado. "Eu me conectaria à webcam e faria imediatamente o download dos arquivos de vídeo. Se não visse nada que me preocupasse,
não interferiria."
Ela sobe mais para verificar o rotor principal, seu mastro, seu disco oscilante, e espero até que retorne à pista de decolagem para perguntar: "Por que não?".
"Pense nisso."
Sigo Lucy ao redor do helicóptero, para que ela possa subir e verificar o outro lado. Parece quase divertida com minhas perguntas, como se fossem óbvias.
"Se fossem deletados depois da morte dele, então outra pessoa teria feito isso, certo?", Lucy diz, verificando por baixo da coberta do motor, a luz esquadrinhando
atentamente.
Então ela torna a descer.
"É claro que ele não poderia fazer isso depois de morto." Espero para responder porque ela poderia se machucar ao escalar o helicóptero, especialmente estando lá
em cima, perto do mastro do rotor. Não quero que se distraia.
"Então, é por isso que você deixaria os vídeos se estivesse espionando o sujeito e soubesse que ele estava morto ou fosse a responsável pela morte dele?"
"Se eu estivesse espionando, se estivesse seguindo o homem para matar, sim, eu deixaria as últimas gravações de vídeo, e também não tiraria os fones de ouvido da
cena." Ela torna a emitir a luz brilhante ao longo da fuselagem. "Porque se as pessoas o viram usando os fones de ouvido no parque e a caminho dele, por que teriam
desaparecido? Os fones são bem grandes e perceptíveis."
Caminhamos até o nariz do helicóptero.
"E se eu levasse os fones de ouvidos, teria que levar o rádio via satélite também, procurar dentro do bolso do casaco e tirar dali, teria que gastar um tempo e ter
todo esse trabalho depois que o cara já estava no chão, esperando que ninguém me visse. E os arquivos anteriores baixados em algum lugar, supondo que a espionagem
venha acontecendo há certo tempo? Como isso se explica se não aparecem aparelhos de gravação e encontramos gravações em um PC ou servidor em alguma parte? Você sabe
o que dizem." Ela abre um painel de acesso acima do tubo de Pitot e lança a luz lá dentro. "Para cada crime, existem dois - o ato em si, e depois o que você faz
para encobri-lo. Ser esperto para abandonar os fones de ouvido e os arquivos de vídeo, para deixar que os policiais ou pessoas como você e eu imaginem que ele estava
gravando a si mesmo, que é o que Marino acredita, mas eu duvido."
Ela reconecta a bateria. A justificativa para desconectar sempre que deixa o helicóptero por qualquer período de tempo é que se alguém conseguisse entrar na cabine
e por acaso manuseasse o acelerador e os comutadores poderia acidentalmente dar partida no motor. Mas não se a bateria estiver desconectada. Independentemente da
pressa, Lucy sempre dá uma geral antes do voo, especialmente se tiver deixado a aeronave sem assistência, mesmo que em uma base militar. Mas não escapa à minha atenção
o fato de ela estar verificando tudo mais a fundo que de costume, como se desconfiasse de alguma coisa ou estivesse apreensiva.
"Está tudo absolutamente certo?", pergunto.
"Estou me certificando disso", diz ela, e sinto mais fortemente sua distância. Percebo seus segredos.
Lucy não confia em ninguém. Nem deveria. Eu também não deveria ter confiado em certas pessoas, voltando no tempo. Pessoas que manipulam, mentem e alegam que fazem
isso por uma causa. A causa certa, uma causa piedosa ou justa. Noonie Pieste e Joanne Rule foram mortas na cama, provavelmente sufocadas com um travesseiro. Por
isso não houve resposta dos tecidos aos ferimentos. Os estupros, os cortes de machete e talhos feitos com vidro quebrado, e até mesmo as cordas que as amarravam
quando foram presas às cadeiras, tudo depois da morte. Uma causa piedosa, uma causa justa na mente dos responsáveis. Um sofrimento inconcebível, e eles se safaram.
Até hoje. Não pense nisso. Concentre-se no que está diante de você, não no passado.
Abro a porta da frente e subo, o vento soprando forte. Contornando o coletivo e o cíclico e me acomodando no assento esquerdo, aperto meu cinto de quatro pontos
enquanto ouço Marino abrir a porta atrás de mim. Ele é barulhento e grande, e sinto o helicóptero acomodar-se a seu peso quando ele sobe na parte de trás, onde sempre
se senta. Mesmo quando Lucy voa apenas com ele como passageiro, Marino não tem permissão para ir na frente, onde há controles duplos que ele pode empurrar, golpear
ou usar como encosto para o braço porque não pensa. Ele simplesmente não pensa.
Lucy entra, dá início a outra verificação pré-voo e eu a auxilio, segurando a lista, que repassamos juntas. Nunca tive desejo de pilotar as várias aeronaves que
minha sobrinha já possuiu ao longo dos anos, nem de andar em suas motocicletas ou dirigir seus carros italianos velozes, mas sou ótima copiloto, habilidosa com mapas
e aviônica. Sei colocar os rádios nas frequências necessárias, inserir informações no transponder ou no sistema de voo. Se surgisse uma emergência, eu provavelmente
conseguiria levar o helicóptero em segurança até o chão, mas não gostaria disso.
"Comutadores suspensos na posição desligado", continuo a percorrer a lista.
"Sim."
"Disjuntores em posição."
"Sim." Os dedos ágeis de Lucy tocam tudo o que ela verifica enquanto percorremos a lista plastificada.
Ela liga por um instante a bomba de reforço e gira o acelerador para voo lento.
"Livre à direita", diz, enquanto olha por sua janela lateral.
"Livre à esquerda", digo, enquanto olho para a rampa escura, para o pequeno prédio com as janelas iluminadas e um Piper Cub amarrado a uma distância segura em meio
às sombras, seu oleado balançando ao vento.
Lucy pressiona o botão de partida; a pá do rotor principal começa a girar de forma lenta, pesada, batendo cada vez mais rápido como uma pulsação, e penso no sujeito.
Penso em seu medo, no que detectei em suas últimas palavras.
"O que...? Ei...!"
O que ele sentiu? O que viu? A parte inferior de um casaco preto, a borda solta passar farfalhando. O casaco de quem? Um sobretudo de lã ou uma capa de chuva? Não
era pele. Quem estava usando o casaco longo e preto? Alguém que não parou para ajudá-lo.
"O que...? Ei...!" Um grito assustado de dor.
Repasso várias vezes a imagem na mente. O ângulo da câmera baixa de repente, depois se fixa nos galhos nus e no céu cinzento, então a borda do longo casaco preto
passa pela tela por um instante, talvez um segundo. Quem passaria por alguém precisando de socorro como se fosse um objeto inanimado, como uma pedra ou um tronco
de madeira? Que espécie de ser humano ignoraria alguém que agarra o peito e cai? Possivelmente a pessoa que provocou isso. Ou alguém que não queria se envolver por
algum motivo. Como testemunhar um acidente ou um assalto e se afastar correndo para não tomar parte na investigação. Um homem ou uma mulher? Vi sapatos? Não, só
a bainha ou a borda do casaco ondulando, depois outro som semelhante a um baque e a imagem é substituída por árvores desfolhadas distintas, aparecendo através da
parte de baixo de um banco pintado de verde. A pessoa que vestia o casaco preto longo chutou os fones de ouvido para baixo do banco para que não gravassem alguma
coisa que fez?
Preciso examinar os vídeos com mais atenção, mas não posso fazer isso agora. O iPad está atrás e não há tempo. As pás golpeiam o ar com rapidez e o gerador está
on-line. Lucy e eu colocamos nossos fones. Ela aciona mais interruptores no alto, o controle da aviônica, os instrumentos de voo e navegação. Giro o botão do sistema
de comunicação interna para a posição "tripulação", de forma que Marino não possa nos ouvir e não possamos ouvi-lo enquanto Lucy fala com o controlador de tráfego
aéreo. Os estroboscópios, o pulso e as luzes de aterrissagem noturna brilham na pista, pintando-a de branco enquanto esperamos que a torre nos libere para a decolagem.
Inserindo os dados de destino no GPS touch screen, no indicador cartográfico numérico e no sistema de voo, corrijo os altímetros. Verifico se o indicador digital
de combustível coincide com o medidor, executando a maioria das coisas pelo menos duas vezes, porque Lucy acredita em redundância.
A torre nos libera e voamos devagar até a pista; ganhamos altura rumo a nosso curso nordeste, cruzando o rio Delaware a mil e cem pés de altura. A água está escura
e encrespada pelo vento, como metal fundido fluindo em abundância. As luzes em terra piscam através das árvores como pequenas fogueiras.
4
Mudamos nossa direção, desviando rumo à Filadélfia porque a visibilidade se deteriora mais perto da costa. Aperto o botão do sistema de comunicação interna para
falar com Marino.
"Tudo bem aí atrás?" Estou mais calma agora, preocupada demais com o casaco preto longo e a exclamação assustada do homem para ficar irritada com Marino.
"É mais rápido cortar caminho por New Jersey." Ele sabe onde estamos porque há um mapa de bordo em uma tela de vídeo no compartimento do passageiro.
"Nevoeiro e chuva gelada, condições IFR em Atlantic City. E não é mais rápido", contesta Lucy. "Vamos ficar em 'tripulação' a maior parte do tempo para eu poder
me ocupar do acompanhamento de voo."
Marino é cortado da conversa novamente enquanto somos transferidos de uma torre à seguinte. O mapa secional de Washington está aberto em meu colo; insiro um novo
destino no GPS, Oxford, Connecticut, para uma eventual parada para abastecer, e monitoramos o tempo no radar, observando os sólidos blocos verdes e amarelos avançarem
sobre nós provenientes do Atlântico. Podemos acelerar, mergulhar e evitar as tempestades, diz Lucy, desde que nos mantenhamos afastados do mar e o vento continue
a nos favorecer, aumentando nossa velocidade em relação ao solo para o que, neste momento, são impressionantes duzentos e oitenta e dois quilômetros por hora.
"Como você está?" Prossigo com meu rastreamento em busca de torres de celular e outras aeronaves.
"Vou melhorar quando chegarmos aonde estamos indo. Tenho certeza de que vamos ficar bem e conseguir escapar dessa confusão." Ela aponta para a tela do radar meteorológico.
"Mas, se houver uma sombra de dúvida, vamos descer."
Ela não teria ido me buscar se achasse que poderíamos passar a noite em algum campo em um lugar qualquer. Não estou preocupada. Talvez não tenha restado espaço em
mim para me preocupar com mais nada.
"E no geral? Como você está?", pergunto, tocando o lábio. "Tenho pensado muito em você nas últimas semanas." Tento fazer Lucy falar.
"Sei o quanto é difícil se adaptar nestas circunstâncias", diz ela. "Sempre que achamos que você vai voltar, então paramos de pensar nisso."
Era a terceira vez que o pagamento da minha bolsa de estudos foi adiado por um assunto urgente. Dois helicópteros derrubados em um só dia no Iraque com vinte e três
mortos. O assassinato em massa em Fort Hood. Mais recentemente, o terremoto no Haiti. Os médicos-legistas das Forças Armadas ficaram de prontidão. Ninguém podia
ser dispensado, e Briggs não me liberava de meu programa de treinamento. Há algumas horas, tentou mais uma vez adiar minha partida, sugerindo que eu continuasse
em Dover. Como se não quisesse que eu fosse para casa.
"Pensei que íamos chegar a Dover e descobrir que você tinha outra semana, duas, um mês", acrescenta Lucy. "Mas acabou."
"Aparentemente, eles cansaram de mim."
"Vamos esperar que você não chegue em casa só para dar meia-volta e voltar."
"Já passei nas provas. Eu terminei. Tenho uma repartição para administrar."
"Alguém precisa administrar. Isso é certo."
Não quero ouvir mais comentários desagradáveis sobre Jack Fielding.
"E as coisas vão bem fora isso?", pergunto.
"A garagem está quase pronta, grande o suficiente para três carros, mesmo com a baia de lavagem. Supondo que vocês estacionem um atrás do outro." Ela inicia um relatório
da construção, fazendo-me lembrar do quanto me desliguei do que está acontecendo em minha própria casa. "O piso emborrachado foi colocado, mas o sistema de alarme
não está pronto. Eles não iam perder tempo com arrombadores, mas eu disse que era necessário. Infelizmente, uma das antigas janelas de vidro ondulado original não
sobreviveu à modernização. Então, você tem um pouco de brisa na garagem no momento. Sabia de tudo isso?"
"Benton está no comando."
"Bom, ele tem andado ocupado. Você tem a frequência de Millville? Acho que é um-dois-três-vírgula-seis-cinco."
Verifico o mapa secional, confirmo a frequência e a insiro em Comm 1. "Como você está?", tento outra vez.
Quero saber o que vou encontrar ao chegar em casa, além do morto que está me esperando na geladeira do necrotério. Lucy não vai me dizer como vai e está querendo
dizer que Benton anda ocupado. Quando diz alguma coisa assim, não é realmente o quer dizer. Ela está tensa. Vigia os instrumentos, as telas do radar e o que está
ocorrendo fora da cabine de forma obsessiva, como se esperasse entrar em um combate aéreo, ser atingida por um raio ou ter uma falha mecânica. Há alguma coisa errada
com ela, ou talvez eu só esteja irritada.
"Ele está com um caso grande", continuo. "Muito ruim."
Ambas sabemos a que estou me referindo. Johnny Donahue está em todos os noticiários. O paciente do McLean e aluno de Harvard que na semana passada confessou ter
matado um menino de seis anos com uma pistola de pregos. Benton acredita que a confissão seja falsa e os policiais e o promotor público estão descontentes com ele
por isso. As pessoas querem que a confissão seja verdadeira para não precisar pensar que alguém assim continua solto. Eu gostaria de saber como foi a avaliação de
hoje quando visualizo o Porsche preto de Benton dando ré na entrada de nossa garagem no vídeo que acabei de ver. Ele estava a caminho do McLean para pegar a pasta
do caso de Johnny Donahue quando um jovem e um galgo passaram por nossa casa. Alguns graus de separação. A teia humana conectando a todos nós, conectando a todos
na Terra.
"Vamos manter um-dois-sete-vírgula-três-cinco em Comm 2 para poder monitorar Filadélfia", diz Lucy, "mas vou tentar ficar fora da Classe B deles. Acho que conseguimos,
a menos que esse troço nos empurre com mais força a partir da costa."
Ela aponta para as formas verdes e amarelas na tela do radar meteorológico via satélite, que mostram a precipitação se aproximando, como se tentasse nos intimidar
a fim de seguirmos para noroeste, rumo ao horizonte claro do centro da Filadélfia, voando de encontro aos arranha-céus.
"Eu vou bem", ela então diz. "Quem não está é ele." Ela aponta o polegar em direção à parte de trás do helicóptero, pensando em Marino. "Dá pra ver que você está
chateada. O que ele ia fazer além de ser a pessoa de sempre?"
"Você ouviu quando ele conversou com Briggs?"
"Isso foi em Wilmington. Eu estava ocupada pagando pelo combustível."
"Ele não devia ter telefonado."
"É o mesmo que dizer ao Jet Ranger para não babar quando mostro o saco de biscoitos. É normal Marino dar com a língua nos dentes para Briggs, para se exibir. Por
que você está mais surpresa que o habitual?" Lucy pergunta como se já soubesse a resposta, como se estivesse sondando, procurando por alguma coisa.
"Talvez por isso ter causado um problema pior que o habitual." Conto-lhe que Briggs queria que o corpo fosse transportado para Dover.
Explico que o legista-chefe das Forças Armadas está retendo informações, ou ao menos desconfio que esteja escondendo de mim alguma coisa importante. Provavelmente
por causa de Marino, digo. Por causa do que ele conseguiu provocar ao passar por cima de mim.
"Acho que não é bem assim", diz Lucy enquanto seu número de cauda é chamado.
Ela pressiona o botão do rádio em seu cíclico e atende; enquanto conversa com o acompanhamento de voo, insiro a frequência seguinte. Saltamos de um espaço aéreo
a outro, as formas no radar meteorológico agora na maioria amarelas e nos perseguindo a partir do sudeste, indicando chuvas fortes que, a esta altitude, vão gerar
condições perigosas como partículas de água super-resfriada que atingem as bordas dianteiras das pás do rotor e congelam. Observo a umidade no vidro Plexiglas dianteiro
e não vejo nada, nem uma gota, enquanto me pergunto a que Lucy está se referindo. O que não é bem assim?
"Você percebeu o que havia no apartamento dele?", soa a voz dela em meu fone de ouvido e suponho que esteja se referindo ao morto e ao que vi nos vídeos.
"Você disse que não é bem assim." Insisto no primeiro ponto. "Do que está falando?"
"Não queria tocar no assunto na frente do Marino. Ele não percebeu e de qualquer forma não saberia o que é; não chamei sua atenção porque queria conversar com você
e não tenho certeza se ele deveria tomar conhecimento disso, ponto final."
"Não chamou minha atenção para quê?"
"Meu palpite é que Briggs não precisou que chamassem a atenção dele", continua Lucy. "Teve muito mais tempo para examinar os vídeos que você, e ele, ou quem quer
que tenha visto os vídeos, teria reconhecido a geringonça de metal perto da porta, que parece um réptil assustador de seis pernas, soldado com fios, peças e partes
compostas, mais ou menos do tamanho de uma máquina de lavar em cima de uma secadora. Foi captado pela câmera por um segundo quando o homem e Sock saíram a caminho
de Norton's Woods. Não pode ter passado despercebido a você, de todas as pessoas."
"Captei um vislumbre do que pensei que fosse uma escultura de metal grosseira." Obviamente, não entendi a relação que ela fez. Uma relação importante.
"É um robô, e não um robô qualquer", informa Lucy. "Um protótipo desenvolvido para as Forças Armadas, o que deveria ser um PackBot tático para as tropas no Iraque;
então outro objetivo criativo foi sugerido e fracassou notória e completamente."
Um lampejo de reconhecimento e um sentimento sinistro começam a abrir caminho entre as minhas entranhas, apertando meu peito, gerando conscientização, em seguida
uma lembrança.
"Esse modelo em particular não durou muito tempo", continua ela, e acho que sei ao que está se referindo.
MORT. Transporte de Remoção Operacional Funerária. Deus do céu.
"Nunca chegou a entrar em funcionamento e está obsoleto. Foi substituído por robôs com pernas, biologicamente inspirados, que carregam fardos pesados em terreno
difícil ou escorregadio", diz ela. "Como o quadrúpede chamado BigDog que está no YouTube. Aquela coisa consegue carregar centenas de quilos o dia inteiro nas piores
condições imagináveis, salta como um cervo e recupera o equilíbrio quando tropeça, escorrega ou leva um chute."
"MORT", vou em frente e digo. "Por que ele teria um PackBot como um MORT em seu apartamento? Não estou entendendo."
"Você viu o robô pessoalmente na época, quando começou o debate sobre ele em Capitol Hill? E você está entendendo. É disso mesmo que estou falando."
"Nunca vi um MORT pessoalmente." Vi o robô somente em demonstrações de vídeo e entrei em mais de uma discussão sobre seu uso, especialmente com Briggs. "Por que
ele teria uma coisa dessas?", torno a perguntar.
"Assustador. Como uma formiga mecânica gigante, movida a gasolina", diz ela. "Parece uma motosserra quando anda devagar com aquelas pernas curtas, desajeitadas,
com dois conjuntos de garras na frente, como Edward Mãos de Tesoura. Se visse aquilo vindo na sua direção, você ia correr como louca ou atirar uma granada nele."
"Mas no apartamento dele? Por quê?" Me lembro de demonstrações que achei horríveis e discussões acaloradas que se tornaram brigas desagradáveis com colegas, inclusive
Briggs no AFMES, no Walter Reed e no Russell Senate Office Building.
MORT. O epítome da automação equivocada que se tornou fonte de controvérsia em inteligência militar e médica. A péssima ideia não foi a tecnologia, e, sim, a sugestão
de como usá-la. Recordo uma manhã quente de verão em Washington, o calor subindo de uma calçada lotada de escoteiros excursionando pela capital enquanto Briggs e
eu discutíamos. Estávamos com calor em nosso uniforme, frustrados e estressados, e me lembro de ter passado pela Casa Branca, com gente por toda parte, imaginando
o que viria a seguir. Que outras desumanidades a tecnologia ofereceria? E isso foi há quase uma década, a Idade da Pedra comparada aos dias atuais.
"Tenho certeza - na realidade, mais que certeza - de que era o que tinha no apartamento do cara", diz Lucy. "E não se compra uma coisa dessas no eBay."
"Talvez seja uma maquete", sugiro. "Um fac-símile."
"De jeito nenhum. Quando dei zoom, vi a combinação de partes em detalhes, algumas gastas e rompidas pelo uso, provavelmente devido aos testes do setor de Pesquisa
e Desenvolvimento em terreno difícil; ele ficou um pouco arranhado. Vi até os conectores de fibra óptica. MORT não era um artefato sem fio, o que era só uma das
muitas coisas erradas nele. Não era o que estão fazendo hoje com os robôs autônomos que têm computadores internos e recebem informação através de sensores controlados
por unidades usadas por seres humanos, em vez de ficarem se arrastando em volta de uma mala Pelican no meio do caminho. É como os caras do Exército estão fazendo
para que seus operadores em campo fiquem com as mãos livres quando saem com os esquadrões robóticos. Todo esse negócio novo com processadores leves e reforçados
que você pode usar no colete se, digamos, estiver operando um veículo terrestre não tripulado ou os robôs armados, a unidade SWORDS, o Sistema de Armamento Especial,
Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta. Uma infantaria robótica armada com metralhadoras M249. Não é uma coisa que me agrade e sei como você se sente a
respeito."
"Não sei bem se existem palavras para como me sinto a respeito disso", retruco.
"Tem três unidades SWORDS até agora no Iraque, mas eles ainda não dispararam. Ninguém sabe ao certo como conseguir que um robô faça esse tipo de julgamento. Quociente
ético artificial. Uma perspectiva um tanto assustadora, mas tenho certeza de que não é impossível."
"Os robôs devem ser usados para a manutenção da paz, para vigilância."
"Isso para você, mas não para todos."
"Eles não devem tomar decisões sobre vida e morte", continuo. "Seria como o piloto automático decidindo se devemos voar através das nuvens que estão vindo em nossa
direção."
"O piloto automático poderia fazer isso se meu helicóptero tivesse sensores de umidade e temperatura. Acrescente transdutores de força e ele pousa sozinho, leve
como uma pluma. Com os sensores adequados, você não precisa mais de mim. É só embarcar e apertar um botão, como os Jetsons. Parece loucura, mas quanto mais louco
melhor. Pergunte à DARPA. Você faz ideia de quanto dinheiro eles investem na área de Cambridge?"
Lucy baixa o coletivo, perdendo altitude e velocidade à medida que outro trecho de nuvens fantasmagóricas flutua em nossa direção no escuro.
"Além do que foi investido no CFC?", completa ela.
Seu comportamento está diferente, até seu rosto está diferente, e ela já não tenta esconder o que a está afetando. Conheço esse estado de espírito. Conheço muito
bem. É uma disposição de ânimo antiga, que não vejo há algum tempo, mas que reconheço como se fossem os sintomas de uma doença que esteve em remissão.
"Computadores, robótica, biologia sintética, nanotecnologia, quanto mais absurdo melhor", continua Lucy. "Porque não existe mais essa coisa de cientistas malucos.
Não sei se existe mais essa coisa de ficção científica. Você propõe a invenção mais radical que consegue imaginar e ela provavelmente está sendo implementada em
algum lugar. É notícia velha."
"Você está sugerindo que esse homem que morreu em Norton's Woods está ligado à DARPA."
"De alguma forma está, em alguma extensão. Não sei quão direta ou indiretamente", responde Lucy. "O MORT não está mais sendo usado, não pelas Forças Armadas, nem
para qualquer finalidade, mas era coisa de Star Wars oito ou nove anos atrás, quando a DARPA intensificou o financiamento para dispositivos militares e de inteligência
em robótica, bioengenharia e engenharia da computação. E aplicações forenses e outras, relevantes para nossos mortos de guerra, para o que acontece em combate, no
teatro de operações."
Foi a DARPA que financiou a pesquisa e o desenvolvimento da tecnologia RadPath que empregamos nas autópsias virtuais em Dover e agora no CFC. A DARPA financiou minha
bolsa de estudos de quatro meses, que se transformaram em seis.
"Uma percentagem substancial de subvenção para pesquisa vem para os laboratórios da área de Cambridge, Harvard e MIT", diz Lucy. "Lembra quando tudo começou a girar
em torno da guerra?"
Está ficando cada vez mais difícil lembrar um tempo em que isso não era verdade. A guerra está se tornando nossa indústria nacional, como antes eram os automóveis,
o aço e as ferrovias. É este o perigoso mundo em que vivemos. Não creio que possa mudar.
"A brilhante ideia de que robôs como MORT podiam ser utilizados para recuperar baixas de modo que as tropas não arriscassem a vida por um companheiro morto?", lembra
Lucy.
Não uma ideia brilhante, e, sim, infeliz. Uma ideia extremamente idiota, eu achava na época e continuo a achar. Briggs e eu não estávamos do mesmo lado a esse respeito.
Ele nunca vai me dar crédito por tê-lo salvado de um passo em falso em RP que poderia tê-lo prejudicado muito.
"A ideia foi agressivamente pesquisada por um tempo e então engavetada", acrescenta Lucy.
Foi engavetada porque empregar robôs para tal finalidade supõe que eles sejam capazes de decidir se um soldado caído, um ser humano, está mortalmente ferido ou morto.
"O Departamento de Defesa se deu mal por causa disso, pelo menos internamente, porque pareceu frio e desumano", diz ela.
Merecidamente. Ninguém deveria morrer nas garras de algo mecânico que arrasta a pessoa para fora do campo de batalha, ou a retira de um veículo estraçalhado, ou
dos escombros de um edifício que desabou.
"O que estou dando a entender é que as primeiras gerações dessa tecnologia foram enterradas pelo Departamento de Defesa, relegadas a um ferro-velho secreto ou teve
peças reaproveitadas", diz Lucy. "Mesmo assim, o cara que está na sua geladeira tem um no apartamento dele. Onde conseguiu? Ele tem alguma ligação com a história.
Tem papel de desenho na mesinha de centro. É inventor, engenheiro, algo do tipo, e estava de alguma forma envolvido em projetos sigilosos que exigem certificado
de segurança de alto nível, mas é civil."
"Como você pode ter tanta certeza de que ele é civil?"
"Acredite em mim, tenho certeza. Ele não tem experiência nem treinamento e é absolutamente certo que não faz parte do serviço de informações militar nem é agente
do governo, ou não andaria por aí ouvindo música alta armado com uma pistola cara que teve o número de série raspado - em outras palavras, ele provavelmente comprou
a arma na rua. Teria uma coisa que nunca seria atribuída a ele nem a ninguém, uma coisa que você usa uma vez e joga fora..."
"Não sabemos a quem a arma está relacionada?" Quero ter certeza disso.
"Não que eu saiba, ainda não, o que é ridículo. Esse cara não estava encoberto. Acho que ele está assustado", diz Lucy como se soubesse disso com certeza. "Estava",
acrescenta. "Ele estava. Alguém o tinha sob vigilância - é o que eu acho, de qualquer maneira -, e agora ele está morto. Na minha opinião, não é coincidência. Sugiro
que você tenha extremo cuidado ao falar com Marino.
"Às vezes, ele tem um discernimento terrível, mas não está tentando me enganar."
"Ele não faz parte do serviço de inteligência médico como você, e sua compreensão só vai até o ponto de não discutir casos com seus amigos no boliche e não falar
com repórteres. Acha perfeitamente possível confiar em pessoas como Briggs porque é um ignorante no que se refere às altas patentes militares." Não consigo lembrar
desde quando não vejo Lucy com um comportamento tão inquieto e sombrio. "Em um caso como esse, você conversa comigo ou com Benton."
"Você contou a Benton o que acabou de me contar?"
"Vou te deixar explicar a respeito do MORT porque ele provavelmente não vai entender o que é. Não estava por perto quando você passou por tudo isso com o Pentágono.
Você conta a ele e então todos nós podemos conversar. Você, ele, eu e chega, pelo menos por enquanto, porque você não sabe o que está acontecendo, e é melhor esclarecer
os fatos e saber quem somos nós e quem são eles."
"Se não posso confiar em Marino em um caso como esse, ou em qualquer caso por sinal, por que estou com ele?" A atitude defensiva aviva meu tom de voz, porque Marino
também foi ideia dela.
Lucy me encorajou a contratá-lo como chefe de investigações operacionais do CFC e também o convenceu a aceitar, embora não tenha sido uma negociação muito difícil.
Ele nunca admitiria, mas não queria estar em lugar nenhum em que eu não estivesse, e, quando percebeu que eu ficaria em Cambridge, desencantou-se de repente com
o departamento de polícia de Nova York. Perdeu interesse na promotora-adjunta Jaime Berger, para cujo escritório foi designado. Entrou em conflito com seu senhorio
no Bronx. Começou a se queixar dos impostos de Nova York, mesmo que os pagasse havia vários anos. Disse que era intolerável não ter lugar para andar de moto ou para
estacionar uma caminhonete, mesmo que não possuísse nenhum dos dois na ocasião. Disse que precisava se mudar.
"Não é uma questão de confiança. É questão de reconhecer limitações." É estranhamente generoso da parte de Lucy dizer isso. Em geral, as pessoas são simplesmente
ruins ou inúteis e merecem seja qual for o castigo que ela determine.
Lucy reduz a pressão sobre o coletivo e faz ajustes sutis com o cíclico, aumentando nossa velocidade e se certificando de que não ganhemos altura, entrando nas nuvens.
A escuridão da noite à nossa volta é impenetrável, e há trechos onde vejo luzes no solo, sugerindo que estamos voando acima de árvores. Insiro a frequência da base
aérea de McGuire para monitorar seu espaço aéreo enquanto ficamos de olho no Sistema Anticolisão de Tráfego. Ele não mostra outra aeronave em parte alguma. Talvez
sejamos os únicos a voar esta noite.
"Não posso me dar o luxo de levar em conta limitações", digo à minha sobrinha. "O que significa que provavelmente cometi um erro contratando Marino. E outro maior
ainda contratando Fielding."
"E não pela primeira vez. Jack te largou em Watertown e foi para Chicago, e você devia ter deixado o cara por lá."
"Na verdade, perdemos nosso financiamento em Watertown. Ele sabia que o escritório talvez fechasse, e realmente fechou."
"Não foi por isso que ele saiu."
Não argumento porque Lucy está certa. Não foi por isso. Fielding queria se mudar para Chicago porque sua mulher havia recebido uma oferta de emprego lá. Dois anos
mais tarde, perguntou se podia voltar. Disse que sentia falta de trabalhar para mim. Disse que sentia falta de sua família. Lucy, Marino, Benton e eu. Uma família
grande e feliz.
"Não são só eles. Você tem problema com todo mundo ali", diz Lucy.
"Então ninguém deveria ter sido contratado. Inclusive você, imagino."
"Provavelmente. Não sou boa no trabalho em equipe." Ela foi demitida do FBI e da ATF. Acho que Lucy não pode ser supervisionada por ninguém, nem mesmo por mim.
"Bom, é ótimo voltar para casa e para isso", retruco.
"É esse o perigo de uma instituição-modelo que, não importa o que se diga, é na verdade tanto civil quanto militar, é da alçada tanto local quanto federal, além
de ter vínculos acadêmicos", diz Lucy. "Você não é uma coisa nem outra. Os membros da equipe não sabem exatamente como agir ou não conseguem respeitar os limites,
supondo que alguém os compreenda. Alertei você sobre isso faz tempo."
"Não me lembro de você ter me alertado. Só me lembro de ter chamado minha atenção para o fato."
"Vamos inserir a frequência de Lakehurst e indicar voo VFR, porque estou descartando o acompanhamento de voo", decide Lucy. "Se formos empurrados ainda mais para
oeste, vamos ter vento contrário, o que vai reduzir nossa velocidade para menos de quarenta quilômetros por hora e vamos ter que pousar para passar a noite em Harrisburg
ou Allentown."
5
Os flocos de neve ficam loucos como mariposas sob as luzes de aterrissagem e o vento das pás do rotor, à medida que descemos sobre a plataforma de madeira. Os skids
pousam de forma hesitante, então se separam pesadamente, quando o peso se instala e quatro pares de faróis começam a se mover em nossa direção desde o portão de
segurança próximo à base de operações.
Os faróis movem-se devagar pela rampa, iluminando a neve que cai com rapidez e reconheço a silhueta do Porsche SUV verde de Benton. Reconheço o Suburban e o Range
Rover, ambos pretos. Não conheço o quarto carro, um sedã escuro elegante, com aço cromado. Lucy e Marino devem ter vindo em carros separados hoje e deixado seus
SUVs com a equipe da base, o que faz sentido. Minha sobrinha sempre chega ao aeroporto bem antes das outras pessoas para preparar o helicóptero, assim pode checar
do aparelho do tubo de Pitot, no nariz, ao estabilizador de cauda. Não a vejo assim faz algum tempo, e enquanto aguardamos os dois minutos em ponto morto antes que
ela conclua o desligamento, tento me lembrar da última vez, localizá-la com exatidão, na esperança de entender o que está acontecendo. Porque Lucy não vai me contar.
Não vai fazer isso, a menos que se encaixe em seu plano geral, e não há como extrair dela a informação quando não está preparada para compartilhar, o que, em situações
extremas, pode ser nunca. Lucy prospera no comportamento dissimulado, sente-se muito mais à vontade sendo quem não é do que quem é, e foi sempre assim, desde os
primeiros anos. Ela se alimenta do poder do silêncio e se energiza com o drama do risco, do perigo real. Quanto mais ameaçador, melhor. Tudo o que me revelou até
agora é que um robô obsoleto no apartamento do morto é um PackBot chamado MORT, financiado pela DARPA e que, no passado, foi destinado a intervenções funerárias
no teatro de operações; em outras palavras, à remoção de corpos na guerra, um Anjo da Morte mecânico. O MORT era insensível e inadequado e o combati agressivamente
há anos, mas a peculiaridade de o morto ter tal objeto em seu apartamento não explica o comportamento de Lucy.
Quando foi que ela me assustou tanto, não que tenha sido só uma vez, mas no dia em que achei que ela poderia acabar na prisão? Há sete ou oito anos, concluo, quando
voltou da Polônia, onde esteve envolvida em uma missão que tinha a ver com a Interpol e operações especiais que até hoje não estão claras para mim. Nunca vou ficar
sabendo quanto ela me contaria se eu a pressionasse o suficiente, porque não vou fazer isso. Optei por permanecer na obscuridade acerca do que ela fez por lá. O
que sei é suficiente. É mais que suficiente. Eu jamais diria isso a respeito dos sentimentos, da saúde ou do bem-estar geral de Lucy, porque me preocupo muito com
cada molécula sua, mas posso dizer isso acerca de alguns aspectos complexos e clandestinos da forma como viveu. Para seu próprio bem e o meu, há detalhes sobre os
quais não vou perguntar. Há histórias que não quero que me contem.
Durante a última hora de nosso voo para Hanscom Field, ela foi ficando cada vez mais preocupada, impaciente e incrivelmente vigilante, e é sua vigilância que tem
um calibre especial. É o que reconheço. A vigilância é a arma que ela saca quando se sente ameaçada e entra no modo de atuação que eu costumava temer. Em Oxford,
Connecticut, onde paramos para abastecer, ela não deixou o helicóptero sem supervisão, nem por um segundo. Supervisionou o caminhão de combustível e me colocou de
guarda no frio enquanto trotava até o interior da base de operações para pagar, porque não confiava em Marino para o serviço de guarda, conforme explicou. Contou
que, quando eles reabasteceram em Wilmington, Delaware, hoje cedo, a caminho de Dover, ele ficou muito ocupado ao telefone para se preocupar com a segurança ou reparar
no que estava acontecendo ao redor dos dois.
Disse que o havia observado pela janela enquanto ele passeava pela pista de pouso, conversando e gesticulando, sem dúvida empolgado contando a Briggs a respeito
do homem que supostamente continuava vivo quando foi trancafiado dentro da geladeira. Marino não olhou para o helicóptero uma única vez sequer, Lucy me contou. Estava
distraído quando outro piloto aproximou-se para fazer o check-out, agachando-se para inspecionar o sensor de visão frontal infravermelha, o holofote Nightsun, e
espreitar pelo Plexiglas o interior das cabines. Não entrava na cabeça de Marino que as portas estavam destrancadas, assim como a tampa do combustível, e é óbvio
que não há como trancar a capota do motor. Alguém pode ter acesso à transmissão, ao motor, às caixas de marchas, os órgãos vitais de um helicóptero, pela simples
liberação das travas.
Água no tanque de combustível é o bastante para uma pane em voo. Lá se vai o motor. Ou uma pequena quantidade de contaminante no fluido hidráulico, possivelmente
terra, óleo, ou água no reservatório, e os controles vão falhar como a direção hidráulica em um automóvel, o que é um pouco mais sério quando você está a seiscentos
metros de altura. Se realmente quer criar confusão, contamine tanto o combustível quanto o fluido hidráulico, assim vai ter uma pane e uma falha hidráulica ao mesmo
tempo, descreveu Lucy em detalhes sórdidos enquanto voávamos com o sistema de comunicação interna na posição "tripulação", para que Marino não ouvisse. Isso seria
especialmente desastroso depois do anoitecer, disse ela, quando os pousos de emergência, já bastante difíceis, ficam muito piores porque você não consegue enxergar
o que há embaixo, e é melhor esperar que não sejam árvores, linhas de energia ou outro tipo de obstrução.
É claro que a sabotagem que ela mais teme é um explosivo; ela é obcecada por explosivos em geral e o motivo pelo qual são de fato usados, quem os usaria, inclusive
o governo dos Estados Unidos, se for conveniente. Assim, tive de ouvir isso por algum tempo antes que ela me deprimisse ainda mais ao explicar quão simples seria
plantar tal coisa, de preferência embaixo da bagagem ou de um tapete atrás, para que quando o artefato detonasse destruísse o tanque de combustível principal sob
os bancos traseiros. Em seguida o helicóptero se transforma em um crematório, disse ela, o que me fez pensar outra vez no soldado no Humvee e em sua mãe devastadora
me atacando ao telefone. Eu fazia associações infelizes durante a maior parte do tempo que estávamos voando porque, para o bem ou para o mal, qualquer calamidade
descrita evoca exemplos vívidos de meus próprios casos. Sei como as pessoas morrem. Sei exatamente o que vai acontecer comigo se eu morrer.
Lucy corta a aceleração e baixa o freio do rotor; no instante em que as pás param de girar, a porta do motorista no utilitário de Benton se abre. A luz interna não
acende. Não vai acender em nenhum dos três utilitários na rampa, porque policiais e agentes federais, inclusive os que já não exercem mais a profissão, têm suas
peculiaridades. Não se sentam com as costas voltadas para a porta. Detestam apertar o cinto de segurança e não gostam de luzes internas nos veículos. São programados
para evitar emboscadas e restrições que os impeçam de fugir. Resistem a se transformar em um alvo iluminado. São precavidos, mas não tão precavidos quanto Lucy nas
últimas horas.
Benton caminha em direção ao helicóptero e aguarda perto da plataforma com as mãos nos bolsos de um velho casaco preto de camurça que lhe dei há muitos Natais, o
cabelo prateado bagunçado pelo vento. Ele é alto e magro contra a noite coberta de neve, e seu semblante parece ansioso à sombra e luz desiguais. Sempre que o vejo
após uma longa separação é com os olhos de uma estranha, e me sinto outra vez atraída por ele, exatamente como da primeira vez, há muito tempo na Virginia quando
eu era a nova chefe, a primeira mulher nos Estados Unidos a dirigir um sistema médico-legal daquele porte, e ele era uma lenda no FBI, o talentoso psicólogo criminal
e diretor do que era então a Unidade de Ciência Comportamental em Quantico. Ele entrou em minha sala de reuniões e de repente me senti nervosa e insegura, o que
nada tinha a ver com os assassinatos em série que estávamos ali para discutir.
"Você conhece esse cara?", pergunta ele em meu ouvido quando nos abraçamos. Ele me beija de leve nos lábios; sinto a fragrância amadeirada de sua loção pós-barba
e o couro macio de seu casaco de encontro ao meu rosto.
Olho para além dele na direção do homem que salta do sedã, que agora vejo que é um Bentley azul-escuro ou preto que tem o ronco gutural de um motor V12. O sujeito
é grande e está acima do peso, possui queixo duplo e uma franja rala que se agita ao vento. Vestindo um casaco longo com a gola levantada, que lhe cobre as orelhas
e luvas, mantém-se de pé a uma distância educada, com a postura alheia de um motorista de limusine. Mas percebo sua atenção sobre nós. Ele parece mais interessado
em Benton.
"Deve estar esperando alguém", concluo enquanto o homem olha para o helicóptero, então torna a olhar para Benton. "Ou está confuso."
"Em que posso ajudar?" Benton se aproxima do sujeito.
"Estou procurando por Scarpetta."
"E por que você estaria procurando Scarpetta?" Benton é simpático, porém firme, e não revela nada.
"Fui enviado aqui com uma entrega e me disseram que o encontraria saindo do helicóptero. Você é de onde? Da segurança nacional? Estou vendo que o helicóptero tem
sensor de visão frontal infravermelha, holofote de busca, um bocado de equipamento especial. Bem high-tech. A que velocidade ele voa?"
"O que posso fazer por você?"
"Preciso entregar algo diretamente a Scarpetta. É você? Me mandaram pedir um documento." O motorista observa Lucy e Marino retirarem meus pertences dos compartimentos
do passageiro e de bagagem. Não está interessado em mim, não mais que para me lançar um olhar de relance. Sou a mulher do homem alto e atraente com cabelo grisalho.
O motorista acha que Benton é Scarpetta e que o helicóptero pertence a ele.
"Vamos tirar você daqui antes que vire uma nevasca", diz Benton, caminhando em direção ao Bentley de um jeito que não deixa escolha ao motorista a não ser segui-lo.
"Ouvi dizer que vamos ter de quinze a dezoito centímetros, mas tudo é extremo nesse inverno. De onde você é? Não daqui. De algum lugar no sul. Imagino que do Tennessee."
"Você percebeu depois de vinte e sete anos? Acho que preciso trabalhar na minha fala ianque. Nashville. Estacionamos aqui com a 66a Unidade Aérea e nunca saímos.
Não sou piloto, mas dirijo muito bem." Ele abre a porta do passageiro e se debruça para dentro. "Você mesmo pilota aquela coisa? Nunca estive em um daqueles. Percebi
na mesma hora que aquele helicóptero não era da Força Aérea. Acho que se você for da CIA, não vai me dizer..."
A voz flutuou até a rampa, onde Benton me deixou. Sei que é melhor não o seguir até o Bentley, mas reluto em me sentar em nosso carro sem fazer ideia de quem é o
homem, a que entrega está se referindo ou como sabia que alguém chamado Scarpetta estaria em Hanscom, seja em um helicóptero ou para encontrá-lo, e a que horas pousaria.
A primeira pessoa que me vem à mente é Jack Fielding. É provável que ele conhecesse meu itinerário e verifico meu iPhone. Anne e Ollie responderam minhas mensagens
de texto e já estão no CFC, esperando por nós. Mas não há nada da parte de Fielding. O que está acontecendo? Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa séria. Isso
não deve ser só a irresponsabilidade, a indiferença ou seu comportamento errático habituais. Espero que esteja bem, que não esteja doente, ferido ou brigando com
a mulher, e vejo Benton enfiar alguma coisa no bolso do casaco. Ele se encaminha direto para o SUV, e essa é sua mensagem para mim. Entrar e não fazer perguntas.
Alguma coisa que o desagrada aconteceu, apesar de sua atitude relaxada e amigável com o motorista.
"O que foi?", pergunto quando fechamos as portas ao mesmo tempo que Marino abre o bagageiro e começa a enfiar ali minhas caixas e malas.
Benton aumenta o aquecimento e não responde enquanto mais pertences meus são carregados, em seguida Marino vem até minha porta. Bate com o nó do dedo no vidro.
"O que foi isso?" Ele olha na direção do Bentley; a neve cai espessa e firme, cobrindo a viseira de seu boné de beisebol e derretendo em seus óculos.
"Quem sabia que você e Lucy iam a Dover hoje?", Benton apoia o ombro em mim enquanto conversa com ele.
"O general. E a capitã Avallone ficou sabendo quando telefonei tentando deixar uma mensagem para a doutora. E algumas pessoas no nosso escritório. Por quê?"
"Mais ninguém? Você não mencionou aos paramédicos, à polícia de Cambridge?"
Marino faz uma pausa, pensando, e uma expressão passou por seu rosto. Ele não sabe ao certo a quem contou. Está tentando lembrar, está calculando. Se fez alguma
coisa imprudente, não vai querer admitir, já ouviu o bastante sobre o quanto é indiscreto. Não pretende ser castigado mais uma vez, ainda que, para ser justa, ele
não tivesse motivo para se comportar como se o fato de ele e Lucy voarem até Delaware para me buscar fosse informação sigilosa. Não é segredo de Estado onde eu estava
e, de qualquer forma, eu ia voltar para casa amanhã.
"Não tem importância se você fez isso." Benton parece estar pensando o mesmo que eu. "Só estou tentando entender como um mensageiro sabia que encontraria o helicóptero
aqui."
"Que espécie de mensageiro dirige um Bentley?", pergunta Marino.
"Aparentemente, a espécie que foi informada do seu itinerário, inclusive o número de cauda do helicóptero", responde Benton.
"Maldito Fielding. Que diabos ele está fazendo? O cara é um louco, é o que ele é." Marino retira os óculos, então não tem com que os limpar, e seu rosto parece nu
e estranho sem os velhos aros de metal. "Comentei com algumas pessoas que você provavelmente voltaria hoje em vez de amanhã. Quer dizer, é óbvio que algumas pessoas
sabiam por causa do problema que temos com o morto sangrando e tudo mais." Ele endereça isso a mim. "Mas Fielding era o único que sabia exatamente o que você estava
fazendo e com certeza conhece o helicóptero de Lucy, porque já esteve nele. Merda, você não sabe da missa a metade", acrescenta com ar sombrio.
"Vamos conversar no escritório." Benton quer que ele cale a boca.
"O que sabemos sobre ele? Que merda ele está aprontando? Está mais que na hora de parar de proteger esse cara. Ele com certeza não está te protegendo", diz Marino.
"Vamos conversar sobre isso mais tarde", retruca Benton com um sinal de advertência na voz.
"Ele está te ferrando de alguma forma", diz Marino.
"Não é hora de discutir isso." A voz de Benton assume um tom monótono.
"Ele quer seu emprego. Ou talvez não queira que você fique com ele." Marino olha para mim enquanto enfia as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e se afasta da janela.
"Bem-vinda ao lar, doutora." Sinto os flocos de neve frios e úmidos soprados para dentro do carro em meu rosto e pescoço. "É bom ser lembrado de em quem você pode
realmente confiar, certo?" Ele olha para mim enquanto ergo o vidro da janela.
Faróis anticolisão vermelhos e brancos piscam na ponta das asas dos jatos estacionados à medida que atravessamos a rampa devagar rumo ao portão de segurança, que
acaba de abrir.
O Bentley passa pelo portão; estamos logo atrás e reparo que a placa de Massachusetts não possui o logo que indica que o carro pertence a uma empresa de limusines.
Não me surpreendo. Bentleys são raros, especialmente por aqui, onde as pessoas são modestas e conservadoras, mesmo aquelas que fazem voos particulares. Raras vezes
vejo Bentleys ou Rolls-Royces, são quase sempre Toyotas ou Saabs. Passamos pela base de operações VIP, um dos vários serviços de voo na parte civil do aeroporto,
e coloco a mão na camurça macia do bolso do casaco de Benton, sem tocar o envelope branco leitoso que mal se projeta para fora dele.
"Você quer me explicar o que acaba de acontecer?" Ele parece ter recebido uma carta.
"Ninguém devia saber que você fez um voo para cá, ninguém devia saber nada sobre você ou sobre o seu paradeiro, ponto final", diz Benton com o rosto e a voz severos.
"É óbvio que ela ligou para o CFC e Jack passou a informação. Ela com certeza já ligou para lá antes, e quem mais a não ser Jack?"
Na verdade, ele não enuncia isso como uma pergunta e não faço ideia de a quem possa estar se referindo.
"Não entendo por que ele ou qualquer outra pessoa falaria com ela, pelo amor de Deus", continua Benton, mas não acredito que não compreenda seja o que for a que
esteja se referindo. Seu tom exprime algo completamente diferente. Percebo que ele não está nem mesmo surpreso.
"Quem?" Porque não faço a menor ideia. "Quem telefonou para o CFC?"
"A mãe de Johnny Donahue. Ao que parece, aquele é o motorista dela", disse ele, indicando o carro mais à frente.
Os limpadores de para-brisa produzem um alto som de borracha sendo arrastada sobre o vidro, afastando a neve, que se derrete. Olho para as lanternas traseiras do
Bentley à nossa frente e tento entender o que Benton está me contando.
"Devemos examinar, independentemente do que for." Estou me referindo ao envelope em seu bolso.
"É prova. Deve ser examinada no laboratório", diz ele.
"Eu tenho que saber o que é."
"Terminei de avaliar Johnny esta manhã", Benton me faz lembrar. "Sei que a mãe dele telefonou várias vezes para o CFC."
"Como você sabe?"
"Johnny me contou."
"Um paciente psiquiátrico te contou. E isso é informação confiável?"
"Passei um total de quase sete horas com ele desde que foi admitido. Não acredito que tenha matado ninguém. Existe um monte de coisas nas quais não acredito. Mas
acredito que a mãe dele telefonaria para o CFC, com base no que sei", diz Benton.
"Ela não pode realmente imaginar que discutiríamos o caso de Mark Bishop com ela."
"Atualmente as pessoas pensam que tudo é informação pública, que elas têm o direito de saber", diz ele. Não é de seu feitio fazer conjecturas e ceder a generalidades.
A declaração soa superficial e evasiva. "E a sra. Donahue tem um problema com Jack", acrescenta Benton, e o comentário me parece genuíno.
"Johnny contou a você que a mãe dele tem um problema com Jack. E por que ela teria qualquer opinião sobre ele?"
"Parte desse assunto não posso abordar." Ele olha direto para a frente enquanto dirige na via coberta de neve. A neve está caindo mais rápido; açoita os faróis dianteiros
e estala de encontro ao vidro.
Sei quando Benton está me escondendo coisas. Em geral, por mim tudo bem. Agora, não está nada bem. Sinto a tentação de extrair o envelope de seu bolso e examinar
o que alguém, ao que tudo indica a sra. Donahue, quer que eu veja.
"Você conheceu a mulher, conversou com ela?", pergunto.
"Até agora, consegui evitar, ainda que ela tenha telefonado para o hospital, tentando me localizar; telefonou várias vezes desde que ele foi admitido. Mas não convém
que eu converse com ela. Não convém que eu converse sobre muitas coisas, e sei que você entende."
"Se Jack ou alguém divulgou detalhes sobre Mark Bishop, isso é sério", retruco. "E entendo sua discrição, ou acho que entendo, mas tenho o direito de saber se ele
fez isso."
"Eu não sabia o que você sabe. Se Jack te contou alguma coisa", diz ele.
"A respeito do que especificamente?"
Não quero admitir para Benton e sobretudo para mim mesma que não consigo lembrar exatamente quando conversei com Fielding pela última vez. Nossas conversas, quando
as tivemos, foram superficiais e breves, e não o vi uma vez sequer quando estive em casa por vários dias durante as festas de fim de ano. Ele havia ido a algum lugar,
supostamente levado a família para algum lugar, mas não tenho certeza. Faz longos meses que Fielding deixou de compartilhar comigo os detalhes de sua vida pessoal.
"Deste caso especificamente, do caso de Mark Bishop", responde Benton. "Quando aconteceu, por exemplo, Jack discutiu com você?"
No sábado, 30 de janeiro, Mark Bishop, de seis anos, estava brincando em seu quintal a mais ou menos uma hora daqui, em Salem, quando alguém o atacou com pregos
na cabeça.
"Não", respondo. "Jack não conversou comigo sobre isso."
Eu estava em Dover quando o menino foi assassinado, e Fielding assumiu o caso, o que estava em completo desacordo com ele, e pensei assim na ocasião. Fielding nunca
foi capaz de lidar com crianças, mas por algum motivo decidiu lidar com isso e me chocou. No passado, se o corpo de alguma criança estivesse a caminho do necrotério,
Fielding se ausentava. Não fazia o menor sentido que ele assumisse o caso de Mark Bishop, e lamento não ter voltado para casa, que foi meu primeiro impulso. Eu deveria
ter agido de acordo com ele, mas não quis fazer a meu segundo em comando o que Briggs acabara de fazer comigo. Não quis demonstrar falta de confiança.
"Examinei o caso detalhadamente, mas Jack e eu não discutimos a respeito, ainda que com certeza eu tenha indicado que estaria à disposição se houvesse necessidade."
Sinto que estou na defensiva e detesto quando isso acontece. "Tecnicamente, o caso era dele. Tecnicamente, eu não estava aqui." Não consigo me controlar e sei que
parece fraqueza, como se eu estivesse arrumando desculpas, e me sinto irritada comigo mesma.
"Em outras palavras, Jack não compartilhou os detalhes. Quer dizer, os detalhes dele", declara Benton.
"Leve em conta onde eu estava e o que estava fazendo", tento lembrar.
"Não estou dizendo que seja culpa sua, Kay."
"O que é culpa minha? E o que você está querendo dizer com os detalhes 'dele'?"
"Estou perguntando se você fez perguntas a Jack. Se ele evitou discutir o caso com você."
"Você sabe como ele é quando se trata de crianças. Na ocasião, enviei uma mensagem dizendo que um dos outros médicos-legistas poderia lidar com aquilo, mas Jack
tomou conta do caso. Fiquei surpresa, mas foi o que aconteceu. Como já disse, examinei todos os registros. Os dele, os da polícia, os relatórios do laboratório..."
"Então, você na verdade não sabe o que está acontecendo?"
"Parece que o que você está dizendo é que não sei."
Benton fica em silêncio.
"Você sabe o que passou, além dos fatos mais recentes? Da confissão feita por Donahue?"
Tento novamente: "É claro que sei o que foi informado nos noticiários. Um estudante de Harvard confessando uma coisa dessas não poderia passar despercebido pela
imprensa. É óbvio que o que você está insinuando é que existem detalhes dos quais não fui informada".
Outra vez Benton não responde. Imagino Fielding conversando com a mãe de Johnny Donahue. É possível que ele tenha lhe fornecido detalhes de onde eu estaria hoje
à noite, e ela enviou seu motorista para me entregar um envelope, embora o motorista tenha dado a impressão de não saber que Scarpetta era uma mulher. Olho para
o casaco de camurça preta de Benton. No escuro, distingo a borda branca indistinta do envelope em seu bolso.
"Por que alguém do seu escritório falaria com a mãe da pessoa que confessou o crime?" A pergunta de Benton soa mais como uma afirmação. Parece retórica. "Temos absoluta
certeza de que nada vazou para os meios de comunicação sobre sua partida de Dover hoje, talvez por causa do novo caso?" Ele está se referindo ao homem que sofreu
o colapso em Norton's Woods. "Talvez exista uma explicação lógica para que ela saiba. Uma explicação lógica diferente de Jack. Estou tentando manter a mente aberta."
Não me parece que ele esteja tentando manter a mente aberta. Benton parece acreditar que Fielding contou à sra. Donahue por um motivo, que não faço ideia de qual
seja. A menos que seja o que Marino disse há alguns minutos, que Fielding quer que eu perca o emprego.
"Você e eu sabemos a resposta." Ouço a convicção em meu tom de voz e percebo minha certeza do que Jack Fielding seria capaz de fazer. "Que eu saiba, nada apareceu
nos noticiários. E mesmo que a sra. Donahue tenha descoberto dessa forma, isso não explica o fato de ela saber o número de cauda do helicóptero de Lucy. Não explica
como soube que eu estava chegando de helicóptero e que pousaria em Hanscom, ou a que horas."
Benton dirige-se a Cambridge em meio à nevasca de flocos cada vez menores. O vento fustiga o utilitário, com rajadas e empuxos, a noite volátil e traiçoeira.
"Só que o motorista pensou que você fosse eu", acrescento. "Percebi pelo modo como ele estava lidando com você. Ele acha que você é Scarpetta, e a mãe de Johnny
Donahue com certeza deve saber que não sou um homem."
"É difícil dizer o que ela sabe", retruca Benton. "Fielding é o legista no caso, não você. Como você mesma disse, tecnicamente não tem nada a ver com isso. Tecnicamente,
não é a responsável."
"Eu sou a chefe e, no fim das contas, a responsável. No fim do dia, todos os casos de medicina legal de Massachusetts são meus. Então tenho alguma coisa a ver com
isso, sim."
"Não foi o que eu quis dizer, mas fico satisfeito em te ouvir dizer isso."
É claro que não foi o que ele quis dizer. Não quero pensar a respeito do que ele quis dizer. Estive fora. De alguma forma, eu precisava estar em Dover e ao mesmo
tempo manter o CFC em funcionamento sem mim. Talvez fosse pedir demais. Talvez eu tenha sido programada para o fracasso.
"Estou dizendo que, desde que o CFC inaugurou, você tem sido invisível", diz Benton. "Desapareceu em um blecaute de notícias."
"Propositadamente", retruco. "O AFMES não procura publicidade."
"É claro. Não estou culpando você."
"Escolha de Briggs." Dou voz ao que suspeito que Benton pode estar insinuando.
Ele não confia em Briggs. Nunca confiou. Sempre atribuí esse fato ao ciúme. Briggs é um homem muito poderoso e intimidador, e Benton não se sente poderoso ou intimidador
desde que deixou o FBI; além disso, eu e Briggs temos um passado. Ele é uma das pouquíssimas pessoas que antecederam Benton e que continuam em minha vida. Tenho
a sensação de que mal havia acabado de me tornar adulta quando o conheci.
"O AFMES não queria que você desse entrevistas a respeito do CFC ou fizesse qualquer referência pública relacionada a Dover até que o CFC tivesse sido inaugurado
e seu treinamento fosse concluído", prossegue Benton. "Isso a manteve longe dos holofotes por algum tempo. Estou tentando lembrar a última vez em que você esteve
na CNN. Foi, pelo menos, há um ano."
"E, coincidentemente, eu devia voltar à ribalta esta noite. E, coincidentemente, tive que cancelar. Pela terceira vez, já que minha volta foi várias vezes adiada."
"É. Coincidentemente. Muitas coincidências", diz Benton.
Talvez Briggs tivesse me exposto e feito isso de propósito. Quão inteligente seria me preparar para um emprego mais importante, o mais importante até aqui, enquanto
me tornava sistematicamente menos visível? Para me silenciar. No fim das contas, para se livrar de mim. A ideia é chocante. Não acredito nela.
"Coincidências de quem, é isso que você precisa saber", diz Benton então. "E não estou dando como fato consumado que Briggs tenha feito alguma coisa maquiavélica.
Ele não é a totalidade do Pentágono. É só uma engrenagem em uma máquina muito grande."
"Sei que você antipatiza com ele."
"É com a máquina que antipatizo. Ela vai estar sempre presente. Tenha a certeza de que compreende isso para não ser triturada por ela."
A neve estala e salta de encontro ao vidro à medida que passamos por campos abertos e bosques cerrados; um córrego corre acelerado contra o parapeito à nossa direita
quando cruzamos uma ponte. O ar deve estar mais frio aqui, a neve cai miúda e gelada à medida que entramos e saímos de bolsões de tempo inconstante que julgo inquietantes.
"A sra. Donahue sabe que o legista-chefe e diretor do CFC, alguém chamado Scarpetta, é o chefe de Jack", diz Benton então. "Tinha que saber já que se deu o trabalho
de mandar te entregar alguma coisa. Mas talvez seja a única coisa que ela saiba", resume ele, propondo uma explicação para o que acaba de acontecer no aeroporto.
"Vamos examinar o que quer que seja." Quero o envelope.
"Isso devia ir para o laboratório."
"Ela sabe que eu sou chefe de Jack, mas não sabe que sou mulher." Parece absurdo, mas é possível. "Ainda que tudo que ela tivesse que fazer fosse colocar meu nome
no Google."
"Nem todos usam o Google."
Lembro como me esqueço fácil de que no mundo existem pessoas pouco sofisticadas em termos tecnológicos, inclusive alguém que pode ter um chofer e um Bentley. Suas
lanternas traseiras estão muito à nossa frente agora na via estreita de duas pistas, diminuindo e se distanciando à medida que o carro segue rápido demais para as
condições.
"Você mostrou alguma identificação ao motorista?", pergunto.
"O que você acha?"
É evidente que Benton não faria isso. "Então ele não percebeu que você não é Scarpetta."
"Não com base em nada que eu tenha feito ou dito."
"Acho que a sra. Donahue vai continuar a pensar que Jack trabalha para um homem. É estranho Jack não ter dito a ela como me encontrar nem tenha indicado como seu
motorista poderia me reconhecer, ao menos sugerido que sou uma mulher. Estranho. Não sei." Não estou convencida do que estamos pressupondo. Não parece certo.
"Eu não sabia que você estava com tantas dúvidas a respeito de Jack. Não que elas não sejam justificadas." Benton está tentando me fazer falar. É o agente do FBI
que existe dentro dele. Não o vejo há algum tempo.
"Só não venha me dizer que eu deveria saber", protesto com sentimento. "Já ouvi isso hoje o suficiente."
"Só estou dizendo que eu não sabia."
"E tudo que eu sabia era das minhas dúvidas e negações de sempre com respeito a ele", retruco. "Não tinha informações suficientes para estar mais preocupada que
o normal." É meu jeito de pedir a Benton que me dê informações suficientes se ele as tem, que não aja como policial ou como profissional da área de saúde mental.
Não retenha informação, estou pedindo.
Mas ele se segura. Não diz uma palavra. Sua atenção está voltada para a frente, seu perfil surge distinto sob a fraca claridade das luzes do painel. No nosso caso,
foi sempre assim. Contornamos informação confidencial e privilegiada. Dançamos ao redor de segredos. Às vezes, mentimos. No início, enganamos, porque Benton era
casado com outra pessoa. Ambos sabemos ludibriar. Não é algo de que me orgulhe e gostaria que isso não continuasse a ser necessário em termos profissionais. Especialmente
neste exato momento. Benton está dançando ao redor de segredos e quero a verdade. Preciso dela.
"Olha, nós dois sabemos como ele é, e realmente ando invisível desde que o CFC inaugurou", continuo. "Estive em um vácuo, fazendo o melhor possível para lidar com
tudo à distância enquanto cumpria jornadas de dezoito horas, sem tempo nem mesmo para conversar com minha equipe por telefone. Foi tudo eletrônico, na maioria das
vezes via e-mails e PDFs. Quase não vi ninguém. Eu nunca deveria ter colocado Jack no comando sob tais circunstâncias. Quando o recontratei e saí da cidade, sujeitei
todo mundo exatamente ao que aconteceu. Você me disse isso, e não foi o único."
"Você nunca quis acreditar que tem um problema sério com ele", diz Benton de um jeito que me deixa ainda mais insegura. "Mesmo que já tenha tido muitos. Às vezes
não existem provas suficientes que façam você aceitar uma verdade na qual não suporta acreditar. Não consegue ser objetiva quando se trata dele, Kay. Não sei bem
se alguma vez entendi o motivo."
"Você está certo e detesto admitir isso." Limpo a garganta e acalmo minha voz. "Sinto muito."
"Não sei se algum dia vou entender." Ele olha para mim de relance, com ambas as mãos ao volante; estamos sozinhos em uma via fustigada pela neve e mal iluminada,
dirigindo em meio à escuridão coberta de flocos de gelo. O Bentley já não é visível à frente. "Não estou te julgando."
"Ele destruiu a vida dele e precisa de mim outra vez."
"Não é culpa sua que ele tenha destruído a própria vida, a menos que você tenha deixado de me contar alguma coisa. Na verdade, aconteça o que acontecer, não seria
culpa sua. As pessoas destroem a própria vida. Não precisam dos outros para isso."
"Não é inteiramente verdade. Ele não tem culpa do que aconteceu quando criança."
"Nem você", diz Benton, como se soubesse mais sobre o passado de Fielding do que lhe contei, os poucos detalhes que conheço. Sempre tive o cuidado de não sondar
minha equipe, especialmente Fielding. Sei o suficiente a respeito das tragédias precoces pelas quais passou para dar atenção ao que ele talvez não queira discutir.
"É claro que isso parece uma bobagem", acrescento.
"Não uma bobagem. Só um drama que vai sempre acabar do mesmo jeito. Nunca entendi completamente por que você sente a necessidade de fazer esse jogo. Tenho a impressão
de que alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que você não me contou."
"Eu te conto tudo."
"Nós sabemos que isso não é verdade com relação a nenhum dos dois."
"Talvez eu deva ficar só com os mortos." Ouço a amargura em minha voz, o ressentimento se infiltrando nas barreiras que construí cuidadosamente durante a maior parte
da vida. Talvez eu já não saiba viver sem elas. "Sei lidar muito bem com os mortos."
"Não fale assim", diz Benton baixinho.
É porque estou cansada, digo a mim mesma. É por causa do que aconteceu esta manhã quando a mãe negra de um soldado negro morto me denegriu e xingou ao telefone,
dizendo que sigo não a Regra de Ouro, e, sim, a Regra dos Brancos. Depois Briggs tentou sobrepujar minha autoridade. É possível que ele tenha armado para cima de
mim. É possível que queira que eu me dê mal.
"É um estereótipo", diz Benton então.
"O engraçado é que os estereótipos normalmente se baseiam em alguma coisa."
"Não diga coisas desse tipo."
"Não vai haver mais problemas com Jack. O drama vai acabar, prometo. Supondo que ele já não tenha dado um fim nisso, que já não tenha saído do emprego. Afinal, já
fez isso antes. Ele tem que ser demitido."
"Ele não é você, nunca poderia ser, e não é seu filho." Benton acha que é simples assim, mas não é.
"Ele precisa ficar solto", retruco.
"Ele é um patologista forense de quarenta e seis anos, que nunca mereceu sua confiança nem nada que você faz por ele."
"Meu assunto com ele está encerrado."
"Seu assunto com ele está encerrado. Temo que isso seja verdade e você vá ter que deixar Fielding ir embora", diz Benton, como se a decisão já tivesse sido tomada,
como se não dependesse de mim. "Por que você se sente tão culpada?" Há alguma coisa em seu tom de voz, alguma coisa em seu comportamento. Não consigo reconhecer
o que é. "Lá atrás, em Richmond, quando você estava começando a trabalhar com ele. Por que a culpa?"
"Sinto muito ter causado tantos problemas." Eu me esquivo da pergunta. "Estou com a sensação de ter deixado todo mundo na mão. Desculpe por não estar aqui. Não consigo
expressar o quanto lamento. Assumo a responsabilidade por Jack e não vou mais permitir que isso aconteça."
"Você não pode assumir a responsabilidade por certas coisas. Certas coisas não são culpa sua e sempre vou te lembrar disso, mas você provavelmente vai continuar
acreditando que é culpada", diz meu marido, o psicólogo.
Não vou discutir o que é ou não culpa minha, pois não posso contar por que motivo sempre fui irracionalmente leal a Jack Fielding. Voltei da África do Sul e minha
penitência foi ele. Meu serviço público, o castigo que me dei. Eu estava desesperada para fazer justiça por Fielding, por estar convencida de ter prejudicado todos
os demais.
"Vou dar uma olhada." Estou me referindo ao que se encontra no bolso do casaco de Benton. "Sei como examinar uma carta sem comprometer o material e preciso ver o
que a sra. Donahue me escreveu."
Puxo o envelope segurando-o de leve pelas bordas e descubro que a aba está lacrada com fita adesiva cinza, que cobre parcialmente um endereço impresso em uma fonte
serifada em estilo antigo. Reconheço a rua em Beacon Hill, Boston, próxima ao jardim público, muito perto de onde Benton tem uma casa que está em sua família há
gerações. Na frente do envelope está escrito KAY SCARPETTA: CONFIDENCIAL, com letra elaborada, feita com caneta-tinteiro, e tenho o cuidado de não tocar mais nada
com as mãos nuas, especialmente a fita. É uma boa fonte de impressões digitais, DNA e materiais microscópicos. Impressões escondidas podem ser reveladas em superfícies
porosas tais como papel por meio de um reagente como a ninidrina.
"Tem uma faca?" Pouso o envelope no colo. "E preciso que me empreste suas luvas."
Benton estende o braço e abre o porta-luvas; no interior há um canivete multifuncional Leatherman, uma lanterna, uma pilha de guardanapos. Ele puxa um par de luvas
de camurça do bolso do casaco e minhas mãos se perdem dentro delas, mas não quero deixar impressões digitais nem apagar as de outra pessoa. Não acendo a luz interna
do carro, mas a visibilidade está ruim e continua a piorar. Iluminando com a lanterna, introduzo uma pequena lâmina em um dos cantos do envelope.
Corto ao longo do topo e extraio duas folhas dobradas de papel de carta amarelado de gramatura alta com uma marca d'água que não consigo entender claramente, mas
parece algum tipo de brasão ou insígnia de família. O cabeçalho é o mesmo endereço em Beacon Hill, e as duas páginas foram datilografadas em uma máquina de escrever
com fonte cursiva, que é algo que não vejo há muitos anos, talvez há pelo menos uma década. Leio em voz alta:
Kay Scarpetta,
Espero que desculpe o que tenho certeza de que deve parecer um gesto inconveniente e arrogante de minha parte. Mas sou uma mãe desesperada, tão desesperada quanto
é possível.
Meu filho Johnny confessou um crime que sei que ele não cometeu e que não poderia ter cometido. Ele decerto teve dificuldades ultimamente que resultaram em nossa
busca de tratamento, mas, mesmo assim, nunca manifestou problemas sérios de comportamento, nem mesmo quando comecou Harvard como um garoto introvertido e amedrontado
de quinze anos. Se era para ter um colapso nervoso, acho que teria sido nessa ocasião, quando saiu de casa pela primeira vez, sem possuir as habilidades para interagir
com as outras pessoas e fazer amigos. Ele se saiu extraordinariamente bem até o outono passado, em seu último ano, quando sua personalidade mudou de forma alarmante.
Mas ele não matou ninguém!
O dr. Benton Wesley, consultor do fbI e integrante da equipe do Hospital McLean, conhece bem o histórico e os obstáculos evolucionários, e talvez tenha a liberdade
de discutir esses detalhes com o senhor, visto que não pareceu inclinado a discuti-los com seu assistente, o dr. Fielding. A história de Johnny é longa e complexa,
e preciso que a ouca. Basta dizer que quando ele foi admitido no McLean, na segunda-feira passada, foi por ter sido considerado um perigo para si próprio. Ele não
havia ferido nenhuma outra pessoa, nem insinuado que poderia fazê-lo. Então, de repente, do nada, ele confessou esse crime odioso e terrível e foi rapidamente transferido
a uma ala trancada, para os clinicamente insanos. Pergunto ao senhor, como é possível que as autoridades tenham acreditado tão prontamente em suas histórias absurdas
e delirantes?
Preciso conversar com o senhor. Sei que sua instituicão realizou a autópsia do menino que morreu em Salem e creio que seja razoável solicitar uma segunda opinião.
É evidente que tem conhecimento da conclusão do dr. Fielding - que o assassinato foi premeditado, cuidadosamente planejado, uma execucão a sangue-frio, que foi uma
iniciacão para um culto satânico. Algo monstruoso assim é absolutamente inconsistente com qualquer coisa que meu filho poderia fazer a alguém, e ele nunca teve nada
a ver com cultos de qualquer espécie. É absurdo presumir que sua predilecão por livros e filmes de terror, sobrenaturais ou violentos o tenha influenciado dessa
maneira.
Johnny sofre da síndrome de Asperger. É espetacularmente dotado em certas áreas e completamente incompetente em outras. É obcecado por hábitos e rotinas muito rígidos,
e, em 30 de janeiro, estava tomando um brunch no Biscuit com a pessoa mais próxima dele, uma aluna de pós-graduacão de extremo talento chamada Dawn Kincaid, exatamente
como os dois fazem todas as manhãs de sábado das dez à uma da tarde. Ele não poderia, portanto, estar em Salem quando o menino foi morto, às três.
Johnny possui a extraordinária capacidade de lembrar e papagaiar os detalhes mais obscuros, e para mim está claro que o que disse às autoridades saiu direto do que
lhe contaram sobre o caso e do que apareceu nos noticiários. Ele realmente parece acreditar que é culpado (por motivos que não compreendo) e afirma até mesmo que
uma "perfuracão" em sua mão esquerda provém de um mau disparo da pistola de pregos quando ele a usou no garoto, o que é falso. O ferimento foi causado por ele mesmo,
uma perfuracão proveniente de uma faca e um dos muitos motivos por que o levamos ao McLean para início de conversa. Meu filho parece decidido a ser severamente punido
por um crime que não cometeu, e, da forma como as coisas estão caminhando, vai ter seu desejo realizado.
Abaixo estão meus números de contato. Espero que o senhor tenha compaixão e que eu receba notícias suas em breve.
Atenciosamente,
Erica
Erica Donahue
6
Devolvo as folhas do papel de carta grosso e firme ao envelope, em seguida embrulho tudo em guardanapos que encontrei no porta-luvas e coloco no compartimento com
zíper da minha bolsa. Uma das coisas que aprendi é que não é possível voltar atrás. Sempre que uma prova em potencial é cortada, contaminada ou perdida, é como a
espátula de um arqueólogo despedaçando um tesouro antigo.
"Ela não sabe que somos casados", comento enquanto as árvores se agitam ao vento ao longo da rodovia, a neve rodopiando lívida.
"Parece que não", retruca Benton.
"O filho dela sabe?"
"Não discuto você nem minha vida pessoal com os pacientes."
"Então ela não deve saber muita coisa sobre mim."
Tento imaginar como é possível que Erica Donahue não tenha dito ao motorista que a pessoa a quem ele deveria entregar a carta é uma loura miúda, não um homem alto
de cabelo grisalho.
"Ela usa máquina de escrever, supondo que tenha datilografado isso", continuo a deduzir. "Mas quem quer que se dê o trabalho de lacrar o envelope para garantir confidencialidade
provavelmente não vai deixar que outra pessoa datilografe a carta. Se ela ainda usa máquina de escrever, é pouco provável que utilize a internet ou o Google. O papel
com marca d'água, a caneta-tinteiro, a fonte manuscrita da máquina, talvez seja uma pessoa purista, muito precisa, alguém que tem uma maneira muito estabelecida
de fazer as coisas."
"Ela é uma artista", diz Benton. "Uma pianista clássica que não compartilha os interesses altamente tecnológicos do resto da família. O marido é físico nuclear.
O filho mais velho é engenheiro em Langley. E Johnny, como ela salientou, é incrivelmente talentoso. Em matemática, ciências. Ter escrito essa carta não vai ajudar
o filho. Eu gostaria que ela não tivesse feito isso."
"Você parece muito envolvido com ele."
"Detesto quando pessoas vulneráveis se tornam uma saída fácil para os outros. Só porque alguém é diferente e não age como o restante de nós deve ser culpado de alguma
coisa."
"Tenho certeza de que o promotor público de Essex não ficaria satisfeito ao ouvir você dizer isso." Parto do princípio de que foi ele quem contratou Benton para
avaliar Johnny Donahue, mas Benton não está agindo como consultor, e certamente não como consultor do gabinete do advogado distrital. Está agindo como outra coisa.
"Declarações enganosas, ausência de contato visual, confissões falsas. Um rapaz com Asperger e seu interminável isolamento e busca de amigos", diz Benton. "Não é
incomum que uma pessoa assim seja excessivamente influenciável."
"E por que alguém ia querer influenciar Johnny para que ele assumisse a culpa por um crime violento?"
"Tudo que é necessário é a sugestão de alguma coisa suspeita. Por exemplo, que estranha coincidência você falar nessa coisa de ir para Salem e depois aparecer um
menino assassinado lá. Tem certeza de que você se machucou quando prendeu a mão na gaveta, ou aconteceu de outro jeito e você não está lembrado? As pessoas veem
culpa, então Johnny também vê. Ele é levado a dizer o que acha que os outros querem ouvir e a acreditar no que acha que querem acreditar. Não tem nenhuma compreensão
das consequências do seu comportamento. Pessoas com síndrome de Asperger, em especial adolescentes, estão estatisticamente sobrerrepresentadas entre gente inocente
que é presa e condenada."
Os flocos de neve aumentam de repente e voam selvagemente como pétalas de corniso sob efeito do vento forte. Benton reduz a marcha no tiptronic e pisa de leve no
freio.
"Talvez seja melhor encostar." Não enxergo a rodovia; os faróis refletem a brancura que enxameia ao nosso redor.
"É só um foco de tempestade, como uma microprecipitação." Ele debruça-se sobre o volante, olhando direto para a frente, enquanto somos fustigados por rajadas de
vento ameaçadoras. "Acho que é melhor passar por isso."
"Talvez seja melhor parar."
"Estamos em uma via asfaltada. Estamos na pista. Não tem nada vindo." Ele checa os espelhos. "Nada atrás de nós."
"Espero que você esteja certo." Não me refiro apenas à neve. Tudo parece ameaçador, como se forças sinistras nos rodeassem, como se estivéssemos sendo advertidos.
"Não foi uma coisa inteligente. Foi bem-intencionada, mas não inteligente." Benton dirige bem devagar através da brancura caótica. "É uma opinião, mas não vai ser
útil. É melhor você não telefonar para ela."
"Vou ter que mostrar a carta à polícia", retruco. "Ou pelo menos contar a respeito, para eles decidirem o que querem fazer."
"Ela só piorou a situação." Ele diz isso como se fosse o responsável. "Não se envolva nisso, telefonando para ela."
"Além de tentar influenciar o serviço médico legal, de que forma ela piorou a situação?", pergunto.
"Vários pontos-chave estão incorretos. Johnny não lê terror, sobrenatural ou violento, nem assiste a filmes desse tipo, não que eu saiba, pelo menos, e esse detalhe
não vai ajudar. Além disso, Mark Bishop não foi assassinado às três. Foi por volta das quatro. A sra. Donahue pode não se dar conta do que acaba de insinuar a respeito
do filho", diz Benton à medida que a ventania branca termina de forma tão repentina quanto começou.
Os flocos estão outra vez pequenos e gelados, rodopiando como areia sobre o asfalto e formando pequenos montes na beira da rodovia.
"Johnny estava no Biscuit com a amiga, isso é verdade", prossegue Benton, "mas, segundo ele, ficou lá até as duas, não até uma. Aparentemente, os dois vão bastante
lá, mas não estou ciente de ter um sistema rígido de ir ao Biscuit todos os sábados com ela das dez à uma."
O Biscuit fica na Washington Street, a apenas quinze minutos de caminhada de nossa casa em Cambridge, e penso nos sábados em que Benton e eu entramos no pequeno
café com cardápio escrito no quadro-negro e bancos de madeira. Pergunto-me se Johnny e sua amiga alguma vez estiveram lá quando Benton e eu estávamos presentes.
"O que a amiga diz sobre a hora em que eles saíram do café?", pergunto.
"Ela alega que se levantou da mesa por volta da uma da tarde e saiu, deixando ele sentado lá porque estava agindo de forma estranha e se recusou a ir com ela. Segundo
a declaração dela à polícia, Johnny estava falando em ir até Salem para ler sua sorte, estava falando desenfreadamente nisso e continuava sentado à mesa quando ela
saiu."
Acho interessante que Benton tenha examinado uma declaração à polícia ou conheça os detalhes do que disse uma testemunha. Seu papel não é determinar culpa ou inocência,
nem se preocupar com isso, mas avaliar se o paciente está dizendo a verdade e está apto a ir a julgamento.
"Alguém com Asperger teria dificuldade diante do conceito de leitura de cartas ou qualquer coisa dessa natureza", Benton diz, e quanto mais ele relata, mais perplexa
fico.
Benton está falando comigo como se fosse um detetive e estivéssemos trabalhando juntos no caso, ainda que seja enigmático quando se trata de Jack Fielding. Não há
nada de casual nisso. Meu marido raramente deixa escapar informação, mesmo que aparente o contrário. Quando acha que devo tomar conhecimento de alguma informação
que não pode me contar, ele descobre um jeito de fazer com que eu descubra. Quando decide que é melhor que eu não saiba, ele não me ajuda. É dessa forma frustrante
que vivemos e posso ao menos dizer que nunca fico entediada com ele.
"Johnny não consegue pensar de forma abstrata, não consegue entender metáforas. Ele é muito concreto", diz Benton.
"E as outras pessoas no café?", pergunto. "Alguém poderia confirmar o que a amiga relatou ou o que Johnny afirma?"
"Nada mais conclusivo que ele e Dawn Kincaid terem ficado lá na manhã de sábado", responde Benton, e não me recordo de tê-lo visto tão preocupado com alguém que
avaliou. "Desconheço que isso fosse uma rotina semanal e, quando Johnny confessou, vários dias já haviam se passado. É incrível como as pessoas não se lembram das
coisas, e então começam a fazer suposições."
"Tudo que você tem é o que Johnny está dizendo e agora o que a mãe dele escreveu", reitero. "Johnny diz que saiu do Biscuit às duas, então não teria tempo de ir
até Salem e cometer o assassinato por volta das quatro. Mas a mãe dele diz que saiu à uma, e aí ele teria tempo suficiente."
"Como eu disse, isso não vai ajudar. O conteúdo da carta é muito ruim para ele. Até agora, o único álibi que mostraria que a confissão é conversa fiada é a cronologia.
Mas uma hora poderia fazer toda a diferença."
Imagino Johnny erguendo-se da mesa no Biscuit por volta da uma da tarde e dirigindo-se a Salem. Dependendo do tráfego e de quando ele de fato saiu de Cambridge ou
de Somerville e seguiu rumo ao norte pela I-95, pode ter chegado à casa dos Bishop por volta das duas, duas e meia.
"Johnny tem carro?", pergunto.
"Ele não sabe dirigir."
"Um táxi, o trem? Não a balsa nesta época do ano. Só começa a funcionar na primavera, e ele teria que embarcar em Boston. Mas você está certo. Sem carro, Johnny
levaria mais tempo para chegar lá. Uma hora faria diferença para alguém que precisava procurar transporte."
"Só não entendo onde ela conseguiu esse detalhe", diz Benton. "Bom, talvez através dele. Talvez ele tenha mudado a história novamente. Johnny disse que saiu do Biscuit
às duas, não à uma, mas talvez tenha alterado esse detalhe bastante decisivo porque acha que é o que alguém quer ouvir. Mas seria esquisito, muito esquisito."
"Você esteve com ele esta manhã."
"Eu não o influenciaria a alterar um detalhe."
Benton está dizendo que o detalhe é novo e que não acredita que Johnny tenha mudado sua história no que diz respeito à hora em que deixou o café. Parece que a sra.
Donahue simplesmente cometeu um engano, mas, quando tento imaginar a situação, parece estranho.
"De todo jeito, como ele teria chegado a Salem?", pergunto.
"Ele pode ter pegado um táxi ou o trem, mas também não existem provas de que tenha feito isso. Não foi visto por ninguém, não foram encontrados recibos, nada que
prove que já esteve em Salem ou que tinha alguma ligação com a família Bishop. Não há nada a não ser a confissão", diz Benton, enquanto seus olhos se deslocam para
o espelho retrovisor. "A história dele é exatamente o que tem saído nos noticiários, e Johnny modifica os detalhes conforme as notícias e teorias mudam. Essa parte
da carta da mãe está certa. Ele papagueia os detalhes palavra por palavra. Inclusive se alguém sugere um novo cenário ou informação - se o comanda, em outras palavras.
Sugestionabilidade, vulnerabilidade à manipulação, agir de forma a gerar desconfiança são sinais inconfundíveis da síndrome de Asperger." Ele torna a olhar de relance
para o espelho. "E atenção aos detalhes, a minúcias que podem parecer esquisitas para os outros. Como a hora. Ele sempre sustentou que saiu do Biscuit às duas da
tarde. Duas e três, para ser exato. Você pergunta a Johnny que horas são ou a que horas ele fez alguma coisa e ele vai informar com a precisão de segundos."
"Então por que mudaria esse detalhe?"
"Na minha opinião, não mudaria."
"Se ele realmente quer que as pessoas acreditem que assassinou Mark Bishop, parece que o melhor seria dizer que saiu mais cedo."
"Não é que queira que as pessoas acreditem nisso. É que ele acredita nisso. Não por causa daquilo que lembra, mas por causa do que não lembra e por causa do que
tem sido sugerido."
"Por quem? Parece que Johnny confessou antes mesmo de se tornar um suspeito e ser interrogado. Portanto, não foi induzido a uma falsa confissão pela polícia, por
exemplo."
"Ele não lembra. Está convencido de que sofreu um episódio dissociativo depois que saiu do Biscuit às duas da tarde, de alguma forma chegou a Salem e matou o garoto
com uma pistola de pregos..."
"Ele não fez isso", interrompo. "Garanto. Ele não matou Mark Bishop com uma pistola de pregos. Ninguém matou."
Benton nada diz à medida que acelera, os flocos de neve pequenos novamente, parecendo brita de encontro ao carro.
"Além disso, é evidente que a sra. Donahue interpretou mal a opinião médica de Jack." Falo com convicção enquanto outra parte minha não para de se preocupar com
a forma como devemos lidar com ela. Cogito fazer o que disse Benton e não telefonar. Em vez disso, vou pedir a meu assistente administrativo, Bryce, que faça contato
com ela cedo pela manhã para dizer que lamento, mas não estou autorizada a discutir o caso de Mark Bishop ou nenhum outro. É importante que Bryce não dê a impressão
de que estou muito ocupada, de que estou impassível diante da angústia da sra. Donahue, o que me faz pensar novamente na mãe do soldado de primeira classe Gabriel,
nas coisas dolorosas que ela me disse de manhã em Dover. "Imagino que você tenha examinado o relatório da autópsia", digo a Benton.
"Examinei."
"Então você sabe que não há nada no relatório de Jack que mencione uma pistola de pregos, só que ferimentos causados por pregos, que penetraram o cérebro, foram
a causa da morte." Concluo que não posso permitir que Bryce faça uma chamada como essa em meu nome. Eu mesma vou telefonar e pedir à sra. Donahue que não entre em
contato comigo novamente. Vou enfatizar que é para sua própria proteção. Então me sinto cheia de dúvidas, indo e voltando a respeito do que fazer, já não tão segura
de mim. Sempre tive confiança em minha capacidade de lidar com gente inconsolável, despojada e furiosa, mas não entendo o que aconteceu esta manhã. A sra. Gabriel
me chamou de preconceituosa. Ninguém nunca me chamou de preconceituosa.
"Uma pistola de pregos não foi descartada pelas pessoas que contam", informa Benton. "Inclusive Jack."
"Acho isso quase impossível de acreditar."
"Foi o que ele andou dizendo."
"É a primeira vez que ouço isso."
"Jack disse para todo mundo. Não me interessa o que está escrito no relatório dele, na papelada que você viu", repete Benton enquanto olha pelo retrovisor.
"Por que ele diria algo diferente dos relatórios?"
"Estou simplesmente retransmitindo a você que sei com certeza que ele andou dizendo que uma pistola de pregos foi a arma."
"Dizer que foi usada uma pistola de pregos é absolutamente contrário a provas científicas e médicas." No espelho lateral, vejo faróis atrás de nós. "Uma pistola
de pregos deixa marcas consistentes com um único golpe mecanizado, semelhante à impressão de um gatilho na cápsula de um cartucho. Em vez disso, o que temos nesse
caso são as marcas de um instrumento sobre pregos, que são consistentes com um martelo de mão, e havia marcas de martelo no couro cabeludo e no crânio do garoto,
além de contusões de padrão compatível. As pistolas de pregos muitas vezes deixam um resíduo semelhante ao de um tiro, mas os ferimentos de Mark Bishop deram negativo
para chumbo e bário. Não foi usada uma pistola de pregos e estou francamente surpresa se o que você está insinuando é que a polícia e o promotor acreditam no contrário."
"Não é difícil entender algumas coisas em que as pessoas optam por acreditar nesse caso", diz Benton e acelera, atingindo o limite de velocidade.
Torno a olhar para o espelho lateral e os faróis estão muito mais próximos. Luzes brilhantes branco-azuladas resplandecem. Um SUV grande, com faróis de xenônio e
de neblina. Marino, penso. E atrás dele, espero, está Lucy.
"E querem acreditar que a confissão de Johnny é verdadeira, como eu disse", prossegue Benton. "Querem achar que foi um ataque de surpresa, que Mark Bishop não imaginava
que isso ia acontecer, ou teria lutado. Ninguém quer pensar que uma criança foi subjugada e sabia o que ia acontecer enquanto alguém enfiava pregos em seu crânio
com um martelo, pelo amor de Deus."
"Ele não tinha nenhum ferimento de defesa, não havia evidências de luta ou de sujeição. Está no relatório de Jack. Tenho certeza de que você viu, e tenho certeza
que ele explicou tudo isso ao promotor, à polícia."
"Quem me dera você tivesse feito a autópsia." Benton desvia o olhar para os espelhos.
"O que exatamente Jack andou dizendo além do que li? Além da possibilidade da pistola de pregos?"
Benton não responde.
"Talvez você não saiba", acrescento então, mas acho que sabe.
"Ele disse que não podia descartar a pistola de pregos", esclarece Benton. "Disse que não é possível afirmar de forma definitiva. Disse isso depois que foi questionado
por causa do que Johnny alegou na confissão. Jack foi específica e diretamente questionado se uma pistola de pregos poderia ter sido usada."
"A resposta é definitivamente não."
"Ele garantiu que não era possível dizer de forma definitiva nesse caso. Que pode ter sido uma pistola de pregos."
"Estou te dizendo que não é possível, e que é possível afirmar de forma definitiva", retruco. "E essa foi a primeira vez que ouvi falar de uma pistola de pregos,
a não ser pelo que foi publicado na internet, que descartei, como descarto sempre, a menos que confie na fonte."
"Jack sugeriu que, se você pressionasse uma pistola de pregos contra a cabeça de alguém, obteria uma ferida de contato similar à produzida pelo disparo de uma arma
de fogo. E é possível que seja o que observamos no couro cabeludo e no tecido subjacente. E isso explicaria por que não há evidência de luta ou de que o garoto soubesse
o que estava acontecendo."
"Você não obteria uma ferida de contato similar ao disparo de uma arma de fogo e não é possível", retruco. "Os ferimentos que vi em fotografias são marcas de martelo,
e só porque não havia evidência de luta não significa que o menino não tenha sido de alguma forma coagido, persuadido ou manipulado no sentido de cooperar. Parece
que certas partes estão optando por ignorar as provas do caso por causa daquilo em que querem acreditar. Isso é extremamente perigoso."
"Acho que é Fielding quem está ignorando as provas do caso. Talvez intencionalmente."
"Meu Deus, Benton. Ele pode ser um monte de coisas..."
"Ou é negligência. Um ou outro", diz Benton e creio que ele tem alguma coisa em mente. "Escute. Você fez o melhor que pôde nos últimos seis meses."
"O que isso quer dizer?" Sei o que quer dizer. Exatamente o que temi todos os dias em que estive fora.
"Lembra quando ele era seu amigo na idade das trevas, em Richmond?" Benton está se aproximando de uma zona proibida, mesmo que não saiba disso. "Desde o primeiro
dia, ele não suportava trabalhar com crianças, isso é a mais absoluta verdade, como você já apontou. Quando entrava uma, ele desaparecia no ato, às vezes durante
dias seguidos. E você circulava de carro, tentando encontrar Jack, indo à casa dele, ao seu bar preferido, à academia ou ao tae kwon do, e ele bebia até cair ou
quase matava alguém de porrada. Não que algum de nós goste de lidar com crianças mortas, pelo amor de Deus, mas ele tinha um problema sério."
Eu deveria ter incentivado Fielding a ingressar na patologia cirúrgica, a trabalhar em algum laboratório hospitalar, fazendo biópsias. Em vez disso, fui sua mentora
e o promovi.
"Mas ele pegou o caso de Mark Bishop", diz Benton. "Poderia ter passado o garoto para um dos outros médicos. Só espero que ele não tenha mentido; acima de tudo,
realmente espero que ele não tenha feito isso." Mas Benton acha que Fielding está mentindo. Dá para notar.
"Acima do quê?", pergunto enquanto olho para o espelho lateral, perguntando-me por que Marino está colando no nosso para-choque.
"Espero que não tenha sido incentivado a sugerir a possibilidade da pistola de pregos quando ele sabe que é impossível." Benton tem o hábito de olhar para os espelhos
sem mover a cabeça. Devido a todos os anos de trabalho como agente secreto, vigiando as próprias costas. Certos hábitos nunca desaparecem.
"Quem?", pergunto.
"Não sei."
"Você parece saber. Mas não vai me dizer." Não adianta pressioná-lo. Se não diz, é porque não pode. Vinte anos dessa dança e nunca fica mais fácil.
"Os policiais querem o caso resolvido, isso é certo", diz Benton. "Querem que a pistola de pregos seja a arma porque foi o que Johnny confessou e porque é mais fácil
de lidar com essa ideia do que com a do martelo. Mas me preocupo com a influência sobre Jack."
"Você sabe que alguém o influenciou? Ou é só uma hipótese?"
"Acho que ele está influenciando as pessoas", diz Benton em seguida, e é isso o que realmente pensa.
"Queria que Marino saísse da nossa cola. Esses faróis estão me cegando. O que ele está fazendo?"
"Não é Marino", diz Benton. "Ele não tem faróis assim e tem placa dianteira. Esse carro não. É de um estado que não exige placa dianteira, ou então ela foi removida
ou coberta."
Viro-me para ver e os faróis ferem meus olhos. O utilitário está a pouca distância de nós.
"Talvez seja alguém tentando ultrapassar", reflito em voz alta.
"Vamos ver. Mas acho que não." Benton reduz a velocidade e o utilitário faz o mesmo. "Então vou te obrigar a nos ultrapassar, o que acha?" Ele está falando com o
motorista atrás de nós. "Pegue o número da placa traseira quando ele passar."
Quase paramos, e o utilitário também. Dá uma ré rápida e uma guinada de cento e oitenta graus, seguindo em sentido contrário, rabeando à medida que acelera noite
adentro na rodovia coberta de neve. Não consigo distinguir a placa na traseira nem qualquer detalhe do utilitário, exceto que é escuro e grande.
"Por que alguém estaria nos seguindo?", pergunto a Benton como se ele soubesse a resposta.
"Não faço ideia do que tenha sido isso."
"Alguém estava nos seguindo. Foi isso. Muito de perto por causa do tempo, porque a visibilidade está tão ruim que você tem que ficar perto ou pode perder a pessoa
de vista se ela fizer uma curva."
"Algum idiota", diz Benton. "Ninguém sofisticado. A menos que quisesse que a gente soubesse, ou tenha pensado que não íamos perceber."
"Como é possível? Acabamos de passar por uma nevasca. De onde esse carro saiu? Do nada?"
Benton pega seu telefone e tecla um número.
"Onde você está?", pergunta a quem quer que tenha atendido. Após uma pausa, acrescenta: "Um utilitário grande com faróis de neblina e xenônio, sem placa dianteira,
colado na gente. Isso mesmo. Fez a volta e disparou em sentido contrário. Isso, na Rota Dois. Algum carro assim passou por você? Bom, é estranho. Ele deve ter entrado
em algum desvio. Bom, se... Certo. Obrigado."
Benton recoloca o telefone no console e explica: "Marino está alguns minutos atrás de nós, e Lucy está logo atrás dele. O utilitário desapareceu. Se alguém foi idiota
o suficiente para nos seguir, vai tentar outra vez e vamos descobrir. Se o objetivo é nos intimidar, então quem quer que seja não conhece o alvo".
"Agora nós somos alvos."
"Alguém mais esperto não tentaria isso."
"Por sua causa."
Benton não responde. Mas o que eu disse é verdade. Quem sabe alguma coisa sobre Benton estaria ciente do quão imprudente é achar que ele pode ser intimidado. Sinto
sua rispidez, sua aura dura como aço. Sei o que ele é capaz de fazer quando ameaçado. Ele e Lucy são parecidos. Recebem com prazer o confronto. Benton só é mais
calmo, mais calculista e contido que minha sobrinha.
"Erica Donahue." É o primeiro pensamento que me vem à mente. "Ela já mandou uma pessoa nos interceptar e duvido que perceba quão perigoso é o bonito e charmoso psicólogo
de Harvard que atende o filho dela."
Benton não sorri. "Isso não tem lógica."
"Quantas pessoas sabem do nosso paradeiro?" Não faz sentido tentar aliviar o clima, que é tenso. Benton tem seu próprio esquema de vigilância. É diferente do esquema
de Lucy, e ele esconde muito melhor. "Ou do meu paradeiro. Quantas pessoas sabem?", continuo. "Não só a mãe ou o motorista. O que Jack fez?"
Benton torna a acelerar e não responde.
"Você não acha que Jack tem algum motivo para nos intimidar, não é? Ou tentar", digo então.
Benton não responde e seguimos em silêncio; não há sinal do utilitário com faróis de neblina e xenônio.
"Lucy acha que ele está bebendo muito." Benton por fim recomeça a falar. "Mas você deve ouvir isso dela. E de Marino." Seu tom de voz é monótono e percebo falta
de clemência nele. Não sente nada além de desprezo por Fielding, mesmo que silencie a respeito na maioria das vezes.
"Por que Jack ia mentir? Por que tentaria influenciar alguém?" Estou de volta a esse tópico.
"Aparentemente, ele tem chegado tarde e desaparecido, e está com problemas de pele outra vez." Benton não responde minha pergunta. "Espero que não esteja tomando
esteroides, especialmente na idade dele."
Abro mão da defesa habitual de que quando Fielding está intensamente estressado tem problemas de eczema e alopecia que não consegue evitar. Ele sempre foi obcecado
pelo próprio corpo, é um caso clássico de vigorexia ou transtorno dismórfico muscular, e muito provavelmente isso pode ser atribuído ao abuso sexual que sofreu quando
menino. Seria absurdo percorrer a lista, e não vou fazê-lo dessa vez. Para variar. Continuo a inspecionar o espelho lateral. Mas os faróis de xenônio e neblina se
foram.
"Por que ele ia mentir sobre esse caso?", torno a perguntar. "Por que ia querer influenciar qualquer um?"
"Não consigo imaginar como é possível fazer uma criança ficar parada para aquilo", diz Benton, e ele está pensando na morte de Mark Bishop. "A família estava em
casa e diz que não ouviu gritos, não ouviu nada. Eles alegam que Mark estava brincando num minuto e no outro estava caído de bruços no quintal. Estou tentando visualizar
o que aconteceu e não consigo."
"Tudo bem. Vamos conversar sobre isso, já que você não vai responder minha pergunta."
"Tentei imaginar o ocorrido, tentei reconstruir a situação e não consegui. A família estava em casa. Não é um quintal grande. Como é possível que ninguém tenha visto
uma pessoa ou ouvido alguma coisa?"
Seu rosto está sombrio quando passamos pelo Lanes & Games, onde Marino joga boliche. Como se chama a equipe? Não poupe ninguém. Seus novos amigos, policiais e militares.
"Pensei que já tivesse visto tudo, mas não consigo imaginar como aconteceu", Benton continua nesse assunto porque não pode ou não vai me falar o que de fato tem
em mente a respeito de Fielding.
"Uma pessoa que sabia exatamente o que estava fazendo." Visualizo a cena. Imagino em detalhes penosos o que o assassino executou. "Alguém que conseguiu deixar o
garoto à vontade, talvez o tenha seduzido para que fizesse o que pedia. Talvez Mark tenha pensado que aquilo fazia parte de um jogo, uma fantasia."
"Um estranho apareceu no quintal e fez com que o menino participasse de um jogo que envolvia ter pregos martelados em sua cabeça - ou fingir que isso estava ocorrendo,
o que é mais provável", reflete Benton. "Talvez. Mas um estranho? Não sei. Senti falta de conversar com você."
"Não foi um estranho, ou pelo menos não para Mark. Desconfio que tenha sido alguém de quem ele não tinha motivos para desconfiar - não importa o que a pessoa tenha
lhe pedido para fazer." Tomo por base o que sei a respeito de seus ferimentos ou da ausência deles. "O corpo não mostrava sinais de que ele estivesse aterrorizado
ou em pânico, de alguém tentando lutar ou fugir. Acho que é provável que estivesse familiarizado com o assassino e se sentisse inclinado a cooperar por algum motivo.
Também senti falta de conversar com você, mas estou aqui agora e você não está conversando comigo."
"Estou conversando com você."
"Um dia desses vou colocar pentotal sódico na sua bebida. E descobrir tudo que você nunca me contou."
"Se funcionasse, eu pagaria na mesma moeda. Mas então nós dois teríamos problemas sérios. Você não quer saber tudo. Ou não deve. E eu provavelmente também não."
"Quatro da tarde de 30 de janeiro." Estou pensando em quão escuro estava quando Mark foi assassinado. "A que horas o sol se pôs? Como estava o tempo?"
"Estava completamente escuro às quatro e meia, frio, nublado", diz Benton, que, se estivesse investigando o caso, teria se informado sobre esses detalhes antes de
qualquer outra coisa.
"Estou tentando lembrar se havia neve no chão."
"Não em Salem. Muita chuva por causa do porto. A água aquece o ar."
"Então ninguém recuperou pegadas no quintal dos Bishop."
"Não. Às quatro estava escurecendo e o quintal estava na sombra dos arbustos e árvores", informa Benton como se fosse o detetive no caso. "De acordo com a família,
a sra. Bishop, a mãe, saiu às quatro e vinte para chamar Mark para entrar e encontrou o menino caído de bruços em cima das folhas."
"Por que estamos supondo que ele tinha acabado de ser morto quando a mãe o encontrou? Os achados físicos com certeza não permitem precisar a hora da morte exatamente
às quatro da tarde."
"Pelo fato de que os pais se recordam de ter olhado pela janela aproximadamente às quinze para as quatro e terem visto Mark brincando", esclarece Benton.
"Brincando? O que isso quer dizer exatamente? Que tipo de brincadeira?"
"Não sei ao certo." Benton e sua atitude evasiva outra vez. "Eu gostaria de conversar com a família." Desconfio que já tenha conversado. "Há um monte de detalhes
faltando. Mas ele estava brincando sozinho no quintal e, quando a mãe olhou pela janela por volta das quatro e quinze, não viu o filho. Então saiu para chamar o
garoto e o encontrou. Tentou acordar o menino, depois o pegou e levou correndo para dentro. Ligou para a emergência exatamente às quatro e vinte e três, estava histérica,
disse que o filho não estava se mexendo nem respirando, que estava preocupada que ele estivesse engasgado."
"Por que ela achou que ele pudesse estar engasgado?"
"Aparentemente, antes de sair para brincar, ele enfiou no bolso algumas balas que tinham sobrado do Natal. Balas duras, e a última coisa que ela disse ao filho quando
ele saiu porta afora foi para não chupar enquanto estivesse correndo ou pulando."
Não posso evitar pensar que esse é o tipo de detalhe que Benton teria obtido dos Bishop em pessoa. Conversou com eles.
"E não sabemos do que estava brincando? Ele estava sozinho, correndo e pulando?", pergunto.
"Acabei envolvido nesse caso depois que Johnny confessou." Benton está sendo evasivo novamente. Por algum motivo, não quer conversar a respeito do que Mark estava
fazendo no quintal. "A sra. Bishop disse mais tarde à polícia que não viu ninguém na área, que não havia sinais de que tivesse entrado na propriedade e que não sabia,
até os médicos o examinarem, que ele tinha sido assassinado. Os pregos foram martelados até o fundo; o cabelo escondeu e não havia sangue. E os sapatos desapareceram.
Ele estava com tênis Adidas enquanto brincava no quintal. Eles sumiram e ainda não apareceram."
"Um menino brincando no quintal perto de escurecer. Mais uma vez, é difícil imaginar que fosse cooperar com um estranho. A menos que fosse alguém que representava
alguma coisa em que ele instintivamente confiava." Continuo a defender essa tese.
"Um bombeiro. Um policial. O cara que dirige o caminhão de sorvete. Esse tipo de coisa", Benton reflete com facilidade, como se fosse seguro conversar sobre isso.
"Ou pior. Um membro da própria família."
"Um membro da família mataria o garoto de forma tão sádica e depois tiraria seus sapatos? Tirar os sapatos dá a ideia de que o assassino queria uma lembrança."
"Ou queria que pensassem nisso", diz Benton.
"Não sou psicóloga forense", digo então. "Estou desempenhando seu papel e não devia fazer isso. Eu gostaria de ver onde aconteceu. Jack não foi à cena do crime e
devia ter feito uma visita retrospectiva." Meu humor piora quando digo isso. Ele não foi à cena de Mark Bishop e não foi a Norton's Woods.
"Ou outro garoto. Crianças jogando um jogo que acabou se tornando mortal", diz Benton.
"Se foi outro garoto", retruco, "estava muito bem informado em termos anatômicos."
Visualizo as fotografias da autópsia, a cabeça do garoto com o couro cabeludo iluminado por trás. Visualizo as tomografias computadorizadas, imagens tridimensionais
de quatro pregos de ferro de cinco centímetros penetrando o cérebro.
"Quem quer que tenha feito isso não podia ter escolhido posições mais letais para introduzir os pregos", explico. "Três atravessaram o osso temporal acima da orelha
esquerda e penetraram a ponte. Um foi pregado na parte posterior do crânio, direcionado para o alto, então lesionou a junção cérvico-medular, ou a medula cervical
superior."
"Em quanto tempo ele morreu?"
"Quase instantaneamente. Só o prego na parte posterior da cabeça o teria matado em minutos, tanto quanto uma pessoa leva para morrer quando não consegue mais respirar.
Lesões nos níveis C-1 e C-2 da medula espinhal interferem na respiração. A polícia, o promotor, um corpo de jurados, por sinal, teriam dificuldade em acreditar que
outra criança poderia ter feito isso. Parece que causar a morte, a morte quase imediata, era a intenção, e o ato foi premeditado, a menos que houvesse martelo e
pregos na cena do crime, no quintal ou na casa e, segundo todos os registros, não havia. Certo?"
"Havia um martelo. Mas que casa não tem um martelo? E as marcas da ferramenta não coincidem. Você sabe disso pelos relatórios do laboratório. Não havia pregos como
os que mataram o menino. Não foram encontrados na residência da família, nem uma pistola de pregos", informa Benton.
"Eram pregos em L, usados para pregar assoalhos."
"Segundo a polícia, nenhum prego desses foi encontrado na residência", repete ele.
"Ferro, não aço inoxidável." Prossigo com detalhes das fotografias, dos relatórios do laboratório, e simultaneamente ouço a mim mesma, estou ciente de que examino
o caso com Benton como se fosse meu. Como se fosse dele. Como costumávamos investigar casos no início do relacionamento. "Com traços de ferrugem apesar da camada
protetora de zinco, o que sugere que não eram novos", continuo. "Que talvez tivessem sido expostos a umidade, possivelmente água salgada."
"Não havia nada assim na cena do crime. Nenhum prego em L, absolutamente nenhum prego de ferro", diz Benton. "O pai andou espalhando o boato da pistola de pregos,
pelo menos publicamente."
"Publicamente. O que significa que ele contou à imprensa", presumo.
"Isso."
"Mas quando? Ele contou à imprensa quando? É isso que importa. De onde saiu o boato e quando. Sabemos que isso começou com o pai, e, se foi assim, é significativo.
Pode implicar que está oferecendo um álibi, sugerindo uma arma que não possui, que está tentando conduzir a polícia na direção errada."
"Concordo", diz Benton. "O sr. Bishop pode ter sugerido isso aos meios de comunicação, mas a questão é: alguém sugeriu isso a ele primeiro?"
Detecto mais sutilezas. Ocorre-me que Benton sabe como o boato da pistola de pregos começou. Sabe quem o originou e não é difícil adivinhar o que ele está insinuando.
Jack Fielding está tentando influenciar as pessoas sobre o caso. Talvez esteja por trás do boato que agora está em todos os noticiários.
"Devíamos fazer uma retrospectiva. Estou tentando lembrar o nome do detetive em Salem." Há tanto por fazer, tanta coisa que deixei escapar. Mal sei por onde começar.
"Saint Hilaire. James."
"Não conheço." Sou uma estranha em minha própria vida.
"Ele está convencido da culpa de Johnny Donahue e estou realmente preocupado que seja só uma questão de tempo até que Johnny seja acusado de assassinato em primeiro
grau. Precisamos agir rápido. Quando Saint Hilaire ler o que a sra. Donahue escreveu, as coisas vão piorar. Ele vai ficar mais convencido da culpa de Johnny. Temos
que fazer alguma coisa rápido", diz Benton. "Eu não devia me preocupar, mas me preocupo. Johnny não fez isso e nenhum júri vai gostar dele. Ele é inconveniente.
Interpreta mal as pessoas e elas o interpretam mal. Acham que é insensível e arrogante. Ri de coisas que não são engraçadas. É rude e obtuso, e não faz ideia disso.
A coisa toda é absurda. Uma caricatura. Provavelmente, um dos exemplos de confissão falsa mais claros que já vi."
"Então por que continua em uma unidade fechada no McLean?"
"Ele precisa de tratamento psiquiátrico, mas não, não devia estar trancafiado em uma unidade com pacientes psicóticos. Essa é minha opinião, mas ninguém me dá ouvidos.
Talvez você possa falar com Renaud e Saint Hilaire e eles te ouçam. Vamos até Salem e analisamos o caso com eles. Enquanto estivermos lá, damos uma olhada em tudo."
"E o colapso nervoso de Johnny?", pergunto. "Se acreditarmos na mãe, ele estava bem nos primeiros três anos em Harvard e de repente teve que ser hospitalizado. Quantos
anos Johnny tem?"
"Dezoito. Voltou a Harvard no outono passado para começar o último ano e estava visivelmente alterado", explicou Benton. "Verbal e sexualmente agressivo e cada vez
mais agitado e paranoico. Com o pensamento desorganizado e as percepções distorcidas. Sintomas semelhantes à esquizofrenia."
"Drogas?"
"Não existe absolutamente nenhuma evidência. Ele foi submetido a exames quando confessou o assassinato e deram negativo; até seu cabelo deu negativo para drogas
e álcool. Sua amiga da pós, Dawn Kincaid, está no MIT, e ela e Johnny estavam trabalhando juntos em um projeto. Ela ficou tão preocupada que por fim ligou para a
família dele. Isso foi em dezembro. Então, há uma semana, Johnny foi internado no McLean com uma facada na mão e disse ao psiquiatra que tinha assassinado Mark Bishop,
alegando que pegou o trem para Salem levando uma pistola de pregos na mochila. Disse que precisava de um sacrifício humano para se livrar de uma entidade maligna
que tinha assumido o controle de sua vida."
"Por que pregos? Por que não outra arma?"
"Tem alguma coisa a ver com os poderes mágicos do ferro. E grande parte disso apareceu no noticiário."
Eu me lembro de ter visto alguma coisa na internet sobre osso do diabo e menciono o fato.
"Exatamente. É como o ferro era chamado no antigo Egito", retruca Benton. "Vendem osso do diabo em algumas lojas em Salem."
"Dispostos em X. A pessoa carrega em uma bolsa de cetim vermelho. Já vi em algumas lojas de bruxaria. Mas não o mesmo tipo de pregos. Os das lojas de bruxaria parecem
mais cravos, têm que parecer antiguidade. E duvido que sejam tratados com zinco, que sejam galvanizados."
"Supostamente, o ferro protege contra espíritos malignos, daí a explicação dele para ter usado pregos de ferro. E a história não tem nada de original; como você
já sinalizou, foi uma das teorias que apareceram em todos os noticiários nos dias que antecederam a confissão dele do assassinato." Benton faz uma pausa, depois
acrescenta: "Sua própria repartição sugeriu a magia negra como motivador, aparentemente por causa da ligação com Salem".
"Não é nosso trabalho apresentar teorias. Nosso trabalho é sermos imparciais e objetivos, então não sei o que você está querendo dizer quando afirma que sugerimos
tal coisa."
"Só estou dizendo que isso foi discutido."
"Com quem?" Mas sei a resposta.
"Jack sempre foi irresponsável. Mas parece ter perdido o pouco controle que tinha", diz Benton.
"Acho que já constatei que Jack é um problema que não posso mais tentar resolver. Sobre o que era o projeto?" Volto ao que Benton mencionou a respeito da amiga de
Johnny Donahue no MIT. "E qual é o curso dele?"
"Ciências da computação. Desde o início do verão passado, ele estava estagiando na Otwahl Technologies em Cambridge. Como salientou a mãe, Johnny é excepcionalmente
talentoso em algumas áreas..."
"Fazendo o quê?" Visualizo a sólida fachada de concreto que se ergue como a represa Hoover a pouca distância do local por onde acabamos de passar, a parte de Cambridge
onde o utilitário com faróis de xenônio nos seguiu antes de desaparecer.
"Engenharia de software para UGVs e tecnologias relacionadas", informa Benton como se não fosse nada demais porque ele não sabe o que faço no que concerne aos UGVs.
Veículos terrestres não tripuláveis. Robôs militares como o protótipo MORT no apartamento do homem morto.
"O que está acontecendo aqui, Benton?", pergunto, carregada de sentimento. "Por Deus, o que está acontecendo?"
7
A tempestade aquietou, o vento está muito mais brando agora e a neve já tem vários centímetros de profundidade. O tráfego é constante na Memorial Drive, sendo o
clima de pouca importância para as pessoas acostumadas ao inverno de New England.
O telhado das repúblicas e os campos esportivos do MIT estão cobertos por um branco compacto no lado esquerdo da rodovia e, no outro lado, a neve flutua como fumaça
na ciclovia e no ancoradouro e desaparece no negrume gelado do Charles. Mais a leste, onde o rio deságua no porto, o horizonte de Boston exibe formas retangulares
fantasmagóricas e manchas de luz na noite leitosa; não há tráfego aéreo sobre Logan, nenhum avião à vista.
"Devíamos encontrar Renaud logo que possível - quanto mais cedo, melhor." Benton acha que o promotor distrital de Essex, Paul Renaud, deveria saber que talvez haja
algo mais na confissão de Johnny Donahue e que, de alguma forma, o aluno do último ano da Harvard e o morto em minha geladeira talvez estejam relacionados. "Mas
e se isso envolver a DARPA?", acrescenta Benton.
"A Otwahl é financiada pela DARPA. Mas não é a DARPA, não é o Departamento de Defesa. É civil, uma indústria privada internacional", respondo. "Mas é certo que está
intimamente ligada ao governo através de subvenções substanciais, dezenas de milhões, talvez muito mais que isso, desde a invenção dos MORT."
"A questão é no que mais eles estão concentrados, agora que podem ser importantes para essa história toda."
"Honestamente, não sei. Mas o óbvio vai dar para perceber só de olhar para o lugar." Se seguíssemos em direção a Hanscom, passaríamos a menos de dois quilômetros
da Otwahl Technologies e das instalações de teste em supercondutividade contíguas, um complexo gigantesco e autônomo com sua própria força policial particular. "Nêutrons,
muito provavelmente, e como se aplicam às novas tecnologias."
"A robótica", diz Benton.
"Robôs, nanotecnologia, engenharia de software, biologia sintética. Lucy sabe alguma coisa a respeito."
"Provavelmente mais que alguma coisa."
"Conhecendo minha sobrinha, sim. Muito mais que alguma coisa."
"Eles provavelmente estão criando humanoides, para nunca ficarmos sem soldados."
"Talvez estejam." Não estou brincando.
"E Briggs sabia sobre o robô no apartamento do sujeito." Benton está se referindo ao apartamento do morto. "Por causa dos vídeos? O que mais? Fico me perguntando
se ele disse alguma coisa a Jack, se telefonou e o alertou ao fazer perguntas."
Dou mais explicações, fazendo um relato detalhado do homem e das gravações que Lucy descobriu - gravações que Marino, de forma inapropriada, enviou a Briggs por
e-mail antes que eu tivesse a chance de examiná-las. Quando pude vê-las, foi apenas superficialmente, a caminho do Terminal Aéreo Civil em Dover. Conto a Benton
tudo a respeito do malfadado robô de seis pernas, o Transporte de Remoção Operacional Funerária, conhecido como MORT, perto da porta, e o faço recordar as controvérsias,
as desavenças que tive com alguns políticos e especialmente com Briggs sobre o uso da máquina para recuperar baixas no teatro de operações ou em qualquer outro lugar.
Descrevo a crueldade, o horror de uma estrutura de metal movida a combustível, que mais parecia uma motosserra, bamboleando através do terreno para recuperar seres
humanos feridos ou mortos, segurando-os com pegadeiras que lembravam a mandíbula de uma formiga-buldogue. "Pense na mensagem que isso transmite se você está morrendo
no campo de batalha e é essa máquina que seus companheiros enviam para te buscar", explico. "E aos conhecidos das vítimas que a veem no noticiário?"
"Você usou uma linguagem exaltada como essa quando testemunhou perante um subcomitê do Senado responsável pelas verbas de defesa", presume Benton.
"Não lembro o que disse exatamente."
"Tenho certeza de que não fez amigos na Otwahl. Provavelmente tem inimigos ali que nem conhece."
"Aquilo não teve nada a ver com a Otwahl nem com qualquer outra empresa de tecnologia. Tudo que fizeram foi criar um veículo robótico não tripulado. Foi o Pentágono
que propôs a máquina. Acho que, originalmente, o MORT foi criado para ser um packbot, mais nada. Eu nem lembrava que a Otwahl era a desenvolvedora até esta noite.
Eles nunca foram uma preocupação minha. Meu desentendimento foi com o Pentágono, e eu tinha que me manter firme." Quase digo dessa vez. Mas me seguro. Benton nada
sabe a respeito da vez em que não me mantive firme.
"Inimigos que não esqueceram. Esse tipo de inimigo nunca esquece. Lamento não ter participado de tudo isso quando estava acontecendo", desculpa-se Benton, pois não
estava presente quando fiz inimigos em Capitol Hill. Ele estava participando de um programa de proteção a testemunha e não podia me dar opiniões, conselhos ou mesmo
garantir que não estava morto. "Você deve ter arquivos sobre o assunto, registros da época."
"Por quê?"
"Eu queria dar uma olhada, para me inteirar da situação. Talvez explique certas coisas."
"Que coisas?"
"Eu queria dar uma olhada no que você tem sobre aquela época", repete Benton.
Transcrições do meu testemunho, gravações de vídeo dos segmentos que foram ao ar na C-SPAN: o que tenho estaria em meu cofre no nosso porão de Cambridge - junto
com certos itens que não quero que ele veja. Uma grossa pasta sanfonada cinza e fotografias que bati com minha própria câmera. Quadrados de cartolina branca manchados
de sangue, improvisados antes do dia dos kits de coleta de DNA nos cartões FTA, porque se o sangue seca ao ar pode durar para sempre e eu sabia para onde se encaminhava
a tecnologia. Envelopes brancos simples com pedaços de unha, pelos pubianos e cabelo. Esfregaços orais, anais e vaginais, calcinhas cortadas, rasgadas e ensanguentadas.
Uma garrafa de Chablis vazia, uma lata de cerveja. Materiais que contrabandeei de outro continente a meio mundo de distância mais de duas décadas atrás, provas que
não deveria possuir, itens que não deveria ter testado em particular, mas testei. Julgo seriamente que se Benton tivesse conhecimento dos casos da Cidade do Cabo,
talvez não se sentisse da mesma forma com relação a mim.
"Você conhece o ditado: a vingança é um prato que se come frio", continua ele. "Ferrou um projeto multimilionário gigantesco, uma joint venture entre o Departamento
de Defesa e a Otwahl Technologies, irritou muita gente e, ainda que alguns anos tenham se passado, desconfio que exista gente lá que não esqueceu, mesmo que você
tenha esquecido. E agora está aqui, trabalhando com o Departamento de Defesa no quintal da Otwahl. A oportunidade perfeita para planejar a vingança, para dar o troco."
"Dar o troco? Um homem que morre em Norton's Woods é o troco?"
"Só acho que devíamos saber com quem estamos lidando."
Então paramos de conversar, porque chegamos à ponte que liga Cambridge a Boston, a Mass Ave, a ponte de Harvard ou a ponte do MIT, como dizem os moradores, dependendo
de quem preferem. Logo adiante, meu centro de operações ergue-se como um farol, em forma de silo com uma cúpula de vidro no topo, sete andares ladeados por titânio
reforçado com aço. Na primeira vez que Marino viu o CFC, resolveu que parecia uma bala dundum e, na escuridão repleta de neve, acho que parece mesmo.
Saindo da Memorial Drive e nos afastando do rio, pegamos a primeira à esquerda e entramos na área de estacionamento, iluminada por lâmpadas solares de segurança
e circundada por uma cerca revestida de PVC preto que não pode ser escalada nem cortada. Retiro um controle remoto da bolsa, pressiono um botão para abrir o alto
portão e avançamos sobre marcas de pneus quase completamente cobertas de pó branco recente. Os carros de Anne e Ollie estão aqui, estacionados perto das vans de
carga e dos utilitários de tração integral. Deveria haver quatro, mas um deles está fora desde antes de começar a nevar, provavelmente o do investigador médico-legal
de plantão.
Pergunto-me quem está de serviço hoje e por que saiu em um de nossos veículos. Está em alguma cena de crime ou em casa? Para além da cerca, há prédios de laboratório
que pertencem ao MIT, em vidro e tijolo, com antenas e parabólicas de rádio no telhado, as janelas às escuras, exceto por algumas aleatórias que brilham fracamente,
como se alguém tivesse deixado uma luminária de mesa ou abajur aceso. A neve risca a noite e ressoa como chuva forte enquanto Benton para perto do meu prédio, no
espaço destinado ao diretor, próximo à vaga de Fielding, que está vazia e cheia de neve.
"Podemos parar na entrada de serviço", diz Benton, com ar esperançoso.
"Seria um pouco antipático, já que ninguém mais pode", retruco. "E não é permitido de qualquer forma. Só para coletas e entregas."
"Dover te estragou. Vou ter que bater continência?"
"Só em casa."
Saltamos; a neve chega aos tornozelos das minhas botas e não compacta embaixo delas porque faz muito frio; os flocos são miúdos e gelados. Insiro um código em um
teclado numérico ao lado de uma porta de enrolar automática, que começa a se erguer com ruído enquanto Marino e Lucy entram no estacionamento. A área de recebimento
parece um pequeno hangar pintado com tinta epóxi branca; o teto é equipado com um guindaste monotrilho, um levantador motorizado para deslocar corpos grandes demais
para tratamento manual. No interior, há uma rampa que conduz a uma porta de metal e, estacionada a um lado, acha-se nossa van branca para transporte de corpos, o
que em Dover chamamos de caminhão do pão, destinada a transportar até seis corpos em macas ou caixas de transporte e servir de laboratório criminal móvel quando
necessário.
Enquanto espero por Marino e Lucy, lembro que não estou vestida para New England. Minha jaqueta tática era perfeitamente adequada em Delaware, mas agora estou gelada.
Tento não pensar em como seria bom sentar diante da lareira com um uísque escocês single malt ou um bourbon de produção limitada para conversar com Benton sobre
outras coisas além de acontecimentos trágicos, traição e inimigos com boa memória. Para fugir de todos. Quero beber e conversar de forma honesta com meu marido,
deixar de lado os jogos e subterfúgios, sem ficar me perguntando o que ele sabe. Anseio por um período normal com ele, mas não sabemos o que é isso. Até mesmo quando
fazemos amor temos nossos segredos e nada é normal.
"Nenhuma novidade a não ser Lawless." Marino responde uma pergunta que ninguém fez enquanto a porta automática desce ruidosamente atrás de nós. "Ele enviou um e-mail
com fotos da cena - finalmente. Mas disse que não tiveram sorte com o cachorro. Ninguém ligou para dar parte de um galgo perdido."
"Que galgo?", pergunta Benton.
Estive ocupada demais descrevendo o MORT e não mencionei outras coisas que vi nos vídeos. Sinto-me ridícula. "Norton's Woods", respondo. "Um galgo preto e branco
chamado Sock que, ao que tudo indica, fugiu enquanto os paramédicos estavam ocupados com nosso caso."
"Como você sabe que o nome dele é Sock?"
Explico enquanto mantenho o polegar sobre o sensor de vidro da fechadura biométrica para que escaneie minha digital. Abrindo a porta que conduz ao nível inferior
do edifício, menciono que o cão talvez tenha um microchip que poderia fornecer informação útil sobre a identificação do proprietário. Alguns grupos de resgate colocam
microchips em antigos galgos de corrida antes de enviá-los para adoção, acrescento.
"Isso é interessante", diz Benton. "Acho que vi os dois."
"Ele olhou direto para você quando estava saindo da garagem por volta de três e quinze da tarde ontem", explica Lucy quando entramos na área de processamento, um
espaço aberto com um escritório de segurança, uma balança digital e uma parede com portas de aço inoxidável maciças que se abrem para compartimentos refrigerados
e um freezer grande.
"Do que você está falando?", pergunta Benton à minha sobrinha.
"Esse tempo todo no carro dirigindo em uma nevasca e você não colocou Benton a par das coisas?" Lucy dirige-se a mim e não é fácil estar por perto quando ela fica
desse jeito.
Sinto uma ponta de aborrecimento, mesmo que ela esteja certa. Lucy conhece você, começa minha mente. Ela conhece você tão bem quanto você a ela. Lucy sabe muito
bem quando estou silenciando alguma coisa que me incomoda e que estou tensa desde que deixei Dover. Foi idiotice minha não entrar no tipo de detalhe com o qual Benton
pode fazer alguma coisa. Não conheço ninguém mais perspicaz em termos psicológicos, e ele teria muito a dizer sobre as minúcias captadas pelos gravadores ocultos
nos fones de ouvido do morto.
Em vez disso, fiquei obcecada pela DARPA porque, na realidade, estava obcecada por Briggs. Não consigo superar o que aconteceu hoje mais cedo, o que aconteceu décadas
atrás, a forma como o que ele causou parece nunca terminar. Briggs conhece meu passado sombrio, um lugar ao qual não levo ninguém, e uma parte minha nunca vai perdoá-lo
por ter participado disso. Minha ida à Cidade do Cabo foi ideia dele. Foi a porra do plano brilhante dele.
"O cara e o galgo passaram direto pela sua garagem poucos minutos antes de ele morrer." Lucy está contando a Benton, mas olha fixo para mim. "Se não tivesse saído,
teria ouvido as sirenes. Provavelmente teria ido até lá para ver o que estava acontecendo e talvez tivesse alguma informação útil para nós."
Lucy me olha como se olhasse para meu passado. Não é possível que tenha conhecimento disso, então me tranquilizo. Nunca lhe contei, nunca contei a Benton, a Marino,
a ninguém. Os documentos foram destruídos, exceto pelo que tenho. Briggs prometeu isso décadas atrás, quando deixei o AFIP e me mudei para a Virginia, e eu já sabia
que faltavam relatórios sem ter sido informada disso. Lucy não possui a combinação do meu cofre, lembro a mim mesma. Nem Benton. Nem ninguém.
"Se você passar em meu laboratório", ela diz a Benton, "te mostro os vídeos."
"Você ainda não viu?", pergunto a Benton, porque não tenho certeza. Ele está agindo como se não tivesse visto, mas não sei se são só mais segredos.
"Ainda não", diz ele, e parece verdade. "Mas quero e vou."
"É estranho você estar nele", diz Lucy. "A casa de vocês estar nele. Muito estranho. Eu meio que pirei quando vi."
O segurança noturno está sentado atrás da janela de vidro e balança a cabeça em nossa direção, mas não se levanta da mesa. Seu nome é Ron, um sujeito grande, musculoso,
de pele escura, com cabelo cortado rente e olhos inamistosos. Parece ter medo de mim ou ser cético, e é evidente que foi instruído para se manter em seu posto, não
ser sociável, não importa de quem se trate. Só posso imaginar as histórias que ouviu e Fielding torna a entrar em meus pensamentos. O que aconteceu? Que problemas
causou? Que prejuízos trouxe a este lugar?
Vou até a janela do segurança e verifico o registro de entradas. Desde as três da tarde, três corpos chegaram: uma morte causada por um veículo, um homicídio por
arma de fogo e uma asfixia por saco plástico.
"O dr. Fielding está aqui?", pergunto.
Policial militar aposentado dos fuzileiros navais, Ron está sempre bem cuidado e imponente em seu uniforme azul-marinho com distintivos da bandeira americana e do
AFMES nos ombros e um emblema metálico de segurança do CFC preso à camisa. O rosto é desconfiado e nem um pouco amistoso por trás da divisória de vidro quando responde
que não viu Fielding. Ele comunica que Ollie e Anne estão aqui, mais ninguém. Nem mesmo o investigador de plantão. Janelle, informa ele em tom monótono, e toda segunda
palavra é senhora, o que me faz lembrar quão frio e condescendente senhora isso, senhora aquilo pode soar e o quanto me cansei de ouvir essa palavra em Dover. Janelle
está trabalhando em casa por causa do tempo, informa Ron. Aparentemente, Fielding disse que tudo bem, mesmo que não seja o caso. Vai contra as regras que estabeleci.
Investigadores de plantão não trabalham em casa.
"Vamos estar na sala de raios X", informo a Ron. "Se aparecer mais alguém, pode nos encontrar lá. Mas, a menos que seja o dr. Fielding, preciso saber quem é e dar
autorização. Na verdade, também quero saber se o dr. Fielding aparecer. Não importa quem seja, preciso ser informada."
"Se o dr. Fielding chegar, a senhora quer que eu avise", repete Ron como se não tivesse certeza de que foi o que eu quis dizer, ou talvez esteja argumentando.
"Isso", esclareço. "Ninguém deve simplesmente entrar, mesmo que trabalhe aqui. A menos que eu diga o contrário. Quero tudo controlado agora."
"Certo, senhora."
"Algum sinal da imprensa?"
"Estou alerta, senhora." Há monitores instalados em três paredes, cada um deles dividido em quadrantes que alternam constantemente as imagens captadas pelas câmeras
de segurança no exterior do edifício e áreas internas estratégicas, como entradas, corredores, elevadores, o saguão e todas as portas que conduzem ao prédio. "Sei
que existe certa preocupação com o homem que foi encontrado no parque." Ron olha para Marino atrás de mim, como se os dois tivessem um acordo.
"Bom, você sabe onde vamos estar por enquanto." Abro outra porta. "Obrigada."
Um longo corredor branco com piso de ladrilho cinza conduz a uma série de dependências situadas em uma ordem lógica que facilita o fluxo de nosso trabalho. A primeira
parada é ID, onde os corpos são fotografados, as impressões digitais colhidas e os objetos pessoais que não foram apreendidos pela polícia são removidos e guardados
em armários. Em seguida, há os raios X em grande escala, que inclui o scanner de tomografia computadorizada, depois a sala de autópsias, a sala de material em decomposição,
a antessala, os vestiários, a sala dos armários, o laboratório de antropologia, o laboratório de contenção Bio4, reservado para os casos suspeitos de doenças infecciosas
ou contaminação. O corredor perfaz um círculo que termina onde começou, na baia de recepção.
"O que Ron sabe sobre nosso paciente de Norton's Woods?", pergunto a Marino. "Por que acha que existe uma preocupação?"
"Eu não disse nada a ele."
"Estou perguntando o que ele sabe."
"Ron não estava de serviço quando saímos mais cedo. Eu ainda não o tinha visto hoje."
"Eu gostaria de saber o que foi que disseram a ele", repito em tom paciente, porque não quero brigar com Marino na frente dos outros. "Essa é uma situação muito
delicada, é claro."
"Dei a ordem antes de sair de que todos tinham que ficar atentos à imprensa", diz Marino, retirando a jaqueta de couro quando chegamos à sala de raios X, onde a
luz vermelha acima da porta indica que o aparelho se encontra em uso. Anne e Ollie não teriam começado sem mim, mas têm o costume de dissuadir as pessoas de entrar
em uma área onde há níveis de radiação muito mais altos do que é seguro para pacientes vivos. "Também não foi ideia minha que Janelle ou os outros trabalhassem em
casa", acrescenta Marino.
Não pergunto há quanto tempo isso vem acontecendo nem quem são os "outros". Quem mais tem trabalhado em casa? Esta é uma instituição do governo estadual, uma instalação
paramilitar, não uma indústria caseira, sinto vontade de dizer.
"O babaca do Fielding", resmunga Marino. "Ele está fodendo com tudo."
Não retruco. Agora não é hora de discutir o quanto tudo está fodido.
"Você sabe onde estou." Lucy afasta-se em direção ao elevador e, com o cotovelo, aperta um botão tão grande que dispensa o uso das mãos. Desaparece atrás de portas
de aço deslizantes enquanto passo o polegar sobre outro sensor biométrico e a fechadura se abre com um clique.
No interior da sala de controle, o radiologista forense dr. Oliver Hess está sentado em uma estação de trabalho atrás de vidro revestido de chumbo, o rosto sonolento
como se eu o tivesse tirado da cama. Para além dele, por uma porta aberta, vejo o Siemens Somatom Sensation branco e ouço o ventilador de seu sistema de refrigeração
a água. O scanner é uma versão modificada daquele empregado em Dover, equipado com suporte adaptável para a cabeça e correias de segurança, fiação subterrânea, seu
parâmetro selado, a mesa coberta por uma pesada capa de vinil para proteger o aparelho multimilionário de contaminantes, tais como fluidos corporais. Ligeiramente
inclinado em direção à porta para facilitar o deslizamento dos corpos para dentro e para fora, o scanner está pronto e a tecnóloga Anne Mahoney está aplicando marcadores
radiopacos de pele no morto de Norton's Woods. Tenho uma sensação estranha quando entro. O corpo é familiar, embora eu nunca o tenha visto, apenas partes dele nas
gravações a que assisti em um iPad.
Reconheço seu tom moreno de pele e as mãos afiladas, que se encontram ao lado do corpo em cima de um lençol azul descartável, os dedos longos e finos ligeiramente
curvados e rígidos devido ao rigor mortis.
Nos vídeos, ouvi sua voz e vislumbrei suas mãos, suas botas, suas roupas, mas não seu rosto. Não sei ao certo o que imaginei, mas fico vagamente perturbada pelas
feições delicadas e o cabelo castanho longo e encaracolado, pela sucessão de leves sardas nas faces lisas. Afasto o lençol e ele é muito magro. Tem cerca de um metro
e setenta e cinco e, se muito, cinquenta e oito quilos, deduzo, com muito pouco pelo. Poderia passar facilmente por um rapaz de dezesseis anos, o que me faz lembrar
Johnny Donahue, que não é muito mais velho. Jovens. Seria esse um denominador comum? Ou é a Otwahl Technologies?
"Alguma coisa?", pergunto a Anne, uma mulher de aparência simples na casa dos trinta, com cabelo castanho revolto e olhos sensíveis cor de avelã. Ela é provavelmente
a melhor pessoa em minha equipe, capaz de fazer qualquer coisa, quer se trate de diversos tipos de imagens radiográficas, de ajudar no necrotério, ou em cenas de
crime. Está sempre disposta.
"Isso. Notei quando tirei as roupas dele." Suas mãos cobertas por luvas de látex agarram o corpo pela cintura e pelo quadril, virando-o de lado para que eu veja
um defeito minúsculo no lado esquerdo das costas na altura dos rins. "Deve ter passado despercebido na cena porque não sangrou, pelo menos não muito. Você está sabendo
do sangramento, que eu mesma vi quando fui fazer os exames dele hoje cedo pela manhã? Que o corpo sangrou profusamente pelo nariz e pela boca depois que foi ensacado
e transportado?"
"É por isso que estou aqui." Abro uma gaveta para pegar uma lente de aumento e então Benton está a meu lado, usando máscara e avental cirúrgico e luvas. "Ele sofreu
algum tipo de ferimento", explico enquanto me debruço sobre o corpo e amplio uma lesão irregular que parece uma pequena casa de botão. "Definitivamente, não é a
entrada de um tiro. É uma facada produzida por uma lâmina muito estreita, como uma faca para desossar, mas com duas bordas. Alguma coisa parecida com um estilete."
"Um estilete nas costas derrubaria o cara?" O olhar de Benton acima da máscara é cético.
"Não. A menos que ele fosse esfaqueado na base do crânio e o ferimento rompesse a medula espinhal." Penso em Mark Bishop e nos pregos que o mataram.
"Como eu disse em Dover, talvez alguma coisa tenha sido injetada", propõe Marino ao entrar coberto da cabeça aos pés com vestimenta de proteção, inclusive viseira
e touca, como se estivesse preocupado com patógenos aéreos e esporos mortais, tal como o antraz. "Talvez algum tipo de anestesia. Uma injeção letal, em outras palavras.
Isso com certeza derrubaria alguém."
"Em primeiro lugar, uma anestesia como tiopental sódico é injetada na veia, assim como o brometo de pancurônio ou o cloreto de potássio." Coloco um par de luvas
de exame. "Não são injetadas nas costas da pessoa. A mesma coisa serve para o mivacúrio e a succinilcolina. Se você quer matar alguém de forma decisiva e rápida
com um bloqueador neuromuscular, o melhor é injetar por via intravenosa."
"Mas se eles fossem injetados no músculo ainda matariam, certo?" Marino abre um armário e pega uma câmera. Vasculha uma gaveta e encontra uma régua plástica de quinze
centímetros para uma referência das dimensões. "Durante as execuções, às vezes a injeção perde a veia e penetra no músculo, mas o preso ainda assim morre."
"Uma morte lenta e muito dolorosa", retruco. "Pelo que todos disseram, a morte desse homem não foi lenta e esse ferimento não foi provocado por uma agulha."
"Não vou dizer que os técnicos na prisão façam de propósito, mas acontece. Bom, provavelmente é de propósito. Alguns deles esfriam o coquetel para se certificar
de que o canalha sinta o rebote, a mão gelada da morte", diz Marino para Anne, que é veementemente contra a pena capital. Sua forma de flertar é chocá-la sempre
que possível.
"Que horror", diz ela.
"Ei. Eles não estão nem aí para as pessoas que matam, certo? Não se importam que sofram. O que vai, volta. Quem escondeu o etiquetador?"
"Fui eu. Fiquei acordada à noite tentando descobrir maneiras de irritar você."
"Ah, é? Por quê?"
"Só por ser você."
Marino procura em outra gaveta e encontra o etiquetador. "Ele parece muito mais jovem do que os paramédicos disseram. Alguém mais percebe isso? Você não acha que
ele parece ter menos de vinte?" Marino pergunta a Anne. "É um garoto."
"Que mal chegou à puberdade", concorda ela. "Mas, para mim, todos os universitários agora têm essa aparência. Parecem bebês."
"Não sabemos se ele era universitário", recordo a todos.
Marino descola o verso de uma etiqueta impressa com a data e o número do caso e prende-a na régua plástica. "Vou pesquisar a área perto do parque, ver se o síndico
de algum prédio reconhece o cara, e vou fazer isso sozinho para manter a indústria dos boatos em silêncio. Se ele mora por ali, o que certamente é o que parece com
base no que vimos nos vídeos, alguém vai ter que se lembrar dele e do galgo. Sock. Isso lá é nome para um cachorro?"
"Provavelmente não é o nome completo", diz Anne. "Cães de raça têm aqueles nomes muito elaborados, registrados em canis, como Sock it to Me, ou Darned Sock ou Sock
Hop."
"Vivo dizendo que ela devia ir a algum programa de perguntas e respostas", declara Marino.
"É possível que o nome esteja em algum registro", comento. "Alguma coisa com Sock, na hipótese de não termos sorte com um microchip."
"Isso se você encontrar o cachorro", diz Marino.
"Estamos correndo atrás das impressões digitais e do DNA do sujeito. Agora mesmo, espero." Benton fita atentamente o corpo, como se estivesse conversando com ele.
"Colhi as impressões esta manhã, mas não tivemos sorte; não tem nada no sistema de identificação de impressão digital. Vamos ter o DNA amanhã e passamos as informações
pelo sistema CODIS." As grandes mãos enluvadas de Marino posicionam a régua sob o queixo do homem. "Mas é meio estranho esse negócio do cachorro. Alguém tem que
estar com ele. Acho que a gente devia publicar informações na imprensa sobre um galgo perdido. Talvez as pessoas liguem."
"Não podemos nos identificar", retruco. "Vamos ficar longe da imprensa agora."
"Exatamente", diz Benton. "Não queremos que os bandidos saibam que estamos cientes do cachorro, muito menos procurando por ele."
"Bandidos?", pergunta Anne.
"O que mais?" Contorno a mesa, fazendo o que Lucy chama de "reconhecimento grosseiro", examinando atentamente o corpo da cabeça aos pés.
Marino está batendo fotografias e diz: "Antes de colocar o cara de volta na geladeira esta manhã, examinei as mãos em busca de resíduos. Coletei alguma coisa em
caráter preliminar, inclusive objetos pessoais".
"Você não me falou de objetos pessoais. Só que ele parecia não ter nenhum", contraponho.
"Um anel com uma insígnia, um relógio Casio de aço. Chaves em um chaveiro. Uma nota de vinte dólares. Uma caixinha de fumo vazia, mas colhi esfregaços em busca de
drogas. Era a caixinha de fumo que aparece no vídeo. Por um segundo, deu para ver o sujeito segurando a caixa pouco depois de chegar a Norton's Woods."
"Onde estava?", pergunto.
"No bolso dele. Foi onde a encontrei."
"Então ele tirou a caixa do bolso no parque e depois tornou a colocar antes do incidente." Recordo o que assisti no iPad, a caixinha sendo segurada pela luva preta.
"Devíamos procurar também inalação e fumo", diz Marino. "Aposto que era maconha. Não sei se você percebeu", continua ele, dirigindo-se a mim, "mas ele tinha um cachimbo
em um cinzeiro em cima da escrivaninha."
"Vamos ver o que aparece no exame toxicológico", retruco. "Vamos fazer um exame do teor alcoólico e agilizar a triagem de drogas. O pessoal lá em cima está ajudando?"
"Vou pedir a Joe para passar para a frente da fila." Anne está se referindo ao toxicologista-chefe, que eu trouxe de Nova York, roubando descaradamente do laboratório
de criminalística do departamento de polícia. "Você é a chefe. Tudo que precisa fazer é pedir." Ela me olha nos olhos. "Bem-vinda de volta."
"Que tipo de insígnia? E como é o chaveiro?", Benton pergunta a Marino.
"Um brasão, um livro aberto com três coroas", responde ele, e percebo que está gostando de Benton estar em desvantagem. O CFC é o território de Marino. "Não tem
nada escrito, nenhuma frase em latim, nada desse tipo. Não sei como são as insígnias do MIT e de Harvard."
"Não são o que você descreveu", diz Benton. "Tudo bem se eu usar isso?" Ele indica um computador em uma bancada.
"O chaveiro é uma daquelas argolas de aço presas a um laço de couro, como os que as pessoas prendem no cinto", continua Marino. "E, como todo mundo já sabe, ele
não levava carteira, nem mesmo um telefone celular. Acho isso incomum. Quem anda por aí sem celular?"
"Ele estava levando o cachorro para passear e ouvindo música. Talvez não estivesse planejando ficar muito tempo fora e não quisesse falar ao telefone", responde
Benton enquanto digita palavras para pesquisa.
Giro o corpo para o lado direito e olho para Marino. "Você quer me ajudar com isso?"
"Três coroas e um livro aberto", diz Benton. "Universidade da Cidade de San Francisco." Ele digita um pouco mais. "Uma universidade on-line especializada em ciências
da saúde. Esse tipo de universidade tem anéis de turma?"
"Os objetos pessoais dele estão em qual armário?", pergunto a Marino.
"Um. Tenho a chave se você quiser."
"Sim, por favor. Alguma coisa que o laboratório precise examinar?"
"Não vejo por quê."
"Então vamos guardar esses objetos até enviar para alguma casa funerária ou para a família quando descobrirmos quem ele é", anuncio.
"E além disso há Oxford", diz Benton em seguida, ainda pesquisando na internet. "Mas, se o anel que ele estava usando era de Oxford, teria os dizeres Universidade
de Oxford, e você disse que não havia nada escrito, nenhum lema."
"Não, nada escrito", retruca Marino. "Mas parece que alguém mandou fazer, sabe, ouro comum com a insígnia gravada, então talvez não seja o oficial, que você encomenda
na faculdade, e por isso não tem nenhum lema nem nada escrito."
"Pode ser", diz Benton. "Mas, se mandaram fazer o anel, acho difícil imaginar que tenha sido para Oxford; eu tenderia a pensar que, se alguém cursou uma faculdade
on-line, talvez tivesse mandado fazer um anel porque não há outro jeito de conseguir um, supondo que a pessoa queira dizer ao mundo que é ex-aluno de uma faculdade
on-line. Esse é o brasão da Universidade da Cidade de San Francisco." Benton se desloca para o lado para que Marino veja o que há na tela do computador, uma insígnia
elaborada com um manto azul e dourado e uma coruja dourada no topo, com três flores-de-lis douradas, então abaixo três coroas douradas e no meio um livro aberto.
Marino está segurando o corpo de lado; aperta os olhos em direção à tela do computador e dá de ombros. "Pode ser. Se foi gravado, se alguém mandou fazer, talvez
não seja tão detalhado."
"Vou olhar o anel", prometo enquanto examino o corpo externamente e faço anotações em uma prancheta.
"Não há motivos para pensar que ele tenha se envolvido em alguma briga; acho difícil a gente conseguir o DNA de um perpetrador ou alguma outra coisa a partir do
relógio ou seja o que for. Mas você me conhece." Marino retoma o que estava dizendo a respeito da verificação dos pertences do morto. "Colhi esfregaços de tudo mesmo
assim. Nada me pareceu fora do comum, a não ser o fato de que o relógio tinha parado, um daqueles automáticos que Lucy gosta, um cronógrafo."
"A que horas ele parou?"
"Eu anotei. Em algum momento depois das quatro da manhã. Cerca de doze horas depois que o cara morreu. Lembrando que esse sujeito tinha uma nove milímetros com dezoito
rodadas, mas não celular", diz Marino. "A menos que ele não tenha deixado o telefone em casa ou alguém levou. Como pode ter levado o cachorro. É isso que fico me
perguntando."
"Vi um telefone em cima de uma mesa nos vídeos", recordo. "Conectado a um carregador perto de um dos laptops. Perto do cachimbo que você mencionou."
"Não conseguimos ver tudo que ele fez lá antes de sair. Acho que pode ter pegado o telefone a caminho da porta", conjectura Marino. "Ou pode ter mais de um. Quem
vai saber?"
"Vamos saber quando encontrarmos o apartamento", diz Benton enquanto imprime o que descobriu na internet. "Eu gostaria de ver as fotos da cena."
"O que você está querendo dizer é quando eu encontrar o apartamento." Marino pousa a câmera em uma bancada. "Porque sou eu que vou investigar. Policiais fofocam
mais que velhas. Descubro onde o cara mora, depois peço ajuda."
8
Em um diagrama do corpo, anoto que às 23h15 o morto está completamente rígido e gelado devido à refrigeração. Apresenta um padrão vermelho-escuro de descoloração
e lividez postural que indica que estava deitado de costas com os braços estendidos ao lado do corpo, palmas das mãos para baixo, completamente vestido, usando um
relógio no pulso esquerdo e um anel no dedo mínimo esquerdo por pelo menos doze horas antes de morrer.
A hipóstase cadavérica, mais conhecida como lividez ou livor mortis, é um de meus indícios preferidos, embora muitas vezes seja mal interpretada, até mesmo por aqueles
que deveriam conhecê-la. Pode parecer com contusões decorrentes de trauma quando, na realidade, é causada pelo fenômeno fisiológico mundano do sangue não circulante
que se concentra nos pequenos vasos devido à gravidade. A lividez apresenta um tom vermelho-escuro, ou pode ser arroxeada, com áreas mais claras onde o corpo permaneceu
apoiado em uma superfície dura; independentemente das informações que recebo a respeito das circunstâncias de uma morte, o corpo em si não mente.
"Não vejo nenhum padrão secundário que indique que o corpo se moveu enquanto o livor ainda estava se formando", observo. "Tudo que estou vendo é consistente com
o fato de ele ter sido fechado dentro de um saco, colocado em uma bandeja e não ter se movido." Prendo um diagrama do corpo em uma prancheta e registro as marcas
produzidas por cós, cinto, joias, sapatos e meias, áreas claras na pele que indicam a forma de um elástico, de uma fivela, de um tecido ou padrão de costura.
"Isso com certeza sugere que ele não moveu nem os braços, não se debateu, o que é bom", conclui Anne.
"Exato. Se ele tivesse voltado a si, teria pelo menos movido os braços. Então isso é muito bom", concorda Marino, chaves tilintando enquanto uma imagem preenche
a tela do computador sobre uma bancada.
Faço uma anotação indicando que o homem não tinha piercings nem tatuagens no corpo e é limpo, com unhas bem aparadas e a pele macia de quem não faz trabalhos manuais
nem se dedica a atividades físicas que possam causar calos nas mãos ou nos pés. Apalpo a cabeça, tateando em busca de defeitos, como fraturas ou outras lesões, e
não encontro nada.
"Resta saber se ele caiu de bruços." Marino está examinando o que o investigador Lester Law enviou por e-mail. "Ou se está deitado de costas nestas fotos porque
os paramédicos mudaram o corpo de posição."
"Para fazer reanimação cardiopulmonar teriam que virar o corpo para cima." Chego perto para ver.
Marino clica em várias fotos, todas na mesma posição, mas a partir de perspectivas diferentes: o homem deitado de costas, a jaqueta verde-escura e a camisa de brim
abertas, a cabeça virada para o lado, os olhos parcialmente fechados; um close do rosto, detritos, que parecem partículas de folhas mortas, grama e brita, agarrados
aos lábios.
"Dê mais zoom nesta", peço a Marino e, a um clique do mouse, a imagem fica maior, o rosto infantil do homem preenchendo a tela.
Retorno ao corpo atrás de mim e procuro ferimentos no rosto e na cabeça, notando uma abrasão embaixo do queixo. Puxo o lábio inferior e encontro uma pequena laceração,
provavelmente produzida pelos dentes inferiores quando ele caiu e bateu com o rosto no caminho de cascalho.
"Isso não pode explicar todo o sangue que vi", diz Anne.
"Não, não pode", concordo. "Mas sugere que ele deu com a cara no chão primeiro, o que também sugere que caiu direto, não cambaleou nem tentou aparar a queda. Onde
está o saco em que ele chegou?"
"Estendi em uma mesa na sala de autópsias, porque imaginei que você fosse querer dar uma olhada", diz Anne. "E as roupas estão secando lá dentro. Quando as tirei,
coloquei tudo na estufa perto da sua estação. Estação um."
"Bom. Obrigada."
"Talvez alguém tenha dado um soco no sujeito", propõe Marino. "Talvez tenha distraído o cara com um soco ou uma cotovelada no rosto, depois lhe dado uma facada nas
costas. Só que provavelmente isso teria sido gravado, estaria nos vídeos."
"Ele teria mais do que só essa laceração se tivesse levado um soco na boca. Se olharem para os detritos no rosto dele e a localização dos fones de ouvido" - estou
de volta ao computador, clicando nas imagens para mostrar - "ele parece ter caído de bruços. Os fones de ouvido estão longe, a mais ou menos dois metros de distância
embaixo do banco, o que indica que o corpo caiu com força suficiente para atirar os fones a boa distância e desconectar o rádio via satélite, que acredito que estivesse
dentro de algum bolso."
"A não ser que alguém tenha deslocado os fones, talvez chutado para fora do caminho", diz Benton.
"Esse foi meu outro pensamento", retruco.
"Quer dizer, alguém que estava tentando ajudar o cara", diz Marino. "As pessoas se amontoaram ao redor dele e os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco."
"Ou alguém fez isso deliberadamente."
Há outra coisa na qual reparo. Clicando nas imagens, paro em uma fotografia do pulso esquerdo do homem. Amplio o relógio de aço equipado com taquímetro, aproximo
o mostrador de fibra de carbono. A hora impressa na imagem é 17h17, que foi quando o oficial de polícia bateu a fotografia, no entanto o relógio marca 22h14, cinco
horas mais tarde.
"Quando recolheu o relógio esta manhã", pergunto a Marino, "você disse que ele parecia ter parado. Tem certeza de que não foi só a hora que era diferente da local?"
"Não. Ele tinha parado. Como eu disse, era um daqueles relógios automáticos e parou em algum momento na madrugada, por volta das quatro."
"Parece que ele estava ajustado cinco horas a mais que o horário da costa leste." Indico o que estou vendo na fotografia.
"Tudo bem. Então deve ter parado por volta das onze da noite pelo nosso horário", diz Marino. "Estava errado desde o início e depois parou."
"Talvez ele estivesse em outro fuso horário porque tinha acabado de chegar do exterior", sugere Benton.
"Assim que a gente terminar aqui, vou encontrar o apartamento dele", diz Marino.
Verifico os números de controle de qualidade no registro para me certificar de que o desvio padrão seja zero e o nível de ruído do sistema esteja dentro dos limites.
"Estamos prontos?", pergunto a todos.
Estou ansiosa para fazer a tomografia. Quero ver o que encontramos dentro dele.
"Vamos fazer um topograma, depois reunir o conjunto de dados antes de passar ao exame 3-D com pelo menos cinquenta por cento de sobreposição", digo a Anne enquanto
ela aperta um botão para que a mesa deslize para o interior do aparelho. "Mas vamos mudar o protocolo e começar pelo tórax, não pela cabeça, a não ser, é claro,
para usar a glabela como referência."
Eu me refiro ao espaço entre as sobrancelhas, acima do nariz, que usamos para orientação espacial.
"Um corte transversal do tórax exatamente correlato à área de interesse que você marcou." Percorro a lista enquanto retornamos à sala de controle. "Uma localização
in situ do ferimento; vamos isolar aquela área e qualquer lesão associada, qualquer pista no prolongamento da ferida."
Sento-me entre Ollie e Anne, e em seguida Marino e Benton puxam cadeiras atrás de nós. Pela janela de vidro, vejo os pés descalços do homem na abertura do túnel
do scanner.
"TM automática e inteligente, ruído dezoito. Rotação de zero vírgula cinco, configuração de detectores de zero vírgula seis", instruo. "Cortes bem finos de alta
resolução. Colimação de dez milímetros."
Ouço os ruídos eletrônicos pulsantes enquanto o detector começa a girar no interior do tubo de raios X. O primeiro exame dura sessenta segundos. Assisto a tudo em
tempo real na tela do computador, sem saber ao certo o que estou vendo, o que é incomum. O aparelho deve estar com defeito ou mostra o exame de algum outro paciente,
acessando o arquivo errado. O que estou vendo?
"Jesus", diz Ollie baixinho, olhando com ar carrancudo para as imagens em uma grade, estranhas imagens que devem ser um engano.
"Oriente no tempo e no espaço e vamos posicionar o ferimento de trás para a frente, da esquerda para a direita e para cima", comando. "Conecte pontos para obter
a penetração da ferida, assim como está. Existe um ferimento e depois ele desaparece? Não sei o que é isso."
"O que estamos vendo?", pergunta Marino, perplexo.
"Nada que eu já tenha visto, com certeza não em uma facada", respondo.
"Bom, em primeiro lugar, ar", anuncia Ollie. "Estamos vendo uma porrada de ar."
"Essas áreas escuras aqui, aqui e aqui." Mostro a Marino e a Benton. "Na TC, o ar aparece escuro. Em contraste com as áreas brancas brilhantes, que mostram densidade
mais alta. Os ossos e as calcificações são brilhantes. Dá para ter uma boa ideia das coisas pela densidade dos pixels."
Estendo a mão para o mouse e posiciono o cursor sobre uma costela para que vejam o que estou querendo dizer.
"A janela da TC é mil cento e cinquenta e um. Enquanto essa área aqui, não tão brilhante" - coloco o cursor sobre uma área de pulmão - "é quarenta. Isso é sangue.
Essas áreas escuras embaçadas que vocês estão vendo são hemorragia."
Recordo os tiros de alta velocidade que causam tremendas lacerações e rompimentos de tecido, semelhantes aos ferimentos causados pela onda de propulsão de uma explosão.
Mas esse não é um caso de ferimento a bala. Isso não se deve a algum dispositivo explosivo detonado. Não vejo como uma ou outra opção possa ser verdade.
"Algum tipo de ferimento que se desloca pelo rim esquerdo, no nível superior através do diafragma e do coração, causando profunda devastação ao longo do caminho.
E tudo isso", indico áreas escuras em torno de órgãos internos que estão deslocados e distorcidos, "é mais ar subcutâneo. Ar na musculatura próxima à coluna. Ar
retroperitonial. Como todo esse ar entrou nele? E aqui e aqui. Lesões nos ossos. Fratura de costela. Fratura da apófise transversa. Hemopneumotórax, contusão pulmonar,
hemopericárdio. E mais ar. Aqui, aqui e aqui." Toco a tela. "Ar em torno do coração e nas câmaras cardíacas, bem como nas artérias e veias pulmonares."
"E você nunca viu uma coisa assim?", pergunta Benton.
"Sim e não. Devastação semelhante causada por fuzis militares, canhões antitanque, algumas semiautomáticas que usam munição de alta velocidade e extremo choque de
fragmentação, por exemplo. Quanto maior a velocidade, mais energia cinética se dissipa no impacto e maior é o prejuízo, especialmente para os órgãos ocos, como os
intestinos e pulmões, e tecidos sem elasticidade, como os do fígado e dos rins. Mas, nesses casos, a gente espera uma trajetória clara do ferimento e um míssil,
ou fragmentos de um. Que não estamos vendo aqui."
"E o ar?", pergunta Benton. "Você vê esses bolsões de ar nesses casos?"
"Não exatamente", respondo. "Uma onda de propulsão pode causar embolia gasosa através da barreira sangue-ar. Em outras palavras, o ar acaba fora de lugar, mas isso
é muito ar."
"Uma porrada de ar", concorda Ollie. "E como a pessoa é atingida por uma onda de propulsão a partir de uma facada?"
"Faça um corte bem nessas coordenadas", peço a ele, indicando a área de interesse marcada por uma gota branca brilhante - o marcador de pele radiopaco de TC que
foi colocado perto do ferimento no lado esquerdo das costas do homem. "Comece por aqui e se desloque cinco milímetros para baixo e para cima da área de interesse
especificada pelos marcadores. Esse corte. Isso. E vamos reformatar para a versão 3-D de dentro para fora. Cortes finos, bem finos, de um milímetro. E o aumento
entre eles? O que você acha?"
"Zero vírgula setenta e cinco por zero vírgula cinco vai resolver."
"Tudo bem. Vamos ver que aparência tem isso quando seguimos virtualmente a trajetória do ferimento, seja ela qual for."
Os ossos parecem vívidos, como se estivessem expostos diante de nós, e órgãos e outras estruturas internas estão bem definidos em tons de cinza à medida que a parte
superior do corpo do morto, seu tórax, começa a girar devagar em três dimensões na tela de vídeo. Usando um software modificado, originalmente desenvolvido para
colonoscopias virtuais, penetramos no corpo através do minúsculo ferimento que parece uma casa de botão, viajando com uma câmera virtual como se nos encontrássemos
em uma nave espacial microscópica, voando lentamente através de nuvens de tecido acinzentadas e melancólicas para além do rim esquerdo rebentado como um asteroide.
Uma abertura irregular se patenteia à nossa frente e passamos através de um largo buraco no diafragma. Adiante há laceração, cisalhamento e contusão. O que aconteceu
com você? O que provocou isso? Não faço ideia. Dá uma sensação de impotência encontrar danos que parecem desafiar a física, um efeito sem causa. Não há nenhum projétil.
Não há fragmentos, nada metálico que eu consiga enxergar. Não há ferimento de saída, só na entrada em forma de casa de botão no lado esquerdo das costas do homem.
Estou pensando em voz alta, repetindo pontos importantes para me certificar de que todos entendam o que é incompreensível.
"Sempre esqueço que nada funciona aqui embaixo", comenta Benton com ar distraído enquanto examina seu iPhone.
"Nada saiu e não tem nada iluminado." Avalio o que deve ser feito a seguir. "Nenhum sinal de nada ferroso, mas precisamos ter certeza disso."
"Não faço a menor ideia do que pode ter causado", declara Benton quando se levanta da cadeira, produzindo um farfalhar à medida que desata o avental descartável.
"Vocês conhecem o velho ditado: nada se cria, tudo se transforma. Como muitos velhos ditados, acho que esse não é verdade."
"Isso é novo. Pelo menos para mim", retruco.
Ele se curva e retira a cobertura dos sapatos. "É sem dúvida um homicídio."
"A menos que tenha almoçado comida mexicana muito estragada", diz Marino.
Passa vagamente por meus pensamentos que Benton está agindo de forma suspeita.
"Um projétil de alta velocidade, mas não existe projétil. E se ele saiu do corpo, onde está o ferimento de saída?" Fico repetindo as mesmas coisas. "Onde está o
metal? Com o que ele foi atingido? Um projétil de gelo?"
"Vi alguma coisa a respeito no Caçadores de Mitos. Eles provaram que é impossível por causa do calor", responde Marino como se eu estivesse falando sério. "Mas não
sei. Me pergunto o que aconteceria se você carregasse a arma e guardasse no congelador até estar preparado para atirar."
"Talvez se você fosse um franco-atirador na Antártica", diz Ollie. "De onde saiu essa ideia afinal? De Dick Tracy? É uma pergunta séria."
"Acho que James Bond. Esqueci o filme."
"O ferimento de saída pode não ser óbvio", diz Anne, dirigindo-se a mim. "Lembra aquela vez que o cara foi atingido na mandíbula e a bala saiu pela narina?"
"Então onde está a trajetória do ferimento?", contraponho. "Precisamos de contraste melhor entre os tecidos, precisamos ter certeza de que não estamos deixando passar
nada antes que eu abra o sujeito."
"Se você precisar da minha ajuda, posso ligar para o hospital", diz Benton enquanto abre a porta. Percebo que ele está com pressa, mas não sei ao certo por quê.
O caso não é dele.
"Caso contrário, vou checar o que Lucy descobriu", diz Benton. "Dar uma olhada nos vídeos. Checar outras coisas. Você não se importa que eu use o telefone lá em
cima?"
"Eu ligo", Anne diz a Benton quando ele sai. "Deixo tudo ajeitado com o McLean e cuido do exame."
Era uma possibilidade teórica que esse dia chegasse, mas temos autorização da Secretaria de Saúde, de Harvard e do Hospital McLean, instituição afiliada à universidade
que possui quatro magnetos que abrangem densidade de fluxo de um vírgula cinco a nove teslas. Há muito tempo, certifiquei-me de que os protocolos estivessem em vigor
para realizar RMs em cadáveres no laboratório de neuroimagem do McLean, onde Anne trabalha meio período como técnica de RM para pesquisa psiquiátrica. Foi como a
consegui. Benton a conheceu primeiro e a recomendou. Ele escolhe bem, é um excelente avaliador de caráter. Eu deveria deixar que contratasse minha equipe. Gostaria
de saber quem ele ia chamar. Nem sei bem por que continua aqui.
"Se você quiser, podemos fazer isso agora", Anne está me dizendo. "Não deve ter nenhum problema, não vai haver ninguém por lá. Paramos direto na porta da frente
e entramos com ele e saímos."
A esta hora, os pacientes psiquiátricos do McLean não vão estar perambulando pelo campus. O risco de toparem com um cadáver sendo carregado para dentro ou para fora
do laboratório é pequeno.
"E se alguém atingiu o cara com um canhão de água?" Marino olha atônito para o tronco girando na tela de vídeo, as costelas encurvadas cintilando brancas em 3-D.
"Sério, sempre ouvi que esse era o crime perfeito. Você enche de água o cartucho de um fuzil e é como uma bala quando atravessa o corpo. Mas não deixa marcas."
"Nunca tive um caso assim", retruco.
"Mas pode acontecer", diz Marino.
"Teoricamente, no entanto, o ferimento de entrada não seria como esse", contesto. "Vamos lá. Quero esse sujeito transferido e fora dali antes que as pessoas comecem
a chegar para o trabalho." É quase meia-noite.
Anne clica no ícone FERRAMENTAS para fazer medições e me informa que a largura da trajetória do ferimento antes que este rebente através do diafragma é de zero vírgula
setenta e sete a um vírgula cinquenta e nove milímetros com quatro vírgula dois milímetros de profundidade.
"Então isso me mostra...", começo a dizer.
"Prefiro trabalhar com polegadas", Marino reclama.
"... algum tipo de objeto ou lâmina de dois gumes não muito mais larga que doze milímetros", explico. "E quando penetrou o corpo até a profundidade aproximada de
cinquenta milímetros, aconteceu outra coisa que causou danos internos profundos."
"O que quero saber é quanto da anomalia que estamos vendo é iatrogênica", diz Ollie. "Causada pelo trabalho dos paramédicos durante vinte minutos. Essa é provavelmente
a primeira pergunta que vão nos fazer. Temos que manter a mente aberta."
"De jeito nenhum. A menos que o King Kong tenha feito a reanimação", retruco. "Esse homem parece ter sido apunhalado com alguma coisa que lhe causou uma tremenda
pressão no peito e uma embolia grande de ar. Sentiu dor forte e morreu em alguns minutos, o que é compatível com o que foi descrito pelas testemunhas: que ele apertou
o peito e caiu."
"Então por que todo aquele sangue depois da ocorrência?", pergunta Marino. "Por que não teve a hemorragia instantaneamente? Como é possível que só tenha começado
a sangrar depois que foi declarado morto, a caminho daqui?"
"Não sei a resposta, mas ele não morreu na nossa geladeira." Disso, ao menos, tenho certeza. "Morreu antes de chegar aqui. Na cena."
"Mas vamos ter que provar que ele começou a sangrar depois de morto. E mortos não começam a sangrar como um porco no espeto. Como provamos que ele estava morto antes
de chegar aqui?", insiste Marino.
"Para quem precisamos provar isso?" Olho para ele.
"Não sei a quem Fielding contou, já que não temos ideia de onde ele está. E se tiver falado com alguém?"
Como você fez, penso, mas não digo. "É por isso que é preciso ter cuidado com a divulgação de detalhes quando não se tem toda a informação." Eu não poderia soar
mais controlada.
"Não tivemos escolha." Marino não vai dar o braço a torcer. "Agora temos que explicar por que motivo um morto começou a sangrar."
Pego meu casaco e digo a Anne: "Primeiro uma TC de corpo inteiro. E uma bobina de RM de corpo inteiro, cada centímetro dele. Faça um upload do que você encontrar.
Quero ver imediatamente".
"Eu dirijo", anuncia Marino.
"Bom, coloquem o corpo no compartimento de carga para ficar aquecido. Em uma das vans."
"Não queremos que ele fique aquecido. Na verdade, vou ligar o ar-condicionado no máximo."
"Então podem ir só os dois. Encontro vocês lá."
"É sério. Se ele aquecer, pode começar a sangrar de novo."
"Você tem assistido muito Saturday Night Live."
"Dan Aykroyd imitando Julia Child. Lembra? 'Você vai precisar de uma faca, uma faca bem, bem afiada.' E sangue jorrando para todo lado."
Os três estão brincando.
"Foi muito engraçado."
"Os antigos eram melhores."
"Nem fala. Roseanne Roseannadanna."
"Ah, meu Deus, adoro a Roseanne."
"Tenho todos em DVD."
Ouço-os rir enquanto me afasto.
Escaneando meu polegar, libero minha entrada à primeira parada depois da recepção, onde fazemos as identificações, uma sala branca com bancadas cinza que chamamos
simplesmente de ID.
Embutidos em uma parede, há armários de metal cinza numerados onde ficam guardadas as provas, e uso a chave que Marino me entregou para abrir o de cima à esquerda,
onde os objetos pessoais do morto foram guardados com segurança até passarmos uma nota a alguma funerária ou para a família quando por fim soubermos quem ele é e
quem deve reclamá-lo. No interior, há sacos de papel e envelopes primorosamente rotulados e, preso a cada um deles, um formulário que Marino preencheu e rubricou
para preservar a cadeia de custódia. Encontro o pequeno envelope em papel manilha que contém o anel de sinete, rubrico o formulário e anoto a hora que o retirei
do armário. Em uma estação de computador, acesso um protocolo e insiro a mesma informação, então me lembro das roupas do morto.
Eu deveria examinar tudo enquanto estou aqui embaixo, não esperar até ter feito a autópsia, daqui a algumas horas. Quero ver o orifício produzido pela lâmina que
penetrou a região lombar do homem e gerou tanta destruição dentro dele. Quero ver quanto ele pode ter sangrado devido ao ferimento e deixo a ID e percorro o corredor
de ladrilhos cinza, voltando atrás. Passo pela sala de raios X e, através da porta aberta, vejo de relance Marino, Anne e Ollie ainda ali, preparando o corpo para
transportá-lo ao McLean, brincando e rindo. Passo rapidamente sem que eles percebam e abro as portas duplas de aço que conduzem à sala de autópsias.
É um vasto espaço aberto pintado com tinta epóxi branca, ladrilhos brancos e trilhos de aço expostos e reluzentes, com luz fria filtrada que corre horizontalmente
ao longo da extensão do teto branco. Onze mesas de aço acham-se posicionadas ao lado de pias de aço instaladas na parede, todas com torneira acionada por pedal,
esguicho de alta pressão, triturador de resíduos, um recipiente para lavagem das amostras e outro para material cortante. As estações que cuidadosamente pesquisei
e mandei instalar são minicentros cirúrgicos modulados com sistemas de ventilação e exaustão que permuta o ar a cada cinco minutos, e há computadores, exaustores,
carrinhos de instrumentos cirúrgicos, luzes de halogênio em braços flexíveis, superfícies de dissecção com tábuas de corte, contêineres de formalina com torneira
e prateleiras de tubos de ensaio e frascos plásticos para histologia e toxicologia.
Minha estação, a estação do chefe, é a primeira e me ocorre que alguém a tem usado; então me sinto ridícula por pensar assim. É claro que as pessoas a usaram enquanto
estive fora. É claro que Fielding provavelmente usou. Não faz diferença e por que eu deveria me importar?, digo a mim mesma quando percebo que os instrumentos cirúrgicos
no carrinho não estão alinhados da forma ordenada que eu os teria deixado. Estão desordenadamente dispostos em um tabuleiro branco grande de polietileno para dissecção
como se alguém os tivesse lavado, mas não com cuidado. Retiro um par de luvas de látex de uma caixa e as coloco, porque não quero tocar em nada com as mãos descobertas.
Em geral não me preocupo com isso, não tanto quanto deveria, acho, pois descendo da escola antiga de patologistas forenses, que eram estoicos, marcados pelas cicatrizes
de batalha e tinham o orgulho perverso de não sentir medo nem repulsa diante de nada. Nem dos vermes, nem dos fluidos de purga, nem de carne putrefata inchada, esverdeada
e viscosa, nem mesmo da aids, pelo menos não as preocupações que temos hoje quando vivemos com fobias e regulamentos federais acerca de absolutamente tudo. Lembro
quando eu circulava sem roupas protetoras, fumando, bebendo café e tocando os pacientes mortos como qualquer médico faria, minha pele em contato com a deles enquanto
examinava um ferimento, avaliava uma contusão ou tirava uma medida. Mas nunca fui descuidada com minha estação de trabalho ou meus instrumentos cirúrgicos. Nunca
fui negligente.
Eu nunca devolveria nem mesmo uma agulha de exploração a um carrinho cirúrgico sem primeiro lavá-la com água quente e sabão, e o tamborilar da água quente na pia
de metal funda foi um som dominante nos necrotérios do meu passado. Já na minha época em Richmond - mesmo antes, quando estava só começando no Walter Reed -, eu
sabia sobre o DNA, que este estava prestes a ser aceito perante um tribunal e se tornar o padrão-ouro forense; desse ponto em diante, tudo que fazíamos nas cenas
de crime, no seguimento da autópsia e nos laboratórios seria questionado no banco das testemunhas. A contaminação estava prestes a se tornar o castigo supremo e,
embora não tivéssemos o hábito de esterilizar nossos instrumentos cirúrgicos em autoclave no CFC, certamente não lhes dávamos uma enxaguada superficial sob a torneira
para depois atirá-los em uma tábua de corte que tampouco estava limpa.
Pego uma faca de dissecção de quarenta e cinco centímetros e reparo em vestígios de sangue seco no cabo de aço inoxidável entalhado e que a lâmina de aço está arranhada,
rombuda e manchada em lugar de afiada e resplandecente como prata polida. Encontro sangue na lâmina serrilhada de um serrote de ossos, manchas de sangue seco no
carretel de um cadarço encerado de cinco fios e em uma agulha de dupla curva. Pego fórceps, tesoura, a tesoura de cortar costelas, cinzel e uma sonda flexível e
fico consternada diante das más condições em que tudo se encontra.
Vou enviar a Anne uma mensagem para que dê uma arrumada em minha estação e lave todos os instrumentos antes de realizarmos a autópsia do homem de Norton's Woods.
Vou mandar limpar toda a sala de autópsias do teto ao chão. Vou mandar inspecionar todos os sistemas antes que minha primeira semana aqui tenha transcorrido, decido
enquanto puxo um novo par de luvas e me encaminho a uma ampla bancada onde um grande rolo de papel branco - que chamamos de papel parafinado - se acha afixado a
um porta-papel instalado na parede. O papel produz um ruído alto quando rasgo um pedaço e cubro uma mesa de autópsia na metade da sala, que pelo menos parece mais
limpa que a minha.
Cubro meus trajes do AFMES com um avental descartável, sem me preocupar com as longas tiras de amarrar, então retorno à minha estação desordenada. Encostada à parede,
há uma estufa branca grande de polipropileno sobre rodízios de borracha vulcanizada com porta dupla em acrílico transparente, que destravo ao inserir um código no
teclado digital. Pendurados no interior, há uma jaqueta de náilon verde com colarinho de lã preta, uma camisa azul de brim, uma calça cargo preta, uma cueca boxer,
cada qual em seu próprio cabide de aço inoxidável; a bandeja na parte inferior contém botas de couro marrom surradas e, ao lado delas, um par de meias cinza de lã.
Reconheço algumas peças de roupa dos vídeos a que assisti e sinto inquietação. O ventilador de centrifugação e os filtros HEPA de exaustão da estufa produzem seu
zumbido baixo enquanto examino as botas e meias pegando uma a uma, sem encontrar nada de extraordinário. A cueca é de algodão branco com braguilha sobreposta e cós
de elástico, e não noto nada fora do comum, nem uma mancha.
Abrindo o casaco sobre a mesa coberta por papel parafinado, enfio as mãos nos bolsos para me certificar de que nada restou dentro deles; pego um diagrama de vestuário
e uma prancheta e começo a tomar notas. O colarinho de pele sintética espessa está coberto de terra, areia e pedaços de folhas secas que aderiram a ele quando caiu
no chão; os grossos punhos de malha também estão sujos. O revestimento em náilon verde é um material muito resistente, que parece à prova de rompimentos e impermeável,
com isolante de fibra preta, nenhum dos quais facilmente penetrável, a menos que a lâmina fosse forte e muito afiada. Não encontro evidência de sangue no forro do
casaco, nem mesmo ao redor da pequena abertura na parte de trás, mas o revestimento externo, os ombros, as mangas e as costas estão enegrecidos e duros do sangue
que se acumulou no fundo do saco depois que o zíper foi fechado e o homem foi transportado ao CFC.
Não sei por quanto tempo ele pode ter sangrado enquanto estava no interior do saco e depois dentro da geladeira, mas não sangrou do ferimento. Quando abro a camisa
de brim de mangas longas, um tamanho masculino pequeno, que ainda cheira de leve a colônia ou loção pós-barba, encontro somente uma mancha escura de sangue que secou
e endureceu ao redor da fenda produzida pela lâmina. O que Marino e Anne relataram parece estar correto: que o homem começou a sangrar pelo nariz e pela boca enquanto
estava completamente vestido dentro do saco, a cabeça voltada para o lado, provavelmente o mesmo lado para o qual estava virada quando o examinei na sala de raios
X. O sangue deve ter gotejado com regularidade de seu rosto para o interior do saco, empoçando e vazando, e verifico facilmente isso quando em seguida o examino,
um receptáculo para transporte de cadáveres adultos, típico daqueles usados pelos serviços de remoção, preto com zíper de náilon. Nas laterais há alças confeccionadas
com correias presas com rebites, e é muitas vezes aí onde ocorre o problema de vazamento, supondo que o saco esteja intacto, sem rasgos nem defeitos nas junturas
seladas a calor. O sangue goteja pelos rebites, especialmente se o saco for muito barato, e este deve ter cerca de vinte e cinco dólares de PVC resistente.
Quando recordo o que acabei de ver na TC e me dou conta da rapidez com que os danos ocorreram no que foi claramente um ataque repentino, o sangramento não faz o
menor sentido. Faz ainda menos sentido do que quando Marino me contou em Dover. A destruição maciça dos órgãos internos do homem teria resultado em hemorragia pulmonar,
que teria provocado sangramento pelo nariz e pela boca. Mas isso teria acontecido quase instantaneamente. Não entendo por que ele não sangrou na cena do crime. Quando
os paramédicos estavam trabalhando para ressuscitá-lo, ele deveria ter sangrado pelo rosto e isso teria sido uma clara indicação de que não caíra devido a arritmia.
Quando deixo a sala de autópsias para me dirigir aos andares superiores, torno a visualizar os vídeos e me recordo de ter pensado sobre as luvas pretas e o motivo
por que ele as colocou quando entrou no parque. Onde estão elas? Não vi as luvas. Não estavam no armário de provas nem na estufa, e verifiquei os bolsos do casaco
e não as encontrei. Com base no que vi nas gravações efetuadas em segredo pelos fones de ouvido do homem, ele vestia luvas quando morreu e visualizo o que acompanhei
no iPad de Lucy quando estava na van a caminho do Terminal Aéreo Civil. A mão colocando a luva preta invadiu a imagem como se o homem estivesse golpeando alguma
coisa, então houve um baque quando a mão atingiu os fones de ouvido e ele deixou escapar: "O que...? Ei...!". Depois árvores nuas girando no alto, então lascas de
ardósia se aproximando no chão e a pancada provocada pela queda; em seguida a bainha de um longo casaco preto farfalhando de passagem. Silêncio, depois as vozes
das pessoas ao redor, que gritavam que ele não estava respirando.
A porta da sala de raios X está fechada quando chego e verifico o interior, mas todos se foram, a sala de controle está vazia e silenciosa, o scanner de TC reluz
branco sob a luz fraca no outro lado do vidro revestido de chumbo. Dou uma parada para tentar o telefone lá dentro, na esperança de que Anne atenda o celular, mas
se ela já estiver no McLean e no laboratório de neuroimagem vai ser impossível alcançá-la através das grossas paredes de concreto do local. Fico surpresa quando
ela atende.
"Onde você está?", pergunto e ouço música ao fundo.
"Estacionando", responde ela, que deve estar dentro da van com Marino na direção e o rádio ligado.
"Quando tirou as roupas dele", pergunto, "você viu um par de luvas pretas? Ele devia estar usando luvas pretas grossas."
Uma pausa; ouço-a perguntar alguma coisa a Marino, em seguida ouço a voz dele, mas não entendo o que estão dizendo. Então ela responde: "Não. E Marino disse que
quando levou o corpo para a ID não viu luva nenhuma".
"Me conte exatamente o que aconteceu ontem pela manhã."
"Fique aqui um instante", ouço-a dizer a Marino. "Não, ali ainda não, ou eles vão sair. Os caras da segurança. Espere aqui", pede Anne. "Tudo bem", diz ela, agora
se dirigindo a mim. "Pouco depois das sete ontem de manhã, o dr. Fielding foi até a sala de raios X. Como você sabe, Ollie e eu sempre chegamos cedo, por volta das
sete; mas ele estava preocupado por causa do sangue. Tinha percebido gotas no chão fora da geladeira e também dentro dela. Percebeu que o corpo estava sangrando
ou tinha sangrado. Tinha muito sangue no saco."
"O corpo ainda estava completamente vestido."
"Estava. O fecho do casaco estava aberto e a camisa tinha sido cortada, os paramédicos fizeram isso, mas ele estava vestido quando chegou e nada foi feito até o
dr. Fielding ir até lá para preparar o sujeito para nós."
"Como assim?"
Fielding nunca prepara um corpo para autópsia, nem se dava o trabalho de transferi-lo da geladeira para a sala de raios X ou a sala de autópsias, pelo menos não
desde os velhos tempos, quando ainda estava em treinamento. Ele deixa o que considera tarefas mundanas para aqueles a quem continua a chamar de servos e a quem chamo
de técnicos.
"Só sei que ele encontrou o sangue e então correu para nos chamar porque atendeu a ligação da polícia de Cambridge e, como você sabe, a hipótese era de que o homem
tinha sofrido morte súbita natural, como uma arritmia, um aneurisma ou coisa parecida."
"E depois?"
"Depois Ollie e eu examinamos o corpo, chamamos Marino, ele chegou, viu, e decidimos não fazer os exames nem o resto."
"Ele foi deixado na geladeira?"
"Não. Marino quis passar com ele pela ID primeiro, para colher digitais e material para os exames de laboratório, para poder ativar a identificação das impressões,
do DNA e qualquer coisa que nos ajude a descobrir quem ele é. Não havia luvas naquela hora, porque Marino teria precisado tirar do corpo para colher as impressões."
"Então onde elas estão?"
"Ele não sabe, eu também não."
"Pode colocar Marino na linha, por favor?"
Ouço Anne entregar o telefone a Marino, e ele diz: "Foi isso. Abri o zíper do saco, mas não retirei o corpo; tinha muito sangue lá dentro, como você já sabe".
"E você fez o que exatamente?"
"Colhi as impressões com ele dentro do saco. Se ele estivesse usando luvas, eu com certeza teria visto."
"É possível que os policiais tenham removido as luvas na cena do crime, colocado dentro do saco e você não tenha percebido? E então de alguma forma elas se extraviaram?"
"Não. Eu procurei por objetos pessoais, como já disse. O relógio, o anel, o chaveiro, a caixinha de fumo, a nota de vinte dólares. Tirei tudo dos bolsos dele e sempre
olho dentro do saco exatamente pelo motivo que você acabou de mencionar. Caso a polícia ou o serviço de remoção enfie alguma coisa ali, como um chapéu, óculos de
sol ou qualquer outra coisa. Os fones de ouvido e o rádio via satélite estavam em um saco e chegaram junto com o corpo."
"E a polícia de Cambridge? Sei que o investigador Lawless levou a Glock."
"Ele passou recibo pela arma para o laboratório de armas de fogo por volta das dez da manhã. Só levou isso."
"E quando Anne guardou as roupas na estufa, bom, é óbvio que ela não tinha as luvas, se você está dizendo que não estavam lá desde o início."
Ouço Marino dizer alguma coisa e então Anne volta ao telefone para explicar. "Não. Não vi as luvas quando guardei tudo na estufa. Isso foi por volta das nove da
noite, há quase quatro horas, quando retirei as roupas para preparar o corpo para o exame, pouco antes de você chegar ao CFC. Limpei a estufa para me certificar
de que estivesse esterilizada antes de colocar as roupas dele lá dentro."
"Fico satisfeita que alguma coisa esteja esterilizada. Precisamos limpar minha estação."
"Tudo bem, tudo bem", diz ela, mas não se dirigindo a mim. "Espere. Jesus, Pete. Só um minuto."
Em seguida a voz de Marino soa em meu ouvido: "Houve outros casos".
"Como é que é?"
"Tivemos outros casos ontem de manhã. Então talvez alguém tenha removido as luvas, mas não faço a mínima ideia do motivo. A menos que tenham sido pegas por engano."
"Quem trabalhou nos casos?"
"O dr. Lambotte, o dr. Booker."
"E Jack?"
"Dois casos além do cara de Norton's Woods", diz Marino. "Uma mulher atingida por um trem e um velho que não estava sob cuidados médicos. Jack não fez merda nenhuma,
desapareceu", continua Marino. "Ele não se preocupa com a cena do crime e terminamos com um corpo que começa a sangrar na geladeira. Agora precisamos provar que
o cara estava morto."
9
A direção do que oficialmente se chama Centro Forense e Necrotério de Cambridge fica no último andar, e descobri que é difícil explicar às pessoas como me encontrar
quando um edifício é redondo.
O melhor que fui capaz de fazer nas raras ocasiões em que estive no prédio foi instruir os visitantes a saltar do elevador no sétimo andar, virar à esquerda e procurar
pelo número cento e onze. Fica uma porta antes do cento e um, e compreender que cento e um é o número de sala mais baixo neste andar e que o cento e onze é o mais
alto requer certa imaginação. As salas que abrigam meu escritório, portanto, ocupariam a extremidade de um longo corredor se houvesse extremidades e corredores longos,
mas não há. Aqui em cima existe apenas um grande círculo com seis escritórios, uma sala de reuniões ampla, a sala de leitura para reconhecimento de voz, a biblioteca,
a sala de descanso e, no centro, um refúgio sem janelas onde Lucy optou por instalar o computador e os documentos duvidosos do laboratório.
Passando pelo escritório de Marino, paro diante do cento e onze, o que ele chama de COMCENT, ou Comando Central. Tenho certeza de que Marino propôs essa denominação
pretensiosa não por me considerar sua comandante, mas por pensar em si mesmo obedecendo a uma ordem superior patriótica análoga a uma vocação religiosa. Sua veneração
pelo militarismo é nova. É só mais um de seus paradoxos, como se Peter Rocco Marino precisasse de mais um paradoxo para definir sua natureza incoerente e conflituosa.
Preciso me acalmar com ele, digo a mim mesma enquanto destranco a pesada porta com camada de titânio de meu escritório. Ele não é tão ruim e não fez nada de tão
terrível. É previsível, e eu não deveria estar nem um pouco surpresa. Afinal, quem o entende melhor que eu? A pedra de Roseta para Marino não é Bayonne, em New Jersey,
onde cresceu como lutador de rua que se tornou boxeador e depois policial. A chave, no caso dele, não é nem mesmo o pai alcoólatra e imprestável. Marino pode ser
explicado acima de tudo pela mãe e pela namorada de infância, Doris, agora sua ex-esposa, duas mulheres aparentemente dóceis, subservientes e carinhosas, mas não
inofensivas. Longe disso.
Aperto botões para acender as luzes embutidas nos suportes da cúpula geodésica de vidro energeticamente eficiente que me faz lembrar de Buckminster Fuller sempre
que olho para cima. Se o famoso arquiteto e inventor continuasse entre os vivos, aprovaria meu prédio e possivelmente a mim, mas não nossa mórbida raison d'être,
desconfio, embora, no estágio em que as coisas estão, eu também lhe fizesse algumas críticas. Por exemplo, não concordo com sua crença de que a tecnologia possa
nos salvar. É certo que ela não está nos tornando mais civilizados; na realidade, acho que o oposto é verdadeiro.
Paro sobre o carpete cor de bronze atrás da porta como se aguardasse permissão para entrar, ou talvez hesite porque me apropriar deste espaço é abraçar uma vida
que adiei por boa parte de dois anos. Para ser honesta, eu diria que a venho adiando há décadas, desde meus primeiros dias no Walter Reed, onde cuidava da minha
própria vida em uma sala abarrotada e sem janelas na sede do AFIP quando Briggs entrou sem bater e deixou cair um envelope cinza de vinte por vinte e sete em minha
mesa no qual estava impresso CONFIDENCIAL.
Quatro de dezembro de 1987. Eu me lembro de modo tão vívido que posso descrever o que estava vestindo, o tempo e o que comi. Sei que tinha fumado muito naquele dia
e tomado várias doses de uísque puro, porque estava agitada e amedrontada. O caso de todos os casos e o Departamento de Defesa queria a mim, tinha me escolhido entre
todos os outros. Ou, mais precisamente, Briggs. Na primavera do ano seguinte, fui dispensada prematuramente pela Força Aérea, não por bom comportamento, mas porque
a administração Reagan me queria longe, e saí sob certas condições escandalosas que ainda hoje me atormentam. É cármico que eu me encontre em um prédio circular.
Nada terminou ou começou em minha vida. O que estava distante está bem ao meu lado. De alguma forma, é tudo a mesma coisa.
A indicação mais gritante de meus seis meses de ausência de um cargo que preciso de fato ocupar é que o escritório administrativo de Bryce, vizinho ao meu, acha-se
confortavelmente atravancado, ao passo que o meu é desabitado e austero. A sensação é de desamparo e solidão; minha pequena mesa de reuniões em aço escovado está
vazia, sem um vaso de plantas sequer, e quando habito um espaço há sempre plantas. Orquídeas, gardênias, plantas carnívoras e árvores para ambientes internos, tais
como a areca e o sagueiro, pois quero vida e fragrâncias. Mas o que eu tinha aqui quando cheguei desapareceu e veio desaparecendo devido ao excesso de água e fertilizantes.
Dei a Bryce instruções detalhadas e três meses para matar tudo. Ele levou menos de dois.
Não há quase nada em minha mesa, uma estação de trabalho modular arqueada, montada em aço calibre vinte e dois com superfície laminada preta e um jogo compatível
de gavetas de arquivo e prateleiras livres entre as amplas janelas com vista para o Charles e o horizonte de Boston. Uma bancada de granito preto atrás de minha
cadeira Aeron estende-se ao longo do comprimento da parede e é o lugar do meu Sistema Leica de Microdissecção a Laser, seus monitores de vídeo e acessórios, e, ao
lado, da minha fiel Leica auxiliar para uso diário e de um microscópio de pesquisa laboratorial mais básico que posso operar com uma das mãos e sem software ou seminário
de treinamento. Não há muito mais que isso, nenhuma pasta de arquivo à vista, nenhum atestado de óbito nem outros documentos para examinar e rubricar, nenhuma correspondência
e muito poucos objetos pessoais. Concluo que não é bom ter um escritório tão perfeitamente arrumado, tão imaculado. Eu preferia um depósito de lixo. É estranho que
o fato de ser confrontada com um espaço de trabalho vazio me faça sentir tão oprimida e, enquanto lacro a carta de Erica Donahue em um saco plástico, finalmente
me dou conta do motivo por que não sou fã de um mundo que está rapidamente se livrando do papel. Gosto de ver o inimigo, as pilhas do que devo vencer, e extraio
conforto das resmas de amigos.
Estou trancando a carta em um armário quando Lucy se apresenta, silenciosa como uma aparição, no grosso jaleco branco que usa para se aquecer e para esconder coisas
dentro, além de sua predileção pelos bolsos amplos. O casaco grande demais a faz parecer enganosamente inofensiva e muito mais jovem que seus trinta e poucos anos,
segundo ela, mas para mim Lucy vai ser sempre uma garotinha. Eu me pergunto se as mães sempre se sentem assim com relação às filhas, mesmo quando elas já são mães
ou, como no caso de Lucy, andam armadas e são perigosas.
Lucy talvez tenha uma pistola enfiada na parte posterior do cós de sua calça cargo, e me dou conta do quanto me sinto egoisticamente feliz pelo fato de ela estar
em casa. Lucy está de volta à minha vida, não na Flórida ou com pessoas das quais preciso me forçar a gostar, como a promotora pública de Manhattan, Jaime Berger.
Enquanto vejo minha sobrinha, minha filha única substituta, entrar em meu escritório, não posso evitar uma verdade que não vou lhe contar. Estou satisfeita que ela
e Jaime tenham terminado a relação. Esse foi de fato o motivo por que não indaguei a respeito.
"Benton ainda está com você?", pergunto.
"Está no telefone." Lucy fecha a porta atrás de si.
"Com quem ele está conversando a esta hora?"
Lucy pega uma cadeira, puxa as pernas para cima do assento e as cruza nos tornozelos. "Com o pessoal dele", responde, como se insinuasse que Benton está conversando
com colegas do McLean, mas não é isso. Anne está lidando com o hospital, e ela e Marino estão lá, iniciando o exame. Por que Benton estaria conversando com eles
ou com qualquer outra pessoa no McLean?
"Somos só nós três então", comento em tom incisivo. "Além de Ron, imagino. Mas, se você quiser a porta fechada, acho que tudo bem." É meu jeito de deixá-la saber
que seu comportamento hipervigilante e dissimulado não me passou despercebido e quero que ela o explique. Eu gostaria que explicasse por que considera necessário
ser evasiva, quando não ostensivamente insincera comigo, sua tia, quase sua mãe, e agora sua chefe.
"Eu sei." Ela retira uma pequena caixa de provas do bolso do casaco.
"Você sabe? O que você sabe?"
"Que Anne e Marino foram ao McLean porque você quer uma RM. Benton me contou. Por que você não foi?"
"Não sou necessária e não seria particularmente útil, já que os exames de RM não são minha especialidade." Não há scanner de RM no necrotério de Dover, onde a maioria
é de mortos de guerra cujo corpo contém metal. "Pensei em cuidar de algumas coisas e, quando estiver convencida de que sei o que estou procurando, vou começar a
autópsia."
"É meio que um jeito inverso de ver as coisas quando você para e pensa", reflete Lucy, os olhos verdes fixos em mim. "Antes você fazia a autópsia para saber o que
estava procurando. Agora ela é só uma confirmação do que você já sabe e um meio de coletar provas."
"Não exatamente. Ainda tenho surpresas. O que tem nessa caixa?"
"Falando no diabo..." Ela faz a caixinha branca deslizar sobre a superfície desobstruída de minha mesa ridiculamente limpa. "Pode tirar da caixa e não precisa de
luvas. Mas tome cuidado com isso."
Dentro da caixa, sobre uma camada de algodão, encontra-se o que parece a asa de um inseto, talvez uma mosca.
"Vá em frente, pegue", encoraja Lucy, inclinando-se para a frente na cadeira, o rosto radiante de entusiasmo, como se estivesse me vendo abrir um presente.
Sinto a rigidez dos suportes de arame e uma fina membrana transparente, alguma coisa parecida com plástico. "Artificial. Interessante. O que é exatamente, e onde
você conseguiu isso?"
"Você conhece o Santo Graal dos flybots?"
"Confesso que me deu um branco."
"Anos e anos de pesquisa. Milhões e milhões de dólares de pesquisa gastos na construção do flybot perfeito."
"Não estou muito informada a respeito. Na verdade, acho que não sei do que você está falando."
"Equipado com microcâmeras e transmissores para vigilância dissimulada, literalmente para grampear pessoas. Ou para detectar substâncias químicas, explosivos ou
até possíveis riscos biológicos. O trabalho vem sendo feito em Harvard, no MIT, em Berkeley e em vários outros locais aqui e no exterior, antes mesmo dos ciborgues,
aqueles insetos com sistemas microeletromecânicos embutidos, com interface máquina-inseto. Que então se difundiram para fazer merdas como esta para outros seres
vivos, como tartarugas e golfinhos. Não foi o auge da DARPA, se você me perguntar."
Devolvo a asa ao quadrado de algodão. "Vamos voltar um pouco. Comece por onde você conseguiu isso."
"Estou preocupada."
"Você e eu, nós duas estamos."
"Quando Marino estava com o cara na ID esta manhã" - Lucy está se referindo ao morto de Norton's Woods - "eu quis contar a ele sobre o sistema de gravação que descobri
nos fones de ouvido. Ele estava colhendo as digitais do corpo e reparei no que de relance parecia uma asa de mosca grudada no colarinho do casaco do morto junto
com outros detritos, como terra e pedaços de folhas mortas."
"Ela não foi desalojada pelos paramédicos", comento. "Quando abriram o casaco dele."
"Não. Estava presa no colarinho de pele falsa", diz Lucy. "Fiquei impressionada com aquilo, sabe, tive uma sensação estranha e dei uma olhada mais de perto."
Retiro uma lupa da gaveta em minha mesa, acendo uma luminária de exame e, sob a luz forte, a asa aumentada já não parece natural. O que se presumiria que fosse a
base da asa, onde esta se ligaria ao corpo, é na verdade uma espécie de articulação dobrável, e as veias que correm através do tecido da asa são brilhantes como
fios.
"Provavelmente um composto de carbono, e são quinze articulações em cada unidade de asa, o que é incrível." Lucy descreve o que estou vendo. "A asa em si é uma estrutura
de polímero eletroativo, que responde a sinais elétricos que fazem com que as asas batam tão rápido quanto as verdadeiras, as da mosca doméstica comum. Historicamente,
um flybot decola na vertical como um helicóptero e voa como um anjo, o que tem sido um dos principais obstáculos do projeto. Isso e a invenção de uma coisa micromecânica
que é autônoma, mas não volumosa - em outras palavras, biologicamente inspirada para que tenha a energia necessária para se deslocar livremente em qualquer ambiente
em que seja colocada."
"Biologicamente inspirada, como as invenções conceptuais de Da Vinci." Eu me pergunto se ela está lembrada da exposição a que a levei em Londres e se reparou no
pôster na sala do apartamento do morto. É claro que reparou. Lucy repara em tudo.
"O pôster em cima do sofá", diz ela.
"É, eu vi."
"Em um dos vídeos, quando ele estava colocando a coleira no cachorro. Não é assustador?", pergunta Lucy.
"Não tenho certeza se sei por que motivo é assustador."
"Bom, pude me dar o luxo de examinar as gravações com mais cuidado que você." O comportamento de Lucy outra vez, as nuances que consigo reconhecer de forma tão segura
quanto detecto mudanças sutis em um tecido ao microscópio. "É da mesma exposição a que você me levou no Courtauld, tem a data daquele mesmo verão", diz ela em tom
tranquilo e com determinado objetivo em mente. "A gente pode ter visitado ao mesmo tempo, supondo que ele tenha visitado."
É isso o que Lucy acha. Que há uma ligação entre o morto e nós.
"Ter o pôster não significa que ele foi até lá", continua ela. "Sei disso. Não se sustentaria em um tribunal", acrescenta com uma ponta de ironia, como se estivesse
dando uma alfinetada em Jaime Berger, a promotora com quem desconfio que ela não esteja mais.
"Lucy, você tem alguma ideia de quem é esse homem?", adianto-me e pergunto.
"Só acho estranho pensar que ele talvez estivesse naquela galeria quando nós estivemos. Mas com certeza não estou afirmando isso. Não mesmo."
Não é o que ela de fato pensa. Vejo isso em seus olhos, ouço em sua voz. Lucy desconfia que o sujeito esteve lá quando estivemos. Como concluiu tal coisa a respeito
de um morto cujo nome desconhecemos?
"Você não está dando uma de hacker outra vez, não é?", digo sem meias palavras, como se perguntasse sobre fumar, beber ou algum outro hábito prejudicial à saúde.
Já pensei mais de uma vez que Lucy pode ter encontrado um jeito de rastrear os arquivos de vídeo gravados em segredo até um computador pessoal ou servidor em algum
lugar. Para ela, um firewall e outras medidas de segurança para proteger dados reservados nada mais são que lombadas em seu caminho para obter o que quer.
"Eu não sou hacker", declara ela com simplicidade.
Isso não é resposta, penso, mas não digo.
"Só acho uma coincidência incrível", continua ela. "E acho provável que ele tenha esse pôster por causa de alguma ligação com aquela exposição. Agora você pode comprar
essas imagens. Eu chequei. Quem teria um pôster desse, a não ser que tivesse ido até lá ou tivesse alguém chegado que foi até lá?"
"A menos que seja muito mais velho do que parece, ele era uma criança na época", observo. "Foi no verão de 2001."
Lembro que o relógio dele estava cinco horas adiantado. Estava ajustado ao fuso horário do Reino Unido e a exposição havia sido em Londres. Isso não prova nada.
Uma consistência, mas não uma prova, digo a mim mesma.
"Aquela exposição era exatamente o tipo de coisa que um inventorzinho precoce ia adorar", comenta Lucy.
"Assim como você", retruco. "Acho que foi quatro vezes. E comprou a série de palestras em CD, de tão fascinada."
"É uma ideia e tanto. Um garotinho na galeria no momento exato em que estávamos lá."
"Você fica dizendo isso como se fosse um fato." Continuo a bater na mesma tecla.
"E quase uma década mais tarde eu estou aqui, você está aqui, e o cadáver dele está aqui. Nem me fale em seis graus de separação."
Fico perturbada ao ouvir Lucy se referir a outra coisa que andei pensando mais cedo. Primeiro a exposição de Londres, agora a imensa teia constituída por todos nós,
a forma como as vidas ao redor do planeta se interconectam de alguma forma.
"Na verdade, eu nunca me acostumei com isso", ela diz. "Ver uma pessoa e então, mais tarde, ela é assassinada. Não que eu consiga visualizar o cara quando menino
na galeria em Londres, não que veja algum rosto de criança na mente. Mas posso ter estado ao lado dele ou até ter conversado com ele. Em retrospecto, é sempre difícil
entender que, se soubesse o que vinha mais à frente, você talvez pudesse ter mudado o destino de alguém. Ou o seu."
"Benton te contou que o homem de Norton's Woods foi assassinado ou você soube disso por outra pessoa?"
"Colocamos a fofoca em dia."
"E você mencionou o flybot enquanto colocavam a fofoca em dia há um instante no seu laboratório." Não é uma pergunta.
Tenho certeza de que Lucy contou a Benton sobre a asa de mosca robótica e qualquer outra coisa que julgue que ele deveria saber. Ela foi enfática há pouco no helicóptero
sobre ele ser a única pessoa em quem realmente confia agora além de mim. Embora eu não me sinta exatamente confiável. Tenho a sensação de que ela está peneirando
informação e sendo seletiva quanto ao que oferece quando não desejo que esconda nada. Não desejo que seja evasiva ou minta. Mas uma coisa que aprendi acerca de Lucy
é que desejar não torna as coisas verdadeiras. Posso desejar o que for e isso não vai mudar seu comportamento. Não vai mudar o que ela pensa ou faz.
Apago a luminária e devolvo a caixinha branca. "O que você quis dizer com 'voa como um anjo'?"
"Aquelas reproduções artísticas de anjos pairando. Sei que você já viu algumas." Lucy pega um bloco e uma caneta primorosamente dispostos ao lado do telefone. "Os
corpos ficam na vertical, como o de alguém com um jato nas costas, ao contrário dos insetos e pássaros, cujo corpo fica na horizontal durante o voo. Esses flybots
pequenos voam na vertical, como anjos, e essa é uma de suas falhas, isso e o tamanho. A busca de uma solução é como a do Santo Graal. Já frustrou os melhores e mais
brilhantes."
Ela faz um esboço para me mostrar, um boneco de palitinhos que parece uma cruz voando pelos ares.
"Se você quiser que um inseto como a mosca doméstica comum seja literalmente uma mosca na parede realizando vigilância dissimulada", continua ela, "deve parecer
com uma mosca, não com um corpo minúsculo com asas na vertical. Se eu estivesse em uma reunião com Ahmadinejad no Irã e alguma coisa passasse voando na vertical,
então pousasse na vertical no peitoril da janela como uma Sininho minúscula, acho que eu perceberia e ficaria meio desconfiada."
"Se você fosse a uma reunião com Ahmadinejad no Irã, eu ficaria muito desconfiada por várias razões. Esquecendo por que motivo meu paciente tinha a asa de uma dessas
coisas no casaco, supondo que essa asa faça parte de um flybot completo...", começo a dizer.
"Não exatamente um flybot", interrompe ela. "Também não é necessariamente um spybot. É aonde estou querendo chegar. Acho que isso é o Santo Graal."
"Então, seja o que for, para que ele teria sido usado?"
"A imaginação é o limite", responde ela. "Eu poderia fazer uma boa lista, mas não dá para saber de forma definitiva, não a partir de uma asa, embora eu possa dizer
algumas coisas importantes. Infelizmente, não consegui encontrar o resto do objeto."
"Você está querendo dizer no corpo, no casaco? Encontrar o resto onde?"
"Na cena do crime."
"Você foi a Norton's Woods."
"Com certeza", diz ela. "Assim que percebi a origem da asa. É claro que fui direto para lá."
"Passamos várias horas juntas." Lembro Lucy que poderia ter me contado antes. "Só você e eu naquela cabine a viagem inteira desde Dover."
"É engraçado esse sistema de comunicação interna. Mesmo quando tenho certeza de que está desligado lá atrás, não me sinto segura. Não se é alguma coisa que não posso
me permitir que alguém ouça. Marino não deve tomar conhecimento disso." Ela aponta para a caixinha branca que contém a asa.
"Por que exatamente?"
"Acredite em mim, você não quer que ele saiba porra nenhuma sobre isso. É uma peça muito pequena de alguma coisa muito maior em mais de um sentido."
Ela continua a me assegurar que Marino nada sabe a respeito de sua ida a Norton's Woods. Desconhece a existência da pequena asa mecânica ou que há um fator motivador
no fato de ela tê-lo encorajado a me buscar em Dover mais cedo, para me escoltar em segurança no helicóptero. Lucy não mencionou nada disso até agora, continua a
explicar, porque não confia em ninguém no momento. A não ser em Benton, acrescenta. E em mim, acrescenta. E está sendo muito cuidadosa com os locais onde tem certas
conversas, e todos nós deveríamos ser.
"A menos que a área esteja liberada", diz ela, e o que tem em vista é vasculhado; a implicação disso é que meu escritório é seguro ou não estaríamos tendo esta conversa
nele.
"Você verificou meu escritório à procura de dispositivos de vigilância?" Não estou chocada. Lucy sabe vasculhar um local à procura de gravadores escondidos porque
sabe espionar. O melhor ladrão é o chaveiro. "Quem você acha que estaria interessado em grampear meu escritório?"
"Não sei bem quem está interessado no quê ou por quê."
"Não Marino", digo então.
"Bom, isso seria fácil de descobrir. Mas é claro que não. Não estou preocupada que ele faça alguma coisa assim. Só me preocupa que não consiga ficar de boca fechada",
retruca Lucy. "Pelo menos não quando se trata de certas pessoas."
"Você conversou sobre o MORT no helicóptero. Não ficou preocupada com o sistema de comunicação interna nem com Marino quando fez referência ao MORT."
"Não é a mesma coisa. Não chega nem perto", diz ela. "Não importa se Marino abrir a boca para certas pessoas a respeito de um robô no apartamento do cara. Outras
pessoas já têm conhecimento disso, pode ter certeza. Não posso correr o risco de ter Marino falando da minha amiguinha aqui." Ela olha para a caixinha branca. "E
ele não teria em vista nada de ruim. Mas não entende certas realidades sobre certas pessoas. Especialmente o general Briggs e a capitã Avallone."
"Eu não imaginava que você soubesse alguma coisa sobre ela." Nunca mencionei Sophia Avallone a Lucy.
"Jack mostrou as instalações quando ela esteve aqui. Marino comprou almoço, ficou lambendo o rabo uniformizado dela. Ele não entende gente assim, não entende a porra
do Pentágono. Simplesmente assume que todo mundo é como a gente."
Fico aliviada que Lucy perceba isso, mas não quero incentivá-la a desconfiar de Marino, nem de leve. Ela passou por muita coisa com ele e os dois são finalmente
amigos de novo, tão chegados quanto quando Lucy era criança e ele lhe ensinou a dirigir sua caminhonete e a atirar e ela o irritava para valer, o que era recíproco.
Lucy recebeu de minha genética a ciência, mas recebeu dele sua afinidade pela matéria policial, como ela diz. Foi ele o detetive importante e durão em sua vida enquanto
criança prodígio sabe-tudo e difícil, e ele a amou e a odiou em tantas ocasiões diferentes quanto Lucy o amou e o odiou. Mas os dois são amigos e colegas agora.
Faço tudo para que continuem assim. Tenha cuidado com o que diz, previno a mim mesma. Deixe que a paz perdure.
"De onde concluo que Briggs não tem conhecimento disso." Indico a caixinha branca em cima de minha mesa. "Nem a capitã Avallone."
"Não vejo como."
"Meu escritório tem alguma escuta agora?"
"Nossa conversa é completamente segura", declara ela, o que não é uma resposta.
"E Jack? É possível que ele saiba sobre o flybot? Bom, você não contou a ele."
"De jeito nenhum."
"Então, só se alguém tiver ligado procurando pelo objeto. Ou talvez pela asa do objeto."
"O que você está querendo dizer é: só se o assassino tiver telefonado para cá à procura de um flybot desaparecido", diz Lucy. "E vou chamar assim para simplificar,
embora isso não seja um flybot comum. Isso seria uma idiotice. Indicaria que o autor da ligação tinha alguma coisa a ver com o homicídio do sujeito."
"Não podemos descartar nada. Às vezes os assassinos fazem coisas idiotas", retruco. "Quando estão muito desesperados."
10
Lucy se levanta e entra em meu banheiro privativo, onde há uma máquina de café sobre uma bancada. Ouço-a encher o reservatório com água da torneira e verificar o
pequeno refrigerador. É quase uma da manhã e a neve não diminuiu, está caindo com força e rápido, e quando os pequenos flocos são soprados de encontro às janelas
o som parece o de areia explodindo contra o vidro.
"Leite desnatado ou creme?", chama Lucy do que deveria ser meu vestiário particular, que inclui um chuveiro. "Bryce é uma ótima esposa. Encheu sua geladeira."
"Ainda bebo café preto." Começo a abrir as gavetas em minha mesa, sem saber ao certo o que estou procurando.
Penso em minha estação de trabalho suja na sala de autópsias. Penso nas pessoas usando o que não deveriam usar.
"Bom, então por que você tem leite e creme?" É a voz alta de Lucy. "Green Mountain ou Black Tiger? Também tem com avelã. Desde quando você bebe café sabor avelã?"
As perguntas são retóricas. Ela sabe as respostas.
"Desde nunca", resmungo, vendo lápis, canetas, adesivos Post-it, clipes e, na gaveta de baixo, chiclete de hortelã.
A embalagem está pela metade e não masco chiclete. Quem gosta de chiclete de hortelã e teria motivos para usar minha escrivaninha? Não Bryce. Ele é pretensioso demais
para mascar chiclete e, se eu o apanhasse fazendo isso, desaprovaria, pois considero uma grosseria mascar chiclete na frente de outras pessoas. Além disso, Bryce
não fuçaria minha mesa, não sem permissão. Ele não se atreveria.
"Jack gosta de hortelã, baunilha francesa, essas merdas, e bebe café com leite desnatado, a não ser que esteja fazendo uma das dietas ricas em proteína e gordura
dele", continua Lucy de dentro do banheiro. "Aí usa creme de verdade, creme gordo como esse aqui. Imagino que, se você tivesse visita, ou estivesse esperando alguma,
teria creme."
"Não quero nada com sabor e, por favor, prepare o café forte."
"Ele é um superconsumidor, exatamente como você", soa a voz de Lucy. "As digitais dele estão em todas as fechaduras deste lugar, tanto quanto as suas."
Ouço o esguicho de água quente através da embalagem de K-Cup e recebo a interrupção com alegria. Recuso-me a me engajar na especulação venenosa de que Jack Fielding
esteve em meu escritório durante minha ausência, de que talvez o tenha usado enquanto bebia café, mascava chiclete ou sabe-se lá o que mais. Mas, quando olho ao
redor, não parece possível. Meu escritório dá a sensação de não habitado. Certamente não parece que alguém andou trabalhando por aqui.
"Fui a Norton's Woods antes da polícia de Cambridge. Marino pediu a eles que voltassem por causa do número de série apagado da Glock. Mas cheguei lá primeiro." Lucy
continua a falar alto de dentro do banheiro. "Mas tive a desvantagem de não saber exatamente onde o cara caiu, onde foi esfaqueado, como agora sabemos. Sem as fotografias
da cena, é impossível conseguir a localização exata, só uma estimativa, então vasculhei todas as trilhas do parque."
Ela surge com café fumegante em canecas pretas com a insígnia pouco comum do AFMES, a mão de pôquer de cinco cartas composta por ases e oitos, conhecida como a mão
do homem morto, o que Wild Bill Hickok estava segurando quando foi morto a tiros.
"Foi como procurar agulha em palheiro", continua ela. "O flybot tem provavelmente a metade do tamanho de um clipe de papel pequeno, é mais ou menos do tamanho de,
bom, de uma mosca. Não encontrei nada."
"Só porque você encontrou uma asa não significa que o resto estava lá", lembro quando ela deposita o café a minha frente.
"Se estiver, está mutilado." Lucy retorna à sua cadeira. "Debaixo de neve enquanto conversamos e sem uma asa. Mas muito possivelmente ainda vivo, sobretudo quando
exposto à luz, supondo que não tenha sofrido outras avarias."
"Vivo?"
"Não literalmente. Provavelmente alimentado por micropainéis solares, em vez de uma bateria, que já estaria inativa. A luz bate no objeto e abracadabra. É para onde
tudo está se encaminhando. E o nosso amiguinho, onde quer que esteja, é futurista, uma obra-prima da microtecnologia."
"Como você pode ter tanta certeza se não conseguiu encontrar a maior parte dele? Só tem uma asa."
"Não uma asa qualquer. O ângulo e as juntas flexíveis são engenhosos e sugerem um plano de voo diferente. Não mais o voo de um anjo. Mas horizontal, como o de um
inseto de verdade. O que quer que seja essa coisa e qualquer que seja sua função, estamos falando de um objeto extremamente avançado, que eu nunca vi. Nada foi publicado
a respeito, porque recebo praticamente todas as revistas técnicas on-line. Além disso, andei fazendo pesquisas a respeito, sem sucesso. Ao que tudo indica, é um
projeto sigiloso, altamente secreto. Espero que o resto dele esteja lá no chão em algum lugar, coberto de neve e a salvo."
"O que isso estava fazendo em Norton's Woods para início de conversa?" Visualizo a mão enluvada invadindo a imagem da câmera de vídeo escondida, como se o homem
estivesse golpeando alguma coisa.
"Sim. E era dele ou de outra pessoa?" Ela sopra o café, segurando a caneca com ambas as mãos.
"Tem alguém procurando por isso? Alguém acha que está aqui ou que sabemos onde está?", torno a perguntar. "Alguém te contou que as luvas dele desapareceram? Você
reparou nisso lá embaixo enquanto Marino estava colhendo as digitais do corpo? Parece que a vítima colocou um par de luvas pretas quando chegou ao parque, o que
achei estranho quando assisti aos vídeos. Imagino que ele tenha morrido de luvas, então onde elas estão?"
"Interessante", diz Lucy, e não consigo perceber se já sabia que as luvas desapareceram.
Não consigo descobrir o que ela sabe e se está mentindo.
"Elas não estavam no parque quando andei por lá ontem de manhã", informa. "Eu teria visto um par de luvas pretas se tivesse sido acidentalmente deixado pelos técnicos,
pelo serviço de remoção ou pelos policiais. É claro que elas podem ter sido recolhidas por alguém que passou por ali."
"No vídeo, alguém usando um casaco preto longo passa pouco depois que o homem cai no chão. É possível que quem matou o sujeito tenha parado só o tempo suficiente
para pegar as luvas?"
"O que você tem em mente é se elas são luvas de dados ou luvas inteligentes, do tipo que é usado em combate, luvas com sensores para sistemas de computadores portáveis,
a robótica portável", diz Lucy como se fosse normal deliberar sobre um par de luvas desaparecido.
"Só estou querendo saber por que as luvas são tão importantes para que alguém tenha se dado o trabalho de pegar, se é que foi o que aconteceu", retruco.
"Se elas forem munidas de sensores e era assim que ele estava controlando o flybot, supondo que o flybot seja dele, então as luvas seriam extremamente importantes",
diz Lucy.
"E você não perguntou sobre as luvas quando esteve lá embaixo com Marino? Não pensou em examinar todas as roupas à procura de sensores?"
"Se eu estivesse com as luvas, teria muito mais chance de encontrar o flybot quando voltei a Norton's Woods", declara Lucy. "Mas elas não estão comigo nem sei onde
estão, se é o que está perguntando."
"Estou perguntando porque seria adulteração de provas."
"Não fiz isso. Prometo. Não sei com certeza se são luvas de dados, mas faz sentido se levarmos em conta outras coisas. Como o que ele diz no vídeo pouco antes de
morrer", acrescenta ela com ar pensativo, refletindo, ou talvez já tenha refletido, mas esteja me levando a crer que o que está dizendo é um raciocínio novo. "O
homem fica repetindo 'Ei, rapaz'."
"Pensei que ele estivesse falando com o cachorro."
"Talvez sim. Talvez não."
"E ele disse outras coisas que não consegui entender", recordo. "'E para você' ou 'Você manda um', alguma coisa assim. Uma mosca robótica consegue entender comandos
de voz?"
"É completamente possível. Essa parte foi abafada. Também ouvi e achei confuso", diz Lucy. "Mas talvez não se ele estivesse controlando um flybot. Ele pode ter emitido
algum comando numérico ou de direção. Vou escutar outra vez com som mais alto."
"Mais?"
"Já apliquei um pouco. Não ajudou. Ele pode ter dado coordenadas de GPS ao flybot, o que seria um comando comum para um dispositivo que responde à voz - se você
estiver dizendo a ele aonde ir, por exemplo."
"Se conseguisse entender alguma coordenada de GPS, talvez você encontrasse o lugar, descobrisse onde ele está."
"Sinceramente, duvido. Se o flybot era controlado pelas luvas, controlado pelo menos em parte por sensores nela, e quando a vítima acenou com a mão, talvez no momento
em que foi esfaqueada?"
"O quê?"
"Não sei, mas não tenho o flybot e não tenho as luvas", diz Lucy me encarando com ar sério, os olhos direto nos meus. "Não encontrei nenhum deles, mas com certeza
gostaria de ter encontrado."
"Marino comentou que alguém pode ter seguido Benton e eu depois que saímos de Hanscom?", pergunto.
"Procuramos o SUV grande com faróis de xenônio e de neblina. Não estou dizendo que signifique alguma coisa, mas Jack comprou em outubro um Navigator azul-escuro.
Usado. Você não estava aqui, então acho que não viu."
"Por que Jack nos seguiria? E não, não sabia que ele tinha comprado um Navigator. Pensei que tivesse um jipe Cherokee."
"Ele trocou, acho." Lucy bebe o café. "Eu não disse que ele seguiria vocês. Ou que seria idiota o suficiente para colar no seu para-choque. A não ser em uma nevasca
ou um nevoeiro, quando a visibilidade é muito ruim, alguém bastante inexperiente pode seguir muito de perto se não souber para onde o alvo está indo. Não vejo por
que Jack se daria esse trabalho. Ele não imaginaria que você estava a caminho daqui?"
"Você tem ideia do motivo por que alguém se daria esse trabalho?"
"Se alguém sabe que o flybot está desaparecido", responde Lucy, "com toda certeza está procurando por ele e possivelmente não pouparia nada para encontrar o objeto
antes que caia nas mãos erradas. Ou nas mãos certas. Dependendo de com quem ou o que estamos lidando. Posso dizer isso com base em uma asa. Se foi por isso que vocês
foram seguidos, fico menos propensa a desconfiar que quem matou o sujeito tenha encontrado o flybot. Em outras palavras, o dispositivo pode muito bem estar desaparecido.
Provavelmente não preciso te dizer que uma invenção técnica patenteada ultrassecreta como essa pode valer uma fortuna, especialmente se alguém roubar a ideia e levar
o crédito por ela. Se essa pessoa está procurando pelo dispositivo e tem motivos para temer que ele tenha vindo para cá junto com o corpo, talvez quisesse ver aonde
vocês estavam indo, o que estavam fazendo. Ele ou ela poderia pensar que o flybot está aqui no CFC ou que você o guardou em algum outro lugar. Inclusive em casa."
"Por que estaria na minha casa? Ainda não fui para casa."
"Pessoas sob pressão não têm lógica", responde Lucy. "Se eu fosse a pessoa que está procurando, talvez imaginasse que você instruiu seu marido, que já pertenceu
ao FBI, a esconder o flybot em casa. Poderia imaginar todo tipo de coisas. E se o flybot ainda está à solta, continuaria a procurar."
Recordo as exclamações do homem, ouço sua voz em minha imaginação. "O que...? Ei...!" Talvez a reação assustada não se devesse unicamente à dor aguda repentina na
região lombar e à tremenda pressão no peito. Talvez alguma coisa tenha voado de encontro ao seu rosto. Talvez ele estivesse usando luvas de dados e sua reação de
surpresa tenha ocasionado a avaria no flybot. Imagino o minúsculo dispositivo a meio voo, sendo atingido pela mão enluvada do homem e esmagado contra o colarinho
do casaco.
"Se alguém está de posse da luva de dados e procurou pelo flybot antes da neve começar, é realmente possível que não tenha encontrado o dispositivo?", pergunto à
minha sobrinha.
"É claro que é possível. Depende de uma série de coisas. Do quanto ele está avariado, por exemplo. Houve muita atividade ao redor do homem depois que ele caiu. Se
o flybot estava por ali, no chão, pode ter sido esmagado ou ainda mais danificado e parou completamente de responder. Ou pode estar embaixo de alguma coisa, em alguma
árvore, no meio do mato ou em qualquer lugar lá fora."
"Imagino que um inseto robótico possa ser usado como arma", sugiro. "Já que não faço ideia do que causou as lesões internas desse homem, preciso pensar em todas
as possibilidades imagináveis."
"Esse é o problema", diz Lucy. "Hoje, quase tudo que você imaginar é possível."
"Benton contou o que vimos na TC?"
"Não vejo como um inseto micromecânico possa ter causado danos internos assim", responde Lucy. "A menos que tenham injetado alguma coisa na vítima com um dispositivo
microexplosivo."
Minha sobrinha e suas fobias. Sua obsessão por explosivos. Sua grave desconfiança do governo.
"E com certeza espero que não", continua ela. "Na verdade, estaríamos falando em nanoexplosivos quando se trata de um flybot."
Minha sobrinha e suas teorias; recordo o comentário de Jaime Berger da última vez que a vi no dia de Ação de Graças, quando estávamos todos em Nova York, jantando
em sua cobertura. "O amor não vence tudo", disse Berger. "É impossível", disse ela, bebendo muito vinho e passando tempo demais na cozinha discutindo com Lucy a
respeito do Onze de Setembro, a respeito de explosivos usados em demolições, nanomateriais pintados em infraestruturas que causariam uma terrível destruição se sofressem
o impacto de grandes aviões repletos de combustível.
Já desisti de argumentar com minha fóbica e cínica sobrinha, que é inteligente demais para seu próprio bem e não me ouve. Para ela, não importa que simplesmente
não haja fatos suficientes que confirmem aquilo de que está convencida, apenas alegações sobre resíduos encontrados na poeira logo depois que as torres desabaram.
Então, semanas mais tarde, mais poeira foi coletada, contendo os mesmos resíduos de óxido de ferro e alumínio, um nanocompósito usado na produção de fogos e explosivos.
Admito que foram escritos artigos a respeito em revistas científicas dignas de crédito, mas não o suficiente, e eles nem mesmo começam a provar que nosso próprio
governo ajudou a planejar o Onze de Setembro como desculpa para dar início a uma guerra no Oriente Médio.
"Sei o que você pensa sobre teorias da conspiração", diz Lucy. "Essa é uma grande diferença entre nós. Já vi o que os supostos mocinhos são capazes de fazer."
Ela nada sabe sobre a África do Sul. Se soubesse, perceberia que não há diferença entre nós duas. Sei muito bem o que os supostos mocinhos são capazes de fazer.
Mas não o Onze de Setembro. Eu não iria tão longe e penso em Jaime Berger e imagino o quanto devia ser difícil para a poderosa e consagrada promotora pública de
Manhattan ter Lucy como companheira. O amor não vence tudo. É realmente verdade. Talvez a paranoia de Lucy acerca do Onze de Setembro e o país em que vivemos a tenha
reconduzido a um isolamento social que historicamente nunca é interrompido por muito tempo. Achei que Jaime fosse de fato a pessoa certa, que ia durar. Agora tenho
certeza de que não. Quero dizer a Lucy que sinto muito por isso, que sempre vou estar presente e conversar sobre tudo que ela quiser, mesmo que vá de encontro a
minhas crenças. Agora não é o momento.
"Acho que precisamos levar em conta que talvez estejamos lidando com algum cientista renegado, talvez mais de um, que não está tramando nada de bom", diz Lucy em
seguida. "É esse o ponto importante que estou tentando avaliar. E estou me referindo a coisas ruins, muito ruins, tia Kay."
Sinto alívio ao ouvir Lucy me chamar de tia Kay. Sinto que está tudo bem conosco quando ela me chama assim, o que raras vezes faz agora. Não consigo lembrar quando
tinha sido a última vez. Quando sou sua tia Kay, quase consigo ignorar o que é Lucy Farinelli, um gênio sociopata limítrofe, diagnóstico que Benton ridiculariza,
gentil mas firmemente. Ser sociopata limítrofe é como estar meio grávida ou meio morta, diz ele. Amo minha sobrinha mais do que minha própria vida, mas vim a aceitar
que, quando ela se comporta bem, é um ato de vontade ou simplesmente lhe convém. A moralidade tem muito pouco a ver com isso. Tudo está relacionado ao fim justificando
os meios.
Analiso Lucy com cuidado, embora não tenha esperança de entender o que existe ali. Seu rosto nunca revela informação que possa de fato machucá-la.
"Preciso fazer uma pergunta", digo.
"Pode fazer mais de uma." Ela sorri e parece incapaz de ferir alguma coisa ou alguém, a menos que a pessoa reconheça a força e a agilidade em suas mãos serenas e
as rápidas mudanças em seus olhos à medida que os pensamentos lampejam por trás deles como relâmpagos.
"Você não está envolvida no que quer que seja isso?" Eu me refiro à caixinha branca e à asa do flybot dentro dela. Refiro-me ao morto que está fazendo uma ressonância
magnética no McLean - alguém que talvez tenha cruzado nosso caminho em uma exposição de Da Vinci em Londres meses antes do Onze de Setembro, que Lucy incrivelmente
acredita ter sido orquestrado pelo nosso próprio governo.
"Não." Ela responde sem afetação, não hesita e não parece nem um pouco constrangida.
"Porque agora você está aqui." Lembro Lucy de que ela trabalha para o CFC, ou seja, de que trabalha para mim, e estou sujeita ao governador de Massachusetts, ao
Departamento de Defesa e à Casa Branca. Estou sujeita a muita gente. "Não posso ter..."
"É claro que não. Não vou criar problemas."
"Não é mais só você..."
"Não precisamos ter essa conversa", ela torna a interromper, e seus olhos chispam. São tão verdes que não parecem reais. "De qualquer forma, ele não tem lesões térmicas,
certo? Nenhuma queimadura."
"Nada que eu tenha visto até agora. Isso é certo", respondo.
"Tudo bem. Então e se alguém espetou o cara com uma arma subaquática modificada? Sabe, um daqueles arpões com alguma coisa parecida com um cartucho de espingarda
na ponta? Só que, nesse caso, uma carga muito pequena, minúscula, contendo nanoexplosivos?"
Aperto o botão liga/desliga para acionar meu computador de mesa. "Não teria a aparência do que acabei de ver. Ia parecer o ferimento provocado por um disparo de
contato, menos a abrasão típica produzida pelo cano da arma. Mesmo que estivéssemos falando do uso de nanoexplosivos em oposição a algum tipo de munição de arma
de fogo na ponta de uma lança ou de alguma coisa parecida com uma lança, você está certa, veria lesões térmicas. Haveria queimaduras na entrada e no tecido subjacente.
Imagino que esteja sugerindo que alguma coisa como um flybot poderia ser usado para lançar nanoexplosivos. É o que teme que esse suposto cientista renegado, ou mais
de um, esteja fazendo?"
"Lançar. Detonar. Nanoexplosivos, drogas, venenos. Como eu disse, a imaginação é o limite do que um dispositivo desses é capaz de fazer."
"Preciso dar uma olhada na filmagem de segurança que mostra o vazamento do saco contendo o corpo", digo, enquanto procuro arquivos em meu computador. "Não vou ter
que procurar Ron para isso, vou?"
Lucy contorna a mesa e começa a digitar em meu teclado, inserindo sua senha do administrador do sistema, que confere total acesso aos meus domínios.
"Moleza." Ela pressiona uma tecla para abrir um arquivo.
"Ninguém pode entrar nos meus arquivos sem seu conhecimento."
"Não no ciberespaço. Mas não sei se alguém esteve no seu espaço físico, principalmente porque não fico aqui o tempo todo; na verdade, não fico aqui nem a maior parte
do tempo, porque trabalho à distância sempre que posso", diz ela, mas não estou convencida de que não saberia.
Na realidade, não acredito nisso.
"Mas não existe a menor possibilidade de que alguém tenha entrado nos seus arquivos protegidos por senha", continua ela, e nisso eu acredito. Lucy não permitiria.
"Você pode monitorar as câmeras de segurança de qualquer lugar, por sinal. Até do seu iPhone, se quiser. Tudo de que precisa é acesso à internet. Encontrei isso
mais cedo e salvei como arquivo. Cinco e quarenta e dois da tarde. Que foi a hora de ontem em que as imagens foram captadas por uma câmera de segurança na recepção."
Lucy clica no play, aumenta o volume e vejo dois atendentes vestindo casaco de inverno empurrando uma maca que conduz um saco preto ao longo do corredor de ladrilho
cinza no andar de baixo.
As rodas estalam quando eles estacionam a maca em frente à geladeira e agora vejo Janelle, gorducha e com cabelo castanho curto, com ar agressivo e uma quantidade
surpreendente de tatuagens, tão bem quanto a recordo. Alguém que Fielding encontrou e contratou.
Janelle abre a maciça porta de aço e ouço a precipitação do golpe de ar.
"Coloque isso..." Ela aponta e noto que está usando uma jaqueta escura com PERÍCIA em grandes letras amarelas brilhantes na parte de trás. Ela veste o uniforme externo,
inclusive o boné de beisebol do CFC, como se fosse sair no frio ou tivesse acabado de entrar.
"Naquela bandeja ali?", um dos atendentes pergunta enquanto ele e o companheiro retiram da maca o saco contendo o corpo. O saco se dobra à vontade enquanto eles
o carregam, o corpo em seu interior tão flexível quanto em vida. "Merda, ele está pingando. Droga. É bom que não tenha aids nem nada parecido. Na minha calça, na
porra do meu sapato."
"Na mais baixa." Janelle guia os dois homens até uma bandeja no interior da geladeira, saindo do caminho e nem um pouco interessada no sangue que goteja do saco
e mancha o chão cinza. Ela parece não notar.
"Janelle, a maravilhosa", comenta Lucy, quando a gravação de vídeo termina de repente.
"Você tem os registros do IML?" Quero ver a que horas o investigador médico-legal - em outras palavras, Janelle - chegou e saiu ontem. "É óbvio que ela estava de
plantão durante a noite."
"Ela fez dois turnos no domingo, maníaca por trabalho do jeito que é", diz Lucy. "Substituiu Randy, que estava escalado para as noites do fim de semana, mas pediu
dispensa por estar doente. O que significa que ficou em casa para assistir ao Super Bowl."
"Espero que não."
"E o fresco do Randy não está aqui agora por causa do tempo. Supostamente, está de plantão em casa. Deve ser bom ter um utilitário para levar embora e ser pago para
ficar em casa", diz Lucy, e ouço o desprezo em seu tom áspero e o vejo na dureza em seu rosto. "Acho que você já percebeu onde está metida. Supondo que tenha desistido
de arranjar desculpas para as pessoas."
"Não arranjo desculpas para você."
"Isso porque não precisa."
Examino os registros que Janelle deixou ontem, um documento-padrão em minha tela de vídeo com muito poucos campos preenchidos.
"Não pretendo explicar o que é evidente como o nariz no meu rosto, mas você sabe muito pouco sobre o que acontece por aqui", diz Lucy. "Não conhece os detalhes do
dia a dia neste lugar. E como poderia?" Ela volta para o outro lado da mesa e pega seu café, mas não torna a se sentar. "Nunca está aqui. Desde que começamos a funcionar."
"É só isso? Esse é o registro inteiro do dia de ontem?"
"É isso aí. Janelle chegou às quatro. Se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro." Lucy continua de pé bebendo o café e me observando. "E ela anda
com uma quadrilha e tanto, por sinal. Os merdas dos amigos forenses dela. A maioria policiais, alguns da área de processamento de dados ou gente de escritório. Qualquer
pessoa para quem ela possa posar de heroína. Sabia que faz parte de um time de queimada? Que tipo de pessoa joga queimada? Alguém com finesse."
"Se ela entrou às quatro, por que está vestindo o uniforme externo, inclusive a jaqueta? Como se tivesse acabado de chegar do frio?"
"Como eu disse, se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro."
"E David estava de serviço antes disso e também não respondeu?", pergunto. "Jack podia ter mandado David a Norton's Woods. Ele estava aqui à toa, então por que Jack
não pediu que fosse até a cena? Fica a uns quinze minutos daqui."
"E você não sabe disso também." Lucy entra no banheiro e enxágua sua caneca. "Você não sabe se David estava aqui à toa", diz enquanto torna a sair e se põe a circular
perto da porta fechada do escritório. "Não quero ser eu a te contar..."
"Parece que você é a única. Ninguém me conta porra nenhuma", retruco. "O que está acontecendo por aqui? As pessoas só aparecem quando sentem vontade?"
"Praticamente. Os outros legistas, os investigadores, todos entram e saem ao seu bel-prazer. Isso vem de cima."
"Vem de Jack."
"Ao menos por esse lado. Os laboratórios são outra história, porque ele não está interessado neles. A não ser o de armas de fogo." Ela se apoia na porta fechada,
enfiando as mãos nos bolsos do jaleco.
"Ele devia estar no comando na minha ausência. Jack é codiretor de todo o necrotério do CFC." Não consigo afastar de minha voz o tom de queixa, de indignação.
"Jack não se interessa pelos laboratórios e, de qualquer forma, os pesquisadores não prestam a menor atenção nele. A não ser o de armas de fogo, como eu já disse.
Você conhece Fielding com revólveres, facas, balestras, arcos. Nunca encontrei uma arma que ele não adorasse. Então se mete no laboratório de armas e marcas e já
conseguiu ferrar com eles também. Encheu a paciência de Morrow até ele ficar à beira da demissão. Sei que está procurando outro emprego. E não existe nenhum bom
motivo para que o laboratório dele não terminasse com a Glock do morto. O número de série apagado. Merda. Ele se mandou hoje de manhã e nem se preocupou."
"Ele se mandou hoje de manhã?"
"Estava saindo de carro quando voltei de Norton's Woods. Por volta das dez e meia."
"Você falou com ele?"
"Não. Talvez ele não estivesse se sentindo bem. Não sei, mas não entendi por que não se certificou de que alguém se encarregasse da Glock. Usar ácido em um número
de série apagado? Quanto tempo leva para pelo menos tentar? Ele devia saber que era importante."
"Talvez não soubesse", retruco. "Se o detetive de Cambridge foi o único a falar com ele, por que ia achar que a Glock era importante? Na ocasião, ninguém fazia ideia
de que é um homicídio."
"Bom, acho que esse é um ponto relevante. Morrow provavelmente nem sabe que fomos te buscar, que você voltou de Dover. Fielding também desapareceu, quando sabia
muito bem que havia um problema grave que a maioria das pessoas com um cérebro na cabeça ia concluir que era culpa dele. Foi Fielding que recebeu a chamada sobre
o cara em Norton's Woods. Foi ele que deixou de ir até a cena do crime e não garantiu que alguém fosse. O motivo por que Janelle está toda vestida para sair, na
minha opinião? Ela não chegou aqui às quatro, na hora em que anotou no registro. Chegou a tempo de fazer os atendentes entrarem, registrar a entrada do corpo e depois
deu meia-volta e saiu. Posso descobrir. Existe um registro de quando ela desativou o alarme para entrar no prédio. Depende de você querer tornar isso um caso federal."
"Estou surpresa que Marino não tenha se certificado de que eu tomasse conhecimento da extensão dos problemas." É só no que consigo pensar para dizer. O interior
da minha cabeça está vazio.
"Na verdade é a história de Pedro e o lobo", diz Lucy e é verdade.
Marino reclama tanto de tantas pessoas que mal ouço. Agora de volta às minhas falhas. Não prestei atenção. Não escutei. Talvez não escutasse independentemente de
quem tivesse contado.
"Tenho que cuidar de algumas coisas. Você sabe como me encontrar", diz Lucy, abrindo a porta e a deixando aberta depois que saiu.
Pego o telefone e torno a ligar para Fielding. Não deixo mensagem nenhuma dessa vez e me passa pela cabeça que sua mulher também não atende o telefone de casa. Ela
veria o nome e o número de meu escritório no identificador de chamadas. Talvez seja por isso, por saber que sou eu. Ou talvez a família tenha ido a algum lugar,
saído da cidade. Em uma segunda-feira à noite, no meio de uma tempestade de neve, quando ele sabe muito bem que voltei de Dover às pressas para cuidar de um caso
de emergência?
Saio e digitalizo o polegar para destrancar a porta à direita da minha. Entro no escritório do meu sub e o examino devagar, como se fosse a cena de um crime.
11
Escolhi o escritório de Fielding, tendo insistido em um tão bom quanto o meu, bem grande, com chuveiro privativo. Ele tem vista do rio e da cidade, embora as venezianas
estejam baixadas, o que acho inquietante. Ele deve ter fechado quando ainda estava claro lá fora, e não sei por que faria isso. Não por um bom motivo, penso. É um
mau presságio, independentemente de qualquer coisa.
Circulo pelo aposento, abro todas as venezianas e, através das amplas vidraças refletivas em tons de cinza, distingo as luzes embaçadas do centro de Boston e ondas
crescentes de umidade congelada, uma neve frígida que clica e fere como dentes. O topo dos arranha-céus, as torres Prudential e Hancock estão encobertos e as rajadas
de vento gemem em tons baixos ao redor da cúpula sobre minha cabeça. Abaixo, a Memorial Drive está movimentada devido ao tráfego, mesmo a esta hora, e o Charles
parece amorfo e negro. Eu me pergunto quantos centímetros de neve temos até agora e quanto vamos ter antes que se desloque para o sul. Eu me pergunto se Fielding
nunca mais vai voltar à sala que projetei e mobiliei para ele, e por algum motivo sinto que não, mesmo que não existam provas de que ele se foi para sempre.
A maior diferença entre nossos espaços de trabalho é que o dele está repleto de lembretes do ocupante, seus vários diplomas, certificados e condecorações, suas peças
de coleção em prateleiras, bolas e bastões de beisebol autografados, troféus e placas de tae kwon do, maquetes de aviões de guerra e um pedaço de um de verdade que
caiu. Vou até sua mesa e examino relíquias da Guerra Civil: uma fivela de cinto, um balde de cacarecos, um polvorinho, algumas balas Minié que recordo que ele colecionava
em nosso início na Virginia. Mas não há fotografias e isso me deixa triste. Em alguns locais, vejo o que desapareceu nos espaços vazios na parede onde ele não se
deu o trabalho de preencher os orifícios diminutos deixados pelos ganchos que removeu.
Dói que ele não mais exponha as fotografias rotineiras, batidas quando ele era meu colega na patologia forense, fotos inocentes nossas no necrotério ou de nós dois
em cenas de morte com Marino, o principal detetive de homicídios da polícia de Richmond no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando tanto Fielding quanto
eu estávamos apenas começando, ainda que de maneiras completamente diferentes. Ele era o médico bem aparentado em início de carreira, ao passo que eu estava mudando
para o setor privado, em transição para a vida civil e o papel de chefe, fazendo o possível para não olhar para trás. Talvez Fielding não olhe para trás, embora
eu não saiba por quê. Seu passado foi bom comparado ao meu. Ele não ajudou a ocultar um crime. Nunca precisou se esconder de nada semelhante a isso. Não que eu saiba,
mas gostaria de saber. O que mais sei?
Não muito, exceto pela sensação de que ele se livrou de mim, talvez tenha se livrado de todos nós. Parece que se livrou de mais coisas do que realmente fez. Estou
convencida disso sem saber bem por quê. Seus objetos pessoais certamente continuam aqui, suas roupas de chuva Gore-Tex em um cabide, suas botas de neoprene, sua
bolsa com o equipamento de mergulho e o estojo com instrumentos de trabalho guardados em um armário, e sua coleção de emblemas da polícia e moedas de torneios policiais
e militares. Eu me lembro de tê-lo ajudado a se mudar para este escritório. Ajudei meu sub a arrumar até os móveis, nós dois nos queixando, rindo e então reclamando
mais um pouco enquanto deslocávamos a escrivaninha, depois a mesa de reuniões, e então trocávamos tudo de lugar novamente.
"O que é isso? O Gordo e o Magro?", perguntou ele. "A próxima coisa que você vai empurrar escada acima é uma mula?"
"Você não tem escada."
"Estou pensando em comprar um cavalo", disse ele enquanto deslocávamos cadeiras que antes havíamos transferido para outro local. "Tem um haras a um quilômetro e
meio de casa. Posso hospedar o cavalo lá e quem sabe vir trabalhar a cavalo ou cavalgar até as cenas dos crimes."
"Vou acrescentar isso ao manual do funcionário. Nada de cavalos."
Brincamos e provocamos um ao outro, e ele me pareceu bem naquele dia - animado e otimista, seus músculos deformando as mangas curtas do jaleco. Exibia uma boa forma
e uma aparência saudável inacreditáveis na ocasião, o rosto ainda infantilmente bonito, o cabelo louro-escuro despenteado, e fazia vários dias que não se barbeava.
Ele era atraente e divertido, e recordo os sussurros e risinhos de algumas das funcionárias quando passavam pela porta aberta de seu escritório, procurando desculpas
para olhar para ele. Fielding parecia muito feliz por estar aqui comigo e me lembro de nós dois arrumando fotografias e recordando nosso início juntos - fotos que
agora desapareceram.
Em seu lugar há outras das quais não me lembro. As fotos estão arrumadas nas prateleiras e paredes, em locais de destaque, poses formais com políticos e altas patentes
militares, uma com o general Briggs e até mesmo a capitã Avallone, talvez procedente da visita de que eu agora sabia. Ele parece rígido e entediado. Em uma foto
sua vestindo as roupas brancas do tae kwon do, a meio voo e chutando um inimigo imaginário, parece zangado, com o rosto vermelho e cheio de ódio. Enquanto examino
retratos recentes de família, concluo que tampouco ali ele parece satisfeito, nem mesmo quando está segurando suas duas filhinhas ou tem os braços ao redor da mulher,
Laura, uma loura delicada cuja beleza está se desgastando, como se a vida difícil estivesse mapeando seu curso, gravando linhas e rugas em uma topografia antes graciosa
e elegante.
Ela é a terceira mulher de Fielding, e rastreio o declínio dele ao examinar esses momentos captados em ordem cronológica. Quando se casou com ela, ele parecia bem-disposto,
sem sinais de erupções cutâneas e não apresentava os trechos inconvenientes de calva. Paro para admirar quão incrível ele estava, sem camisa e com o corpo rijo como
pedra nos shorts de corrida, lavando seu Mustang 67 vermelho-cereja com as listras de Le Mans no centro do capô. Então recentemente, no outono passado, o espessamento
na região da cintura; a pele coberta de manchas e avermelhada; os fios de cabelo penteados para trás e mantidos no lugar com gel para esconder a alopecia. Em uma
competição de artes marciais há menos de um mês, ele não parece em boas condições físicas nem espiritualmente equilibrado em seu uniforme de mestre faixa-preta.
Não parece encontrar alegria nem na boa forma nem na técnica. Não tem a aparência de quem reverencia as outras pessoas, possui autocontrole ou respeita qualquer
coisa. Parece desregrado. Meio perturbado. Completamente infeliz.
Por quê?, pergunto em um sussurro à foto inicial com seu adorado carro, quando ele estava deslumbrante de ver, com ar despreocupado e vigoroso, o tipo de homem por
quem seria fácil se apaixonar, colocar no comando ou confiar a própria vida. O que mudou? O que te deixou tão infeliz? O que foi desta vez? Ele detesta trabalhar
para mim. Detestou da última vez, em Watertown, onde não ficou muito tempo, e agora no CFC, que detesta ainda mais, isso é óbvio. Foi no final do verão passado,
quando ele começou a ficar tão mal que finalmente abrimos nossas portas à justiça penal, recebendo casos. Mas eu nem mesmo estava em Massachusetts na ocasião, passei
só o feriado do Dia do Trabalho. Não pode ser culpa minha. A culpa sempre foi minha. Sempre me culpei pelas quedas de Fielding, que foram em número maior do que
estou disposta a contar.
Faço com que se recupere e ele torna a cair, de forma cada vez mais séria. Cada vez mais feia. Cada vez mais sangrenta. Vezes sem conta. Como uma criança que não
consegue andar e não vou aceitar até que ela esteja ferida para além de qualquer conserto. O drama que vai sempre terminar de forma previsível, como Benton descreveu.
Fielding não deveria ser patologista forense e é por minha causa que exerce a profissão. Ele estaria melhor se não tivesse me conhecido na primavera de 1988, quando
não tinha certeza do que queria da vida e eu lhe disse que sabia o que deveria fazer. Eu mostro. Eu ensino. Se não tivesse ido a Richmond, ele não teria esbarrado
em mim e talvez tivesse escolhido uma maneira condizente de passar seus dias. Sua carreira e sua vida teriam a ver consigo mesmo, e não comigo.
Este é sem dúvida o ponto principal: Fielding faz o melhor possível em um ambiente totalmente destrutivo para ele e por fim não suporta mais, descompensa, se desintegra
e lembra por que ele é o que é e quem o formou; então assomo como um imenso outdoor em sua vida desprezível. Sua reação a essas crises é sempre a mesma. Desaparecer.
Um dia ele simplesmente some do radar e o que encontro em seu rastro é horrível. Casos com os quais lidou de forma inapropriada ou negligenciou. Memorandos que demonstravam
sua falta de controle e uma capacidade de julgamento perigosa. Mensagens de voz ofensivas que ele não se preocupou em apagar porque queria que eu ouvisse. E-mails
e outros comunicados prejudiciais que esperava que eu encontrasse. Sento na cadeira em sua mesa e começo a abrir as gavetas. Não preciso vistoriar por muito tempo.
A pasta de arquivo não está etiquetada e contém quatro folhas impressas às oito e três de ontem, 8 de fevereiro, com um discurso que, com base em outras informações
no cabeçalho e na seção de notícias, procede do site do Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança. Um instituto de pesquisas inglês centenário
com filiais em locais estratégicos em todo o mundo, o RUSI dedica-se a inovações avançadas em segurança nacional e internacional, e não consigo imaginar o interesse
de Fielding. Não compreendo sua preocupação com um discurso programático proferido por Russell Brown, o secretário de Estado de Defesa, com suas opiniões a respeito
do "debate de defesa". Passo os olhos pelos comentários não tão surpreendentes do membro conservador do Parlamento de que a constante participação do Reino Unido
em uma aliança não é um axioma e que o impacto econômico da guerra é catastrófico. Brown faz repetidas alusões à desinformação metodicamente propagada, que é o mais
próximo que o respeitável membro do Parlamento vai chegar de acusar francamente os Estados Unidos de orquestrar a invasão do Iraque e arrastar o Reino Unido nessa
jornada.
Como seria de esperar, o discurso é político, como quase tudo agora na Inglaterra, que organiza eleições gerais para daqui a três meses. Seiscentos e cinquenta cadeiras
estão em disputa e uma questão importante de campanha são as mais de dez mil tropas britânicas que estão combatendo o Talibã no Afeganistão. Fielding não é militar,
nunca prestou muita atenção a questões ou eleições estrangeiras, e não sei por que motivo teria o menor interesse no que está ocorrendo no Reino Unido. Sequer me
lembro de ele já ter ido ao Reino Unido. Ele não é do tipo que se interesse por eleições gerais nesse país, nem pelo RUSI, nem por grupos de pesquisa, e conhecendo-o
bem como conheço, desconfio que pretendia que eu encontrasse essa pasta. Queria que eu a visse depois que realizou outro de seus truques de desaparecimento. O que
ele quer que eu saiba?
Por que está interessado no RUSI? E ele mesmo encontrou o discurso na internet ou alguém o enviou? Se o material foi enviado, por quem? Penso na possibilidade de
pedir a Lucy que entre no e-mail de Fielding, mas não estou preparada para pegar tão pesado e não quero ser pega. Posso trancar a porta, mas ainda assim meu sub
poderia entrar, pois não confio que Ron ou qualquer outra pessoa vá mantê-lo na área de segurança se ele aparecer. Não levo a menor fé que Ron, que sempre foi hostil
e parece ter pouca consideração por mim, vá deter Fielding ou tentar me contatar para pedir sua liberação. Não acredito que minha equipe seja leal a mim, nem que
se sinta segura comigo ou siga minhas ordens, e Fielding pode reaparecer a qualquer momento.
Isso tem tudo a ver com ele. Desaparecer sem aviso, então aparecer da mesma forma inesperada e me pegar em flagrante, sentada em sua mesa, vasculhando seus arquivos
eletrônicos. É só mais uma coisa que ele vai usar contra mim, e já usou muitas assim ao longo dos anos. O que Fielding andou aprontando pelas minhas costas? Vejamos
o que mais descubro, e então vou saber o que fazer. Presto atenção mais uma vez à hora impressa no documento e o imagino sentado nesta mesma cadeira às oito e três,
imprimindo o discurso enquanto todos - Lucy, Marino, Anne e Ollie - estavam alvoroçados devido ao conteúdo da geladeira no térreo.
Estranho Fielding permanecer aqui no escritório enquanto isso estava acontecendo, e me pergunto se chegou a se importar com a possibilidade de um homem ter sido
trancado em nossa geladeira ainda vivo. É claro que Fielding teria que se importar. Como não se importaria? Se o pior se revelasse verdadeiro, ele seria responsabilizado.
No fim das contas, seria eu a aparecer em todos os noticiários e provavelmente perder o emprego, mas ele afundaria comigo. Ainda assim, estava aqui, no sétimo andar,
em seu escritório e longe da confusão, como se já tivesse tomado uma decisão, e me ocorre que seu desaparecimento pode estar relacionado a outra coisa. Reclino-me
na cadeira, olho em volta e minha atenção pousa em um bloco e uma caneta esferográfica perto do telefone. Reparo nas marcas leves na folha de papel no topo.
Acendendo uma luminária, pego o bloco e o seguro em vários ângulos, tentando decifrar as marcas de escrita deixadas como pegadas quando alguém faz uma anotação na
primeira folha, que foi arrancada. Uma das características de Fielding é não ter o toque leve, não quando empunha um bisturi, digita em um teclado ou escreve alguma
coisa. Para um devoto das artes marciais, ele é surpreendentemente bruto, fica facilmente frustrado e se inflama rápido. Tem um jeito infantil de segurar o lápis
ou a caneta, com dois dedos em cima em vez de um, como se estivesse usando pauzinhos orientais. Costuma quebrar grafite e ponta de lápis e é um inferno com marcadores
de texto.
Não preciso de um detector eletrostático, de um Docustat, de uma caixa de vácuo nem de uma unidade de recuperação de escrita para detectar o que consigo enxergar
à moda antiga com luz indireta e meus próprios olhos. Os garranchos quase ilegíveis de Fielding. O que parecem duas anotações separadas. Uma delas é um número de
telefone com código de área quinhentos e oito e MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8. Então a segunda: U DE SHEFFIELD HOJE WHITEHALL. CÂMBIO E DESLIGO. Torno a olhar
para me certificar de ter lido as últimas palavras de forma correta. Câmbio e desligo. O fim de uma transmissão de rádio, como em Roger Wilco câmbio e desligo, mas
também a canção interpretada por uma banda heavy metal que Fielding costumava colocar para tocar o tempo todo no carro quando chegou a Richmond. "Câmbio e desligo.
Todo cão tem seu dia." O que ele cantava para mim quando ameaçava sair, quando estava farto ou me provocando, flertando, fingindo estar de saco cheio. Ele escreveu
câmbio e desligo no bloco de notas pensando em mim ou por alguma outra razão?
Encontro um bloco tamanho ofício em uma gaveta, escrevo o que descobri por intermédio das marcas no bloco de notas e começo a fazer o melhor que posso para entender
o que Fielding estava fazendo e pensando a respeito do que deseja que eu saiba. Se entrasse aqui para bisbilhotar, eu encontraria o material impresso e as marcas
das anotações. Ele me conhece. Pensaria dessa forma porque sabe muito bem como funciona minha mente. A Universidade de Sheffield é uma das principais instituições
de pesquisa do mundo, e Whitehall é onde está sediado o RUSI, literalmente no antigo palácio de Whitehall, a localização original da Scotland Yard.
Entro no Intelliquest, o programa de busca que Lucy criou para o CFC, e digito RUSI, a data de 8 de fevereiro e Whitehall. O que surge é o título de um discurso,
"Colaboração entre civis e militares", a palestra que Fielding deve ter consultado e que foi proferida no RUSI às dez da manhã pelo horário do Reino Unido, o que
para mim agora é a manhã de ontem. O orador foi o dr. Liam Saltz, o controverso ganhador do Nobel cujas opiniões apocalípticas a respeito da tecnologia militar o
tornaram um inimigo natural da DARPA. Eu não sabia que ele pertencia ao corpo docente da Universidade de Sheffield. Pensei que estivesse em Berkeley. Ele passou
por Berkeley e agora está na Sheffield, leio na internet enquanto penso, um tanto impressionada, na exposição da Courtauld no verão anterior ao Onze de Setembro,
onde Lucy e eu assistimos à palestra do dr. Saltz. Pouco depois disso, assim como eu, o dr. Saltz foi um eloquente crítico do MORT.
Reflito sobre o título da palestra que proferiu nem vinte e quatro horas atrás. "Colaboração entre civis e militares". Parece muito brando para o incitador dr. Saltz,
que é chocante como uma sirene de ataque aéreo em suas advertências de que a destinação de mais de duzentos bilhões de dólares por parte dos Estados Unidos para
futuros sistemas de combate - especificamente veículos não tripulados - nos colocaram na estrada da aniquilação total. Os robôs talvez pareçam fazer sentido quando
se cogita enviá-los ao campo de batalha, censura ele, mas o que acontece quando voltam para casa como jipes e outros acessórios militares usados? Com o tempo, abrem
caminho rumo ao mundo civil, e o que vamos ter é mais policiamento e vigilância, mais máquinas insensatas realizando o trabalho de seres humanos, só que essas máquinas
vão estar armadas e equipadas com câmeras e dispositivos de gravação.
Ouvi o dr. Saltz nos noticiários, pintando cenários aterrorizantes de "policiais-robôs" respondendo por cenas de crime e "carros-robôs" não tripulados perseguindo
veículos a fim de multar os ocupantes por infrações de trânsito, parando gente com mandatos de prisão ou, Deus nos livre, recebendo mensagens de seus sensores para
usar a força. Robôs dando choques. Robôs atirando para matar. Robôs que parecem insetos enormes arrastando mortos e feridos para fora do campo de batalha. O dr.
Saltz testemunhou perante o mesmo subcomitê do Senado diante do qual testemunhei, mas não ao mesmo tempo. Ambos causamos estragos a uma empresa de tecnologia chamada
Otwahl, da qual havia me esquecido por completo até poucas horas atrás.
Encontrei-o apenas uma vez quando, por coincidência, estávamos os dois na CNN, e ele apontou para mim e brincou: "Robotópsias".
"Como?", retruquei, desprendendo meu microfone enquanto ele se encaminhava ao set.
"Autópsias robóticas. Um dia eles vão tomar o seu lugar, minha boa doutora, talvez mais cedo do que pensa. Devíamos sair para beber alguma coisa depois do programa."
Ele era um homem de olhos brilhantes, que parecia um hippie perdido, com seu longo rabo de cavalo grisalho e rosto desgastado e a eletricidade de um condutor carregado.
Isso ocorreu há dois anos e eu deveria ter esperado perto da CNN e aceitado o convite. Deveria ter tomado uma bebida com ele. Deveria ter me informado melhor sobre
aquilo em que ele acredita porque nem tudo é loucura. Não o vi mais desde então, embora não possa escapar de sua presença na imprensa e tento lembrar se por algum
motivo já fiz alguma referência a ele junto a Fielding. Acho que não. Não consigo imaginar por que faria isso. Conexões. Onde estão elas? Pesquiso um pouco mais.
A Universidade de Sheffield, em South Yorkshire, possui uma excelente faculdade de medicina, isso eu já sei. Rerum Cognoscere Causas, seu lema, descobrir as causas
das coisas, é muito apropriado, muito irônico. Preciso de causas. Clico em PESQUISAR. Aquecimento global, degradação global do solo, repensando a engenharia com
softwares pioneiros, novas descobertas nas alterações de DNA de células-tronco embrionárias humanas. Volto às marcas das anotações na folha de bloco.
MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8.
MAV é nossa abreviatura para morte por acidente com veículo motorizado e dou outra busca, dessa vez explorando o banco de dados do CFC. Insiro MAV, a data, 18 de
agosto do verão passado, e um arquivo retorna, o caso de um inglês de vinte anos chamado Damien Patten, morto em um acidente com táxi em Boston. Fielding não realizou
a autópsia, que foi feita por um de meus outros legistas, e na narrativa reparo que Damien Patten era um anspeçada do 14o Regimento Signal, estava de férias e tinha
ido a Boston para se casar quando morreu no acidente. Tenho uma sensação estranha. Alguma coisa se encaixa.
Realizo outra busca usando as palavras-chaves 8 de fevereiro e Diário do Ministério da Defesa RU. Acabo no blog oficial da instituição e uma entrada lista os soldados
britânicos mortos ontem no Afeganistão. Percorro a lista de baixas, procurando qualquer coisa que tenha algum significado para mim. Um anspeçada do 1o Batalhão dos
Guardas de Coldstream. Um sargento temporário do 1o Batalhão dos Guardas de Grenadier. Um soldado do 2o Batalhão do Regimento do Duque de Lancaster. Depois há um
sapador, ou engenheiro militar, com a Força-Tarefa de Dispositivos Explosivos Anti-improvisados, que foi morto em terreno montanhoso no noroeste do Afeganistão.
Na província de Badghis. Onde meu paciente, o soldado de primeira classe Gabriel, foi morto no domingo, 7 de fevereiro.
Faço outra busca, apesar de saber sem ter que procurar quantos soldados da Otan morreram no Afeganistão em 7 de fevereiro. Em Dover, sempre sabemos. É tão rotineiro
quanto se preparar para as tempestades, um informe mórbido e depressivo que controla nossa vida. Nove baixas, e quatro delas foram americanos mortos pelo mesmo dispositivo
explosivo improvisado na beira da estrada que transformou o Humvee do soldado de primeira classe Gabriel em um alto-forno. Mas, novamente, isso aconteceu no dia
7, não no dia 8. Ocorre-me que o soldado britânico que morreu no dia 8 talvez tenha se ferido no dia anterior.
Verifico e estou certa. O sapador Geoffrey Miller tinha vinte e três anos, era recém-casado e foi ferido em um atentado a bomba na província de Badghis domingo cedo,
mas morreu no dia seguinte em um centro médico militar na Alemanha. Possivelmente o mesmo atentado à beira da estrada que matou os americanos de quem cuidamos em
Dover ontem pela manhã - na realidade, provavelmente. Pergunto-me se o sapador Miller e o soldado de primeira classe Gabriel se conheciam e, como o inglês morto
no táxi, Damien Patten, pode estar relacionado a eles. Patten foi apresentado a Miller e Gabriel no Afeganistão, mas o que Fielding tem a ver com tudo isso? Como
o dr. Saltz, o MORT ou o rapaz de Norton's Woods estão relacionados, ou não estão?
O corpo de Miller vai ser repatriado nesta quinta-feira, porque sua família vive em Oxford, na Inglaterra, continuo a ler, mas não descubro mais nada a seu respeito,
embora certamente consiga obter mais informações sobre um soldado inglês morto se necessário. Posso ligar para Rockman, o assessor de imprensa. Posso ligar para
Briggs, e de qualquer forma preciso fazer isso, recordo. Briggs me pediu - na realidade, ordenou - que eu o mantivesse informado a respeito do caso de Norton's Woods,
acordando-o se necessário no instante em que tiver informações. Mas não vou fazer isso. De jeito nenhum. Não agora. Não sei ao certo em quem posso confiar e, enquanto
esse pensamento persiste, dou-me conta da encrenca em que estou metida.
O que diz o fato de não poder pedir ajuda às pessoas com quem trabalha? Tudo, e é como se o chão estivesse se abrindo sob meus pés e eu estivesse resvalando para
o desconhecido, um espaço frio, escuro, vazio, onde já estive. Briggs quis passar por cima de mim, usurpar minha autoridade e transferir o caso de Norton's Woods
para Dover. Fielding andou se esgueirando por aí na minha ausência, metendo-se em assuntos que não são da conta dele, até mesmo usando meu escritório, e agora está
fugindo de mim, ou pelo menos espero que seja só isso. Minha equipe está se amotinando e algumas pessoas, que me são estranhas, parecem conhecer os detalhes de meu
regresso para casa.
São quase duas da manhã e me sinto tentada a discar o número de telefone que Fielding rabiscou na folha de bloco, surpreender quem quer que atenda, acordar a pessoa
e, quem sabe, conseguir uma pista do que está acontecendo. Em vez disso, faço uma pesquisa no computador da polícia para ver a quem ou a que o número com o código
de área quinhentos e oito pertenceria. A informação sumária me choca e por um instante fico completamente imóvel e tento me acalmar. Tento afastar as muralhas do
horror e da confusão que abrem caminho e me oprimem.
Julia Gabriel, mãe do soldado de primeira classe Gabriel.
Na tela à minha frente estão os endereços de casa e do trabalho, seu estado civil, o salário que recebe como farmacêutica em Worcester, Massachusetts, e nome e idade
de seu único filho, que morreu no Afeganistão no domingo, aos dezenove anos. Permaneci ao telefone com a sra. Gabriel durante quase uma hora antes de fazer a autópsia,
tentando explicar, da forma mais delicada possível, a impossibilidade de coletar o esperma dele enquanto ela levantava a voz, gritava e me acusava de fazer escolhas
pessoais que não deveria fazer, não fiz e nunca faria.
Recolher esperma de mortos e usá-lo para engravidar vivos envolve um dilema moral. Não tenho opiniões pessoais acerca do que é, na realidade, uma questão médica
e legal, não religiosa ou ética, e certamente os envolvidos deveriam optar, não o médico. O que me interessa é que o procedimento, que se tornou cada vez mais popular
por causa da guerra, seja realizado de forma correta e legítima e, de qualquer forma, minhas supostas opiniões sobre os direitos póstumos de reprodução eram controversas
no caso do soldado de primeira classe Gabriel. Seu corpo estava queimado e se decompondo, sua pélvis, tão carbonizada que os testículos haviam desaparecido e o canal
deferente contendo o sêmen, sumido junto com eles, e eu não ia dizer isso à sra. Gabriel. Fui o mais compassiva e delicada possível e não levei para o lado pessoal
o fato de ela descarregar sua dor e sua raiva no último médico que seu filho veria nesta terra.
Peter tinha uma namorada que estava disposta a ter os filhos dele, assim como seu amigo, era um pacto, continuou a sra. Gabriel, e eu não fazia ideia de a que amigo
e a que exatamente ela estava se referindo. O amigo de Peter havia mencionado outro amigo que tinha morrido no dia do casamento no verão anterior, só que a sra.
Gabriel não se referiu a Damien Patten pelo nome, o inglês morto no táxi em 18 de agosto passado. "Agora os três estão mortos, três rapazes bonitos mortos", disse
a sra. Gabriel ao telefone, e eu não fazia ideia do que ela estava falando. Agora acho que sei. Ela com certeza estava se referindo a Patten, o amigo do amigo com
quem o soldado de primeira classe Gabriel tinha uma espécie de pacto. Eu me pergunto se o amigo de Patten é a outra vítima a quem Fielding parece ter me conduzido,
Geoffrey Miller, o sapador.
Agora os três estão mortos.
x
x
x
CONTINUA
x
x
x
Teria Fielding discutido o caso de Patten com a sra. Gabriel, e com quem ela falou primeiro, com Fielding ou comigo? Ela telefonou para Dover por volta de sete e quarenta e cinco. Sempre preencho um registro de chamadas e me lembro de ter anotado a hora quando me sentei em meu pequeno escritório no necrotério de Dover, examinando as tomografias e suas coordenadas, que me ajudariam a localizar, com a precisão de um GPS, o fragmento e outros objetos que haviam penetrado o corpo muito queimado de seu filho. Com base no que me contou, enquanto tento agora reconstruir a conversa, ela provavelmente falou primeiro com Fielding. Isso talvez explique suas repetidas referências a "outros casos".
x
x
x
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/NECROTERIO_2.jpg
x
x
x
Alguém havia colocado em sua cabeça uma ideia do que fazemos em outros casos. Ela estava com a clara impressão de que extraíamos sêmen das vítimas de forma rotineira e que, na realidade, encorajávamos isso, e lembro-me de ter ficado surpresa, pois o procedimento precisa ser aprovado e está repleto de complicações legais. Eu não imaginava o que lhe havia dado essa ideia e poderia ter feito perguntas se ela não estivesse tão ocupada em me criticar e xingar. Que espécie de monstro impediria uma mulher de ter os filhos do namorado morto ou proibiria que a mãe de um filho morto se tornasse avó? Nós fazemos isso em outros casos, por que não no do filho dela? "Não tenho mais ninguém", gritou. "Isso é burocracia sem sentido, admita", vociferou ela. "Burocracia sem sentido para encobrir mais um crime motivado por preconceito."
"Tem alguém em casa?" É Benton no vão da porta.
A sra. Gabriel me chamou de militar preconceituosa. "Você faz para os outros, contanto que sejam brancos", disse ela. "Você cuidou daquele outro rapaz que morreu em Boston e ele nem era um soldado americano, mas não do meu filho, que morreu por seu país. Imagino que tenha a cor errada", continuou ela e eu não fazia ideia do que estava querendo dizer ou no que estava baseando tal acusação. Não tentei descobrir porque me pareceu histeria, nada mais, e a perdoei no mesmo instante. Ainda que aquilo obviamente tenha me magoado muito e eu não tenha conseguido...Embora esta seja uma obra de ficção, não se trata de ficção científica. Os procedimentos médicos e forenses e as tecnologias e armas que vocês verão aqui são os utilizados hoje. Parte do que estão prestes a encontrar é extremamente perturbador. Mas tudo isso é possível.
Várias entidades citadas no livro também são reais e estão em plena operação, incluindo as seguintes:
Necrotério Militar da Base Aérea de Dover
Sistema de médicos-legistas das Forças Armadas (AFMES)
Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas (AFDIL)
Instituto de Patologia das Forças Armadas (AFIP)
Departamento de Defesa
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA)
Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança (RUSI)
Sistema de Armamento Especial, Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta (SWORDS)
Já o Centro Forense de Cambridge (CFC), o Instituto Correcional de Chatham, a Otwahl Technologies e o Transporte de Remoção Operacional Funerária (MORT) são minhas  criações, assim como todos os personagens da narrativa e o enredo em si.
Dito isso, agradeço a todos os homens e mulheres admiráveis do Sistema de Medicina Legal das Forças Armadas e do Instituto de Patologia das Forças Armadas, que, ao longo de minha carreira, foram generosos o suficiente para compartilhar suas ideias e seu conhecimento altamente avançado e me impressionar com sua disciplina, integridade e amizade.
Como sempre, sou profundamente grata à dra. Staci Gruber, diretora do Núcleo de Neuroimagem Clínica e Cognitiva do Hospital McLean e professora assistente do departamento de psiquiatria da escola de medicina de Harvard.
E, claro, agradeço à dra. Marcella Fierro, ex-legista-chefe da Virginia, e ao dr. Jamie Downs, médico-legista em Savannah, Georgia, por sua competência em todas as questões patológicas.
X
X
X
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/NECROTERIO.jpg
X
X
X
No vestiário feminino, atiro a roupa suja do hospital em um coletor de risco biológico e tiro o restante das roupas e o calçado. Pergunto-me se CEL. SCARPETTA, gravado
em letras pretas em meu armário, será removido no minuto em que eu retornar a New England pela manhã. Esse pensamento não havia me passado pela cabeça até agora
e me incomoda. Uma parte minha não quer deixar este lugar.
A vida na Base Aérea de Dover tem seus confortos, apesar dos seis meses de treinamento árduo e da desolação de lidar diariamente com a morte em nome do governo dos
Estados Unidos. Minha estada aqui foi surpreendentemente simples. Posso dizer que foi até mesmo agradável. Vou sentir saudades de me levantar antes do amanhecer
em meu modesto quarto, vestir uma calça, uma polo, botas e cruzar a pé o estacionamento, na escuridão gelada, até o campo de golfe para tomar café e comer alguma
coisa antes de seguir de carro até o necrotério, onde não estou no comando. Quando estou de serviço como médica-legista das Forças Armadas, não sou chefe. Na realidade,
um grande número de pessoas tem patente superior à minha e não sou eu que tomo as decisões críticas. Quando muito, sou consultada. Não é assim quando retorno a Massachusetts,
onde todos dependem de mim.
É segunda-feira, 8 de fevereiro. Iluminado em vermelho, como um aviso, o relógio acima das pias brancas reluzentes marca 16h33. Em menos de noventa minutos, vou
aparecer na CNN para explicar o que é um patologista radiológico forense e por que me tornei uma, e o que Dover, o Departamento de Defesa e a Casa Branca têm a ver
com isso. Em outras palavras, já não sou mais apenas médica-legista, tampouco apenas reservista do AFMES. Desde o Onze de Setembro, desde a invasão ao Iraque, e
agora com o aumento das tropas no Afeganistão - ensaio os pontos que devo abordar -, a fronteira entre as esferas militar e civil desapareceu para sempre. Um exemplo
que eu poderia dar: em novembro, por um período de quarenta e oito horas, treze soldados mortos foram trazidos para cá do Oriente Médio de avião, e exatamente o
mesmo número de corpos chegou de Fort Hood, no Texas. Grandes contingentes de vítimas não se restringem ao campo de batalha, embora eu já não saiba ao certo o que
constitui um campo de batalha. Talvez todos os lugares sejam campos de batalha, vou dizer na TV. Casas, escolas, igrejas, aviões comerciais e os locais onde trabalhamos,
fazemos compras e passamos férias.
Seleciono artigos de higiene pessoal como seleciono os comentários que vou precisar fazer sobre radiologia 3-D, TC, a tomografia computadorizada e os exames no necrotério
e lembro-me de enfatizar que meu novo centro de operações em Cambridge, Massachusetts, é a primeira instituição civil nos Estados Unidos a realizar autópsias virtuais,
Baltimore será a próxima e, por fim, a tendência vai se difundir. A tradicional investigação post mortem de dissecção, em que você comparece, bate fotografias após
a ocorrência e espera não deixar passar nada nem modificar a cena do crime pode, e deve, ser dramaticamente aprimorada e tornada mais precisa pela tecnologia.
É uma pena não participar do World News esta noite, porque, agora que estou pensando nisso, percebo que preferia ter esse diálogo com Diane Sawyer. O problema da
minha presença constante na CNN é que a familiaridade muitas vezes leva a uma diminuição do respeito. Eu deveria ter pensado nisso antes. A entrevista pode se tornar
pessoal, e eu devia ter mencionado essa possibilidade ao general Briggs antes. Devia ter contado o que aconteceu hoje pela manhã quando a mãe enraivecida de um soldado
morto gritou comigo ao telefone, acusando-me de preconceituosa e ameaçando levar a queixa à imprensa.
A porta de metal do meu armário soa como um tiro ao ser fechada. Caminho sobre o ladrilho canela, sempre frio e liso sob meus pés descalços, carregando minha cesta
plástica com xampu e condicionador à base de oliva, um creme esfoliante feito de algas marinhas fossilizadas, uma gilete, espuma para pele sensível, detergente líquido,
uma toalha, enxaguante bucal, escova de dente, uma escovinha para as unhas e óleo Neutrogena perfumado para quando terminar tudo. No interior de um boxe aberto,
arrumo primorosamente meus objetos pessoais na prateleira e abro a água no mais quente que consigo suportar, o jato forte explodindo à medida que me desloco para
me molhar inteira, depois ergo o rosto, então olho para o chão, para meus próprios pés brancos. Deixo a água bater na nuca e na cabeça na esperança de que os músculos
tensos relaxem um pouco enquanto entro mentalmente no closet do meu alojamento na base e procuro o que vestir.
O general Briggs - John, como o chamo quando estamos sozinhos - quer que eu use um uniforme de aviador ou, melhor ainda, o uniforme azul da Força Aérea, mas discordo.
Eu deveria usar roupas civis, que é o que as pessoas me veem usar quando dou entrevistas na televisão, algo como um terninho escuro simples, blusa marfim de gola
alta e o sóbrio relógio Breguet com pulseira de couro que minha sobrinha Lucy me deu. Não o Blancpain com o mostrador preto grande demais e engaste de cerâmica,
também presente dela, que é obcecada por relógios e qualquer coisa tecnicamente complicada e cara. Nunca calça comprida, e, sim, saia e salto alto, assim pareço
menos intimidadora e mais acessível, truque que aprendi há tempos no tribunal. Por alguma razão, os jurados gostam de ver minhas pernas enquanto descrevo ferimentos
fatais em detalhes anatômicos vívidos e os últimos momentos de vida da vítima agonizante. Briggs vai ficar irritado com minha escolha de roupa, mas lembrei, enquanto
bebíamos durante o Super Bowl na noite passada, que um homem não deve dizer a uma mulher o que vestir, a menos que ele seja Ralph Lauren.
O vapor em meu chuveiro desloca-se, perturbado por uma corrente de ar, e penso ouvir alguém. Fico instantaneamente irritada. Pode ser qualquer um, qualquer funcionária
militar, médica ou não, que esteja autorizada a permanecer nestas instalações altamente restritas e necessite de um banheiro, de desinfecção ou de uma troca de roupa.
Penso nas colegas com quem estava na sala de autópsia principal e tenho o pressentimento de que se trata, mais uma vez, da capitã Avallone. Ela foi presença inevitável
na maior parte da manhã durante o exame de TC, como se eu não soubesse realizá-lo a esta altura, e ficou perambulando como uma névoa baixa em torno de minha estação
de trabalho o restante do dia. Provavelmente, foi ela que acabou de entrar. Tenho certeza disso, na verdade, pois é sempre ela, e sinto um ressentimento. Vá embora.
"Dra. Scarpetta?", grita a voz familiar, insossa e desprovida de emoção, que parece me seguir por toda parte. "Telefone para a senhora."
"Acabei de entrar", grito por sobre o jato forte de água.
É meu jeito de lhe pedir que me deixe em paz. Um pouco de privacidade, por favor. Não quero ver a capitã Avallone nem ninguém neste momento, o que nada tem a ver
com o fato de estar nua.
"Desculpe. Mas Pete Marino precisa conversar com a senhora." A voz inexpressiva aproxima-se.
"Vai ter que esperar", berro.
"Ele disse que é importante."
"Você pode perguntar o que ele quer?"
"Ele só disse que é importante, senhora."
Prometo telefonar mais tarde e provavelmente pareço grosseira, mas, apesar de bem-intencionada, nem sempre consigo ser agradável. Pete Marino é um investigador com
quem trabalhei durante metade da minha vida. Espero que nada terrível tenha acontecido em casa. Não, ele se certificaria de me informar se houvesse uma emergência
real, como alguma coisa errada com meu marido, Lucy, ou se houvesse um problema grave no Centro Forense de Cambridge, que eu chefiava. Marino faria mais que apenas
pedir a alguém que me informasse que está ao telefone e que é importante. Isso nada mais é que seu escasso controle dos próprios impulsos, concluo. Quando tem uma
ideia, Marino acha que deve compartilhá-la comigo no mesmo instante.
Abro bem a boca, enxaguando o gosto de carne humana crestada e decomposta preso no fundo da garganta. O fedor do trabalho de hoje sobe em ondas de vapor e penetra
fundo em meus seios paranasais, as moléculas de biologia pútrida me fazendo companhia no chuveiro. Esfrego por baixo das unhas com sabonete antibacteriano que esguicho
de um frasco, o mesmo que uso nos pratos e para descontaminar minhas botas quando saio da cena do crime, e escovo os dentes, as gengivas e a língua. Lavo o interior
das narinas tão longe quanto consigo alcançar, esfregando cada centímetro do corpo, em seguida lavo o cabelo, não uma, mas duas vezes, e o fedor persiste. Tenho
a sensação de não conseguir ficar limpa.
O nome do soldado morto de quem acabo de me ocupar é Peter Gabriel, como o astro do rock, só que esse Peter Gabriel era um soldado de primeira classe do Exército
e não estava há nem um mês na província de Badghis, no Afeganistão, quando uma bomba à beira improvisada com um tubo plástico de esgoto lotado de PE-4, tampado com
uma folha de cobre, perfurou a blindagem de seu Humvee, provocando uma explosão de metal derretido em seu interior. O soldado de primeira classe Gabriel consumiu
a maior parte de meu último dia aqui neste imenso espaço high-tech, onde patologistas e cientistas das Forças Armadas envolvem-se rotineiramente em casos que a maioria
do público não associa conosco: o assassinato de JFK; as identificações de DNA recentes da família Romanov e dos tripulantes do submarino H.L. Hunley, que afundou
durante a Guerra Civil. Somos uma organização importante, mas pouco conhecida, com raízes que remontam a 1862 e ao Museu Médico do Exército, cujos cirurgiões cuidaram
de Abraham Lincoln após o tiro e realizaram sua autópsia, coisas que eu deveria mencionar na CNN. Focar no positivo. Esquecer o que disse a sra. Gabriel. Não sou
um monstro nem preconceituosa. Você não pode culpar a pobre mulher por estar descontrolada, digo a mim mesma. Ela acaba de perder o único filho. Os Gabriel são negros.
Como você se sentiria, pelo amor de Deus? É claro que você não é racista.
Percebo novamente uma presença. Alguém entrou no vestiário, que consegui enevoar como um grande chuveiro a vapor. Meu coração bate forte devido ao calor.
"Dra. Scarpetta?" A capitã Avallone parece menos hesitante, como se tivesse novidades.
Fecho a água e saio do boxe, agarrando uma toalha para me enrolar. A capitã Avallone é uma presença indistinta pairando na névoa perto das pias e dos secadores de
mão sensíveis ao movimento. Tudo o que consigo distinguir é o cabelo escuro, a calça cáqui e a polo preta com o emblema do AFMES bordado em dourado e azul.
"Pete Marino...", ela começa a dizer.
"Vou ligar para ele em um minuto." Apanho outra toalha em uma prateleira.
"Ele está aqui, senhora."
"O que você está querendo dizer com aqui?" Quase espero que Marino se materialize no vestiário como uma criatura pré-histórica emergindo da névoa.
"Está esperando lá atrás, perto das baias", informa ela. "Vai levar a senhora até o Eagle's Rest para pegar suas coisas." A capitã Avallone diz isso como se o FBI
tivesse vindo me buscar, como se eu tivesse sido presa ou despedida. "Minhas instruções são para conduzir a senhora até ele e ajudar no que for necessário."
O primeiro nome da capitã Avallone é Sophia. Ela é do Exército, acabou de sair da residência de radiologia e é sempre militarmente correta e servilmente educada
enquanto perambula e perde tempo. Agora não é hora. Carrego minha cestinha, pisando no ladrilho, e ela segue logo atrás de mim.
"Só vou embora amanhã, e sair com Marino não faz parte dos meus planos de viagem", digo.
"Posso cuidar do seu carro. Pelo que entendi, a senhora não vai dirigir..."
"Você perguntou a ele do que se trata?" Retiro do armário minha escova de cabelo e meu desodorante.
"Eu tentei, senhora", responde a capitã. "Mas ele não colaborou."
Um C-5 Galaxy ruge no alto, rumo a um dezenove. Como sempre, o vento está vindo do sul.
Um dos muitos princípios aeronáuticos que aprendi com Lucy, que, entre outras coisas, é piloto de helicóptero, é que os números da pista de pouso e decolagem correspondem
à bússola. Dezenove, por exemplo, quer dizer cento e noventa graus, o que significa que a ponta oposta vai ser um, assim orientada devido ao efeito Bernoulli e às
leis de movimento de Newton. Tem tudo a ver com a velocidade com que o ar precisa fluir sobre a asa, com decolar e aterrissar na direção do vento, que nesta parte
de Delaware sopra a partir do mar, da alta para a baixa pressão, do sul para o norte. Entra dia sai dia, os aviões de transporte trazem e levam os mortos ao longo
de uma pista de asfalto que corre como o rio Estige por trás do necrotério.
O Galaxy cinza tem o comprimento de um campo de futebol americano, tão imenso e pesado que mal parece se mover no céu claro com nuvens leves, que os pilotos chamam
de rabo de égua. Sei de que tipo de transporte aéreo se trata sem olhar, reconheço os guinchos e silvos agudos. A esta altura, conheço o som das turbinas produzindo
cento e sessenta mil libras de propulsão, consigo identificar um C-5 ou um C-17 a quilômetros de distância e também conheço helicópteros e aeronaves com rotor, diferencio
um Chinook de um Black Hawk ou de um Osprey. Com tempo bom, quando tenho alguns momentos para espairecer, sento no banco diante de meu alojamento e observo as aeronaves
de Dover como se fossem criaturas exóticas, como peixes-bois, elefantes ou aves pré-históricas. Nunca me canso de seu corpo pesado, seu ruído atroador e das sombras
que projetam quando passam no alto.
As rodas aterrissam tão perto, com baforadas de fumaça, que sinto o estrépito em meus órgãos ocos à medida que atravesso a recepção com suas quatro imensas baias,
seu paredão de alta privacidade e geradores de reserva. Aproximo-me de uma van azul que nunca vi, e Pete Marino não faz nenhum movimento para me cumprimentar ou
abrir a porta, o que não quer dizer nada. Ele não gasta energia com boas maneiras, e ser cortês ou agradável nunca foi sua prioridade, pelo que sei. Faz mais de
vinte anos que nos conhecemos no necrotério de Richmond, Virginia. Ou talvez tenhamos nos encontrado pela primeira vez em alguma cena de homicídio. Realmente não
lembro.
Entro e fecho a porta, enfiando a mochila entre as botas, o cabelo ainda úmido do banho. Ele me avalia em silêncio e acha que estou péssima. Sempre percebo por seus
olhares de esguelha que me inspecionam da cabeça aos pés, demorando-se em certas partes que não lhe dizem respeito. Marino não gosta que eu use o uniforme do AFMES,
a calça cáqui, a polo preta e a jaqueta tática, e nas poucas vezes em que me viu assim acho que ficou assustado.
"Onde você roubou a van?", pergunto enquanto ele dá ré.
"Em uma locadora da Civil Air." A resposta ao menos garante que não aconteceu nada com Lucy.
O terminal não oficial na extremidade norte da pista é usado por funcionários civis autorizados a pousar na base aérea. Minha sobrinha trouxe Marino até aqui e me
passa pela cabeça que os dois vieram me fazer uma surpresa. Apareceram sem avisar para me desobrigar do voo comercial pela manhã e me acompanhar até em casa. Doce
ilusão. Não pode ser isso e procuro respostas no rosto de traços irregulares de Marino, captando sua aparência geral, quase da mesma forma que inspeciono um paciente
à primeira vista. Tênis de corrida, jeans, jaqueta de couro Harley-Davidson com forro de lã que ele tem há uma eternidade, boné de beisebol dos Yankees que usa por
sua própria conta e risco, levando-se em conta que agora mora no território dos Red Sox, e óculos de aro de metal antiquados.
Não sei dizer se ele raspou o pouco que lhe restou de cabelo grisalho, mas está limpo e relativamente bem cuidado, e não está vermelho de uísque nem tem a barriga
inchada de cerveja. Os olhos não estão injetados de sangue. As mãos parecem firmes. Não sinto cheiro de cigarro. Ele continua longe do álcool e longe de outras coisas.
Marino teve a sabedoria de se afastar de uma porção de coisas, um trem que se imiscui nos territórios instáveis de suas inclinações aborígines. Sexo, birita, drogas,
tabaco, comida, grosseria, intolerância, indolência. Eu provavelmente deveria acrescentar falsidade. Quando lhe convém, ele é evasivo ou simplesmente mente.
"Imagino que Lucy esteja no helicóptero...", começo a dizer.
"Você sabe como é esta espelunca quando se está trabalhando num caso. Pior que a porra da CIA", diz ele enquanto viramos na Purple Heart Avenue. "A casa da pessoa
pode estar pegando fogo e ninguém diz merda nenhuma. Devo ter ligado umas cinco vezes. Então tomei uma decisão executiva e Lucy e eu viemos para cá."
"Seria útil se você me dissesse por que está aqui."
"Ninguém quis te interromper enquanto estava cuidando do soldado de Worcester", diz ele para meu espanto.
O soldado de primeira classe Gabriel era de Worcester, Massachusetts, e não consigo entender por que Marino saberia em que caso eu estava trabalhando em Dover. Ninguém
deveria ter contado. Tudo o que fazemos no necrotério é extremamente sigiloso, quando não estritamente confidencial. Pergunto-me se a mãe do soldado morto cumpriu
a ameaça e convocou a imprensa. Pergunto-me se contou à imprensa que a médica-legista de seu filho, militar e branca, é racista.
Antes que eu consiga perguntar, Marino acrescenta: "Ao que tudo indica, ele é a primeira vítima de guerra de Worcester, e a mídia local está em cima. Recebemos algumas
ligações, imagino que as pessoas estejam confusas e achem que qualquer defunto ligado a Massachusetts acabe com a gente".
"Os repórteres acharam que íamos fazer a autópsia em Cambridge?"
"Bom, o CFC também é um necrotério. Talvez tenha sido por isso."
"Seria de esperar que a imprensa a essa altura soubesse que todas as baixas de operações vêm direto para cá", refuto. "Você tem certeza dos motivos do interesse
deles?"
"Por quê?" Marino olha para mim. "Você sabe de algum outro motivo que eu desconheça?"
"Só estou perguntando."
"Tudo o que sei é que recebemos alguns telefonemas e encaminhamos para Dover. Você estava no meio do trabalho com o garoto de Worcester e ninguém quis te chamar,
então liguei para o general Briggs quando estávamos a vinte minutos de distância, abastecendo em Wilmington. Ele fez a capitã Abelhinha te procurar no chuveiro.
Ela é solteira ou toca na banda de Lucy? Porque não é feia."
"Como você sabe?", pergunto, perplexa.
"Ela deu uma passada no CFC quando foi visitar a mãe no Maine. Você não estava."
Tento recordar se fui informada disso e ao mesmo tempo lembro que não faço ideia do que acontece na repartição que devo chefiar.
"Fielding se encarregou do tour real, o anfitrião com algo mais." Marino não gosta do meu sub, Jack Fielding. "A questão é que tentei avisar. Eu não pretendia simplesmente
dar as caras assim."
Marino está sendo evasivo e toda essa história é uma tática. É invenção. Por algum motivo, achou necessário simplesmente aparecer por aqui sem avisar. Talvez por
querer se certificar de que eu vá com ele sem demora. Percebo que o problema é sério.
"Não pode ter sido pelo Gabriel que você deu as caras assim, como você mesmo disse", aponto.
"Receio que não."
"O que aconteceu?"
"Temos um problema." Ele olha direto para a frente. "E eu disse a Fielding e a todos os outros que o corpo não ia ser examinado antes de você chegar."
Jack Fielding é um patologista forense experiente que não recebe ordens de Marino. Se meu sub optou por não intervir e transferir para mim o corpo, isso significa
que temos um caso que pode ter implicações políticas ou terminar em processo. O fato de Fielding não ter tentado me telefonar ou me passado um e-mail me incomoda
bastante. Torno a verificar meu iPhone. Nada da parte dele.
"Por volta das três e meia ontem à tarde em Cambridge", diz Marino, e agora estamos na Atlantic Street, dirigindo devagar na semiescuridão, no meio da base. "Em
Norton's Woods, na Irving, a menos de um quarteirão da sua casa. Uma merda você não estar em casa. Podia ter ido até a cena, a pé, e talvez as coisas tivessem acabado
de forma diferente."
"Que coisas?"
"Um homem de pele morena clara, na casa dos vinte. Estava passeando com o cachorro e caiu morto. Ataque cardíaco, certo? Errado", continua ele enquanto passamos
por fileiras de instalações de manutenção em concreto e metal, hangares e outras estruturas que têm números em vez de nomes. "É plena luz do dia de uma tarde de
domingo, muita gente por perto, porque tinha um evento no que quer que seja aquele lugar, o com um telhado verde de metal."
Norton's Woods é a sede da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, uma propriedade arborizada com uma impressionante construção em madeira e vidro que é
alugada para cerimônias especiais. Fica várias casas adiante daquela para a qual Benton e eu nos mudamos na primavera passada, a fim de que eu ficasse perto do CFC
e ele de Harvard, onde faz parte do corpo docente do departamento de psiquiatria da faculdade de medicina.
"Em outras palavras, olhos e ouvidos", continua Marino. "Um bom lugar e uma boa hora para matar alguém."
"Pensei que você tivesse dito que ele sofreu um ataque do coração. Só que, sendo tão jovem, deve ter sido uma arritmia cardíaca."
"É, era essa a hipótese inicial. Algumas testemunhas viram o sujeito colocar a mão no peito de repente e cair. Ele morreu ali... pelo jeito. Foi transportado direto
para nossa repartição e passou a noite na geladeira."
"O que você quer dizer com 'pelo jeito'?"
"Hoje cedo, Fielding entrou na geladeira e notou gotas de sangue no chão e muito sangue na bandeja, então foi chamar Anne e Ollie. O cara morto tinha sangue saindo
pelo nariz e pela boca. Não estava ali na tarde anterior, quando ele foi dado como morto. Não havia sangue na cena, nem uma gota, e agora ele está sangrando, e não
é hipóstase, claro, porque o cara não está em decomposição. O lençol com que está coberto está ensanguentado e tem mais ou menos um litro de sangue no saco que contém
o corpo, o que é uma merda. Eu nunca tinha visto um morto começar a sangrar assim. Então eu disse que tínhamos a porra de um problema sério e todo mundo ficou de
boca fechada."
"O que Jack disse? O que ele fez?"
"Você está de gozação, não está? Que braço-direito o seu. Não vou nem começar."
"Temos alguma identificação? E por que Norton's Woods? Ele mora ali perto? Estuda em Harvard? Talvez na faculdade de teologia, ali perto? Duvido que ele estivesse
indo ao evento. Não com um cachorro." Pareço muito mais calma do que me sinto ao ter essa conversa no estacionamento da pousada Eagle's Rest.
"Ainda não temos muitos detalhes, mas parece que era um casamento", explica Marino.
"No domingo do Super Bowl? Quem marca um casamento no mesmo dia do Super Bowl?"
"Alguém que não quer que ninguém apareça. Ou que não é americano, ou que é antiamericano. Sei lá, mas acho que o morto não era um convidado do casamento, e não só
por causa do cachorro. Ele levava uma Glock nove milímetros por baixo do casaco. Não tinha documentos e estava ouvindo um rádio portátil via satélite. Você já imagina
aonde quero chegar com isso."
"Na verdade não."
"Lucy vai falar mais sobre a parte do rádio via satélite, mas parece que ele estava fazendo vigilância, espionando, e talvez a pessoa que ele estava sacaneando tenha
decidido retribuir o favor. Resumindo, acho que alguém fez alguma coisa com ele e causou um ferimento que de alguma forma passou despercebido aos paramédicos; o
serviço de remoção também não notou nada. Então o zíper do saco é fechado e ele começa a sangrar durante o transporte. Bom, isso não aconteceria a não ser que ele
tivesse alguma pressão sanguínea, ou seja, ainda estava vivo quando foi deixado no necrotério e trancado dentro da porra da geladeira. Com catorze, quinze graus
negativos lá dentro, ele deve ter morrido esta manhã por exposição ao frio. Supondo que não tenha sangrado até a morte primeiro."
"Se ele tinha um ferimento que causaria sangramento externo", pergunto, "por que não havia sangue na cena?"
"Explique você."
"Por quanto tempo tentaram ressuscitar o cara?"
"Quinze, vinte minutos."
"Não é possível que um vaso sanguíneo tenha sido de alguma forma perfurado nesse período?", pergunto. "Lesões anteriores e posteriores à morte, quando suficientemente
graves, podem causar sangramento significativo. Talvez durante a reanimação cardiopulmonar uma costela tenha fraturado e causado uma perfuração ou secção em uma
artéria. Um tubo torácico pode ter sido inserido e causado um ferimento e o sangramento que você descreveu."
Mas sei que não é nada disso antes mesmo de dizer. Marino é um investigador de homicídios experiente. Não teria requisitado minha sobrinha e seu helicóptero para
vir a Dover sem aviso prévio se houvesse uma explicação lógica ou mesmo plausível, e Jack Fielding certamente reconheceria um ferimento como o que eu sugeri. Por
que ele não tentou falar comigo?
"O quartel do Corpo de Bombeiros de Cambridge deve ficar a um quilômetro e meio de Norton's Woods, e o pelotão chegou em poucos minutos", informa Marino.
Estamos sentados na van com o motor desligado. Está quase completamente escuro, o horizonte e o céu se fundem, com um débil vestígio de luz a oeste. Quando Fielding
lidou com algum revés sem mim? Nunca. Ele se afasta. Deixa a sujeira para os outros limparem. Foi por isso que não tentou fazer contato comigo. Talvez tenha largado
o emprego de novo. Quantas vezes precisa fazer isso para que eu pare de recontratá-lo?
"De acordo com eles, o sujeito morreu instantaneamente", acrescenta Marino.
"A menos que um explosivo arrebente alguém em centenas de pedaços, na verdade não existe essa coisa de morrer instantaneamente", retruco, porque detesto quando Marino
fala clichê. Morrer instantaneamente. Cair morto. Morreu antes de atingir o solo. Vinte anos de generalidades como essas, não importa quantas vezes eu tenha dito
que paradas cardíaca e respiratória não são causas, mas sintomas da morte, o que em termos clínicos leva no mínimo alguns minutos. Nunca é instantânea. Não é um
processo simples. Torno a lembrá-lo dessa questão médica porque não consigo pensar em mais nada para dizer.
"Bom, só estou relatando o que me contaram. De acordo com eles, o cara não pôde ser ressuscitado", responde Marino como se os paramédicos soubessem mais sobre a
morte do que eu. "Não reagiu. É o que está no prontuário."
"Você interrogou os paramédicos?"
"Um deles. Por telefone esta manhã. Sem pulso, sem nada. O cara estava morto. Ou foi o que disse o paramédico. Mas o que você acha que ele ia dizer? Que eles não
tinham certeza, mas mesmo assim mandaram o sujeito para o necrotério?"
"Então você contou a ele por que estava perguntando."
"Porra, não, não sou nenhum retardado. Ninguém precisa disso na primeira página do Globe. Se chegar aos noticiários, posso muito bem voltar para o departamento de
polícia de Nova York ou, quem sabe, terminar na Wackenhut, só que ninguém está contratando."
"Que procedimento você seguiu?"
"Não segui merda nenhuma. Foi Fielding. É claro que ele está dizendo que fez tudo como manda o figurino, e que a DP de Cambridge informou que não havia nada de suspeito
na cena, uma morte natural evidente, com testemunhas. Fielding deu permissão para que o corpo fosse transferido ao CFC desde que os policiais ficassem com a custódia
da arma e a levassem de imediato para o laboratório para que descobríssemos em nome de quem está registrada. Um caso de rotina, e não é culpa nossa se os paramédicos
fizeram besteira, ou assim diz Fielding. E você sabe o que eu digo? Não importa. Vamos levar a culpa. A imprensa vai nos perseguir como você nunca viu e vai dizer
que tudo deveria voltar para Boston. Já imaginou?"
Antes que o CFC começasse a trabalhar nos primeiros casos no verão passado, a agência estatal de medicina legal localizava-se em Boston e vivia cercada por problemas
políticos e econômicos, sem mencionar os escândalos que estavam constantemente nos noticiários. Corpos eram perdidos, enviados à funerária errada ou cremados sem
exame minucioso, e em pelo menos uma suspeita de morte de criança por maus-tratos foram testados os globos oculares errados. Novos chefes chegaram e partiram, e
órgãos distritais tiveram de ser fechados devido à falta de financiamento. Mas nada de negativo que já tenha sido dito a respeito daquela instituição se compara
ao que Marino está sugerindo a nosso respeito.
"Prefiro não imaginar nada." Abro a porta. "Vou me concentrar nos fatos."
"Isso é um problema, já que parece que não temos nada que faça muito sentido."
"E você contou a Biggs o que acabou de me contar?"
"Contei o que ele precisava saber", responde Marino.
"A mesma coisa que acabou de me contar?", repito a pergunta.
"Praticamente."
"Não devia ter feito isso. Devia ter me deixado contar. Eu decido o que ele precisa saber." Estou sentada com a porta do carona bem aberta e o vento entrando. Ainda
estou úmida do banho e sinto frio. "Não pode quebrar a cadeia de comando só porque estou ocupada."
"Bom, você estava muito ocupada, então contei a ele."
Desço da van e me tranquilizo dizendo que o que Marino acaba de descrever não pode estar correto. Os paramédicos de Cambridge jamais cometeriam um erro tão absurdo;
tento evocar uma explicação para um ferimento fatal não sangrar na cena e depois sangrar de forma profusa e penso em como computar a hora da morte ou mesmo a causa
de alguém que morreu dentro da geladeira de um necrotério. Estou confusa. Não faço a menor ideia do que está acontecendo e, acima de tudo, estou angustiada por ele,
por esse jovem entregue a mim, dado como morto. Visualizo-o envolto em um lençol e acondicionado em um saco, o zíper fechado, e é essa a essência dos velhos horrores.
Alguém que recupera os sentidos dentro de um caixão. Alguém que é enterrado vivo. Nunca me aconteceu nada tão terrível, nem de perto, nem uma única vez em minha
carreira. E nunca conheci ninguém que tenha passado por isso.
"Pelo menos não há nenhum sinal de que ele tentou sair do saco." Marino está tentando fazer com que ambos nos sintamos melhor. "Nada que indique que ele pode ter
acordado a certa altura e entrado em pânico. Você sabe, sinais de que tentou abrir o zíper, chutar ou coisa parecida. Acho que, se ele tivesse lutado, estaria em
outra posição na bandeja quando o encontramos esta manhã, ou talvez tivesse até rolado para fora dela. Não tinha pensado nisso, mas uma pessoa não sufocaria num
saco daqueles? Supostamente eles são à prova d'água. Ainda que vazem. Queria ver um que não vazasse. E essa é a outra questão. Os pingos de sangue no chão vão na
direção da baia para a geladeira."
"Por que não continuamos isso mais tarde?" É hora do check-in. Há muita gente no estacionamento quando nos dirigimos à entrada moderna, mas simples, da pousada,
e Marino tem uma voz grossa que se projeta como se ele estivesse sempre falando de um palco.
"Duvido que Fielding tenha se dado o trabalho de ver a gravação", continua Marino. "Duvido que tenha feito qualquer coisa. Não vi nem tive notícias do filho da puta
desde hoje cedo. Desapareceu na hora H de novo." Marino abre a porta principal de vidro. "Espero que não tenhamos que fechar por causa daquele imprestável. Não seria
incrível? Você faz ao cara a porra de um favor lhe dando um emprego depois que ele se mandou e ele destrói o CFC antes mesmo que o lugar comece a decolar."
No interior do hall de entrada com mostruários contendo prêmios e memorabilia da Força Aérea, cadeiras confortáveis e uma TV gigantesca, uma placa dá as boas-vindas
aos hóspedes na sede do C-5 Galaxy e do C-17 Globemaster III. Na recepção, espero silenciosamente atrás de um homem que veste as listras de tigre extravagantes e
indistintas dos uniformes de combate do Exército, enquanto compra creme de barbear, água e várias garrafinhas de Johnnie Walker. Informo ao recepcionista que estou
fechando a conta antes do planejado e, sim, vou me lembrar de entregar as chaves, e é claro que compreendo que vão me cobrar a diária de trinta e oito dólares mesmo
que eu não passe a noite lá.
"Como é que se diz?", continua Marino. "O inferno está cheio de boas intenções?"
"Vamos tentar não ser tão negativos."
"Você e eu abrimos mão de bons empregos em Nova York e fechamos o escritório em Watertown, e é isso o que acontece."
Não me pronuncio.
"Realmente espero que isso não acabe com a nossa carreira", prossegue ele.
Não respondo, porque já ouvi o bastante. Depois das lojinhas e das máquinas de refrigerante, salgadinho e doce, pegamos a escada para o segundo andar e é então que
ele me informa que Lucy não está esperando com o helicóptero no Terminal Aéreo Civil. Está em meu quarto. Fazendo minhas malas, tocando em meus pertences, tomando
decisões sobre eles, esvaziando meu armário, minhas gavetas, desligando meu laptop, minha impressora, o roteador. Ele esperou para me dizer porque sabe muito bem
que, em circunstâncias normais, isso me irritaria absurdamente - não importaria que se tratasse da minha sobrinha, o gênio da informática, ex-policial federal, que
criei como uma filha.
As circunstâncias são tudo menos normais, e sinto-me aliviada que Marino esteja aqui e Lucy esteja em meu quarto, que tenham vindo me buscar. Preciso chegar em casa
e resolver tudo. Percorremos o longo corredor com tapete vermelho-escuro, passamos pela varanda decorada com reproduções coloniais e uma cadeira eletrônica de massagem
atenciosamente instalada para os pilotos cansados. Insiro o cartão magnético na abertura na porta do quarto e me pergunto quem teria deixado Lucy entrar, então torno
a pensar em Briggs e na CNN. Não posso nem pensar em aparecer na TV. E se a imprensa tomou conhecimento do que aconteceu em Cambridge? A essa altura eu saberia.
Marino saberia. Bryce, meu administrador, saberia e teria me contado imediatamente. Tudo vai ficar bem.
Lucy está sentada em minha cama bem-feita, fechando o zíper de minha nécessaire de cosméticos. Detecto o perfume cítrico apurado de seu xampu quando a abraço e percebo
o quanto ela me fez falta. Um macacão de voo preto acentua seus olhos verdes atrevidos, o cabelo curto dourado, as feições angulosas e a magreza, o que me faz lembrar
o quanto ela é atraente de um jeito pouco comum, com ar de menino, porém feminina, vigorosamente esculpida, com seios em evidência e tão intensa que parece selvagem.
Independentemente de estar brincando ou sendo educada, minha sobrinha tende a intimidar e tem poucos amigos, talvez nenhum a não ser Marino, e seus amores nunca
duram. Nem mesmo Jaime, embora eu não tenha revelado minhas suspeitas. Não perguntei. Mas não engulo a história de Lucy de ter se mudado de Nova York para Boston
por razões financeiras. Mesmo que sua empresa investigativa de informática forense estivesse em declínio, no que tampouco acredito, ela estava ganhando mais em Manhattan
do que recebe agora do CFC, que é nada. Minha sobrinha trabalha para mim pro bono. Ela não precisa de dinheiro.
"Qual é a história do rádio via satélite?" Observo-a com atenção, tentando interpretar seus sinais, que são sempre sutis e desconcertantes.
As cápsulas chocalham enquanto ela verifica quantos Advils há em um frasco, decidindo que não o bastante para perder tempo e o atira no lixo. "Vamos pegar mau tempo,
então eu gostaria de sair logo daqui." Ela destampa um frasco de Zantac, descartando-o a seguir. "Conversamos durante o voo. Vou precisar da sua ajuda como copiloto.
Vai ser complicado escapar das nevascas e da chuva no caminho. Trezentos milímetros, começando por volta das dez."
Meu primeiro pensamento é Norton's Woods. Preciso fazer uma visita retrospectiva, mas quando chegar lá, o lugar vai estar coberto de neve.
"É uma pena", comento. "A cena do crime não foi investigada como deveria."
"Pedi à DP de Cambridge para voltar lá esta manhã." Os olhos de Marino se deslocam como se fosse meu alojamento que necessitasse ser investigado. "Não encontraram
nada."
"Perguntaram por que você quis que investigassem?" A mesma preocupação outra vez.
"Eu disse que tínhamos dúvidas. Coloquei a culpa na Glock. O número de série foi apagado. Acho que não contei isso", acrescenta ele enquanto olha ao redor, atento
a tudo menos a mim.
"Podemos tentar recuperar o número com ácido. Se não der certo, ainda temos o microscópio eletrônico de varredura", concluo. "Se restou algum traço, vamos encontrar.
E vou pedir a Jack para ir a Norton's Woods e fazer uma retrospectiva."
"Tenho certeza de que ele vai começar a trabalhar nisso", diz Marino em tom sarcástico.
"Ele pode tirar fotografias antes que a neve comece", acrescento. "Ou alguma outra pessoa. Quem estiver de plantão..."
"É perda de tempo", diz Marino me interrompendo. "Nenhum de nós estava lá ontem. Não sabemos qual a porra do local exato... só que ficava perto de uma árvore e de
um banco verde. Bom, isso é de grande ajuda quando você está falando de cerca de três hectares de árvores e bancos verdes."
"E fotografias?", pergunto enquanto Lucy continua a vasculhar minha pequena farmácia de pomadas, analgésicos, antiácidos, vitaminas, colírios e antissépticos espalhada
sobre a cama. "A polícia deve ter batido fotos do corpo in situ."
"Ainda estou esperando o detetive me mandar. O cara que responde pela cena trouxe a pistola hoje de manhã. Lester Law, atende por Les Law, mas nas ruas é mais conhecido
como Lawless, corrupto exatamente como o pai e o avô antes dele. Os tiras de Cambridge voltando à porra do Mayflower. Mas não conheci o sujeito."
"Bom, acho que é isso." Lucy se levanta da cama. "Quer conferir se não esqueci nada?", acrescenta ela.
O lixo está abarrotado, minhas malas estão arrumadas e enfileiradas em uma das paredes, a porta do armário está escancarada, sem nada dentro exceto cabides vazios.
Equipamentos de informática, arquivos impressos, artigos de jornal e livros desapareceram da minha escrivaninha, e não há nada no cesto de roupas sujas, nem no banheiro
ou nas gavetas da cômoda que inspeciono. Abro a pequena geladeira. Está vazia e foi limpa. Enquanto ela e Marino começam a carregar minhas coisas para fora, teclo
o número de Briggs no meu iPhone. Olho para o prédio de estuque de três andares no outro lado do estacionamento, para a ampla janela espelhada no meio do terceiro
andar. Ontem à noite eu estava nessa suíte com ele e outros colegas assistindo ao jogo, e a vida era boa. Aplaudimos o New Orleans Saints e nosso próprio trabalho
e brindamos ao Pentágono e a sua Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, a DARPA, que haviam tornado possíveis as autópsias virtuais com o auxílio de
TC em Dover e agora no CFC. Comemoramos a missão cumprida, o trabalho bem-feito, e agora isso, como se a noite passada não fosse real, como se eu tivesse sonhado.
Respiro fundo e aperto ENVIAR em meu iPhone, sentindo-me oca por dentro. Briggs não pode estar satisfeito comigo. Imagens lampejam na TV de tela plana instalada
na parede da sala de estar, então ele passa pelo vidro vestindo seu uniforme de combate do Exército, verde e marrom com gola chinesa, o que normalmente usa quando
não está no necrotério ou em uma cena de crime. Vejo-o atender ao telefone e retornar à ampla janela, onde para, olhando direto para mim. A certa distância, estamos
cara a cara, uma extensão de asfalto e carros estacionados entre mim e o legista-chefe das Forças Armadas, como se estivéssemos à beira de um impasse.
"Coronel." Ele me cumprimenta em tom sombrio.
"Acabo de saber. E garanto que vou cuidar disso. Estarei no helicóptero em uma hora."
"Você sabe o que sempre digo." A voz profunda e autoritária soa em meu fone de ouvido e tento detectar seu grau de mau humor e o que ele vai fazer. "Tudo tem uma
resposta. O problema é encontrar essa resposta e a melhor maneira de fazer isso. A maneira mais correta e adequada." Ele parece calmo. Cauteloso. Muito sério. "O
resto fica para outra ocasião", acrescenta.
Briggs está fazendo menção ao último briefing que havíamos programado. Tenho certeza de que também se refere à CNN, e me pergunto o que Marino contou. O que exatamente
ele disse?
"Concordo, John. Tudo deve ser cancelado."
"Já foi."
"É a coisa certa." Soo trivial. Não vou deixar que ele perceba minha insegurança e sei que a está farejando. Sei muito bem que está. "Minha prioridade é determinar
se a informação que me foi passada está correta. Porque não vejo como pode ser possível."
"Não é uma boa hora para você ir ao ar. Não preciso que Rockman nos diga isso."
Rockman é o assessor de imprensa. Briggs não precisa falar com ele porque já fez isso. Tenho certeza.
"Entendo", respondo.
"Um sincronismo incrível. Se eu fosse paranoico, podia simplesmente pensar que alguém orquestrou algum tipo bizarro de sabotagem."
"Com base no que me contaram, não vejo como isso seria possível."
"Eu disse se fosse paranoico", retruca Briggs e, de onde estou, distingo a figura musculosa magnífica, mas não consigo ver a expressão em seu rosto. E não preciso.
Ele não está sorrindo. Os olhos cinzentos são aço galvanizado.
"A sincronia pode ser coincidência ou não", digo. "É o pressuposto básico em investigações criminais, John. É sempre uma coisa ou outra."
"Não vamos banalizar a situação."
"Estou fazendo tudo menos isso."
"Não consigo pensar em nada muito pior que uma pessoa viva ser colocada na porra da sua geladeira", diz ele sem rodeios.
"Nós não sabemos..."
"É uma pena depois de tudo isso." Como se tudo o que construímos ao longo dos últimos anos estivesse à beira da ruína.
"Não sabemos se o que foi relatado é exato...", começo a dizer.
"Acho que seria melhor trazer o corpo para cá", interrompe ele mais uma vez. "O AFDIL pode trabalhar na identificação. Rockman vai se certificar de que a situação
fique sob controle. Temos tudo de que precisamos bem aqui."
Estou pasma. Briggs quer mandar um avião a Hanscom Field, a base aérea afiliada ao CFC. Quer que o Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas, provavelmente
com outros laboratórios militares e outra pessoa que não eu, cuide do que aconteceu porque acha que não tenho competência para isso. Ele não confia em mim.
"Não sabemos se estamos falando da jurisdição federal", lembro-lhe. "A menos que você saiba alguma coisa que eu não sei."
"Olhe. Estou tentando fazer o que é melhor para todos os envolvidos." Briggs tem as mãos às costas, as pernas ligeiramente afastadas, os olhos fixos em mim no outro
lado do estacionamento. "Podemos despachar um C-17 para Hanscom. Podemos ter o corpo aqui por volta de meia-noite. O CFC é um necrotério também, e é isso que os
necrotérios fazem."
"Não é isso que os necrotérios fazem. A ideia não é que os corpos sejam recebidos, então transferidos para as autópsias e análises de laboratório. O CFC não foi
projetado para ser uma primeira triagem para Dover, uma verificação preliminar à intervenção dos peritos. Essa nunca foi minha intenção nem o que foi acordado quando
trinta milhões de dólares foram gastos na repartição em Cambridge."
"Você devia ficar em Dover, Kay. Trazemos o corpo para cá."
"Estou pedindo a você que não intervenha, John. Neste momento, o caso pertence à alçada do legista-chefe de Massachusetts. Por favor, não desafie a minha autoridade."
Há uma longa pausa, então ele afirma, em vez de perguntar: "Você realmente quer essa responsabilidade".
"Ela é minha, eu querendo ou não."
"Estou tentando te proteger. Tenho tentado."
"Não faça isso." Não é o que ele está tentando fazer. Não tem confiança em mim.
"Posso mobilizar a capitã Avallone para ajudar. Não é má ideia."
Mal posso acreditar que ele tenha sugerido isso. "Não é necessário", refuto em tom firme. "O CFC é perfeitamente capaz de lidar com a situação."
"Que fique registrado que ofereci."
Que fique registrado junto a quem? Ocorre-me, de forma estranha, que talvez haja outra pessoa na linha. Briggs continua de pé diante da janela. Não sei se há mais
alguém na suíte com ele.
"O que você decidir", diz então. "Não vou passar por cima de você. Ligue assim que souber de alguma coisa. Me acorde se for preciso." Ele não diz adeus, nem boa
sorte, nem foi bom ter você por aqui por seis meses.
2
Lucy e Marino saíram do quarto. Minhas malas, mochilas e caixas de arquivo desapareceram e não restou nada. É como se eu nunca tivesse estado aqui e me sinto só
como não ocorre há anos, talvez décadas.
Olho ao redor pela última vez, para me certificar de que nada foi esquecido, minha atenção viajando para além do micro-ondas, da pequena geladeira e da cafeteira
elétrica, rumo às janelas com vista do estacionamento e da suíte iluminada de Briggs e mais além, rumo ao céu negro sobre o vazio do campo de golfe desocupado. Grossas
nuvens passam pela lua oblonga, que acende e apaga como uma lanterna de sinalização, como se me informasse o que há adiante e se devo parar ou seguir, e não vejo
estrela nenhuma. Preocupa-me que o mau tempo esteja se deslocando rápido, conduzido pelo mesmo vento sul poderoso que traz os grandes aviões e sua triste carga.
Eu deveria me apressar, mas o espelho do banheiro me distrai, a pessoa nele, na verdade, e paro para me olhar sob a claridade da luz fluorescente. Quem é você agora?
De verdade?
Meus olhos azuis e meu cabelo louro e curto, o talhe forte de meu rosto e minha silhueta não estão muito diferentes, concluo, parecem notadamente os mesmos, levando-se
em conta minha idade. Resisti bem às salas de concreto e aço inoxidável sem janelas, e muito disso é genético, um desejo hereditário de prosperar em uma família
trágica como uma ópera de Verdi. Os Scarpetta descendem de italianos fortes do norte, com feições proeminentes, cabelo e pele claros, e músculos e ossos bem definidos
que resistem à adversidade e aos abusos da permissividade que a maioria das pessoas não associaria comigo. Mas as tendências estão presentes, uma paixão pela comida,
pela bebida, por todas as coisas que a carne deseja, não importa quão destrutivas. Almejo a beleza e sinto com profundidade, mas também sou uma aberração. Posso
ser firme e impenetrável. Posso ser imutável e implacável, e esses comportamentos são aprendidos. Acredito que sejam necessários. Não são naturais em mim, nem em
ninguém em minha família instável e dramática, e sei que isso é verdade sobre minhas origens. Quanto ao resto, não tenho tanta certeza.
Meus antepassados eram agricultores e trabalharam nas estradas de ferro, mas nos últimos anos, quando começou a pesquisar nossa genealogia, minha mãe acrescentou
artistas, filósofos, mártires e Deus sabe o que mais à mistura. Segundo ela, sou descendente dos artesãos que construíram o altar principal e os assentos do coro
e elaboraram os mosaicos da Basílica de São Marcos e criaram os afrescos do teto da Chiesa dell'Angelo San Raffaele. De alguma forma, tenho vários frades e monges
em meu passado, e mais recentemente - não sei com base em que - compartilho sangue com o pintor Caravaggio, que foi um assassino, e tenho uma tênue ligação com o
matemático e astrônomo Giordano Bruno, queimado na fogueira por heresia durante a Inquisição romana.
Minha mãe ainda mora numa casinha de Miami e está imersa em suas tentativas de me explicar isso tudo. Até onde se sabe, sou a única médica da árvore genealógica
e ela não entende por que escolhi pacientes que já estão mortos. Nem minha mãe nem minha única irmã, Dorothy, conseguem compreender que sou parcialmente definida
pelos horrores de uma infância absorvida em cuidar de meu pai com uma doença terminal antes de me tornar chefe de família aos doze anos. Por intuição e formação,
sou especialista em violência e morte. Estou em guerra com o sofrimento e a dor. De alguma forma, sempre acabo no comando ou levando a culpa. Isso nunca falha.
Fecho a porta do que foi meu lar não apenas durante seis meses, mas na verdade por mais que isso. Briggs conseguiu me lembrar de onde vim e para onde vou. Uma trajetória
que se definiu muito antes do último mês de julho, no passado distante de 1987, quando descobri que meu destino era o serviço público e não sabia como pagar meu
empréstimo estudantil para a faculdade de medicina. Permiti que algo tão banal quanto o dinheiro, algo tão vergonhoso quanto a ambição mudassem tudo de forma irrevogável,
e não no bom sentido - na realidade, no pior dos sentidos. Mas eu era jovem e idealista. Era arrogante e queria mais, sem entender na ocasião que mais é sempre menos
quando você não se sacia.
Tendo conseguido bolsa integral na escola paroquial, em Cornell e na faculdade de direito de Georgetown, eu poderia ter iniciado minha vida profissional isenta das
obrigações de uma dívida. Mas havia rejeitado a faculdade de medicina Bowman Gray por querer muito a Johns Hopkins. Eu queria a Johns Hopkins mais que qualquer outra
coisa e fui para lá sem benefícios nem auxílio financeiro, o que resultou numa dívida impossível de ser paga. Meu único recurso foi aceitar uma bolsa de estudos
militar, como alguns de meus colegas haviam feito, inclusive Briggs, a quem fui apresentada no início da carreira, ao ser designada para o Instituto de Patologia
das Forças Armadas, o AFIP, a organização precursora do AFMES. Uma temporada tranquila revisando relatórios de autópsias militares no Centro Médico Walter Reed,
do Exército, em Washington, D. C., Briggs me levou a crer, e assim que minha dívida estivesse paga, eu sairia e assumiria uma posição sólida na medicina legal civil.
O que não planejei foi a África do Sul em dezembro de 1987, o que era verão naquele continente distante. Noonie Pieste e Joanne Rule estavam filmando um documentário
e tinham mais ou menos a mesma idade que eu quando foram amarradas a uma cadeira, espancadas e cortadas. Enfiaram uma garrafa de vidro quebrada na vagina de cada
uma e arrancaram a traqueia. Crimes de ódio contra duas jovens americanas.
"Você vai à Cidade do Cabo", anunciou Briggs. "Para investigar e trazer as garotas para casa." O apartheid. Mentiras e mais mentiras. Por que elas e por que eu?
Enquanto desço as escadas rumo ao hall de entrada, digo a mim mesma para não pensar nesse assunto agora. Por que estou lembrando tudo isso? Mas sei por quê. Gritaram
comigo ao telefone esta manhã. Fui xingada, e o que aconteceu mais de duas décadas atrás está diante de mim novamente. Recordo relatórios de autópsia que desapareceram
e minha bagagem que foi vasculhada. Recordo a certeza de que apareceria morta, um acidente ou suicídio conveniente, ou um assassinato encenado, como aquelas duas
mulheres que continuo a ver em minha mente. Vejo-as de forma tão clara quanto na ocasião, pálidas e rígidas em mesas de aço, o sangue escorrendo por drenos no chão
de um necrotério tão primitivo que usamos serras simples para abrir os crânios; não havia aparelho de raios X e precisei levar minha própria câmera.
Deixo a chave na recepção e repasso a conversa que acabo de ter com Briggs; então vejo com clareza. Não sei por que não enxerguei a verdade de imediato; penso em
seu tom distante, na deliberação fria enquanto eu o observava através do vidro. Já o ouvi falar assim antes, mas em geral se dirigindo a outras pessoas quando há
um problema de tal magnitude que sai de suas mãos. Isso está além de uma opinião pessoal a meu respeito. Está além de suas maquinações típicas e de nosso passado
conflituoso.
Alguém o importunou, e não foi o assessor de imprensa nem ninguém em Dover, e, sim, alguém mais graúdo. Tenho certeza de que Briggs teve que falar com Washington
depois que Marino divulgou a informação, abrindo a boca e desfiando suas especulações desvairadas antes de eu ter tido a chance de dizer uma palavra. Marino não
deveria ter discutido o caso. Pôs em movimento alguma coisa que não entende, porque existem muitas coisas que ele não entende. Nunca foi militar. Nunca trabalhou
para o governo federal e é ignorante em assuntos internacionais. Sua ideia de burocracia e intriga são as políticas da polícia local, que considera bobagem. Não
tem nenhuma noção de poder, a espécie de poder capaz de afetar uma eleição presidencial ou deflagrar uma guerra.
Briggs não teria sugerido enviar um avião militar a Massachusetts para a transferência de um corpo para Dover a menos que tivesse recebido autorização do Departamento
de Defesa - em outras palavras, do Pentágono. Uma decisão foi tomada e não faço parte dela. Fora, no estacionamento, subo na van e não olho para Marino de tão furiosa
que estou.
"Fale mais sobre o rádio via satélite", peço a Lucy, pois pretendo ir até o fundo da questão. Pretendo descobrir o que Briggs sabe ou foi levado a acreditar.
"É um Sirius Stiletto", diz Lucy do banco de trás, enquanto intensifico o aquecimento, porque Marino está sempre com calor ao passo que o restante de nós congela.
"Basicamente, nada mais é que armazenagem de arquivos, além de ser uma fonte de energia. É claro que funciona como um rádio XM portátil, para o que foi projetado,
mas a diferença são os fones de ouvido. Não geniais, mas tecnicamente inteligentes."
"Eles têm uma câmera pinhole e um microfone embutidos", esclarece Marino enquanto dirige. "É por isso que acho que o morto estava espionando alguém. Como ele podia
não saber que tinha um sistema de gravação audiovisual embutido nos fones de ouvido?"
"Talvez não soubesse. É possível que alguém estivesse espionando o sujeito e ele não fizesse a menor ideia", diz Lucy, e percebo que ela e Marino andaram discutindo
a respeito. "A pinhole fica no topo da armação na cabeça, mas bem na beirada, e é difícil de ver. Mesmo que ele percebesse, não necessariamente lhe passaria pela
cabeça que lá dentro havia uma câmera via rádio menor que um grão de arroz, um transmissor de áudio do mesmo tamanho e um sensor de movimento que fica inativo depois
de noventa segundos sem nada se mexendo. O cara estava andando por aí com uma webcam que estava gravando no disco rígido do rádio e tinha um cartão SD adicional
de oito gigas. Para mim, é muito cedo para dizer que ele sabia disso - em outras palavras, que ele mesmo montou o equipamento. Sei que é o que Marino acha, mas não
tenho certeza."
"O cartão SD veio com o rádio ou foi anexado depois?", indago.
"Anexado depois. Em outras palavras, é muito espaço de armazenamento. O que me deixa curioso é se esses arquivos eram periodicamente baixados em outro lugar, como
um PC, por exemplo. Se a gente conseguir pegar esse material, talvez descubra do que se trata."
Lucy está dizendo que os arquivos de vídeo que examinou até então não dizem muita coisa. Ela tem razões para suspeitar que a memória está ligada a um PC, talvez
mais de um, mas não descobriu nada que informe onde o sujeito morava ou quem é.
"O que está armazenado no disco rígido e no cartão SD remonta só até 5 de fevereiro, sexta-feira passada", continua ela. "Não sei se isso significa que a vigilância
acabou de começar ou, o que é mais provável, que os arquivos de vídeo são grandes e ocupam muito espaço no disco rígido. Eles provavelmente são baixados em outro
lugar e o que está no disco rígido e no cartão SD foi gravado por cima. Então, provavelmente temos só as gravações mais recentes, o que não significa que não existam
outras."
"Então esses vídeos provavelmente foram baixados de forma remota."
"É o que eu faria se estivesse espionando", diz Lucy. "Me conectaria remotamente com a webcam e baixaria o que quisesse."
"E a vigilância em tempo real?", pergunto.
"Se ele estivesse sendo espionado, quem estivesse fazendo isso poderia se conectar com a webcam e vigiar o sujeito enquanto as coisas aconteciam."
"Para perseguir o cara, para ir atrás dele?"
"Seria um motivo lógico. Ou para colher informações, para espionar. Como algumas pessoas fazem quando desconfiam que estão sendo enganadas. Tudo o que você imaginar
é possível."
"Então é possível que ele tenha gravado a própria morte sem querer." Sinto um lampejo de esperança e ao mesmo tempo esse pensamento me deixa profundamente perturbada.
"Estou dizendo 'sem querer' porque não sabemos com o que estamos lidando. Por exemplo, não sabemos se ele gravou intencionalmente a própria morte, se ele é um suicida,
e não vou descartar nada ainda."
"Ele não é um suicida", diz Marino.
"A essa altura, não podemos descartar nada", repito.
"Como um terrorista suicida", diz Lucy. "Como Columbine e Fort Hood. Talvez ele fosse matar o maior número de pessoas que conseguisse em Norton's Woods e depois
se matar, mas alguma coisa aconteceu e ele não teve chance."
"Não sabemos com que estamos lidando", torno a dizer.
"A Glock tinha dezessete rodadas no pente e uma na câmara", menciona Lucy. "Muita potência de fogo. Dava com certeza para arruinar o casamento de alguém. Precisamos
saber quem se casou e quem compareceu."
"A maioria dessas pessoas tem pentes extra", retruco. Sei tudo a respeito do tiroteio em Fort Hood, no Instituto Politécnico da Virginia e em muitos outros locais,
onde atacantes abrem fogo sem necessariamente se preocupar com quem matam. "Em geral, essas pessoas têm muita munição e armas adicionais, já que estão planejando
um assassinato em massa. Mas concordo com você. A Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos é um local conhecido e deveríamos descobrir quem casou lá ontem
e quem foram os convidados."
"Espero que você seja sócia", diz Marino. "Talvez tenha um contato para conseguir uma lista de sócios e a programação de eventos."
"Não sou sócia."
"Você está brincando."
Não menciono que não ganhei um Nobel, nem um Pulitzer e não sou ph.D., só tenho um diploma de medicina e outro de direito, e isso não importa. Eu poderia lembrá-lo
de que, de qualquer forma, a Academia talvez não seja relevante, porque não sócios podem alugar o prédio. Basta ter contatos e dinheiro. Mas não estou a fim de dar
explicações detalhadas a Marino. Ele não deveria ter telefonado para Briggs.
"Tenho uma boa e uma não tão boa notícia sobre a gravação." Lucy estende a mão para o encosto do assento e me entrega seu iPad. "A boa notícia, como já indiquei,
é que não parece que alguma coisa tenha sido deletada, pelo menos não recentemente. O que poderia ser um argumento a favor de que era ele que estava espionando.
Se alguém tinha o sujeito sob vigilância e tem alguma coisa a ver com a morte dele, essa pessoa provavelmente teria se conectado ao endereço na rede e apagado o
disco rígido e o SD antes que outras pessoas vissem o material."
"Ou que tal tirar o maldito rádio e os malditos fones de ouvido da maldita cena?", pergunta Marino. "E se ele estivesse sendo seguido, caçado e quem quer que estivesse
fazendo isso tenha dado uma porrada no cara? Bom, se fosse eu, teria pegado os fones de ouvido, o rádio e continuado a andar. Então aposto que era ele quem estava
fazendo a gravação. Não acredito, nem por um minuto, que tenha sido outra pessoa. Aposto que esse cara estava envolvido em alguma coisa, e qualquer que fosse o motivo
para o equipamento de vigilância, ele era o único que tinha conhecimento disso. A merda é que não existe nenhuma gravação do perpetrador, ou de quem quer que tenha
atacado o sujeito, o que é significativo. Se ele encontrou alguém enquanto estava passeando com o cachorro, por que os fones de ouvido não registraram?"
"Os fones de ouvido não registraram porque ele não viu a pessoa", responde Lucy. "Ele não estava olhando para quem quer que tenha sido."
"Supondo que tenha havido uma pessoa que de alguma forma causou a morte dele", lembro a ambos.
"Certo", diz ela. "Os fones de ouvido captam o que quer que o portador esteja vendo. A câmera no alto da cabeça, apontando direto para a frente, funciona como um
terceiro olho."
"Então quem quer que tenha atacado o cara veio por trás", declara Marino à guisa de conclusão. "E aconteceu tão rápido que a vítima nem deu meia-volta. Ou isso,
ou foi um franco-atirador. Talvez ele tenha sido atingido por alguma coisa à distância. Tipo um dardo com veneno. Não existem venenos que causam hemorragia? Pode
parecer absurdo, mas essas merdas acontecem. Lembra o espião da KGB que foi espetado com um guarda-chuva com ricina na ponta? Ele estava esperando em um ponto de
ônibus e ninguém viu nada."
"Foi um dissidente búlgaro que trabalhava para a BBC e não é certeza de que foi um guarda-chuva", digo.
"De qualquer forma, a ricina não mata instantaneamente", diz Lucy. "A maioria dos venenos não faz isso. Nem mesmo gás cianídrico. Não acho que ele tenha sido envenenado."
"Isso não está ajudando em nada", retruco.
"Só estou usando minha experiência policial e minhas habilidades dedutivas", diz Marino. "Não é à toa que me chamam de Sherlock." Ele dá um tapinha em seu boné de
beisebol com o grosso dedo indicador.
"Ninguém te chama de Sherlock", vocifera Lucy do banco de trás.
"Isso não está ajudando", repito, contemplando a silhueta avantajada de Marino enquanto dirige, as imensas mãos ao volante, que roça sua pança mesmo quando ele está
no que considera sua forma de combate.
"Não é você que está sempre me dizendo para pensar de forma criativa?" A atitude defensiva endurece seu tom de voz.
"Acho que isso não está ajudando. Unir pontos que podem ser errados é precipitado, e você sabe disso", digo-lhe.
Marino sempre teve tendência a tirar conclusões precipitadas, mas isso piorou desde que aceitou o trabalho em Cambridge e foi trabalhar outra vez para mim. Responsabilizo
por isso a presença militar em nossas vidas, tão constante quanto as aeronaves pesadas voando baixo sobre Dover. De forma mais direta, responsabilizo Briggs. Marino
é ridiculamente fascinado por esse poderoso patologista forense, que também é general do Exército. Minha ligação com os militares nunca teve muita importância para
ele, ou sequer foi reconhecida, nem quando fazia parte de meu passado, nem quando fui reconvocada com status especial depois do Onze de Setembro. Marino sempre ignorou
minhas afiliações ao governo, como se não existissem.
Ele olha direto para a frente e os faróis de um carro que se aproxima iluminam seu rosto, marcado pelo descontentamento e por certa falta de compreensão que fazem
parte de quem ele é. Eu poderia sentir pena dele devido à afeição que não posso negar, mas não agora. Não nestas circunstâncias. Não vou deixar transparecer que
estou aborrecida.
"O que mais você compartilhou com Briggs - além das suas opiniões?", pergunto a Marino.
Quando ele não responde, Lucy o faz. "Briggs viu a mesma coisa que você está prestes a ver", diz ela. "Não foi ideia minha e não fui eu que mandei os e-mails, só
para que fique claro."
"Não mandou que e-mails?" Mas sei exatamente quais e minha incredulidade cresce. Marino enviou provas a Briggs. O caso é meu e Briggs recebeu informação primeiro.
"Ele queria saber", explica Marino, como se isso fosse motivo suficiente. "O que eu ia dizer a ele?"
"Você não devia ter dito nada. Passou por cima de mim. O caso não é dele", respondo.
"Bom, é, sim", diz Marino. "Ele foi designado pelo médico-chefe, o que significa que foi praticamente contratado pelo presidente, então eu diria que isso quer dizer
que ele é superior a todos nesta van."
"O general Briggs não é o legista-chefe de Massachusetts e você não trabalha para ele. Você trabalha para mim." Sou cuidadosa ao dizer isso. Tento parecer razoável
e calma como quando um advogado hostil está tentando me desarmar no banco das testemunhas, como quando Marino está prestes a irromper em um espetáculo inconveniente
de xingamentos em alto e bom som e portas batidas. "O CFC tem jurisdição mista, pode aceitar casos federais em certas situações, e entendo que isso gere confusão.
Somos uma iniciativa conjunta entre os governos estadual e federal, o MIT e Harvard. Compreendo que seja um conceito inédito e complicado, e é por isso que você
devia ter me deixado tratar disso em vez de passar por cima de mim." Tento parecer natural e prática. "O problema de envolver prematuramente o general Briggs é que
as coisas podem adquirir vida própria. Mas o que está feito está feito."
"O que você quer dizer com 'o que está feito'?" Marino parece menos seguro de si. Detecto um tom ansioso e não vou ajudá-lo. Ele precisa pensar a respeito do que
foi feito, porque a culpa é única e exclusivamente dele.
"Qual é a notícia não tão boa?", giro e pergunto a Lucy.
"Dê uma olhada", diz ela. "São as três últimas gravações, inclusive um minuto quando os fones de ouvido foram manuseados pelos paramédicos, pelos policiais e por
mim, quando comecei a examinar o material no laboratório hoje de manhã."
A tela do iPad brilha, viva e colorida, no escuro; toco o ícone do primeiro arquivo de vídeo que Lucy selecionou e começa a reprodução. Vejo o que o morto estava
vendo ontem às 15h04, um galgo preto e branco enroscado em um sofá azul em uma sala de estar com assoalho de pinho e um tapete azul e vermelho.
A câmera se move conforme o homem se desloca, porque ele está usando os fones de ouvido, que estão gravando: uma mesinha de centro coberta de livros e papéis ordenadamente
empilhados e o que parece um desenho de arquitetura ou engenharia em papel vegetal com um lápis em cima; uma janela com venezianas de madeira fechadas; uma escrivaninha
com dois monitores grandes de tela plana, dois MacBooks prateados, um celular conectado a um carregador, possivelmente um iPhone, e um cachimbo de vidro âmbar em
um cinzeiro; um abajur de pé com quebra-luz verde; uma cama de cachorro e brinquedos espalhados. Tenho um vislumbre de uma porta que possui uma fechadura com tranca
e outra deslizante, e na parede há fotografias e pôsteres emoldurados que passam rápido demais para que eu perceba os detalhes. Vou examiná-las mais tarde.
Até aqui não observo nada que me diga quem é o homem ou onde mora, mas fico com a impressão de um apartamento pequeno, ou talvez a casa de alguém que gosta de animais,
tem situação financeira confortável e preocupa-se com segurança e privacidade. O sujeito, presumindo-se que esses sejam sua casa e seu cachorro, é altamente desenvolvido
em termos intelectuais e técnicos, é criativo e organizado, provavelmente fuma maconha e escolheu como animal de estimação um companheiro necessitado, não um troféu,
mas um ser que sofreu maus-tratos e talvez não consiga se defender sozinho. Fico aflita pelo cão e preocupada com o que lhe aconteceu.
É lógico que os paramédicos e a polícia não deixaram um galgo indefeso em Norton's Woods ontem, perdido e abandonado ao tempo de New England. Benton me contou que
estava fazendo onze graus negativos esta manhã em Cambridge e ia nevar antes que a noite caísse. Talvez o cachorro esteja no quartel dos bombeiros, bem alimentado
e cuidado durante todo o dia. Talvez o detetive Law ou algum outro policial tenha levado o animal para casa. Também é possível que ninguém tenha percebido que o
cão pertencia ao homem que morreu. Meu Deus, isso seria horrível.
"O que aconteceu com o galgo?", preciso perguntar.
"Não faço ideia", diz Marino, para minha tristeza. "Ninguém sabia dele até esta manhã quando Lucy e eu vimos o que você está vendo. Os paramédicos não se lembram
de ter visto um galgo correndo solto, não que tenham procurado, mas o portão que conduz a Norton's Woods estava aberto quando eles chegaram lá. Como você provavelmente
sabe, o portão nunca é trancado e fica escancarado boa parte do tempo."
"Ele não vai sobreviver no frio intenso. Como é que as pessoas não perceberam o pobrezinho fora da guia e correndo solto? Porque não consigo imaginar que ele não
tenha corrido pelo parque ao menos por alguns minutos antes de sair pelo portão aberto. O bom senso diria que, quando o dono caiu, o cachorro não fugiu de repente
do bosque para a rua."
"Muita gente tira o cachorro da guia e deixa o animal correr solto em parques como o Norton's Woods", diz Lucy. "Eu faço isso com Jet Ranger."
Jet Ranger é um buldogue velho que não chega a correr exatamente.
"Então talvez ninguém tenha percebido porque aquilo não pareceu fora do comum", acrescenta ela.
"Além disso, acho que estava todo mundo preocupado com um cara caindo morto", Marino anuncia o óbvio.
Vejo residências militares em uma rua mal iluminada, aeronaves resplandecentes e grandes como planetas na escuridão enevoada. Não consigo entender o que estão me
dizendo. Estou surpresa que o galgo não tenha continuado perto do dono. Talvez o cão tenha entrado em pânico ou exista outro motivo para que ninguém tenha reparado
nele.
"O cachorro deve aparecer", continua Marino. "Em um local assim, não vão de jeito nenhum ignorar um galgo vagando sozinho. Meu palpite é que ele está com alguém
da vizinhança ou um estudante. A não ser que o cara tenha sido morto e o assassino tenha levado o cachorro."
"Por quê?", surpreendo-me.
"Como você costuma dizer, precisamos manter a mente aberta", responde ele. "Como podemos saber se quem fez isso não estava observando nas proximidades? E então,
em um momento oportuno, escapou com o cachorro, agindo como se fosse o dono."
"Mas por quê?"
"Podia ser uma prova que levasse ao assassino por algum motivo", sugere ele. "Talvez levasse a uma identificação. Um jogo. Uma brincadeira. Uma reação. Uma lembrança.
Como vou saber? Mas você vai perceber pelos vídeos que, a certa altura, a guia é tirada dele e adivinhe... Ainda não apareceu. Não chegou com os fones de ouvido
nem com o corpo."
O nome do cachorro é Sock. Na tela do iPad, o homem está andando e estalando a língua, dizendo ao cachorro que é hora de sair. "Vamos, Sock", persuade ele em uma
agradável voz de barítono. "Vamos lá, seu preguiçoso, é hora de dar um passeio e fazer cocô." Detecto um leve sotaque, possivelmente britânico ou australiano. Poderia
ser sul-africano, o que seria estranho, uma estranha coincidência, e preciso tirar a África do Sul da cabeça. Concentre-se no que está diante de você, digo a mim
mesma enquanto Sock salta do sofá e percebo que está sem coleira. Sock - um macho, presumo, com base no nome - é magro e tem as costelas ligeiramente à mostra, como
é típico dos galgos, é adulto, provavelmente velho, e uma de suas orelhas é imperfeita, como se já tivesse sido rasgada. Um resgate das pistas de corrida, com certeza,
e me pergunto se o animal tem um microchip. Se for o caso e conseguirmos encontrá-lo, podemos descobrir de onde veio e talvez quem o adotou.
Um par de mãos entra na tela enquanto o sujeito se curva para colocar uma coleira vermelha em torno do pescoço longo e afilado de Sock e reparo no relógio prateado
com taquímetro na moldura; capto um lampejo dourado, um anel de sinete, possivelmente de formatura. Se tiver chegado com o corpo, pode ser útil, porque talvez contenha
alguma gravação. As mãos são delicadas, com dedos finos e pele morena clara, e vislumbro um casaco verde-escuro, calça larga de brim preto e a ponta desgastada dos
tênis de trilha marrons.
A câmera focaliza a parede acima do sofá, os painéis castanhos tortuosos e a parte inferior da moldura de metal de uma fotografia, em seguida surge um pôster ou
uma gravura, quando o homem se levanta e vejo de perto a reprodução de um desenho familiar. Reconheço o esboço de Da Vinci, do século XVI, de um dispositivo com
asas que batem, uma máquina voadora, e recuo alguns anos - quando foi exatamente? No verão anterior ao Onze de Setembro. Levei Lucy a uma exposição na galeria Courtauld,
em Londres, "Leonardo, o inventor", e passamos muitas horas extasiadas, ouvindo palestras de alguns dos mais notáveis cientistas do mundo enquanto examinávamos os
desenhos conceituais de Da Vinci da água, da terra e de suas máquinas de guerra: o parafuso aéreo, o equipamento de mergulho, o paraquedas, o arco e flecha gigante,
o carro autopropelido e o cavaleiro mecânico.
O grande gênio renascentista acreditava que arte é ciência e ciência é arte, e que a solução para todos os problemas pode ser encontrada na natureza se a pessoa
for meticulosa e observadora, se buscar fielmente a verdade. Tentei ensinar essas lições à minha sobrinha durante a maior parte de sua vida. Disse-lhe várias vezes
que somos instruídos por aquilo que está ao nosso redor se formos humildes, calmos e corajosos. O homem que estou vendo no pequeno aparelho que seguro nas mãos possui
as respostas de que preciso. Fale comigo. Conte. Quem é você e o que aconteceu?
Ele caminha em direção a uma porta trancada a chave e uma trava deslizante puxada, então a perspectiva muda de forma abrupta, o ângulo da câmera se altera e me pergunto
se ele ajustou a posição dos fones de ouvido. Talvez não cobrissem as orelhas por inteiro, e agora ele vai ligar a música e sair. Passa por alguma coisa mecânica
de aspecto rudimentar, como uma escultura grotesca feita de restos de metal. Pauso a imagem, mas não consigo enxergar direito o que é e decido que, quando puder
me dar o luxo de perder algum tempo, vou reprisar os vídeos tantas vezes quanto quiser e estudar com cuidado cada detalhe; ou, se necessário, pedir a Lucy que amplie
as imagens. Mas, neste momento, preciso acompanhar o homem e seu cão à propriedade coberta de árvores, que não dista nem um quarteirão da minha casa. Preciso ver
o que aconteceu. Daqui a alguns minutos, ele vai morrer. Mostre e vou entender. Vou descobrir a verdade. Deixe-me cuidar de você.
O homem e o cachorro descem quatro lances de degraus em uma escada mal iluminada e passos leves e rápidos soam de encontro à madeira exposta; os dois saem em uma
rua barulhenta, movimentada. O sol está baixo e os trechos de neve apresentam uma crosta de sujeira preta no topo, o que me faz recordar biscoitos Oreo esmagados;
sempre que o homem olha para baixo, vejo paralelepípedos molhados e asfalto, além da areia e do sal oriundos da remoção da neve. Os carros e pessoas deslocam-se
em movimentos espasmódicos e balançam quando ele vira a cabeça, colhendo informações enquanto caminha; a música toca ao fundo, Annie Lennox no rádio via satélite,
e ouço somente o que pode ser escutado fora dos fones de ouvido, o que é captado pelo microfone inserido no topo da faixa que lhe cinge a cabeça. O volume da música
é alto, o que nunca é bom, pois não se pode ouvir alguém que se aproxime por trás. Se está preocupado com sua segurança, preocupado ao ponto de usar duas trancas
na porta do apartamento e portar uma arma, por que não está preocupado em não ouvir o que se passa ao seu redor?
Mas as pessoas são imprudentes. Mesmo gente razoavelmente cautelosa faz coisas absurdas. Enviam mensagens de texto e leem e-mails ao dirigir ou operar máquinas perigosas,
até mesmo enquanto atravessam uma rua movimentada. Conversam no celular andando de bicicleta, de patins ou mesmo voando. Quantas vezes peço a Lucy para não atender
o telefone no helicóptero; não importa que tenha Bluetooth habilitado e não precise usar as mãos. Vejo o que o homem está vendo e reconheço onde ele está caminhando,
na Concord Avenue, avançando em ritmo bom com Sock, passando por prédios de apartamento de tijolos vermelhos, pelo Departamento de Polícia de Harvard e pelo toldo
vermelho-escuro do Hotel Sheraton Commander, na calçada oposta ao Cambridge Common. Ele mora perto dali, em um prédio antigo com pelo menos quatro andares.
Pergunto-me por que não leva Sock ao Common. É um parque popular para cachorros, mas ele e o galgo passam por estátuas e canhões, postes e carvalhos desfolhados,
bancos e carros estacionados diante dos controles que demarcam a rua. Um labrador amarelo persegue um esquilo gordo e Anne Lennox canta "No more I-love-yous... I
used to have demons in my room at night...". Sou os olhos e ouvidos do homem no momento em que os fones de ouvido estão gravando e não tenho razões para suspeitar
que ele tenha conhecimento da câmera e do microfone escondidos ou sequer tenha em mente uma coisa como essa.
Não fico com a impressão de que ele tem um plano obscuro ou está espionando enquanto passeia com o cachorro. Exceto pelo fato de ter uma pistola Glock semiautomática
e dezoito rodadas de munição nove milímetros sob o casaco verde. Por quê? Talvez fosse um hábito, uma rotina, andar por aí armado. Existem pessoas assim. Que não
pensam duas vezes a respeito. Mas por que ele raspou o número de série da Glock? Ou alguma outra pessoa o fez? Passa por minha mente que os dispositivos de gravação
ocultos embutidos em seus fones de ouvido podem ser um experimento ou um projeto de pesquisa. Cambridge e seus arredores são seguramente a meca das inovações tecnológicas,
um dos motivos pelos quais o Departamento de Defesa, o estado de Massachusetts, Harvard e o MIT concordaram em fundar o CFC na margem norte do rio Charles, em um
prédio de biotecnologia na Memorial Drive. Talvez o homem fosse um estudante de pós-graduação. Talvez fosse um cientista da computação ou engenheiro. Presto atenção
ao que surge na tela do iPad, imagens trêmulas do condomínio Mather Court, um playground, a Garden Street e as lápides inclinadas e desgastadas do Old Burying Ground.
Na Harvard Square, sua atenção se fixa na banca de jornal da Crimson Corner, e ele parece pensar em seguir nessa direção, talvez para comprar um jornal da imensa
seleção que Benton e eu adoramos. Este é nosso bairro, onde zanzamos em busca de café e comida étnica, jornais e livros, terminando com quentinhas e braçadas de
coisas maravilhosas para ler que empilhamos em cima da cama nos fins de semana e feriados em que estou em casa. O New York Times e o Los Angeles Times, o Chicago
Tribune e o Wall Street Journal; para quem não se importa com notícias de um ou dois dias atrás, há os grossos jornais de Londres, Berlim e Paris. Às vezes encontramos
La Nazione e L'espresso, e leio em voz alta a respeito de Florença e Roma, examinamos anúncios de villas para alugar e fantasiamos viver como os moradores locais,
explorar ruínas e museus, o campo italiano e a costa amalfitana.
O homem para na calçada lotada e parece mudar de ideia a respeito de alguma coisa. Ele e Sock trotam até o outro lado da rua, na Massachusetts Avenue agora, e sei
para onde estão indo, ou penso que sei. Eles viram à esquerda na Quincy Street; estão andando mais rápido, e o homem traz um saco plástico na mão como se Sock não
fosse aguentar por mais tempo. Passam pela moderna Biblioteca Lamont e pela restauração georgiana em tijolos do Clube da Faculdade de Harvard e do Museu Fogg, pela
igreja gótica, em pedra, da Nova Jerusalém, então dobram à direita na Kirkland Avenue. Somos nós três. Estou com eles, cortando até a Irving, dobrando à esquerda,
a minutos do Norton's Woods, a minutos da minha casa, ouvindo Five for Fighting no rádio via satélite... "even heroes have the right to bleed..."
Sinto uma sensação de urgência crescente a cada passo, à medida que nos aproximamos da morte do homem e do sumiço do cachorro naquele frio terrível, e quero desesperadamente
que isso não aconteça. Caminho com eles como se os conduzisse para esse desfecho porque sei o que há adiante e eles não; quero detê-los e fazê-los voltar. Então
surge a casa à nossa esquerda, de três andares, branca com venezianas pretas e telhado de ardósia, em estilo federal, construída em 1824 por um transcendentalista
que conhecia Emerson, Thoreau e o Norton da Norton's Anthology e de Norton's Woods. No interior da casa, minha e de Benton, há objetos em madeira e molduras originais,
tetos de gesso com traves expostas e, acima dos patamares da escada principal, janelas de vitrais franceses magníficos com cenas da vida selvagem que se iluminam
como joias ao sol. Há um Porsche 911 na estreita entrada da garagem em tijolos, com gás escapando dos canos de descarga cromados.
Benton está dando ré em seu carro esporte e as lanternas traseiras brilham como olhos flamejantes quando ele freia por causa de um homem e seu cachorro; o homem
tem os fones de ouvido voltados na direção dele, quem sabe admirando o Porsche, um Turbo Cabriolet preto com tração nas quatro rodas, que Benton conserva sempre
lustroso. Pergunto-me se ele vai se lembrar do jovem vestindo um casaco verde volumoso e seu galgo preto e branco, ou se nem chegou a registrar a ocasião, mas conheço
Benton. Ele vai ficar obcecado, talvez tão obcecado pelo homem e seu cão quanto estou, e vasculho minha memória atrás do que fez ontem. No final da tarde, passou
em seu consultório no McLean porque havia se esquecido de levar para casa a pasta contendo o caso do paciente que ia avaliar hoje. Alguns graus de separação, um
jovem e seu cão velho, que estão prestes a se separar para sempre, e meu marido sozinho no carro dirigindo-se ao hospital para pegar uma coisa que esqueceu. Vejo
tudo isso se desdobrar como se eu fosse Deus, e, se é assim que é ser Deus, deve ser um horror. Sei o que vai acontecer e não posso fazer nada para impedir.
3
Percebo que a van parou e Marino e Lucy estão saltando. Estacionamos diante do Terminal Aéreo Civil John B. Wallace e permaneço no lugar. Continuo a ver o que está
passando na tela do iPad enquanto Lucy e Marino começam a descarregar meus pertences.
O ar frio entra pelo porta-malas aberto e me intrigo com a decisão do homem de levar Sock para passear em Norton's Woods, na Mid-Cambridge, quase Somerville. Por
que ali? Por que não mais perto de onde morava? Ele ia encontrar alguém? Um portão preto de ferro parcialmente aberto preenche a tela; a mão dele o abre mais e percebo
que colocou luvas pretas grossas, que parecem de motociclista. Suas mãos estão frias ou há outro motivo? Talvez ele tenha um plano sinistro. Talvez pretenda usar
a arma. Imagino-me puxando para trás o cão de uma pistola nove milímetros e apertando o gatilho vestindo luvas volumosas e me parece ilógico.
Ouço-o sacudir o saco plástico para abri-lo, então o vejo quando ele olha para baixo e vislumbro mais alguma coisa, o que parece ser uma caixinha de madeira. Uma
caixa de fumo, penso. Algumas são feitas de cedro e têm até mesmo um minúsculo higrômetro dentro, como uma caixa de charutos, e recordo o cachimbo de vidro âmbar
em cima da escrivaninha no apartamento. Talvez ele goste de passear com o cachorro em Norton's Woods por ser afastado e em geral muito reservado, e de pouco interesse
para a polícia, a menos que haja algum evento VIP ou de alto nível que exija segurança. Talvez goste de ir até lá para fumar maconha. Ele assovia para Sock, curva-se,
retira a coleira do cão e o ouço dizer: "Ei, rapaz, lembra do nosso lugar? Me mostre". Então diz mais alguma coisa, que soa abafada. Mal consigo entender. "E para
você", ele parece dizer, seguido de "Quer mandar um...?" Ou "Manda um...?". Depois de reproduzir duas vezes, continuo sem entender o que ele diz, e talvez seja por
ele estar curvado, falando pra dentro do colarinho do casaco.
Com quem está conversando? Não vejo ninguém por perto, somente o cachorro e as mãos enluvadas, então o ângulo da câmera muda quando o homem endireita o corpo e vejo
o parque outra vez, uma paisagem de árvores e bancos, e, a um lado, um caminho de pedras próximo à construção com o telhado verde de metal. Vislumbro pessoas e concluo,
pela maneira como estão agasalhadas, que não são os convidados do casamento, só estão passeando pelo parque, assim como o homem. Sock trota em direção aos arbustos
e o dono se embrenha ainda mais na agradável propriedade arborizada, com olmos antigos e bancos verdes.
Ele assovia e diz: "Ei, rapaz, me segue".
Em áreas sombreadas ao redor de grupos compactos de rododendros, a neve está alta e remexida, com folhas mortas, pedras e galhos quebrados no meio, o que me faz
morbidamente lembrar sepulturas clandestinas, pele esfolada e ossos envelhecidos, roídos e espalhados. Ele está explorando, olhando ao redor, e a câmera oculta para
no telhado verde de metal em três níveis da construção em vidro e madeira que consigo enxergar da varanda ensolarada de casa. Quando o homem gira a cabeça, vejo
no primeiro andar uma porta que conduz ao exterior, e a câmera torna a parar em uma mulher de cabelo grisalho do lado de fora, diante da porta. Ela veste um terninho
e um longo casaco de couro marrom, e está falando ao telefone.
O homem assovia e produz um som rascante à medida que caminha sobre a trilha de cascalho em direção a Sock, para recolher o que o cão deixou... "And this emptiness
fills my heart...", canta Peter Gabriel. Penso no jovem soldado de mesmo nome que morreu queimado em seu Humvee e sinto seu cheiro, visto que os odores fétidos ainda
estão presos no fundo do meu nariz. Penso em sua mãe, em sua tristeza e raiva ao telefone quando me ligou de manhã. Patologistas forenses nem sempre recebem agradecimentos
e, por vezes, as pessoas agem como se eu fosse o motivo de seus entes queridos estarem mortos. Não leve para o lado pessoal, tento lembrar.
As mãos enluvadas tornam a agitar o saco plástico dobrado, e então alguma coisa acontece. A mão enluvada do homem voa até a cabeça e ouço o baque dela atingindo
os fones de ouvido como se golpeasse alguma coisa, então ele exclama: "O que...? Ei...!", como se estivesse sem fôlego e assustado. Ou talvez seja um grito de dor.
Mas não vejo nada nem ninguém, só o bosque e figuras distantes. Não vejo o cachorro e não vejo o sujeito. Volto a gravação e reproduzo-a novamente. A mão preta enluvada
invade a tela de repente e ele deixa escapar: "O que...?" e depois "Ei...!". Concluo que ele parece atordoado e angustiado, como se alguma coisa o tivesse pego de
surpresa.
Reproduzo a gravação mais uma vez, tentando ouvir alguma outra coisa, e o que detecto em seu tom é protesto e talvez medo e, sim, dor, como se alguém tivesse lhe
dado uma cotovelada ou se chocado contra ele com força em uma calçada movimentada. Então o topo das árvores nuas precipita-se para o alto e gira na tela. Lascas
de ardósia aproximam-se quando ele cai com um baque; ou está deitado de costas ou os fones de ouvido se soltaram. A tela está parada em uma imagem contendo galhos
nus e céu cinzento, e então a borda de um longo casaco preto passa fazendo barulho e ondulando quando alguém caminha com rapidez. Ouço outra pancada alta e a imagem
torna a mudar. Galhos nus e céu cinzento, mas galhos diferentes mostrando-se através das ripas de um banco verde. Acontece muito rápido, incrivelmente rápido, em
seguida as vozes e os sons das pessoas ficam mais altos.
"Alguém ligue para a emergência!"
"Acho que ele não está respirando."
"Estou sem telefone. Liguem para a emergência!"
"Alô? Tem... hã, sim, em Cambridge. É, Massachusetts. Meus Deus! Depressa, depressa! Eles me colocaram em espera. Meu Deus, depressa! Não acredito nisso. É, é, um
homem, ele desmaiou e parece não estar respirando... Em Norton's Woods, na esquina da Irving com a Bryant... Sim, alguém está tentando ressuscitação. Vou ficar esperando...
estou esperando. Sim, quer dizer, não... Ela quer saber se ele continua sem respirar. Não, não, ele não está respirando! Não está se mexendo. Ele não está respirando!...
Eu realmente não vi, só olhei e percebi que ele estava no chão, de repente ele estava no chão...
Aperto pause e salto da van; faz frio e venta muito quando entro depressa no terminal. É pequeno, com banheiros, uma área de espera e uma televisão velha ligada.
Por um momento, assisto à Fox News e adianto o vídeo no iPad enquanto Lucy se debruça na recepção e paga a taxa aeroportuária com cartão de crédito. Continuo a contemplar
as imagens dos galhos desfolhados que aparecem por entre as ripas da madeira pintada de verde, certa, agora, de que os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco,
a câmera voltada direto para cima enquanto o rádio toca... "Dark lady laughed and danced..." A música está mais alta porque os fones não estão pressionados contra
a cabeça do homem e me parece absurdamente incongruente estar ouvindo Cher.
As vozes fora da câmera soam urgentes e agitadas; ouço o som de pés e o ruído distante de uma sirene enquanto minha sobrinha conversa com um homem mais velho, um
piloto de caça aposentado que agora trabalha meio período em Dover como operador fixo da base, ele alegra-se em contar.
"No Vietnã? Então devia ser o quê, um F-4?" Lucy conversa com ele.
"Ah, isso, e o Tomcat. Foi o último que pilotei. Mas os Phantoms ainda ficaram por aí, sabe, até a década de 1980. Você constrói essas máquinas direito e depois
não acredita no quanto elas duram. Olha há quanto tempo os C-5 estão aí. E ainda existem alguns Phantoms em Israel, acho. Talvez no Irã. Hoje, os que sobraram nos
Estados Unidos são usados para voos não tripulados, como aviões teleguiados. Um avião assim bom. Você já viu algum?"
"Em Belle Chasse, Louisiana, na Estação Aeronaval. Levei meu helicóptero até lá para ajudar no Katrina."
"Eles têm feito experiências no combate aos furacões usando os Phantoms para voar dentro do olho." O homem balança a cabeça.
A tela do iPad fica preta. Os fones de ouvido não estavam mais gravando, e estou convencida de que quando a vítima caiu no chão devem ter acabado a alguma distância
embaixo do banco. O sensor de movimento não estava detectando atividade suficiente para impedi-lo de ficar inativo, o que é curioso. Como exatamente os fones de
ouvido foram arremessados e acabaram onde acabaram? Talvez alguém os tenha chutado para fora do caminho. Pode ter sido acidental, provocado por uma pessoa tentando
ajudar, ou pode ter sido premeditado pela pessoa que estava gravando o sujeito em segredo, que o estava espreitando. Penso na borda do casaco preto ondulando de
passagem e avanço de forma intermitente, procurando as próximas imagens, tentando ouvir sons, mas não há nada até as 16h37, quando as árvores balançam loucamente
e o céu está escurecendo; mãos expostas agigantam-se e papel estala quando os fones de ouvidos são colocados dentro de um saco marrom; ouço uma voz dizer: "... Colts
o tempo todo". E outra voz: "Os Saints vão levar. Eles têm...". Depois a escuridão turva, vozes abafadas e mais nada.
Ao encontrar o controle remoto da TV no braço de um sofá no terminal, troco para a CNN, ouço o noticiário e leio as legendas na parte inferior da tela, mas não há
uma palavra a respeito do homem nos vídeos. Penso sobre Sock outra vez. Onde está o cachorro? É inaceitável que ninguém saiba. Fito Marino quando entra na área de
espera, fingindo não me ver por estar amuado, ou quem sabe arrependido pelo que fez e envergonhado. Recuso-me a lhe perguntar alguma coisa e tenho a sensação de
que o cão desaparecido é de alguma forma culpa dele, de que tudo é culpa de Marino. Não quero perdoá-lo por ter enviado os vídeos por e-mail para Briggs, por ter
conversado com ele primeiro. Se, para variar, não o perder, talvez aprenda a lição, mas o problema é que nunca consigo me convencer a manter uma posição contra ele,
contra qualquer pessoa de quem goste. É a culpa católica. Já estou amolecendo em relação a ele, minha determinação está ficando mais fraca. Sinto isso acontecer
enquanto procuro canais na televisão, em busca de notícias que possam prejudicar o CFC, e ele caminha até Lucy, mantendo as costas voltadas para mim. Não quero brigar
com Marino. Não quero ferir seus sentimentos.
Afasto-me da TV, convencida, ao menos por enquanto, de que a imprensa ignora o corpo que me espera no necrotério de Cambridge. Uma coisa tão sensacional como essa
seria manchete, concluo. As mensagens estariam chegando sem parar em meu iPhone. Briggs teria sido informado a respeito e dito alguma coisa. Até mesmo Fielding teria
me alertado. Só que não tive notícia absolutamente nenhuma de Fielding a respeito de nada e tento telefonar para ele outra vez. Ele não atende o celular e não está
no escritório. É claro que não. Fielding nunca trabalha até tão tarde, pelo amor de Deus. Tento encontrá-lo em sua casa em Concord e sou novamente atendida pelo
correio de voz.
"Jack? É Kay", deixo outra mensagem. "Estamos prestes a decolar de Dover. Talvez você possa enviar uma mensagem de texto ou um e-mail me colocando a par da situação.
O detetive Law não retornou a ligação, imagino. Ainda estamos esperando pelas fotografias? E você ouviu alguma coisa sobre um cão desaparecido, um galgo? O cão da
vítima, chamado Sock, visto pela última vez em Norton's Woods." Minha voz soa ríspida. Fielding está fugindo de mim, e não é a primeira vez. Ele é mestre em desaparecimentos,
e tem de ser. Já os encenou o suficiente. "Bom, vou tentar fazer contato novamente quando aterrissar. Imagino que você vá nos encontrar no escritório, entre nove
e meia e dez. Enviei mensagens a Anne e Ollie. Garanta que eles estejam lá. Precisamos cuidar disso esta noite. Informe-se com a polícia de Cambridge sobre o cachorro.
Ele pode ter um microchip..."
Parece bobagem entrar em detalhes excessivos a respeito de Sock. Que diabos Fielding ia saber sobre o animal? Ele não ia se dar o trabalho de ir até a cena, e Marino
está certo. Alguém já deve ter ido.
O Bell 407 de Lucy é preto com vidro escuro matizado na parte traseira. Ela destranca as portas e o compartimento de bagagem enquanto o vento golpeia a rampa.
Uma biruta aponta rigidamente para o norte, como um cone de trânsito horizontal, e isso é bom e ruim. O vento vai continuar na nossa cauda, assim como a frente da
tempestade, chuvas pesadas misturadas com granizo e neve. Marino começa a carregar minha bagagem enquanto Lucy contorna o helicóptero, verificando as antenas, os
orifícios de pressão estática, as pás do rotor, os flutuadores de emergência e as garrafas de nitrogênio para inflá-los, em seguida o estabilizador da cauda em liga
de alumínio e sua caixa de marchas, a bomba hidráulica e o reservatório.
"Se alguém estava espionando, gravando o cara em segredo, e percebeu que ele estava morto, então tem alguma coisa a ver com isso", digo a Lucy, do nada. "Então não
seria de esperar que essa pessoa tivesse deletado à distância os arquivos de vídeo gravados pelo fone de ouvido, ou pelo menos se livrado deles no disco rígido e
no cartão SD? Não ia querer se certificar de que não encontrássemos nenhuma gravação e de que ficássemos sem pista nenhuma?"
"Depende." Ela agarra uma alça na fuselagem, insere a ponta da bota em um degrau embutido e sobe.
"E se fosse você que estivesse fazendo isso?", pergunto.
"Se fosse eu?" Ela abre uma tranca e um painel com revestimento leve de alumínio. "Se eu achasse que nada de significativo ou incriminador tivesse sido gravado,
não teria deletado." Usando uma pequena mas potente lanterna, ela inspeciona o motor e seus encaixes.
"Por que não?"
Antes que ela consiga responder, Marino caminha até mim e diz para ninguém em particular: "Tenho que ir ao banheiro. Se alguém mais tiver que ir, agora é a hora".
Como se fosse o comissário nos lembrando de que não há banheiro no helicóptero. Está tentando reparar o erro.
"Obrigada, estou bem", digo, e ele se afasta pela rampa escura de volta ao terminal.
"Se fosse eu, isso é o que eu faria depois que ele estivesse morto", continua Lucy, enquanto a luz forte desloca-se sobre mangueiras e tubulações, e ela se certifica
de que não há nada frouxo ou danificado. "Eu me conectaria à webcam e faria imediatamente o download dos arquivos de vídeo. Se não visse nada que me preocupasse,
não interferiria."
Ela sobe mais para verificar o rotor principal, seu mastro, seu disco oscilante, e espero até que retorne à pista de decolagem para perguntar: "Por que não?".
"Pense nisso."
Sigo Lucy ao redor do helicóptero, para que ela possa subir e verificar o outro lado. Parece quase divertida com minhas perguntas, como se fossem óbvias.
"Se fossem deletados depois da morte dele, então outra pessoa teria feito isso, certo?", Lucy diz, verificando por baixo da coberta do motor, a luz esquadrinhando
atentamente.
Então ela torna a descer.
"É claro que ele não poderia fazer isso depois de morto." Espero para responder porque ela poderia se machucar ao escalar o helicóptero, especialmente estando lá
em cima, perto do mastro do rotor. Não quero que se distraia.
"Então, é por isso que você deixaria os vídeos se estivesse espionando o sujeito e soubesse que ele estava morto ou fosse a responsável pela morte dele?"
"Se eu estivesse espionando, se estivesse seguindo o homem para matar, sim, eu deixaria as últimas gravações de vídeo, e também não tiraria os fones de ouvido da
cena." Ela torna a emitir a luz brilhante ao longo da fuselagem. "Porque se as pessoas o viram usando os fones de ouvido no parque e a caminho dele, por que teriam
desaparecido? Os fones são bem grandes e perceptíveis."
Caminhamos até o nariz do helicóptero.
"E se eu levasse os fones de ouvidos, teria que levar o rádio via satélite também, procurar dentro do bolso do casaco e tirar dali, teria que gastar um tempo e ter
todo esse trabalho depois que o cara já estava no chão, esperando que ninguém me visse. E os arquivos anteriores baixados em algum lugar, supondo que a espionagem
venha acontecendo há certo tempo? Como isso se explica se não aparecem aparelhos de gravação e encontramos gravações em um PC ou servidor em alguma parte? Você sabe
o que dizem." Ela abre um painel de acesso acima do tubo de Pitot e lança a luz lá dentro. "Para cada crime, existem dois - o ato em si, e depois o que você faz
para encobri-lo. Ser esperto para abandonar os fones de ouvido e os arquivos de vídeo, para deixar que os policiais ou pessoas como você e eu imaginem que ele estava
gravando a si mesmo, que é o que Marino acredita, mas eu duvido."
Ela reconecta a bateria. A justificativa para desconectar sempre que deixa o helicóptero por qualquer período de tempo é que se alguém conseguisse entrar na cabine
e por acaso manuseasse o acelerador e os comutadores poderia acidentalmente dar partida no motor. Mas não se a bateria estiver desconectada. Independentemente da
pressa, Lucy sempre dá uma geral antes do voo, especialmente se tiver deixado a aeronave sem assistência, mesmo que em uma base militar. Mas não escapa à minha atenção
o fato de ela estar verificando tudo mais a fundo que de costume, como se desconfiasse de alguma coisa ou estivesse apreensiva.
"Está tudo absolutamente certo?", pergunto.
"Estou me certificando disso", diz ela, e sinto mais fortemente sua distância. Percebo seus segredos.
Lucy não confia em ninguém. Nem deveria. Eu também não deveria ter confiado em certas pessoas, voltando no tempo. Pessoas que manipulam, mentem e alegam que fazem
isso por uma causa. A causa certa, uma causa piedosa ou justa. Noonie Pieste e Joanne Rule foram mortas na cama, provavelmente sufocadas com um travesseiro. Por
isso não houve resposta dos tecidos aos ferimentos. Os estupros, os cortes de machete e talhos feitos com vidro quebrado, e até mesmo as cordas que as amarravam
quando foram presas às cadeiras, tudo depois da morte. Uma causa piedosa, uma causa justa na mente dos responsáveis. Um sofrimento inconcebível, e eles se safaram.
Até hoje. Não pense nisso. Concentre-se no que está diante de você, não no passado.
Abro a porta da frente e subo, o vento soprando forte. Contornando o coletivo e o cíclico e me acomodando no assento esquerdo, aperto meu cinto de quatro pontos
enquanto ouço Marino abrir a porta atrás de mim. Ele é barulhento e grande, e sinto o helicóptero acomodar-se a seu peso quando ele sobe na parte de trás, onde sempre
se senta. Mesmo quando Lucy voa apenas com ele como passageiro, Marino não tem permissão para ir na frente, onde há controles duplos que ele pode empurrar, golpear
ou usar como encosto para o braço porque não pensa. Ele simplesmente não pensa.
Lucy entra, dá início a outra verificação pré-voo e eu a auxilio, segurando a lista, que repassamos juntas. Nunca tive desejo de pilotar as várias aeronaves que
minha sobrinha já possuiu ao longo dos anos, nem de andar em suas motocicletas ou dirigir seus carros italianos velozes, mas sou ótima copiloto, habilidosa com mapas
e aviônica. Sei colocar os rádios nas frequências necessárias, inserir informações no transponder ou no sistema de voo. Se surgisse uma emergência, eu provavelmente
conseguiria levar o helicóptero em segurança até o chão, mas não gostaria disso.
"Comutadores suspensos na posição desligado", continuo a percorrer a lista.
"Sim."
"Disjuntores em posição."
"Sim." Os dedos ágeis de Lucy tocam tudo o que ela verifica enquanto percorremos a lista plastificada.
Ela liga por um instante a bomba de reforço e gira o acelerador para voo lento.
"Livre à direita", diz, enquanto olha por sua janela lateral.
"Livre à esquerda", digo, enquanto olho para a rampa escura, para o pequeno prédio com as janelas iluminadas e um Piper Cub amarrado a uma distância segura em meio
às sombras, seu oleado balançando ao vento.
Lucy pressiona o botão de partida; a pá do rotor principal começa a girar de forma lenta, pesada, batendo cada vez mais rápido como uma pulsação, e penso no sujeito.
Penso em seu medo, no que detectei em suas últimas palavras.
"O que...? Ei...!"
O que ele sentiu? O que viu? A parte inferior de um casaco preto, a borda solta passar farfalhando. O casaco de quem? Um sobretudo de lã ou uma capa de chuva? Não
era pele. Quem estava usando o casaco longo e preto? Alguém que não parou para ajudá-lo.
"O que...? Ei...!" Um grito assustado de dor.
Repasso várias vezes a imagem na mente. O ângulo da câmera baixa de repente, depois se fixa nos galhos nus e no céu cinzento, então a borda do longo casaco preto
passa pela tela por um instante, talvez um segundo. Quem passaria por alguém precisando de socorro como se fosse um objeto inanimado, como uma pedra ou um tronco
de madeira? Que espécie de ser humano ignoraria alguém que agarra o peito e cai? Possivelmente a pessoa que provocou isso. Ou alguém que não queria se envolver por
algum motivo. Como testemunhar um acidente ou um assalto e se afastar correndo para não tomar parte na investigação. Um homem ou uma mulher? Vi sapatos? Não, só
a bainha ou a borda do casaco ondulando, depois outro som semelhante a um baque e a imagem é substituída por árvores desfolhadas distintas, aparecendo através da
parte de baixo de um banco pintado de verde. A pessoa que vestia o casaco preto longo chutou os fones de ouvido para baixo do banco para que não gravassem alguma
coisa que fez?
Preciso examinar os vídeos com mais atenção, mas não posso fazer isso agora. O iPad está atrás e não há tempo. As pás golpeiam o ar com rapidez e o gerador está
on-line. Lucy e eu colocamos nossos fones. Ela aciona mais interruptores no alto, o controle da aviônica, os instrumentos de voo e navegação. Giro o botão do sistema
de comunicação interna para a posição "tripulação", de forma que Marino não possa nos ouvir e não possamos ouvi-lo enquanto Lucy fala com o controlador de tráfego
aéreo. Os estroboscópios, o pulso e as luzes de aterrissagem noturna brilham na pista, pintando-a de branco enquanto esperamos que a torre nos libere para a decolagem.
Inserindo os dados de destino no GPS touch screen, no indicador cartográfico numérico e no sistema de voo, corrijo os altímetros. Verifico se o indicador digital
de combustível coincide com o medidor, executando a maioria das coisas pelo menos duas vezes, porque Lucy acredita em redundância.
A torre nos libera e voamos devagar até a pista; ganhamos altura rumo a nosso curso nordeste, cruzando o rio Delaware a mil e cem pés de altura. A água está escura
e encrespada pelo vento, como metal fundido fluindo em abundância. As luzes em terra piscam através das árvores como pequenas fogueiras.
4
Mudamos nossa direção, desviando rumo à Filadélfia porque a visibilidade se deteriora mais perto da costa. Aperto o botão do sistema de comunicação interna para
falar com Marino.
"Tudo bem aí atrás?" Estou mais calma agora, preocupada demais com o casaco preto longo e a exclamação assustada do homem para ficar irritada com Marino.
"É mais rápido cortar caminho por New Jersey." Ele sabe onde estamos porque há um mapa de bordo em uma tela de vídeo no compartimento do passageiro.
"Nevoeiro e chuva gelada, condições IFR em Atlantic City. E não é mais rápido", contesta Lucy. "Vamos ficar em 'tripulação' a maior parte do tempo para eu poder
me ocupar do acompanhamento de voo."
Marino é cortado da conversa novamente enquanto somos transferidos de uma torre à seguinte. O mapa secional de Washington está aberto em meu colo; insiro um novo
destino no GPS, Oxford, Connecticut, para uma eventual parada para abastecer, e monitoramos o tempo no radar, observando os sólidos blocos verdes e amarelos avançarem
sobre nós provenientes do Atlântico. Podemos acelerar, mergulhar e evitar as tempestades, diz Lucy, desde que nos mantenhamos afastados do mar e o vento continue
a nos favorecer, aumentando nossa velocidade em relação ao solo para o que, neste momento, são impressionantes duzentos e oitenta e dois quilômetros por hora.
"Como você está?" Prossigo com meu rastreamento em busca de torres de celular e outras aeronaves.
"Vou melhorar quando chegarmos aonde estamos indo. Tenho certeza de que vamos ficar bem e conseguir escapar dessa confusão." Ela aponta para a tela do radar meteorológico.
"Mas, se houver uma sombra de dúvida, vamos descer."
Ela não teria ido me buscar se achasse que poderíamos passar a noite em algum campo em um lugar qualquer. Não estou preocupada. Talvez não tenha restado espaço em
mim para me preocupar com mais nada.
"E no geral? Como você está?", pergunto, tocando o lábio. "Tenho pensado muito em você nas últimas semanas." Tento fazer Lucy falar.
"Sei o quanto é difícil se adaptar nestas circunstâncias", diz ela. "Sempre que achamos que você vai voltar, então paramos de pensar nisso."
Era a terceira vez que o pagamento da minha bolsa de estudos foi adiado por um assunto urgente. Dois helicópteros derrubados em um só dia no Iraque com vinte e três
mortos. O assassinato em massa em Fort Hood. Mais recentemente, o terremoto no Haiti. Os médicos-legistas das Forças Armadas ficaram de prontidão. Ninguém podia
ser dispensado, e Briggs não me liberava de meu programa de treinamento. Há algumas horas, tentou mais uma vez adiar minha partida, sugerindo que eu continuasse
em Dover. Como se não quisesse que eu fosse para casa.
"Pensei que íamos chegar a Dover e descobrir que você tinha outra semana, duas, um mês", acrescenta Lucy. "Mas acabou."
"Aparentemente, eles cansaram de mim."
"Vamos esperar que você não chegue em casa só para dar meia-volta e voltar."
"Já passei nas provas. Eu terminei. Tenho uma repartição para administrar."
"Alguém precisa administrar. Isso é certo."
Não quero ouvir mais comentários desagradáveis sobre Jack Fielding.
"E as coisas vão bem fora isso?", pergunto.
"A garagem está quase pronta, grande o suficiente para três carros, mesmo com a baia de lavagem. Supondo que vocês estacionem um atrás do outro." Ela inicia um relatório
da construção, fazendo-me lembrar do quanto me desliguei do que está acontecendo em minha própria casa. "O piso emborrachado foi colocado, mas o sistema de alarme
não está pronto. Eles não iam perder tempo com arrombadores, mas eu disse que era necessário. Infelizmente, uma das antigas janelas de vidro ondulado original não
sobreviveu à modernização. Então, você tem um pouco de brisa na garagem no momento. Sabia de tudo isso?"
"Benton está no comando."
"Bom, ele tem andado ocupado. Você tem a frequência de Millville? Acho que é um-dois-três-vírgula-seis-cinco."
Verifico o mapa secional, confirmo a frequência e a insiro em Comm 1. "Como você está?", tento outra vez.
Quero saber o que vou encontrar ao chegar em casa, além do morto que está me esperando na geladeira do necrotério. Lucy não vai me dizer como vai e está querendo
dizer que Benton anda ocupado. Quando diz alguma coisa assim, não é realmente o quer dizer. Ela está tensa. Vigia os instrumentos, as telas do radar e o que está
ocorrendo fora da cabine de forma obsessiva, como se esperasse entrar em um combate aéreo, ser atingida por um raio ou ter uma falha mecânica. Há alguma coisa errada
com ela, ou talvez eu só esteja irritada.
"Ele está com um caso grande", continuo. "Muito ruim."
Ambas sabemos a que estou me referindo. Johnny Donahue está em todos os noticiários. O paciente do McLean e aluno de Harvard que na semana passada confessou ter
matado um menino de seis anos com uma pistola de pregos. Benton acredita que a confissão seja falsa e os policiais e o promotor público estão descontentes com ele
por isso. As pessoas querem que a confissão seja verdadeira para não precisar pensar que alguém assim continua solto. Eu gostaria de saber como foi a avaliação de
hoje quando visualizo o Porsche preto de Benton dando ré na entrada de nossa garagem no vídeo que acabei de ver. Ele estava a caminho do McLean para pegar a pasta
do caso de Johnny Donahue quando um jovem e um galgo passaram por nossa casa. Alguns graus de separação. A teia humana conectando a todos nós, conectando a todos
na Terra.
"Vamos manter um-dois-sete-vírgula-três-cinco em Comm 2 para poder monitorar Filadélfia", diz Lucy, "mas vou tentar ficar fora da Classe B deles. Acho que conseguimos,
a menos que esse troço nos empurre com mais força a partir da costa."
Ela aponta para as formas verdes e amarelas na tela do radar meteorológico via satélite, que mostram a precipitação se aproximando, como se tentasse nos intimidar
a fim de seguirmos para noroeste, rumo ao horizonte claro do centro da Filadélfia, voando de encontro aos arranha-céus.
"Eu vou bem", ela então diz. "Quem não está é ele." Ela aponta o polegar em direção à parte de trás do helicóptero, pensando em Marino. "Dá pra ver que você está
chateada. O que ele ia fazer além de ser a pessoa de sempre?"
"Você ouviu quando ele conversou com Briggs?"
"Isso foi em Wilmington. Eu estava ocupada pagando pelo combustível."
"Ele não devia ter telefonado."
"É o mesmo que dizer ao Jet Ranger para não babar quando mostro o saco de biscoitos. É normal Marino dar com a língua nos dentes para Briggs, para se exibir. Por
que você está mais surpresa que o habitual?" Lucy pergunta como se já soubesse a resposta, como se estivesse sondando, procurando por alguma coisa.
"Talvez por isso ter causado um problema pior que o habitual." Conto-lhe que Briggs queria que o corpo fosse transportado para Dover.
Explico que o legista-chefe das Forças Armadas está retendo informações, ou ao menos desconfio que esteja escondendo de mim alguma coisa importante. Provavelmente
por causa de Marino, digo. Por causa do que ele conseguiu provocar ao passar por cima de mim.
"Acho que não é bem assim", diz Lucy enquanto seu número de cauda é chamado.
Ela pressiona o botão do rádio em seu cíclico e atende; enquanto conversa com o acompanhamento de voo, insiro a frequência seguinte. Saltamos de um espaço aéreo
a outro, as formas no radar meteorológico agora na maioria amarelas e nos perseguindo a partir do sudeste, indicando chuvas fortes que, a esta altitude, vão gerar
condições perigosas como partículas de água super-resfriada que atingem as bordas dianteiras das pás do rotor e congelam. Observo a umidade no vidro Plexiglas dianteiro
e não vejo nada, nem uma gota, enquanto me pergunto a que Lucy está se referindo. O que não é bem assim?
"Você percebeu o que havia no apartamento dele?", soa a voz dela em meu fone de ouvido e suponho que esteja se referindo ao morto e ao que vi nos vídeos.
"Você disse que não é bem assim." Insisto no primeiro ponto. "Do que está falando?"
"Não queria tocar no assunto na frente do Marino. Ele não percebeu e de qualquer forma não saberia o que é; não chamei sua atenção porque queria conversar com você
e não tenho certeza se ele deveria tomar conhecimento disso, ponto final."
"Não chamou minha atenção para quê?"
"Meu palpite é que Briggs não precisou que chamassem a atenção dele", continua Lucy. "Teve muito mais tempo para examinar os vídeos que você, e ele, ou quem quer
que tenha visto os vídeos, teria reconhecido a geringonça de metal perto da porta, que parece um réptil assustador de seis pernas, soldado com fios, peças e partes
compostas, mais ou menos do tamanho de uma máquina de lavar em cima de uma secadora. Foi captado pela câmera por um segundo quando o homem e Sock saíram a caminho
de Norton's Woods. Não pode ter passado despercebido a você, de todas as pessoas."
"Captei um vislumbre do que pensei que fosse uma escultura de metal grosseira." Obviamente, não entendi a relação que ela fez. Uma relação importante.
"É um robô, e não um robô qualquer", informa Lucy. "Um protótipo desenvolvido para as Forças Armadas, o que deveria ser um PackBot tático para as tropas no Iraque;
então outro objetivo criativo foi sugerido e fracassou notória e completamente."
Um lampejo de reconhecimento e um sentimento sinistro começam a abrir caminho entre as minhas entranhas, apertando meu peito, gerando conscientização, em seguida
uma lembrança.
"Esse modelo em particular não durou muito tempo", continua ela, e acho que sei ao que está se referindo.
MORT. Transporte de Remoção Operacional Funerária. Deus do céu.
"Nunca chegou a entrar em funcionamento e está obsoleto. Foi substituído por robôs com pernas, biologicamente inspirados, que carregam fardos pesados em terreno
difícil ou escorregadio", diz ela. "Como o quadrúpede chamado BigDog que está no YouTube. Aquela coisa consegue carregar centenas de quilos o dia inteiro nas piores
condições imagináveis, salta como um cervo e recupera o equilíbrio quando tropeça, escorrega ou leva um chute."
"MORT", vou em frente e digo. "Por que ele teria um PackBot como um MORT em seu apartamento? Não estou entendendo."
"Você viu o robô pessoalmente na época, quando começou o debate sobre ele em Capitol Hill? E você está entendendo. É disso mesmo que estou falando."
"Nunca vi um MORT pessoalmente." Vi o robô somente em demonstrações de vídeo e entrei em mais de uma discussão sobre seu uso, especialmente com Briggs. "Por que
ele teria uma coisa dessas?", torno a perguntar.
"Assustador. Como uma formiga mecânica gigante, movida a gasolina", diz ela. "Parece uma motosserra quando anda devagar com aquelas pernas curtas, desajeitadas,
com dois conjuntos de garras na frente, como Edward Mãos de Tesoura. Se visse aquilo vindo na sua direção, você ia correr como louca ou atirar uma granada nele."
"Mas no apartamento dele? Por quê?" Me lembro de demonstrações que achei horríveis e discussões acaloradas que se tornaram brigas desagradáveis com colegas, inclusive
Briggs no AFMES, no Walter Reed e no Russell Senate Office Building.
MORT. O epítome da automação equivocada que se tornou fonte de controvérsia em inteligência militar e médica. A péssima ideia não foi a tecnologia, e, sim, a sugestão
de como usá-la. Recordo uma manhã quente de verão em Washington, o calor subindo de uma calçada lotada de escoteiros excursionando pela capital enquanto Briggs e
eu discutíamos. Estávamos com calor em nosso uniforme, frustrados e estressados, e me lembro de ter passado pela Casa Branca, com gente por toda parte, imaginando
o que viria a seguir. Que outras desumanidades a tecnologia ofereceria? E isso foi há quase uma década, a Idade da Pedra comparada aos dias atuais.
"Tenho certeza - na realidade, mais que certeza - de que era o que tinha no apartamento do cara", diz Lucy. "E não se compra uma coisa dessas no eBay."
"Talvez seja uma maquete", sugiro. "Um fac-símile."
"De jeito nenhum. Quando dei zoom, vi a combinação de partes em detalhes, algumas gastas e rompidas pelo uso, provavelmente devido aos testes do setor de Pesquisa
e Desenvolvimento em terreno difícil; ele ficou um pouco arranhado. Vi até os conectores de fibra óptica. MORT não era um artefato sem fio, o que era só uma das
muitas coisas erradas nele. Não era o que estão fazendo hoje com os robôs autônomos que têm computadores internos e recebem informação através de sensores controlados
por unidades usadas por seres humanos, em vez de ficarem se arrastando em volta de uma mala Pelican no meio do caminho. É como os caras do Exército estão fazendo
para que seus operadores em campo fiquem com as mãos livres quando saem com os esquadrões robóticos. Todo esse negócio novo com processadores leves e reforçados
que você pode usar no colete se, digamos, estiver operando um veículo terrestre não tripulado ou os robôs armados, a unidade SWORDS, o Sistema de Armamento Especial,
Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta. Uma infantaria robótica armada com metralhadoras M249. Não é uma coisa que me agrade e sei como você se sente a
respeito."
"Não sei bem se existem palavras para como me sinto a respeito disso", retruco.
"Tem três unidades SWORDS até agora no Iraque, mas eles ainda não dispararam. Ninguém sabe ao certo como conseguir que um robô faça esse tipo de julgamento. Quociente
ético artificial. Uma perspectiva um tanto assustadora, mas tenho certeza de que não é impossível."
"Os robôs devem ser usados para a manutenção da paz, para vigilância."
"Isso para você, mas não para todos."
"Eles não devem tomar decisões sobre vida e morte", continuo. "Seria como o piloto automático decidindo se devemos voar através das nuvens que estão vindo em nossa
direção."
"O piloto automático poderia fazer isso se meu helicóptero tivesse sensores de umidade e temperatura. Acrescente transdutores de força e ele pousa sozinho, leve
como uma pluma. Com os sensores adequados, você não precisa mais de mim. É só embarcar e apertar um botão, como os Jetsons. Parece loucura, mas quanto mais louco
melhor. Pergunte à DARPA. Você faz ideia de quanto dinheiro eles investem na área de Cambridge?"
Lucy baixa o coletivo, perdendo altitude e velocidade à medida que outro trecho de nuvens fantasmagóricas flutua em nossa direção no escuro.
"Além do que foi investido no CFC?", completa ela.
Seu comportamento está diferente, até seu rosto está diferente, e ela já não tenta esconder o que a está afetando. Conheço esse estado de espírito. Conheço muito
bem. É uma disposição de ânimo antiga, que não vejo há algum tempo, mas que reconheço como se fossem os sintomas de uma doença que esteve em remissão.
"Computadores, robótica, biologia sintética, nanotecnologia, quanto mais absurdo melhor", continua Lucy. "Porque não existe mais essa coisa de cientistas malucos.
Não sei se existe mais essa coisa de ficção científica. Você propõe a invenção mais radical que consegue imaginar e ela provavelmente está sendo implementada em
algum lugar. É notícia velha."
"Você está sugerindo que esse homem que morreu em Norton's Woods está ligado à DARPA."
"De alguma forma está, em alguma extensão. Não sei quão direta ou indiretamente", responde Lucy. "O MORT não está mais sendo usado, não pelas Forças Armadas, nem
para qualquer finalidade, mas era coisa de Star Wars oito ou nove anos atrás, quando a DARPA intensificou o financiamento para dispositivos militares e de inteligência
em robótica, bioengenharia e engenharia da computação. E aplicações forenses e outras, relevantes para nossos mortos de guerra, para o que acontece em combate, no
teatro de operações."
Foi a DARPA que financiou a pesquisa e o desenvolvimento da tecnologia RadPath que empregamos nas autópsias virtuais em Dover e agora no CFC. A DARPA financiou minha
bolsa de estudos de quatro meses, que se transformaram em seis.
"Uma percentagem substancial de subvenção para pesquisa vem para os laboratórios da área de Cambridge, Harvard e MIT", diz Lucy. "Lembra quando tudo começou a girar
em torno da guerra?"
Está ficando cada vez mais difícil lembrar um tempo em que isso não era verdade. A guerra está se tornando nossa indústria nacional, como antes eram os automóveis,
o aço e as ferrovias. É este o perigoso mundo em que vivemos. Não creio que possa mudar.
"A brilhante ideia de que robôs como MORT podiam ser utilizados para recuperar baixas de modo que as tropas não arriscassem a vida por um companheiro morto?", lembra
Lucy.
Não uma ideia brilhante, e, sim, infeliz. Uma ideia extremamente idiota, eu achava na época e continuo a achar. Briggs e eu não estávamos do mesmo lado a esse respeito.
Ele nunca vai me dar crédito por tê-lo salvado de um passo em falso em RP que poderia tê-lo prejudicado muito.
"A ideia foi agressivamente pesquisada por um tempo e então engavetada", acrescenta Lucy.
Foi engavetada porque empregar robôs para tal finalidade supõe que eles sejam capazes de decidir se um soldado caído, um ser humano, está mortalmente ferido ou morto.
"O Departamento de Defesa se deu mal por causa disso, pelo menos internamente, porque pareceu frio e desumano", diz ela.
Merecidamente. Ninguém deveria morrer nas garras de algo mecânico que arrasta a pessoa para fora do campo de batalha, ou a retira de um veículo estraçalhado, ou
dos escombros de um edifício que desabou.
"O que estou dando a entender é que as primeiras gerações dessa tecnologia foram enterradas pelo Departamento de Defesa, relegadas a um ferro-velho secreto ou teve
peças reaproveitadas", diz Lucy. "Mesmo assim, o cara que está na sua geladeira tem um no apartamento dele. Onde conseguiu? Ele tem alguma ligação com a história.
Tem papel de desenho na mesinha de centro. É inventor, engenheiro, algo do tipo, e estava de alguma forma envolvido em projetos sigilosos que exigem certificado
de segurança de alto nível, mas é civil."
"Como você pode ter tanta certeza de que ele é civil?"
"Acredite em mim, tenho certeza. Ele não tem experiência nem treinamento e é absolutamente certo que não faz parte do serviço de informações militar nem é agente
do governo, ou não andaria por aí ouvindo música alta armado com uma pistola cara que teve o número de série raspado - em outras palavras, ele provavelmente comprou
a arma na rua. Teria uma coisa que nunca seria atribuída a ele nem a ninguém, uma coisa que você usa uma vez e joga fora..."
"Não sabemos a quem a arma está relacionada?" Quero ter certeza disso.
"Não que eu saiba, ainda não, o que é ridículo. Esse cara não estava encoberto. Acho que ele está assustado", diz Lucy como se soubesse disso com certeza. "Estava",
acrescenta. "Ele estava. Alguém o tinha sob vigilância - é o que eu acho, de qualquer maneira -, e agora ele está morto. Na minha opinião, não é coincidência. Sugiro
que você tenha extremo cuidado ao falar com Marino.
"Às vezes, ele tem um discernimento terrível, mas não está tentando me enganar."
"Ele não faz parte do serviço de inteligência médico como você, e sua compreensão só vai até o ponto de não discutir casos com seus amigos no boliche e não falar
com repórteres. Acha perfeitamente possível confiar em pessoas como Briggs porque é um ignorante no que se refere às altas patentes militares." Não consigo lembrar
desde quando não vejo Lucy com um comportamento tão inquieto e sombrio. "Em um caso como esse, você conversa comigo ou com Benton."
"Você contou a Benton o que acabou de me contar?"
"Vou te deixar explicar a respeito do MORT porque ele provavelmente não vai entender o que é. Não estava por perto quando você passou por tudo isso com o Pentágono.
Você conta a ele e então todos nós podemos conversar. Você, ele, eu e chega, pelo menos por enquanto, porque você não sabe o que está acontecendo, e é melhor esclarecer
os fatos e saber quem somos nós e quem são eles."
"Se não posso confiar em Marino em um caso como esse, ou em qualquer caso por sinal, por que estou com ele?" A atitude defensiva aviva meu tom de voz, porque Marino
também foi ideia dela.
Lucy me encorajou a contratá-lo como chefe de investigações operacionais do CFC e também o convenceu a aceitar, embora não tenha sido uma negociação muito difícil.
Ele nunca admitiria, mas não queria estar em lugar nenhum em que eu não estivesse, e, quando percebeu que eu ficaria em Cambridge, desencantou-se de repente com
o departamento de polícia de Nova York. Perdeu interesse na promotora-adjunta Jaime Berger, para cujo escritório foi designado. Entrou em conflito com seu senhorio
no Bronx. Começou a se queixar dos impostos de Nova York, mesmo que os pagasse havia vários anos. Disse que era intolerável não ter lugar para andar de moto ou para
estacionar uma caminhonete, mesmo que não possuísse nenhum dos dois na ocasião. Disse que precisava se mudar.
"Não é uma questão de confiança. É questão de reconhecer limitações." É estranhamente generoso da parte de Lucy dizer isso. Em geral, as pessoas são simplesmente
ruins ou inúteis e merecem seja qual for o castigo que ela determine.
Lucy reduz a pressão sobre o coletivo e faz ajustes sutis com o cíclico, aumentando nossa velocidade e se certificando de que não ganhemos altura, entrando nas nuvens.
A escuridão da noite à nossa volta é impenetrável, e há trechos onde vejo luzes no solo, sugerindo que estamos voando acima de árvores. Insiro a frequência da base
aérea de McGuire para monitorar seu espaço aéreo enquanto ficamos de olho no Sistema Anticolisão de Tráfego. Ele não mostra outra aeronave em parte alguma. Talvez
sejamos os únicos a voar esta noite.
"Não posso me dar o luxo de levar em conta limitações", digo à minha sobrinha. "O que significa que provavelmente cometi um erro contratando Marino. E outro maior
ainda contratando Fielding."
"E não pela primeira vez. Jack te largou em Watertown e foi para Chicago, e você devia ter deixado o cara por lá."
"Na verdade, perdemos nosso financiamento em Watertown. Ele sabia que o escritório talvez fechasse, e realmente fechou."
"Não foi por isso que ele saiu."
Não argumento porque Lucy está certa. Não foi por isso. Fielding queria se mudar para Chicago porque sua mulher havia recebido uma oferta de emprego lá. Dois anos
mais tarde, perguntou se podia voltar. Disse que sentia falta de trabalhar para mim. Disse que sentia falta de sua família. Lucy, Marino, Benton e eu. Uma família
grande e feliz.
"Não são só eles. Você tem problema com todo mundo ali", diz Lucy.
"Então ninguém deveria ter sido contratado. Inclusive você, imagino."
"Provavelmente. Não sou boa no trabalho em equipe." Ela foi demitida do FBI e da ATF. Acho que Lucy não pode ser supervisionada por ninguém, nem mesmo por mim.
"Bom, é ótimo voltar para casa e para isso", retruco.
"É esse o perigo de uma instituição-modelo que, não importa o que se diga, é na verdade tanto civil quanto militar, é da alçada tanto local quanto federal, além
de ter vínculos acadêmicos", diz Lucy. "Você não é uma coisa nem outra. Os membros da equipe não sabem exatamente como agir ou não conseguem respeitar os limites,
supondo que alguém os compreenda. Alertei você sobre isso faz tempo."
"Não me lembro de você ter me alertado. Só me lembro de ter chamado minha atenção para o fato."
"Vamos inserir a frequência de Lakehurst e indicar voo VFR, porque estou descartando o acompanhamento de voo", decide Lucy. "Se formos empurrados ainda mais para
oeste, vamos ter vento contrário, o que vai reduzir nossa velocidade para menos de quarenta quilômetros por hora e vamos ter que pousar para passar a noite em Harrisburg
ou Allentown."
5
Os flocos de neve ficam loucos como mariposas sob as luzes de aterrissagem e o vento das pás do rotor, à medida que descemos sobre a plataforma de madeira. Os skids
pousam de forma hesitante, então se separam pesadamente, quando o peso se instala e quatro pares de faróis começam a se mover em nossa direção desde o portão de
segurança próximo à base de operações.
Os faróis movem-se devagar pela rampa, iluminando a neve que cai com rapidez e reconheço a silhueta do Porsche SUV verde de Benton. Reconheço o Suburban e o Range
Rover, ambos pretos. Não conheço o quarto carro, um sedã escuro elegante, com aço cromado. Lucy e Marino devem ter vindo em carros separados hoje e deixado seus
SUVs com a equipe da base, o que faz sentido. Minha sobrinha sempre chega ao aeroporto bem antes das outras pessoas para preparar o helicóptero, assim pode checar
do aparelho do tubo de Pitot, no nariz, ao estabilizador de cauda. Não a vejo assim faz algum tempo, e enquanto aguardamos os dois minutos em ponto morto antes que
ela conclua o desligamento, tento me lembrar da última vez, localizá-la com exatidão, na esperança de entender o que está acontecendo. Porque Lucy não vai me contar.
Não vai fazer isso, a menos que se encaixe em seu plano geral, e não há como extrair dela a informação quando não está preparada para compartilhar, o que, em situações
extremas, pode ser nunca. Lucy prospera no comportamento dissimulado, sente-se muito mais à vontade sendo quem não é do que quem é, e foi sempre assim, desde os
primeiros anos. Ela se alimenta do poder do silêncio e se energiza com o drama do risco, do perigo real. Quanto mais ameaçador, melhor. Tudo o que me revelou até
agora é que um robô obsoleto no apartamento do morto é um PackBot chamado MORT, financiado pela DARPA e que, no passado, foi destinado a intervenções funerárias
no teatro de operações; em outras palavras, à remoção de corpos na guerra, um Anjo da Morte mecânico. O MORT era insensível e inadequado e o combati agressivamente
há anos, mas a peculiaridade de o morto ter tal objeto em seu apartamento não explica o comportamento de Lucy.
Quando foi que ela me assustou tanto, não que tenha sido só uma vez, mas no dia em que achei que ela poderia acabar na prisão? Há sete ou oito anos, concluo, quando
voltou da Polônia, onde esteve envolvida em uma missão que tinha a ver com a Interpol e operações especiais que até hoje não estão claras para mim. Nunca vou ficar
sabendo quanto ela me contaria se eu a pressionasse o suficiente, porque não vou fazer isso. Optei por permanecer na obscuridade acerca do que ela fez por lá. O
que sei é suficiente. É mais que suficiente. Eu jamais diria isso a respeito dos sentimentos, da saúde ou do bem-estar geral de Lucy, porque me preocupo muito com
cada molécula sua, mas posso dizer isso acerca de alguns aspectos complexos e clandestinos da forma como viveu. Para seu próprio bem e o meu, há detalhes sobre os
quais não vou perguntar. Há histórias que não quero que me contem.
Durante a última hora de nosso voo para Hanscom Field, ela foi ficando cada vez mais preocupada, impaciente e incrivelmente vigilante, e é sua vigilância que tem
um calibre especial. É o que reconheço. A vigilância é a arma que ela saca quando se sente ameaçada e entra no modo de atuação que eu costumava temer. Em Oxford,
Connecticut, onde paramos para abastecer, ela não deixou o helicóptero sem supervisão, nem por um segundo. Supervisionou o caminhão de combustível e me colocou de
guarda no frio enquanto trotava até o interior da base de operações para pagar, porque não confiava em Marino para o serviço de guarda, conforme explicou. Contou
que, quando eles reabasteceram em Wilmington, Delaware, hoje cedo, a caminho de Dover, ele ficou muito ocupado ao telefone para se preocupar com a segurança ou reparar
no que estava acontecendo ao redor dos dois.
Disse que o havia observado pela janela enquanto ele passeava pela pista de pouso, conversando e gesticulando, sem dúvida empolgado contando a Briggs a respeito
do homem que supostamente continuava vivo quando foi trancafiado dentro da geladeira. Marino não olhou para o helicóptero uma única vez sequer, Lucy me contou. Estava
distraído quando outro piloto aproximou-se para fazer o check-out, agachando-se para inspecionar o sensor de visão frontal infravermelha, o holofote Nightsun, e
espreitar pelo Plexiglas o interior das cabines. Não entrava na cabeça de Marino que as portas estavam destrancadas, assim como a tampa do combustível, e é óbvio
que não há como trancar a capota do motor. Alguém pode ter acesso à transmissão, ao motor, às caixas de marchas, os órgãos vitais de um helicóptero, pela simples
liberação das travas.
Água no tanque de combustível é o bastante para uma pane em voo. Lá se vai o motor. Ou uma pequena quantidade de contaminante no fluido hidráulico, possivelmente
terra, óleo, ou água no reservatório, e os controles vão falhar como a direção hidráulica em um automóvel, o que é um pouco mais sério quando você está a seiscentos
metros de altura. Se realmente quer criar confusão, contamine tanto o combustível quanto o fluido hidráulico, assim vai ter uma pane e uma falha hidráulica ao mesmo
tempo, descreveu Lucy em detalhes sórdidos enquanto voávamos com o sistema de comunicação interna na posição "tripulação", para que Marino não ouvisse. Isso seria
especialmente desastroso depois do anoitecer, disse ela, quando os pousos de emergência, já bastante difíceis, ficam muito piores porque você não consegue enxergar
o que há embaixo, e é melhor esperar que não sejam árvores, linhas de energia ou outro tipo de obstrução.
É claro que a sabotagem que ela mais teme é um explosivo; ela é obcecada por explosivos em geral e o motivo pelo qual são de fato usados, quem os usaria, inclusive
o governo dos Estados Unidos, se for conveniente. Assim, tive de ouvir isso por algum tempo antes que ela me deprimisse ainda mais ao explicar quão simples seria
plantar tal coisa, de preferência embaixo da bagagem ou de um tapete atrás, para que quando o artefato detonasse destruísse o tanque de combustível principal sob
os bancos traseiros. Em seguida o helicóptero se transforma em um crematório, disse ela, o que me fez pensar outra vez no soldado no Humvee e em sua mãe devastadora
me atacando ao telefone. Eu fazia associações infelizes durante a maior parte do tempo que estávamos voando porque, para o bem ou para o mal, qualquer calamidade
descrita evoca exemplos vívidos de meus próprios casos. Sei como as pessoas morrem. Sei exatamente o que vai acontecer comigo se eu morrer.
Lucy corta a aceleração e baixa o freio do rotor; no instante em que as pás param de girar, a porta do motorista no utilitário de Benton se abre. A luz interna não
acende. Não vai acender em nenhum dos três utilitários na rampa, porque policiais e agentes federais, inclusive os que já não exercem mais a profissão, têm suas
peculiaridades. Não se sentam com as costas voltadas para a porta. Detestam apertar o cinto de segurança e não gostam de luzes internas nos veículos. São programados
para evitar emboscadas e restrições que os impeçam de fugir. Resistem a se transformar em um alvo iluminado. São precavidos, mas não tão precavidos quanto Lucy nas
últimas horas.
Benton caminha em direção ao helicóptero e aguarda perto da plataforma com as mãos nos bolsos de um velho casaco preto de camurça que lhe dei há muitos Natais, o
cabelo prateado bagunçado pelo vento. Ele é alto e magro contra a noite coberta de neve, e seu semblante parece ansioso à sombra e luz desiguais. Sempre que o vejo
após uma longa separação é com os olhos de uma estranha, e me sinto outra vez atraída por ele, exatamente como da primeira vez, há muito tempo na Virginia quando
eu era a nova chefe, a primeira mulher nos Estados Unidos a dirigir um sistema médico-legal daquele porte, e ele era uma lenda no FBI, o talentoso psicólogo criminal
e diretor do que era então a Unidade de Ciência Comportamental em Quantico. Ele entrou em minha sala de reuniões e de repente me senti nervosa e insegura, o que
nada tinha a ver com os assassinatos em série que estávamos ali para discutir.
"Você conhece esse cara?", pergunta ele em meu ouvido quando nos abraçamos. Ele me beija de leve nos lábios; sinto a fragrância amadeirada de sua loção pós-barba
e o couro macio de seu casaco de encontro ao meu rosto.
Olho para além dele na direção do homem que salta do sedã, que agora vejo que é um Bentley azul-escuro ou preto que tem o ronco gutural de um motor V12. O sujeito
é grande e está acima do peso, possui queixo duplo e uma franja rala que se agita ao vento. Vestindo um casaco longo com a gola levantada, que lhe cobre as orelhas
e luvas, mantém-se de pé a uma distância educada, com a postura alheia de um motorista de limusine. Mas percebo sua atenção sobre nós. Ele parece mais interessado
em Benton.
"Deve estar esperando alguém", concluo enquanto o homem olha para o helicóptero, então torna a olhar para Benton. "Ou está confuso."
"Em que posso ajudar?" Benton se aproxima do sujeito.
"Estou procurando por Scarpetta."
"E por que você estaria procurando Scarpetta?" Benton é simpático, porém firme, e não revela nada.
"Fui enviado aqui com uma entrega e me disseram que o encontraria saindo do helicóptero. Você é de onde? Da segurança nacional? Estou vendo que o helicóptero tem
sensor de visão frontal infravermelha, holofote de busca, um bocado de equipamento especial. Bem high-tech. A que velocidade ele voa?"
"O que posso fazer por você?"
"Preciso entregar algo diretamente a Scarpetta. É você? Me mandaram pedir um documento." O motorista observa Lucy e Marino retirarem meus pertences dos compartimentos
do passageiro e de bagagem. Não está interessado em mim, não mais que para me lançar um olhar de relance. Sou a mulher do homem alto e atraente com cabelo grisalho.
O motorista acha que Benton é Scarpetta e que o helicóptero pertence a ele.
"Vamos tirar você daqui antes que vire uma nevasca", diz Benton, caminhando em direção ao Bentley de um jeito que não deixa escolha ao motorista a não ser segui-lo.
"Ouvi dizer que vamos ter de quinze a dezoito centímetros, mas tudo é extremo nesse inverno. De onde você é? Não daqui. De algum lugar no sul. Imagino que do Tennessee."
"Você percebeu depois de vinte e sete anos? Acho que preciso trabalhar na minha fala ianque. Nashville. Estacionamos aqui com a 66a Unidade Aérea e nunca saímos.
Não sou piloto, mas dirijo muito bem." Ele abre a porta do passageiro e se debruça para dentro. "Você mesmo pilota aquela coisa? Nunca estive em um daqueles. Percebi
na mesma hora que aquele helicóptero não era da Força Aérea. Acho que se você for da CIA, não vai me dizer..."
A voz flutuou até a rampa, onde Benton me deixou. Sei que é melhor não o seguir até o Bentley, mas reluto em me sentar em nosso carro sem fazer ideia de quem é o
homem, a que entrega está se referindo ou como sabia que alguém chamado Scarpetta estaria em Hanscom, seja em um helicóptero ou para encontrá-lo, e a que horas pousaria.
A primeira pessoa que me vem à mente é Jack Fielding. É provável que ele conhecesse meu itinerário e verifico meu iPhone. Anne e Ollie responderam minhas mensagens
de texto e já estão no CFC, esperando por nós. Mas não há nada da parte de Fielding. O que está acontecendo? Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa séria. Isso
não deve ser só a irresponsabilidade, a indiferença ou seu comportamento errático habituais. Espero que esteja bem, que não esteja doente, ferido ou brigando com
a mulher, e vejo Benton enfiar alguma coisa no bolso do casaco. Ele se encaminha direto para o SUV, e essa é sua mensagem para mim. Entrar e não fazer perguntas.
Alguma coisa que o desagrada aconteceu, apesar de sua atitude relaxada e amigável com o motorista.
"O que foi?", pergunto quando fechamos as portas ao mesmo tempo que Marino abre o bagageiro e começa a enfiar ali minhas caixas e malas.
Benton aumenta o aquecimento e não responde enquanto mais pertences meus são carregados, em seguida Marino vem até minha porta. Bate com o nó do dedo no vidro.
"O que foi isso?" Ele olha na direção do Bentley; a neve cai espessa e firme, cobrindo a viseira de seu boné de beisebol e derretendo em seus óculos.
"Quem sabia que você e Lucy iam a Dover hoje?", Benton apoia o ombro em mim enquanto conversa com ele.
"O general. E a capitã Avallone ficou sabendo quando telefonei tentando deixar uma mensagem para a doutora. E algumas pessoas no nosso escritório. Por quê?"
"Mais ninguém? Você não mencionou aos paramédicos, à polícia de Cambridge?"
Marino faz uma pausa, pensando, e uma expressão passou por seu rosto. Ele não sabe ao certo a quem contou. Está tentando lembrar, está calculando. Se fez alguma
coisa imprudente, não vai querer admitir, já ouviu o bastante sobre o quanto é indiscreto. Não pretende ser castigado mais uma vez, ainda que, para ser justa, ele
não tivesse motivo para se comportar como se o fato de ele e Lucy voarem até Delaware para me buscar fosse informação sigilosa. Não é segredo de Estado onde eu estava
e, de qualquer forma, eu ia voltar para casa amanhã.
"Não tem importância se você fez isso." Benton parece estar pensando o mesmo que eu. "Só estou tentando entender como um mensageiro sabia que encontraria o helicóptero
aqui."
"Que espécie de mensageiro dirige um Bentley?", pergunta Marino.
"Aparentemente, a espécie que foi informada do seu itinerário, inclusive o número de cauda do helicóptero", responde Benton.
"Maldito Fielding. Que diabos ele está fazendo? O cara é um louco, é o que ele é." Marino retira os óculos, então não tem com que os limpar, e seu rosto parece nu
e estranho sem os velhos aros de metal. "Comentei com algumas pessoas que você provavelmente voltaria hoje em vez de amanhã. Quer dizer, é óbvio que algumas pessoas
sabiam por causa do problema que temos com o morto sangrando e tudo mais." Ele endereça isso a mim. "Mas Fielding era o único que sabia exatamente o que você estava
fazendo e com certeza conhece o helicóptero de Lucy, porque já esteve nele. Merda, você não sabe da missa a metade", acrescenta com ar sombrio.
"Vamos conversar no escritório." Benton quer que ele cale a boca.
"O que sabemos sobre ele? Que merda ele está aprontando? Está mais que na hora de parar de proteger esse cara. Ele com certeza não está te protegendo", diz Marino.
"Vamos conversar sobre isso mais tarde", retruca Benton com um sinal de advertência na voz.
"Ele está te ferrando de alguma forma", diz Marino.
"Não é hora de discutir isso." A voz de Benton assume um tom monótono.
"Ele quer seu emprego. Ou talvez não queira que você fique com ele." Marino olha para mim enquanto enfia as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e se afasta da janela.
"Bem-vinda ao lar, doutora." Sinto os flocos de neve frios e úmidos soprados para dentro do carro em meu rosto e pescoço. "É bom ser lembrado de em quem você pode
realmente confiar, certo?" Ele olha para mim enquanto ergo o vidro da janela.
Faróis anticolisão vermelhos e brancos piscam na ponta das asas dos jatos estacionados à medida que atravessamos a rampa devagar rumo ao portão de segurança, que
acaba de abrir.
O Bentley passa pelo portão; estamos logo atrás e reparo que a placa de Massachusetts não possui o logo que indica que o carro pertence a uma empresa de limusines.
Não me surpreendo. Bentleys são raros, especialmente por aqui, onde as pessoas são modestas e conservadoras, mesmo aquelas que fazem voos particulares. Raras vezes
vejo Bentleys ou Rolls-Royces, são quase sempre Toyotas ou Saabs. Passamos pela base de operações VIP, um dos vários serviços de voo na parte civil do aeroporto,
e coloco a mão na camurça macia do bolso do casaco de Benton, sem tocar o envelope branco leitoso que mal se projeta para fora dele.
"Você quer me explicar o que acaba de acontecer?" Ele parece ter recebido uma carta.
"Ninguém devia saber que você fez um voo para cá, ninguém devia saber nada sobre você ou sobre o seu paradeiro, ponto final", diz Benton com o rosto e a voz severos.
"É óbvio que ela ligou para o CFC e Jack passou a informação. Ela com certeza já ligou para lá antes, e quem mais a não ser Jack?"
Na verdade, ele não enuncia isso como uma pergunta e não faço ideia de a quem possa estar se referindo.
"Não entendo por que ele ou qualquer outra pessoa falaria com ela, pelo amor de Deus", continua Benton, mas não acredito que não compreenda seja o que for a que
esteja se referindo. Seu tom exprime algo completamente diferente. Percebo que ele não está nem mesmo surpreso.
"Quem?" Porque não faço a menor ideia. "Quem telefonou para o CFC?"
"A mãe de Johnny Donahue. Ao que parece, aquele é o motorista dela", disse ele, indicando o carro mais à frente.
Os limpadores de para-brisa produzem um alto som de borracha sendo arrastada sobre o vidro, afastando a neve, que se derrete. Olho para as lanternas traseiras do
Bentley à nossa frente e tento entender o que Benton está me contando.
"Devemos examinar, independentemente do que for." Estou me referindo ao envelope em seu bolso.
"É prova. Deve ser examinada no laboratório", diz ele.
"Eu tenho que saber o que é."
"Terminei de avaliar Johnny esta manhã", Benton me faz lembrar. "Sei que a mãe dele telefonou várias vezes para o CFC."
"Como você sabe?"
"Johnny me contou."
"Um paciente psiquiátrico te contou. E isso é informação confiável?"
"Passei um total de quase sete horas com ele desde que foi admitido. Não acredito que tenha matado ninguém. Existe um monte de coisas nas quais não acredito. Mas
acredito que a mãe dele telefonaria para o CFC, com base no que sei", diz Benton.
"Ela não pode realmente imaginar que discutiríamos o caso de Mark Bishop com ela."
"Atualmente as pessoas pensam que tudo é informação pública, que elas têm o direito de saber", diz ele. Não é de seu feitio fazer conjecturas e ceder a generalidades.
A declaração soa superficial e evasiva. "E a sra. Donahue tem um problema com Jack", acrescenta Benton, e o comentário me parece genuíno.
"Johnny contou a você que a mãe dele tem um problema com Jack. E por que ela teria qualquer opinião sobre ele?"
"Parte desse assunto não posso abordar." Ele olha direto para a frente enquanto dirige na via coberta de neve. A neve está caindo mais rápido; açoita os faróis dianteiros
e estala de encontro ao vidro.
Sei quando Benton está me escondendo coisas. Em geral, por mim tudo bem. Agora, não está nada bem. Sinto a tentação de extrair o envelope de seu bolso e examinar
o que alguém, ao que tudo indica a sra. Donahue, quer que eu veja.
"Você conheceu a mulher, conversou com ela?", pergunto.
"Até agora, consegui evitar, ainda que ela tenha telefonado para o hospital, tentando me localizar; telefonou várias vezes desde que ele foi admitido. Mas não convém
que eu converse com ela. Não convém que eu converse sobre muitas coisas, e sei que você entende."
"Se Jack ou alguém divulgou detalhes sobre Mark Bishop, isso é sério", retruco. "E entendo sua discrição, ou acho que entendo, mas tenho o direito de saber se ele
fez isso."
"Eu não sabia o que você sabe. Se Jack te contou alguma coisa", diz ele.
"A respeito do que especificamente?"
Não quero admitir para Benton e sobretudo para mim mesma que não consigo lembrar exatamente quando conversei com Fielding pela última vez. Nossas conversas, quando
as tivemos, foram superficiais e breves, e não o vi uma vez sequer quando estive em casa por vários dias durante as festas de fim de ano. Ele havia ido a algum lugar,
supostamente levado a família para algum lugar, mas não tenho certeza. Faz longos meses que Fielding deixou de compartilhar comigo os detalhes de sua vida pessoal.
"Deste caso especificamente, do caso de Mark Bishop", responde Benton. "Quando aconteceu, por exemplo, Jack discutiu com você?"
No sábado, 30 de janeiro, Mark Bishop, de seis anos, estava brincando em seu quintal a mais ou menos uma hora daqui, em Salem, quando alguém o atacou com pregos
na cabeça.
"Não", respondo. "Jack não conversou comigo sobre isso."
Eu estava em Dover quando o menino foi assassinado, e Fielding assumiu o caso, o que estava em completo desacordo com ele, e pensei assim na ocasião. Fielding nunca
foi capaz de lidar com crianças, mas por algum motivo decidiu lidar com isso e me chocou. No passado, se o corpo de alguma criança estivesse a caminho do necrotério,
Fielding se ausentava. Não fazia o menor sentido que ele assumisse o caso de Mark Bishop, e lamento não ter voltado para casa, que foi meu primeiro impulso. Eu deveria
ter agido de acordo com ele, mas não quis fazer a meu segundo em comando o que Briggs acabara de fazer comigo. Não quis demonstrar falta de confiança.
"Examinei o caso detalhadamente, mas Jack e eu não discutimos a respeito, ainda que com certeza eu tenha indicado que estaria à disposição se houvesse necessidade."
Sinto que estou na defensiva e detesto quando isso acontece. "Tecnicamente, o caso era dele. Tecnicamente, eu não estava aqui." Não consigo me controlar e sei que
parece fraqueza, como se eu estivesse arrumando desculpas, e me sinto irritada comigo mesma.
"Em outras palavras, Jack não compartilhou os detalhes. Quer dizer, os detalhes dele", declara Benton.
"Leve em conta onde eu estava e o que estava fazendo", tento lembrar.
"Não estou dizendo que seja culpa sua, Kay."
"O que é culpa minha? E o que você está querendo dizer com os detalhes 'dele'?"
"Estou perguntando se você fez perguntas a Jack. Se ele evitou discutir o caso com você."
"Você sabe como ele é quando se trata de crianças. Na ocasião, enviei uma mensagem dizendo que um dos outros médicos-legistas poderia lidar com aquilo, mas Jack
tomou conta do caso. Fiquei surpresa, mas foi o que aconteceu. Como já disse, examinei todos os registros. Os dele, os da polícia, os relatórios do laboratório..."
"Então, você na verdade não sabe o que está acontecendo?"
"Parece que o que você está dizendo é que não sei."
Benton fica em silêncio.
"Você sabe o que passou, além dos fatos mais recentes? Da confissão feita por Donahue?"
Tento novamente: "É claro que sei o que foi informado nos noticiários. Um estudante de Harvard confessando uma coisa dessas não poderia passar despercebido pela
imprensa. É óbvio que o que você está insinuando é que existem detalhes dos quais não fui informada".
Outra vez Benton não responde. Imagino Fielding conversando com a mãe de Johnny Donahue. É possível que ele tenha lhe fornecido detalhes de onde eu estaria hoje
à noite, e ela enviou seu motorista para me entregar um envelope, embora o motorista tenha dado a impressão de não saber que Scarpetta era uma mulher. Olho para
o casaco de camurça preta de Benton. No escuro, distingo a borda branca indistinta do envelope em seu bolso.
"Por que alguém do seu escritório falaria com a mãe da pessoa que confessou o crime?" A pergunta de Benton soa mais como uma afirmação. Parece retórica. "Temos absoluta
certeza de que nada vazou para os meios de comunicação sobre sua partida de Dover hoje, talvez por causa do novo caso?" Ele está se referindo ao homem que sofreu
o colapso em Norton's Woods. "Talvez exista uma explicação lógica para que ela saiba. Uma explicação lógica diferente de Jack. Estou tentando manter a mente aberta."
Não me parece que ele esteja tentando manter a mente aberta. Benton parece acreditar que Fielding contou à sra. Donahue por um motivo, que não faço ideia de qual
seja. A menos que seja o que Marino disse há alguns minutos, que Fielding quer que eu perca o emprego.
"Você e eu sabemos a resposta." Ouço a convicção em meu tom de voz e percebo minha certeza do que Jack Fielding seria capaz de fazer. "Que eu saiba, nada apareceu
nos noticiários. E mesmo que a sra. Donahue tenha descoberto dessa forma, isso não explica o fato de ela saber o número de cauda do helicóptero de Lucy. Não explica
como soube que eu estava chegando de helicóptero e que pousaria em Hanscom, ou a que horas."
Benton dirige-se a Cambridge em meio à nevasca de flocos cada vez menores. O vento fustiga o utilitário, com rajadas e empuxos, a noite volátil e traiçoeira.
"Só que o motorista pensou que você fosse eu", acrescento. "Percebi pelo modo como ele estava lidando com você. Ele acha que você é Scarpetta, e a mãe de Johnny
Donahue com certeza deve saber que não sou um homem."
"É difícil dizer o que ela sabe", retruca Benton. "Fielding é o legista no caso, não você. Como você mesma disse, tecnicamente não tem nada a ver com isso. Tecnicamente,
não é a responsável."
"Eu sou a chefe e, no fim das contas, a responsável. No fim do dia, todos os casos de medicina legal de Massachusetts são meus. Então tenho alguma coisa a ver com
isso, sim."
"Não foi o que eu quis dizer, mas fico satisfeito em te ouvir dizer isso."
É claro que não foi o que ele quis dizer. Não quero pensar a respeito do que ele quis dizer. Estive fora. De alguma forma, eu precisava estar em Dover e ao mesmo
tempo manter o CFC em funcionamento sem mim. Talvez fosse pedir demais. Talvez eu tenha sido programada para o fracasso.
"Estou dizendo que, desde que o CFC inaugurou, você tem sido invisível", diz Benton. "Desapareceu em um blecaute de notícias."
"Propositadamente", retruco. "O AFMES não procura publicidade."
"É claro. Não estou culpando você."
"Escolha de Briggs." Dou voz ao que suspeito que Benton pode estar insinuando.
Ele não confia em Briggs. Nunca confiou. Sempre atribuí esse fato ao ciúme. Briggs é um homem muito poderoso e intimidador, e Benton não se sente poderoso ou intimidador
desde que deixou o FBI; além disso, eu e Briggs temos um passado. Ele é uma das pouquíssimas pessoas que antecederam Benton e que continuam em minha vida. Tenho
a sensação de que mal havia acabado de me tornar adulta quando o conheci.
"O AFMES não queria que você desse entrevistas a respeito do CFC ou fizesse qualquer referência pública relacionada a Dover até que o CFC tivesse sido inaugurado
e seu treinamento fosse concluído", prossegue Benton. "Isso a manteve longe dos holofotes por algum tempo. Estou tentando lembrar a última vez em que você esteve
na CNN. Foi, pelo menos, há um ano."
"E, coincidentemente, eu devia voltar à ribalta esta noite. E, coincidentemente, tive que cancelar. Pela terceira vez, já que minha volta foi várias vezes adiada."
"É. Coincidentemente. Muitas coincidências", diz Benton.
Talvez Briggs tivesse me exposto e feito isso de propósito. Quão inteligente seria me preparar para um emprego mais importante, o mais importante até aqui, enquanto
me tornava sistematicamente menos visível? Para me silenciar. No fim das contas, para se livrar de mim. A ideia é chocante. Não acredito nela.
"Coincidências de quem, é isso que você precisa saber", diz Benton então. "E não estou dando como fato consumado que Briggs tenha feito alguma coisa maquiavélica.
Ele não é a totalidade do Pentágono. É só uma engrenagem em uma máquina muito grande."
"Sei que você antipatiza com ele."
"É com a máquina que antipatizo. Ela vai estar sempre presente. Tenha a certeza de que compreende isso para não ser triturada por ela."
A neve estala e salta de encontro ao vidro à medida que passamos por campos abertos e bosques cerrados; um córrego corre acelerado contra o parapeito à nossa direita
quando cruzamos uma ponte. O ar deve estar mais frio aqui, a neve cai miúda e gelada à medida que entramos e saímos de bolsões de tempo inconstante que julgo inquietantes.
"A sra. Donahue sabe que o legista-chefe e diretor do CFC, alguém chamado Scarpetta, é o chefe de Jack", diz Benton então. "Tinha que saber já que se deu o trabalho
de mandar te entregar alguma coisa. Mas talvez seja a única coisa que ela saiba", resume ele, propondo uma explicação para o que acaba de acontecer no aeroporto.
"Vamos examinar o que quer que seja." Quero o envelope.
"Isso devia ir para o laboratório."
"Ela sabe que eu sou chefe de Jack, mas não sabe que sou mulher." Parece absurdo, mas é possível. "Ainda que tudo que ela tivesse que fazer fosse colocar meu nome
no Google."
"Nem todos usam o Google."
Lembro como me esqueço fácil de que no mundo existem pessoas pouco sofisticadas em termos tecnológicos, inclusive alguém que pode ter um chofer e um Bentley. Suas
lanternas traseiras estão muito à nossa frente agora na via estreita de duas pistas, diminuindo e se distanciando à medida que o carro segue rápido demais para as
condições.
"Você mostrou alguma identificação ao motorista?", pergunto.
"O que você acha?"
É evidente que Benton não faria isso. "Então ele não percebeu que você não é Scarpetta."
"Não com base em nada que eu tenha feito ou dito."
"Acho que a sra. Donahue vai continuar a pensar que Jack trabalha para um homem. É estranho Jack não ter dito a ela como me encontrar nem tenha indicado como seu
motorista poderia me reconhecer, ao menos sugerido que sou uma mulher. Estranho. Não sei." Não estou convencida do que estamos pressupondo. Não parece certo.
"Eu não sabia que você estava com tantas dúvidas a respeito de Jack. Não que elas não sejam justificadas." Benton está tentando me fazer falar. É o agente do FBI
que existe dentro dele. Não o vejo há algum tempo.
"Só não venha me dizer que eu deveria saber", protesto com sentimento. "Já ouvi isso hoje o suficiente."
"Só estou dizendo que eu não sabia."
"E tudo que eu sabia era das minhas dúvidas e negações de sempre com respeito a ele", retruco. "Não tinha informações suficientes para estar mais preocupada que
o normal." É meu jeito de pedir a Benton que me dê informações suficientes se ele as tem, que não aja como policial ou como profissional da área de saúde mental.
Não retenha informação, estou pedindo.
Mas ele se segura. Não diz uma palavra. Sua atenção está voltada para a frente, seu perfil surge distinto sob a fraca claridade das luzes do painel. No nosso caso,
foi sempre assim. Contornamos informação confidencial e privilegiada. Dançamos ao redor de segredos. Às vezes, mentimos. No início, enganamos, porque Benton era
casado com outra pessoa. Ambos sabemos ludibriar. Não é algo de que me orgulhe e gostaria que isso não continuasse a ser necessário em termos profissionais. Especialmente
neste exato momento. Benton está dançando ao redor de segredos e quero a verdade. Preciso dela.
"Olha, nós dois sabemos como ele é, e realmente ando invisível desde que o CFC inaugurou", continuo. "Estive em um vácuo, fazendo o melhor possível para lidar com
tudo à distância enquanto cumpria jornadas de dezoito horas, sem tempo nem mesmo para conversar com minha equipe por telefone. Foi tudo eletrônico, na maioria das
vezes via e-mails e PDFs. Quase não vi ninguém. Eu nunca deveria ter colocado Jack no comando sob tais circunstâncias. Quando o recontratei e saí da cidade, sujeitei
todo mundo exatamente ao que aconteceu. Você me disse isso, e não foi o único."
"Você nunca quis acreditar que tem um problema sério com ele", diz Benton de um jeito que me deixa ainda mais insegura. "Mesmo que já tenha tido muitos. Às vezes
não existem provas suficientes que façam você aceitar uma verdade na qual não suporta acreditar. Não consegue ser objetiva quando se trata dele, Kay. Não sei bem
se alguma vez entendi o motivo."
"Você está certo e detesto admitir isso." Limpo a garganta e acalmo minha voz. "Sinto muito."
"Não sei se algum dia vou entender." Ele olha para mim de relance, com ambas as mãos ao volante; estamos sozinhos em uma via fustigada pela neve e mal iluminada,
dirigindo em meio à escuridão coberta de flocos de gelo. O Bentley já não é visível à frente. "Não estou te julgando."
"Ele destruiu a vida dele e precisa de mim outra vez."
"Não é culpa sua que ele tenha destruído a própria vida, a menos que você tenha deixado de me contar alguma coisa. Na verdade, aconteça o que acontecer, não seria
culpa sua. As pessoas destroem a própria vida. Não precisam dos outros para isso."
"Não é inteiramente verdade. Ele não tem culpa do que aconteceu quando criança."
"Nem você", diz Benton, como se soubesse mais sobre o passado de Fielding do que lhe contei, os poucos detalhes que conheço. Sempre tive o cuidado de não sondar
minha equipe, especialmente Fielding. Sei o suficiente a respeito das tragédias precoces pelas quais passou para dar atenção ao que ele talvez não queira discutir.
"É claro que isso parece uma bobagem", acrescento.
"Não uma bobagem. Só um drama que vai sempre acabar do mesmo jeito. Nunca entendi completamente por que você sente a necessidade de fazer esse jogo. Tenho a impressão
de que alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que você não me contou."
"Eu te conto tudo."
"Nós sabemos que isso não é verdade com relação a nenhum dos dois."
"Talvez eu deva ficar só com os mortos." Ouço a amargura em minha voz, o ressentimento se infiltrando nas barreiras que construí cuidadosamente durante a maior parte
da vida. Talvez eu já não saiba viver sem elas. "Sei lidar muito bem com os mortos."
"Não fale assim", diz Benton baixinho.
É porque estou cansada, digo a mim mesma. É por causa do que aconteceu esta manhã quando a mãe negra de um soldado negro morto me denegriu e xingou ao telefone,
dizendo que sigo não a Regra de Ouro, e, sim, a Regra dos Brancos. Depois Briggs tentou sobrepujar minha autoridade. É possível que ele tenha armado para cima de
mim. É possível que queira que eu me dê mal.
"É um estereótipo", diz Benton então.
"O engraçado é que os estereótipos normalmente se baseiam em alguma coisa."
"Não diga coisas desse tipo."
"Não vai haver mais problemas com Jack. O drama vai acabar, prometo. Supondo que ele já não tenha dado um fim nisso, que já não tenha saído do emprego. Afinal, já
fez isso antes. Ele tem que ser demitido."
"Ele não é você, nunca poderia ser, e não é seu filho." Benton acha que é simples assim, mas não é.
"Ele precisa ficar solto", retruco.
"Ele é um patologista forense de quarenta e seis anos, que nunca mereceu sua confiança nem nada que você faz por ele."
"Meu assunto com ele está encerrado."
"Seu assunto com ele está encerrado. Temo que isso seja verdade e você vá ter que deixar Fielding ir embora", diz Benton, como se a decisão já tivesse sido tomada,
como se não dependesse de mim. "Por que você se sente tão culpada?" Há alguma coisa em seu tom de voz, alguma coisa em seu comportamento. Não consigo reconhecer
o que é. "Lá atrás, em Richmond, quando você estava começando a trabalhar com ele. Por que a culpa?"
"Sinto muito ter causado tantos problemas." Eu me esquivo da pergunta. "Estou com a sensação de ter deixado todo mundo na mão. Desculpe por não estar aqui. Não consigo
expressar o quanto lamento. Assumo a responsabilidade por Jack e não vou mais permitir que isso aconteça."
"Você não pode assumir a responsabilidade por certas coisas. Certas coisas não são culpa sua e sempre vou te lembrar disso, mas você provavelmente vai continuar
acreditando que é culpada", diz meu marido, o psicólogo.
Não vou discutir o que é ou não culpa minha, pois não posso contar por que motivo sempre fui irracionalmente leal a Jack Fielding. Voltei da África do Sul e minha
penitência foi ele. Meu serviço público, o castigo que me dei. Eu estava desesperada para fazer justiça por Fielding, por estar convencida de ter prejudicado todos
os demais.
"Vou dar uma olhada." Estou me referindo ao que se encontra no bolso do casaco de Benton. "Sei como examinar uma carta sem comprometer o material e preciso ver o
que a sra. Donahue me escreveu."
Puxo o envelope segurando-o de leve pelas bordas e descubro que a aba está lacrada com fita adesiva cinza, que cobre parcialmente um endereço impresso em uma fonte
serifada em estilo antigo. Reconheço a rua em Beacon Hill, Boston, próxima ao jardim público, muito perto de onde Benton tem uma casa que está em sua família há
gerações. Na frente do envelope está escrito KAY SCARPETTA: CONFIDENCIAL, com letra elaborada, feita com caneta-tinteiro, e tenho o cuidado de não tocar mais nada
com as mãos nuas, especialmente a fita. É uma boa fonte de impressões digitais, DNA e materiais microscópicos. Impressões escondidas podem ser reveladas em superfícies
porosas tais como papel por meio de um reagente como a ninidrina.
"Tem uma faca?" Pouso o envelope no colo. "E preciso que me empreste suas luvas."
Benton estende o braço e abre o porta-luvas; no interior há um canivete multifuncional Leatherman, uma lanterna, uma pilha de guardanapos. Ele puxa um par de luvas
de camurça do bolso do casaco e minhas mãos se perdem dentro delas, mas não quero deixar impressões digitais nem apagar as de outra pessoa. Não acendo a luz interna
do carro, mas a visibilidade está ruim e continua a piorar. Iluminando com a lanterna, introduzo uma pequena lâmina em um dos cantos do envelope.
Corto ao longo do topo e extraio duas folhas dobradas de papel de carta amarelado de gramatura alta com uma marca d'água que não consigo entender claramente, mas
parece algum tipo de brasão ou insígnia de família. O cabeçalho é o mesmo endereço em Beacon Hill, e as duas páginas foram datilografadas em uma máquina de escrever
com fonte cursiva, que é algo que não vejo há muitos anos, talvez há pelo menos uma década. Leio em voz alta:
Kay Scarpetta,
Espero que desculpe o que tenho certeza de que deve parecer um gesto inconveniente e arrogante de minha parte. Mas sou uma mãe desesperada, tão desesperada quanto
é possível.
Meu filho Johnny confessou um crime que sei que ele não cometeu e que não poderia ter cometido. Ele decerto teve dificuldades ultimamente que resultaram em nossa
busca de tratamento, mas, mesmo assim, nunca manifestou problemas sérios de comportamento, nem mesmo quando comecou Harvard como um garoto introvertido e amedrontado
de quinze anos. Se era para ter um colapso nervoso, acho que teria sido nessa ocasião, quando saiu de casa pela primeira vez, sem possuir as habilidades para interagir
com as outras pessoas e fazer amigos. Ele se saiu extraordinariamente bem até o outono passado, em seu último ano, quando sua personalidade mudou de forma alarmante.
Mas ele não matou ninguém!
O dr. Benton Wesley, consultor do fbI e integrante da equipe do Hospital McLean, conhece bem o histórico e os obstáculos evolucionários, e talvez tenha a liberdade
de discutir esses detalhes com o senhor, visto que não pareceu inclinado a discuti-los com seu assistente, o dr. Fielding. A história de Johnny é longa e complexa,
e preciso que a ouca. Basta dizer que quando ele foi admitido no McLean, na segunda-feira passada, foi por ter sido considerado um perigo para si próprio. Ele não
havia ferido nenhuma outra pessoa, nem insinuado que poderia fazê-lo. Então, de repente, do nada, ele confessou esse crime odioso e terrível e foi rapidamente transferido
a uma ala trancada, para os clinicamente insanos. Pergunto ao senhor, como é possível que as autoridades tenham acreditado tão prontamente em suas histórias absurdas
e delirantes?
Preciso conversar com o senhor. Sei que sua instituicão realizou a autópsia do menino que morreu em Salem e creio que seja razoável solicitar uma segunda opinião.
É evidente que tem conhecimento da conclusão do dr. Fielding - que o assassinato foi premeditado, cuidadosamente planejado, uma execucão a sangue-frio, que foi uma
iniciacão para um culto satânico. Algo monstruoso assim é absolutamente inconsistente com qualquer coisa que meu filho poderia fazer a alguém, e ele nunca teve nada
a ver com cultos de qualquer espécie. É absurdo presumir que sua predilecão por livros e filmes de terror, sobrenaturais ou violentos o tenha influenciado dessa
maneira.
Johnny sofre da síndrome de Asperger. É espetacularmente dotado em certas áreas e completamente incompetente em outras. É obcecado por hábitos e rotinas muito rígidos,
e, em 30 de janeiro, estava tomando um brunch no Biscuit com a pessoa mais próxima dele, uma aluna de pós-graduacão de extremo talento chamada Dawn Kincaid, exatamente
como os dois fazem todas as manhãs de sábado das dez à uma da tarde. Ele não poderia, portanto, estar em Salem quando o menino foi morto, às três.
Johnny possui a extraordinária capacidade de lembrar e papagaiar os detalhes mais obscuros, e para mim está claro que o que disse às autoridades saiu direto do que
lhe contaram sobre o caso e do que apareceu nos noticiários. Ele realmente parece acreditar que é culpado (por motivos que não compreendo) e afirma até mesmo que
uma "perfuracão" em sua mão esquerda provém de um mau disparo da pistola de pregos quando ele a usou no garoto, o que é falso. O ferimento foi causado por ele mesmo,
uma perfuracão proveniente de uma faca e um dos muitos motivos por que o levamos ao McLean para início de conversa. Meu filho parece decidido a ser severamente punido
por um crime que não cometeu, e, da forma como as coisas estão caminhando, vai ter seu desejo realizado.
Abaixo estão meus números de contato. Espero que o senhor tenha compaixão e que eu receba notícias suas em breve.
Atenciosamente,
Erica
Erica Donahue
6
Devolvo as folhas do papel de carta grosso e firme ao envelope, em seguida embrulho tudo em guardanapos que encontrei no porta-luvas e coloco no compartimento com
zíper da minha bolsa. Uma das coisas que aprendi é que não é possível voltar atrás. Sempre que uma prova em potencial é cortada, contaminada ou perdida, é como a
espátula de um arqueólogo despedaçando um tesouro antigo.
"Ela não sabe que somos casados", comento enquanto as árvores se agitam ao vento ao longo da rodovia, a neve rodopiando lívida.
"Parece que não", retruca Benton.
"O filho dela sabe?"
"Não discuto você nem minha vida pessoal com os pacientes."
"Então ela não deve saber muita coisa sobre mim."
Tento imaginar como é possível que Erica Donahue não tenha dito ao motorista que a pessoa a quem ele deveria entregar a carta é uma loura miúda, não um homem alto
de cabelo grisalho.
"Ela usa máquina de escrever, supondo que tenha datilografado isso", continuo a deduzir. "Mas quem quer que se dê o trabalho de lacrar o envelope para garantir confidencialidade
provavelmente não vai deixar que outra pessoa datilografe a carta. Se ela ainda usa máquina de escrever, é pouco provável que utilize a internet ou o Google. O papel
com marca d'água, a caneta-tinteiro, a fonte manuscrita da máquina, talvez seja uma pessoa purista, muito precisa, alguém que tem uma maneira muito estabelecida
de fazer as coisas."
"Ela é uma artista", diz Benton. "Uma pianista clássica que não compartilha os interesses altamente tecnológicos do resto da família. O marido é físico nuclear.
O filho mais velho é engenheiro em Langley. E Johnny, como ela salientou, é incrivelmente talentoso. Em matemática, ciências. Ter escrito essa carta não vai ajudar
o filho. Eu gostaria que ela não tivesse feito isso."
"Você parece muito envolvido com ele."
"Detesto quando pessoas vulneráveis se tornam uma saída fácil para os outros. Só porque alguém é diferente e não age como o restante de nós deve ser culpado de alguma
coisa."
"Tenho certeza de que o promotor público de Essex não ficaria satisfeito ao ouvir você dizer isso." Parto do princípio de que foi ele quem contratou Benton para
avaliar Johnny Donahue, mas Benton não está agindo como consultor, e certamente não como consultor do gabinete do advogado distrital. Está agindo como outra coisa.
"Declarações enganosas, ausência de contato visual, confissões falsas. Um rapaz com Asperger e seu interminável isolamento e busca de amigos", diz Benton. "Não é
incomum que uma pessoa assim seja excessivamente influenciável."
"E por que alguém ia querer influenciar Johnny para que ele assumisse a culpa por um crime violento?"
"Tudo que é necessário é a sugestão de alguma coisa suspeita. Por exemplo, que estranha coincidência você falar nessa coisa de ir para Salem e depois aparecer um
menino assassinado lá. Tem certeza de que você se machucou quando prendeu a mão na gaveta, ou aconteceu de outro jeito e você não está lembrado? As pessoas veem
culpa, então Johnny também vê. Ele é levado a dizer o que acha que os outros querem ouvir e a acreditar no que acha que querem acreditar. Não tem nenhuma compreensão
das consequências do seu comportamento. Pessoas com síndrome de Asperger, em especial adolescentes, estão estatisticamente sobrerrepresentadas entre gente inocente
que é presa e condenada."
Os flocos de neve aumentam de repente e voam selvagemente como pétalas de corniso sob efeito do vento forte. Benton reduz a marcha no tiptronic e pisa de leve no
freio.
"Talvez seja melhor encostar." Não enxergo a rodovia; os faróis refletem a brancura que enxameia ao nosso redor.
"É só um foco de tempestade, como uma microprecipitação." Ele debruça-se sobre o volante, olhando direto para a frente, enquanto somos fustigados por rajadas de
vento ameaçadoras. "Acho que é melhor passar por isso."
"Talvez seja melhor parar."
"Estamos em uma via asfaltada. Estamos na pista. Não tem nada vindo." Ele checa os espelhos. "Nada atrás de nós."
"Espero que você esteja certo." Não me refiro apenas à neve. Tudo parece ameaçador, como se forças sinistras nos rodeassem, como se estivéssemos sendo advertidos.
"Não foi uma coisa inteligente. Foi bem-intencionada, mas não inteligente." Benton dirige bem devagar através da brancura caótica. "É uma opinião, mas não vai ser
útil. É melhor você não telefonar para ela."
"Vou ter que mostrar a carta à polícia", retruco. "Ou pelo menos contar a respeito, para eles decidirem o que querem fazer."
"Ela só piorou a situação." Ele diz isso como se fosse o responsável. "Não se envolva nisso, telefonando para ela."
"Além de tentar influenciar o serviço médico legal, de que forma ela piorou a situação?", pergunto.
"Vários pontos-chave estão incorretos. Johnny não lê terror, sobrenatural ou violento, nem assiste a filmes desse tipo, não que eu saiba, pelo menos, e esse detalhe
não vai ajudar. Além disso, Mark Bishop não foi assassinado às três. Foi por volta das quatro. A sra. Donahue pode não se dar conta do que acaba de insinuar a respeito
do filho", diz Benton à medida que a ventania branca termina de forma tão repentina quanto começou.
Os flocos estão outra vez pequenos e gelados, rodopiando como areia sobre o asfalto e formando pequenos montes na beira da rodovia.
"Johnny estava no Biscuit com a amiga, isso é verdade", prossegue Benton, "mas, segundo ele, ficou lá até as duas, não até uma. Aparentemente, os dois vão bastante
lá, mas não estou ciente de ter um sistema rígido de ir ao Biscuit todos os sábados com ela das dez à uma."
O Biscuit fica na Washington Street, a apenas quinze minutos de caminhada de nossa casa em Cambridge, e penso nos sábados em que Benton e eu entramos no pequeno
café com cardápio escrito no quadro-negro e bancos de madeira. Pergunto-me se Johnny e sua amiga alguma vez estiveram lá quando Benton e eu estávamos presentes.
"O que a amiga diz sobre a hora em que eles saíram do café?", pergunto.
"Ela alega que se levantou da mesa por volta da uma da tarde e saiu, deixando ele sentado lá porque estava agindo de forma estranha e se recusou a ir com ela. Segundo
a declaração dela à polícia, Johnny estava falando em ir até Salem para ler sua sorte, estava falando desenfreadamente nisso e continuava sentado à mesa quando ela
saiu."
Acho interessante que Benton tenha examinado uma declaração à polícia ou conheça os detalhes do que disse uma testemunha. Seu papel não é determinar culpa ou inocência,
nem se preocupar com isso, mas avaliar se o paciente está dizendo a verdade e está apto a ir a julgamento.
"Alguém com Asperger teria dificuldade diante do conceito de leitura de cartas ou qualquer coisa dessa natureza", Benton diz, e quanto mais ele relata, mais perplexa
fico.
Benton está falando comigo como se fosse um detetive e estivéssemos trabalhando juntos no caso, ainda que seja enigmático quando se trata de Jack Fielding. Não há
nada de casual nisso. Meu marido raramente deixa escapar informação, mesmo que aparente o contrário. Quando acha que devo tomar conhecimento de alguma informação
que não pode me contar, ele descobre um jeito de fazer com que eu descubra. Quando decide que é melhor que eu não saiba, ele não me ajuda. É dessa forma frustrante
que vivemos e posso ao menos dizer que nunca fico entediada com ele.
"Johnny não consegue pensar de forma abstrata, não consegue entender metáforas. Ele é muito concreto", diz Benton.
"E as outras pessoas no café?", pergunto. "Alguém poderia confirmar o que a amiga relatou ou o que Johnny afirma?"
"Nada mais conclusivo que ele e Dawn Kincaid terem ficado lá na manhã de sábado", responde Benton, e não me recordo de tê-lo visto tão preocupado com alguém que
avaliou. "Desconheço que isso fosse uma rotina semanal e, quando Johnny confessou, vários dias já haviam se passado. É incrível como as pessoas não se lembram das
coisas, e então começam a fazer suposições."
"Tudo que você tem é o que Johnny está dizendo e agora o que a mãe dele escreveu", reitero. "Johnny diz que saiu do Biscuit às duas, então não teria tempo de ir
até Salem e cometer o assassinato por volta das quatro. Mas a mãe dele diz que saiu à uma, e aí ele teria tempo suficiente."
"Como eu disse, isso não vai ajudar. O conteúdo da carta é muito ruim para ele. Até agora, o único álibi que mostraria que a confissão é conversa fiada é a cronologia.
Mas uma hora poderia fazer toda a diferença."
Imagino Johnny erguendo-se da mesa no Biscuit por volta da uma da tarde e dirigindo-se a Salem. Dependendo do tráfego e de quando ele de fato saiu de Cambridge ou
de Somerville e seguiu rumo ao norte pela I-95, pode ter chegado à casa dos Bishop por volta das duas, duas e meia.
"Johnny tem carro?", pergunto.
"Ele não sabe dirigir."
"Um táxi, o trem? Não a balsa nesta época do ano. Só começa a funcionar na primavera, e ele teria que embarcar em Boston. Mas você está certo. Sem carro, Johnny
levaria mais tempo para chegar lá. Uma hora faria diferença para alguém que precisava procurar transporte."
"Só não entendo onde ela conseguiu esse detalhe", diz Benton. "Bom, talvez através dele. Talvez ele tenha mudado a história novamente. Johnny disse que saiu do Biscuit
às duas, não à uma, mas talvez tenha alterado esse detalhe bastante decisivo porque acha que é o que alguém quer ouvir. Mas seria esquisito, muito esquisito."
"Você esteve com ele esta manhã."
"Eu não o influenciaria a alterar um detalhe."
Benton está dizendo que o detalhe é novo e que não acredita que Johnny tenha mudado sua história no que diz respeito à hora em que deixou o café. Parece que a sra.
Donahue simplesmente cometeu um engano, mas, quando tento imaginar a situação, parece estranho.
"De todo jeito, como ele teria chegado a Salem?", pergunto.
"Ele pode ter pegado um táxi ou o trem, mas também não existem provas de que tenha feito isso. Não foi visto por ninguém, não foram encontrados recibos, nada que
prove que já esteve em Salem ou que tinha alguma ligação com a família Bishop. Não há nada a não ser a confissão", diz Benton, enquanto seus olhos se deslocam para
o espelho retrovisor. "A história dele é exatamente o que tem saído nos noticiários, e Johnny modifica os detalhes conforme as notícias e teorias mudam. Essa parte
da carta da mãe está certa. Ele papagueia os detalhes palavra por palavra. Inclusive se alguém sugere um novo cenário ou informação - se o comanda, em outras palavras.
Sugestionabilidade, vulnerabilidade à manipulação, agir de forma a gerar desconfiança são sinais inconfundíveis da síndrome de Asperger." Ele torna a olhar de relance
para o espelho. "E atenção aos detalhes, a minúcias que podem parecer esquisitas para os outros. Como a hora. Ele sempre sustentou que saiu do Biscuit às duas da
tarde. Duas e três, para ser exato. Você pergunta a Johnny que horas são ou a que horas ele fez alguma coisa e ele vai informar com a precisão de segundos."
"Então por que mudaria esse detalhe?"
"Na minha opinião, não mudaria."
"Se ele realmente quer que as pessoas acreditem que assassinou Mark Bishop, parece que o melhor seria dizer que saiu mais cedo."
"Não é que queira que as pessoas acreditem nisso. É que ele acredita nisso. Não por causa daquilo que lembra, mas por causa do que não lembra e por causa do que
tem sido sugerido."
"Por quem? Parece que Johnny confessou antes mesmo de se tornar um suspeito e ser interrogado. Portanto, não foi induzido a uma falsa confissão pela polícia, por
exemplo."
"Ele não lembra. Está convencido de que sofreu um episódio dissociativo depois que saiu do Biscuit às duas da tarde, de alguma forma chegou a Salem e matou o garoto
com uma pistola de pregos..."
"Ele não fez isso", interrompo. "Garanto. Ele não matou Mark Bishop com uma pistola de pregos. Ninguém matou."
Benton nada diz à medida que acelera, os flocos de neve pequenos novamente, parecendo brita de encontro ao carro.
"Além disso, é evidente que a sra. Donahue interpretou mal a opinião médica de Jack." Falo com convicção enquanto outra parte minha não para de se preocupar com
a forma como devemos lidar com ela. Cogito fazer o que disse Benton e não telefonar. Em vez disso, vou pedir a meu assistente administrativo, Bryce, que faça contato
com ela cedo pela manhã para dizer que lamento, mas não estou autorizada a discutir o caso de Mark Bishop ou nenhum outro. É importante que Bryce não dê a impressão
de que estou muito ocupada, de que estou impassível diante da angústia da sra. Donahue, o que me faz pensar novamente na mãe do soldado de primeira classe Gabriel,
nas coisas dolorosas que ela me disse de manhã em Dover. "Imagino que você tenha examinado o relatório da autópsia", digo a Benton.
"Examinei."
"Então você sabe que não há nada no relatório de Jack que mencione uma pistola de pregos, só que ferimentos causados por pregos, que penetraram o cérebro, foram
a causa da morte." Concluo que não posso permitir que Bryce faça uma chamada como essa em meu nome. Eu mesma vou telefonar e pedir à sra. Donahue que não entre em
contato comigo novamente. Vou enfatizar que é para sua própria proteção. Então me sinto cheia de dúvidas, indo e voltando a respeito do que fazer, já não tão segura
de mim. Sempre tive confiança em minha capacidade de lidar com gente inconsolável, despojada e furiosa, mas não entendo o que aconteceu esta manhã. A sra. Gabriel
me chamou de preconceituosa. Ninguém nunca me chamou de preconceituosa.
"Uma pistola de pregos não foi descartada pelas pessoas que contam", informa Benton. "Inclusive Jack."
"Acho isso quase impossível de acreditar."
"Foi o que ele andou dizendo."
"É a primeira vez que ouço isso."
"Jack disse para todo mundo. Não me interessa o que está escrito no relatório dele, na papelada que você viu", repete Benton enquanto olha pelo retrovisor.
"Por que ele diria algo diferente dos relatórios?"
"Estou simplesmente retransmitindo a você que sei com certeza que ele andou dizendo que uma pistola de pregos foi a arma."
"Dizer que foi usada uma pistola de pregos é absolutamente contrário a provas científicas e médicas." No espelho lateral, vejo faróis atrás de nós. "Uma pistola
de pregos deixa marcas consistentes com um único golpe mecanizado, semelhante à impressão de um gatilho na cápsula de um cartucho. Em vez disso, o que temos nesse
caso são as marcas de um instrumento sobre pregos, que são consistentes com um martelo de mão, e havia marcas de martelo no couro cabeludo e no crânio do garoto,
além de contusões de padrão compatível. As pistolas de pregos muitas vezes deixam um resíduo semelhante ao de um tiro, mas os ferimentos de Mark Bishop deram negativo
para chumbo e bário. Não foi usada uma pistola de pregos e estou francamente surpresa se o que você está insinuando é que a polícia e o promotor acreditam no contrário."
"Não é difícil entender algumas coisas em que as pessoas optam por acreditar nesse caso", diz Benton e acelera, atingindo o limite de velocidade.
Torno a olhar para o espelho lateral e os faróis estão muito mais próximos. Luzes brilhantes branco-azuladas resplandecem. Um SUV grande, com faróis de xenônio e
de neblina. Marino, penso. E atrás dele, espero, está Lucy.
"E querem acreditar que a confissão de Johnny é verdadeira, como eu disse", prossegue Benton. "Querem achar que foi um ataque de surpresa, que Mark Bishop não imaginava
que isso ia acontecer, ou teria lutado. Ninguém quer pensar que uma criança foi subjugada e sabia o que ia acontecer enquanto alguém enfiava pregos em seu crânio
com um martelo, pelo amor de Deus."
"Ele não tinha nenhum ferimento de defesa, não havia evidências de luta ou de sujeição. Está no relatório de Jack. Tenho certeza de que você viu, e tenho certeza
que ele explicou tudo isso ao promotor, à polícia."
"Quem me dera você tivesse feito a autópsia." Benton desvia o olhar para os espelhos.
"O que exatamente Jack andou dizendo além do que li? Além da possibilidade da pistola de pregos?"
Benton não responde.
"Talvez você não saiba", acrescento então, mas acho que sabe.
"Ele disse que não podia descartar a pistola de pregos", esclarece Benton. "Disse que não é possível afirmar de forma definitiva. Disse isso depois que foi questionado
por causa do que Johnny alegou na confissão. Jack foi específica e diretamente questionado se uma pistola de pregos poderia ter sido usada."
"A resposta é definitivamente não."
"Ele garantiu que não era possível dizer de forma definitiva nesse caso. Que pode ter sido uma pistola de pregos."
"Estou te dizendo que não é possível, e que é possível afirmar de forma definitiva", retruco. "E essa foi a primeira vez que ouvi falar de uma pistola de pregos,
a não ser pelo que foi publicado na internet, que descartei, como descarto sempre, a menos que confie na fonte."
"Jack sugeriu que, se você pressionasse uma pistola de pregos contra a cabeça de alguém, obteria uma ferida de contato similar à produzida pelo disparo de uma arma
de fogo. E é possível que seja o que observamos no couro cabeludo e no tecido subjacente. E isso explicaria por que não há evidência de luta ou de que o garoto soubesse
o que estava acontecendo."
"Você não obteria uma ferida de contato similar ao disparo de uma arma de fogo e não é possível", retruco. "Os ferimentos que vi em fotografias são marcas de martelo,
e só porque não havia evidência de luta não significa que o menino não tenha sido de alguma forma coagido, persuadido ou manipulado no sentido de cooperar. Parece
que certas partes estão optando por ignorar as provas do caso por causa daquilo em que querem acreditar. Isso é extremamente perigoso."
"Acho que é Fielding quem está ignorando as provas do caso. Talvez intencionalmente."
"Meu Deus, Benton. Ele pode ser um monte de coisas..."
"Ou é negligência. Um ou outro", diz Benton e creio que ele tem alguma coisa em mente. "Escute. Você fez o melhor que pôde nos últimos seis meses."
"O que isso quer dizer?" Sei o que quer dizer. Exatamente o que temi todos os dias em que estive fora.
"Lembra quando ele era seu amigo na idade das trevas, em Richmond?" Benton está se aproximando de uma zona proibida, mesmo que não saiba disso. "Desde o primeiro
dia, ele não suportava trabalhar com crianças, isso é a mais absoluta verdade, como você já apontou. Quando entrava uma, ele desaparecia no ato, às vezes durante
dias seguidos. E você circulava de carro, tentando encontrar Jack, indo à casa dele, ao seu bar preferido, à academia ou ao tae kwon do, e ele bebia até cair ou
quase matava alguém de porrada. Não que algum de nós goste de lidar com crianças mortas, pelo amor de Deus, mas ele tinha um problema sério."
Eu deveria ter incentivado Fielding a ingressar na patologia cirúrgica, a trabalhar em algum laboratório hospitalar, fazendo biópsias. Em vez disso, fui sua mentora
e o promovi.
"Mas ele pegou o caso de Mark Bishop", diz Benton. "Poderia ter passado o garoto para um dos outros médicos. Só espero que ele não tenha mentido; acima de tudo,
realmente espero que ele não tenha feito isso." Mas Benton acha que Fielding está mentindo. Dá para notar.
"Acima do quê?", pergunto enquanto olho para o espelho lateral, perguntando-me por que Marino está colando no nosso para-choque.
"Espero que não tenha sido incentivado a sugerir a possibilidade da pistola de pregos quando ele sabe que é impossível." Benton tem o hábito de olhar para os espelhos
sem mover a cabeça. Devido a todos os anos de trabalho como agente secreto, vigiando as próprias costas. Certos hábitos nunca desaparecem.
"Quem?", pergunto.
"Não sei."
"Você parece saber. Mas não vai me dizer." Não adianta pressioná-lo. Se não diz, é porque não pode. Vinte anos dessa dança e nunca fica mais fácil.
"Os policiais querem o caso resolvido, isso é certo", diz Benton. "Querem que a pistola de pregos seja a arma porque foi o que Johnny confessou e porque é mais fácil
de lidar com essa ideia do que com a do martelo. Mas me preocupo com a influência sobre Jack."
"Você sabe que alguém o influenciou? Ou é só uma hipótese?"
"Acho que ele está influenciando as pessoas", diz Benton em seguida, e é isso o que realmente pensa.
"Queria que Marino saísse da nossa cola. Esses faróis estão me cegando. O que ele está fazendo?"
"Não é Marino", diz Benton. "Ele não tem faróis assim e tem placa dianteira. Esse carro não. É de um estado que não exige placa dianteira, ou então ela foi removida
ou coberta."
Viro-me para ver e os faróis ferem meus olhos. O utilitário está a pouca distância de nós.
"Talvez seja alguém tentando ultrapassar", reflito em voz alta.
"Vamos ver. Mas acho que não." Benton reduz a velocidade e o utilitário faz o mesmo. "Então vou te obrigar a nos ultrapassar, o que acha?" Ele está falando com o
motorista atrás de nós. "Pegue o número da placa traseira quando ele passar."
Quase paramos, e o utilitário também. Dá uma ré rápida e uma guinada de cento e oitenta graus, seguindo em sentido contrário, rabeando à medida que acelera noite
adentro na rodovia coberta de neve. Não consigo distinguir a placa na traseira nem qualquer detalhe do utilitário, exceto que é escuro e grande.
"Por que alguém estaria nos seguindo?", pergunto a Benton como se ele soubesse a resposta.
"Não faço ideia do que tenha sido isso."
"Alguém estava nos seguindo. Foi isso. Muito de perto por causa do tempo, porque a visibilidade está tão ruim que você tem que ficar perto ou pode perder a pessoa
de vista se ela fizer uma curva."
"Algum idiota", diz Benton. "Ninguém sofisticado. A menos que quisesse que a gente soubesse, ou tenha pensado que não íamos perceber."
"Como é possível? Acabamos de passar por uma nevasca. De onde esse carro saiu? Do nada?"
Benton pega seu telefone e tecla um número.
"Onde você está?", pergunta a quem quer que tenha atendido. Após uma pausa, acrescenta: "Um utilitário grande com faróis de neblina e xenônio, sem placa dianteira,
colado na gente. Isso mesmo. Fez a volta e disparou em sentido contrário. Isso, na Rota Dois. Algum carro assim passou por você? Bom, é estranho. Ele deve ter entrado
em algum desvio. Bom, se... Certo. Obrigado."
Benton recoloca o telefone no console e explica: "Marino está alguns minutos atrás de nós, e Lucy está logo atrás dele. O utilitário desapareceu. Se alguém foi idiota
o suficiente para nos seguir, vai tentar outra vez e vamos descobrir. Se o objetivo é nos intimidar, então quem quer que seja não conhece o alvo".
"Agora nós somos alvos."
"Alguém mais esperto não tentaria isso."
"Por sua causa."
Benton não responde. Mas o que eu disse é verdade. Quem sabe alguma coisa sobre Benton estaria ciente do quão imprudente é achar que ele pode ser intimidado. Sinto
sua rispidez, sua aura dura como aço. Sei o que ele é capaz de fazer quando ameaçado. Ele e Lucy são parecidos. Recebem com prazer o confronto. Benton só é mais
calmo, mais calculista e contido que minha sobrinha.
"Erica Donahue." É o primeiro pensamento que me vem à mente. "Ela já mandou uma pessoa nos interceptar e duvido que perceba quão perigoso é o bonito e charmoso psicólogo
de Harvard que atende o filho dela."
Benton não sorri. "Isso não tem lógica."
"Quantas pessoas sabem do nosso paradeiro?" Não faz sentido tentar aliviar o clima, que é tenso. Benton tem seu próprio esquema de vigilância. É diferente do esquema
de Lucy, e ele esconde muito melhor. "Ou do meu paradeiro. Quantas pessoas sabem?", continuo. "Não só a mãe ou o motorista. O que Jack fez?"
Benton torna a acelerar e não responde.
"Você não acha que Jack tem algum motivo para nos intimidar, não é? Ou tentar", digo então.
Benton não responde e seguimos em silêncio; não há sinal do utilitário com faróis de neblina e xenônio.
"Lucy acha que ele está bebendo muito." Benton por fim recomeça a falar. "Mas você deve ouvir isso dela. E de Marino." Seu tom de voz é monótono e percebo falta
de clemência nele. Não sente nada além de desprezo por Fielding, mesmo que silencie a respeito na maioria das vezes.
"Por que Jack ia mentir? Por que tentaria influenciar alguém?" Estou de volta a esse tópico.
"Aparentemente, ele tem chegado tarde e desaparecido, e está com problemas de pele outra vez." Benton não responde minha pergunta. "Espero que não esteja tomando
esteroides, especialmente na idade dele."
Abro mão da defesa habitual de que quando Fielding está intensamente estressado tem problemas de eczema e alopecia que não consegue evitar. Ele sempre foi obcecado
pelo próprio corpo, é um caso clássico de vigorexia ou transtorno dismórfico muscular, e muito provavelmente isso pode ser atribuído ao abuso sexual que sofreu quando
menino. Seria absurdo percorrer a lista, e não vou fazê-lo dessa vez. Para variar. Continuo a inspecionar o espelho lateral. Mas os faróis de xenônio e neblina se
foram.
"Por que ele ia mentir sobre esse caso?", torno a perguntar. "Por que ia querer influenciar qualquer um?"
"Não consigo imaginar como é possível fazer uma criança ficar parada para aquilo", diz Benton, e ele está pensando na morte de Mark Bishop. "A família estava em
casa e diz que não ouviu gritos, não ouviu nada. Eles alegam que Mark estava brincando num minuto e no outro estava caído de bruços no quintal. Estou tentando visualizar
o que aconteceu e não consigo."
"Tudo bem. Vamos conversar sobre isso, já que você não vai responder minha pergunta."
"Tentei imaginar o ocorrido, tentei reconstruir a situação e não consegui. A família estava em casa. Não é um quintal grande. Como é possível que ninguém tenha visto
uma pessoa ou ouvido alguma coisa?"
Seu rosto está sombrio quando passamos pelo Lanes & Games, onde Marino joga boliche. Como se chama a equipe? Não poupe ninguém. Seus novos amigos, policiais e militares.
"Pensei que já tivesse visto tudo, mas não consigo imaginar como aconteceu", Benton continua nesse assunto porque não pode ou não vai me falar o que de fato tem
em mente a respeito de Fielding.
"Uma pessoa que sabia exatamente o que estava fazendo." Visualizo a cena. Imagino em detalhes penosos o que o assassino executou. "Alguém que conseguiu deixar o
garoto à vontade, talvez o tenha seduzido para que fizesse o que pedia. Talvez Mark tenha pensado que aquilo fazia parte de um jogo, uma fantasia."
"Um estranho apareceu no quintal e fez com que o menino participasse de um jogo que envolvia ter pregos martelados em sua cabeça - ou fingir que isso estava ocorrendo,
o que é mais provável", reflete Benton. "Talvez. Mas um estranho? Não sei. Senti falta de conversar com você."
"Não foi um estranho, ou pelo menos não para Mark. Desconfio que tenha sido alguém de quem ele não tinha motivos para desconfiar - não importa o que a pessoa tenha
lhe pedido para fazer." Tomo por base o que sei a respeito de seus ferimentos ou da ausência deles. "O corpo não mostrava sinais de que ele estivesse aterrorizado
ou em pânico, de alguém tentando lutar ou fugir. Acho que é provável que estivesse familiarizado com o assassino e se sentisse inclinado a cooperar por algum motivo.
Também senti falta de conversar com você, mas estou aqui agora e você não está conversando comigo."
"Estou conversando com você."
"Um dia desses vou colocar pentotal sódico na sua bebida. E descobrir tudo que você nunca me contou."
"Se funcionasse, eu pagaria na mesma moeda. Mas então nós dois teríamos problemas sérios. Você não quer saber tudo. Ou não deve. E eu provavelmente também não."
"Quatro da tarde de 30 de janeiro." Estou pensando em quão escuro estava quando Mark foi assassinado. "A que horas o sol se pôs? Como estava o tempo?"
"Estava completamente escuro às quatro e meia, frio, nublado", diz Benton, que, se estivesse investigando o caso, teria se informado sobre esses detalhes antes de
qualquer outra coisa.
"Estou tentando lembrar se havia neve no chão."
"Não em Salem. Muita chuva por causa do porto. A água aquece o ar."
"Então ninguém recuperou pegadas no quintal dos Bishop."
"Não. Às quatro estava escurecendo e o quintal estava na sombra dos arbustos e árvores", informa Benton como se fosse o detetive no caso. "De acordo com a família,
a sra. Bishop, a mãe, saiu às quatro e vinte para chamar Mark para entrar e encontrou o menino caído de bruços em cima das folhas."
"Por que estamos supondo que ele tinha acabado de ser morto quando a mãe o encontrou? Os achados físicos com certeza não permitem precisar a hora da morte exatamente
às quatro da tarde."
"Pelo fato de que os pais se recordam de ter olhado pela janela aproximadamente às quinze para as quatro e terem visto Mark brincando", esclarece Benton.
"Brincando? O que isso quer dizer exatamente? Que tipo de brincadeira?"
"Não sei ao certo." Benton e sua atitude evasiva outra vez. "Eu gostaria de conversar com a família." Desconfio que já tenha conversado. "Há um monte de detalhes
faltando. Mas ele estava brincando sozinho no quintal e, quando a mãe olhou pela janela por volta das quatro e quinze, não viu o filho. Então saiu para chamar o
garoto e o encontrou. Tentou acordar o menino, depois o pegou e levou correndo para dentro. Ligou para a emergência exatamente às quatro e vinte e três, estava histérica,
disse que o filho não estava se mexendo nem respirando, que estava preocupada que ele estivesse engasgado."
"Por que ela achou que ele pudesse estar engasgado?"
"Aparentemente, antes de sair para brincar, ele enfiou no bolso algumas balas que tinham sobrado do Natal. Balas duras, e a última coisa que ela disse ao filho quando
ele saiu porta afora foi para não chupar enquanto estivesse correndo ou pulando."
Não posso evitar pensar que esse é o tipo de detalhe que Benton teria obtido dos Bishop em pessoa. Conversou com eles.
"E não sabemos do que estava brincando? Ele estava sozinho, correndo e pulando?", pergunto.
"Acabei envolvido nesse caso depois que Johnny confessou." Benton está sendo evasivo novamente. Por algum motivo, não quer conversar a respeito do que Mark estava
fazendo no quintal. "A sra. Bishop disse mais tarde à polícia que não viu ninguém na área, que não havia sinais de que tivesse entrado na propriedade e que não sabia,
até os médicos o examinarem, que ele tinha sido assassinado. Os pregos foram martelados até o fundo; o cabelo escondeu e não havia sangue. E os sapatos desapareceram.
Ele estava com tênis Adidas enquanto brincava no quintal. Eles sumiram e ainda não apareceram."
"Um menino brincando no quintal perto de escurecer. Mais uma vez, é difícil imaginar que fosse cooperar com um estranho. A menos que fosse alguém que representava
alguma coisa em que ele instintivamente confiava." Continuo a defender essa tese.
"Um bombeiro. Um policial. O cara que dirige o caminhão de sorvete. Esse tipo de coisa", Benton reflete com facilidade, como se fosse seguro conversar sobre isso.
"Ou pior. Um membro da própria família."
"Um membro da família mataria o garoto de forma tão sádica e depois tiraria seus sapatos? Tirar os sapatos dá a ideia de que o assassino queria uma lembrança."
"Ou queria que pensassem nisso", diz Benton.
"Não sou psicóloga forense", digo então. "Estou desempenhando seu papel e não devia fazer isso. Eu gostaria de ver onde aconteceu. Jack não foi à cena do crime e
devia ter feito uma visita retrospectiva." Meu humor piora quando digo isso. Ele não foi à cena de Mark Bishop e não foi a Norton's Woods.
"Ou outro garoto. Crianças jogando um jogo que acabou se tornando mortal", diz Benton.
"Se foi outro garoto", retruco, "estava muito bem informado em termos anatômicos."
Visualizo as fotografias da autópsia, a cabeça do garoto com o couro cabeludo iluminado por trás. Visualizo as tomografias computadorizadas, imagens tridimensionais
de quatro pregos de ferro de cinco centímetros penetrando o cérebro.
"Quem quer que tenha feito isso não podia ter escolhido posições mais letais para introduzir os pregos", explico. "Três atravessaram o osso temporal acima da orelha
esquerda e penetraram a ponte. Um foi pregado na parte posterior do crânio, direcionado para o alto, então lesionou a junção cérvico-medular, ou a medula cervical
superior."
"Em quanto tempo ele morreu?"
"Quase instantaneamente. Só o prego na parte posterior da cabeça o teria matado em minutos, tanto quanto uma pessoa leva para morrer quando não consegue mais respirar.
Lesões nos níveis C-1 e C-2 da medula espinhal interferem na respiração. A polícia, o promotor, um corpo de jurados, por sinal, teriam dificuldade em acreditar que
outra criança poderia ter feito isso. Parece que causar a morte, a morte quase imediata, era a intenção, e o ato foi premeditado, a menos que houvesse martelo e
pregos na cena do crime, no quintal ou na casa e, segundo todos os registros, não havia. Certo?"
"Havia um martelo. Mas que casa não tem um martelo? E as marcas da ferramenta não coincidem. Você sabe disso pelos relatórios do laboratório. Não havia pregos como
os que mataram o menino. Não foram encontrados na residência da família, nem uma pistola de pregos", informa Benton.
"Eram pregos em L, usados para pregar assoalhos."
"Segundo a polícia, nenhum prego desses foi encontrado na residência", repete ele.
"Ferro, não aço inoxidável." Prossigo com detalhes das fotografias, dos relatórios do laboratório, e simultaneamente ouço a mim mesma, estou ciente de que examino
o caso com Benton como se fosse meu. Como se fosse dele. Como costumávamos investigar casos no início do relacionamento. "Com traços de ferrugem apesar da camada
protetora de zinco, o que sugere que não eram novos", continuo. "Que talvez tivessem sido expostos a umidade, possivelmente água salgada."
"Não havia nada assim na cena do crime. Nenhum prego em L, absolutamente nenhum prego de ferro", diz Benton. "O pai andou espalhando o boato da pistola de pregos,
pelo menos publicamente."
"Publicamente. O que significa que ele contou à imprensa", presumo.
"Isso."
"Mas quando? Ele contou à imprensa quando? É isso que importa. De onde saiu o boato e quando. Sabemos que isso começou com o pai, e, se foi assim, é significativo.
Pode implicar que está oferecendo um álibi, sugerindo uma arma que não possui, que está tentando conduzir a polícia na direção errada."
"Concordo", diz Benton. "O sr. Bishop pode ter sugerido isso aos meios de comunicação, mas a questão é: alguém sugeriu isso a ele primeiro?"
Detecto mais sutilezas. Ocorre-me que Benton sabe como o boato da pistola de pregos começou. Sabe quem o originou e não é difícil adivinhar o que ele está insinuando.
Jack Fielding está tentando influenciar as pessoas sobre o caso. Talvez esteja por trás do boato que agora está em todos os noticiários.
"Devíamos fazer uma retrospectiva. Estou tentando lembrar o nome do detetive em Salem." Há tanto por fazer, tanta coisa que deixei escapar. Mal sei por onde começar.
"Saint Hilaire. James."
"Não conheço." Sou uma estranha em minha própria vida.
"Ele está convencido da culpa de Johnny Donahue e estou realmente preocupado que seja só uma questão de tempo até que Johnny seja acusado de assassinato em primeiro
grau. Precisamos agir rápido. Quando Saint Hilaire ler o que a sra. Donahue escreveu, as coisas vão piorar. Ele vai ficar mais convencido da culpa de Johnny. Temos
que fazer alguma coisa rápido", diz Benton. "Eu não devia me preocupar, mas me preocupo. Johnny não fez isso e nenhum júri vai gostar dele. Ele é inconveniente.
Interpreta mal as pessoas e elas o interpretam mal. Acham que é insensível e arrogante. Ri de coisas que não são engraçadas. É rude e obtuso, e não faz ideia disso.
A coisa toda é absurda. Uma caricatura. Provavelmente, um dos exemplos de confissão falsa mais claros que já vi."
"Então por que continua em uma unidade fechada no McLean?"
"Ele precisa de tratamento psiquiátrico, mas não, não devia estar trancafiado em uma unidade com pacientes psicóticos. Essa é minha opinião, mas ninguém me dá ouvidos.
Talvez você possa falar com Renaud e Saint Hilaire e eles te ouçam. Vamos até Salem e analisamos o caso com eles. Enquanto estivermos lá, damos uma olhada em tudo."
"E o colapso nervoso de Johnny?", pergunto. "Se acreditarmos na mãe, ele estava bem nos primeiros três anos em Harvard e de repente teve que ser hospitalizado. Quantos
anos Johnny tem?"
"Dezoito. Voltou a Harvard no outono passado para começar o último ano e estava visivelmente alterado", explicou Benton. "Verbal e sexualmente agressivo e cada vez
mais agitado e paranoico. Com o pensamento desorganizado e as percepções distorcidas. Sintomas semelhantes à esquizofrenia."
"Drogas?"
"Não existe absolutamente nenhuma evidência. Ele foi submetido a exames quando confessou o assassinato e deram negativo; até seu cabelo deu negativo para drogas
e álcool. Sua amiga da pós, Dawn Kincaid, está no MIT, e ela e Johnny estavam trabalhando juntos em um projeto. Ela ficou tão preocupada que por fim ligou para a
família dele. Isso foi em dezembro. Então, há uma semana, Johnny foi internado no McLean com uma facada na mão e disse ao psiquiatra que tinha assassinado Mark Bishop,
alegando que pegou o trem para Salem levando uma pistola de pregos na mochila. Disse que precisava de um sacrifício humano para se livrar de uma entidade maligna
que tinha assumido o controle de sua vida."
"Por que pregos? Por que não outra arma?"
"Tem alguma coisa a ver com os poderes mágicos do ferro. E grande parte disso apareceu no noticiário."
Eu me lembro de ter visto alguma coisa na internet sobre osso do diabo e menciono o fato.
"Exatamente. É como o ferro era chamado no antigo Egito", retruca Benton. "Vendem osso do diabo em algumas lojas em Salem."
"Dispostos em X. A pessoa carrega em uma bolsa de cetim vermelho. Já vi em algumas lojas de bruxaria. Mas não o mesmo tipo de pregos. Os das lojas de bruxaria parecem
mais cravos, têm que parecer antiguidade. E duvido que sejam tratados com zinco, que sejam galvanizados."
"Supostamente, o ferro protege contra espíritos malignos, daí a explicação dele para ter usado pregos de ferro. E a história não tem nada de original; como você
já sinalizou, foi uma das teorias que apareceram em todos os noticiários nos dias que antecederam a confissão dele do assassinato." Benton faz uma pausa, depois
acrescenta: "Sua própria repartição sugeriu a magia negra como motivador, aparentemente por causa da ligação com Salem".
"Não é nosso trabalho apresentar teorias. Nosso trabalho é sermos imparciais e objetivos, então não sei o que você está querendo dizer quando afirma que sugerimos
tal coisa."
"Só estou dizendo que isso foi discutido."
"Com quem?" Mas sei a resposta.
"Jack sempre foi irresponsável. Mas parece ter perdido o pouco controle que tinha", diz Benton.
"Acho que já constatei que Jack é um problema que não posso mais tentar resolver. Sobre o que era o projeto?" Volto ao que Benton mencionou a respeito da amiga de
Johnny Donahue no MIT. "E qual é o curso dele?"
"Ciências da computação. Desde o início do verão passado, ele estava estagiando na Otwahl Technologies em Cambridge. Como salientou a mãe, Johnny é excepcionalmente
talentoso em algumas áreas..."
"Fazendo o quê?" Visualizo a sólida fachada de concreto que se ergue como a represa Hoover a pouca distância do local por onde acabamos de passar, a parte de Cambridge
onde o utilitário com faróis de xenônio nos seguiu antes de desaparecer.
"Engenharia de software para UGVs e tecnologias relacionadas", informa Benton como se não fosse nada demais porque ele não sabe o que faço no que concerne aos UGVs.
Veículos terrestres não tripuláveis. Robôs militares como o protótipo MORT no apartamento do homem morto.
"O que está acontecendo aqui, Benton?", pergunto, carregada de sentimento. "Por Deus, o que está acontecendo?"
7
A tempestade aquietou, o vento está muito mais brando agora e a neve já tem vários centímetros de profundidade. O tráfego é constante na Memorial Drive, sendo o
clima de pouca importância para as pessoas acostumadas ao inverno de New England.
O telhado das repúblicas e os campos esportivos do MIT estão cobertos por um branco compacto no lado esquerdo da rodovia e, no outro lado, a neve flutua como fumaça
na ciclovia e no ancoradouro e desaparece no negrume gelado do Charles. Mais a leste, onde o rio deságua no porto, o horizonte de Boston exibe formas retangulares
fantasmagóricas e manchas de luz na noite leitosa; não há tráfego aéreo sobre Logan, nenhum avião à vista.
"Devíamos encontrar Renaud logo que possível - quanto mais cedo, melhor." Benton acha que o promotor distrital de Essex, Paul Renaud, deveria saber que talvez haja
algo mais na confissão de Johnny Donahue e que, de alguma forma, o aluno do último ano da Harvard e o morto em minha geladeira talvez estejam relacionados. "Mas
e se isso envolver a DARPA?", acrescenta Benton.
"A Otwahl é financiada pela DARPA. Mas não é a DARPA, não é o Departamento de Defesa. É civil, uma indústria privada internacional", respondo. "Mas é certo que está
intimamente ligada ao governo através de subvenções substanciais, dezenas de milhões, talvez muito mais que isso, desde a invenção dos MORT."
"A questão é no que mais eles estão concentrados, agora que podem ser importantes para essa história toda."
"Honestamente, não sei. Mas o óbvio vai dar para perceber só de olhar para o lugar." Se seguíssemos em direção a Hanscom, passaríamos a menos de dois quilômetros
da Otwahl Technologies e das instalações de teste em supercondutividade contíguas, um complexo gigantesco e autônomo com sua própria força policial particular. "Nêutrons,
muito provavelmente, e como se aplicam às novas tecnologias."
"A robótica", diz Benton.
"Robôs, nanotecnologia, engenharia de software, biologia sintética. Lucy sabe alguma coisa a respeito."
"Provavelmente mais que alguma coisa."
"Conhecendo minha sobrinha, sim. Muito mais que alguma coisa."
"Eles provavelmente estão criando humanoides, para nunca ficarmos sem soldados."
"Talvez estejam." Não estou brincando.
"E Briggs sabia sobre o robô no apartamento do sujeito." Benton está se referindo ao apartamento do morto. "Por causa dos vídeos? O que mais? Fico me perguntando
se ele disse alguma coisa a Jack, se telefonou e o alertou ao fazer perguntas."
Dou mais explicações, fazendo um relato detalhado do homem e das gravações que Lucy descobriu - gravações que Marino, de forma inapropriada, enviou a Briggs por
e-mail antes que eu tivesse a chance de examiná-las. Quando pude vê-las, foi apenas superficialmente, a caminho do Terminal Aéreo Civil em Dover. Conto a Benton
tudo a respeito do malfadado robô de seis pernas, o Transporte de Remoção Operacional Funerária, conhecido como MORT, perto da porta, e o faço recordar as controvérsias,
as desavenças que tive com alguns políticos e especialmente com Briggs sobre o uso da máquina para recuperar baixas no teatro de operações ou em qualquer outro lugar.
Descrevo a crueldade, o horror de uma estrutura de metal movida a combustível, que mais parecia uma motosserra, bamboleando através do terreno para recuperar seres
humanos feridos ou mortos, segurando-os com pegadeiras que lembravam a mandíbula de uma formiga-buldogue. "Pense na mensagem que isso transmite se você está morrendo
no campo de batalha e é essa máquina que seus companheiros enviam para te buscar", explico. "E aos conhecidos das vítimas que a veem no noticiário?"
"Você usou uma linguagem exaltada como essa quando testemunhou perante um subcomitê do Senado responsável pelas verbas de defesa", presume Benton.
"Não lembro o que disse exatamente."
"Tenho certeza de que não fez amigos na Otwahl. Provavelmente tem inimigos ali que nem conhece."
"Aquilo não teve nada a ver com a Otwahl nem com qualquer outra empresa de tecnologia. Tudo que fizeram foi criar um veículo robótico não tripulado. Foi o Pentágono
que propôs a máquina. Acho que, originalmente, o MORT foi criado para ser um packbot, mais nada. Eu nem lembrava que a Otwahl era a desenvolvedora até esta noite.
Eles nunca foram uma preocupação minha. Meu desentendimento foi com o Pentágono, e eu tinha que me manter firme." Quase digo dessa vez. Mas me seguro. Benton nada
sabe a respeito da vez em que não me mantive firme.
"Inimigos que não esqueceram. Esse tipo de inimigo nunca esquece. Lamento não ter participado de tudo isso quando estava acontecendo", desculpa-se Benton, pois não
estava presente quando fiz inimigos em Capitol Hill. Ele estava participando de um programa de proteção a testemunha e não podia me dar opiniões, conselhos ou mesmo
garantir que não estava morto. "Você deve ter arquivos sobre o assunto, registros da época."
"Por quê?"
"Eu queria dar uma olhada, para me inteirar da situação. Talvez explique certas coisas."
"Que coisas?"
"Eu queria dar uma olhada no que você tem sobre aquela época", repete Benton.
Transcrições do meu testemunho, gravações de vídeo dos segmentos que foram ao ar na C-SPAN: o que tenho estaria em meu cofre no nosso porão de Cambridge - junto
com certos itens que não quero que ele veja. Uma grossa pasta sanfonada cinza e fotografias que bati com minha própria câmera. Quadrados de cartolina branca manchados
de sangue, improvisados antes do dia dos kits de coleta de DNA nos cartões FTA, porque se o sangue seca ao ar pode durar para sempre e eu sabia para onde se encaminhava
a tecnologia. Envelopes brancos simples com pedaços de unha, pelos pubianos e cabelo. Esfregaços orais, anais e vaginais, calcinhas cortadas, rasgadas e ensanguentadas.
Uma garrafa de Chablis vazia, uma lata de cerveja. Materiais que contrabandeei de outro continente a meio mundo de distância mais de duas décadas atrás, provas que
não deveria possuir, itens que não deveria ter testado em particular, mas testei. Julgo seriamente que se Benton tivesse conhecimento dos casos da Cidade do Cabo,
talvez não se sentisse da mesma forma com relação a mim.
"Você conhece o ditado: a vingança é um prato que se come frio", continua ele. "Ferrou um projeto multimilionário gigantesco, uma joint venture entre o Departamento
de Defesa e a Otwahl Technologies, irritou muita gente e, ainda que alguns anos tenham se passado, desconfio que exista gente lá que não esqueceu, mesmo que você
tenha esquecido. E agora está aqui, trabalhando com o Departamento de Defesa no quintal da Otwahl. A oportunidade perfeita para planejar a vingança, para dar o troco."
"Dar o troco? Um homem que morre em Norton's Woods é o troco?"
"Só acho que devíamos saber com quem estamos lidando."
Então paramos de conversar, porque chegamos à ponte que liga Cambridge a Boston, a Mass Ave, a ponte de Harvard ou a ponte do MIT, como dizem os moradores, dependendo
de quem preferem. Logo adiante, meu centro de operações ergue-se como um farol, em forma de silo com uma cúpula de vidro no topo, sete andares ladeados por titânio
reforçado com aço. Na primeira vez que Marino viu o CFC, resolveu que parecia uma bala dundum e, na escuridão repleta de neve, acho que parece mesmo.
Saindo da Memorial Drive e nos afastando do rio, pegamos a primeira à esquerda e entramos na área de estacionamento, iluminada por lâmpadas solares de segurança
e circundada por uma cerca revestida de PVC preto que não pode ser escalada nem cortada. Retiro um controle remoto da bolsa, pressiono um botão para abrir o alto
portão e avançamos sobre marcas de pneus quase completamente cobertas de pó branco recente. Os carros de Anne e Ollie estão aqui, estacionados perto das vans de
carga e dos utilitários de tração integral. Deveria haver quatro, mas um deles está fora desde antes de começar a nevar, provavelmente o do investigador médico-legal
de plantão.
Pergunto-me quem está de serviço hoje e por que saiu em um de nossos veículos. Está em alguma cena de crime ou em casa? Para além da cerca, há prédios de laboratório
que pertencem ao MIT, em vidro e tijolo, com antenas e parabólicas de rádio no telhado, as janelas às escuras, exceto por algumas aleatórias que brilham fracamente,
como se alguém tivesse deixado uma luminária de mesa ou abajur aceso. A neve risca a noite e ressoa como chuva forte enquanto Benton para perto do meu prédio, no
espaço destinado ao diretor, próximo à vaga de Fielding, que está vazia e cheia de neve.
"Podemos parar na entrada de serviço", diz Benton, com ar esperançoso.
"Seria um pouco antipático, já que ninguém mais pode", retruco. "E não é permitido de qualquer forma. Só para coletas e entregas."
"Dover te estragou. Vou ter que bater continência?"
"Só em casa."
Saltamos; a neve chega aos tornozelos das minhas botas e não compacta embaixo delas porque faz muito frio; os flocos são miúdos e gelados. Insiro um código em um
teclado numérico ao lado de uma porta de enrolar automática, que começa a se erguer com ruído enquanto Marino e Lucy entram no estacionamento. A área de recebimento
parece um pequeno hangar pintado com tinta epóxi branca; o teto é equipado com um guindaste monotrilho, um levantador motorizado para deslocar corpos grandes demais
para tratamento manual. No interior, há uma rampa que conduz a uma porta de metal e, estacionada a um lado, acha-se nossa van branca para transporte de corpos, o
que em Dover chamamos de caminhão do pão, destinada a transportar até seis corpos em macas ou caixas de transporte e servir de laboratório criminal móvel quando
necessário.
Enquanto espero por Marino e Lucy, lembro que não estou vestida para New England. Minha jaqueta tática era perfeitamente adequada em Delaware, mas agora estou gelada.
Tento não pensar em como seria bom sentar diante da lareira com um uísque escocês single malt ou um bourbon de produção limitada para conversar com Benton sobre
outras coisas além de acontecimentos trágicos, traição e inimigos com boa memória. Para fugir de todos. Quero beber e conversar de forma honesta com meu marido,
deixar de lado os jogos e subterfúgios, sem ficar me perguntando o que ele sabe. Anseio por um período normal com ele, mas não sabemos o que é isso. Até mesmo quando
fazemos amor temos nossos segredos e nada é normal.
"Nenhuma novidade a não ser Lawless." Marino responde uma pergunta que ninguém fez enquanto a porta automática desce ruidosamente atrás de nós. "Ele enviou um e-mail
com fotos da cena - finalmente. Mas disse que não tiveram sorte com o cachorro. Ninguém ligou para dar parte de um galgo perdido."
"Que galgo?", pergunta Benton.
Estive ocupada demais descrevendo o MORT e não mencionei outras coisas que vi nos vídeos. Sinto-me ridícula. "Norton's Woods", respondo. "Um galgo preto e branco
chamado Sock que, ao que tudo indica, fugiu enquanto os paramédicos estavam ocupados com nosso caso."
"Como você sabe que o nome dele é Sock?"
Explico enquanto mantenho o polegar sobre o sensor de vidro da fechadura biométrica para que escaneie minha digital. Abrindo a porta que conduz ao nível inferior
do edifício, menciono que o cão talvez tenha um microchip que poderia fornecer informação útil sobre a identificação do proprietário. Alguns grupos de resgate colocam
microchips em antigos galgos de corrida antes de enviá-los para adoção, acrescento.
"Isso é interessante", diz Benton. "Acho que vi os dois."
"Ele olhou direto para você quando estava saindo da garagem por volta de três e quinze da tarde ontem", explica Lucy quando entramos na área de processamento, um
espaço aberto com um escritório de segurança, uma balança digital e uma parede com portas de aço inoxidável maciças que se abrem para compartimentos refrigerados
e um freezer grande.
"Do que você está falando?", pergunta Benton à minha sobrinha.
"Esse tempo todo no carro dirigindo em uma nevasca e você não colocou Benton a par das coisas?" Lucy dirige-se a mim e não é fácil estar por perto quando ela fica
desse jeito.
Sinto uma ponta de aborrecimento, mesmo que ela esteja certa. Lucy conhece você, começa minha mente. Ela conhece você tão bem quanto você a ela. Lucy sabe muito
bem quando estou silenciando alguma coisa que me incomoda e que estou tensa desde que deixei Dover. Foi idiotice minha não entrar no tipo de detalhe com o qual Benton
pode fazer alguma coisa. Não conheço ninguém mais perspicaz em termos psicológicos, e ele teria muito a dizer sobre as minúcias captadas pelos gravadores ocultos
nos fones de ouvido do morto.
Em vez disso, fiquei obcecada pela DARPA porque, na realidade, estava obcecada por Briggs. Não consigo superar o que aconteceu hoje mais cedo, o que aconteceu décadas
atrás, a forma como o que ele causou parece nunca terminar. Briggs conhece meu passado sombrio, um lugar ao qual não levo ninguém, e uma parte minha nunca vai perdoá-lo
por ter participado disso. Minha ida à Cidade do Cabo foi ideia dele. Foi a porra do plano brilhante dele.
"O cara e o galgo passaram direto pela sua garagem poucos minutos antes de ele morrer." Lucy está contando a Benton, mas olha fixo para mim. "Se não tivesse saído,
teria ouvido as sirenes. Provavelmente teria ido até lá para ver o que estava acontecendo e talvez tivesse alguma informação útil para nós."
Lucy me olha como se olhasse para meu passado. Não é possível que tenha conhecimento disso, então me tranquilizo. Nunca lhe contei, nunca contei a Benton, a Marino,
a ninguém. Os documentos foram destruídos, exceto pelo que tenho. Briggs prometeu isso décadas atrás, quando deixei o AFIP e me mudei para a Virginia, e eu já sabia
que faltavam relatórios sem ter sido informada disso. Lucy não possui a combinação do meu cofre, lembro a mim mesma. Nem Benton. Nem ninguém.
"Se você passar em meu laboratório", ela diz a Benton, "te mostro os vídeos."
"Você ainda não viu?", pergunto a Benton, porque não tenho certeza. Ele está agindo como se não tivesse visto, mas não sei se são só mais segredos.
"Ainda não", diz ele, e parece verdade. "Mas quero e vou."
"É estranho você estar nele", diz Lucy. "A casa de vocês estar nele. Muito estranho. Eu meio que pirei quando vi."
O segurança noturno está sentado atrás da janela de vidro e balança a cabeça em nossa direção, mas não se levanta da mesa. Seu nome é Ron, um sujeito grande, musculoso,
de pele escura, com cabelo cortado rente e olhos inamistosos. Parece ter medo de mim ou ser cético, e é evidente que foi instruído para se manter em seu posto, não
ser sociável, não importa de quem se trate. Só posso imaginar as histórias que ouviu e Fielding torna a entrar em meus pensamentos. O que aconteceu? Que problemas
causou? Que prejuízos trouxe a este lugar?
Vou até a janela do segurança e verifico o registro de entradas. Desde as três da tarde, três corpos chegaram: uma morte causada por um veículo, um homicídio por
arma de fogo e uma asfixia por saco plástico.
"O dr. Fielding está aqui?", pergunto.
Policial militar aposentado dos fuzileiros navais, Ron está sempre bem cuidado e imponente em seu uniforme azul-marinho com distintivos da bandeira americana e do
AFMES nos ombros e um emblema metálico de segurança do CFC preso à camisa. O rosto é desconfiado e nem um pouco amistoso por trás da divisória de vidro quando responde
que não viu Fielding. Ele comunica que Ollie e Anne estão aqui, mais ninguém. Nem mesmo o investigador de plantão. Janelle, informa ele em tom monótono, e toda segunda
palavra é senhora, o que me faz lembrar quão frio e condescendente senhora isso, senhora aquilo pode soar e o quanto me cansei de ouvir essa palavra em Dover. Janelle
está trabalhando em casa por causa do tempo, informa Ron. Aparentemente, Fielding disse que tudo bem, mesmo que não seja o caso. Vai contra as regras que estabeleci.
Investigadores de plantão não trabalham em casa.
"Vamos estar na sala de raios X", informo a Ron. "Se aparecer mais alguém, pode nos encontrar lá. Mas, a menos que seja o dr. Fielding, preciso saber quem é e dar
autorização. Na verdade, também quero saber se o dr. Fielding aparecer. Não importa quem seja, preciso ser informada."
"Se o dr. Fielding chegar, a senhora quer que eu avise", repete Ron como se não tivesse certeza de que foi o que eu quis dizer, ou talvez esteja argumentando.
"Isso", esclareço. "Ninguém deve simplesmente entrar, mesmo que trabalhe aqui. A menos que eu diga o contrário. Quero tudo controlado agora."
"Certo, senhora."
"Algum sinal da imprensa?"
"Estou alerta, senhora." Há monitores instalados em três paredes, cada um deles dividido em quadrantes que alternam constantemente as imagens captadas pelas câmeras
de segurança no exterior do edifício e áreas internas estratégicas, como entradas, corredores, elevadores, o saguão e todas as portas que conduzem ao prédio. "Sei
que existe certa preocupação com o homem que foi encontrado no parque." Ron olha para Marino atrás de mim, como se os dois tivessem um acordo.
"Bom, você sabe onde vamos estar por enquanto." Abro outra porta. "Obrigada."
Um longo corredor branco com piso de ladrilho cinza conduz a uma série de dependências situadas em uma ordem lógica que facilita o fluxo de nosso trabalho. A primeira
parada é ID, onde os corpos são fotografados, as impressões digitais colhidas e os objetos pessoais que não foram apreendidos pela polícia são removidos e guardados
em armários. Em seguida, há os raios X em grande escala, que inclui o scanner de tomografia computadorizada, depois a sala de autópsias, a sala de material em decomposição,
a antessala, os vestiários, a sala dos armários, o laboratório de antropologia, o laboratório de contenção Bio4, reservado para os casos suspeitos de doenças infecciosas
ou contaminação. O corredor perfaz um círculo que termina onde começou, na baia de recepção.
"O que Ron sabe sobre nosso paciente de Norton's Woods?", pergunto a Marino. "Por que acha que existe uma preocupação?"
"Eu não disse nada a ele."
"Estou perguntando o que ele sabe."
"Ron não estava de serviço quando saímos mais cedo. Eu ainda não o tinha visto hoje."
"Eu gostaria de saber o que foi que disseram a ele", repito em tom paciente, porque não quero brigar com Marino na frente dos outros. "Essa é uma situação muito
delicada, é claro."
"Dei a ordem antes de sair de que todos tinham que ficar atentos à imprensa", diz Marino, retirando a jaqueta de couro quando chegamos à sala de raios X, onde a
luz vermelha acima da porta indica que o aparelho se encontra em uso. Anne e Ollie não teriam começado sem mim, mas têm o costume de dissuadir as pessoas de entrar
em uma área onde há níveis de radiação muito mais altos do que é seguro para pacientes vivos. "Também não foi ideia minha que Janelle ou os outros trabalhassem em
casa", acrescenta Marino.
Não pergunto há quanto tempo isso vem acontecendo nem quem são os "outros". Quem mais tem trabalhado em casa? Esta é uma instituição do governo estadual, uma instalação
paramilitar, não uma indústria caseira, sinto vontade de dizer.
"O babaca do Fielding", resmunga Marino. "Ele está fodendo com tudo."
Não retruco. Agora não é hora de discutir o quanto tudo está fodido.
"Você sabe onde estou." Lucy afasta-se em direção ao elevador e, com o cotovelo, aperta um botão tão grande que dispensa o uso das mãos. Desaparece atrás de portas
de aço deslizantes enquanto passo o polegar sobre outro sensor biométrico e a fechadura se abre com um clique.
No interior da sala de controle, o radiologista forense dr. Oliver Hess está sentado em uma estação de trabalho atrás de vidro revestido de chumbo, o rosto sonolento
como se eu o tivesse tirado da cama. Para além dele, por uma porta aberta, vejo o Siemens Somatom Sensation branco e ouço o ventilador de seu sistema de refrigeração
a água. O scanner é uma versão modificada daquele empregado em Dover, equipado com suporte adaptável para a cabeça e correias de segurança, fiação subterrânea, seu
parâmetro selado, a mesa coberta por uma pesada capa de vinil para proteger o aparelho multimilionário de contaminantes, tais como fluidos corporais. Ligeiramente
inclinado em direção à porta para facilitar o deslizamento dos corpos para dentro e para fora, o scanner está pronto e a tecnóloga Anne Mahoney está aplicando marcadores
radiopacos de pele no morto de Norton's Woods. Tenho uma sensação estranha quando entro. O corpo é familiar, embora eu nunca o tenha visto, apenas partes dele nas
gravações a que assisti em um iPad.
Reconheço seu tom moreno de pele e as mãos afiladas, que se encontram ao lado do corpo em cima de um lençol azul descartável, os dedos longos e finos ligeiramente
curvados e rígidos devido ao rigor mortis.
Nos vídeos, ouvi sua voz e vislumbrei suas mãos, suas botas, suas roupas, mas não seu rosto. Não sei ao certo o que imaginei, mas fico vagamente perturbada pelas
feições delicadas e o cabelo castanho longo e encaracolado, pela sucessão de leves sardas nas faces lisas. Afasto o lençol e ele é muito magro. Tem cerca de um metro
e setenta e cinco e, se muito, cinquenta e oito quilos, deduzo, com muito pouco pelo. Poderia passar facilmente por um rapaz de dezesseis anos, o que me faz lembrar
Johnny Donahue, que não é muito mais velho. Jovens. Seria esse um denominador comum? Ou é a Otwahl Technologies?
"Alguma coisa?", pergunto a Anne, uma mulher de aparência simples na casa dos trinta, com cabelo castanho revolto e olhos sensíveis cor de avelã. Ela é provavelmente
a melhor pessoa em minha equipe, capaz de fazer qualquer coisa, quer se trate de diversos tipos de imagens radiográficas, de ajudar no necrotério, ou em cenas de
crime. Está sempre disposta.
"Isso. Notei quando tirei as roupas dele." Suas mãos cobertas por luvas de látex agarram o corpo pela cintura e pelo quadril, virando-o de lado para que eu veja
um defeito minúsculo no lado esquerdo das costas na altura dos rins. "Deve ter passado despercebido na cena porque não sangrou, pelo menos não muito. Você está sabendo
do sangramento, que eu mesma vi quando fui fazer os exames dele hoje cedo pela manhã? Que o corpo sangrou profusamente pelo nariz e pela boca depois que foi ensacado
e transportado?"
"É por isso que estou aqui." Abro uma gaveta para pegar uma lente de aumento e então Benton está a meu lado, usando máscara e avental cirúrgico e luvas. "Ele sofreu
algum tipo de ferimento", explico enquanto me debruço sobre o corpo e amplio uma lesão irregular que parece uma pequena casa de botão. "Definitivamente, não é a
entrada de um tiro. É uma facada produzida por uma lâmina muito estreita, como uma faca para desossar, mas com duas bordas. Alguma coisa parecida com um estilete."
"Um estilete nas costas derrubaria o cara?" O olhar de Benton acima da máscara é cético.
"Não. A menos que ele fosse esfaqueado na base do crânio e o ferimento rompesse a medula espinhal." Penso em Mark Bishop e nos pregos que o mataram.
"Como eu disse em Dover, talvez alguma coisa tenha sido injetada", propõe Marino ao entrar coberto da cabeça aos pés com vestimenta de proteção, inclusive viseira
e touca, como se estivesse preocupado com patógenos aéreos e esporos mortais, tal como o antraz. "Talvez algum tipo de anestesia. Uma injeção letal, em outras palavras.
Isso com certeza derrubaria alguém."
"Em primeiro lugar, uma anestesia como tiopental sódico é injetada na veia, assim como o brometo de pancurônio ou o cloreto de potássio." Coloco um par de luvas
de exame. "Não são injetadas nas costas da pessoa. A mesma coisa serve para o mivacúrio e a succinilcolina. Se você quer matar alguém de forma decisiva e rápida
com um bloqueador neuromuscular, o melhor é injetar por via intravenosa."
"Mas se eles fossem injetados no músculo ainda matariam, certo?" Marino abre um armário e pega uma câmera. Vasculha uma gaveta e encontra uma régua plástica de quinze
centímetros para uma referência das dimensões. "Durante as execuções, às vezes a injeção perde a veia e penetra no músculo, mas o preso ainda assim morre."
"Uma morte lenta e muito dolorosa", retruco. "Pelo que todos disseram, a morte desse homem não foi lenta e esse ferimento não foi provocado por uma agulha."
"Não vou dizer que os técnicos na prisão façam de propósito, mas acontece. Bom, provavelmente é de propósito. Alguns deles esfriam o coquetel para se certificar
de que o canalha sinta o rebote, a mão gelada da morte", diz Marino para Anne, que é veementemente contra a pena capital. Sua forma de flertar é chocá-la sempre
que possível.
"Que horror", diz ela.
"Ei. Eles não estão nem aí para as pessoas que matam, certo? Não se importam que sofram. O que vai, volta. Quem escondeu o etiquetador?"
"Fui eu. Fiquei acordada à noite tentando descobrir maneiras de irritar você."
"Ah, é? Por quê?"
"Só por ser você."
Marino procura em outra gaveta e encontra o etiquetador. "Ele parece muito mais jovem do que os paramédicos disseram. Alguém mais percebe isso? Você não acha que
ele parece ter menos de vinte?" Marino pergunta a Anne. "É um garoto."
"Que mal chegou à puberdade", concorda ela. "Mas, para mim, todos os universitários agora têm essa aparência. Parecem bebês."
"Não sabemos se ele era universitário", recordo a todos.
Marino descola o verso de uma etiqueta impressa com a data e o número do caso e prende-a na régua plástica. "Vou pesquisar a área perto do parque, ver se o síndico
de algum prédio reconhece o cara, e vou fazer isso sozinho para manter a indústria dos boatos em silêncio. Se ele mora por ali, o que certamente é o que parece com
base no que vimos nos vídeos, alguém vai ter que se lembrar dele e do galgo. Sock. Isso lá é nome para um cachorro?"
"Provavelmente não é o nome completo", diz Anne. "Cães de raça têm aqueles nomes muito elaborados, registrados em canis, como Sock it to Me, ou Darned Sock ou Sock
Hop."
"Vivo dizendo que ela devia ir a algum programa de perguntas e respostas", declara Marino.
"É possível que o nome esteja em algum registro", comento. "Alguma coisa com Sock, na hipótese de não termos sorte com um microchip."
"Isso se você encontrar o cachorro", diz Marino.
"Estamos correndo atrás das impressões digitais e do DNA do sujeito. Agora mesmo, espero." Benton fita atentamente o corpo, como se estivesse conversando com ele.
"Colhi as impressões esta manhã, mas não tivemos sorte; não tem nada no sistema de identificação de impressão digital. Vamos ter o DNA amanhã e passamos as informações
pelo sistema CODIS." As grandes mãos enluvadas de Marino posicionam a régua sob o queixo do homem. "Mas é meio estranho esse negócio do cachorro. Alguém tem que
estar com ele. Acho que a gente devia publicar informações na imprensa sobre um galgo perdido. Talvez as pessoas liguem."
"Não podemos nos identificar", retruco. "Vamos ficar longe da imprensa agora."
"Exatamente", diz Benton. "Não queremos que os bandidos saibam que estamos cientes do cachorro, muito menos procurando por ele."
"Bandidos?", pergunta Anne.
"O que mais?" Contorno a mesa, fazendo o que Lucy chama de "reconhecimento grosseiro", examinando atentamente o corpo da cabeça aos pés.
Marino está batendo fotografias e diz: "Antes de colocar o cara de volta na geladeira esta manhã, examinei as mãos em busca de resíduos. Coletei alguma coisa em
caráter preliminar, inclusive objetos pessoais".
"Você não me falou de objetos pessoais. Só que ele parecia não ter nenhum", contraponho.
"Um anel com uma insígnia, um relógio Casio de aço. Chaves em um chaveiro. Uma nota de vinte dólares. Uma caixinha de fumo vazia, mas colhi esfregaços em busca de
drogas. Era a caixinha de fumo que aparece no vídeo. Por um segundo, deu para ver o sujeito segurando a caixa pouco depois de chegar a Norton's Woods."
"Onde estava?", pergunto.
"No bolso dele. Foi onde a encontrei."
"Então ele tirou a caixa do bolso no parque e depois tornou a colocar antes do incidente." Recordo o que assisti no iPad, a caixinha sendo segurada pela luva preta.
"Devíamos procurar também inalação e fumo", diz Marino. "Aposto que era maconha. Não sei se você percebeu", continua ele, dirigindo-se a mim, "mas ele tinha um cachimbo
em um cinzeiro em cima da escrivaninha."
"Vamos ver o que aparece no exame toxicológico", retruco. "Vamos fazer um exame do teor alcoólico e agilizar a triagem de drogas. O pessoal lá em cima está ajudando?"
"Vou pedir a Joe para passar para a frente da fila." Anne está se referindo ao toxicologista-chefe, que eu trouxe de Nova York, roubando descaradamente do laboratório
de criminalística do departamento de polícia. "Você é a chefe. Tudo que precisa fazer é pedir." Ela me olha nos olhos. "Bem-vinda de volta."
"Que tipo de insígnia? E como é o chaveiro?", Benton pergunta a Marino.
"Um brasão, um livro aberto com três coroas", responde ele, e percebo que está gostando de Benton estar em desvantagem. O CFC é o território de Marino. "Não tem
nada escrito, nenhuma frase em latim, nada desse tipo. Não sei como são as insígnias do MIT e de Harvard."
"Não são o que você descreveu", diz Benton. "Tudo bem se eu usar isso?" Ele indica um computador em uma bancada.
"O chaveiro é uma daquelas argolas de aço presas a um laço de couro, como os que as pessoas prendem no cinto", continua Marino. "E, como todo mundo já sabe, ele
não levava carteira, nem mesmo um telefone celular. Acho isso incomum. Quem anda por aí sem celular?"
"Ele estava levando o cachorro para passear e ouvindo música. Talvez não estivesse planejando ficar muito tempo fora e não quisesse falar ao telefone", responde
Benton enquanto digita palavras para pesquisa.
Giro o corpo para o lado direito e olho para Marino. "Você quer me ajudar com isso?"
"Três coroas e um livro aberto", diz Benton. "Universidade da Cidade de San Francisco." Ele digita um pouco mais. "Uma universidade on-line especializada em ciências
da saúde. Esse tipo de universidade tem anéis de turma?"
"Os objetos pessoais dele estão em qual armário?", pergunto a Marino.
"Um. Tenho a chave se você quiser."
"Sim, por favor. Alguma coisa que o laboratório precise examinar?"
"Não vejo por quê."
"Então vamos guardar esses objetos até enviar para alguma casa funerária ou para a família quando descobrirmos quem ele é", anuncio.
"E além disso há Oxford", diz Benton em seguida, ainda pesquisando na internet. "Mas, se o anel que ele estava usando era de Oxford, teria os dizeres Universidade
de Oxford, e você disse que não havia nada escrito, nenhum lema."
"Não, nada escrito", retruca Marino. "Mas parece que alguém mandou fazer, sabe, ouro comum com a insígnia gravada, então talvez não seja o oficial, que você encomenda
na faculdade, e por isso não tem nenhum lema nem nada escrito."
"Pode ser", diz Benton. "Mas, se mandaram fazer o anel, acho difícil imaginar que tenha sido para Oxford; eu tenderia a pensar que, se alguém cursou uma faculdade
on-line, talvez tivesse mandado fazer um anel porque não há outro jeito de conseguir um, supondo que a pessoa queira dizer ao mundo que é ex-aluno de uma faculdade
on-line. Esse é o brasão da Universidade da Cidade de San Francisco." Benton se desloca para o lado para que Marino veja o que há na tela do computador, uma insígnia
elaborada com um manto azul e dourado e uma coruja dourada no topo, com três flores-de-lis douradas, então abaixo três coroas douradas e no meio um livro aberto.
Marino está segurando o corpo de lado; aperta os olhos em direção à tela do computador e dá de ombros. "Pode ser. Se foi gravado, se alguém mandou fazer, talvez
não seja tão detalhado."
"Vou olhar o anel", prometo enquanto examino o corpo externamente e faço anotações em uma prancheta.
"Não há motivos para pensar que ele tenha se envolvido em alguma briga; acho difícil a gente conseguir o DNA de um perpetrador ou alguma outra coisa a partir do
relógio ou seja o que for. Mas você me conhece." Marino retoma o que estava dizendo a respeito da verificação dos pertences do morto. "Colhi esfregaços de tudo mesmo
assim. Nada me pareceu fora do comum, a não ser o fato de que o relógio tinha parado, um daqueles automáticos que Lucy gosta, um cronógrafo."
"A que horas ele parou?"
"Eu anotei. Em algum momento depois das quatro da manhã. Cerca de doze horas depois que o cara morreu. Lembrando que esse sujeito tinha uma nove milímetros com dezoito
rodadas, mas não celular", diz Marino. "A menos que ele não tenha deixado o telefone em casa ou alguém levou. Como pode ter levado o cachorro. É isso que fico me
perguntando."
"Vi um telefone em cima de uma mesa nos vídeos", recordo. "Conectado a um carregador perto de um dos laptops. Perto do cachimbo que você mencionou."
"Não conseguimos ver tudo que ele fez lá antes de sair. Acho que pode ter pegado o telefone a caminho da porta", conjectura Marino. "Ou pode ter mais de um. Quem
vai saber?"
"Vamos saber quando encontrarmos o apartamento", diz Benton enquanto imprime o que descobriu na internet. "Eu gostaria de ver as fotos da cena."
"O que você está querendo dizer é quando eu encontrar o apartamento." Marino pousa a câmera em uma bancada. "Porque sou eu que vou investigar. Policiais fofocam
mais que velhas. Descubro onde o cara mora, depois peço ajuda."
8
Em um diagrama do corpo, anoto que às 23h15 o morto está completamente rígido e gelado devido à refrigeração. Apresenta um padrão vermelho-escuro de descoloração
e lividez postural que indica que estava deitado de costas com os braços estendidos ao lado do corpo, palmas das mãos para baixo, completamente vestido, usando um
relógio no pulso esquerdo e um anel no dedo mínimo esquerdo por pelo menos doze horas antes de morrer.
A hipóstase cadavérica, mais conhecida como lividez ou livor mortis, é um de meus indícios preferidos, embora muitas vezes seja mal interpretada, até mesmo por aqueles
que deveriam conhecê-la. Pode parecer com contusões decorrentes de trauma quando, na realidade, é causada pelo fenômeno fisiológico mundano do sangue não circulante
que se concentra nos pequenos vasos devido à gravidade. A lividez apresenta um tom vermelho-escuro, ou pode ser arroxeada, com áreas mais claras onde o corpo permaneceu
apoiado em uma superfície dura; independentemente das informações que recebo a respeito das circunstâncias de uma morte, o corpo em si não mente.
"Não vejo nenhum padrão secundário que indique que o corpo se moveu enquanto o livor ainda estava se formando", observo. "Tudo que estou vendo é consistente com
o fato de ele ter sido fechado dentro de um saco, colocado em uma bandeja e não ter se movido." Prendo um diagrama do corpo em uma prancheta e registro as marcas
produzidas por cós, cinto, joias, sapatos e meias, áreas claras na pele que indicam a forma de um elástico, de uma fivela, de um tecido ou padrão de costura.
"Isso com certeza sugere que ele não moveu nem os braços, não se debateu, o que é bom", conclui Anne.
"Exato. Se ele tivesse voltado a si, teria pelo menos movido os braços. Então isso é muito bom", concorda Marino, chaves tilintando enquanto uma imagem preenche
a tela do computador sobre uma bancada.
Faço uma anotação indicando que o homem não tinha piercings nem tatuagens no corpo e é limpo, com unhas bem aparadas e a pele macia de quem não faz trabalhos manuais
nem se dedica a atividades físicas que possam causar calos nas mãos ou nos pés. Apalpo a cabeça, tateando em busca de defeitos, como fraturas ou outras lesões, e
não encontro nada.
"Resta saber se ele caiu de bruços." Marino está examinando o que o investigador Lester Law enviou por e-mail. "Ou se está deitado de costas nestas fotos porque
os paramédicos mudaram o corpo de posição."
"Para fazer reanimação cardiopulmonar teriam que virar o corpo para cima." Chego perto para ver.
Marino clica em várias fotos, todas na mesma posição, mas a partir de perspectivas diferentes: o homem deitado de costas, a jaqueta verde-escura e a camisa de brim
abertas, a cabeça virada para o lado, os olhos parcialmente fechados; um close do rosto, detritos, que parecem partículas de folhas mortas, grama e brita, agarrados
aos lábios.
"Dê mais zoom nesta", peço a Marino e, a um clique do mouse, a imagem fica maior, o rosto infantil do homem preenchendo a tela.
Retorno ao corpo atrás de mim e procuro ferimentos no rosto e na cabeça, notando uma abrasão embaixo do queixo. Puxo o lábio inferior e encontro uma pequena laceração,
provavelmente produzida pelos dentes inferiores quando ele caiu e bateu com o rosto no caminho de cascalho.
"Isso não pode explicar todo o sangue que vi", diz Anne.
"Não, não pode", concordo. "Mas sugere que ele deu com a cara no chão primeiro, o que também sugere que caiu direto, não cambaleou nem tentou aparar a queda. Onde
está o saco em que ele chegou?"
"Estendi em uma mesa na sala de autópsias, porque imaginei que você fosse querer dar uma olhada", diz Anne. "E as roupas estão secando lá dentro. Quando as tirei,
coloquei tudo na estufa perto da sua estação. Estação um."
"Bom. Obrigada."
"Talvez alguém tenha dado um soco no sujeito", propõe Marino. "Talvez tenha distraído o cara com um soco ou uma cotovelada no rosto, depois lhe dado uma facada nas
costas. Só que provavelmente isso teria sido gravado, estaria nos vídeos."
"Ele teria mais do que só essa laceração se tivesse levado um soco na boca. Se olharem para os detritos no rosto dele e a localização dos fones de ouvido" - estou
de volta ao computador, clicando nas imagens para mostrar - "ele parece ter caído de bruços. Os fones de ouvido estão longe, a mais ou menos dois metros de distância
embaixo do banco, o que indica que o corpo caiu com força suficiente para atirar os fones a boa distância e desconectar o rádio via satélite, que acredito que estivesse
dentro de algum bolso."
"A não ser que alguém tenha deslocado os fones, talvez chutado para fora do caminho", diz Benton.
"Esse foi meu outro pensamento", retruco.
"Quer dizer, alguém que estava tentando ajudar o cara", diz Marino. "As pessoas se amontoaram ao redor dele e os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco."
"Ou alguém fez isso deliberadamente."
Há outra coisa na qual reparo. Clicando nas imagens, paro em uma fotografia do pulso esquerdo do homem. Amplio o relógio de aço equipado com taquímetro, aproximo
o mostrador de fibra de carbono. A hora impressa na imagem é 17h17, que foi quando o oficial de polícia bateu a fotografia, no entanto o relógio marca 22h14, cinco
horas mais tarde.
"Quando recolheu o relógio esta manhã", pergunto a Marino, "você disse que ele parecia ter parado. Tem certeza de que não foi só a hora que era diferente da local?"
"Não. Ele tinha parado. Como eu disse, era um daqueles relógios automáticos e parou em algum momento na madrugada, por volta das quatro."
"Parece que ele estava ajustado cinco horas a mais que o horário da costa leste." Indico o que estou vendo na fotografia.
"Tudo bem. Então deve ter parado por volta das onze da noite pelo nosso horário", diz Marino. "Estava errado desde o início e depois parou."
"Talvez ele estivesse em outro fuso horário porque tinha acabado de chegar do exterior", sugere Benton.
"Assim que a gente terminar aqui, vou encontrar o apartamento dele", diz Marino.
Verifico os números de controle de qualidade no registro para me certificar de que o desvio padrão seja zero e o nível de ruído do sistema esteja dentro dos limites.
"Estamos prontos?", pergunto a todos.
Estou ansiosa para fazer a tomografia. Quero ver o que encontramos dentro dele.
"Vamos fazer um topograma, depois reunir o conjunto de dados antes de passar ao exame 3-D com pelo menos cinquenta por cento de sobreposição", digo a Anne enquanto
ela aperta um botão para que a mesa deslize para o interior do aparelho. "Mas vamos mudar o protocolo e começar pelo tórax, não pela cabeça, a não ser, é claro,
para usar a glabela como referência."
Eu me refiro ao espaço entre as sobrancelhas, acima do nariz, que usamos para orientação espacial.
"Um corte transversal do tórax exatamente correlato à área de interesse que você marcou." Percorro a lista enquanto retornamos à sala de controle. "Uma localização
in situ do ferimento; vamos isolar aquela área e qualquer lesão associada, qualquer pista no prolongamento da ferida."
Sento-me entre Ollie e Anne, e em seguida Marino e Benton puxam cadeiras atrás de nós. Pela janela de vidro, vejo os pés descalços do homem na abertura do túnel
do scanner.
"TM automática e inteligente, ruído dezoito. Rotação de zero vírgula cinco, configuração de detectores de zero vírgula seis", instruo. "Cortes bem finos de alta
resolução. Colimação de dez milímetros."
Ouço os ruídos eletrônicos pulsantes enquanto o detector começa a girar no interior do tubo de raios X. O primeiro exame dura sessenta segundos. Assisto a tudo em
tempo real na tela do computador, sem saber ao certo o que estou vendo, o que é incomum. O aparelho deve estar com defeito ou mostra o exame de algum outro paciente,
acessando o arquivo errado. O que estou vendo?
"Jesus", diz Ollie baixinho, olhando com ar carrancudo para as imagens em uma grade, estranhas imagens que devem ser um engano.
"Oriente no tempo e no espaço e vamos posicionar o ferimento de trás para a frente, da esquerda para a direita e para cima", comando. "Conecte pontos para obter
a penetração da ferida, assim como está. Existe um ferimento e depois ele desaparece? Não sei o que é isso."
"O que estamos vendo?", pergunta Marino, perplexo.
"Nada que eu já tenha visto, com certeza não em uma facada", respondo.
"Bom, em primeiro lugar, ar", anuncia Ollie. "Estamos vendo uma porrada de ar."
"Essas áreas escuras aqui, aqui e aqui." Mostro a Marino e a Benton. "Na TC, o ar aparece escuro. Em contraste com as áreas brancas brilhantes, que mostram densidade
mais alta. Os ossos e as calcificações são brilhantes. Dá para ter uma boa ideia das coisas pela densidade dos pixels."
Estendo a mão para o mouse e posiciono o cursor sobre uma costela para que vejam o que estou querendo dizer.
"A janela da TC é mil cento e cinquenta e um. Enquanto essa área aqui, não tão brilhante" - coloco o cursor sobre uma área de pulmão - "é quarenta. Isso é sangue.
Essas áreas escuras embaçadas que vocês estão vendo são hemorragia."
Recordo os tiros de alta velocidade que causam tremendas lacerações e rompimentos de tecido, semelhantes aos ferimentos causados pela onda de propulsão de uma explosão.
Mas esse não é um caso de ferimento a bala. Isso não se deve a algum dispositivo explosivo detonado. Não vejo como uma ou outra opção possa ser verdade.
"Algum tipo de ferimento que se desloca pelo rim esquerdo, no nível superior através do diafragma e do coração, causando profunda devastação ao longo do caminho.
E tudo isso", indico áreas escuras em torno de órgãos internos que estão deslocados e distorcidos, "é mais ar subcutâneo. Ar na musculatura próxima à coluna. Ar
retroperitonial. Como todo esse ar entrou nele? E aqui e aqui. Lesões nos ossos. Fratura de costela. Fratura da apófise transversa. Hemopneumotórax, contusão pulmonar,
hemopericárdio. E mais ar. Aqui, aqui e aqui." Toco a tela. "Ar em torno do coração e nas câmaras cardíacas, bem como nas artérias e veias pulmonares."
"E você nunca viu uma coisa assim?", pergunta Benton.
"Sim e não. Devastação semelhante causada por fuzis militares, canhões antitanque, algumas semiautomáticas que usam munição de alta velocidade e extremo choque de
fragmentação, por exemplo. Quanto maior a velocidade, mais energia cinética se dissipa no impacto e maior é o prejuízo, especialmente para os órgãos ocos, como os
intestinos e pulmões, e tecidos sem elasticidade, como os do fígado e dos rins. Mas, nesses casos, a gente espera uma trajetória clara do ferimento e um míssil,
ou fragmentos de um. Que não estamos vendo aqui."
"E o ar?", pergunta Benton. "Você vê esses bolsões de ar nesses casos?"
"Não exatamente", respondo. "Uma onda de propulsão pode causar embolia gasosa através da barreira sangue-ar. Em outras palavras, o ar acaba fora de lugar, mas isso
é muito ar."
"Uma porrada de ar", concorda Ollie. "E como a pessoa é atingida por uma onda de propulsão a partir de uma facada?"
"Faça um corte bem nessas coordenadas", peço a ele, indicando a área de interesse marcada por uma gota branca brilhante - o marcador de pele radiopaco de TC que
foi colocado perto do ferimento no lado esquerdo das costas do homem. "Comece por aqui e se desloque cinco milímetros para baixo e para cima da área de interesse
especificada pelos marcadores. Esse corte. Isso. E vamos reformatar para a versão 3-D de dentro para fora. Cortes finos, bem finos, de um milímetro. E o aumento
entre eles? O que você acha?"
"Zero vírgula setenta e cinco por zero vírgula cinco vai resolver."
"Tudo bem. Vamos ver que aparência tem isso quando seguimos virtualmente a trajetória do ferimento, seja ela qual for."
Os ossos parecem vívidos, como se estivessem expostos diante de nós, e órgãos e outras estruturas internas estão bem definidos em tons de cinza à medida que a parte
superior do corpo do morto, seu tórax, começa a girar devagar em três dimensões na tela de vídeo. Usando um software modificado, originalmente desenvolvido para
colonoscopias virtuais, penetramos no corpo através do minúsculo ferimento que parece uma casa de botão, viajando com uma câmera virtual como se nos encontrássemos
em uma nave espacial microscópica, voando lentamente através de nuvens de tecido acinzentadas e melancólicas para além do rim esquerdo rebentado como um asteroide.
Uma abertura irregular se patenteia à nossa frente e passamos através de um largo buraco no diafragma. Adiante há laceração, cisalhamento e contusão. O que aconteceu
com você? O que provocou isso? Não faço ideia. Dá uma sensação de impotência encontrar danos que parecem desafiar a física, um efeito sem causa. Não há nenhum projétil.
Não há fragmentos, nada metálico que eu consiga enxergar. Não há ferimento de saída, só na entrada em forma de casa de botão no lado esquerdo das costas do homem.
Estou pensando em voz alta, repetindo pontos importantes para me certificar de que todos entendam o que é incompreensível.
"Sempre esqueço que nada funciona aqui embaixo", comenta Benton com ar distraído enquanto examina seu iPhone.
"Nada saiu e não tem nada iluminado." Avalio o que deve ser feito a seguir. "Nenhum sinal de nada ferroso, mas precisamos ter certeza disso."
"Não faço a menor ideia do que pode ter causado", declara Benton quando se levanta da cadeira, produzindo um farfalhar à medida que desata o avental descartável.
"Vocês conhecem o velho ditado: nada se cria, tudo se transforma. Como muitos velhos ditados, acho que esse não é verdade."
"Isso é novo. Pelo menos para mim", retruco.
Ele se curva e retira a cobertura dos sapatos. "É sem dúvida um homicídio."
"A menos que tenha almoçado comida mexicana muito estragada", diz Marino.
Passa vagamente por meus pensamentos que Benton está agindo de forma suspeita.
"Um projétil de alta velocidade, mas não existe projétil. E se ele saiu do corpo, onde está o ferimento de saída?" Fico repetindo as mesmas coisas. "Onde está o
metal? Com o que ele foi atingido? Um projétil de gelo?"
"Vi alguma coisa a respeito no Caçadores de Mitos. Eles provaram que é impossível por causa do calor", responde Marino como se eu estivesse falando sério. "Mas não
sei. Me pergunto o que aconteceria se você carregasse a arma e guardasse no congelador até estar preparado para atirar."
"Talvez se você fosse um franco-atirador na Antártica", diz Ollie. "De onde saiu essa ideia afinal? De Dick Tracy? É uma pergunta séria."
"Acho que James Bond. Esqueci o filme."
"O ferimento de saída pode não ser óbvio", diz Anne, dirigindo-se a mim. "Lembra aquela vez que o cara foi atingido na mandíbula e a bala saiu pela narina?"
"Então onde está a trajetória do ferimento?", contraponho. "Precisamos de contraste melhor entre os tecidos, precisamos ter certeza de que não estamos deixando passar
nada antes que eu abra o sujeito."
"Se você precisar da minha ajuda, posso ligar para o hospital", diz Benton enquanto abre a porta. Percebo que ele está com pressa, mas não sei ao certo por quê.
O caso não é dele.
"Caso contrário, vou checar o que Lucy descobriu", diz Benton. "Dar uma olhada nos vídeos. Checar outras coisas. Você não se importa que eu use o telefone lá em
cima?"
"Eu ligo", Anne diz a Benton quando ele sai. "Deixo tudo ajeitado com o McLean e cuido do exame."
Era uma possibilidade teórica que esse dia chegasse, mas temos autorização da Secretaria de Saúde, de Harvard e do Hospital McLean, instituição afiliada à universidade
que possui quatro magnetos que abrangem densidade de fluxo de um vírgula cinco a nove teslas. Há muito tempo, certifiquei-me de que os protocolos estivessem em vigor
para realizar RMs em cadáveres no laboratório de neuroimagem do McLean, onde Anne trabalha meio período como técnica de RM para pesquisa psiquiátrica. Foi como a
consegui. Benton a conheceu primeiro e a recomendou. Ele escolhe bem, é um excelente avaliador de caráter. Eu deveria deixar que contratasse minha equipe. Gostaria
de saber quem ele ia chamar. Nem sei bem por que continua aqui.
"Se você quiser, podemos fazer isso agora", Anne está me dizendo. "Não deve ter nenhum problema, não vai haver ninguém por lá. Paramos direto na porta da frente
e entramos com ele e saímos."
A esta hora, os pacientes psiquiátricos do McLean não vão estar perambulando pelo campus. O risco de toparem com um cadáver sendo carregado para dentro ou para fora
do laboratório é pequeno.
"E se alguém atingiu o cara com um canhão de água?" Marino olha atônito para o tronco girando na tela de vídeo, as costelas encurvadas cintilando brancas em 3-D.
"Sério, sempre ouvi que esse era o crime perfeito. Você enche de água o cartucho de um fuzil e é como uma bala quando atravessa o corpo. Mas não deixa marcas."
"Nunca tive um caso assim", retruco.
"Mas pode acontecer", diz Marino.
"Teoricamente, no entanto, o ferimento de entrada não seria como esse", contesto. "Vamos lá. Quero esse sujeito transferido e fora dali antes que as pessoas comecem
a chegar para o trabalho." É quase meia-noite.
Anne clica no ícone FERRAMENTAS para fazer medições e me informa que a largura da trajetória do ferimento antes que este rebente através do diafragma é de zero vírgula
setenta e sete a um vírgula cinquenta e nove milímetros com quatro vírgula dois milímetros de profundidade.
"Então isso me mostra...", começo a dizer.
"Prefiro trabalhar com polegadas", Marino reclama.
"... algum tipo de objeto ou lâmina de dois gumes não muito mais larga que doze milímetros", explico. "E quando penetrou o corpo até a profundidade aproximada de
cinquenta milímetros, aconteceu outra coisa que causou danos internos profundos."
"O que quero saber é quanto da anomalia que estamos vendo é iatrogênica", diz Ollie. "Causada pelo trabalho dos paramédicos durante vinte minutos. Essa é provavelmente
a primeira pergunta que vão nos fazer. Temos que manter a mente aberta."
"De jeito nenhum. A menos que o King Kong tenha feito a reanimação", retruco. "Esse homem parece ter sido apunhalado com alguma coisa que lhe causou uma tremenda
pressão no peito e uma embolia grande de ar. Sentiu dor forte e morreu em alguns minutos, o que é compatível com o que foi descrito pelas testemunhas: que ele apertou
o peito e caiu."
"Então por que todo aquele sangue depois da ocorrência?", pergunta Marino. "Por que não teve a hemorragia instantaneamente? Como é possível que só tenha começado
a sangrar depois que foi declarado morto, a caminho daqui?"
"Não sei a resposta, mas ele não morreu na nossa geladeira." Disso, ao menos, tenho certeza. "Morreu antes de chegar aqui. Na cena."
"Mas vamos ter que provar que ele começou a sangrar depois de morto. E mortos não começam a sangrar como um porco no espeto. Como provamos que ele estava morto antes
de chegar aqui?", insiste Marino.
"Para quem precisamos provar isso?" Olho para ele.
"Não sei a quem Fielding contou, já que não temos ideia de onde ele está. E se tiver falado com alguém?"
Como você fez, penso, mas não digo. "É por isso que é preciso ter cuidado com a divulgação de detalhes quando não se tem toda a informação." Eu não poderia soar
mais controlada.
"Não tivemos escolha." Marino não vai dar o braço a torcer. "Agora temos que explicar por que motivo um morto começou a sangrar."
Pego meu casaco e digo a Anne: "Primeiro uma TC de corpo inteiro. E uma bobina de RM de corpo inteiro, cada centímetro dele. Faça um upload do que você encontrar.
Quero ver imediatamente".
"Eu dirijo", anuncia Marino.
"Bom, coloquem o corpo no compartimento de carga para ficar aquecido. Em uma das vans."
"Não queremos que ele fique aquecido. Na verdade, vou ligar o ar-condicionado no máximo."
"Então podem ir só os dois. Encontro vocês lá."
"É sério. Se ele aquecer, pode começar a sangrar de novo."
"Você tem assistido muito Saturday Night Live."
"Dan Aykroyd imitando Julia Child. Lembra? 'Você vai precisar de uma faca, uma faca bem, bem afiada.' E sangue jorrando para todo lado."
Os três estão brincando.
"Foi muito engraçado."
"Os antigos eram melhores."
"Nem fala. Roseanne Roseannadanna."
"Ah, meu Deus, adoro a Roseanne."
"Tenho todos em DVD."
Ouço-os rir enquanto me afasto.
Escaneando meu polegar, libero minha entrada à primeira parada depois da recepção, onde fazemos as identificações, uma sala branca com bancadas cinza que chamamos
simplesmente de ID.
Embutidos em uma parede, há armários de metal cinza numerados onde ficam guardadas as provas, e uso a chave que Marino me entregou para abrir o de cima à esquerda,
onde os objetos pessoais do morto foram guardados com segurança até passarmos uma nota a alguma funerária ou para a família quando por fim soubermos quem ele é e
quem deve reclamá-lo. No interior, há sacos de papel e envelopes primorosamente rotulados e, preso a cada um deles, um formulário que Marino preencheu e rubricou
para preservar a cadeia de custódia. Encontro o pequeno envelope em papel manilha que contém o anel de sinete, rubrico o formulário e anoto a hora que o retirei
do armário. Em uma estação de computador, acesso um protocolo e insiro a mesma informação, então me lembro das roupas do morto.
Eu deveria examinar tudo enquanto estou aqui embaixo, não esperar até ter feito a autópsia, daqui a algumas horas. Quero ver o orifício produzido pela lâmina que
penetrou a região lombar do homem e gerou tanta destruição dentro dele. Quero ver quanto ele pode ter sangrado devido ao ferimento e deixo a ID e percorro o corredor
de ladrilhos cinza, voltando atrás. Passo pela sala de raios X e, através da porta aberta, vejo de relance Marino, Anne e Ollie ainda ali, preparando o corpo para
transportá-lo ao McLean, brincando e rindo. Passo rapidamente sem que eles percebam e abro as portas duplas de aço que conduzem à sala de autópsias.
É um vasto espaço aberto pintado com tinta epóxi branca, ladrilhos brancos e trilhos de aço expostos e reluzentes, com luz fria filtrada que corre horizontalmente
ao longo da extensão do teto branco. Onze mesas de aço acham-se posicionadas ao lado de pias de aço instaladas na parede, todas com torneira acionada por pedal,
esguicho de alta pressão, triturador de resíduos, um recipiente para lavagem das amostras e outro para material cortante. As estações que cuidadosamente pesquisei
e mandei instalar são minicentros cirúrgicos modulados com sistemas de ventilação e exaustão que permuta o ar a cada cinco minutos, e há computadores, exaustores,
carrinhos de instrumentos cirúrgicos, luzes de halogênio em braços flexíveis, superfícies de dissecção com tábuas de corte, contêineres de formalina com torneira
e prateleiras de tubos de ensaio e frascos plásticos para histologia e toxicologia.
Minha estação, a estação do chefe, é a primeira e me ocorre que alguém a tem usado; então me sinto ridícula por pensar assim. É claro que as pessoas a usaram enquanto
estive fora. É claro que Fielding provavelmente usou. Não faz diferença e por que eu deveria me importar?, digo a mim mesma quando percebo que os instrumentos cirúrgicos
no carrinho não estão alinhados da forma ordenada que eu os teria deixado. Estão desordenadamente dispostos em um tabuleiro branco grande de polietileno para dissecção
como se alguém os tivesse lavado, mas não com cuidado. Retiro um par de luvas de látex de uma caixa e as coloco, porque não quero tocar em nada com as mãos descobertas.
Em geral não me preocupo com isso, não tanto quanto deveria, acho, pois descendo da escola antiga de patologistas forenses, que eram estoicos, marcados pelas cicatrizes
de batalha e tinham o orgulho perverso de não sentir medo nem repulsa diante de nada. Nem dos vermes, nem dos fluidos de purga, nem de carne putrefata inchada, esverdeada
e viscosa, nem mesmo da aids, pelo menos não as preocupações que temos hoje quando vivemos com fobias e regulamentos federais acerca de absolutamente tudo. Lembro
quando eu circulava sem roupas protetoras, fumando, bebendo café e tocando os pacientes mortos como qualquer médico faria, minha pele em contato com a deles enquanto
examinava um ferimento, avaliava uma contusão ou tirava uma medida. Mas nunca fui descuidada com minha estação de trabalho ou meus instrumentos cirúrgicos. Nunca
fui negligente.
Eu nunca devolveria nem mesmo uma agulha de exploração a um carrinho cirúrgico sem primeiro lavá-la com água quente e sabão, e o tamborilar da água quente na pia
de metal funda foi um som dominante nos necrotérios do meu passado. Já na minha época em Richmond - mesmo antes, quando estava só começando no Walter Reed -, eu
sabia sobre o DNA, que este estava prestes a ser aceito perante um tribunal e se tornar o padrão-ouro forense; desse ponto em diante, tudo que fazíamos nas cenas
de crime, no seguimento da autópsia e nos laboratórios seria questionado no banco das testemunhas. A contaminação estava prestes a se tornar o castigo supremo e,
embora não tivéssemos o hábito de esterilizar nossos instrumentos cirúrgicos em autoclave no CFC, certamente não lhes dávamos uma enxaguada superficial sob a torneira
para depois atirá-los em uma tábua de corte que tampouco estava limpa.
Pego uma faca de dissecção de quarenta e cinco centímetros e reparo em vestígios de sangue seco no cabo de aço inoxidável entalhado e que a lâmina de aço está arranhada,
rombuda e manchada em lugar de afiada e resplandecente como prata polida. Encontro sangue na lâmina serrilhada de um serrote de ossos, manchas de sangue seco no
carretel de um cadarço encerado de cinco fios e em uma agulha de dupla curva. Pego fórceps, tesoura, a tesoura de cortar costelas, cinzel e uma sonda flexível e
fico consternada diante das más condições em que tudo se encontra.
Vou enviar a Anne uma mensagem para que dê uma arrumada em minha estação e lave todos os instrumentos antes de realizarmos a autópsia do homem de Norton's Woods.
Vou mandar limpar toda a sala de autópsias do teto ao chão. Vou mandar inspecionar todos os sistemas antes que minha primeira semana aqui tenha transcorrido, decido
enquanto puxo um novo par de luvas e me encaminho a uma ampla bancada onde um grande rolo de papel branco - que chamamos de papel parafinado - se acha afixado a
um porta-papel instalado na parede. O papel produz um ruído alto quando rasgo um pedaço e cubro uma mesa de autópsia na metade da sala, que pelo menos parece mais
limpa que a minha.
Cubro meus trajes do AFMES com um avental descartável, sem me preocupar com as longas tiras de amarrar, então retorno à minha estação desordenada. Encostada à parede,
há uma estufa branca grande de polipropileno sobre rodízios de borracha vulcanizada com porta dupla em acrílico transparente, que destravo ao inserir um código no
teclado digital. Pendurados no interior, há uma jaqueta de náilon verde com colarinho de lã preta, uma camisa azul de brim, uma calça cargo preta, uma cueca boxer,
cada qual em seu próprio cabide de aço inoxidável; a bandeja na parte inferior contém botas de couro marrom surradas e, ao lado delas, um par de meias cinza de lã.
Reconheço algumas peças de roupa dos vídeos a que assisti e sinto inquietação. O ventilador de centrifugação e os filtros HEPA de exaustão da estufa produzem seu
zumbido baixo enquanto examino as botas e meias pegando uma a uma, sem encontrar nada de extraordinário. A cueca é de algodão branco com braguilha sobreposta e cós
de elástico, e não noto nada fora do comum, nem uma mancha.
Abrindo o casaco sobre a mesa coberta por papel parafinado, enfio as mãos nos bolsos para me certificar de que nada restou dentro deles; pego um diagrama de vestuário
e uma prancheta e começo a tomar notas. O colarinho de pele sintética espessa está coberto de terra, areia e pedaços de folhas secas que aderiram a ele quando caiu
no chão; os grossos punhos de malha também estão sujos. O revestimento em náilon verde é um material muito resistente, que parece à prova de rompimentos e impermeável,
com isolante de fibra preta, nenhum dos quais facilmente penetrável, a menos que a lâmina fosse forte e muito afiada. Não encontro evidência de sangue no forro do
casaco, nem mesmo ao redor da pequena abertura na parte de trás, mas o revestimento externo, os ombros, as mangas e as costas estão enegrecidos e duros do sangue
que se acumulou no fundo do saco depois que o zíper foi fechado e o homem foi transportado ao CFC.
Não sei por quanto tempo ele pode ter sangrado enquanto estava no interior do saco e depois dentro da geladeira, mas não sangrou do ferimento. Quando abro a camisa
de brim de mangas longas, um tamanho masculino pequeno, que ainda cheira de leve a colônia ou loção pós-barba, encontro somente uma mancha escura de sangue que secou
e endureceu ao redor da fenda produzida pela lâmina. O que Marino e Anne relataram parece estar correto: que o homem começou a sangrar pelo nariz e pela boca enquanto
estava completamente vestido dentro do saco, a cabeça voltada para o lado, provavelmente o mesmo lado para o qual estava virada quando o examinei na sala de raios
X. O sangue deve ter gotejado com regularidade de seu rosto para o interior do saco, empoçando e vazando, e verifico facilmente isso quando em seguida o examino,
um receptáculo para transporte de cadáveres adultos, típico daqueles usados pelos serviços de remoção, preto com zíper de náilon. Nas laterais há alças confeccionadas
com correias presas com rebites, e é muitas vezes aí onde ocorre o problema de vazamento, supondo que o saco esteja intacto, sem rasgos nem defeitos nas junturas
seladas a calor. O sangue goteja pelos rebites, especialmente se o saco for muito barato, e este deve ter cerca de vinte e cinco dólares de PVC resistente.
Quando recordo o que acabei de ver na TC e me dou conta da rapidez com que os danos ocorreram no que foi claramente um ataque repentino, o sangramento não faz o
menor sentido. Faz ainda menos sentido do que quando Marino me contou em Dover. A destruição maciça dos órgãos internos do homem teria resultado em hemorragia pulmonar,
que teria provocado sangramento pelo nariz e pela boca. Mas isso teria acontecido quase instantaneamente. Não entendo por que ele não sangrou na cena do crime. Quando
os paramédicos estavam trabalhando para ressuscitá-lo, ele deveria ter sangrado pelo rosto e isso teria sido uma clara indicação de que não caíra devido a arritmia.
Quando deixo a sala de autópsias para me dirigir aos andares superiores, torno a visualizar os vídeos e me recordo de ter pensado sobre as luvas pretas e o motivo
por que ele as colocou quando entrou no parque. Onde estão elas? Não vi as luvas. Não estavam no armário de provas nem na estufa, e verifiquei os bolsos do casaco
e não as encontrei. Com base no que vi nas gravações efetuadas em segredo pelos fones de ouvido do homem, ele vestia luvas quando morreu e visualizo o que acompanhei
no iPad de Lucy quando estava na van a caminho do Terminal Aéreo Civil. A mão colocando a luva preta invadiu a imagem como se o homem estivesse golpeando alguma
coisa, então houve um baque quando a mão atingiu os fones de ouvido e ele deixou escapar: "O que...? Ei...!". Depois árvores nuas girando no alto, então lascas de
ardósia se aproximando no chão e a pancada provocada pela queda; em seguida a bainha de um longo casaco preto farfalhando de passagem. Silêncio, depois as vozes
das pessoas ao redor, que gritavam que ele não estava respirando.
A porta da sala de raios X está fechada quando chego e verifico o interior, mas todos se foram, a sala de controle está vazia e silenciosa, o scanner de TC reluz
branco sob a luz fraca no outro lado do vidro revestido de chumbo. Dou uma parada para tentar o telefone lá dentro, na esperança de que Anne atenda o celular, mas
se ela já estiver no McLean e no laboratório de neuroimagem vai ser impossível alcançá-la através das grossas paredes de concreto do local. Fico surpresa quando
ela atende.
"Onde você está?", pergunto e ouço música ao fundo.
"Estacionando", responde ela, que deve estar dentro da van com Marino na direção e o rádio ligado.
"Quando tirou as roupas dele", pergunto, "você viu um par de luvas pretas? Ele devia estar usando luvas pretas grossas."
Uma pausa; ouço-a perguntar alguma coisa a Marino, em seguida ouço a voz dele, mas não entendo o que estão dizendo. Então ela responde: "Não. E Marino disse que
quando levou o corpo para a ID não viu luva nenhuma".
"Me conte exatamente o que aconteceu ontem pela manhã."
"Fique aqui um instante", ouço-a dizer a Marino. "Não, ali ainda não, ou eles vão sair. Os caras da segurança. Espere aqui", pede Anne. "Tudo bem", diz ela, agora
se dirigindo a mim. "Pouco depois das sete ontem de manhã, o dr. Fielding foi até a sala de raios X. Como você sabe, Ollie e eu sempre chegamos cedo, por volta das
sete; mas ele estava preocupado por causa do sangue. Tinha percebido gotas no chão fora da geladeira e também dentro dela. Percebeu que o corpo estava sangrando
ou tinha sangrado. Tinha muito sangue no saco."
"O corpo ainda estava completamente vestido."
"Estava. O fecho do casaco estava aberto e a camisa tinha sido cortada, os paramédicos fizeram isso, mas ele estava vestido quando chegou e nada foi feito até o
dr. Fielding ir até lá para preparar o sujeito para nós."
"Como assim?"
Fielding nunca prepara um corpo para autópsia, nem se dava o trabalho de transferi-lo da geladeira para a sala de raios X ou a sala de autópsias, pelo menos não
desde os velhos tempos, quando ainda estava em treinamento. Ele deixa o que considera tarefas mundanas para aqueles a quem continua a chamar de servos e a quem chamo
de técnicos.
"Só sei que ele encontrou o sangue e então correu para nos chamar porque atendeu a ligação da polícia de Cambridge e, como você sabe, a hipótese era de que o homem
tinha sofrido morte súbita natural, como uma arritmia, um aneurisma ou coisa parecida."
"E depois?"
"Depois Ollie e eu examinamos o corpo, chamamos Marino, ele chegou, viu, e decidimos não fazer os exames nem o resto."
"Ele foi deixado na geladeira?"
"Não. Marino quis passar com ele pela ID primeiro, para colher digitais e material para os exames de laboratório, para poder ativar a identificação das impressões,
do DNA e qualquer coisa que nos ajude a descobrir quem ele é. Não havia luvas naquela hora, porque Marino teria precisado tirar do corpo para colher as impressões."
"Então onde elas estão?"
"Ele não sabe, eu também não."
"Pode colocar Marino na linha, por favor?"
Ouço Anne entregar o telefone a Marino, e ele diz: "Foi isso. Abri o zíper do saco, mas não retirei o corpo; tinha muito sangue lá dentro, como você já sabe".
"E você fez o que exatamente?"
"Colhi as impressões com ele dentro do saco. Se ele estivesse usando luvas, eu com certeza teria visto."
"É possível que os policiais tenham removido as luvas na cena do crime, colocado dentro do saco e você não tenha percebido? E então de alguma forma elas se extraviaram?"
"Não. Eu procurei por objetos pessoais, como já disse. O relógio, o anel, o chaveiro, a caixinha de fumo, a nota de vinte dólares. Tirei tudo dos bolsos dele e sempre
olho dentro do saco exatamente pelo motivo que você acabou de mencionar. Caso a polícia ou o serviço de remoção enfie alguma coisa ali, como um chapéu, óculos de
sol ou qualquer outra coisa. Os fones de ouvido e o rádio via satélite estavam em um saco e chegaram junto com o corpo."
"E a polícia de Cambridge? Sei que o investigador Lawless levou a Glock."
"Ele passou recibo pela arma para o laboratório de armas de fogo por volta das dez da manhã. Só levou isso."
"E quando Anne guardou as roupas na estufa, bom, é óbvio que ela não tinha as luvas, se você está dizendo que não estavam lá desde o início."
Ouço Marino dizer alguma coisa e então Anne volta ao telefone para explicar. "Não. Não vi as luvas quando guardei tudo na estufa. Isso foi por volta das nove da
noite, há quase quatro horas, quando retirei as roupas para preparar o corpo para o exame, pouco antes de você chegar ao CFC. Limpei a estufa para me certificar
de que estivesse esterilizada antes de colocar as roupas dele lá dentro."
"Fico satisfeita que alguma coisa esteja esterilizada. Precisamos limpar minha estação."
"Tudo bem, tudo bem", diz ela, mas não se dirigindo a mim. "Espere. Jesus, Pete. Só um minuto."
Em seguida a voz de Marino soa em meu ouvido: "Houve outros casos".
"Como é que é?"
"Tivemos outros casos ontem de manhã. Então talvez alguém tenha removido as luvas, mas não faço a mínima ideia do motivo. A menos que tenham sido pegas por engano."
"Quem trabalhou nos casos?"
"O dr. Lambotte, o dr. Booker."
"E Jack?"
"Dois casos além do cara de Norton's Woods", diz Marino. "Uma mulher atingida por um trem e um velho que não estava sob cuidados médicos. Jack não fez merda nenhuma,
desapareceu", continua Marino. "Ele não se preocupa com a cena do crime e terminamos com um corpo que começa a sangrar na geladeira. Agora precisamos provar que
o cara estava morto."
9
A direção do que oficialmente se chama Centro Forense e Necrotério de Cambridge fica no último andar, e descobri que é difícil explicar às pessoas como me encontrar
quando um edifício é redondo.
O melhor que fui capaz de fazer nas raras ocasiões em que estive no prédio foi instruir os visitantes a saltar do elevador no sétimo andar, virar à esquerda e procurar
pelo número cento e onze. Fica uma porta antes do cento e um, e compreender que cento e um é o número de sala mais baixo neste andar e que o cento e onze é o mais
alto requer certa imaginação. As salas que abrigam meu escritório, portanto, ocupariam a extremidade de um longo corredor se houvesse extremidades e corredores longos,
mas não há. Aqui em cima existe apenas um grande círculo com seis escritórios, uma sala de reuniões ampla, a sala de leitura para reconhecimento de voz, a biblioteca,
a sala de descanso e, no centro, um refúgio sem janelas onde Lucy optou por instalar o computador e os documentos duvidosos do laboratório.
Passando pelo escritório de Marino, paro diante do cento e onze, o que ele chama de COMCENT, ou Comando Central. Tenho certeza de que Marino propôs essa denominação
pretensiosa não por me considerar sua comandante, mas por pensar em si mesmo obedecendo a uma ordem superior patriótica análoga a uma vocação religiosa. Sua veneração
pelo militarismo é nova. É só mais um de seus paradoxos, como se Peter Rocco Marino precisasse de mais um paradoxo para definir sua natureza incoerente e conflituosa.
Preciso me acalmar com ele, digo a mim mesma enquanto destranco a pesada porta com camada de titânio de meu escritório. Ele não é tão ruim e não fez nada de tão
terrível. É previsível, e eu não deveria estar nem um pouco surpresa. Afinal, quem o entende melhor que eu? A pedra de Roseta para Marino não é Bayonne, em New Jersey,
onde cresceu como lutador de rua que se tornou boxeador e depois policial. A chave, no caso dele, não é nem mesmo o pai alcoólatra e imprestável. Marino pode ser
explicado acima de tudo pela mãe e pela namorada de infância, Doris, agora sua ex-esposa, duas mulheres aparentemente dóceis, subservientes e carinhosas, mas não
inofensivas. Longe disso.
Aperto botões para acender as luzes embutidas nos suportes da cúpula geodésica de vidro energeticamente eficiente que me faz lembrar de Buckminster Fuller sempre
que olho para cima. Se o famoso arquiteto e inventor continuasse entre os vivos, aprovaria meu prédio e possivelmente a mim, mas não nossa mórbida raison d'être,
desconfio, embora, no estágio em que as coisas estão, eu também lhe fizesse algumas críticas. Por exemplo, não concordo com sua crença de que a tecnologia possa
nos salvar. É certo que ela não está nos tornando mais civilizados; na realidade, acho que o oposto é verdadeiro.
Paro sobre o carpete cor de bronze atrás da porta como se aguardasse permissão para entrar, ou talvez hesite porque me apropriar deste espaço é abraçar uma vida
que adiei por boa parte de dois anos. Para ser honesta, eu diria que a venho adiando há décadas, desde meus primeiros dias no Walter Reed, onde cuidava da minha
própria vida em uma sala abarrotada e sem janelas na sede do AFIP quando Briggs entrou sem bater e deixou cair um envelope cinza de vinte por vinte e sete em minha
mesa no qual estava impresso CONFIDENCIAL.
Quatro de dezembro de 1987. Eu me lembro de modo tão vívido que posso descrever o que estava vestindo, o tempo e o que comi. Sei que tinha fumado muito naquele dia
e tomado várias doses de uísque puro, porque estava agitada e amedrontada. O caso de todos os casos e o Departamento de Defesa queria a mim, tinha me escolhido entre
todos os outros. Ou, mais precisamente, Briggs. Na primavera do ano seguinte, fui dispensada prematuramente pela Força Aérea, não por bom comportamento, mas porque
a administração Reagan me queria longe, e saí sob certas condições escandalosas que ainda hoje me atormentam. É cármico que eu me encontre em um prédio circular.
Nada terminou ou começou em minha vida. O que estava distante está bem ao meu lado. De alguma forma, é tudo a mesma coisa.
A indicação mais gritante de meus seis meses de ausência de um cargo que preciso de fato ocupar é que o escritório administrativo de Bryce, vizinho ao meu, acha-se
confortavelmente atravancado, ao passo que o meu é desabitado e austero. A sensação é de desamparo e solidão; minha pequena mesa de reuniões em aço escovado está
vazia, sem um vaso de plantas sequer, e quando habito um espaço há sempre plantas. Orquídeas, gardênias, plantas carnívoras e árvores para ambientes internos, tais
como a areca e o sagueiro, pois quero vida e fragrâncias. Mas o que eu tinha aqui quando cheguei desapareceu e veio desaparecendo devido ao excesso de água e fertilizantes.
Dei a Bryce instruções detalhadas e três meses para matar tudo. Ele levou menos de dois.
Não há quase nada em minha mesa, uma estação de trabalho modular arqueada, montada em aço calibre vinte e dois com superfície laminada preta e um jogo compatível
de gavetas de arquivo e prateleiras livres entre as amplas janelas com vista para o Charles e o horizonte de Boston. Uma bancada de granito preto atrás de minha
cadeira Aeron estende-se ao longo do comprimento da parede e é o lugar do meu Sistema Leica de Microdissecção a Laser, seus monitores de vídeo e acessórios, e, ao
lado, da minha fiel Leica auxiliar para uso diário e de um microscópio de pesquisa laboratorial mais básico que posso operar com uma das mãos e sem software ou seminário
de treinamento. Não há muito mais que isso, nenhuma pasta de arquivo à vista, nenhum atestado de óbito nem outros documentos para examinar e rubricar, nenhuma correspondência
e muito poucos objetos pessoais. Concluo que não é bom ter um escritório tão perfeitamente arrumado, tão imaculado. Eu preferia um depósito de lixo. É estranho que
o fato de ser confrontada com um espaço de trabalho vazio me faça sentir tão oprimida e, enquanto lacro a carta de Erica Donahue em um saco plástico, finalmente
me dou conta do motivo por que não sou fã de um mundo que está rapidamente se livrando do papel. Gosto de ver o inimigo, as pilhas do que devo vencer, e extraio
conforto das resmas de amigos.
Estou trancando a carta em um armário quando Lucy se apresenta, silenciosa como uma aparição, no grosso jaleco branco que usa para se aquecer e para esconder coisas
dentro, além de sua predileção pelos bolsos amplos. O casaco grande demais a faz parecer enganosamente inofensiva e muito mais jovem que seus trinta e poucos anos,
segundo ela, mas para mim Lucy vai ser sempre uma garotinha. Eu me pergunto se as mães sempre se sentem assim com relação às filhas, mesmo quando elas já são mães
ou, como no caso de Lucy, andam armadas e são perigosas.
Lucy talvez tenha uma pistola enfiada na parte posterior do cós de sua calça cargo, e me dou conta do quanto me sinto egoisticamente feliz pelo fato de ela estar
em casa. Lucy está de volta à minha vida, não na Flórida ou com pessoas das quais preciso me forçar a gostar, como a promotora pública de Manhattan, Jaime Berger.
Enquanto vejo minha sobrinha, minha filha única substituta, entrar em meu escritório, não posso evitar uma verdade que não vou lhe contar. Estou satisfeita que ela
e Jaime tenham terminado a relação. Esse foi de fato o motivo por que não indaguei a respeito.
"Benton ainda está com você?", pergunto.
"Está no telefone." Lucy fecha a porta atrás de si.
"Com quem ele está conversando a esta hora?"
Lucy pega uma cadeira, puxa as pernas para cima do assento e as cruza nos tornozelos. "Com o pessoal dele", responde, como se insinuasse que Benton está conversando
com colegas do McLean, mas não é isso. Anne está lidando com o hospital, e ela e Marino estão lá, iniciando o exame. Por que Benton estaria conversando com eles
ou com qualquer outra pessoa no McLean?
"Somos só nós três então", comento em tom incisivo. "Além de Ron, imagino. Mas, se você quiser a porta fechada, acho que tudo bem." É meu jeito de deixá-la saber
que seu comportamento hipervigilante e dissimulado não me passou despercebido e quero que ela o explique. Eu gostaria que explicasse por que considera necessário
ser evasiva, quando não ostensivamente insincera comigo, sua tia, quase sua mãe, e agora sua chefe.
"Eu sei." Ela retira uma pequena caixa de provas do bolso do casaco.
"Você sabe? O que você sabe?"
"Que Anne e Marino foram ao McLean porque você quer uma RM. Benton me contou. Por que você não foi?"
"Não sou necessária e não seria particularmente útil, já que os exames de RM não são minha especialidade." Não há scanner de RM no necrotério de Dover, onde a maioria
é de mortos de guerra cujo corpo contém metal. "Pensei em cuidar de algumas coisas e, quando estiver convencida de que sei o que estou procurando, vou começar a
autópsia."
"É meio que um jeito inverso de ver as coisas quando você para e pensa", reflete Lucy, os olhos verdes fixos em mim. "Antes você fazia a autópsia para saber o que
estava procurando. Agora ela é só uma confirmação do que você já sabe e um meio de coletar provas."
"Não exatamente. Ainda tenho surpresas. O que tem nessa caixa?"
"Falando no diabo..." Ela faz a caixinha branca deslizar sobre a superfície desobstruída de minha mesa ridiculamente limpa. "Pode tirar da caixa e não precisa de
luvas. Mas tome cuidado com isso."
Dentro da caixa, sobre uma camada de algodão, encontra-se o que parece a asa de um inseto, talvez uma mosca.
"Vá em frente, pegue", encoraja Lucy, inclinando-se para a frente na cadeira, o rosto radiante de entusiasmo, como se estivesse me vendo abrir um presente.
Sinto a rigidez dos suportes de arame e uma fina membrana transparente, alguma coisa parecida com plástico. "Artificial. Interessante. O que é exatamente, e onde
você conseguiu isso?"
"Você conhece o Santo Graal dos flybots?"
"Confesso que me deu um branco."
"Anos e anos de pesquisa. Milhões e milhões de dólares de pesquisa gastos na construção do flybot perfeito."
"Não estou muito informada a respeito. Na verdade, acho que não sei do que você está falando."
"Equipado com microcâmeras e transmissores para vigilância dissimulada, literalmente para grampear pessoas. Ou para detectar substâncias químicas, explosivos ou
até possíveis riscos biológicos. O trabalho vem sendo feito em Harvard, no MIT, em Berkeley e em vários outros locais aqui e no exterior, antes mesmo dos ciborgues,
aqueles insetos com sistemas microeletromecânicos embutidos, com interface máquina-inseto. Que então se difundiram para fazer merdas como esta para outros seres
vivos, como tartarugas e golfinhos. Não foi o auge da DARPA, se você me perguntar."
Devolvo a asa ao quadrado de algodão. "Vamos voltar um pouco. Comece por onde você conseguiu isso."
"Estou preocupada."
"Você e eu, nós duas estamos."
"Quando Marino estava com o cara na ID esta manhã" - Lucy está se referindo ao morto de Norton's Woods - "eu quis contar a ele sobre o sistema de gravação que descobri
nos fones de ouvido. Ele estava colhendo as digitais do corpo e reparei no que de relance parecia uma asa de mosca grudada no colarinho do casaco do morto junto
com outros detritos, como terra e pedaços de folhas mortas."
"Ela não foi desalojada pelos paramédicos", comento. "Quando abriram o casaco dele."
"Não. Estava presa no colarinho de pele falsa", diz Lucy. "Fiquei impressionada com aquilo, sabe, tive uma sensação estranha e dei uma olhada mais de perto."
Retiro uma lupa da gaveta em minha mesa, acendo uma luminária de exame e, sob a luz forte, a asa aumentada já não parece natural. O que se presumiria que fosse a
base da asa, onde esta se ligaria ao corpo, é na verdade uma espécie de articulação dobrável, e as veias que correm através do tecido da asa são brilhantes como
fios.
"Provavelmente um composto de carbono, e são quinze articulações em cada unidade de asa, o que é incrível." Lucy descreve o que estou vendo. "A asa em si é uma estrutura
de polímero eletroativo, que responde a sinais elétricos que fazem com que as asas batam tão rápido quanto as verdadeiras, as da mosca doméstica comum. Historicamente,
um flybot decola na vertical como um helicóptero e voa como um anjo, o que tem sido um dos principais obstáculos do projeto. Isso e a invenção de uma coisa micromecânica
que é autônoma, mas não volumosa - em outras palavras, biologicamente inspirada para que tenha a energia necessária para se deslocar livremente em qualquer ambiente
em que seja colocada."
"Biologicamente inspirada, como as invenções conceptuais de Da Vinci." Eu me pergunto se ela está lembrada da exposição a que a levei em Londres e se reparou no
pôster na sala do apartamento do morto. É claro que reparou. Lucy repara em tudo.
"O pôster em cima do sofá", diz ela.
"É, eu vi."
"Em um dos vídeos, quando ele estava colocando a coleira no cachorro. Não é assustador?", pergunta Lucy.
"Não tenho certeza se sei por que motivo é assustador."
"Bom, pude me dar o luxo de examinar as gravações com mais cuidado que você." O comportamento de Lucy outra vez, as nuances que consigo reconhecer de forma tão segura
quanto detecto mudanças sutis em um tecido ao microscópio. "É da mesma exposição a que você me levou no Courtauld, tem a data daquele mesmo verão", diz ela em tom
tranquilo e com determinado objetivo em mente. "A gente pode ter visitado ao mesmo tempo, supondo que ele tenha visitado."
É isso o que Lucy acha. Que há uma ligação entre o morto e nós.
"Ter o pôster não significa que ele foi até lá", continua ela. "Sei disso. Não se sustentaria em um tribunal", acrescenta com uma ponta de ironia, como se estivesse
dando uma alfinetada em Jaime Berger, a promotora com quem desconfio que ela não esteja mais.
"Lucy, você tem alguma ideia de quem é esse homem?", adianto-me e pergunto.
"Só acho estranho pensar que ele talvez estivesse naquela galeria quando nós estivemos. Mas com certeza não estou afirmando isso. Não mesmo."
Não é o que ela de fato pensa. Vejo isso em seus olhos, ouço em sua voz. Lucy desconfia que o sujeito esteve lá quando estivemos. Como concluiu tal coisa a respeito
de um morto cujo nome desconhecemos?
"Você não está dando uma de hacker outra vez, não é?", digo sem meias palavras, como se perguntasse sobre fumar, beber ou algum outro hábito prejudicial à saúde.
Já pensei mais de uma vez que Lucy pode ter encontrado um jeito de rastrear os arquivos de vídeo gravados em segredo até um computador pessoal ou servidor em algum
lugar. Para ela, um firewall e outras medidas de segurança para proteger dados reservados nada mais são que lombadas em seu caminho para obter o que quer.
"Eu não sou hacker", declara ela com simplicidade.
Isso não é resposta, penso, mas não digo.
"Só acho uma coincidência incrível", continua ela. "E acho provável que ele tenha esse pôster por causa de alguma ligação com aquela exposição. Agora você pode comprar
essas imagens. Eu chequei. Quem teria um pôster desse, a não ser que tivesse ido até lá ou tivesse alguém chegado que foi até lá?"
"A menos que seja muito mais velho do que parece, ele era uma criança na época", observo. "Foi no verão de 2001."
Lembro que o relógio dele estava cinco horas adiantado. Estava ajustado ao fuso horário do Reino Unido e a exposição havia sido em Londres. Isso não prova nada.
Uma consistência, mas não uma prova, digo a mim mesma.
"Aquela exposição era exatamente o tipo de coisa que um inventorzinho precoce ia adorar", comenta Lucy.
"Assim como você", retruco. "Acho que foi quatro vezes. E comprou a série de palestras em CD, de tão fascinada."
"É uma ideia e tanto. Um garotinho na galeria no momento exato em que estávamos lá."
"Você fica dizendo isso como se fosse um fato." Continuo a bater na mesma tecla.
"E quase uma década mais tarde eu estou aqui, você está aqui, e o cadáver dele está aqui. Nem me fale em seis graus de separação."
Fico perturbada ao ouvir Lucy se referir a outra coisa que andei pensando mais cedo. Primeiro a exposição de Londres, agora a imensa teia constituída por todos nós,
a forma como as vidas ao redor do planeta se interconectam de alguma forma.
"Na verdade, eu nunca me acostumei com isso", ela diz. "Ver uma pessoa e então, mais tarde, ela é assassinada. Não que eu consiga visualizar o cara quando menino
na galeria em Londres, não que veja algum rosto de criança na mente. Mas posso ter estado ao lado dele ou até ter conversado com ele. Em retrospecto, é sempre difícil
entender que, se soubesse o que vinha mais à frente, você talvez pudesse ter mudado o destino de alguém. Ou o seu."
"Benton te contou que o homem de Norton's Woods foi assassinado ou você soube disso por outra pessoa?"
"Colocamos a fofoca em dia."
"E você mencionou o flybot enquanto colocavam a fofoca em dia há um instante no seu laboratório." Não é uma pergunta.
Tenho certeza de que Lucy contou a Benton sobre a asa de mosca robótica e qualquer outra coisa que julgue que ele deveria saber. Ela foi enfática há pouco no helicóptero
sobre ele ser a única pessoa em quem realmente confia agora além de mim. Embora eu não me sinta exatamente confiável. Tenho a sensação de que ela está peneirando
informação e sendo seletiva quanto ao que oferece quando não desejo que esconda nada. Não desejo que seja evasiva ou minta. Mas uma coisa que aprendi acerca de Lucy
é que desejar não torna as coisas verdadeiras. Posso desejar o que for e isso não vai mudar seu comportamento. Não vai mudar o que ela pensa ou faz.
Apago a luminária e devolvo a caixinha branca. "O que você quis dizer com 'voa como um anjo'?"
"Aquelas reproduções artísticas de anjos pairando. Sei que você já viu algumas." Lucy pega um bloco e uma caneta primorosamente dispostos ao lado do telefone. "Os
corpos ficam na vertical, como o de alguém com um jato nas costas, ao contrário dos insetos e pássaros, cujo corpo fica na horizontal durante o voo. Esses flybots
pequenos voam na vertical, como anjos, e essa é uma de suas falhas, isso e o tamanho. A busca de uma solução é como a do Santo Graal. Já frustrou os melhores e mais
brilhantes."
Ela faz um esboço para me mostrar, um boneco de palitinhos que parece uma cruz voando pelos ares.
"Se você quiser que um inseto como a mosca doméstica comum seja literalmente uma mosca na parede realizando vigilância dissimulada", continua ela, "deve parecer
com uma mosca, não com um corpo minúsculo com asas na vertical. Se eu estivesse em uma reunião com Ahmadinejad no Irã e alguma coisa passasse voando na vertical,
então pousasse na vertical no peitoril da janela como uma Sininho minúscula, acho que eu perceberia e ficaria meio desconfiada."
"Se você fosse a uma reunião com Ahmadinejad no Irã, eu ficaria muito desconfiada por várias razões. Esquecendo por que motivo meu paciente tinha a asa de uma dessas
coisas no casaco, supondo que essa asa faça parte de um flybot completo...", começo a dizer.
"Não exatamente um flybot", interrompe ela. "Também não é necessariamente um spybot. É aonde estou querendo chegar. Acho que isso é o Santo Graal."
"Então, seja o que for, para que ele teria sido usado?"
"A imaginação é o limite", responde ela. "Eu poderia fazer uma boa lista, mas não dá para saber de forma definitiva, não a partir de uma asa, embora eu possa dizer
algumas coisas importantes. Infelizmente, não consegui encontrar o resto do objeto."
"Você está querendo dizer no corpo, no casaco? Encontrar o resto onde?"
"Na cena do crime."
"Você foi a Norton's Woods."
"Com certeza", diz ela. "Assim que percebi a origem da asa. É claro que fui direto para lá."
"Passamos várias horas juntas." Lembro Lucy que poderia ter me contado antes. "Só você e eu naquela cabine a viagem inteira desde Dover."
"É engraçado esse sistema de comunicação interna. Mesmo quando tenho certeza de que está desligado lá atrás, não me sinto segura. Não se é alguma coisa que não posso
me permitir que alguém ouça. Marino não deve tomar conhecimento disso." Ela aponta para a caixinha branca que contém a asa.
"Por que exatamente?"
"Acredite em mim, você não quer que ele saiba porra nenhuma sobre isso. É uma peça muito pequena de alguma coisa muito maior em mais de um sentido."
Ela continua a me assegurar que Marino nada sabe a respeito de sua ida a Norton's Woods. Desconhece a existência da pequena asa mecânica ou que há um fator motivador
no fato de ela tê-lo encorajado a me buscar em Dover mais cedo, para me escoltar em segurança no helicóptero. Lucy não mencionou nada disso até agora, continua a
explicar, porque não confia em ninguém no momento. A não ser em Benton, acrescenta. E em mim, acrescenta. E está sendo muito cuidadosa com os locais onde tem certas
conversas, e todos nós deveríamos ser.
"A menos que a área esteja liberada", diz ela, e o que tem em vista é vasculhado; a implicação disso é que meu escritório é seguro ou não estaríamos tendo esta conversa
nele.
"Você verificou meu escritório à procura de dispositivos de vigilância?" Não estou chocada. Lucy sabe vasculhar um local à procura de gravadores escondidos porque
sabe espionar. O melhor ladrão é o chaveiro. "Quem você acha que estaria interessado em grampear meu escritório?"
"Não sei bem quem está interessado no quê ou por quê."
"Não Marino", digo então.
"Bom, isso seria fácil de descobrir. Mas é claro que não. Não estou preocupada que ele faça alguma coisa assim. Só me preocupa que não consiga ficar de boca fechada",
retruca Lucy. "Pelo menos não quando se trata de certas pessoas."
"Você conversou sobre o MORT no helicóptero. Não ficou preocupada com o sistema de comunicação interna nem com Marino quando fez referência ao MORT."
"Não é a mesma coisa. Não chega nem perto", diz ela. "Não importa se Marino abrir a boca para certas pessoas a respeito de um robô no apartamento do cara. Outras
pessoas já têm conhecimento disso, pode ter certeza. Não posso correr o risco de ter Marino falando da minha amiguinha aqui." Ela olha para a caixinha branca. "E
ele não teria em vista nada de ruim. Mas não entende certas realidades sobre certas pessoas. Especialmente o general Briggs e a capitã Avallone."
"Eu não imaginava que você soubesse alguma coisa sobre ela." Nunca mencionei Sophia Avallone a Lucy.
"Jack mostrou as instalações quando ela esteve aqui. Marino comprou almoço, ficou lambendo o rabo uniformizado dela. Ele não entende gente assim, não entende a porra
do Pentágono. Simplesmente assume que todo mundo é como a gente."
Fico aliviada que Lucy perceba isso, mas não quero incentivá-la a desconfiar de Marino, nem de leve. Ela passou por muita coisa com ele e os dois são finalmente
amigos de novo, tão chegados quanto quando Lucy era criança e ele lhe ensinou a dirigir sua caminhonete e a atirar e ela o irritava para valer, o que era recíproco.
Lucy recebeu de minha genética a ciência, mas recebeu dele sua afinidade pela matéria policial, como ela diz. Foi ele o detetive importante e durão em sua vida enquanto
criança prodígio sabe-tudo e difícil, e ele a amou e a odiou em tantas ocasiões diferentes quanto Lucy o amou e o odiou. Mas os dois são amigos e colegas agora.
Faço tudo para que continuem assim. Tenha cuidado com o que diz, previno a mim mesma. Deixe que a paz perdure.
"De onde concluo que Briggs não tem conhecimento disso." Indico a caixinha branca em cima de minha mesa. "Nem a capitã Avallone."
"Não vejo como."
"Meu escritório tem alguma escuta agora?"
"Nossa conversa é completamente segura", declara ela, o que não é uma resposta.
"E Jack? É possível que ele saiba sobre o flybot? Bom, você não contou a ele."
"De jeito nenhum."
"Então, só se alguém tiver ligado procurando pelo objeto. Ou talvez pela asa do objeto."
"O que você está querendo dizer é: só se o assassino tiver telefonado para cá à procura de um flybot desaparecido", diz Lucy. "E vou chamar assim para simplificar,
embora isso não seja um flybot comum. Isso seria uma idiotice. Indicaria que o autor da ligação tinha alguma coisa a ver com o homicídio do sujeito."
"Não podemos descartar nada. Às vezes os assassinos fazem coisas idiotas", retruco. "Quando estão muito desesperados."
10
Lucy se levanta e entra em meu banheiro privativo, onde há uma máquina de café sobre uma bancada. Ouço-a encher o reservatório com água da torneira e verificar o
pequeno refrigerador. É quase uma da manhã e a neve não diminuiu, está caindo com força e rápido, e quando os pequenos flocos são soprados de encontro às janelas
o som parece o de areia explodindo contra o vidro.
"Leite desnatado ou creme?", chama Lucy do que deveria ser meu vestiário particular, que inclui um chuveiro. "Bryce é uma ótima esposa. Encheu sua geladeira."
"Ainda bebo café preto." Começo a abrir as gavetas em minha mesa, sem saber ao certo o que estou procurando.
Penso em minha estação de trabalho suja na sala de autópsias. Penso nas pessoas usando o que não deveriam usar.
"Bom, então por que você tem leite e creme?" É a voz alta de Lucy. "Green Mountain ou Black Tiger? Também tem com avelã. Desde quando você bebe café sabor avelã?"
As perguntas são retóricas. Ela sabe as respostas.
"Desde nunca", resmungo, vendo lápis, canetas, adesivos Post-it, clipes e, na gaveta de baixo, chiclete de hortelã.
A embalagem está pela metade e não masco chiclete. Quem gosta de chiclete de hortelã e teria motivos para usar minha escrivaninha? Não Bryce. Ele é pretensioso demais
para mascar chiclete e, se eu o apanhasse fazendo isso, desaprovaria, pois considero uma grosseria mascar chiclete na frente de outras pessoas. Além disso, Bryce
não fuçaria minha mesa, não sem permissão. Ele não se atreveria.
"Jack gosta de hortelã, baunilha francesa, essas merdas, e bebe café com leite desnatado, a não ser que esteja fazendo uma das dietas ricas em proteína e gordura
dele", continua Lucy de dentro do banheiro. "Aí usa creme de verdade, creme gordo como esse aqui. Imagino que, se você tivesse visita, ou estivesse esperando alguma,
teria creme."
"Não quero nada com sabor e, por favor, prepare o café forte."
"Ele é um superconsumidor, exatamente como você", soa a voz de Lucy. "As digitais dele estão em todas as fechaduras deste lugar, tanto quanto as suas."
Ouço o esguicho de água quente através da embalagem de K-Cup e recebo a interrupção com alegria. Recuso-me a me engajar na especulação venenosa de que Jack Fielding
esteve em meu escritório durante minha ausência, de que talvez o tenha usado enquanto bebia café, mascava chiclete ou sabe-se lá o que mais. Mas, quando olho ao
redor, não parece possível. Meu escritório dá a sensação de não habitado. Certamente não parece que alguém andou trabalhando por aqui.
"Fui a Norton's Woods antes da polícia de Cambridge. Marino pediu a eles que voltassem por causa do número de série apagado da Glock. Mas cheguei lá primeiro." Lucy
continua a falar alto de dentro do banheiro. "Mas tive a desvantagem de não saber exatamente onde o cara caiu, onde foi esfaqueado, como agora sabemos. Sem as fotografias
da cena, é impossível conseguir a localização exata, só uma estimativa, então vasculhei todas as trilhas do parque."
Ela surge com café fumegante em canecas pretas com a insígnia pouco comum do AFMES, a mão de pôquer de cinco cartas composta por ases e oitos, conhecida como a mão
do homem morto, o que Wild Bill Hickok estava segurando quando foi morto a tiros.
"Foi como procurar agulha em palheiro", continua ela. "O flybot tem provavelmente a metade do tamanho de um clipe de papel pequeno, é mais ou menos do tamanho de,
bom, de uma mosca. Não encontrei nada."
"Só porque você encontrou uma asa não significa que o resto estava lá", lembro quando ela deposita o café a minha frente.
"Se estiver, está mutilado." Lucy retorna à sua cadeira. "Debaixo de neve enquanto conversamos e sem uma asa. Mas muito possivelmente ainda vivo, sobretudo quando
exposto à luz, supondo que não tenha sofrido outras avarias."
"Vivo?"
"Não literalmente. Provavelmente alimentado por micropainéis solares, em vez de uma bateria, que já estaria inativa. A luz bate no objeto e abracadabra. É para onde
tudo está se encaminhando. E o nosso amiguinho, onde quer que esteja, é futurista, uma obra-prima da microtecnologia."
"Como você pode ter tanta certeza se não conseguiu encontrar a maior parte dele? Só tem uma asa."
"Não uma asa qualquer. O ângulo e as juntas flexíveis são engenhosos e sugerem um plano de voo diferente. Não mais o voo de um anjo. Mas horizontal, como o de um
inseto de verdade. O que quer que seja essa coisa e qualquer que seja sua função, estamos falando de um objeto extremamente avançado, que eu nunca vi. Nada foi publicado
a respeito, porque recebo praticamente todas as revistas técnicas on-line. Além disso, andei fazendo pesquisas a respeito, sem sucesso. Ao que tudo indica, é um
projeto sigiloso, altamente secreto. Espero que o resto dele esteja lá no chão em algum lugar, coberto de neve e a salvo."
"O que isso estava fazendo em Norton's Woods para início de conversa?" Visualizo a mão enluvada invadindo a imagem da câmera de vídeo escondida, como se o homem
estivesse golpeando alguma coisa.
"Sim. E era dele ou de outra pessoa?" Ela sopra o café, segurando a caneca com ambas as mãos.
"Tem alguém procurando por isso? Alguém acha que está aqui ou que sabemos onde está?", torno a perguntar. "Alguém te contou que as luvas dele desapareceram? Você
reparou nisso lá embaixo enquanto Marino estava colhendo as digitais do corpo? Parece que a vítima colocou um par de luvas pretas quando chegou ao parque, o que
achei estranho quando assisti aos vídeos. Imagino que ele tenha morrido de luvas, então onde elas estão?"
"Interessante", diz Lucy, e não consigo perceber se já sabia que as luvas desapareceram.
Não consigo descobrir o que ela sabe e se está mentindo.
"Elas não estavam no parque quando andei por lá ontem de manhã", informa. "Eu teria visto um par de luvas pretas se tivesse sido acidentalmente deixado pelos técnicos,
pelo serviço de remoção ou pelos policiais. É claro que elas podem ter sido recolhidas por alguém que passou por ali."
"No vídeo, alguém usando um casaco preto longo passa pouco depois que o homem cai no chão. É possível que quem matou o sujeito tenha parado só o tempo suficiente
para pegar as luvas?"
"O que você tem em mente é se elas são luvas de dados ou luvas inteligentes, do tipo que é usado em combate, luvas com sensores para sistemas de computadores portáveis,
a robótica portável", diz Lucy como se fosse normal deliberar sobre um par de luvas desaparecido.
"Só estou querendo saber por que as luvas são tão importantes para que alguém tenha se dado o trabalho de pegar, se é que foi o que aconteceu", retruco.
"Se elas forem munidas de sensores e era assim que ele estava controlando o flybot, supondo que o flybot seja dele, então as luvas seriam extremamente importantes",
diz Lucy.
"E você não perguntou sobre as luvas quando esteve lá embaixo com Marino? Não pensou em examinar todas as roupas à procura de sensores?"
"Se eu estivesse com as luvas, teria muito mais chance de encontrar o flybot quando voltei a Norton's Woods", declara Lucy. "Mas elas não estão comigo nem sei onde
estão, se é o que está perguntando."
"Estou perguntando porque seria adulteração de provas."
"Não fiz isso. Prometo. Não sei com certeza se são luvas de dados, mas faz sentido se levarmos em conta outras coisas. Como o que ele diz no vídeo pouco antes de
morrer", acrescenta ela com ar pensativo, refletindo, ou talvez já tenha refletido, mas esteja me levando a crer que o que está dizendo é um raciocínio novo. "O
homem fica repetindo 'Ei, rapaz'."
"Pensei que ele estivesse falando com o cachorro."
"Talvez sim. Talvez não."
"E ele disse outras coisas que não consegui entender", recordo. "'E para você' ou 'Você manda um', alguma coisa assim. Uma mosca robótica consegue entender comandos
de voz?"
"É completamente possível. Essa parte foi abafada. Também ouvi e achei confuso", diz Lucy. "Mas talvez não se ele estivesse controlando um flybot. Ele pode ter emitido
algum comando numérico ou de direção. Vou escutar outra vez com som mais alto."
"Mais?"
"Já apliquei um pouco. Não ajudou. Ele pode ter dado coordenadas de GPS ao flybot, o que seria um comando comum para um dispositivo que responde à voz - se você
estiver dizendo a ele aonde ir, por exemplo."
"Se conseguisse entender alguma coordenada de GPS, talvez você encontrasse o lugar, descobrisse onde ele está."
"Sinceramente, duvido. Se o flybot era controlado pelas luvas, controlado pelo menos em parte por sensores nela, e quando a vítima acenou com a mão, talvez no momento
em que foi esfaqueada?"
"O quê?"
"Não sei, mas não tenho o flybot e não tenho as luvas", diz Lucy me encarando com ar sério, os olhos direto nos meus. "Não encontrei nenhum deles, mas com certeza
gostaria de ter encontrado."
"Marino comentou que alguém pode ter seguido Benton e eu depois que saímos de Hanscom?", pergunto.
"Procuramos o SUV grande com faróis de xenônio e de neblina. Não estou dizendo que signifique alguma coisa, mas Jack comprou em outubro um Navigator azul-escuro.
Usado. Você não estava aqui, então acho que não viu."
"Por que Jack nos seguiria? E não, não sabia que ele tinha comprado um Navigator. Pensei que tivesse um jipe Cherokee."
"Ele trocou, acho." Lucy bebe o café. "Eu não disse que ele seguiria vocês. Ou que seria idiota o suficiente para colar no seu para-choque. A não ser em uma nevasca
ou um nevoeiro, quando a visibilidade é muito ruim, alguém bastante inexperiente pode seguir muito de perto se não souber para onde o alvo está indo. Não vejo por
que Jack se daria esse trabalho. Ele não imaginaria que você estava a caminho daqui?"
"Você tem ideia do motivo por que alguém se daria esse trabalho?"
"Se alguém sabe que o flybot está desaparecido", responde Lucy, "com toda certeza está procurando por ele e possivelmente não pouparia nada para encontrar o objeto
antes que caia nas mãos erradas. Ou nas mãos certas. Dependendo de com quem ou o que estamos lidando. Posso dizer isso com base em uma asa. Se foi por isso que vocês
foram seguidos, fico menos propensa a desconfiar que quem matou o sujeito tenha encontrado o flybot. Em outras palavras, o dispositivo pode muito bem estar desaparecido.
Provavelmente não preciso te dizer que uma invenção técnica patenteada ultrassecreta como essa pode valer uma fortuna, especialmente se alguém roubar a ideia e levar
o crédito por ela. Se essa pessoa está procurando pelo dispositivo e tem motivos para temer que ele tenha vindo para cá junto com o corpo, talvez quisesse ver aonde
vocês estavam indo, o que estavam fazendo. Ele ou ela poderia pensar que o flybot está aqui no CFC ou que você o guardou em algum outro lugar. Inclusive em casa."
"Por que estaria na minha casa? Ainda não fui para casa."
"Pessoas sob pressão não têm lógica", responde Lucy. "Se eu fosse a pessoa que está procurando, talvez imaginasse que você instruiu seu marido, que já pertenceu
ao FBI, a esconder o flybot em casa. Poderia imaginar todo tipo de coisas. E se o flybot ainda está à solta, continuaria a procurar."
Recordo as exclamações do homem, ouço sua voz em minha imaginação. "O que...? Ei...!" Talvez a reação assustada não se devesse unicamente à dor aguda repentina na
região lombar e à tremenda pressão no peito. Talvez alguma coisa tenha voado de encontro ao seu rosto. Talvez ele estivesse usando luvas de dados e sua reação de
surpresa tenha ocasionado a avaria no flybot. Imagino o minúsculo dispositivo a meio voo, sendo atingido pela mão enluvada do homem e esmagado contra o colarinho
do casaco.
"Se alguém está de posse da luva de dados e procurou pelo flybot antes da neve começar, é realmente possível que não tenha encontrado o dispositivo?", pergunto à
minha sobrinha.
"É claro que é possível. Depende de uma série de coisas. Do quanto ele está avariado, por exemplo. Houve muita atividade ao redor do homem depois que ele caiu. Se
o flybot estava por ali, no chão, pode ter sido esmagado ou ainda mais danificado e parou completamente de responder. Ou pode estar embaixo de alguma coisa, em alguma
árvore, no meio do mato ou em qualquer lugar lá fora."
"Imagino que um inseto robótico possa ser usado como arma", sugiro. "Já que não faço ideia do que causou as lesões internas desse homem, preciso pensar em todas
as possibilidades imagináveis."
"Esse é o problema", diz Lucy. "Hoje, quase tudo que você imaginar é possível."
"Benton contou o que vimos na TC?"
"Não vejo como um inseto micromecânico possa ter causado danos internos assim", responde Lucy. "A menos que tenham injetado alguma coisa na vítima com um dispositivo
microexplosivo."
Minha sobrinha e suas fobias. Sua obsessão por explosivos. Sua grave desconfiança do governo.
"E com certeza espero que não", continua ela. "Na verdade, estaríamos falando em nanoexplosivos quando se trata de um flybot."
Minha sobrinha e suas teorias; recordo o comentário de Jaime Berger da última vez que a vi no dia de Ação de Graças, quando estávamos todos em Nova York, jantando
em sua cobertura. "O amor não vence tudo", disse Berger. "É impossível", disse ela, bebendo muito vinho e passando tempo demais na cozinha discutindo com Lucy a
respeito do Onze de Setembro, a respeito de explosivos usados em demolições, nanomateriais pintados em infraestruturas que causariam uma terrível destruição se sofressem
o impacto de grandes aviões repletos de combustível.
Já desisti de argumentar com minha fóbica e cínica sobrinha, que é inteligente demais para seu próprio bem e não me ouve. Para ela, não importa que simplesmente
não haja fatos suficientes que confirmem aquilo de que está convencida, apenas alegações sobre resíduos encontrados na poeira logo depois que as torres desabaram.
Então, semanas mais tarde, mais poeira foi coletada, contendo os mesmos resíduos de óxido de ferro e alumínio, um nanocompósito usado na produção de fogos e explosivos.
Admito que foram escritos artigos a respeito em revistas científicas dignas de crédito, mas não o suficiente, e eles nem mesmo começam a provar que nosso próprio
governo ajudou a planejar o Onze de Setembro como desculpa para dar início a uma guerra no Oriente Médio.
"Sei o que você pensa sobre teorias da conspiração", diz Lucy. "Essa é uma grande diferença entre nós. Já vi o que os supostos mocinhos são capazes de fazer."
Ela nada sabe sobre a África do Sul. Se soubesse, perceberia que não há diferença entre nós duas. Sei muito bem o que os supostos mocinhos são capazes de fazer.
Mas não o Onze de Setembro. Eu não iria tão longe e penso em Jaime Berger e imagino o quanto devia ser difícil para a poderosa e consagrada promotora pública de
Manhattan ter Lucy como companheira. O amor não vence tudo. É realmente verdade. Talvez a paranoia de Lucy acerca do Onze de Setembro e o país em que vivemos a tenha
reconduzido a um isolamento social que historicamente nunca é interrompido por muito tempo. Achei que Jaime fosse de fato a pessoa certa, que ia durar. Agora tenho
certeza de que não. Quero dizer a Lucy que sinto muito por isso, que sempre vou estar presente e conversar sobre tudo que ela quiser, mesmo que vá de encontro a
minhas crenças. Agora não é o momento.
"Acho que precisamos levar em conta que talvez estejamos lidando com algum cientista renegado, talvez mais de um, que não está tramando nada de bom", diz Lucy em
seguida. "É esse o ponto importante que estou tentando avaliar. E estou me referindo a coisas ruins, muito ruins, tia Kay."
Sinto alívio ao ouvir Lucy me chamar de tia Kay. Sinto que está tudo bem conosco quando ela me chama assim, o que raras vezes faz agora. Não consigo lembrar quando
tinha sido a última vez. Quando sou sua tia Kay, quase consigo ignorar o que é Lucy Farinelli, um gênio sociopata limítrofe, diagnóstico que Benton ridiculariza,
gentil mas firmemente. Ser sociopata limítrofe é como estar meio grávida ou meio morta, diz ele. Amo minha sobrinha mais do que minha própria vida, mas vim a aceitar
que, quando ela se comporta bem, é um ato de vontade ou simplesmente lhe convém. A moralidade tem muito pouco a ver com isso. Tudo está relacionado ao fim justificando
os meios.
Analiso Lucy com cuidado, embora não tenha esperança de entender o que existe ali. Seu rosto nunca revela informação que possa de fato machucá-la.
"Preciso fazer uma pergunta", digo.
"Pode fazer mais de uma." Ela sorri e parece incapaz de ferir alguma coisa ou alguém, a menos que a pessoa reconheça a força e a agilidade em suas mãos serenas e
as rápidas mudanças em seus olhos à medida que os pensamentos lampejam por trás deles como relâmpagos.
"Você não está envolvida no que quer que seja isso?" Eu me refiro à caixinha branca e à asa do flybot dentro dela. Refiro-me ao morto que está fazendo uma ressonância
magnética no McLean - alguém que talvez tenha cruzado nosso caminho em uma exposição de Da Vinci em Londres meses antes do Onze de Setembro, que Lucy incrivelmente
acredita ter sido orquestrado pelo nosso próprio governo.
"Não." Ela responde sem afetação, não hesita e não parece nem um pouco constrangida.
"Porque agora você está aqui." Lembro Lucy de que ela trabalha para o CFC, ou seja, de que trabalha para mim, e estou sujeita ao governador de Massachusetts, ao
Departamento de Defesa e à Casa Branca. Estou sujeita a muita gente. "Não posso ter..."
"É claro que não. Não vou criar problemas."
"Não é mais só você..."
"Não precisamos ter essa conversa", ela torna a interromper, e seus olhos chispam. São tão verdes que não parecem reais. "De qualquer forma, ele não tem lesões térmicas,
certo? Nenhuma queimadura."
"Nada que eu tenha visto até agora. Isso é certo", respondo.
"Tudo bem. Então e se alguém espetou o cara com uma arma subaquática modificada? Sabe, um daqueles arpões com alguma coisa parecida com um cartucho de espingarda
na ponta? Só que, nesse caso, uma carga muito pequena, minúscula, contendo nanoexplosivos?"
Aperto o botão liga/desliga para acionar meu computador de mesa. "Não teria a aparência do que acabei de ver. Ia parecer o ferimento provocado por um disparo de
contato, menos a abrasão típica produzida pelo cano da arma. Mesmo que estivéssemos falando do uso de nanoexplosivos em oposição a algum tipo de munição de arma
de fogo na ponta de uma lança ou de alguma coisa parecida com uma lança, você está certa, veria lesões térmicas. Haveria queimaduras na entrada e no tecido subjacente.
Imagino que esteja sugerindo que alguma coisa como um flybot poderia ser usado para lançar nanoexplosivos. É o que teme que esse suposto cientista renegado, ou mais
de um, esteja fazendo?"
"Lançar. Detonar. Nanoexplosivos, drogas, venenos. Como eu disse, a imaginação é o limite do que um dispositivo desses é capaz de fazer."
"Preciso dar uma olhada na filmagem de segurança que mostra o vazamento do saco contendo o corpo", digo, enquanto procuro arquivos em meu computador. "Não vou ter
que procurar Ron para isso, vou?"
Lucy contorna a mesa e começa a digitar em meu teclado, inserindo sua senha do administrador do sistema, que confere total acesso aos meus domínios.
"Moleza." Ela pressiona uma tecla para abrir um arquivo.
"Ninguém pode entrar nos meus arquivos sem seu conhecimento."
"Não no ciberespaço. Mas não sei se alguém esteve no seu espaço físico, principalmente porque não fico aqui o tempo todo; na verdade, não fico aqui nem a maior parte
do tempo, porque trabalho à distância sempre que posso", diz ela, mas não estou convencida de que não saberia.
Na realidade, não acredito nisso.
"Mas não existe a menor possibilidade de que alguém tenha entrado nos seus arquivos protegidos por senha", continua ela, e nisso eu acredito. Lucy não permitiria.
"Você pode monitorar as câmeras de segurança de qualquer lugar, por sinal. Até do seu iPhone, se quiser. Tudo de que precisa é acesso à internet. Encontrei isso
mais cedo e salvei como arquivo. Cinco e quarenta e dois da tarde. Que foi a hora de ontem em que as imagens foram captadas por uma câmera de segurança na recepção."
Lucy clica no play, aumenta o volume e vejo dois atendentes vestindo casaco de inverno empurrando uma maca que conduz um saco preto ao longo do corredor de ladrilho
cinza no andar de baixo.
As rodas estalam quando eles estacionam a maca em frente à geladeira e agora vejo Janelle, gorducha e com cabelo castanho curto, com ar agressivo e uma quantidade
surpreendente de tatuagens, tão bem quanto a recordo. Alguém que Fielding encontrou e contratou.
Janelle abre a maciça porta de aço e ouço a precipitação do golpe de ar.
"Coloque isso..." Ela aponta e noto que está usando uma jaqueta escura com PERÍCIA em grandes letras amarelas brilhantes na parte de trás. Ela veste o uniforme externo,
inclusive o boné de beisebol do CFC, como se fosse sair no frio ou tivesse acabado de entrar.
"Naquela bandeja ali?", um dos atendentes pergunta enquanto ele e o companheiro retiram da maca o saco contendo o corpo. O saco se dobra à vontade enquanto eles
o carregam, o corpo em seu interior tão flexível quanto em vida. "Merda, ele está pingando. Droga. É bom que não tenha aids nem nada parecido. Na minha calça, na
porra do meu sapato."
"Na mais baixa." Janelle guia os dois homens até uma bandeja no interior da geladeira, saindo do caminho e nem um pouco interessada no sangue que goteja do saco
e mancha o chão cinza. Ela parece não notar.
"Janelle, a maravilhosa", comenta Lucy, quando a gravação de vídeo termina de repente.
"Você tem os registros do IML?" Quero ver a que horas o investigador médico-legal - em outras palavras, Janelle - chegou e saiu ontem. "É óbvio que ela estava de
plantão durante a noite."
"Ela fez dois turnos no domingo, maníaca por trabalho do jeito que é", diz Lucy. "Substituiu Randy, que estava escalado para as noites do fim de semana, mas pediu
dispensa por estar doente. O que significa que ficou em casa para assistir ao Super Bowl."
"Espero que não."
"E o fresco do Randy não está aqui agora por causa do tempo. Supostamente, está de plantão em casa. Deve ser bom ter um utilitário para levar embora e ser pago para
ficar em casa", diz Lucy, e ouço o desprezo em seu tom áspero e o vejo na dureza em seu rosto. "Acho que você já percebeu onde está metida. Supondo que tenha desistido
de arranjar desculpas para as pessoas."
"Não arranjo desculpas para você."
"Isso porque não precisa."
Examino os registros que Janelle deixou ontem, um documento-padrão em minha tela de vídeo com muito poucos campos preenchidos.
"Não pretendo explicar o que é evidente como o nariz no meu rosto, mas você sabe muito pouco sobre o que acontece por aqui", diz Lucy. "Não conhece os detalhes do
dia a dia neste lugar. E como poderia?" Ela volta para o outro lado da mesa e pega seu café, mas não torna a se sentar. "Nunca está aqui. Desde que começamos a funcionar."
"É só isso? Esse é o registro inteiro do dia de ontem?"
"É isso aí. Janelle chegou às quatro. Se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro." Lucy continua de pé bebendo o café e me observando. "E ela anda
com uma quadrilha e tanto, por sinal. Os merdas dos amigos forenses dela. A maioria policiais, alguns da área de processamento de dados ou gente de escritório. Qualquer
pessoa para quem ela possa posar de heroína. Sabia que faz parte de um time de queimada? Que tipo de pessoa joga queimada? Alguém com finesse."
"Se ela entrou às quatro, por que está vestindo o uniforme externo, inclusive a jaqueta? Como se tivesse acabado de chegar do frio?"
"Como eu disse, se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro."
"E David estava de serviço antes disso e também não respondeu?", pergunto. "Jack podia ter mandado David a Norton's Woods. Ele estava aqui à toa, então por que Jack
não pediu que fosse até a cena? Fica a uns quinze minutos daqui."
"E você não sabe disso também." Lucy entra no banheiro e enxágua sua caneca. "Você não sabe se David estava aqui à toa", diz enquanto torna a sair e se põe a circular
perto da porta fechada do escritório. "Não quero ser eu a te contar..."
"Parece que você é a única. Ninguém me conta porra nenhuma", retruco. "O que está acontecendo por aqui? As pessoas só aparecem quando sentem vontade?"
"Praticamente. Os outros legistas, os investigadores, todos entram e saem ao seu bel-prazer. Isso vem de cima."
"Vem de Jack."
"Ao menos por esse lado. Os laboratórios são outra história, porque ele não está interessado neles. A não ser o de armas de fogo." Ela se apoia na porta fechada,
enfiando as mãos nos bolsos do jaleco.
"Ele devia estar no comando na minha ausência. Jack é codiretor de todo o necrotério do CFC." Não consigo afastar de minha voz o tom de queixa, de indignação.
"Jack não se interessa pelos laboratórios e, de qualquer forma, os pesquisadores não prestam a menor atenção nele. A não ser o de armas de fogo, como eu já disse.
Você conhece Fielding com revólveres, facas, balestras, arcos. Nunca encontrei uma arma que ele não adorasse. Então se mete no laboratório de armas e marcas e já
conseguiu ferrar com eles também. Encheu a paciência de Morrow até ele ficar à beira da demissão. Sei que está procurando outro emprego. E não existe nenhum bom
motivo para que o laboratório dele não terminasse com a Glock do morto. O número de série apagado. Merda. Ele se mandou hoje de manhã e nem se preocupou."
"Ele se mandou hoje de manhã?"
"Estava saindo de carro quando voltei de Norton's Woods. Por volta das dez e meia."
"Você falou com ele?"
"Não. Talvez ele não estivesse se sentindo bem. Não sei, mas não entendi por que não se certificou de que alguém se encarregasse da Glock. Usar ácido em um número
de série apagado? Quanto tempo leva para pelo menos tentar? Ele devia saber que era importante."
"Talvez não soubesse", retruco. "Se o detetive de Cambridge foi o único a falar com ele, por que ia achar que a Glock era importante? Na ocasião, ninguém fazia ideia
de que é um homicídio."
"Bom, acho que esse é um ponto relevante. Morrow provavelmente nem sabe que fomos te buscar, que você voltou de Dover. Fielding também desapareceu, quando sabia
muito bem que havia um problema grave que a maioria das pessoas com um cérebro na cabeça ia concluir que era culpa dele. Foi Fielding que recebeu a chamada sobre
o cara em Norton's Woods. Foi ele que deixou de ir até a cena do crime e não garantiu que alguém fosse. O motivo por que Janelle está toda vestida para sair, na
minha opinião? Ela não chegou aqui às quatro, na hora em que anotou no registro. Chegou a tempo de fazer os atendentes entrarem, registrar a entrada do corpo e depois
deu meia-volta e saiu. Posso descobrir. Existe um registro de quando ela desativou o alarme para entrar no prédio. Depende de você querer tornar isso um caso federal."
"Estou surpresa que Marino não tenha se certificado de que eu tomasse conhecimento da extensão dos problemas." É só no que consigo pensar para dizer. O interior
da minha cabeça está vazio.
"Na verdade é a história de Pedro e o lobo", diz Lucy e é verdade.
Marino reclama tanto de tantas pessoas que mal ouço. Agora de volta às minhas falhas. Não prestei atenção. Não escutei. Talvez não escutasse independentemente de
quem tivesse contado.
"Tenho que cuidar de algumas coisas. Você sabe como me encontrar", diz Lucy, abrindo a porta e a deixando aberta depois que saiu.
Pego o telefone e torno a ligar para Fielding. Não deixo mensagem nenhuma dessa vez e me passa pela cabeça que sua mulher também não atende o telefone de casa. Ela
veria o nome e o número de meu escritório no identificador de chamadas. Talvez seja por isso, por saber que sou eu. Ou talvez a família tenha ido a algum lugar,
saído da cidade. Em uma segunda-feira à noite, no meio de uma tempestade de neve, quando ele sabe muito bem que voltei de Dover às pressas para cuidar de um caso
de emergência?
Saio e digitalizo o polegar para destrancar a porta à direita da minha. Entro no escritório do meu sub e o examino devagar, como se fosse a cena de um crime.
11
Escolhi o escritório de Fielding, tendo insistido em um tão bom quanto o meu, bem grande, com chuveiro privativo. Ele tem vista do rio e da cidade, embora as venezianas
estejam baixadas, o que acho inquietante. Ele deve ter fechado quando ainda estava claro lá fora, e não sei por que faria isso. Não por um bom motivo, penso. É um
mau presságio, independentemente de qualquer coisa.
Circulo pelo aposento, abro todas as venezianas e, através das amplas vidraças refletivas em tons de cinza, distingo as luzes embaçadas do centro de Boston e ondas
crescentes de umidade congelada, uma neve frígida que clica e fere como dentes. O topo dos arranha-céus, as torres Prudential e Hancock estão encobertos e as rajadas
de vento gemem em tons baixos ao redor da cúpula sobre minha cabeça. Abaixo, a Memorial Drive está movimentada devido ao tráfego, mesmo a esta hora, e o Charles
parece amorfo e negro. Eu me pergunto quantos centímetros de neve temos até agora e quanto vamos ter antes que se desloque para o sul. Eu me pergunto se Fielding
nunca mais vai voltar à sala que projetei e mobiliei para ele, e por algum motivo sinto que não, mesmo que não existam provas de que ele se foi para sempre.
A maior diferença entre nossos espaços de trabalho é que o dele está repleto de lembretes do ocupante, seus vários diplomas, certificados e condecorações, suas peças
de coleção em prateleiras, bolas e bastões de beisebol autografados, troféus e placas de tae kwon do, maquetes de aviões de guerra e um pedaço de um de verdade que
caiu. Vou até sua mesa e examino relíquias da Guerra Civil: uma fivela de cinto, um balde de cacarecos, um polvorinho, algumas balas Minié que recordo que ele colecionava
em nosso início na Virginia. Mas não há fotografias e isso me deixa triste. Em alguns locais, vejo o que desapareceu nos espaços vazios na parede onde ele não se
deu o trabalho de preencher os orifícios diminutos deixados pelos ganchos que removeu.
Dói que ele não mais exponha as fotografias rotineiras, batidas quando ele era meu colega na patologia forense, fotos inocentes nossas no necrotério ou de nós dois
em cenas de morte com Marino, o principal detetive de homicídios da polícia de Richmond no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando tanto Fielding quanto
eu estávamos apenas começando, ainda que de maneiras completamente diferentes. Ele era o médico bem aparentado em início de carreira, ao passo que eu estava mudando
para o setor privado, em transição para a vida civil e o papel de chefe, fazendo o possível para não olhar para trás. Talvez Fielding não olhe para trás, embora
eu não saiba por quê. Seu passado foi bom comparado ao meu. Ele não ajudou a ocultar um crime. Nunca precisou se esconder de nada semelhante a isso. Não que eu saiba,
mas gostaria de saber. O que mais sei?
Não muito, exceto pela sensação de que ele se livrou de mim, talvez tenha se livrado de todos nós. Parece que se livrou de mais coisas do que realmente fez. Estou
convencida disso sem saber bem por quê. Seus objetos pessoais certamente continuam aqui, suas roupas de chuva Gore-Tex em um cabide, suas botas de neoprene, sua
bolsa com o equipamento de mergulho e o estojo com instrumentos de trabalho guardados em um armário, e sua coleção de emblemas da polícia e moedas de torneios policiais
e militares. Eu me lembro de tê-lo ajudado a se mudar para este escritório. Ajudei meu sub a arrumar até os móveis, nós dois nos queixando, rindo e então reclamando
mais um pouco enquanto deslocávamos a escrivaninha, depois a mesa de reuniões, e então trocávamos tudo de lugar novamente.
"O que é isso? O Gordo e o Magro?", perguntou ele. "A próxima coisa que você vai empurrar escada acima é uma mula?"
"Você não tem escada."
"Estou pensando em comprar um cavalo", disse ele enquanto deslocávamos cadeiras que antes havíamos transferido para outro local. "Tem um haras a um quilômetro e
meio de casa. Posso hospedar o cavalo lá e quem sabe vir trabalhar a cavalo ou cavalgar até as cenas dos crimes."
"Vou acrescentar isso ao manual do funcionário. Nada de cavalos."
Brincamos e provocamos um ao outro, e ele me pareceu bem naquele dia - animado e otimista, seus músculos deformando as mangas curtas do jaleco. Exibia uma boa forma
e uma aparência saudável inacreditáveis na ocasião, o rosto ainda infantilmente bonito, o cabelo louro-escuro despenteado, e fazia vários dias que não se barbeava.
Ele era atraente e divertido, e recordo os sussurros e risinhos de algumas das funcionárias quando passavam pela porta aberta de seu escritório, procurando desculpas
para olhar para ele. Fielding parecia muito feliz por estar aqui comigo e me lembro de nós dois arrumando fotografias e recordando nosso início juntos - fotos que
agora desapareceram.
Em seu lugar há outras das quais não me lembro. As fotos estão arrumadas nas prateleiras e paredes, em locais de destaque, poses formais com políticos e altas patentes
militares, uma com o general Briggs e até mesmo a capitã Avallone, talvez procedente da visita de que eu agora sabia. Ele parece rígido e entediado. Em uma foto
sua vestindo as roupas brancas do tae kwon do, a meio voo e chutando um inimigo imaginário, parece zangado, com o rosto vermelho e cheio de ódio. Enquanto examino
retratos recentes de família, concluo que tampouco ali ele parece satisfeito, nem mesmo quando está segurando suas duas filhinhas ou tem os braços ao redor da mulher,
Laura, uma loura delicada cuja beleza está se desgastando, como se a vida difícil estivesse mapeando seu curso, gravando linhas e rugas em uma topografia antes graciosa
e elegante.
Ela é a terceira mulher de Fielding, e rastreio o declínio dele ao examinar esses momentos captados em ordem cronológica. Quando se casou com ela, ele parecia bem-disposto,
sem sinais de erupções cutâneas e não apresentava os trechos inconvenientes de calva. Paro para admirar quão incrível ele estava, sem camisa e com o corpo rijo como
pedra nos shorts de corrida, lavando seu Mustang 67 vermelho-cereja com as listras de Le Mans no centro do capô. Então recentemente, no outono passado, o espessamento
na região da cintura; a pele coberta de manchas e avermelhada; os fios de cabelo penteados para trás e mantidos no lugar com gel para esconder a alopecia. Em uma
competição de artes marciais há menos de um mês, ele não parece em boas condições físicas nem espiritualmente equilibrado em seu uniforme de mestre faixa-preta.
Não parece encontrar alegria nem na boa forma nem na técnica. Não tem a aparência de quem reverencia as outras pessoas, possui autocontrole ou respeita qualquer
coisa. Parece desregrado. Meio perturbado. Completamente infeliz.
Por quê?, pergunto em um sussurro à foto inicial com seu adorado carro, quando ele estava deslumbrante de ver, com ar despreocupado e vigoroso, o tipo de homem por
quem seria fácil se apaixonar, colocar no comando ou confiar a própria vida. O que mudou? O que te deixou tão infeliz? O que foi desta vez? Ele detesta trabalhar
para mim. Detestou da última vez, em Watertown, onde não ficou muito tempo, e agora no CFC, que detesta ainda mais, isso é óbvio. Foi no final do verão passado,
quando ele começou a ficar tão mal que finalmente abrimos nossas portas à justiça penal, recebendo casos. Mas eu nem mesmo estava em Massachusetts na ocasião, passei
só o feriado do Dia do Trabalho. Não pode ser culpa minha. A culpa sempre foi minha. Sempre me culpei pelas quedas de Fielding, que foram em número maior do que
estou disposta a contar.
Faço com que se recupere e ele torna a cair, de forma cada vez mais séria. Cada vez mais feia. Cada vez mais sangrenta. Vezes sem conta. Como uma criança que não
consegue andar e não vou aceitar até que ela esteja ferida para além de qualquer conserto. O drama que vai sempre terminar de forma previsível, como Benton descreveu.
Fielding não deveria ser patologista forense e é por minha causa que exerce a profissão. Ele estaria melhor se não tivesse me conhecido na primavera de 1988, quando
não tinha certeza do que queria da vida e eu lhe disse que sabia o que deveria fazer. Eu mostro. Eu ensino. Se não tivesse ido a Richmond, ele não teria esbarrado
em mim e talvez tivesse escolhido uma maneira condizente de passar seus dias. Sua carreira e sua vida teriam a ver consigo mesmo, e não comigo.
Este é sem dúvida o ponto principal: Fielding faz o melhor possível em um ambiente totalmente destrutivo para ele e por fim não suporta mais, descompensa, se desintegra
e lembra por que ele é o que é e quem o formou; então assomo como um imenso outdoor em sua vida desprezível. Sua reação a essas crises é sempre a mesma. Desaparecer.
Um dia ele simplesmente some do radar e o que encontro em seu rastro é horrível. Casos com os quais lidou de forma inapropriada ou negligenciou. Memorandos que demonstravam
sua falta de controle e uma capacidade de julgamento perigosa. Mensagens de voz ofensivas que ele não se preocupou em apagar porque queria que eu ouvisse. E-mails
e outros comunicados prejudiciais que esperava que eu encontrasse. Sento na cadeira em sua mesa e começo a abrir as gavetas. Não preciso vistoriar por muito tempo.
A pasta de arquivo não está etiquetada e contém quatro folhas impressas às oito e três de ontem, 8 de fevereiro, com um discurso que, com base em outras informações
no cabeçalho e na seção de notícias, procede do site do Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança. Um instituto de pesquisas inglês centenário
com filiais em locais estratégicos em todo o mundo, o RUSI dedica-se a inovações avançadas em segurança nacional e internacional, e não consigo imaginar o interesse
de Fielding. Não compreendo sua preocupação com um discurso programático proferido por Russell Brown, o secretário de Estado de Defesa, com suas opiniões a respeito
do "debate de defesa". Passo os olhos pelos comentários não tão surpreendentes do membro conservador do Parlamento de que a constante participação do Reino Unido
em uma aliança não é um axioma e que o impacto econômico da guerra é catastrófico. Brown faz repetidas alusões à desinformação metodicamente propagada, que é o mais
próximo que o respeitável membro do Parlamento vai chegar de acusar francamente os Estados Unidos de orquestrar a invasão do Iraque e arrastar o Reino Unido nessa
jornada.
Como seria de esperar, o discurso é político, como quase tudo agora na Inglaterra, que organiza eleições gerais para daqui a três meses. Seiscentos e cinquenta cadeiras
estão em disputa e uma questão importante de campanha são as mais de dez mil tropas britânicas que estão combatendo o Talibã no Afeganistão. Fielding não é militar,
nunca prestou muita atenção a questões ou eleições estrangeiras, e não sei por que motivo teria o menor interesse no que está ocorrendo no Reino Unido. Sequer me
lembro de ele já ter ido ao Reino Unido. Ele não é do tipo que se interesse por eleições gerais nesse país, nem pelo RUSI, nem por grupos de pesquisa, e conhecendo-o
bem como conheço, desconfio que pretendia que eu encontrasse essa pasta. Queria que eu a visse depois que realizou outro de seus truques de desaparecimento. O que
ele quer que eu saiba?
Por que está interessado no RUSI? E ele mesmo encontrou o discurso na internet ou alguém o enviou? Se o material foi enviado, por quem? Penso na possibilidade de
pedir a Lucy que entre no e-mail de Fielding, mas não estou preparada para pegar tão pesado e não quero ser pega. Posso trancar a porta, mas ainda assim meu sub
poderia entrar, pois não confio que Ron ou qualquer outra pessoa vá mantê-lo na área de segurança se ele aparecer. Não levo a menor fé que Ron, que sempre foi hostil
e parece ter pouca consideração por mim, vá deter Fielding ou tentar me contatar para pedir sua liberação. Não acredito que minha equipe seja leal a mim, nem que
se sinta segura comigo ou siga minhas ordens, e Fielding pode reaparecer a qualquer momento.
Isso tem tudo a ver com ele. Desaparecer sem aviso, então aparecer da mesma forma inesperada e me pegar em flagrante, sentada em sua mesa, vasculhando seus arquivos
eletrônicos. É só mais uma coisa que ele vai usar contra mim, e já usou muitas assim ao longo dos anos. O que Fielding andou aprontando pelas minhas costas? Vejamos
o que mais descubro, e então vou saber o que fazer. Presto atenção mais uma vez à hora impressa no documento e o imagino sentado nesta mesma cadeira às oito e três,
imprimindo o discurso enquanto todos - Lucy, Marino, Anne e Ollie - estavam alvoroçados devido ao conteúdo da geladeira no térreo.
Estranho Fielding permanecer aqui no escritório enquanto isso estava acontecendo, e me pergunto se chegou a se importar com a possibilidade de um homem ter sido
trancado em nossa geladeira ainda vivo. É claro que Fielding teria que se importar. Como não se importaria? Se o pior se revelasse verdadeiro, ele seria responsabilizado.
No fim das contas, seria eu a aparecer em todos os noticiários e provavelmente perder o emprego, mas ele afundaria comigo. Ainda assim, estava aqui, no sétimo andar,
em seu escritório e longe da confusão, como se já tivesse tomado uma decisão, e me ocorre que seu desaparecimento pode estar relacionado a outra coisa. Reclino-me
na cadeira, olho em volta e minha atenção pousa em um bloco e uma caneta esferográfica perto do telefone. Reparo nas marcas leves na folha de papel no topo.
Acendendo uma luminária, pego o bloco e o seguro em vários ângulos, tentando decifrar as marcas de escrita deixadas como pegadas quando alguém faz uma anotação na
primeira folha, que foi arrancada. Uma das características de Fielding é não ter o toque leve, não quando empunha um bisturi, digita em um teclado ou escreve alguma
coisa. Para um devoto das artes marciais, ele é surpreendentemente bruto, fica facilmente frustrado e se inflama rápido. Tem um jeito infantil de segurar o lápis
ou a caneta, com dois dedos em cima em vez de um, como se estivesse usando pauzinhos orientais. Costuma quebrar grafite e ponta de lápis e é um inferno com marcadores
de texto.
Não preciso de um detector eletrostático, de um Docustat, de uma caixa de vácuo nem de uma unidade de recuperação de escrita para detectar o que consigo enxergar
à moda antiga com luz indireta e meus próprios olhos. Os garranchos quase ilegíveis de Fielding. O que parecem duas anotações separadas. Uma delas é um número de
telefone com código de área quinhentos e oito e MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8. Então a segunda: U DE SHEFFIELD HOJE WHITEHALL. CÂMBIO E DESLIGO. Torno a olhar
para me certificar de ter lido as últimas palavras de forma correta. Câmbio e desligo. O fim de uma transmissão de rádio, como em Roger Wilco câmbio e desligo, mas
também a canção interpretada por uma banda heavy metal que Fielding costumava colocar para tocar o tempo todo no carro quando chegou a Richmond. "Câmbio e desligo.
Todo cão tem seu dia." O que ele cantava para mim quando ameaçava sair, quando estava farto ou me provocando, flertando, fingindo estar de saco cheio. Ele escreveu
câmbio e desligo no bloco de notas pensando em mim ou por alguma outra razão?
Encontro um bloco tamanho ofício em uma gaveta, escrevo o que descobri por intermédio das marcas no bloco de notas e começo a fazer o melhor que posso para entender
o que Fielding estava fazendo e pensando a respeito do que deseja que eu saiba. Se entrasse aqui para bisbilhotar, eu encontraria o material impresso e as marcas
das anotações. Ele me conhece. Pensaria dessa forma porque sabe muito bem como funciona minha mente. A Universidade de Sheffield é uma das principais instituições
de pesquisa do mundo, e Whitehall é onde está sediado o RUSI, literalmente no antigo palácio de Whitehall, a localização original da Scotland Yard.
Entro no Intelliquest, o programa de busca que Lucy criou para o CFC, e digito RUSI, a data de 8 de fevereiro e Whitehall. O que surge é o título de um discurso,
"Colaboração entre civis e militares", a palestra que Fielding deve ter consultado e que foi proferida no RUSI às dez da manhã pelo horário do Reino Unido, o que
para mim agora é a manhã de ontem. O orador foi o dr. Liam Saltz, o controverso ganhador do Nobel cujas opiniões apocalípticas a respeito da tecnologia militar o
tornaram um inimigo natural da DARPA. Eu não sabia que ele pertencia ao corpo docente da Universidade de Sheffield. Pensei que estivesse em Berkeley. Ele passou
por Berkeley e agora está na Sheffield, leio na internet enquanto penso, um tanto impressionada, na exposição da Courtauld no verão anterior ao Onze de Setembro,
onde Lucy e eu assistimos à palestra do dr. Saltz. Pouco depois disso, assim como eu, o dr. Saltz foi um eloquente crítico do MORT.
Reflito sobre o título da palestra que proferiu nem vinte e quatro horas atrás. "Colaboração entre civis e militares". Parece muito brando para o incitador dr. Saltz,
que é chocante como uma sirene de ataque aéreo em suas advertências de que a destinação de mais de duzentos bilhões de dólares por parte dos Estados Unidos para
futuros sistemas de combate - especificamente veículos não tripulados - nos colocaram na estrada da aniquilação total. Os robôs talvez pareçam fazer sentido quando
se cogita enviá-los ao campo de batalha, censura ele, mas o que acontece quando voltam para casa como jipes e outros acessórios militares usados? Com o tempo, abrem
caminho rumo ao mundo civil, e o que vamos ter é mais policiamento e vigilância, mais máquinas insensatas realizando o trabalho de seres humanos, só que essas máquinas
vão estar armadas e equipadas com câmeras e dispositivos de gravação.
Ouvi o dr. Saltz nos noticiários, pintando cenários aterrorizantes de "policiais-robôs" respondendo por cenas de crime e "carros-robôs" não tripulados perseguindo
veículos a fim de multar os ocupantes por infrações de trânsito, parando gente com mandatos de prisão ou, Deus nos livre, recebendo mensagens de seus sensores para
usar a força. Robôs dando choques. Robôs atirando para matar. Robôs que parecem insetos enormes arrastando mortos e feridos para fora do campo de batalha. O dr.
Saltz testemunhou perante o mesmo subcomitê do Senado diante do qual testemunhei, mas não ao mesmo tempo. Ambos causamos estragos a uma empresa de tecnologia chamada
Otwahl, da qual havia me esquecido por completo até poucas horas atrás.
Encontrei-o apenas uma vez quando, por coincidência, estávamos os dois na CNN, e ele apontou para mim e brincou: "Robotópsias".
"Como?", retruquei, desprendendo meu microfone enquanto ele se encaminhava ao set.
"Autópsias robóticas. Um dia eles vão tomar o seu lugar, minha boa doutora, talvez mais cedo do que pensa. Devíamos sair para beber alguma coisa depois do programa."
Ele era um homem de olhos brilhantes, que parecia um hippie perdido, com seu longo rabo de cavalo grisalho e rosto desgastado e a eletricidade de um condutor carregado.
Isso ocorreu há dois anos e eu deveria ter esperado perto da CNN e aceitado o convite. Deveria ter tomado uma bebida com ele. Deveria ter me informado melhor sobre
aquilo em que ele acredita porque nem tudo é loucura. Não o vi mais desde então, embora não possa escapar de sua presença na imprensa e tento lembrar se por algum
motivo já fiz alguma referência a ele junto a Fielding. Acho que não. Não consigo imaginar por que faria isso. Conexões. Onde estão elas? Pesquiso um pouco mais.
A Universidade de Sheffield, em South Yorkshire, possui uma excelente faculdade de medicina, isso eu já sei. Rerum Cognoscere Causas, seu lema, descobrir as causas
das coisas, é muito apropriado, muito irônico. Preciso de causas. Clico em PESQUISAR. Aquecimento global, degradação global do solo, repensando a engenharia com
softwares pioneiros, novas descobertas nas alterações de DNA de células-tronco embrionárias humanas. Volto às marcas das anotações na folha de bloco.
MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8.
MAV é nossa abreviatura para morte por acidente com veículo motorizado e dou outra busca, dessa vez explorando o banco de dados do CFC. Insiro MAV, a data, 18 de
agosto do verão passado, e um arquivo retorna, o caso de um inglês de vinte anos chamado Damien Patten, morto em um acidente com táxi em Boston. Fielding não realizou
a autópsia, que foi feita por um de meus outros legistas, e na narrativa reparo que Damien Patten era um anspeçada do 14o Regimento Signal, estava de férias e tinha
ido a Boston para se casar quando morreu no acidente. Tenho uma sensação estranha. Alguma coisa se encaixa.
Realizo outra busca usando as palavras-chaves 8 de fevereiro e Diário do Ministério da Defesa RU. Acabo no blog oficial da instituição e uma entrada lista os soldados
britânicos mortos ontem no Afeganistão. Percorro a lista de baixas, procurando qualquer coisa que tenha algum significado para mim. Um anspeçada do 1o Batalhão dos
Guardas de Coldstream. Um sargento temporário do 1o Batalhão dos Guardas de Grenadier. Um soldado do 2o Batalhão do Regimento do Duque de Lancaster. Depois há um
sapador, ou engenheiro militar, com a Força-Tarefa de Dispositivos Explosivos Anti-improvisados, que foi morto em terreno montanhoso no noroeste do Afeganistão.
Na província de Badghis. Onde meu paciente, o soldado de primeira classe Gabriel, foi morto no domingo, 7 de fevereiro.
Faço outra busca, apesar de saber sem ter que procurar quantos soldados da Otan morreram no Afeganistão em 7 de fevereiro. Em Dover, sempre sabemos. É tão rotineiro
quanto se preparar para as tempestades, um informe mórbido e depressivo que controla nossa vida. Nove baixas, e quatro delas foram americanos mortos pelo mesmo dispositivo
explosivo improvisado na beira da estrada que transformou o Humvee do soldado de primeira classe Gabriel em um alto-forno. Mas, novamente, isso aconteceu no dia
7, não no dia 8. Ocorre-me que o soldado britânico que morreu no dia 8 talvez tenha se ferido no dia anterior.
Verifico e estou certa. O sapador Geoffrey Miller tinha vinte e três anos, era recém-casado e foi ferido em um atentado a bomba na província de Badghis domingo cedo,
mas morreu no dia seguinte em um centro médico militar na Alemanha. Possivelmente o mesmo atentado à beira da estrada que matou os americanos de quem cuidamos em
Dover ontem pela manhã - na realidade, provavelmente. Pergunto-me se o sapador Miller e o soldado de primeira classe Gabriel se conheciam e, como o inglês morto
no táxi, Damien Patten, pode estar relacionado a eles. Patten foi apresentado a Miller e Gabriel no Afeganistão, mas o que Fielding tem a ver com tudo isso? Como
o dr. Saltz, o MORT ou o rapaz de Norton's Woods estão relacionados, ou não estão?
O corpo de Miller vai ser repatriado nesta quinta-feira, porque sua família vive em Oxford, na Inglaterra, continuo a ler, mas não descubro mais nada a seu respeito,
embora certamente consiga obter mais informações sobre um soldado inglês morto se necessário. Posso ligar para Rockman, o assessor de imprensa. Posso ligar para
Briggs, e de qualquer forma preciso fazer isso, recordo. Briggs me pediu - na realidade, ordenou - que eu o mantivesse informado a respeito do caso de Norton's Woods,
acordando-o se necessário no instante em que tiver informações. Mas não vou fazer isso. De jeito nenhum. Não agora. Não sei ao certo em quem posso confiar e, enquanto
esse pensamento persiste, dou-me conta da encrenca em que estou metida.
O que diz o fato de não poder pedir ajuda às pessoas com quem trabalha? Tudo, e é como se o chão estivesse se abrindo sob meus pés e eu estivesse resvalando para
o desconhecido, um espaço frio, escuro, vazio, onde já estive. Briggs quis passar por cima de mim, usurpar minha autoridade e transferir o caso de Norton's Woods
para Dover. Fielding andou se esgueirando por aí na minha ausência, metendo-se em assuntos que não são da conta dele, até mesmo usando meu escritório, e agora está
fugindo de mim, ou pelo menos espero que seja só isso. Minha equipe está se amotinando e algumas pessoas, que me são estranhas, parecem conhecer os detalhes de meu
regresso para casa.
São quase duas da manhã e me sinto tentada a discar o número de telefone que Fielding rabiscou na folha de bloco, surpreender quem quer que atenda, acordar a pessoa
e, quem sabe, conseguir uma pista do que está acontecendo. Em vez disso, faço uma pesquisa no computador da polícia para ver a quem ou a que o número com o código
de área quinhentos e oito pertenceria. A informação sumária me choca e por um instante fico completamente imóvel e tento me acalmar. Tento afastar as muralhas do
horror e da confusão que abrem caminho e me oprimem.
Julia Gabriel, mãe do soldado de primeira classe Gabriel.
Na tela à minha frente estão os endereços de casa e do trabalho, seu estado civil, o salário que recebe como farmacêutica em Worcester, Massachusetts, e nome e idade
de seu único filho, que morreu no Afeganistão no domingo, aos dezenove anos. Permaneci ao telefone com a sra. Gabriel durante quase uma hora antes de fazer a autópsia,
tentando explicar, da forma mais delicada possível, a impossibilidade de coletar o esperma dele enquanto ela levantava a voz, gritava e me acusava de fazer escolhas
pessoais que não deveria fazer, não fiz e nunca faria.
Recolher esperma de mortos e usá-lo para engravidar vivos envolve um dilema moral. Não tenho opiniões pessoais acerca do que é, na realidade, uma questão médica
e legal, não religiosa ou ética, e certamente os envolvidos deveriam optar, não o médico. O que me interessa é que o procedimento, que se tornou cada vez mais popular
por causa da guerra, seja realizado de forma correta e legítima e, de qualquer forma, minhas supostas opiniões sobre os direitos póstumos de reprodução eram controversas
no caso do soldado de primeira classe Gabriel. Seu corpo estava queimado e se decompondo, sua pélvis, tão carbonizada que os testículos haviam desaparecido e o canal
deferente contendo o sêmen, sumido junto com eles, e eu não ia dizer isso à sra. Gabriel. Fui o mais compassiva e delicada possível e não levei para o lado pessoal
o fato de ela descarregar sua dor e sua raiva no último médico que seu filho veria nesta terra.
Peter tinha uma namorada que estava disposta a ter os filhos dele, assim como seu amigo, era um pacto, continuou a sra. Gabriel, e eu não fazia ideia de a que amigo
e a que exatamente ela estava se referindo. O amigo de Peter havia mencionado outro amigo que tinha morrido no dia do casamento no verão anterior, só que a sra.
Gabriel não se referiu a Damien Patten pelo nome, o inglês morto no táxi em 18 de agosto passado. "Agora os três estão mortos, três rapazes bonitos mortos", disse
a sra. Gabriel ao telefone, e eu não fazia ideia do que ela estava falando. Agora acho que sei. Ela com certeza estava se referindo a Patten, o amigo do amigo com
quem o soldado de primeira classe Gabriel tinha uma espécie de pacto. Eu me pergunto se o amigo de Patten é a outra vítima a quem Fielding parece ter me conduzido,
Geoffrey Miller, o sapador.
Agora os três estão mortos.
Teria Fielding discutido o caso de Patten com a sra. Gabriel, e com quem ela falou primeiro, com Fielding ou comigo? Ela telefonou para Dover por volta de sete e quarenta e cinco. Sempre preencho um registro de chamadas e me lembro de ter anotado a hora quando me sentei em meu pequeno escritório no necrotério de Dover, examinando as tomografias e suas coordenadas, que me ajudariam a localizar, com a precisão de um GPS, o fragmento e outros objetos que haviam penetrado o corpo muito queimado de seu filho. Com base no que me contou, enquanto tento agora reconstruir a conversa, ela provavelmente falou primeiro com Fielding. Isso talvez explique suas repetidas referências a "outros casos".

Alguém havia colocado em sua cabeça uma ideia do que fazemos em outros casos. Ela estava com a clara impressão de que extraíamos sêmen das vítimas de forma rotineira e que, na realidade, encorajávamos isso, e lembro-me de ter ficado surpresa, pois o procedimento precisa ser aprovado e está repleto de complicações legais. Eu não imaginava o que lhe havia dado essa ideia e poderia ter feito perguntas se ela não estivesse tão ocupada em me criticar e xingar. Que espécie de monstro impediria uma mulher de ter os filhos do namorado morto ou proibiria que a mãe de um filho morto se tornasse avó? Nós fazemos isso em outros casos, por que não no do filho dela? "Não tenho mais ninguém", gritou. "Isso é burocracia sem sentido, admita", vociferou ela. "Burocracia sem sentido para encobrir mais um crime motivado por preconceito."
"Tem alguém em casa?" É Benton no vão da porta.
A sra. Gabriel me chamou de militar preconceituosa. "Você faz para os outros, contanto que sejam brancos", disse ela. "Você cuidou daquele outro rapaz que morreu em Boston e ele nem era um soldado americano, mas não do meu filho, que morreu por seu país. Imagino que tenha a cor errada", continuou ela e eu não fazia ideia do que estava querendo dizer ou no que estava baseando tal acusação. Não tentei descobrir porque me pareceu histeria, nada mais, e a perdoei no mesmo instante. Ainda que aquilo obviamente tenha me magoado muito e eu não tenha conseguido...Embora esta seja uma obra de ficção, não se trata de ficção científica. Os procedimentos médicos e forenses e as tecnologias e armas que vocês verão aqui são os utilizados hoje. Parte do que estão prestes a encontrar é extremamente perturbador. Mas tudo isso é possível.
Várias entidades citadas no livro também são reais e estão em plena operação, incluindo as seguintes:
Necrotério Militar da Base Aérea de Dover
Sistema de médicos-legistas das Forças Armadas (AFMES)
Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas (AFDIL)
Instituto de Patologia das Forças Armadas (AFIP)
Departamento de Defesa
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA)
Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança (RUSI)
Sistema de Armamento Especial, Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta (SWORDS)
Já o Centro Forense de Cambridge (CFC), o Instituto Correcional de Chatham, a Otwahl Technologies e o Transporte de Remoção Operacional Funerária (MORT) são minhas  criações, assim como todos os personagens da narrativa e o enredo em si.
Dito isso, agradeço a todos os homens e mulheres admiráveis do Sistema de Medicina Legal das Forças Armadas e do Instituto de Patologia das Forças Armadas, que, ao longo de minha carreira, foram generosos o suficiente para compartilhar suas ideias e seu conhecimento altamente avançado e me impressionar com sua disciplina, integridade e amizade.
Como sempre, sou profundamente grata à dra. Staci Gruber, diretora do Núcleo de Neuroimagem Clínica e Cognitiva do Hospital McLean e professora assistente do departamento de psiquiatria da escola de medicina de Harvard.
E, claro, agradeço à dra. Marcella Fierro, ex-legista-chefe da Virginia, e ao dr. Jamie Downs, médico-legista em Savannah, Georgia, por sua competência em todas as questões patológicas.
X
X
X
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/NECROTERIO.jpg
X
X
X
No vestiário feminino, atiro a roupa suja do hospital em um coletor de risco biológico e tiro o restante das roupas e o calçado. Pergunto-me se CEL. SCARPETTA, gravado
em letras pretas em meu armário, será removido no minuto em que eu retornar a New England pela manhã. Esse pensamento não havia me passado pela cabeça até agora
e me incomoda. Uma parte minha não quer deixar este lugar.
A vida na Base Aérea de Dover tem seus confortos, apesar dos seis meses de treinamento árduo e da desolação de lidar diariamente com a morte em nome do governo dos
Estados Unidos. Minha estada aqui foi surpreendentemente simples. Posso dizer que foi até mesmo agradável. Vou sentir saudades de me levantar antes do amanhecer
em meu modesto quarto, vestir uma calça, uma polo, botas e cruzar a pé o estacionamento, na escuridão gelada, até o campo de golfe para tomar café e comer alguma
coisa antes de seguir de carro até o necrotério, onde não estou no comando. Quando estou de serviço como médica-legista das Forças Armadas, não sou chefe. Na realidade,
um grande número de pessoas tem patente superior à minha e não sou eu que tomo as decisões críticas. Quando muito, sou consultada. Não é assim quando retorno a Massachusetts,
onde todos dependem de mim.
É segunda-feira, 8 de fevereiro. Iluminado em vermelho, como um aviso, o relógio acima das pias brancas reluzentes marca 16h33. Em menos de noventa minutos, vou
aparecer na CNN para explicar o que é um patologista radiológico forense e por que me tornei uma, e o que Dover, o Departamento de Defesa e a Casa Branca têm a ver
com isso. Em outras palavras, já não sou mais apenas médica-legista, tampouco apenas reservista do AFMES. Desde o Onze de Setembro, desde a invasão ao Iraque, e
agora com o aumento das tropas no Afeganistão - ensaio os pontos que devo abordar -, a fronteira entre as esferas militar e civil desapareceu para sempre. Um exemplo
que eu poderia dar: em novembro, por um período de quarenta e oito horas, treze soldados mortos foram trazidos para cá do Oriente Médio de avião, e exatamente o
mesmo número de corpos chegou de Fort Hood, no Texas. Grandes contingentes de vítimas não se restringem ao campo de batalha, embora eu já não saiba ao certo o que
constitui um campo de batalha. Talvez todos os lugares sejam campos de batalha, vou dizer na TV. Casas, escolas, igrejas, aviões comerciais e os locais onde trabalhamos,
fazemos compras e passamos férias.
Seleciono artigos de higiene pessoal como seleciono os comentários que vou precisar fazer sobre radiologia 3-D, TC, a tomografia computadorizada e os exames no necrotério
e lembro-me de enfatizar que meu novo centro de operações em Cambridge, Massachusetts, é a primeira instituição civil nos Estados Unidos a realizar autópsias virtuais,
Baltimore será a próxima e, por fim, a tendência vai se difundir. A tradicional investigação post mortem de dissecção, em que você comparece, bate fotografias após
a ocorrência e espera não deixar passar nada nem modificar a cena do crime pode, e deve, ser dramaticamente aprimorada e tornada mais precisa pela tecnologia.
É uma pena não participar do World News esta noite, porque, agora que estou pensando nisso, percebo que preferia ter esse diálogo com Diane Sawyer. O problema da
minha presença constante na CNN é que a familiaridade muitas vezes leva a uma diminuição do respeito. Eu deveria ter pensado nisso antes. A entrevista pode se tornar
pessoal, e eu devia ter mencionado essa possibilidade ao general Briggs antes. Devia ter contado o que aconteceu hoje pela manhã quando a mãe enraivecida de um soldado
morto gritou comigo ao telefone, acusando-me de preconceituosa e ameaçando levar a queixa à imprensa.
A porta de metal do meu armário soa como um tiro ao ser fechada. Caminho sobre o ladrilho canela, sempre frio e liso sob meus pés descalços, carregando minha cesta
plástica com xampu e condicionador à base de oliva, um creme esfoliante feito de algas marinhas fossilizadas, uma gilete, espuma para pele sensível, detergente líquido,
uma toalha, enxaguante bucal, escova de dente, uma escovinha para as unhas e óleo Neutrogena perfumado para quando terminar tudo. No interior de um boxe aberto,
arrumo primorosamente meus objetos pessoais na prateleira e abro a água no mais quente que consigo suportar, o jato forte explodindo à medida que me desloco para
me molhar inteira, depois ergo o rosto, então olho para o chão, para meus próprios pés brancos. Deixo a água bater na nuca e na cabeça na esperança de que os músculos
tensos relaxem um pouco enquanto entro mentalmente no closet do meu alojamento na base e procuro o que vestir.
O general Briggs - John, como o chamo quando estamos sozinhos - quer que eu use um uniforme de aviador ou, melhor ainda, o uniforme azul da Força Aérea, mas discordo.
Eu deveria usar roupas civis, que é o que as pessoas me veem usar quando dou entrevistas na televisão, algo como um terninho escuro simples, blusa marfim de gola
alta e o sóbrio relógio Breguet com pulseira de couro que minha sobrinha Lucy me deu. Não o Blancpain com o mostrador preto grande demais e engaste de cerâmica,
também presente dela, que é obcecada por relógios e qualquer coisa tecnicamente complicada e cara. Nunca calça comprida, e, sim, saia e salto alto, assim pareço
menos intimidadora e mais acessível, truque que aprendi há tempos no tribunal. Por alguma razão, os jurados gostam de ver minhas pernas enquanto descrevo ferimentos
fatais em detalhes anatômicos vívidos e os últimos momentos de vida da vítima agonizante. Briggs vai ficar irritado com minha escolha de roupa, mas lembrei, enquanto
bebíamos durante o Super Bowl na noite passada, que um homem não deve dizer a uma mulher o que vestir, a menos que ele seja Ralph Lauren.
O vapor em meu chuveiro desloca-se, perturbado por uma corrente de ar, e penso ouvir alguém. Fico instantaneamente irritada. Pode ser qualquer um, qualquer funcionária
militar, médica ou não, que esteja autorizada a permanecer nestas instalações altamente restritas e necessite de um banheiro, de desinfecção ou de uma troca de roupa.
Penso nas colegas com quem estava na sala de autópsia principal e tenho o pressentimento de que se trata, mais uma vez, da capitã Avallone. Ela foi presença inevitável
na maior parte da manhã durante o exame de TC, como se eu não soubesse realizá-lo a esta altura, e ficou perambulando como uma névoa baixa em torno de minha estação
de trabalho o restante do dia. Provavelmente, foi ela que acabou de entrar. Tenho certeza disso, na verdade, pois é sempre ela, e sinto um ressentimento. Vá embora.
"Dra. Scarpetta?", grita a voz familiar, insossa e desprovida de emoção, que parece me seguir por toda parte. "Telefone para a senhora."
"Acabei de entrar", grito por sobre o jato forte de água.
É meu jeito de lhe pedir que me deixe em paz. Um pouco de privacidade, por favor. Não quero ver a capitã Avallone nem ninguém neste momento, o que nada tem a ver
com o fato de estar nua.
"Desculpe. Mas Pete Marino precisa conversar com a senhora." A voz inexpressiva aproxima-se.
"Vai ter que esperar", berro.
"Ele disse que é importante."
"Você pode perguntar o que ele quer?"
"Ele só disse que é importante, senhora."
Prometo telefonar mais tarde e provavelmente pareço grosseira, mas, apesar de bem-intencionada, nem sempre consigo ser agradável. Pete Marino é um investigador com
quem trabalhei durante metade da minha vida. Espero que nada terrível tenha acontecido em casa. Não, ele se certificaria de me informar se houvesse uma emergência
real, como alguma coisa errada com meu marido, Lucy, ou se houvesse um problema grave no Centro Forense de Cambridge, que eu chefiava. Marino faria mais que apenas
pedir a alguém que me informasse que está ao telefone e que é importante. Isso nada mais é que seu escasso controle dos próprios impulsos, concluo. Quando tem uma
ideia, Marino acha que deve compartilhá-la comigo no mesmo instante.
Abro bem a boca, enxaguando o gosto de carne humana crestada e decomposta preso no fundo da garganta. O fedor do trabalho de hoje sobe em ondas de vapor e penetra
fundo em meus seios paranasais, as moléculas de biologia pútrida me fazendo companhia no chuveiro. Esfrego por baixo das unhas com sabonete antibacteriano que esguicho
de um frasco, o mesmo que uso nos pratos e para descontaminar minhas botas quando saio da cena do crime, e escovo os dentes, as gengivas e a língua. Lavo o interior
das narinas tão longe quanto consigo alcançar, esfregando cada centímetro do corpo, em seguida lavo o cabelo, não uma, mas duas vezes, e o fedor persiste. Tenho
a sensação de não conseguir ficar limpa.
O nome do soldado morto de quem acabo de me ocupar é Peter Gabriel, como o astro do rock, só que esse Peter Gabriel era um soldado de primeira classe do Exército
e não estava há nem um mês na província de Badghis, no Afeganistão, quando uma bomba à beira improvisada com um tubo plástico de esgoto lotado de PE-4, tampado com
uma folha de cobre, perfurou a blindagem de seu Humvee, provocando uma explosão de metal derretido em seu interior. O soldado de primeira classe Gabriel consumiu
a maior parte de meu último dia aqui neste imenso espaço high-tech, onde patologistas e cientistas das Forças Armadas envolvem-se rotineiramente em casos que a maioria
do público não associa conosco: o assassinato de JFK; as identificações de DNA recentes da família Romanov e dos tripulantes do submarino H.L. Hunley, que afundou
durante a Guerra Civil. Somos uma organização importante, mas pouco conhecida, com raízes que remontam a 1862 e ao Museu Médico do Exército, cujos cirurgiões cuidaram
de Abraham Lincoln após o tiro e realizaram sua autópsia, coisas que eu deveria mencionar na CNN. Focar no positivo. Esquecer o que disse a sra. Gabriel. Não sou
um monstro nem preconceituosa. Você não pode culpar a pobre mulher por estar descontrolada, digo a mim mesma. Ela acaba de perder o único filho. Os Gabriel são negros.
Como você se sentiria, pelo amor de Deus? É claro que você não é racista.
Percebo novamente uma presença. Alguém entrou no vestiário, que consegui enevoar como um grande chuveiro a vapor. Meu coração bate forte devido ao calor.
"Dra. Scarpetta?" A capitã Avallone parece menos hesitante, como se tivesse novidades.
Fecho a água e saio do boxe, agarrando uma toalha para me enrolar. A capitã Avallone é uma presença indistinta pairando na névoa perto das pias e dos secadores de
mão sensíveis ao movimento. Tudo o que consigo distinguir é o cabelo escuro, a calça cáqui e a polo preta com o emblema do AFMES bordado em dourado e azul.
"Pete Marino...", ela começa a dizer.
"Vou ligar para ele em um minuto." Apanho outra toalha em uma prateleira.
"Ele está aqui, senhora."
"O que você está querendo dizer com aqui?" Quase espero que Marino se materialize no vestiário como uma criatura pré-histórica emergindo da névoa.
"Está esperando lá atrás, perto das baias", informa ela. "Vai levar a senhora até o Eagle's Rest para pegar suas coisas." A capitã Avallone diz isso como se o FBI
tivesse vindo me buscar, como se eu tivesse sido presa ou despedida. "Minhas instruções são para conduzir a senhora até ele e ajudar no que for necessário."
O primeiro nome da capitã Avallone é Sophia. Ela é do Exército, acabou de sair da residência de radiologia e é sempre militarmente correta e servilmente educada
enquanto perambula e perde tempo. Agora não é hora. Carrego minha cestinha, pisando no ladrilho, e ela segue logo atrás de mim.
"Só vou embora amanhã, e sair com Marino não faz parte dos meus planos de viagem", digo.
"Posso cuidar do seu carro. Pelo que entendi, a senhora não vai dirigir..."
"Você perguntou a ele do que se trata?" Retiro do armário minha escova de cabelo e meu desodorante.
"Eu tentei, senhora", responde a capitã. "Mas ele não colaborou."
Um C-5 Galaxy ruge no alto, rumo a um dezenove. Como sempre, o vento está vindo do sul.
Um dos muitos princípios aeronáuticos que aprendi com Lucy, que, entre outras coisas, é piloto de helicóptero, é que os números da pista de pouso e decolagem correspondem
à bússola. Dezenove, por exemplo, quer dizer cento e noventa graus, o que significa que a ponta oposta vai ser um, assim orientada devido ao efeito Bernoulli e às
leis de movimento de Newton. Tem tudo a ver com a velocidade com que o ar precisa fluir sobre a asa, com decolar e aterrissar na direção do vento, que nesta parte
de Delaware sopra a partir do mar, da alta para a baixa pressão, do sul para o norte. Entra dia sai dia, os aviões de transporte trazem e levam os mortos ao longo
de uma pista de asfalto que corre como o rio Estige por trás do necrotério.
O Galaxy cinza tem o comprimento de um campo de futebol americano, tão imenso e pesado que mal parece se mover no céu claro com nuvens leves, que os pilotos chamam
de rabo de égua. Sei de que tipo de transporte aéreo se trata sem olhar, reconheço os guinchos e silvos agudos. A esta altura, conheço o som das turbinas produzindo
cento e sessenta mil libras de propulsão, consigo identificar um C-5 ou um C-17 a quilômetros de distância e também conheço helicópteros e aeronaves com rotor, diferencio
um Chinook de um Black Hawk ou de um Osprey. Com tempo bom, quando tenho alguns momentos para espairecer, sento no banco diante de meu alojamento e observo as aeronaves
de Dover como se fossem criaturas exóticas, como peixes-bois, elefantes ou aves pré-históricas. Nunca me canso de seu corpo pesado, seu ruído atroador e das sombras
que projetam quando passam no alto.
As rodas aterrissam tão perto, com baforadas de fumaça, que sinto o estrépito em meus órgãos ocos à medida que atravesso a recepção com suas quatro imensas baias,
seu paredão de alta privacidade e geradores de reserva. Aproximo-me de uma van azul que nunca vi, e Pete Marino não faz nenhum movimento para me cumprimentar ou
abrir a porta, o que não quer dizer nada. Ele não gasta energia com boas maneiras, e ser cortês ou agradável nunca foi sua prioridade, pelo que sei. Faz mais de
vinte anos que nos conhecemos no necrotério de Richmond, Virginia. Ou talvez tenhamos nos encontrado pela primeira vez em alguma cena de homicídio. Realmente não
lembro.
Entro e fecho a porta, enfiando a mochila entre as botas, o cabelo ainda úmido do banho. Ele me avalia em silêncio e acha que estou péssima. Sempre percebo por seus
olhares de esguelha que me inspecionam da cabeça aos pés, demorando-se em certas partes que não lhe dizem respeito. Marino não gosta que eu use o uniforme do AFMES,
a calça cáqui, a polo preta e a jaqueta tática, e nas poucas vezes em que me viu assim acho que ficou assustado.
"Onde você roubou a van?", pergunto enquanto ele dá ré.
"Em uma locadora da Civil Air." A resposta ao menos garante que não aconteceu nada com Lucy.
O terminal não oficial na extremidade norte da pista é usado por funcionários civis autorizados a pousar na base aérea. Minha sobrinha trouxe Marino até aqui e me
passa pela cabeça que os dois vieram me fazer uma surpresa. Apareceram sem avisar para me desobrigar do voo comercial pela manhã e me acompanhar até em casa. Doce
ilusão. Não pode ser isso e procuro respostas no rosto de traços irregulares de Marino, captando sua aparência geral, quase da mesma forma que inspeciono um paciente
à primeira vista. Tênis de corrida, jeans, jaqueta de couro Harley-Davidson com forro de lã que ele tem há uma eternidade, boné de beisebol dos Yankees que usa por
sua própria conta e risco, levando-se em conta que agora mora no território dos Red Sox, e óculos de aro de metal antiquados.
Não sei dizer se ele raspou o pouco que lhe restou de cabelo grisalho, mas está limpo e relativamente bem cuidado, e não está vermelho de uísque nem tem a barriga
inchada de cerveja. Os olhos não estão injetados de sangue. As mãos parecem firmes. Não sinto cheiro de cigarro. Ele continua longe do álcool e longe de outras coisas.
Marino teve a sabedoria de se afastar de uma porção de coisas, um trem que se imiscui nos territórios instáveis de suas inclinações aborígines. Sexo, birita, drogas,
tabaco, comida, grosseria, intolerância, indolência. Eu provavelmente deveria acrescentar falsidade. Quando lhe convém, ele é evasivo ou simplesmente mente.
"Imagino que Lucy esteja no helicóptero...", começo a dizer.
"Você sabe como é esta espelunca quando se está trabalhando num caso. Pior que a porra da CIA", diz ele enquanto viramos na Purple Heart Avenue. "A casa da pessoa
pode estar pegando fogo e ninguém diz merda nenhuma. Devo ter ligado umas cinco vezes. Então tomei uma decisão executiva e Lucy e eu viemos para cá."
"Seria útil se você me dissesse por que está aqui."
"Ninguém quis te interromper enquanto estava cuidando do soldado de Worcester", diz ele para meu espanto.
O soldado de primeira classe Gabriel era de Worcester, Massachusetts, e não consigo entender por que Marino saberia em que caso eu estava trabalhando em Dover. Ninguém
deveria ter contado. Tudo o que fazemos no necrotério é extremamente sigiloso, quando não estritamente confidencial. Pergunto-me se a mãe do soldado morto cumpriu
a ameaça e convocou a imprensa. Pergunto-me se contou à imprensa que a médica-legista de seu filho, militar e branca, é racista.
Antes que eu consiga perguntar, Marino acrescenta: "Ao que tudo indica, ele é a primeira vítima de guerra de Worcester, e a mídia local está em cima. Recebemos algumas
ligações, imagino que as pessoas estejam confusas e achem que qualquer defunto ligado a Massachusetts acabe com a gente".
"Os repórteres acharam que íamos fazer a autópsia em Cambridge?"
"Bom, o CFC também é um necrotério. Talvez tenha sido por isso."
"Seria de esperar que a imprensa a essa altura soubesse que todas as baixas de operações vêm direto para cá", refuto. "Você tem certeza dos motivos do interesse
deles?"
"Por quê?" Marino olha para mim. "Você sabe de algum outro motivo que eu desconheça?"
"Só estou perguntando."
"Tudo o que sei é que recebemos alguns telefonemas e encaminhamos para Dover. Você estava no meio do trabalho com o garoto de Worcester e ninguém quis te chamar,
então liguei para o general Briggs quando estávamos a vinte minutos de distância, abastecendo em Wilmington. Ele fez a capitã Abelhinha te procurar no chuveiro.
Ela é solteira ou toca na banda de Lucy? Porque não é feia."
"Como você sabe?", pergunto, perplexa.
"Ela deu uma passada no CFC quando foi visitar a mãe no Maine. Você não estava."
Tento recordar se fui informada disso e ao mesmo tempo lembro que não faço ideia do que acontece na repartição que devo chefiar.
"Fielding se encarregou do tour real, o anfitrião com algo mais." Marino não gosta do meu sub, Jack Fielding. "A questão é que tentei avisar. Eu não pretendia simplesmente
dar as caras assim."
Marino está sendo evasivo e toda essa história é uma tática. É invenção. Por algum motivo, achou necessário simplesmente aparecer por aqui sem avisar. Talvez por
querer se certificar de que eu vá com ele sem demora. Percebo que o problema é sério.
"Não pode ter sido pelo Gabriel que você deu as caras assim, como você mesmo disse", aponto.
"Receio que não."
"O que aconteceu?"
"Temos um problema." Ele olha direto para a frente. "E eu disse a Fielding e a todos os outros que o corpo não ia ser examinado antes de você chegar."
Jack Fielding é um patologista forense experiente que não recebe ordens de Marino. Se meu sub optou por não intervir e transferir para mim o corpo, isso significa
que temos um caso que pode ter implicações políticas ou terminar em processo. O fato de Fielding não ter tentado me telefonar ou me passado um e-mail me incomoda
bastante. Torno a verificar meu iPhone. Nada da parte dele.
"Por volta das três e meia ontem à tarde em Cambridge", diz Marino, e agora estamos na Atlantic Street, dirigindo devagar na semiescuridão, no meio da base. "Em
Norton's Woods, na Irving, a menos de um quarteirão da sua casa. Uma merda você não estar em casa. Podia ter ido até a cena, a pé, e talvez as coisas tivessem acabado
de forma diferente."
"Que coisas?"
"Um homem de pele morena clara, na casa dos vinte. Estava passeando com o cachorro e caiu morto. Ataque cardíaco, certo? Errado", continua ele enquanto passamos
por fileiras de instalações de manutenção em concreto e metal, hangares e outras estruturas que têm números em vez de nomes. "É plena luz do dia de uma tarde de
domingo, muita gente por perto, porque tinha um evento no que quer que seja aquele lugar, o com um telhado verde de metal."
Norton's Woods é a sede da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, uma propriedade arborizada com uma impressionante construção em madeira e vidro que é
alugada para cerimônias especiais. Fica várias casas adiante daquela para a qual Benton e eu nos mudamos na primavera passada, a fim de que eu ficasse perto do CFC
e ele de Harvard, onde faz parte do corpo docente do departamento de psiquiatria da faculdade de medicina.
"Em outras palavras, olhos e ouvidos", continua Marino. "Um bom lugar e uma boa hora para matar alguém."
"Pensei que você tivesse dito que ele sofreu um ataque do coração. Só que, sendo tão jovem, deve ter sido uma arritmia cardíaca."
"É, era essa a hipótese inicial. Algumas testemunhas viram o sujeito colocar a mão no peito de repente e cair. Ele morreu ali... pelo jeito. Foi transportado direto
para nossa repartição e passou a noite na geladeira."
"O que você quer dizer com 'pelo jeito'?"
"Hoje cedo, Fielding entrou na geladeira e notou gotas de sangue no chão e muito sangue na bandeja, então foi chamar Anne e Ollie. O cara morto tinha sangue saindo
pelo nariz e pela boca. Não estava ali na tarde anterior, quando ele foi dado como morto. Não havia sangue na cena, nem uma gota, e agora ele está sangrando, e não
é hipóstase, claro, porque o cara não está em decomposição. O lençol com que está coberto está ensanguentado e tem mais ou menos um litro de sangue no saco que contém
o corpo, o que é uma merda. Eu nunca tinha visto um morto começar a sangrar assim. Então eu disse que tínhamos a porra de um problema sério e todo mundo ficou de
boca fechada."
"O que Jack disse? O que ele fez?"
"Você está de gozação, não está? Que braço-direito o seu. Não vou nem começar."
"Temos alguma identificação? E por que Norton's Woods? Ele mora ali perto? Estuda em Harvard? Talvez na faculdade de teologia, ali perto? Duvido que ele estivesse
indo ao evento. Não com um cachorro." Pareço muito mais calma do que me sinto ao ter essa conversa no estacionamento da pousada Eagle's Rest.
"Ainda não temos muitos detalhes, mas parece que era um casamento", explica Marino.
"No domingo do Super Bowl? Quem marca um casamento no mesmo dia do Super Bowl?"
"Alguém que não quer que ninguém apareça. Ou que não é americano, ou que é antiamericano. Sei lá, mas acho que o morto não era um convidado do casamento, e não só
por causa do cachorro. Ele levava uma Glock nove milímetros por baixo do casaco. Não tinha documentos e estava ouvindo um rádio portátil via satélite. Você já imagina
aonde quero chegar com isso."
"Na verdade não."
"Lucy vai falar mais sobre a parte do rádio via satélite, mas parece que ele estava fazendo vigilância, espionando, e talvez a pessoa que ele estava sacaneando tenha
decidido retribuir o favor. Resumindo, acho que alguém fez alguma coisa com ele e causou um ferimento que de alguma forma passou despercebido aos paramédicos; o
serviço de remoção também não notou nada. Então o zíper do saco é fechado e ele começa a sangrar durante o transporte. Bom, isso não aconteceria a não ser que ele
tivesse alguma pressão sanguínea, ou seja, ainda estava vivo quando foi deixado no necrotério e trancado dentro da porra da geladeira. Com catorze, quinze graus
negativos lá dentro, ele deve ter morrido esta manhã por exposição ao frio. Supondo que não tenha sangrado até a morte primeiro."
"Se ele tinha um ferimento que causaria sangramento externo", pergunto, "por que não havia sangue na cena?"
"Explique você."
"Por quanto tempo tentaram ressuscitar o cara?"
"Quinze, vinte minutos."
"Não é possível que um vaso sanguíneo tenha sido de alguma forma perfurado nesse período?", pergunto. "Lesões anteriores e posteriores à morte, quando suficientemente
graves, podem causar sangramento significativo. Talvez durante a reanimação cardiopulmonar uma costela tenha fraturado e causado uma perfuração ou secção em uma
artéria. Um tubo torácico pode ter sido inserido e causado um ferimento e o sangramento que você descreveu."
Mas sei que não é nada disso antes mesmo de dizer. Marino é um investigador de homicídios experiente. Não teria requisitado minha sobrinha e seu helicóptero para
vir a Dover sem aviso prévio se houvesse uma explicação lógica ou mesmo plausível, e Jack Fielding certamente reconheceria um ferimento como o que eu sugeri. Por
que ele não tentou falar comigo?
"O quartel do Corpo de Bombeiros de Cambridge deve ficar a um quilômetro e meio de Norton's Woods, e o pelotão chegou em poucos minutos", informa Marino.
Estamos sentados na van com o motor desligado. Está quase completamente escuro, o horizonte e o céu se fundem, com um débil vestígio de luz a oeste. Quando Fielding
lidou com algum revés sem mim? Nunca. Ele se afasta. Deixa a sujeira para os outros limparem. Foi por isso que não tentou fazer contato comigo. Talvez tenha largado
o emprego de novo. Quantas vezes precisa fazer isso para que eu pare de recontratá-lo?
"De acordo com eles, o sujeito morreu instantaneamente", acrescenta Marino.
"A menos que um explosivo arrebente alguém em centenas de pedaços, na verdade não existe essa coisa de morrer instantaneamente", retruco, porque detesto quando Marino
fala clichê. Morrer instantaneamente. Cair morto. Morreu antes de atingir o solo. Vinte anos de generalidades como essas, não importa quantas vezes eu tenha dito
que paradas cardíaca e respiratória não são causas, mas sintomas da morte, o que em termos clínicos leva no mínimo alguns minutos. Nunca é instantânea. Não é um
processo simples. Torno a lembrá-lo dessa questão médica porque não consigo pensar em mais nada para dizer.
"Bom, só estou relatando o que me contaram. De acordo com eles, o cara não pôde ser ressuscitado", responde Marino como se os paramédicos soubessem mais sobre a
morte do que eu. "Não reagiu. É o que está no prontuário."
"Você interrogou os paramédicos?"
"Um deles. Por telefone esta manhã. Sem pulso, sem nada. O cara estava morto. Ou foi o que disse o paramédico. Mas o que você acha que ele ia dizer? Que eles não
tinham certeza, mas mesmo assim mandaram o sujeito para o necrotério?"
"Então você contou a ele por que estava perguntando."
"Porra, não, não sou nenhum retardado. Ninguém precisa disso na primeira página do Globe. Se chegar aos noticiários, posso muito bem voltar para o departamento de
polícia de Nova York ou, quem sabe, terminar na Wackenhut, só que ninguém está contratando."
"Que procedimento você seguiu?"
"Não segui merda nenhuma. Foi Fielding. É claro que ele está dizendo que fez tudo como manda o figurino, e que a DP de Cambridge informou que não havia nada de suspeito
na cena, uma morte natural evidente, com testemunhas. Fielding deu permissão para que o corpo fosse transferido ao CFC desde que os policiais ficassem com a custódia
da arma e a levassem de imediato para o laboratório para que descobríssemos em nome de quem está registrada. Um caso de rotina, e não é culpa nossa se os paramédicos
fizeram besteira, ou assim diz Fielding. E você sabe o que eu digo? Não importa. Vamos levar a culpa. A imprensa vai nos perseguir como você nunca viu e vai dizer
que tudo deveria voltar para Boston. Já imaginou?"
Antes que o CFC começasse a trabalhar nos primeiros casos no verão passado, a agência estatal de medicina legal localizava-se em Boston e vivia cercada por problemas
políticos e econômicos, sem mencionar os escândalos que estavam constantemente nos noticiários. Corpos eram perdidos, enviados à funerária errada ou cremados sem
exame minucioso, e em pelo menos uma suspeita de morte de criança por maus-tratos foram testados os globos oculares errados. Novos chefes chegaram e partiram, e
órgãos distritais tiveram de ser fechados devido à falta de financiamento. Mas nada de negativo que já tenha sido dito a respeito daquela instituição se compara
ao que Marino está sugerindo a nosso respeito.
"Prefiro não imaginar nada." Abro a porta. "Vou me concentrar nos fatos."
"Isso é um problema, já que parece que não temos nada que faça muito sentido."
"E você contou a Biggs o que acabou de me contar?"
"Contei o que ele precisava saber", responde Marino.
"A mesma coisa que acabou de me contar?", repito a pergunta.
"Praticamente."
"Não devia ter feito isso. Devia ter me deixado contar. Eu decido o que ele precisa saber." Estou sentada com a porta do carona bem aberta e o vento entrando. Ainda
estou úmida do banho e sinto frio. "Não pode quebrar a cadeia de comando só porque estou ocupada."
"Bom, você estava muito ocupada, então contei a ele."
Desço da van e me tranquilizo dizendo que o que Marino acaba de descrever não pode estar correto. Os paramédicos de Cambridge jamais cometeriam um erro tão absurdo;
tento evocar uma explicação para um ferimento fatal não sangrar na cena e depois sangrar de forma profusa e penso em como computar a hora da morte ou mesmo a causa
de alguém que morreu dentro da geladeira de um necrotério. Estou confusa. Não faço a menor ideia do que está acontecendo e, acima de tudo, estou angustiada por ele,
por esse jovem entregue a mim, dado como morto. Visualizo-o envolto em um lençol e acondicionado em um saco, o zíper fechado, e é essa a essência dos velhos horrores.
Alguém que recupera os sentidos dentro de um caixão. Alguém que é enterrado vivo. Nunca me aconteceu nada tão terrível, nem de perto, nem uma única vez em minha
carreira. E nunca conheci ninguém que tenha passado por isso.
"Pelo menos não há nenhum sinal de que ele tentou sair do saco." Marino está tentando fazer com que ambos nos sintamos melhor. "Nada que indique que ele pode ter
acordado a certa altura e entrado em pânico. Você sabe, sinais de que tentou abrir o zíper, chutar ou coisa parecida. Acho que, se ele tivesse lutado, estaria em
outra posição na bandeja quando o encontramos esta manhã, ou talvez tivesse até rolado para fora dela. Não tinha pensado nisso, mas uma pessoa não sufocaria num
saco daqueles? Supostamente eles são à prova d'água. Ainda que vazem. Queria ver um que não vazasse. E essa é a outra questão. Os pingos de sangue no chão vão na
direção da baia para a geladeira."
"Por que não continuamos isso mais tarde?" É hora do check-in. Há muita gente no estacionamento quando nos dirigimos à entrada moderna, mas simples, da pousada,
e Marino tem uma voz grossa que se projeta como se ele estivesse sempre falando de um palco.
"Duvido que Fielding tenha se dado o trabalho de ver a gravação", continua Marino. "Duvido que tenha feito qualquer coisa. Não vi nem tive notícias do filho da puta
desde hoje cedo. Desapareceu na hora H de novo." Marino abre a porta principal de vidro. "Espero que não tenhamos que fechar por causa daquele imprestável. Não seria
incrível? Você faz ao cara a porra de um favor lhe dando um emprego depois que ele se mandou e ele destrói o CFC antes mesmo que o lugar comece a decolar."
No interior do hall de entrada com mostruários contendo prêmios e memorabilia da Força Aérea, cadeiras confortáveis e uma TV gigantesca, uma placa dá as boas-vindas
aos hóspedes na sede do C-5 Galaxy e do C-17 Globemaster III. Na recepção, espero silenciosamente atrás de um homem que veste as listras de tigre extravagantes e
indistintas dos uniformes de combate do Exército, enquanto compra creme de barbear, água e várias garrafinhas de Johnnie Walker. Informo ao recepcionista que estou
fechando a conta antes do planejado e, sim, vou me lembrar de entregar as chaves, e é claro que compreendo que vão me cobrar a diária de trinta e oito dólares mesmo
que eu não passe a noite lá.
"Como é que se diz?", continua Marino. "O inferno está cheio de boas intenções?"
"Vamos tentar não ser tão negativos."
"Você e eu abrimos mão de bons empregos em Nova York e fechamos o escritório em Watertown, e é isso o que acontece."
Não me pronuncio.
"Realmente espero que isso não acabe com a nossa carreira", prossegue ele.
Não respondo, porque já ouvi o bastante. Depois das lojinhas e das máquinas de refrigerante, salgadinho e doce, pegamos a escada para o segundo andar e é então que
ele me informa que Lucy não está esperando com o helicóptero no Terminal Aéreo Civil. Está em meu quarto. Fazendo minhas malas, tocando em meus pertences, tomando
decisões sobre eles, esvaziando meu armário, minhas gavetas, desligando meu laptop, minha impressora, o roteador. Ele esperou para me dizer porque sabe muito bem
que, em circunstâncias normais, isso me irritaria absurdamente - não importaria que se tratasse da minha sobrinha, o gênio da informática, ex-policial federal, que
criei como uma filha.
As circunstâncias são tudo menos normais, e sinto-me aliviada que Marino esteja aqui e Lucy esteja em meu quarto, que tenham vindo me buscar. Preciso chegar em casa
e resolver tudo. Percorremos o longo corredor com tapete vermelho-escuro, passamos pela varanda decorada com reproduções coloniais e uma cadeira eletrônica de massagem
atenciosamente instalada para os pilotos cansados. Insiro o cartão magnético na abertura na porta do quarto e me pergunto quem teria deixado Lucy entrar, então torno
a pensar em Briggs e na CNN. Não posso nem pensar em aparecer na TV. E se a imprensa tomou conhecimento do que aconteceu em Cambridge? A essa altura eu saberia.
Marino saberia. Bryce, meu administrador, saberia e teria me contado imediatamente. Tudo vai ficar bem.
Lucy está sentada em minha cama bem-feita, fechando o zíper de minha nécessaire de cosméticos. Detecto o perfume cítrico apurado de seu xampu quando a abraço e percebo
o quanto ela me fez falta. Um macacão de voo preto acentua seus olhos verdes atrevidos, o cabelo curto dourado, as feições angulosas e a magreza, o que me faz lembrar
o quanto ela é atraente de um jeito pouco comum, com ar de menino, porém feminina, vigorosamente esculpida, com seios em evidência e tão intensa que parece selvagem.
Independentemente de estar brincando ou sendo educada, minha sobrinha tende a intimidar e tem poucos amigos, talvez nenhum a não ser Marino, e seus amores nunca
duram. Nem mesmo Jaime, embora eu não tenha revelado minhas suspeitas. Não perguntei. Mas não engulo a história de Lucy de ter se mudado de Nova York para Boston
por razões financeiras. Mesmo que sua empresa investigativa de informática forense estivesse em declínio, no que tampouco acredito, ela estava ganhando mais em Manhattan
do que recebe agora do CFC, que é nada. Minha sobrinha trabalha para mim pro bono. Ela não precisa de dinheiro.
"Qual é a história do rádio via satélite?" Observo-a com atenção, tentando interpretar seus sinais, que são sempre sutis e desconcertantes.
As cápsulas chocalham enquanto ela verifica quantos Advils há em um frasco, decidindo que não o bastante para perder tempo e o atira no lixo. "Vamos pegar mau tempo,
então eu gostaria de sair logo daqui." Ela destampa um frasco de Zantac, descartando-o a seguir. "Conversamos durante o voo. Vou precisar da sua ajuda como copiloto.
Vai ser complicado escapar das nevascas e da chuva no caminho. Trezentos milímetros, começando por volta das dez."
Meu primeiro pensamento é Norton's Woods. Preciso fazer uma visita retrospectiva, mas quando chegar lá, o lugar vai estar coberto de neve.
"É uma pena", comento. "A cena do crime não foi investigada como deveria."
"Pedi à DP de Cambridge para voltar lá esta manhã." Os olhos de Marino se deslocam como se fosse meu alojamento que necessitasse ser investigado. "Não encontraram
nada."
"Perguntaram por que você quis que investigassem?" A mesma preocupação outra vez.
"Eu disse que tínhamos dúvidas. Coloquei a culpa na Glock. O número de série foi apagado. Acho que não contei isso", acrescenta ele enquanto olha ao redor, atento
a tudo menos a mim.
"Podemos tentar recuperar o número com ácido. Se não der certo, ainda temos o microscópio eletrônico de varredura", concluo. "Se restou algum traço, vamos encontrar.
E vou pedir a Jack para ir a Norton's Woods e fazer uma retrospectiva."
"Tenho certeza de que ele vai começar a trabalhar nisso", diz Marino em tom sarcástico.
"Ele pode tirar fotografias antes que a neve comece", acrescento. "Ou alguma outra pessoa. Quem estiver de plantão..."
"É perda de tempo", diz Marino me interrompendo. "Nenhum de nós estava lá ontem. Não sabemos qual a porra do local exato... só que ficava perto de uma árvore e de
um banco verde. Bom, isso é de grande ajuda quando você está falando de cerca de três hectares de árvores e bancos verdes."
"E fotografias?", pergunto enquanto Lucy continua a vasculhar minha pequena farmácia de pomadas, analgésicos, antiácidos, vitaminas, colírios e antissépticos espalhada
sobre a cama. "A polícia deve ter batido fotos do corpo in situ."
"Ainda estou esperando o detetive me mandar. O cara que responde pela cena trouxe a pistola hoje de manhã. Lester Law, atende por Les Law, mas nas ruas é mais conhecido
como Lawless, corrupto exatamente como o pai e o avô antes dele. Os tiras de Cambridge voltando à porra do Mayflower. Mas não conheci o sujeito."
"Bom, acho que é isso." Lucy se levanta da cama. "Quer conferir se não esqueci nada?", acrescenta ela.
O lixo está abarrotado, minhas malas estão arrumadas e enfileiradas em uma das paredes, a porta do armário está escancarada, sem nada dentro exceto cabides vazios.
Equipamentos de informática, arquivos impressos, artigos de jornal e livros desapareceram da minha escrivaninha, e não há nada no cesto de roupas sujas, nem no banheiro
ou nas gavetas da cômoda que inspeciono. Abro a pequena geladeira. Está vazia e foi limpa. Enquanto ela e Marino começam a carregar minhas coisas para fora, teclo
o número de Briggs no meu iPhone. Olho para o prédio de estuque de três andares no outro lado do estacionamento, para a ampla janela espelhada no meio do terceiro
andar. Ontem à noite eu estava nessa suíte com ele e outros colegas assistindo ao jogo, e a vida era boa. Aplaudimos o New Orleans Saints e nosso próprio trabalho
e brindamos ao Pentágono e a sua Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, a DARPA, que haviam tornado possíveis as autópsias virtuais com o auxílio de
TC em Dover e agora no CFC. Comemoramos a missão cumprida, o trabalho bem-feito, e agora isso, como se a noite passada não fosse real, como se eu tivesse sonhado.
Respiro fundo e aperto ENVIAR em meu iPhone, sentindo-me oca por dentro. Briggs não pode estar satisfeito comigo. Imagens lampejam na TV de tela plana instalada
na parede da sala de estar, então ele passa pelo vidro vestindo seu uniforme de combate do Exército, verde e marrom com gola chinesa, o que normalmente usa quando
não está no necrotério ou em uma cena de crime. Vejo-o atender ao telefone e retornar à ampla janela, onde para, olhando direto para mim. A certa distância, estamos
cara a cara, uma extensão de asfalto e carros estacionados entre mim e o legista-chefe das Forças Armadas, como se estivéssemos à beira de um impasse.
"Coronel." Ele me cumprimenta em tom sombrio.
"Acabo de saber. E garanto que vou cuidar disso. Estarei no helicóptero em uma hora."
"Você sabe o que sempre digo." A voz profunda e autoritária soa em meu fone de ouvido e tento detectar seu grau de mau humor e o que ele vai fazer. "Tudo tem uma
resposta. O problema é encontrar essa resposta e a melhor maneira de fazer isso. A maneira mais correta e adequada." Ele parece calmo. Cauteloso. Muito sério. "O
resto fica para outra ocasião", acrescenta.
Briggs está fazendo menção ao último briefing que havíamos programado. Tenho certeza de que também se refere à CNN, e me pergunto o que Marino contou. O que exatamente
ele disse?
"Concordo, John. Tudo deve ser cancelado."
"Já foi."
"É a coisa certa." Soo trivial. Não vou deixar que ele perceba minha insegurança e sei que a está farejando. Sei muito bem que está. "Minha prioridade é determinar
se a informação que me foi passada está correta. Porque não vejo como pode ser possível."
"Não é uma boa hora para você ir ao ar. Não preciso que Rockman nos diga isso."
Rockman é o assessor de imprensa. Briggs não precisa falar com ele porque já fez isso. Tenho certeza.
"Entendo", respondo.
"Um sincronismo incrível. Se eu fosse paranoico, podia simplesmente pensar que alguém orquestrou algum tipo bizarro de sabotagem."
"Com base no que me contaram, não vejo como isso seria possível."
"Eu disse se fosse paranoico", retruca Briggs e, de onde estou, distingo a figura musculosa magnífica, mas não consigo ver a expressão em seu rosto. E não preciso.
Ele não está sorrindo. Os olhos cinzentos são aço galvanizado.
"A sincronia pode ser coincidência ou não", digo. "É o pressuposto básico em investigações criminais, John. É sempre uma coisa ou outra."
"Não vamos banalizar a situação."
"Estou fazendo tudo menos isso."
"Não consigo pensar em nada muito pior que uma pessoa viva ser colocada na porra da sua geladeira", diz ele sem rodeios.
"Nós não sabemos..."
"É uma pena depois de tudo isso." Como se tudo o que construímos ao longo dos últimos anos estivesse à beira da ruína.
"Não sabemos se o que foi relatado é exato...", começo a dizer.
"Acho que seria melhor trazer o corpo para cá", interrompe ele mais uma vez. "O AFDIL pode trabalhar na identificação. Rockman vai se certificar de que a situação
fique sob controle. Temos tudo de que precisamos bem aqui."
Estou pasma. Briggs quer mandar um avião a Hanscom Field, a base aérea afiliada ao CFC. Quer que o Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas, provavelmente
com outros laboratórios militares e outra pessoa que não eu, cuide do que aconteceu porque acha que não tenho competência para isso. Ele não confia em mim.
"Não sabemos se estamos falando da jurisdição federal", lembro-lhe. "A menos que você saiba alguma coisa que eu não sei."
"Olhe. Estou tentando fazer o que é melhor para todos os envolvidos." Briggs tem as mãos às costas, as pernas ligeiramente afastadas, os olhos fixos em mim no outro
lado do estacionamento. "Podemos despachar um C-17 para Hanscom. Podemos ter o corpo aqui por volta de meia-noite. O CFC é um necrotério também, e é isso que os
necrotérios fazem."
"Não é isso que os necrotérios fazem. A ideia não é que os corpos sejam recebidos, então transferidos para as autópsias e análises de laboratório. O CFC não foi
projetado para ser uma primeira triagem para Dover, uma verificação preliminar à intervenção dos peritos. Essa nunca foi minha intenção nem o que foi acordado quando
trinta milhões de dólares foram gastos na repartição em Cambridge."
"Você devia ficar em Dover, Kay. Trazemos o corpo para cá."
"Estou pedindo a você que não intervenha, John. Neste momento, o caso pertence à alçada do legista-chefe de Massachusetts. Por favor, não desafie a minha autoridade."
Há uma longa pausa, então ele afirma, em vez de perguntar: "Você realmente quer essa responsabilidade".
"Ela é minha, eu querendo ou não."
"Estou tentando te proteger. Tenho tentado."
"Não faça isso." Não é o que ele está tentando fazer. Não tem confiança em mim.
"Posso mobilizar a capitã Avallone para ajudar. Não é má ideia."
Mal posso acreditar que ele tenha sugerido isso. "Não é necessário", refuto em tom firme. "O CFC é perfeitamente capaz de lidar com a situação."
"Que fique registrado que ofereci."
Que fique registrado junto a quem? Ocorre-me, de forma estranha, que talvez haja outra pessoa na linha. Briggs continua de pé diante da janela. Não sei se há mais
alguém na suíte com ele.
"O que você decidir", diz então. "Não vou passar por cima de você. Ligue assim que souber de alguma coisa. Me acorde se for preciso." Ele não diz adeus, nem boa
sorte, nem foi bom ter você por aqui por seis meses.
2
Lucy e Marino saíram do quarto. Minhas malas, mochilas e caixas de arquivo desapareceram e não restou nada. É como se eu nunca tivesse estado aqui e me sinto só
como não ocorre há anos, talvez décadas.
Olho ao redor pela última vez, para me certificar de que nada foi esquecido, minha atenção viajando para além do micro-ondas, da pequena geladeira e da cafeteira
elétrica, rumo às janelas com vista do estacionamento e da suíte iluminada de Briggs e mais além, rumo ao céu negro sobre o vazio do campo de golfe desocupado. Grossas
nuvens passam pela lua oblonga, que acende e apaga como uma lanterna de sinalização, como se me informasse o que há adiante e se devo parar ou seguir, e não vejo
estrela nenhuma. Preocupa-me que o mau tempo esteja se deslocando rápido, conduzido pelo mesmo vento sul poderoso que traz os grandes aviões e sua triste carga.
Eu deveria me apressar, mas o espelho do banheiro me distrai, a pessoa nele, na verdade, e paro para me olhar sob a claridade da luz fluorescente. Quem é você agora?
De verdade?
Meus olhos azuis e meu cabelo louro e curto, o talhe forte de meu rosto e minha silhueta não estão muito diferentes, concluo, parecem notadamente os mesmos, levando-se
em conta minha idade. Resisti bem às salas de concreto e aço inoxidável sem janelas, e muito disso é genético, um desejo hereditário de prosperar em uma família
trágica como uma ópera de Verdi. Os Scarpetta descendem de italianos fortes do norte, com feições proeminentes, cabelo e pele claros, e músculos e ossos bem definidos
que resistem à adversidade e aos abusos da permissividade que a maioria das pessoas não associaria comigo. Mas as tendências estão presentes, uma paixão pela comida,
pela bebida, por todas as coisas que a carne deseja, não importa quão destrutivas. Almejo a beleza e sinto com profundidade, mas também sou uma aberração. Posso
ser firme e impenetrável. Posso ser imutável e implacável, e esses comportamentos são aprendidos. Acredito que sejam necessários. Não são naturais em mim, nem em
ninguém em minha família instável e dramática, e sei que isso é verdade sobre minhas origens. Quanto ao resto, não tenho tanta certeza.
Meus antepassados eram agricultores e trabalharam nas estradas de ferro, mas nos últimos anos, quando começou a pesquisar nossa genealogia, minha mãe acrescentou
artistas, filósofos, mártires e Deus sabe o que mais à mistura. Segundo ela, sou descendente dos artesãos que construíram o altar principal e os assentos do coro
e elaboraram os mosaicos da Basílica de São Marcos e criaram os afrescos do teto da Chiesa dell'Angelo San Raffaele. De alguma forma, tenho vários frades e monges
em meu passado, e mais recentemente - não sei com base em que - compartilho sangue com o pintor Caravaggio, que foi um assassino, e tenho uma tênue ligação com o
matemático e astrônomo Giordano Bruno, queimado na fogueira por heresia durante a Inquisição romana.
Minha mãe ainda mora numa casinha de Miami e está imersa em suas tentativas de me explicar isso tudo. Até onde se sabe, sou a única médica da árvore genealógica
e ela não entende por que escolhi pacientes que já estão mortos. Nem minha mãe nem minha única irmã, Dorothy, conseguem compreender que sou parcialmente definida
pelos horrores de uma infância absorvida em cuidar de meu pai com uma doença terminal antes de me tornar chefe de família aos doze anos. Por intuição e formação,
sou especialista em violência e morte. Estou em guerra com o sofrimento e a dor. De alguma forma, sempre acabo no comando ou levando a culpa. Isso nunca falha.
Fecho a porta do que foi meu lar não apenas durante seis meses, mas na verdade por mais que isso. Briggs conseguiu me lembrar de onde vim e para onde vou. Uma trajetória
que se definiu muito antes do último mês de julho, no passado distante de 1987, quando descobri que meu destino era o serviço público e não sabia como pagar meu
empréstimo estudantil para a faculdade de medicina. Permiti que algo tão banal quanto o dinheiro, algo tão vergonhoso quanto a ambição mudassem tudo de forma irrevogável,
e não no bom sentido - na realidade, no pior dos sentidos. Mas eu era jovem e idealista. Era arrogante e queria mais, sem entender na ocasião que mais é sempre menos
quando você não se sacia.
Tendo conseguido bolsa integral na escola paroquial, em Cornell e na faculdade de direito de Georgetown, eu poderia ter iniciado minha vida profissional isenta das
obrigações de uma dívida. Mas havia rejeitado a faculdade de medicina Bowman Gray por querer muito a Johns Hopkins. Eu queria a Johns Hopkins mais que qualquer outra
coisa e fui para lá sem benefícios nem auxílio financeiro, o que resultou numa dívida impossível de ser paga. Meu único recurso foi aceitar uma bolsa de estudos
militar, como alguns de meus colegas haviam feito, inclusive Briggs, a quem fui apresentada no início da carreira, ao ser designada para o Instituto de Patologia
das Forças Armadas, o AFIP, a organização precursora do AFMES. Uma temporada tranquila revisando relatórios de autópsias militares no Centro Médico Walter Reed,
do Exército, em Washington, D. C., Briggs me levou a crer, e assim que minha dívida estivesse paga, eu sairia e assumiria uma posição sólida na medicina legal civil.
O que não planejei foi a África do Sul em dezembro de 1987, o que era verão naquele continente distante. Noonie Pieste e Joanne Rule estavam filmando um documentário
e tinham mais ou menos a mesma idade que eu quando foram amarradas a uma cadeira, espancadas e cortadas. Enfiaram uma garrafa de vidro quebrada na vagina de cada
uma e arrancaram a traqueia. Crimes de ódio contra duas jovens americanas.
"Você vai à Cidade do Cabo", anunciou Briggs. "Para investigar e trazer as garotas para casa." O apartheid. Mentiras e mais mentiras. Por que elas e por que eu?
Enquanto desço as escadas rumo ao hall de entrada, digo a mim mesma para não pensar nesse assunto agora. Por que estou lembrando tudo isso? Mas sei por quê. Gritaram
comigo ao telefone esta manhã. Fui xingada, e o que aconteceu mais de duas décadas atrás está diante de mim novamente. Recordo relatórios de autópsia que desapareceram
e minha bagagem que foi vasculhada. Recordo a certeza de que apareceria morta, um acidente ou suicídio conveniente, ou um assassinato encenado, como aquelas duas
mulheres que continuo a ver em minha mente. Vejo-as de forma tão clara quanto na ocasião, pálidas e rígidas em mesas de aço, o sangue escorrendo por drenos no chão
de um necrotério tão primitivo que usamos serras simples para abrir os crânios; não havia aparelho de raios X e precisei levar minha própria câmera.
Deixo a chave na recepção e repasso a conversa que acabo de ter com Briggs; então vejo com clareza. Não sei por que não enxerguei a verdade de imediato; penso em
seu tom distante, na deliberação fria enquanto eu o observava através do vidro. Já o ouvi falar assim antes, mas em geral se dirigindo a outras pessoas quando há
um problema de tal magnitude que sai de suas mãos. Isso está além de uma opinião pessoal a meu respeito. Está além de suas maquinações típicas e de nosso passado
conflituoso.
Alguém o importunou, e não foi o assessor de imprensa nem ninguém em Dover, e, sim, alguém mais graúdo. Tenho certeza de que Briggs teve que falar com Washington
depois que Marino divulgou a informação, abrindo a boca e desfiando suas especulações desvairadas antes de eu ter tido a chance de dizer uma palavra. Marino não
deveria ter discutido o caso. Pôs em movimento alguma coisa que não entende, porque existem muitas coisas que ele não entende. Nunca foi militar. Nunca trabalhou
para o governo federal e é ignorante em assuntos internacionais. Sua ideia de burocracia e intriga são as políticas da polícia local, que considera bobagem. Não
tem nenhuma noção de poder, a espécie de poder capaz de afetar uma eleição presidencial ou deflagrar uma guerra.
Briggs não teria sugerido enviar um avião militar a Massachusetts para a transferência de um corpo para Dover a menos que tivesse recebido autorização do Departamento
de Defesa - em outras palavras, do Pentágono. Uma decisão foi tomada e não faço parte dela. Fora, no estacionamento, subo na van e não olho para Marino de tão furiosa
que estou.
"Fale mais sobre o rádio via satélite", peço a Lucy, pois pretendo ir até o fundo da questão. Pretendo descobrir o que Briggs sabe ou foi levado a acreditar.
"É um Sirius Stiletto", diz Lucy do banco de trás, enquanto intensifico o aquecimento, porque Marino está sempre com calor ao passo que o restante de nós congela.
"Basicamente, nada mais é que armazenagem de arquivos, além de ser uma fonte de energia. É claro que funciona como um rádio XM portátil, para o que foi projetado,
mas a diferença são os fones de ouvido. Não geniais, mas tecnicamente inteligentes."
"Eles têm uma câmera pinhole e um microfone embutidos", esclarece Marino enquanto dirige. "É por isso que acho que o morto estava espionando alguém. Como ele podia
não saber que tinha um sistema de gravação audiovisual embutido nos fones de ouvido?"
"Talvez não soubesse. É possível que alguém estivesse espionando o sujeito e ele não fizesse a menor ideia", diz Lucy, e percebo que ela e Marino andaram discutindo
a respeito. "A pinhole fica no topo da armação na cabeça, mas bem na beirada, e é difícil de ver. Mesmo que ele percebesse, não necessariamente lhe passaria pela
cabeça que lá dentro havia uma câmera via rádio menor que um grão de arroz, um transmissor de áudio do mesmo tamanho e um sensor de movimento que fica inativo depois
de noventa segundos sem nada se mexendo. O cara estava andando por aí com uma webcam que estava gravando no disco rígido do rádio e tinha um cartão SD adicional
de oito gigas. Para mim, é muito cedo para dizer que ele sabia disso - em outras palavras, que ele mesmo montou o equipamento. Sei que é o que Marino acha, mas não
tenho certeza."
"O cartão SD veio com o rádio ou foi anexado depois?", indago.
"Anexado depois. Em outras palavras, é muito espaço de armazenamento. O que me deixa curioso é se esses arquivos eram periodicamente baixados em outro lugar, como
um PC, por exemplo. Se a gente conseguir pegar esse material, talvez descubra do que se trata."
Lucy está dizendo que os arquivos de vídeo que examinou até então não dizem muita coisa. Ela tem razões para suspeitar que a memória está ligada a um PC, talvez
mais de um, mas não descobriu nada que informe onde o sujeito morava ou quem é.
"O que está armazenado no disco rígido e no cartão SD remonta só até 5 de fevereiro, sexta-feira passada", continua ela. "Não sei se isso significa que a vigilância
acabou de começar ou, o que é mais provável, que os arquivos de vídeo são grandes e ocupam muito espaço no disco rígido. Eles provavelmente são baixados em outro
lugar e o que está no disco rígido e no cartão SD foi gravado por cima. Então, provavelmente temos só as gravações mais recentes, o que não significa que não existam
outras."
"Então esses vídeos provavelmente foram baixados de forma remota."
"É o que eu faria se estivesse espionando", diz Lucy. "Me conectaria remotamente com a webcam e baixaria o que quisesse."
"E a vigilância em tempo real?", pergunto.
"Se ele estivesse sendo espionado, quem estivesse fazendo isso poderia se conectar com a webcam e vigiar o sujeito enquanto as coisas aconteciam."
"Para perseguir o cara, para ir atrás dele?"
"Seria um motivo lógico. Ou para colher informações, para espionar. Como algumas pessoas fazem quando desconfiam que estão sendo enganadas. Tudo o que você imaginar
é possível."
"Então é possível que ele tenha gravado a própria morte sem querer." Sinto um lampejo de esperança e ao mesmo tempo esse pensamento me deixa profundamente perturbada.
"Estou dizendo 'sem querer' porque não sabemos com o que estamos lidando. Por exemplo, não sabemos se ele gravou intencionalmente a própria morte, se ele é um suicida,
e não vou descartar nada ainda."
"Ele não é um suicida", diz Marino.
"A essa altura, não podemos descartar nada", repito.
"Como um terrorista suicida", diz Lucy. "Como Columbine e Fort Hood. Talvez ele fosse matar o maior número de pessoas que conseguisse em Norton's Woods e depois
se matar, mas alguma coisa aconteceu e ele não teve chance."
"Não sabemos com que estamos lidando", torno a dizer.
"A Glock tinha dezessete rodadas no pente e uma na câmara", menciona Lucy. "Muita potência de fogo. Dava com certeza para arruinar o casamento de alguém. Precisamos
saber quem se casou e quem compareceu."
"A maioria dessas pessoas tem pentes extra", retruco. Sei tudo a respeito do tiroteio em Fort Hood, no Instituto Politécnico da Virginia e em muitos outros locais,
onde atacantes abrem fogo sem necessariamente se preocupar com quem matam. "Em geral, essas pessoas têm muita munição e armas adicionais, já que estão planejando
um assassinato em massa. Mas concordo com você. A Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos é um local conhecido e deveríamos descobrir quem casou lá ontem
e quem foram os convidados."
"Espero que você seja sócia", diz Marino. "Talvez tenha um contato para conseguir uma lista de sócios e a programação de eventos."
"Não sou sócia."
"Você está brincando."
Não menciono que não ganhei um Nobel, nem um Pulitzer e não sou ph.D., só tenho um diploma de medicina e outro de direito, e isso não importa. Eu poderia lembrá-lo
de que, de qualquer forma, a Academia talvez não seja relevante, porque não sócios podem alugar o prédio. Basta ter contatos e dinheiro. Mas não estou a fim de dar
explicações detalhadas a Marino. Ele não deveria ter telefonado para Briggs.
"Tenho uma boa e uma não tão boa notícia sobre a gravação." Lucy estende a mão para o encosto do assento e me entrega seu iPad. "A boa notícia, como já indiquei,
é que não parece que alguma coisa tenha sido deletada, pelo menos não recentemente. O que poderia ser um argumento a favor de que era ele que estava espionando.
Se alguém tinha o sujeito sob vigilância e tem alguma coisa a ver com a morte dele, essa pessoa provavelmente teria se conectado ao endereço na rede e apagado o
disco rígido e o SD antes que outras pessoas vissem o material."
"Ou que tal tirar o maldito rádio e os malditos fones de ouvido da maldita cena?", pergunta Marino. "E se ele estivesse sendo seguido, caçado e quem quer que estivesse
fazendo isso tenha dado uma porrada no cara? Bom, se fosse eu, teria pegado os fones de ouvido, o rádio e continuado a andar. Então aposto que era ele quem estava
fazendo a gravação. Não acredito, nem por um minuto, que tenha sido outra pessoa. Aposto que esse cara estava envolvido em alguma coisa, e qualquer que fosse o motivo
para o equipamento de vigilância, ele era o único que tinha conhecimento disso. A merda é que não existe nenhuma gravação do perpetrador, ou de quem quer que tenha
atacado o sujeito, o que é significativo. Se ele encontrou alguém enquanto estava passeando com o cachorro, por que os fones de ouvido não registraram?"
"Os fones de ouvido não registraram porque ele não viu a pessoa", responde Lucy. "Ele não estava olhando para quem quer que tenha sido."
"Supondo que tenha havido uma pessoa que de alguma forma causou a morte dele", lembro a ambos.
"Certo", diz ela. "Os fones de ouvido captam o que quer que o portador esteja vendo. A câmera no alto da cabeça, apontando direto para a frente, funciona como um
terceiro olho."
"Então quem quer que tenha atacado o cara veio por trás", declara Marino à guisa de conclusão. "E aconteceu tão rápido que a vítima nem deu meia-volta. Ou isso,
ou foi um franco-atirador. Talvez ele tenha sido atingido por alguma coisa à distância. Tipo um dardo com veneno. Não existem venenos que causam hemorragia? Pode
parecer absurdo, mas essas merdas acontecem. Lembra o espião da KGB que foi espetado com um guarda-chuva com ricina na ponta? Ele estava esperando em um ponto de
ônibus e ninguém viu nada."
"Foi um dissidente búlgaro que trabalhava para a BBC e não é certeza de que foi um guarda-chuva", digo.
"De qualquer forma, a ricina não mata instantaneamente", diz Lucy. "A maioria dos venenos não faz isso. Nem mesmo gás cianídrico. Não acho que ele tenha sido envenenado."
"Isso não está ajudando em nada", retruco.
"Só estou usando minha experiência policial e minhas habilidades dedutivas", diz Marino. "Não é à toa que me chamam de Sherlock." Ele dá um tapinha em seu boné de
beisebol com o grosso dedo indicador.
"Ninguém te chama de Sherlock", vocifera Lucy do banco de trás.
"Isso não está ajudando", repito, contemplando a silhueta avantajada de Marino enquanto dirige, as imensas mãos ao volante, que roça sua pança mesmo quando ele está
no que considera sua forma de combate.
"Não é você que está sempre me dizendo para pensar de forma criativa?" A atitude defensiva endurece seu tom de voz.
"Acho que isso não está ajudando. Unir pontos que podem ser errados é precipitado, e você sabe disso", digo-lhe.
Marino sempre teve tendência a tirar conclusões precipitadas, mas isso piorou desde que aceitou o trabalho em Cambridge e foi trabalhar outra vez para mim. Responsabilizo
por isso a presença militar em nossas vidas, tão constante quanto as aeronaves pesadas voando baixo sobre Dover. De forma mais direta, responsabilizo Briggs. Marino
é ridiculamente fascinado por esse poderoso patologista forense, que também é general do Exército. Minha ligação com os militares nunca teve muita importância para
ele, ou sequer foi reconhecida, nem quando fazia parte de meu passado, nem quando fui reconvocada com status especial depois do Onze de Setembro. Marino sempre ignorou
minhas afiliações ao governo, como se não existissem.
Ele olha direto para a frente e os faróis de um carro que se aproxima iluminam seu rosto, marcado pelo descontentamento e por certa falta de compreensão que fazem
parte de quem ele é. Eu poderia sentir pena dele devido à afeição que não posso negar, mas não agora. Não nestas circunstâncias. Não vou deixar transparecer que
estou aborrecida.
"O que mais você compartilhou com Briggs - além das suas opiniões?", pergunto a Marino.
Quando ele não responde, Lucy o faz. "Briggs viu a mesma coisa que você está prestes a ver", diz ela. "Não foi ideia minha e não fui eu que mandei os e-mails, só
para que fique claro."
"Não mandou que e-mails?" Mas sei exatamente quais e minha incredulidade cresce. Marino enviou provas a Briggs. O caso é meu e Briggs recebeu informação primeiro.
"Ele queria saber", explica Marino, como se isso fosse motivo suficiente. "O que eu ia dizer a ele?"
"Você não devia ter dito nada. Passou por cima de mim. O caso não é dele", respondo.
"Bom, é, sim", diz Marino. "Ele foi designado pelo médico-chefe, o que significa que foi praticamente contratado pelo presidente, então eu diria que isso quer dizer
que ele é superior a todos nesta van."
"O general Briggs não é o legista-chefe de Massachusetts e você não trabalha para ele. Você trabalha para mim." Sou cuidadosa ao dizer isso. Tento parecer razoável
e calma como quando um advogado hostil está tentando me desarmar no banco das testemunhas, como quando Marino está prestes a irromper em um espetáculo inconveniente
de xingamentos em alto e bom som e portas batidas. "O CFC tem jurisdição mista, pode aceitar casos federais em certas situações, e entendo que isso gere confusão.
Somos uma iniciativa conjunta entre os governos estadual e federal, o MIT e Harvard. Compreendo que seja um conceito inédito e complicado, e é por isso que você
devia ter me deixado tratar disso em vez de passar por cima de mim." Tento parecer natural e prática. "O problema de envolver prematuramente o general Briggs é que
as coisas podem adquirir vida própria. Mas o que está feito está feito."
"O que você quer dizer com 'o que está feito'?" Marino parece menos seguro de si. Detecto um tom ansioso e não vou ajudá-lo. Ele precisa pensar a respeito do que
foi feito, porque a culpa é única e exclusivamente dele.
"Qual é a notícia não tão boa?", giro e pergunto a Lucy.
"Dê uma olhada", diz ela. "São as três últimas gravações, inclusive um minuto quando os fones de ouvido foram manuseados pelos paramédicos, pelos policiais e por
mim, quando comecei a examinar o material no laboratório hoje de manhã."
A tela do iPad brilha, viva e colorida, no escuro; toco o ícone do primeiro arquivo de vídeo que Lucy selecionou e começa a reprodução. Vejo o que o morto estava
vendo ontem às 15h04, um galgo preto e branco enroscado em um sofá azul em uma sala de estar com assoalho de pinho e um tapete azul e vermelho.
A câmera se move conforme o homem se desloca, porque ele está usando os fones de ouvido, que estão gravando: uma mesinha de centro coberta de livros e papéis ordenadamente
empilhados e o que parece um desenho de arquitetura ou engenharia em papel vegetal com um lápis em cima; uma janela com venezianas de madeira fechadas; uma escrivaninha
com dois monitores grandes de tela plana, dois MacBooks prateados, um celular conectado a um carregador, possivelmente um iPhone, e um cachimbo de vidro âmbar em
um cinzeiro; um abajur de pé com quebra-luz verde; uma cama de cachorro e brinquedos espalhados. Tenho um vislumbre de uma porta que possui uma fechadura com tranca
e outra deslizante, e na parede há fotografias e pôsteres emoldurados que passam rápido demais para que eu perceba os detalhes. Vou examiná-las mais tarde.
Até aqui não observo nada que me diga quem é o homem ou onde mora, mas fico com a impressão de um apartamento pequeno, ou talvez a casa de alguém que gosta de animais,
tem situação financeira confortável e preocupa-se com segurança e privacidade. O sujeito, presumindo-se que esses sejam sua casa e seu cachorro, é altamente desenvolvido
em termos intelectuais e técnicos, é criativo e organizado, provavelmente fuma maconha e escolheu como animal de estimação um companheiro necessitado, não um troféu,
mas um ser que sofreu maus-tratos e talvez não consiga se defender sozinho. Fico aflita pelo cão e preocupada com o que lhe aconteceu.
É lógico que os paramédicos e a polícia não deixaram um galgo indefeso em Norton's Woods ontem, perdido e abandonado ao tempo de New England. Benton me contou que
estava fazendo onze graus negativos esta manhã em Cambridge e ia nevar antes que a noite caísse. Talvez o cachorro esteja no quartel dos bombeiros, bem alimentado
e cuidado durante todo o dia. Talvez o detetive Law ou algum outro policial tenha levado o animal para casa. Também é possível que ninguém tenha percebido que o
cão pertencia ao homem que morreu. Meu Deus, isso seria horrível.
"O que aconteceu com o galgo?", preciso perguntar.
"Não faço ideia", diz Marino, para minha tristeza. "Ninguém sabia dele até esta manhã quando Lucy e eu vimos o que você está vendo. Os paramédicos não se lembram
de ter visto um galgo correndo solto, não que tenham procurado, mas o portão que conduz a Norton's Woods estava aberto quando eles chegaram lá. Como você provavelmente
sabe, o portão nunca é trancado e fica escancarado boa parte do tempo."
"Ele não vai sobreviver no frio intenso. Como é que as pessoas não perceberam o pobrezinho fora da guia e correndo solto? Porque não consigo imaginar que ele não
tenha corrido pelo parque ao menos por alguns minutos antes de sair pelo portão aberto. O bom senso diria que, quando o dono caiu, o cachorro não fugiu de repente
do bosque para a rua."
"Muita gente tira o cachorro da guia e deixa o animal correr solto em parques como o Norton's Woods", diz Lucy. "Eu faço isso com Jet Ranger."
Jet Ranger é um buldogue velho que não chega a correr exatamente.
"Então talvez ninguém tenha percebido porque aquilo não pareceu fora do comum", acrescenta ela.
"Além disso, acho que estava todo mundo preocupado com um cara caindo morto", Marino anuncia o óbvio.
Vejo residências militares em uma rua mal iluminada, aeronaves resplandecentes e grandes como planetas na escuridão enevoada. Não consigo entender o que estão me
dizendo. Estou surpresa que o galgo não tenha continuado perto do dono. Talvez o cão tenha entrado em pânico ou exista outro motivo para que ninguém tenha reparado
nele.
"O cachorro deve aparecer", continua Marino. "Em um local assim, não vão de jeito nenhum ignorar um galgo vagando sozinho. Meu palpite é que ele está com alguém
da vizinhança ou um estudante. A não ser que o cara tenha sido morto e o assassino tenha levado o cachorro."
"Por quê?", surpreendo-me.
"Como você costuma dizer, precisamos manter a mente aberta", responde ele. "Como podemos saber se quem fez isso não estava observando nas proximidades? E então,
em um momento oportuno, escapou com o cachorro, agindo como se fosse o dono."
"Mas por quê?"
"Podia ser uma prova que levasse ao assassino por algum motivo", sugere ele. "Talvez levasse a uma identificação. Um jogo. Uma brincadeira. Uma reação. Uma lembrança.
Como vou saber? Mas você vai perceber pelos vídeos que, a certa altura, a guia é tirada dele e adivinhe... Ainda não apareceu. Não chegou com os fones de ouvido
nem com o corpo."
O nome do cachorro é Sock. Na tela do iPad, o homem está andando e estalando a língua, dizendo ao cachorro que é hora de sair. "Vamos, Sock", persuade ele em uma
agradável voz de barítono. "Vamos lá, seu preguiçoso, é hora de dar um passeio e fazer cocô." Detecto um leve sotaque, possivelmente britânico ou australiano. Poderia
ser sul-africano, o que seria estranho, uma estranha coincidência, e preciso tirar a África do Sul da cabeça. Concentre-se no que está diante de você, digo a mim
mesma enquanto Sock salta do sofá e percebo que está sem coleira. Sock - um macho, presumo, com base no nome - é magro e tem as costelas ligeiramente à mostra, como
é típico dos galgos, é adulto, provavelmente velho, e uma de suas orelhas é imperfeita, como se já tivesse sido rasgada. Um resgate das pistas de corrida, com certeza,
e me pergunto se o animal tem um microchip. Se for o caso e conseguirmos encontrá-lo, podemos descobrir de onde veio e talvez quem o adotou.
Um par de mãos entra na tela enquanto o sujeito se curva para colocar uma coleira vermelha em torno do pescoço longo e afilado de Sock e reparo no relógio prateado
com taquímetro na moldura; capto um lampejo dourado, um anel de sinete, possivelmente de formatura. Se tiver chegado com o corpo, pode ser útil, porque talvez contenha
alguma gravação. As mãos são delicadas, com dedos finos e pele morena clara, e vislumbro um casaco verde-escuro, calça larga de brim preto e a ponta desgastada dos
tênis de trilha marrons.
A câmera focaliza a parede acima do sofá, os painéis castanhos tortuosos e a parte inferior da moldura de metal de uma fotografia, em seguida surge um pôster ou
uma gravura, quando o homem se levanta e vejo de perto a reprodução de um desenho familiar. Reconheço o esboço de Da Vinci, do século XVI, de um dispositivo com
asas que batem, uma máquina voadora, e recuo alguns anos - quando foi exatamente? No verão anterior ao Onze de Setembro. Levei Lucy a uma exposição na galeria Courtauld,
em Londres, "Leonardo, o inventor", e passamos muitas horas extasiadas, ouvindo palestras de alguns dos mais notáveis cientistas do mundo enquanto examinávamos os
desenhos conceituais de Da Vinci da água, da terra e de suas máquinas de guerra: o parafuso aéreo, o equipamento de mergulho, o paraquedas, o arco e flecha gigante,
o carro autopropelido e o cavaleiro mecânico.
O grande gênio renascentista acreditava que arte é ciência e ciência é arte, e que a solução para todos os problemas pode ser encontrada na natureza se a pessoa
for meticulosa e observadora, se buscar fielmente a verdade. Tentei ensinar essas lições à minha sobrinha durante a maior parte de sua vida. Disse-lhe várias vezes
que somos instruídos por aquilo que está ao nosso redor se formos humildes, calmos e corajosos. O homem que estou vendo no pequeno aparelho que seguro nas mãos possui
as respostas de que preciso. Fale comigo. Conte. Quem é você e o que aconteceu?
Ele caminha em direção a uma porta trancada a chave e uma trava deslizante puxada, então a perspectiva muda de forma abrupta, o ângulo da câmera se altera e me pergunto
se ele ajustou a posição dos fones de ouvido. Talvez não cobrissem as orelhas por inteiro, e agora ele vai ligar a música e sair. Passa por alguma coisa mecânica
de aspecto rudimentar, como uma escultura grotesca feita de restos de metal. Pauso a imagem, mas não consigo enxergar direito o que é e decido que, quando puder
me dar o luxo de perder algum tempo, vou reprisar os vídeos tantas vezes quanto quiser e estudar com cuidado cada detalhe; ou, se necessário, pedir a Lucy que amplie
as imagens. Mas, neste momento, preciso acompanhar o homem e seu cão à propriedade coberta de árvores, que não dista nem um quarteirão da minha casa. Preciso ver
o que aconteceu. Daqui a alguns minutos, ele vai morrer. Mostre e vou entender. Vou descobrir a verdade. Deixe-me cuidar de você.
O homem e o cachorro descem quatro lances de degraus em uma escada mal iluminada e passos leves e rápidos soam de encontro à madeira exposta; os dois saem em uma
rua barulhenta, movimentada. O sol está baixo e os trechos de neve apresentam uma crosta de sujeira preta no topo, o que me faz recordar biscoitos Oreo esmagados;
sempre que o homem olha para baixo, vejo paralelepípedos molhados e asfalto, além da areia e do sal oriundos da remoção da neve. Os carros e pessoas deslocam-se
em movimentos espasmódicos e balançam quando ele vira a cabeça, colhendo informações enquanto caminha; a música toca ao fundo, Annie Lennox no rádio via satélite,
e ouço somente o que pode ser escutado fora dos fones de ouvido, o que é captado pelo microfone inserido no topo da faixa que lhe cinge a cabeça. O volume da música
é alto, o que nunca é bom, pois não se pode ouvir alguém que se aproxime por trás. Se está preocupado com sua segurança, preocupado ao ponto de usar duas trancas
na porta do apartamento e portar uma arma, por que não está preocupado em não ouvir o que se passa ao seu redor?
Mas as pessoas são imprudentes. Mesmo gente razoavelmente cautelosa faz coisas absurdas. Enviam mensagens de texto e leem e-mails ao dirigir ou operar máquinas perigosas,
até mesmo enquanto atravessam uma rua movimentada. Conversam no celular andando de bicicleta, de patins ou mesmo voando. Quantas vezes peço a Lucy para não atender
o telefone no helicóptero; não importa que tenha Bluetooth habilitado e não precise usar as mãos. Vejo o que o homem está vendo e reconheço onde ele está caminhando,
na Concord Avenue, avançando em ritmo bom com Sock, passando por prédios de apartamento de tijolos vermelhos, pelo Departamento de Polícia de Harvard e pelo toldo
vermelho-escuro do Hotel Sheraton Commander, na calçada oposta ao Cambridge Common. Ele mora perto dali, em um prédio antigo com pelo menos quatro andares.
Pergunto-me por que não leva Sock ao Common. É um parque popular para cachorros, mas ele e o galgo passam por estátuas e canhões, postes e carvalhos desfolhados,
bancos e carros estacionados diante dos controles que demarcam a rua. Um labrador amarelo persegue um esquilo gordo e Anne Lennox canta "No more I-love-yous... I
used to have demons in my room at night...". Sou os olhos e ouvidos do homem no momento em que os fones de ouvido estão gravando e não tenho razões para suspeitar
que ele tenha conhecimento da câmera e do microfone escondidos ou sequer tenha em mente uma coisa como essa.
Não fico com a impressão de que ele tem um plano obscuro ou está espionando enquanto passeia com o cachorro. Exceto pelo fato de ter uma pistola Glock semiautomática
e dezoito rodadas de munição nove milímetros sob o casaco verde. Por quê? Talvez fosse um hábito, uma rotina, andar por aí armado. Existem pessoas assim. Que não
pensam duas vezes a respeito. Mas por que ele raspou o número de série da Glock? Ou alguma outra pessoa o fez? Passa por minha mente que os dispositivos de gravação
ocultos embutidos em seus fones de ouvido podem ser um experimento ou um projeto de pesquisa. Cambridge e seus arredores são seguramente a meca das inovações tecnológicas,
um dos motivos pelos quais o Departamento de Defesa, o estado de Massachusetts, Harvard e o MIT concordaram em fundar o CFC na margem norte do rio Charles, em um
prédio de biotecnologia na Memorial Drive. Talvez o homem fosse um estudante de pós-graduação. Talvez fosse um cientista da computação ou engenheiro. Presto atenção
ao que surge na tela do iPad, imagens trêmulas do condomínio Mather Court, um playground, a Garden Street e as lápides inclinadas e desgastadas do Old Burying Ground.
Na Harvard Square, sua atenção se fixa na banca de jornal da Crimson Corner, e ele parece pensar em seguir nessa direção, talvez para comprar um jornal da imensa
seleção que Benton e eu adoramos. Este é nosso bairro, onde zanzamos em busca de café e comida étnica, jornais e livros, terminando com quentinhas e braçadas de
coisas maravilhosas para ler que empilhamos em cima da cama nos fins de semana e feriados em que estou em casa. O New York Times e o Los Angeles Times, o Chicago
Tribune e o Wall Street Journal; para quem não se importa com notícias de um ou dois dias atrás, há os grossos jornais de Londres, Berlim e Paris. Às vezes encontramos
La Nazione e L'espresso, e leio em voz alta a respeito de Florença e Roma, examinamos anúncios de villas para alugar e fantasiamos viver como os moradores locais,
explorar ruínas e museus, o campo italiano e a costa amalfitana.
O homem para na calçada lotada e parece mudar de ideia a respeito de alguma coisa. Ele e Sock trotam até o outro lado da rua, na Massachusetts Avenue agora, e sei
para onde estão indo, ou penso que sei. Eles viram à esquerda na Quincy Street; estão andando mais rápido, e o homem traz um saco plástico na mão como se Sock não
fosse aguentar por mais tempo. Passam pela moderna Biblioteca Lamont e pela restauração georgiana em tijolos do Clube da Faculdade de Harvard e do Museu Fogg, pela
igreja gótica, em pedra, da Nova Jerusalém, então dobram à direita na Kirkland Avenue. Somos nós três. Estou com eles, cortando até a Irving, dobrando à esquerda,
a minutos do Norton's Woods, a minutos da minha casa, ouvindo Five for Fighting no rádio via satélite... "even heroes have the right to bleed..."
Sinto uma sensação de urgência crescente a cada passo, à medida que nos aproximamos da morte do homem e do sumiço do cachorro naquele frio terrível, e quero desesperadamente
que isso não aconteça. Caminho com eles como se os conduzisse para esse desfecho porque sei o que há adiante e eles não; quero detê-los e fazê-los voltar. Então
surge a casa à nossa esquerda, de três andares, branca com venezianas pretas e telhado de ardósia, em estilo federal, construída em 1824 por um transcendentalista
que conhecia Emerson, Thoreau e o Norton da Norton's Anthology e de Norton's Woods. No interior da casa, minha e de Benton, há objetos em madeira e molduras originais,
tetos de gesso com traves expostas e, acima dos patamares da escada principal, janelas de vitrais franceses magníficos com cenas da vida selvagem que se iluminam
como joias ao sol. Há um Porsche 911 na estreita entrada da garagem em tijolos, com gás escapando dos canos de descarga cromados.
Benton está dando ré em seu carro esporte e as lanternas traseiras brilham como olhos flamejantes quando ele freia por causa de um homem e seu cachorro; o homem
tem os fones de ouvido voltados na direção dele, quem sabe admirando o Porsche, um Turbo Cabriolet preto com tração nas quatro rodas, que Benton conserva sempre
lustroso. Pergunto-me se ele vai se lembrar do jovem vestindo um casaco verde volumoso e seu galgo preto e branco, ou se nem chegou a registrar a ocasião, mas conheço
Benton. Ele vai ficar obcecado, talvez tão obcecado pelo homem e seu cão quanto estou, e vasculho minha memória atrás do que fez ontem. No final da tarde, passou
em seu consultório no McLean porque havia se esquecido de levar para casa a pasta contendo o caso do paciente que ia avaliar hoje. Alguns graus de separação, um
jovem e seu cão velho, que estão prestes a se separar para sempre, e meu marido sozinho no carro dirigindo-se ao hospital para pegar uma coisa que esqueceu. Vejo
tudo isso se desdobrar como se eu fosse Deus, e, se é assim que é ser Deus, deve ser um horror. Sei o que vai acontecer e não posso fazer nada para impedir.
3
Percebo que a van parou e Marino e Lucy estão saltando. Estacionamos diante do Terminal Aéreo Civil John B. Wallace e permaneço no lugar. Continuo a ver o que está
passando na tela do iPad enquanto Lucy e Marino começam a descarregar meus pertences.
O ar frio entra pelo porta-malas aberto e me intrigo com a decisão do homem de levar Sock para passear em Norton's Woods, na Mid-Cambridge, quase Somerville. Por
que ali? Por que não mais perto de onde morava? Ele ia encontrar alguém? Um portão preto de ferro parcialmente aberto preenche a tela; a mão dele o abre mais e percebo
que colocou luvas pretas grossas, que parecem de motociclista. Suas mãos estão frias ou há outro motivo? Talvez ele tenha um plano sinistro. Talvez pretenda usar
a arma. Imagino-me puxando para trás o cão de uma pistola nove milímetros e apertando o gatilho vestindo luvas volumosas e me parece ilógico.
Ouço-o sacudir o saco plástico para abri-lo, então o vejo quando ele olha para baixo e vislumbro mais alguma coisa, o que parece ser uma caixinha de madeira. Uma
caixa de fumo, penso. Algumas são feitas de cedro e têm até mesmo um minúsculo higrômetro dentro, como uma caixa de charutos, e recordo o cachimbo de vidro âmbar
em cima da escrivaninha no apartamento. Talvez ele goste de passear com o cachorro em Norton's Woods por ser afastado e em geral muito reservado, e de pouco interesse
para a polícia, a menos que haja algum evento VIP ou de alto nível que exija segurança. Talvez goste de ir até lá para fumar maconha. Ele assovia para Sock, curva-se,
retira a coleira do cão e o ouço dizer: "Ei, rapaz, lembra do nosso lugar? Me mostre". Então diz mais alguma coisa, que soa abafada. Mal consigo entender. "E para
você", ele parece dizer, seguido de "Quer mandar um...?" Ou "Manda um...?". Depois de reproduzir duas vezes, continuo sem entender o que ele diz, e talvez seja por
ele estar curvado, falando pra dentro do colarinho do casaco.
Com quem está conversando? Não vejo ninguém por perto, somente o cachorro e as mãos enluvadas, então o ângulo da câmera muda quando o homem endireita o corpo e vejo
o parque outra vez, uma paisagem de árvores e bancos, e, a um lado, um caminho de pedras próximo à construção com o telhado verde de metal. Vislumbro pessoas e concluo,
pela maneira como estão agasalhadas, que não são os convidados do casamento, só estão passeando pelo parque, assim como o homem. Sock trota em direção aos arbustos
e o dono se embrenha ainda mais na agradável propriedade arborizada, com olmos antigos e bancos verdes.
Ele assovia e diz: "Ei, rapaz, me segue".
Em áreas sombreadas ao redor de grupos compactos de rododendros, a neve está alta e remexida, com folhas mortas, pedras e galhos quebrados no meio, o que me faz
morbidamente lembrar sepulturas clandestinas, pele esfolada e ossos envelhecidos, roídos e espalhados. Ele está explorando, olhando ao redor, e a câmera oculta para
no telhado verde de metal em três níveis da construção em vidro e madeira que consigo enxergar da varanda ensolarada de casa. Quando o homem gira a cabeça, vejo
no primeiro andar uma porta que conduz ao exterior, e a câmera torna a parar em uma mulher de cabelo grisalho do lado de fora, diante da porta. Ela veste um terninho
e um longo casaco de couro marrom, e está falando ao telefone.
O homem assovia e produz um som rascante à medida que caminha sobre a trilha de cascalho em direção a Sock, para recolher o que o cão deixou... "And this emptiness
fills my heart...", canta Peter Gabriel. Penso no jovem soldado de mesmo nome que morreu queimado em seu Humvee e sinto seu cheiro, visto que os odores fétidos ainda
estão presos no fundo do meu nariz. Penso em sua mãe, em sua tristeza e raiva ao telefone quando me ligou de manhã. Patologistas forenses nem sempre recebem agradecimentos
e, por vezes, as pessoas agem como se eu fosse o motivo de seus entes queridos estarem mortos. Não leve para o lado pessoal, tento lembrar.
As mãos enluvadas tornam a agitar o saco plástico dobrado, e então alguma coisa acontece. A mão enluvada do homem voa até a cabeça e ouço o baque dela atingindo
os fones de ouvido como se golpeasse alguma coisa, então ele exclama: "O que...? Ei...!", como se estivesse sem fôlego e assustado. Ou talvez seja um grito de dor.
Mas não vejo nada nem ninguém, só o bosque e figuras distantes. Não vejo o cachorro e não vejo o sujeito. Volto a gravação e reproduzo-a novamente. A mão preta enluvada
invade a tela de repente e ele deixa escapar: "O que...?" e depois "Ei...!". Concluo que ele parece atordoado e angustiado, como se alguma coisa o tivesse pego de
surpresa.
Reproduzo a gravação mais uma vez, tentando ouvir alguma outra coisa, e o que detecto em seu tom é protesto e talvez medo e, sim, dor, como se alguém tivesse lhe
dado uma cotovelada ou se chocado contra ele com força em uma calçada movimentada. Então o topo das árvores nuas precipita-se para o alto e gira na tela. Lascas
de ardósia aproximam-se quando ele cai com um baque; ou está deitado de costas ou os fones de ouvido se soltaram. A tela está parada em uma imagem contendo galhos
nus e céu cinzento, e então a borda de um longo casaco preto passa fazendo barulho e ondulando quando alguém caminha com rapidez. Ouço outra pancada alta e a imagem
torna a mudar. Galhos nus e céu cinzento, mas galhos diferentes mostrando-se através das ripas de um banco verde. Acontece muito rápido, incrivelmente rápido, em
seguida as vozes e os sons das pessoas ficam mais altos.
"Alguém ligue para a emergência!"
"Acho que ele não está respirando."
"Estou sem telefone. Liguem para a emergência!"
"Alô? Tem... hã, sim, em Cambridge. É, Massachusetts. Meus Deus! Depressa, depressa! Eles me colocaram em espera. Meu Deus, depressa! Não acredito nisso. É, é, um
homem, ele desmaiou e parece não estar respirando... Em Norton's Woods, na esquina da Irving com a Bryant... Sim, alguém está tentando ressuscitação. Vou ficar esperando...
estou esperando. Sim, quer dizer, não... Ela quer saber se ele continua sem respirar. Não, não, ele não está respirando! Não está se mexendo. Ele não está respirando!...
Eu realmente não vi, só olhei e percebi que ele estava no chão, de repente ele estava no chão...
Aperto pause e salto da van; faz frio e venta muito quando entro depressa no terminal. É pequeno, com banheiros, uma área de espera e uma televisão velha ligada.
Por um momento, assisto à Fox News e adianto o vídeo no iPad enquanto Lucy se debruça na recepção e paga a taxa aeroportuária com cartão de crédito. Continuo a contemplar
as imagens dos galhos desfolhados que aparecem por entre as ripas da madeira pintada de verde, certa, agora, de que os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco,
a câmera voltada direto para cima enquanto o rádio toca... "Dark lady laughed and danced..." A música está mais alta porque os fones não estão pressionados contra
a cabeça do homem e me parece absurdamente incongruente estar ouvindo Cher.
As vozes fora da câmera soam urgentes e agitadas; ouço o som de pés e o ruído distante de uma sirene enquanto minha sobrinha conversa com um homem mais velho, um
piloto de caça aposentado que agora trabalha meio período em Dover como operador fixo da base, ele alegra-se em contar.
"No Vietnã? Então devia ser o quê, um F-4?" Lucy conversa com ele.
"Ah, isso, e o Tomcat. Foi o último que pilotei. Mas os Phantoms ainda ficaram por aí, sabe, até a década de 1980. Você constrói essas máquinas direito e depois
não acredita no quanto elas duram. Olha há quanto tempo os C-5 estão aí. E ainda existem alguns Phantoms em Israel, acho. Talvez no Irã. Hoje, os que sobraram nos
Estados Unidos são usados para voos não tripulados, como aviões teleguiados. Um avião assim bom. Você já viu algum?"
"Em Belle Chasse, Louisiana, na Estação Aeronaval. Levei meu helicóptero até lá para ajudar no Katrina."
"Eles têm feito experiências no combate aos furacões usando os Phantoms para voar dentro do olho." O homem balança a cabeça.
A tela do iPad fica preta. Os fones de ouvido não estavam mais gravando, e estou convencida de que quando a vítima caiu no chão devem ter acabado a alguma distância
embaixo do banco. O sensor de movimento não estava detectando atividade suficiente para impedi-lo de ficar inativo, o que é curioso. Como exatamente os fones de
ouvido foram arremessados e acabaram onde acabaram? Talvez alguém os tenha chutado para fora do caminho. Pode ter sido acidental, provocado por uma pessoa tentando
ajudar, ou pode ter sido premeditado pela pessoa que estava gravando o sujeito em segredo, que o estava espreitando. Penso na borda do casaco preto ondulando de
passagem e avanço de forma intermitente, procurando as próximas imagens, tentando ouvir sons, mas não há nada até as 16h37, quando as árvores balançam loucamente
e o céu está escurecendo; mãos expostas agigantam-se e papel estala quando os fones de ouvidos são colocados dentro de um saco marrom; ouço uma voz dizer: "... Colts
o tempo todo". E outra voz: "Os Saints vão levar. Eles têm...". Depois a escuridão turva, vozes abafadas e mais nada.
Ao encontrar o controle remoto da TV no braço de um sofá no terminal, troco para a CNN, ouço o noticiário e leio as legendas na parte inferior da tela, mas não há
uma palavra a respeito do homem nos vídeos. Penso sobre Sock outra vez. Onde está o cachorro? É inaceitável que ninguém saiba. Fito Marino quando entra na área de
espera, fingindo não me ver por estar amuado, ou quem sabe arrependido pelo que fez e envergonhado. Recuso-me a lhe perguntar alguma coisa e tenho a sensação de
que o cão desaparecido é de alguma forma culpa dele, de que tudo é culpa de Marino. Não quero perdoá-lo por ter enviado os vídeos por e-mail para Briggs, por ter
conversado com ele primeiro. Se, para variar, não o perder, talvez aprenda a lição, mas o problema é que nunca consigo me convencer a manter uma posição contra ele,
contra qualquer pessoa de quem goste. É a culpa católica. Já estou amolecendo em relação a ele, minha determinação está ficando mais fraca. Sinto isso acontecer
enquanto procuro canais na televisão, em busca de notícias que possam prejudicar o CFC, e ele caminha até Lucy, mantendo as costas voltadas para mim. Não quero brigar
com Marino. Não quero ferir seus sentimentos.
Afasto-me da TV, convencida, ao menos por enquanto, de que a imprensa ignora o corpo que me espera no necrotério de Cambridge. Uma coisa tão sensacional como essa
seria manchete, concluo. As mensagens estariam chegando sem parar em meu iPhone. Briggs teria sido informado a respeito e dito alguma coisa. Até mesmo Fielding teria
me alertado. Só que não tive notícia absolutamente nenhuma de Fielding a respeito de nada e tento telefonar para ele outra vez. Ele não atende o celular e não está
no escritório. É claro que não. Fielding nunca trabalha até tão tarde, pelo amor de Deus. Tento encontrá-lo em sua casa em Concord e sou novamente atendida pelo
correio de voz.
"Jack? É Kay", deixo outra mensagem. "Estamos prestes a decolar de Dover. Talvez você possa enviar uma mensagem de texto ou um e-mail me colocando a par da situação.
O detetive Law não retornou a ligação, imagino. Ainda estamos esperando pelas fotografias? E você ouviu alguma coisa sobre um cão desaparecido, um galgo? O cão da
vítima, chamado Sock, visto pela última vez em Norton's Woods." Minha voz soa ríspida. Fielding está fugindo de mim, e não é a primeira vez. Ele é mestre em desaparecimentos,
e tem de ser. Já os encenou o suficiente. "Bom, vou tentar fazer contato novamente quando aterrissar. Imagino que você vá nos encontrar no escritório, entre nove
e meia e dez. Enviei mensagens a Anne e Ollie. Garanta que eles estejam lá. Precisamos cuidar disso esta noite. Informe-se com a polícia de Cambridge sobre o cachorro.
Ele pode ter um microchip..."
Parece bobagem entrar em detalhes excessivos a respeito de Sock. Que diabos Fielding ia saber sobre o animal? Ele não ia se dar o trabalho de ir até a cena, e Marino
está certo. Alguém já deve ter ido.
O Bell 407 de Lucy é preto com vidro escuro matizado na parte traseira. Ela destranca as portas e o compartimento de bagagem enquanto o vento golpeia a rampa.
Uma biruta aponta rigidamente para o norte, como um cone de trânsito horizontal, e isso é bom e ruim. O vento vai continuar na nossa cauda, assim como a frente da
tempestade, chuvas pesadas misturadas com granizo e neve. Marino começa a carregar minha bagagem enquanto Lucy contorna o helicóptero, verificando as antenas, os
orifícios de pressão estática, as pás do rotor, os flutuadores de emergência e as garrafas de nitrogênio para inflá-los, em seguida o estabilizador da cauda em liga
de alumínio e sua caixa de marchas, a bomba hidráulica e o reservatório.
"Se alguém estava espionando, gravando o cara em segredo, e percebeu que ele estava morto, então tem alguma coisa a ver com isso", digo a Lucy, do nada. "Então não
seria de esperar que essa pessoa tivesse deletado à distância os arquivos de vídeo gravados pelo fone de ouvido, ou pelo menos se livrado deles no disco rígido e
no cartão SD? Não ia querer se certificar de que não encontrássemos nenhuma gravação e de que ficássemos sem pista nenhuma?"
"Depende." Ela agarra uma alça na fuselagem, insere a ponta da bota em um degrau embutido e sobe.
"E se fosse você que estivesse fazendo isso?", pergunto.
"Se fosse eu?" Ela abre uma tranca e um painel com revestimento leve de alumínio. "Se eu achasse que nada de significativo ou incriminador tivesse sido gravado,
não teria deletado." Usando uma pequena mas potente lanterna, ela inspeciona o motor e seus encaixes.
"Por que não?"
Antes que ela consiga responder, Marino caminha até mim e diz para ninguém em particular: "Tenho que ir ao banheiro. Se alguém mais tiver que ir, agora é a hora".
Como se fosse o comissário nos lembrando de que não há banheiro no helicóptero. Está tentando reparar o erro.
"Obrigada, estou bem", digo, e ele se afasta pela rampa escura de volta ao terminal.
"Se fosse eu, isso é o que eu faria depois que ele estivesse morto", continua Lucy, enquanto a luz forte desloca-se sobre mangueiras e tubulações, e ela se certifica
de que não há nada frouxo ou danificado. "Eu me conectaria à webcam e faria imediatamente o download dos arquivos de vídeo. Se não visse nada que me preocupasse,
não interferiria."
Ela sobe mais para verificar o rotor principal, seu mastro, seu disco oscilante, e espero até que retorne à pista de decolagem para perguntar: "Por que não?".
"Pense nisso."
Sigo Lucy ao redor do helicóptero, para que ela possa subir e verificar o outro lado. Parece quase divertida com minhas perguntas, como se fossem óbvias.
"Se fossem deletados depois da morte dele, então outra pessoa teria feito isso, certo?", Lucy diz, verificando por baixo da coberta do motor, a luz esquadrinhando
atentamente.
Então ela torna a descer.
"É claro que ele não poderia fazer isso depois de morto." Espero para responder porque ela poderia se machucar ao escalar o helicóptero, especialmente estando lá
em cima, perto do mastro do rotor. Não quero que se distraia.
"Então, é por isso que você deixaria os vídeos se estivesse espionando o sujeito e soubesse que ele estava morto ou fosse a responsável pela morte dele?"
"Se eu estivesse espionando, se estivesse seguindo o homem para matar, sim, eu deixaria as últimas gravações de vídeo, e também não tiraria os fones de ouvido da
cena." Ela torna a emitir a luz brilhante ao longo da fuselagem. "Porque se as pessoas o viram usando os fones de ouvido no parque e a caminho dele, por que teriam
desaparecido? Os fones são bem grandes e perceptíveis."
Caminhamos até o nariz do helicóptero.
"E se eu levasse os fones de ouvidos, teria que levar o rádio via satélite também, procurar dentro do bolso do casaco e tirar dali, teria que gastar um tempo e ter
todo esse trabalho depois que o cara já estava no chão, esperando que ninguém me visse. E os arquivos anteriores baixados em algum lugar, supondo que a espionagem
venha acontecendo há certo tempo? Como isso se explica se não aparecem aparelhos de gravação e encontramos gravações em um PC ou servidor em alguma parte? Você sabe
o que dizem." Ela abre um painel de acesso acima do tubo de Pitot e lança a luz lá dentro. "Para cada crime, existem dois - o ato em si, e depois o que você faz
para encobri-lo. Ser esperto para abandonar os fones de ouvido e os arquivos de vídeo, para deixar que os policiais ou pessoas como você e eu imaginem que ele estava
gravando a si mesmo, que é o que Marino acredita, mas eu duvido."
Ela reconecta a bateria. A justificativa para desconectar sempre que deixa o helicóptero por qualquer período de tempo é que se alguém conseguisse entrar na cabine
e por acaso manuseasse o acelerador e os comutadores poderia acidentalmente dar partida no motor. Mas não se a bateria estiver desconectada. Independentemente da
pressa, Lucy sempre dá uma geral antes do voo, especialmente se tiver deixado a aeronave sem assistência, mesmo que em uma base militar. Mas não escapa à minha atenção
o fato de ela estar verificando tudo mais a fundo que de costume, como se desconfiasse de alguma coisa ou estivesse apreensiva.
"Está tudo absolutamente certo?", pergunto.
"Estou me certificando disso", diz ela, e sinto mais fortemente sua distância. Percebo seus segredos.
Lucy não confia em ninguém. Nem deveria. Eu também não deveria ter confiado em certas pessoas, voltando no tempo. Pessoas que manipulam, mentem e alegam que fazem
isso por uma causa. A causa certa, uma causa piedosa ou justa. Noonie Pieste e Joanne Rule foram mortas na cama, provavelmente sufocadas com um travesseiro. Por
isso não houve resposta dos tecidos aos ferimentos. Os estupros, os cortes de machete e talhos feitos com vidro quebrado, e até mesmo as cordas que as amarravam
quando foram presas às cadeiras, tudo depois da morte. Uma causa piedosa, uma causa justa na mente dos responsáveis. Um sofrimento inconcebível, e eles se safaram.
Até hoje. Não pense nisso. Concentre-se no que está diante de você, não no passado.
Abro a porta da frente e subo, o vento soprando forte. Contornando o coletivo e o cíclico e me acomodando no assento esquerdo, aperto meu cinto de quatro pontos
enquanto ouço Marino abrir a porta atrás de mim. Ele é barulhento e grande, e sinto o helicóptero acomodar-se a seu peso quando ele sobe na parte de trás, onde sempre
se senta. Mesmo quando Lucy voa apenas com ele como passageiro, Marino não tem permissão para ir na frente, onde há controles duplos que ele pode empurrar, golpear
ou usar como encosto para o braço porque não pensa. Ele simplesmente não pensa.
Lucy entra, dá início a outra verificação pré-voo e eu a auxilio, segurando a lista, que repassamos juntas. Nunca tive desejo de pilotar as várias aeronaves que
minha sobrinha já possuiu ao longo dos anos, nem de andar em suas motocicletas ou dirigir seus carros italianos velozes, mas sou ótima copiloto, habilidosa com mapas
e aviônica. Sei colocar os rádios nas frequências necessárias, inserir informações no transponder ou no sistema de voo. Se surgisse uma emergência, eu provavelmente
conseguiria levar o helicóptero em segurança até o chão, mas não gostaria disso.
"Comutadores suspensos na posição desligado", continuo a percorrer a lista.
"Sim."
"Disjuntores em posição."
"Sim." Os dedos ágeis de Lucy tocam tudo o que ela verifica enquanto percorremos a lista plastificada.
Ela liga por um instante a bomba de reforço e gira o acelerador para voo lento.
"Livre à direita", diz, enquanto olha por sua janela lateral.
"Livre à esquerda", digo, enquanto olho para a rampa escura, para o pequeno prédio com as janelas iluminadas e um Piper Cub amarrado a uma distância segura em meio
às sombras, seu oleado balançando ao vento.
Lucy pressiona o botão de partida; a pá do rotor principal começa a girar de forma lenta, pesada, batendo cada vez mais rápido como uma pulsação, e penso no sujeito.
Penso em seu medo, no que detectei em suas últimas palavras.
"O que...? Ei...!"
O que ele sentiu? O que viu? A parte inferior de um casaco preto, a borda solta passar farfalhando. O casaco de quem? Um sobretudo de lã ou uma capa de chuva? Não
era pele. Quem estava usando o casaco longo e preto? Alguém que não parou para ajudá-lo.
"O que...? Ei...!" Um grito assustado de dor.
Repasso várias vezes a imagem na mente. O ângulo da câmera baixa de repente, depois se fixa nos galhos nus e no céu cinzento, então a borda do longo casaco preto
passa pela tela por um instante, talvez um segundo. Quem passaria por alguém precisando de socorro como se fosse um objeto inanimado, como uma pedra ou um tronco
de madeira? Que espécie de ser humano ignoraria alguém que agarra o peito e cai? Possivelmente a pessoa que provocou isso. Ou alguém que não queria se envolver por
algum motivo. Como testemunhar um acidente ou um assalto e se afastar correndo para não tomar parte na investigação. Um homem ou uma mulher? Vi sapatos? Não, só
a bainha ou a borda do casaco ondulando, depois outro som semelhante a um baque e a imagem é substituída por árvores desfolhadas distintas, aparecendo através da
parte de baixo de um banco pintado de verde. A pessoa que vestia o casaco preto longo chutou os fones de ouvido para baixo do banco para que não gravassem alguma
coisa que fez?
Preciso examinar os vídeos com mais atenção, mas não posso fazer isso agora. O iPad está atrás e não há tempo. As pás golpeiam o ar com rapidez e o gerador está
on-line. Lucy e eu colocamos nossos fones. Ela aciona mais interruptores no alto, o controle da aviônica, os instrumentos de voo e navegação. Giro o botão do sistema
de comunicação interna para a posição "tripulação", de forma que Marino não possa nos ouvir e não possamos ouvi-lo enquanto Lucy fala com o controlador de tráfego
aéreo. Os estroboscópios, o pulso e as luzes de aterrissagem noturna brilham na pista, pintando-a de branco enquanto esperamos que a torre nos libere para a decolagem.
Inserindo os dados de destino no GPS touch screen, no indicador cartográfico numérico e no sistema de voo, corrijo os altímetros. Verifico se o indicador digital
de combustível coincide com o medidor, executando a maioria das coisas pelo menos duas vezes, porque Lucy acredita em redundância.
A torre nos libera e voamos devagar até a pista; ganhamos altura rumo a nosso curso nordeste, cruzando o rio Delaware a mil e cem pés de altura. A água está escura
e encrespada pelo vento, como metal fundido fluindo em abundância. As luzes em terra piscam através das árvores como pequenas fogueiras.
4
Mudamos nossa direção, desviando rumo à Filadélfia porque a visibilidade se deteriora mais perto da costa. Aperto o botão do sistema de comunicação interna para
falar com Marino.
"Tudo bem aí atrás?" Estou mais calma agora, preocupada demais com o casaco preto longo e a exclamação assustada do homem para ficar irritada com Marino.
"É mais rápido cortar caminho por New Jersey." Ele sabe onde estamos porque há um mapa de bordo em uma tela de vídeo no compartimento do passageiro.
"Nevoeiro e chuva gelada, condições IFR em Atlantic City. E não é mais rápido", contesta Lucy. "Vamos ficar em 'tripulação' a maior parte do tempo para eu poder
me ocupar do acompanhamento de voo."
Marino é cortado da conversa novamente enquanto somos transferidos de uma torre à seguinte. O mapa secional de Washington está aberto em meu colo; insiro um novo
destino no GPS, Oxford, Connecticut, para uma eventual parada para abastecer, e monitoramos o tempo no radar, observando os sólidos blocos verdes e amarelos avançarem
sobre nós provenientes do Atlântico. Podemos acelerar, mergulhar e evitar as tempestades, diz Lucy, desde que nos mantenhamos afastados do mar e o vento continue
a nos favorecer, aumentando nossa velocidade em relação ao solo para o que, neste momento, são impressionantes duzentos e oitenta e dois quilômetros por hora.
"Como você está?" Prossigo com meu rastreamento em busca de torres de celular e outras aeronaves.
"Vou melhorar quando chegarmos aonde estamos indo. Tenho certeza de que vamos ficar bem e conseguir escapar dessa confusão." Ela aponta para a tela do radar meteorológico.
"Mas, se houver uma sombra de dúvida, vamos descer."
Ela não teria ido me buscar se achasse que poderíamos passar a noite em algum campo em um lugar qualquer. Não estou preocupada. Talvez não tenha restado espaço em
mim para me preocupar com mais nada.
"E no geral? Como você está?", pergunto, tocando o lábio. "Tenho pensado muito em você nas últimas semanas." Tento fazer Lucy falar.
"Sei o quanto é difícil se adaptar nestas circunstâncias", diz ela. "Sempre que achamos que você vai voltar, então paramos de pensar nisso."
Era a terceira vez que o pagamento da minha bolsa de estudos foi adiado por um assunto urgente. Dois helicópteros derrubados em um só dia no Iraque com vinte e três
mortos. O assassinato em massa em Fort Hood. Mais recentemente, o terremoto no Haiti. Os médicos-legistas das Forças Armadas ficaram de prontidão. Ninguém podia
ser dispensado, e Briggs não me liberava de meu programa de treinamento. Há algumas horas, tentou mais uma vez adiar minha partida, sugerindo que eu continuasse
em Dover. Como se não quisesse que eu fosse para casa.
"Pensei que íamos chegar a Dover e descobrir que você tinha outra semana, duas, um mês", acrescenta Lucy. "Mas acabou."
"Aparentemente, eles cansaram de mim."
"Vamos esperar que você não chegue em casa só para dar meia-volta e voltar."
"Já passei nas provas. Eu terminei. Tenho uma repartição para administrar."
"Alguém precisa administrar. Isso é certo."
Não quero ouvir mais comentários desagradáveis sobre Jack Fielding.
"E as coisas vão bem fora isso?", pergunto.
"A garagem está quase pronta, grande o suficiente para três carros, mesmo com a baia de lavagem. Supondo que vocês estacionem um atrás do outro." Ela inicia um relatório
da construção, fazendo-me lembrar do quanto me desliguei do que está acontecendo em minha própria casa. "O piso emborrachado foi colocado, mas o sistema de alarme
não está pronto. Eles não iam perder tempo com arrombadores, mas eu disse que era necessário. Infelizmente, uma das antigas janelas de vidro ondulado original não
sobreviveu à modernização. Então, você tem um pouco de brisa na garagem no momento. Sabia de tudo isso?"
"Benton está no comando."
"Bom, ele tem andado ocupado. Você tem a frequência de Millville? Acho que é um-dois-três-vírgula-seis-cinco."
Verifico o mapa secional, confirmo a frequência e a insiro em Comm 1. "Como você está?", tento outra vez.
Quero saber o que vou encontrar ao chegar em casa, além do morto que está me esperando na geladeira do necrotério. Lucy não vai me dizer como vai e está querendo
dizer que Benton anda ocupado. Quando diz alguma coisa assim, não é realmente o quer dizer. Ela está tensa. Vigia os instrumentos, as telas do radar e o que está
ocorrendo fora da cabine de forma obsessiva, como se esperasse entrar em um combate aéreo, ser atingida por um raio ou ter uma falha mecânica. Há alguma coisa errada
com ela, ou talvez eu só esteja irritada.
"Ele está com um caso grande", continuo. "Muito ruim."
Ambas sabemos a que estou me referindo. Johnny Donahue está em todos os noticiários. O paciente do McLean e aluno de Harvard que na semana passada confessou ter
matado um menino de seis anos com uma pistola de pregos. Benton acredita que a confissão seja falsa e os policiais e o promotor público estão descontentes com ele
por isso. As pessoas querem que a confissão seja verdadeira para não precisar pensar que alguém assim continua solto. Eu gostaria de saber como foi a avaliação de
hoje quando visualizo o Porsche preto de Benton dando ré na entrada de nossa garagem no vídeo que acabei de ver. Ele estava a caminho do McLean para pegar a pasta
do caso de Johnny Donahue quando um jovem e um galgo passaram por nossa casa. Alguns graus de separação. A teia humana conectando a todos nós, conectando a todos
na Terra.
"Vamos manter um-dois-sete-vírgula-três-cinco em Comm 2 para poder monitorar Filadélfia", diz Lucy, "mas vou tentar ficar fora da Classe B deles. Acho que conseguimos,
a menos que esse troço nos empurre com mais força a partir da costa."
Ela aponta para as formas verdes e amarelas na tela do radar meteorológico via satélite, que mostram a precipitação se aproximando, como se tentasse nos intimidar
a fim de seguirmos para noroeste, rumo ao horizonte claro do centro da Filadélfia, voando de encontro aos arranha-céus.
"Eu vou bem", ela então diz. "Quem não está é ele." Ela aponta o polegar em direção à parte de trás do helicóptero, pensando em Marino. "Dá pra ver que você está
chateada. O que ele ia fazer além de ser a pessoa de sempre?"
"Você ouviu quando ele conversou com Briggs?"
"Isso foi em Wilmington. Eu estava ocupada pagando pelo combustível."
"Ele não devia ter telefonado."
"É o mesmo que dizer ao Jet Ranger para não babar quando mostro o saco de biscoitos. É normal Marino dar com a língua nos dentes para Briggs, para se exibir. Por
que você está mais surpresa que o habitual?" Lucy pergunta como se já soubesse a resposta, como se estivesse sondando, procurando por alguma coisa.
"Talvez por isso ter causado um problema pior que o habitual." Conto-lhe que Briggs queria que o corpo fosse transportado para Dover.
Explico que o legista-chefe das Forças Armadas está retendo informações, ou ao menos desconfio que esteja escondendo de mim alguma coisa importante. Provavelmente
por causa de Marino, digo. Por causa do que ele conseguiu provocar ao passar por cima de mim.
"Acho que não é bem assim", diz Lucy enquanto seu número de cauda é chamado.
Ela pressiona o botão do rádio em seu cíclico e atende; enquanto conversa com o acompanhamento de voo, insiro a frequência seguinte. Saltamos de um espaço aéreo
a outro, as formas no radar meteorológico agora na maioria amarelas e nos perseguindo a partir do sudeste, indicando chuvas fortes que, a esta altitude, vão gerar
condições perigosas como partículas de água super-resfriada que atingem as bordas dianteiras das pás do rotor e congelam. Observo a umidade no vidro Plexiglas dianteiro
e não vejo nada, nem uma gota, enquanto me pergunto a que Lucy está se referindo. O que não é bem assim?
"Você percebeu o que havia no apartamento dele?", soa a voz dela em meu fone de ouvido e suponho que esteja se referindo ao morto e ao que vi nos vídeos.
"Você disse que não é bem assim." Insisto no primeiro ponto. "Do que está falando?"
"Não queria tocar no assunto na frente do Marino. Ele não percebeu e de qualquer forma não saberia o que é; não chamei sua atenção porque queria conversar com você
e não tenho certeza se ele deveria tomar conhecimento disso, ponto final."
"Não chamou minha atenção para quê?"
"Meu palpite é que Briggs não precisou que chamassem a atenção dele", continua Lucy. "Teve muito mais tempo para examinar os vídeos que você, e ele, ou quem quer
que tenha visto os vídeos, teria reconhecido a geringonça de metal perto da porta, que parece um réptil assustador de seis pernas, soldado com fios, peças e partes
compostas, mais ou menos do tamanho de uma máquina de lavar em cima de uma secadora. Foi captado pela câmera por um segundo quando o homem e Sock saíram a caminho
de Norton's Woods. Não pode ter passado despercebido a você, de todas as pessoas."
"Captei um vislumbre do que pensei que fosse uma escultura de metal grosseira." Obviamente, não entendi a relação que ela fez. Uma relação importante.
"É um robô, e não um robô qualquer", informa Lucy. "Um protótipo desenvolvido para as Forças Armadas, o que deveria ser um PackBot tático para as tropas no Iraque;
então outro objetivo criativo foi sugerido e fracassou notória e completamente."
Um lampejo de reconhecimento e um sentimento sinistro começam a abrir caminho entre as minhas entranhas, apertando meu peito, gerando conscientização, em seguida
uma lembrança.
"Esse modelo em particular não durou muito tempo", continua ela, e acho que sei ao que está se referindo.
MORT. Transporte de Remoção Operacional Funerária. Deus do céu.
"Nunca chegou a entrar em funcionamento e está obsoleto. Foi substituído por robôs com pernas, biologicamente inspirados, que carregam fardos pesados em terreno
difícil ou escorregadio", diz ela. "Como o quadrúpede chamado BigDog que está no YouTube. Aquela coisa consegue carregar centenas de quilos o dia inteiro nas piores
condições imagináveis, salta como um cervo e recupera o equilíbrio quando tropeça, escorrega ou leva um chute."
"MORT", vou em frente e digo. "Por que ele teria um PackBot como um MORT em seu apartamento? Não estou entendendo."
"Você viu o robô pessoalmente na época, quando começou o debate sobre ele em Capitol Hill? E você está entendendo. É disso mesmo que estou falando."
"Nunca vi um MORT pessoalmente." Vi o robô somente em demonstrações de vídeo e entrei em mais de uma discussão sobre seu uso, especialmente com Briggs. "Por que
ele teria uma coisa dessas?", torno a perguntar.
"Assustador. Como uma formiga mecânica gigante, movida a gasolina", diz ela. "Parece uma motosserra quando anda devagar com aquelas pernas curtas, desajeitadas,
com dois conjuntos de garras na frente, como Edward Mãos de Tesoura. Se visse aquilo vindo na sua direção, você ia correr como louca ou atirar uma granada nele."
"Mas no apartamento dele? Por quê?" Me lembro de demonstrações que achei horríveis e discussões acaloradas que se tornaram brigas desagradáveis com colegas, inclusive
Briggs no AFMES, no Walter Reed e no Russell Senate Office Building.
MORT. O epítome da automação equivocada que se tornou fonte de controvérsia em inteligência militar e médica. A péssima ideia não foi a tecnologia, e, sim, a sugestão
de como usá-la. Recordo uma manhã quente de verão em Washington, o calor subindo de uma calçada lotada de escoteiros excursionando pela capital enquanto Briggs e
eu discutíamos. Estávamos com calor em nosso uniforme, frustrados e estressados, e me lembro de ter passado pela Casa Branca, com gente por toda parte, imaginando
o que viria a seguir. Que outras desumanidades a tecnologia ofereceria? E isso foi há quase uma década, a Idade da Pedra comparada aos dias atuais.
"Tenho certeza - na realidade, mais que certeza - de que era o que tinha no apartamento do cara", diz Lucy. "E não se compra uma coisa dessas no eBay."
"Talvez seja uma maquete", sugiro. "Um fac-símile."
"De jeito nenhum. Quando dei zoom, vi a combinação de partes em detalhes, algumas gastas e rompidas pelo uso, provavelmente devido aos testes do setor de Pesquisa
e Desenvolvimento em terreno difícil; ele ficou um pouco arranhado. Vi até os conectores de fibra óptica. MORT não era um artefato sem fio, o que era só uma das
muitas coisas erradas nele. Não era o que estão fazendo hoje com os robôs autônomos que têm computadores internos e recebem informação através de sensores controlados
por unidades usadas por seres humanos, em vez de ficarem se arrastando em volta de uma mala Pelican no meio do caminho. É como os caras do Exército estão fazendo
para que seus operadores em campo fiquem com as mãos livres quando saem com os esquadrões robóticos. Todo esse negócio novo com processadores leves e reforçados
que você pode usar no colete se, digamos, estiver operando um veículo terrestre não tripulado ou os robôs armados, a unidade SWORDS, o Sistema de Armamento Especial,
Observação, Reconhecimento Remoto e Ação Direta. Uma infantaria robótica armada com metralhadoras M249. Não é uma coisa que me agrade e sei como você se sente a
respeito."
"Não sei bem se existem palavras para como me sinto a respeito disso", retruco.
"Tem três unidades SWORDS até agora no Iraque, mas eles ainda não dispararam. Ninguém sabe ao certo como conseguir que um robô faça esse tipo de julgamento. Quociente
ético artificial. Uma perspectiva um tanto assustadora, mas tenho certeza de que não é impossível."
"Os robôs devem ser usados para a manutenção da paz, para vigilância."
"Isso para você, mas não para todos."
"Eles não devem tomar decisões sobre vida e morte", continuo. "Seria como o piloto automático decidindo se devemos voar através das nuvens que estão vindo em nossa
direção."
"O piloto automático poderia fazer isso se meu helicóptero tivesse sensores de umidade e temperatura. Acrescente transdutores de força e ele pousa sozinho, leve
como uma pluma. Com os sensores adequados, você não precisa mais de mim. É só embarcar e apertar um botão, como os Jetsons. Parece loucura, mas quanto mais louco
melhor. Pergunte à DARPA. Você faz ideia de quanto dinheiro eles investem na área de Cambridge?"
Lucy baixa o coletivo, perdendo altitude e velocidade à medida que outro trecho de nuvens fantasmagóricas flutua em nossa direção no escuro.
"Além do que foi investido no CFC?", completa ela.
Seu comportamento está diferente, até seu rosto está diferente, e ela já não tenta esconder o que a está afetando. Conheço esse estado de espírito. Conheço muito
bem. É uma disposição de ânimo antiga, que não vejo há algum tempo, mas que reconheço como se fossem os sintomas de uma doença que esteve em remissão.
"Computadores, robótica, biologia sintética, nanotecnologia, quanto mais absurdo melhor", continua Lucy. "Porque não existe mais essa coisa de cientistas malucos.
Não sei se existe mais essa coisa de ficção científica. Você propõe a invenção mais radical que consegue imaginar e ela provavelmente está sendo implementada em
algum lugar. É notícia velha."
"Você está sugerindo que esse homem que morreu em Norton's Woods está ligado à DARPA."
"De alguma forma está, em alguma extensão. Não sei quão direta ou indiretamente", responde Lucy. "O MORT não está mais sendo usado, não pelas Forças Armadas, nem
para qualquer finalidade, mas era coisa de Star Wars oito ou nove anos atrás, quando a DARPA intensificou o financiamento para dispositivos militares e de inteligência
em robótica, bioengenharia e engenharia da computação. E aplicações forenses e outras, relevantes para nossos mortos de guerra, para o que acontece em combate, no
teatro de operações."
Foi a DARPA que financiou a pesquisa e o desenvolvimento da tecnologia RadPath que empregamos nas autópsias virtuais em Dover e agora no CFC. A DARPA financiou minha
bolsa de estudos de quatro meses, que se transformaram em seis.
"Uma percentagem substancial de subvenção para pesquisa vem para os laboratórios da área de Cambridge, Harvard e MIT", diz Lucy. "Lembra quando tudo começou a girar
em torno da guerra?"
Está ficando cada vez mais difícil lembrar um tempo em que isso não era verdade. A guerra está se tornando nossa indústria nacional, como antes eram os automóveis,
o aço e as ferrovias. É este o perigoso mundo em que vivemos. Não creio que possa mudar.
"A brilhante ideia de que robôs como MORT podiam ser utilizados para recuperar baixas de modo que as tropas não arriscassem a vida por um companheiro morto?", lembra
Lucy.
Não uma ideia brilhante, e, sim, infeliz. Uma ideia extremamente idiota, eu achava na época e continuo a achar. Briggs e eu não estávamos do mesmo lado a esse respeito.
Ele nunca vai me dar crédito por tê-lo salvado de um passo em falso em RP que poderia tê-lo prejudicado muito.
"A ideia foi agressivamente pesquisada por um tempo e então engavetada", acrescenta Lucy.
Foi engavetada porque empregar robôs para tal finalidade supõe que eles sejam capazes de decidir se um soldado caído, um ser humano, está mortalmente ferido ou morto.
"O Departamento de Defesa se deu mal por causa disso, pelo menos internamente, porque pareceu frio e desumano", diz ela.
Merecidamente. Ninguém deveria morrer nas garras de algo mecânico que arrasta a pessoa para fora do campo de batalha, ou a retira de um veículo estraçalhado, ou
dos escombros de um edifício que desabou.
"O que estou dando a entender é que as primeiras gerações dessa tecnologia foram enterradas pelo Departamento de Defesa, relegadas a um ferro-velho secreto ou teve
peças reaproveitadas", diz Lucy. "Mesmo assim, o cara que está na sua geladeira tem um no apartamento dele. Onde conseguiu? Ele tem alguma ligação com a história.
Tem papel de desenho na mesinha de centro. É inventor, engenheiro, algo do tipo, e estava de alguma forma envolvido em projetos sigilosos que exigem certificado
de segurança de alto nível, mas é civil."
"Como você pode ter tanta certeza de que ele é civil?"
"Acredite em mim, tenho certeza. Ele não tem experiência nem treinamento e é absolutamente certo que não faz parte do serviço de informações militar nem é agente
do governo, ou não andaria por aí ouvindo música alta armado com uma pistola cara que teve o número de série raspado - em outras palavras, ele provavelmente comprou
a arma na rua. Teria uma coisa que nunca seria atribuída a ele nem a ninguém, uma coisa que você usa uma vez e joga fora..."
"Não sabemos a quem a arma está relacionada?" Quero ter certeza disso.
"Não que eu saiba, ainda não, o que é ridículo. Esse cara não estava encoberto. Acho que ele está assustado", diz Lucy como se soubesse disso com certeza. "Estava",
acrescenta. "Ele estava. Alguém o tinha sob vigilância - é o que eu acho, de qualquer maneira -, e agora ele está morto. Na minha opinião, não é coincidência. Sugiro
que você tenha extremo cuidado ao falar com Marino.
"Às vezes, ele tem um discernimento terrível, mas não está tentando me enganar."
"Ele não faz parte do serviço de inteligência médico como você, e sua compreensão só vai até o ponto de não discutir casos com seus amigos no boliche e não falar
com repórteres. Acha perfeitamente possível confiar em pessoas como Briggs porque é um ignorante no que se refere às altas patentes militares." Não consigo lembrar
desde quando não vejo Lucy com um comportamento tão inquieto e sombrio. "Em um caso como esse, você conversa comigo ou com Benton."
"Você contou a Benton o que acabou de me contar?"
"Vou te deixar explicar a respeito do MORT porque ele provavelmente não vai entender o que é. Não estava por perto quando você passou por tudo isso com o Pentágono.
Você conta a ele e então todos nós podemos conversar. Você, ele, eu e chega, pelo menos por enquanto, porque você não sabe o que está acontecendo, e é melhor esclarecer
os fatos e saber quem somos nós e quem são eles."
"Se não posso confiar em Marino em um caso como esse, ou em qualquer caso por sinal, por que estou com ele?" A atitude defensiva aviva meu tom de voz, porque Marino
também foi ideia dela.
Lucy me encorajou a contratá-lo como chefe de investigações operacionais do CFC e também o convenceu a aceitar, embora não tenha sido uma negociação muito difícil.
Ele nunca admitiria, mas não queria estar em lugar nenhum em que eu não estivesse, e, quando percebeu que eu ficaria em Cambridge, desencantou-se de repente com
o departamento de polícia de Nova York. Perdeu interesse na promotora-adjunta Jaime Berger, para cujo escritório foi designado. Entrou em conflito com seu senhorio
no Bronx. Começou a se queixar dos impostos de Nova York, mesmo que os pagasse havia vários anos. Disse que era intolerável não ter lugar para andar de moto ou para
estacionar uma caminhonete, mesmo que não possuísse nenhum dos dois na ocasião. Disse que precisava se mudar.
"Não é uma questão de confiança. É questão de reconhecer limitações." É estranhamente generoso da parte de Lucy dizer isso. Em geral, as pessoas são simplesmente
ruins ou inúteis e merecem seja qual for o castigo que ela determine.
Lucy reduz a pressão sobre o coletivo e faz ajustes sutis com o cíclico, aumentando nossa velocidade e se certificando de que não ganhemos altura, entrando nas nuvens.
A escuridão da noite à nossa volta é impenetrável, e há trechos onde vejo luzes no solo, sugerindo que estamos voando acima de árvores. Insiro a frequência da base
aérea de McGuire para monitorar seu espaço aéreo enquanto ficamos de olho no Sistema Anticolisão de Tráfego. Ele não mostra outra aeronave em parte alguma. Talvez
sejamos os únicos a voar esta noite.
"Não posso me dar o luxo de levar em conta limitações", digo à minha sobrinha. "O que significa que provavelmente cometi um erro contratando Marino. E outro maior
ainda contratando Fielding."
"E não pela primeira vez. Jack te largou em Watertown e foi para Chicago, e você devia ter deixado o cara por lá."
"Na verdade, perdemos nosso financiamento em Watertown. Ele sabia que o escritório talvez fechasse, e realmente fechou."
"Não foi por isso que ele saiu."
Não argumento porque Lucy está certa. Não foi por isso. Fielding queria se mudar para Chicago porque sua mulher havia recebido uma oferta de emprego lá. Dois anos
mais tarde, perguntou se podia voltar. Disse que sentia falta de trabalhar para mim. Disse que sentia falta de sua família. Lucy, Marino, Benton e eu. Uma família
grande e feliz.
"Não são só eles. Você tem problema com todo mundo ali", diz Lucy.
"Então ninguém deveria ter sido contratado. Inclusive você, imagino."
"Provavelmente. Não sou boa no trabalho em equipe." Ela foi demitida do FBI e da ATF. Acho que Lucy não pode ser supervisionada por ninguém, nem mesmo por mim.
"Bom, é ótimo voltar para casa e para isso", retruco.
"É esse o perigo de uma instituição-modelo que, não importa o que se diga, é na verdade tanto civil quanto militar, é da alçada tanto local quanto federal, além
de ter vínculos acadêmicos", diz Lucy. "Você não é uma coisa nem outra. Os membros da equipe não sabem exatamente como agir ou não conseguem respeitar os limites,
supondo que alguém os compreenda. Alertei você sobre isso faz tempo."
"Não me lembro de você ter me alertado. Só me lembro de ter chamado minha atenção para o fato."
"Vamos inserir a frequência de Lakehurst e indicar voo VFR, porque estou descartando o acompanhamento de voo", decide Lucy. "Se formos empurrados ainda mais para
oeste, vamos ter vento contrário, o que vai reduzir nossa velocidade para menos de quarenta quilômetros por hora e vamos ter que pousar para passar a noite em Harrisburg
ou Allentown."
5
Os flocos de neve ficam loucos como mariposas sob as luzes de aterrissagem e o vento das pás do rotor, à medida que descemos sobre a plataforma de madeira. Os skids
pousam de forma hesitante, então se separam pesadamente, quando o peso se instala e quatro pares de faróis começam a se mover em nossa direção desde o portão de
segurança próximo à base de operações.
Os faróis movem-se devagar pela rampa, iluminando a neve que cai com rapidez e reconheço a silhueta do Porsche SUV verde de Benton. Reconheço o Suburban e o Range
Rover, ambos pretos. Não conheço o quarto carro, um sedã escuro elegante, com aço cromado. Lucy e Marino devem ter vindo em carros separados hoje e deixado seus
SUVs com a equipe da base, o que faz sentido. Minha sobrinha sempre chega ao aeroporto bem antes das outras pessoas para preparar o helicóptero, assim pode checar
do aparelho do tubo de Pitot, no nariz, ao estabilizador de cauda. Não a vejo assim faz algum tempo, e enquanto aguardamos os dois minutos em ponto morto antes que
ela conclua o desligamento, tento me lembrar da última vez, localizá-la com exatidão, na esperança de entender o que está acontecendo. Porque Lucy não vai me contar.
Não vai fazer isso, a menos que se encaixe em seu plano geral, e não há como extrair dela a informação quando não está preparada para compartilhar, o que, em situações
extremas, pode ser nunca. Lucy prospera no comportamento dissimulado, sente-se muito mais à vontade sendo quem não é do que quem é, e foi sempre assim, desde os
primeiros anos. Ela se alimenta do poder do silêncio e se energiza com o drama do risco, do perigo real. Quanto mais ameaçador, melhor. Tudo o que me revelou até
agora é que um robô obsoleto no apartamento do morto é um PackBot chamado MORT, financiado pela DARPA e que, no passado, foi destinado a intervenções funerárias
no teatro de operações; em outras palavras, à remoção de corpos na guerra, um Anjo da Morte mecânico. O MORT era insensível e inadequado e o combati agressivamente
há anos, mas a peculiaridade de o morto ter tal objeto em seu apartamento não explica o comportamento de Lucy.
Quando foi que ela me assustou tanto, não que tenha sido só uma vez, mas no dia em que achei que ela poderia acabar na prisão? Há sete ou oito anos, concluo, quando
voltou da Polônia, onde esteve envolvida em uma missão que tinha a ver com a Interpol e operações especiais que até hoje não estão claras para mim. Nunca vou ficar
sabendo quanto ela me contaria se eu a pressionasse o suficiente, porque não vou fazer isso. Optei por permanecer na obscuridade acerca do que ela fez por lá. O
que sei é suficiente. É mais que suficiente. Eu jamais diria isso a respeito dos sentimentos, da saúde ou do bem-estar geral de Lucy, porque me preocupo muito com
cada molécula sua, mas posso dizer isso acerca de alguns aspectos complexos e clandestinos da forma como viveu. Para seu próprio bem e o meu, há detalhes sobre os
quais não vou perguntar. Há histórias que não quero que me contem.
Durante a última hora de nosso voo para Hanscom Field, ela foi ficando cada vez mais preocupada, impaciente e incrivelmente vigilante, e é sua vigilância que tem
um calibre especial. É o que reconheço. A vigilância é a arma que ela saca quando se sente ameaçada e entra no modo de atuação que eu costumava temer. Em Oxford,
Connecticut, onde paramos para abastecer, ela não deixou o helicóptero sem supervisão, nem por um segundo. Supervisionou o caminhão de combustível e me colocou de
guarda no frio enquanto trotava até o interior da base de operações para pagar, porque não confiava em Marino para o serviço de guarda, conforme explicou. Contou
que, quando eles reabasteceram em Wilmington, Delaware, hoje cedo, a caminho de Dover, ele ficou muito ocupado ao telefone para se preocupar com a segurança ou reparar
no que estava acontecendo ao redor dos dois.
Disse que o havia observado pela janela enquanto ele passeava pela pista de pouso, conversando e gesticulando, sem dúvida empolgado contando a Briggs a respeito
do homem que supostamente continuava vivo quando foi trancafiado dentro da geladeira. Marino não olhou para o helicóptero uma única vez sequer, Lucy me contou. Estava
distraído quando outro piloto aproximou-se para fazer o check-out, agachando-se para inspecionar o sensor de visão frontal infravermelha, o holofote Nightsun, e
espreitar pelo Plexiglas o interior das cabines. Não entrava na cabeça de Marino que as portas estavam destrancadas, assim como a tampa do combustível, e é óbvio
que não há como trancar a capota do motor. Alguém pode ter acesso à transmissão, ao motor, às caixas de marchas, os órgãos vitais de um helicóptero, pela simples
liberação das travas.
Água no tanque de combustível é o bastante para uma pane em voo. Lá se vai o motor. Ou uma pequena quantidade de contaminante no fluido hidráulico, possivelmente
terra, óleo, ou água no reservatório, e os controles vão falhar como a direção hidráulica em um automóvel, o que é um pouco mais sério quando você está a seiscentos
metros de altura. Se realmente quer criar confusão, contamine tanto o combustível quanto o fluido hidráulico, assim vai ter uma pane e uma falha hidráulica ao mesmo
tempo, descreveu Lucy em detalhes sórdidos enquanto voávamos com o sistema de comunicação interna na posição "tripulação", para que Marino não ouvisse. Isso seria
especialmente desastroso depois do anoitecer, disse ela, quando os pousos de emergência, já bastante difíceis, ficam muito piores porque você não consegue enxergar
o que há embaixo, e é melhor esperar que não sejam árvores, linhas de energia ou outro tipo de obstrução.
É claro que a sabotagem que ela mais teme é um explosivo; ela é obcecada por explosivos em geral e o motivo pelo qual são de fato usados, quem os usaria, inclusive
o governo dos Estados Unidos, se for conveniente. Assim, tive de ouvir isso por algum tempo antes que ela me deprimisse ainda mais ao explicar quão simples seria
plantar tal coisa, de preferência embaixo da bagagem ou de um tapete atrás, para que quando o artefato detonasse destruísse o tanque de combustível principal sob
os bancos traseiros. Em seguida o helicóptero se transforma em um crematório, disse ela, o que me fez pensar outra vez no soldado no Humvee e em sua mãe devastadora
me atacando ao telefone. Eu fazia associações infelizes durante a maior parte do tempo que estávamos voando porque, para o bem ou para o mal, qualquer calamidade
descrita evoca exemplos vívidos de meus próprios casos. Sei como as pessoas morrem. Sei exatamente o que vai acontecer comigo se eu morrer.
Lucy corta a aceleração e baixa o freio do rotor; no instante em que as pás param de girar, a porta do motorista no utilitário de Benton se abre. A luz interna não
acende. Não vai acender em nenhum dos três utilitários na rampa, porque policiais e agentes federais, inclusive os que já não exercem mais a profissão, têm suas
peculiaridades. Não se sentam com as costas voltadas para a porta. Detestam apertar o cinto de segurança e não gostam de luzes internas nos veículos. São programados
para evitar emboscadas e restrições que os impeçam de fugir. Resistem a se transformar em um alvo iluminado. São precavidos, mas não tão precavidos quanto Lucy nas
últimas horas.
Benton caminha em direção ao helicóptero e aguarda perto da plataforma com as mãos nos bolsos de um velho casaco preto de camurça que lhe dei há muitos Natais, o
cabelo prateado bagunçado pelo vento. Ele é alto e magro contra a noite coberta de neve, e seu semblante parece ansioso à sombra e luz desiguais. Sempre que o vejo
após uma longa separação é com os olhos de uma estranha, e me sinto outra vez atraída por ele, exatamente como da primeira vez, há muito tempo na Virginia quando
eu era a nova chefe, a primeira mulher nos Estados Unidos a dirigir um sistema médico-legal daquele porte, e ele era uma lenda no FBI, o talentoso psicólogo criminal
e diretor do que era então a Unidade de Ciência Comportamental em Quantico. Ele entrou em minha sala de reuniões e de repente me senti nervosa e insegura, o que
nada tinha a ver com os assassinatos em série que estávamos ali para discutir.
"Você conhece esse cara?", pergunta ele em meu ouvido quando nos abraçamos. Ele me beija de leve nos lábios; sinto a fragrância amadeirada de sua loção pós-barba
e o couro macio de seu casaco de encontro ao meu rosto.
Olho para além dele na direção do homem que salta do sedã, que agora vejo que é um Bentley azul-escuro ou preto que tem o ronco gutural de um motor V12. O sujeito
é grande e está acima do peso, possui queixo duplo e uma franja rala que se agita ao vento. Vestindo um casaco longo com a gola levantada, que lhe cobre as orelhas
e luvas, mantém-se de pé a uma distância educada, com a postura alheia de um motorista de limusine. Mas percebo sua atenção sobre nós. Ele parece mais interessado
em Benton.
"Deve estar esperando alguém", concluo enquanto o homem olha para o helicóptero, então torna a olhar para Benton. "Ou está confuso."
"Em que posso ajudar?" Benton se aproxima do sujeito.
"Estou procurando por Scarpetta."
"E por que você estaria procurando Scarpetta?" Benton é simpático, porém firme, e não revela nada.
"Fui enviado aqui com uma entrega e me disseram que o encontraria saindo do helicóptero. Você é de onde? Da segurança nacional? Estou vendo que o helicóptero tem
sensor de visão frontal infravermelha, holofote de busca, um bocado de equipamento especial. Bem high-tech. A que velocidade ele voa?"
"O que posso fazer por você?"
"Preciso entregar algo diretamente a Scarpetta. É você? Me mandaram pedir um documento." O motorista observa Lucy e Marino retirarem meus pertences dos compartimentos
do passageiro e de bagagem. Não está interessado em mim, não mais que para me lançar um olhar de relance. Sou a mulher do homem alto e atraente com cabelo grisalho.
O motorista acha que Benton é Scarpetta e que o helicóptero pertence a ele.
"Vamos tirar você daqui antes que vire uma nevasca", diz Benton, caminhando em direção ao Bentley de um jeito que não deixa escolha ao motorista a não ser segui-lo.
"Ouvi dizer que vamos ter de quinze a dezoito centímetros, mas tudo é extremo nesse inverno. De onde você é? Não daqui. De algum lugar no sul. Imagino que do Tennessee."
"Você percebeu depois de vinte e sete anos? Acho que preciso trabalhar na minha fala ianque. Nashville. Estacionamos aqui com a 66a Unidade Aérea e nunca saímos.
Não sou piloto, mas dirijo muito bem." Ele abre a porta do passageiro e se debruça para dentro. "Você mesmo pilota aquela coisa? Nunca estive em um daqueles. Percebi
na mesma hora que aquele helicóptero não era da Força Aérea. Acho que se você for da CIA, não vai me dizer..."
A voz flutuou até a rampa, onde Benton me deixou. Sei que é melhor não o seguir até o Bentley, mas reluto em me sentar em nosso carro sem fazer ideia de quem é o
homem, a que entrega está se referindo ou como sabia que alguém chamado Scarpetta estaria em Hanscom, seja em um helicóptero ou para encontrá-lo, e a que horas pousaria.
A primeira pessoa que me vem à mente é Jack Fielding. É provável que ele conhecesse meu itinerário e verifico meu iPhone. Anne e Ollie responderam minhas mensagens
de texto e já estão no CFC, esperando por nós. Mas não há nada da parte de Fielding. O que está acontecendo? Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa séria. Isso
não deve ser só a irresponsabilidade, a indiferença ou seu comportamento errático habituais. Espero que esteja bem, que não esteja doente, ferido ou brigando com
a mulher, e vejo Benton enfiar alguma coisa no bolso do casaco. Ele se encaminha direto para o SUV, e essa é sua mensagem para mim. Entrar e não fazer perguntas.
Alguma coisa que o desagrada aconteceu, apesar de sua atitude relaxada e amigável com o motorista.
"O que foi?", pergunto quando fechamos as portas ao mesmo tempo que Marino abre o bagageiro e começa a enfiar ali minhas caixas e malas.
Benton aumenta o aquecimento e não responde enquanto mais pertences meus são carregados, em seguida Marino vem até minha porta. Bate com o nó do dedo no vidro.
"O que foi isso?" Ele olha na direção do Bentley; a neve cai espessa e firme, cobrindo a viseira de seu boné de beisebol e derretendo em seus óculos.
"Quem sabia que você e Lucy iam a Dover hoje?", Benton apoia o ombro em mim enquanto conversa com ele.
"O general. E a capitã Avallone ficou sabendo quando telefonei tentando deixar uma mensagem para a doutora. E algumas pessoas no nosso escritório. Por quê?"
"Mais ninguém? Você não mencionou aos paramédicos, à polícia de Cambridge?"
Marino faz uma pausa, pensando, e uma expressão passou por seu rosto. Ele não sabe ao certo a quem contou. Está tentando lembrar, está calculando. Se fez alguma
coisa imprudente, não vai querer admitir, já ouviu o bastante sobre o quanto é indiscreto. Não pretende ser castigado mais uma vez, ainda que, para ser justa, ele
não tivesse motivo para se comportar como se o fato de ele e Lucy voarem até Delaware para me buscar fosse informação sigilosa. Não é segredo de Estado onde eu estava
e, de qualquer forma, eu ia voltar para casa amanhã.
"Não tem importância se você fez isso." Benton parece estar pensando o mesmo que eu. "Só estou tentando entender como um mensageiro sabia que encontraria o helicóptero
aqui."
"Que espécie de mensageiro dirige um Bentley?", pergunta Marino.
"Aparentemente, a espécie que foi informada do seu itinerário, inclusive o número de cauda do helicóptero", responde Benton.
"Maldito Fielding. Que diabos ele está fazendo? O cara é um louco, é o que ele é." Marino retira os óculos, então não tem com que os limpar, e seu rosto parece nu
e estranho sem os velhos aros de metal. "Comentei com algumas pessoas que você provavelmente voltaria hoje em vez de amanhã. Quer dizer, é óbvio que algumas pessoas
sabiam por causa do problema que temos com o morto sangrando e tudo mais." Ele endereça isso a mim. "Mas Fielding era o único que sabia exatamente o que você estava
fazendo e com certeza conhece o helicóptero de Lucy, porque já esteve nele. Merda, você não sabe da missa a metade", acrescenta com ar sombrio.
"Vamos conversar no escritório." Benton quer que ele cale a boca.
"O que sabemos sobre ele? Que merda ele está aprontando? Está mais que na hora de parar de proteger esse cara. Ele com certeza não está te protegendo", diz Marino.
"Vamos conversar sobre isso mais tarde", retruca Benton com um sinal de advertência na voz.
"Ele está te ferrando de alguma forma", diz Marino.
"Não é hora de discutir isso." A voz de Benton assume um tom monótono.
"Ele quer seu emprego. Ou talvez não queira que você fique com ele." Marino olha para mim enquanto enfia as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e se afasta da janela.
"Bem-vinda ao lar, doutora." Sinto os flocos de neve frios e úmidos soprados para dentro do carro em meu rosto e pescoço. "É bom ser lembrado de em quem você pode
realmente confiar, certo?" Ele olha para mim enquanto ergo o vidro da janela.
Faróis anticolisão vermelhos e brancos piscam na ponta das asas dos jatos estacionados à medida que atravessamos a rampa devagar rumo ao portão de segurança, que
acaba de abrir.
O Bentley passa pelo portão; estamos logo atrás e reparo que a placa de Massachusetts não possui o logo que indica que o carro pertence a uma empresa de limusines.
Não me surpreendo. Bentleys são raros, especialmente por aqui, onde as pessoas são modestas e conservadoras, mesmo aquelas que fazem voos particulares. Raras vezes
vejo Bentleys ou Rolls-Royces, são quase sempre Toyotas ou Saabs. Passamos pela base de operações VIP, um dos vários serviços de voo na parte civil do aeroporto,
e coloco a mão na camurça macia do bolso do casaco de Benton, sem tocar o envelope branco leitoso que mal se projeta para fora dele.
"Você quer me explicar o que acaba de acontecer?" Ele parece ter recebido uma carta.
"Ninguém devia saber que você fez um voo para cá, ninguém devia saber nada sobre você ou sobre o seu paradeiro, ponto final", diz Benton com o rosto e a voz severos.
"É óbvio que ela ligou para o CFC e Jack passou a informação. Ela com certeza já ligou para lá antes, e quem mais a não ser Jack?"
Na verdade, ele não enuncia isso como uma pergunta e não faço ideia de a quem possa estar se referindo.
"Não entendo por que ele ou qualquer outra pessoa falaria com ela, pelo amor de Deus", continua Benton, mas não acredito que não compreenda seja o que for a que
esteja se referindo. Seu tom exprime algo completamente diferente. Percebo que ele não está nem mesmo surpreso.
"Quem?" Porque não faço a menor ideia. "Quem telefonou para o CFC?"
"A mãe de Johnny Donahue. Ao que parece, aquele é o motorista dela", disse ele, indicando o carro mais à frente.
Os limpadores de para-brisa produzem um alto som de borracha sendo arrastada sobre o vidro, afastando a neve, que se derrete. Olho para as lanternas traseiras do
Bentley à nossa frente e tento entender o que Benton está me contando.
"Devemos examinar, independentemente do que for." Estou me referindo ao envelope em seu bolso.
"É prova. Deve ser examinada no laboratório", diz ele.
"Eu tenho que saber o que é."
"Terminei de avaliar Johnny esta manhã", Benton me faz lembrar. "Sei que a mãe dele telefonou várias vezes para o CFC."
"Como você sabe?"
"Johnny me contou."
"Um paciente psiquiátrico te contou. E isso é informação confiável?"
"Passei um total de quase sete horas com ele desde que foi admitido. Não acredito que tenha matado ninguém. Existe um monte de coisas nas quais não acredito. Mas
acredito que a mãe dele telefonaria para o CFC, com base no que sei", diz Benton.
"Ela não pode realmente imaginar que discutiríamos o caso de Mark Bishop com ela."
"Atualmente as pessoas pensam que tudo é informação pública, que elas têm o direito de saber", diz ele. Não é de seu feitio fazer conjecturas e ceder a generalidades.
A declaração soa superficial e evasiva. "E a sra. Donahue tem um problema com Jack", acrescenta Benton, e o comentário me parece genuíno.
"Johnny contou a você que a mãe dele tem um problema com Jack. E por que ela teria qualquer opinião sobre ele?"
"Parte desse assunto não posso abordar." Ele olha direto para a frente enquanto dirige na via coberta de neve. A neve está caindo mais rápido; açoita os faróis dianteiros
e estala de encontro ao vidro.
Sei quando Benton está me escondendo coisas. Em geral, por mim tudo bem. Agora, não está nada bem. Sinto a tentação de extrair o envelope de seu bolso e examinar
o que alguém, ao que tudo indica a sra. Donahue, quer que eu veja.
"Você conheceu a mulher, conversou com ela?", pergunto.
"Até agora, consegui evitar, ainda que ela tenha telefonado para o hospital, tentando me localizar; telefonou várias vezes desde que ele foi admitido. Mas não convém
que eu converse com ela. Não convém que eu converse sobre muitas coisas, e sei que você entende."
"Se Jack ou alguém divulgou detalhes sobre Mark Bishop, isso é sério", retruco. "E entendo sua discrição, ou acho que entendo, mas tenho o direito de saber se ele
fez isso."
"Eu não sabia o que você sabe. Se Jack te contou alguma coisa", diz ele.
"A respeito do que especificamente?"
Não quero admitir para Benton e sobretudo para mim mesma que não consigo lembrar exatamente quando conversei com Fielding pela última vez. Nossas conversas, quando
as tivemos, foram superficiais e breves, e não o vi uma vez sequer quando estive em casa por vários dias durante as festas de fim de ano. Ele havia ido a algum lugar,
supostamente levado a família para algum lugar, mas não tenho certeza. Faz longos meses que Fielding deixou de compartilhar comigo os detalhes de sua vida pessoal.
"Deste caso especificamente, do caso de Mark Bishop", responde Benton. "Quando aconteceu, por exemplo, Jack discutiu com você?"
No sábado, 30 de janeiro, Mark Bishop, de seis anos, estava brincando em seu quintal a mais ou menos uma hora daqui, em Salem, quando alguém o atacou com pregos
na cabeça.
"Não", respondo. "Jack não conversou comigo sobre isso."
Eu estava em Dover quando o menino foi assassinado, e Fielding assumiu o caso, o que estava em completo desacordo com ele, e pensei assim na ocasião. Fielding nunca
foi capaz de lidar com crianças, mas por algum motivo decidiu lidar com isso e me chocou. No passado, se o corpo de alguma criança estivesse a caminho do necrotério,
Fielding se ausentava. Não fazia o menor sentido que ele assumisse o caso de Mark Bishop, e lamento não ter voltado para casa, que foi meu primeiro impulso. Eu deveria
ter agido de acordo com ele, mas não quis fazer a meu segundo em comando o que Briggs acabara de fazer comigo. Não quis demonstrar falta de confiança.
"Examinei o caso detalhadamente, mas Jack e eu não discutimos a respeito, ainda que com certeza eu tenha indicado que estaria à disposição se houvesse necessidade."
Sinto que estou na defensiva e detesto quando isso acontece. "Tecnicamente, o caso era dele. Tecnicamente, eu não estava aqui." Não consigo me controlar e sei que
parece fraqueza, como se eu estivesse arrumando desculpas, e me sinto irritada comigo mesma.
"Em outras palavras, Jack não compartilhou os detalhes. Quer dizer, os detalhes dele", declara Benton.
"Leve em conta onde eu estava e o que estava fazendo", tento lembrar.
"Não estou dizendo que seja culpa sua, Kay."
"O que é culpa minha? E o que você está querendo dizer com os detalhes 'dele'?"
"Estou perguntando se você fez perguntas a Jack. Se ele evitou discutir o caso com você."
"Você sabe como ele é quando se trata de crianças. Na ocasião, enviei uma mensagem dizendo que um dos outros médicos-legistas poderia lidar com aquilo, mas Jack
tomou conta do caso. Fiquei surpresa, mas foi o que aconteceu. Como já disse, examinei todos os registros. Os dele, os da polícia, os relatórios do laboratório..."
"Então, você na verdade não sabe o que está acontecendo?"
"Parece que o que você está dizendo é que não sei."
Benton fica em silêncio.
"Você sabe o que passou, além dos fatos mais recentes? Da confissão feita por Donahue?"
Tento novamente: "É claro que sei o que foi informado nos noticiários. Um estudante de Harvard confessando uma coisa dessas não poderia passar despercebido pela
imprensa. É óbvio que o que você está insinuando é que existem detalhes dos quais não fui informada".
Outra vez Benton não responde. Imagino Fielding conversando com a mãe de Johnny Donahue. É possível que ele tenha lhe fornecido detalhes de onde eu estaria hoje
à noite, e ela enviou seu motorista para me entregar um envelope, embora o motorista tenha dado a impressão de não saber que Scarpetta era uma mulher. Olho para
o casaco de camurça preta de Benton. No escuro, distingo a borda branca indistinta do envelope em seu bolso.
"Por que alguém do seu escritório falaria com a mãe da pessoa que confessou o crime?" A pergunta de Benton soa mais como uma afirmação. Parece retórica. "Temos absoluta
certeza de que nada vazou para os meios de comunicação sobre sua partida de Dover hoje, talvez por causa do novo caso?" Ele está se referindo ao homem que sofreu
o colapso em Norton's Woods. "Talvez exista uma explicação lógica para que ela saiba. Uma explicação lógica diferente de Jack. Estou tentando manter a mente aberta."
Não me parece que ele esteja tentando manter a mente aberta. Benton parece acreditar que Fielding contou à sra. Donahue por um motivo, que não faço ideia de qual
seja. A menos que seja o que Marino disse há alguns minutos, que Fielding quer que eu perca o emprego.
"Você e eu sabemos a resposta." Ouço a convicção em meu tom de voz e percebo minha certeza do que Jack Fielding seria capaz de fazer. "Que eu saiba, nada apareceu
nos noticiários. E mesmo que a sra. Donahue tenha descoberto dessa forma, isso não explica o fato de ela saber o número de cauda do helicóptero de Lucy. Não explica
como soube que eu estava chegando de helicóptero e que pousaria em Hanscom, ou a que horas."
Benton dirige-se a Cambridge em meio à nevasca de flocos cada vez menores. O vento fustiga o utilitário, com rajadas e empuxos, a noite volátil e traiçoeira.
"Só que o motorista pensou que você fosse eu", acrescento. "Percebi pelo modo como ele estava lidando com você. Ele acha que você é Scarpetta, e a mãe de Johnny
Donahue com certeza deve saber que não sou um homem."
"É difícil dizer o que ela sabe", retruca Benton. "Fielding é o legista no caso, não você. Como você mesma disse, tecnicamente não tem nada a ver com isso. Tecnicamente,
não é a responsável."
"Eu sou a chefe e, no fim das contas, a responsável. No fim do dia, todos os casos de medicina legal de Massachusetts são meus. Então tenho alguma coisa a ver com
isso, sim."
"Não foi o que eu quis dizer, mas fico satisfeito em te ouvir dizer isso."
É claro que não foi o que ele quis dizer. Não quero pensar a respeito do que ele quis dizer. Estive fora. De alguma forma, eu precisava estar em Dover e ao mesmo
tempo manter o CFC em funcionamento sem mim. Talvez fosse pedir demais. Talvez eu tenha sido programada para o fracasso.
"Estou dizendo que, desde que o CFC inaugurou, você tem sido invisível", diz Benton. "Desapareceu em um blecaute de notícias."
"Propositadamente", retruco. "O AFMES não procura publicidade."
"É claro. Não estou culpando você."
"Escolha de Briggs." Dou voz ao que suspeito que Benton pode estar insinuando.
Ele não confia em Briggs. Nunca confiou. Sempre atribuí esse fato ao ciúme. Briggs é um homem muito poderoso e intimidador, e Benton não se sente poderoso ou intimidador
desde que deixou o FBI; além disso, eu e Briggs temos um passado. Ele é uma das pouquíssimas pessoas que antecederam Benton e que continuam em minha vida. Tenho
a sensação de que mal havia acabado de me tornar adulta quando o conheci.
"O AFMES não queria que você desse entrevistas a respeito do CFC ou fizesse qualquer referência pública relacionada a Dover até que o CFC tivesse sido inaugurado
e seu treinamento fosse concluído", prossegue Benton. "Isso a manteve longe dos holofotes por algum tempo. Estou tentando lembrar a última vez em que você esteve
na CNN. Foi, pelo menos, há um ano."
"E, coincidentemente, eu devia voltar à ribalta esta noite. E, coincidentemente, tive que cancelar. Pela terceira vez, já que minha volta foi várias vezes adiada."
"É. Coincidentemente. Muitas coincidências", diz Benton.
Talvez Briggs tivesse me exposto e feito isso de propósito. Quão inteligente seria me preparar para um emprego mais importante, o mais importante até aqui, enquanto
me tornava sistematicamente menos visível? Para me silenciar. No fim das contas, para se livrar de mim. A ideia é chocante. Não acredito nela.
"Coincidências de quem, é isso que você precisa saber", diz Benton então. "E não estou dando como fato consumado que Briggs tenha feito alguma coisa maquiavélica.
Ele não é a totalidade do Pentágono. É só uma engrenagem em uma máquina muito grande."
"Sei que você antipatiza com ele."
"É com a máquina que antipatizo. Ela vai estar sempre presente. Tenha a certeza de que compreende isso para não ser triturada por ela."
A neve estala e salta de encontro ao vidro à medida que passamos por campos abertos e bosques cerrados; um córrego corre acelerado contra o parapeito à nossa direita
quando cruzamos uma ponte. O ar deve estar mais frio aqui, a neve cai miúda e gelada à medida que entramos e saímos de bolsões de tempo inconstante que julgo inquietantes.
"A sra. Donahue sabe que o legista-chefe e diretor do CFC, alguém chamado Scarpetta, é o chefe de Jack", diz Benton então. "Tinha que saber já que se deu o trabalho
de mandar te entregar alguma coisa. Mas talvez seja a única coisa que ela saiba", resume ele, propondo uma explicação para o que acaba de acontecer no aeroporto.
"Vamos examinar o que quer que seja." Quero o envelope.
"Isso devia ir para o laboratório."
"Ela sabe que eu sou chefe de Jack, mas não sabe que sou mulher." Parece absurdo, mas é possível. "Ainda que tudo que ela tivesse que fazer fosse colocar meu nome
no Google."
"Nem todos usam o Google."
Lembro como me esqueço fácil de que no mundo existem pessoas pouco sofisticadas em termos tecnológicos, inclusive alguém que pode ter um chofer e um Bentley. Suas
lanternas traseiras estão muito à nossa frente agora na via estreita de duas pistas, diminuindo e se distanciando à medida que o carro segue rápido demais para as
condições.
"Você mostrou alguma identificação ao motorista?", pergunto.
"O que você acha?"
É evidente que Benton não faria isso. "Então ele não percebeu que você não é Scarpetta."
"Não com base em nada que eu tenha feito ou dito."
"Acho que a sra. Donahue vai continuar a pensar que Jack trabalha para um homem. É estranho Jack não ter dito a ela como me encontrar nem tenha indicado como seu
motorista poderia me reconhecer, ao menos sugerido que sou uma mulher. Estranho. Não sei." Não estou convencida do que estamos pressupondo. Não parece certo.
"Eu não sabia que você estava com tantas dúvidas a respeito de Jack. Não que elas não sejam justificadas." Benton está tentando me fazer falar. É o agente do FBI
que existe dentro dele. Não o vejo há algum tempo.
"Só não venha me dizer que eu deveria saber", protesto com sentimento. "Já ouvi isso hoje o suficiente."
"Só estou dizendo que eu não sabia."
"E tudo que eu sabia era das minhas dúvidas e negações de sempre com respeito a ele", retruco. "Não tinha informações suficientes para estar mais preocupada que
o normal." É meu jeito de pedir a Benton que me dê informações suficientes se ele as tem, que não aja como policial ou como profissional da área de saúde mental.
Não retenha informação, estou pedindo.
Mas ele se segura. Não diz uma palavra. Sua atenção está voltada para a frente, seu perfil surge distinto sob a fraca claridade das luzes do painel. No nosso caso,
foi sempre assim. Contornamos informação confidencial e privilegiada. Dançamos ao redor de segredos. Às vezes, mentimos. No início, enganamos, porque Benton era
casado com outra pessoa. Ambos sabemos ludibriar. Não é algo de que me orgulhe e gostaria que isso não continuasse a ser necessário em termos profissionais. Especialmente
neste exato momento. Benton está dançando ao redor de segredos e quero a verdade. Preciso dela.
"Olha, nós dois sabemos como ele é, e realmente ando invisível desde que o CFC inaugurou", continuo. "Estive em um vácuo, fazendo o melhor possível para lidar com
tudo à distância enquanto cumpria jornadas de dezoito horas, sem tempo nem mesmo para conversar com minha equipe por telefone. Foi tudo eletrônico, na maioria das
vezes via e-mails e PDFs. Quase não vi ninguém. Eu nunca deveria ter colocado Jack no comando sob tais circunstâncias. Quando o recontratei e saí da cidade, sujeitei
todo mundo exatamente ao que aconteceu. Você me disse isso, e não foi o único."
"Você nunca quis acreditar que tem um problema sério com ele", diz Benton de um jeito que me deixa ainda mais insegura. "Mesmo que já tenha tido muitos. Às vezes
não existem provas suficientes que façam você aceitar uma verdade na qual não suporta acreditar. Não consegue ser objetiva quando se trata dele, Kay. Não sei bem
se alguma vez entendi o motivo."
"Você está certo e detesto admitir isso." Limpo a garganta e acalmo minha voz. "Sinto muito."
"Não sei se algum dia vou entender." Ele olha para mim de relance, com ambas as mãos ao volante; estamos sozinhos em uma via fustigada pela neve e mal iluminada,
dirigindo em meio à escuridão coberta de flocos de gelo. O Bentley já não é visível à frente. "Não estou te julgando."
"Ele destruiu a vida dele e precisa de mim outra vez."
"Não é culpa sua que ele tenha destruído a própria vida, a menos que você tenha deixado de me contar alguma coisa. Na verdade, aconteça o que acontecer, não seria
culpa sua. As pessoas destroem a própria vida. Não precisam dos outros para isso."
"Não é inteiramente verdade. Ele não tem culpa do que aconteceu quando criança."
"Nem você", diz Benton, como se soubesse mais sobre o passado de Fielding do que lhe contei, os poucos detalhes que conheço. Sempre tive o cuidado de não sondar
minha equipe, especialmente Fielding. Sei o suficiente a respeito das tragédias precoces pelas quais passou para dar atenção ao que ele talvez não queira discutir.
"É claro que isso parece uma bobagem", acrescento.
"Não uma bobagem. Só um drama que vai sempre acabar do mesmo jeito. Nunca entendi completamente por que você sente a necessidade de fazer esse jogo. Tenho a impressão
de que alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que você não me contou."
"Eu te conto tudo."
"Nós sabemos que isso não é verdade com relação a nenhum dos dois."
"Talvez eu deva ficar só com os mortos." Ouço a amargura em minha voz, o ressentimento se infiltrando nas barreiras que construí cuidadosamente durante a maior parte
da vida. Talvez eu já não saiba viver sem elas. "Sei lidar muito bem com os mortos."
"Não fale assim", diz Benton baixinho.
É porque estou cansada, digo a mim mesma. É por causa do que aconteceu esta manhã quando a mãe negra de um soldado negro morto me denegriu e xingou ao telefone,
dizendo que sigo não a Regra de Ouro, e, sim, a Regra dos Brancos. Depois Briggs tentou sobrepujar minha autoridade. É possível que ele tenha armado para cima de
mim. É possível que queira que eu me dê mal.
"É um estereótipo", diz Benton então.
"O engraçado é que os estereótipos normalmente se baseiam em alguma coisa."
"Não diga coisas desse tipo."
"Não vai haver mais problemas com Jack. O drama vai acabar, prometo. Supondo que ele já não tenha dado um fim nisso, que já não tenha saído do emprego. Afinal, já
fez isso antes. Ele tem que ser demitido."
"Ele não é você, nunca poderia ser, e não é seu filho." Benton acha que é simples assim, mas não é.
"Ele precisa ficar solto", retruco.
"Ele é um patologista forense de quarenta e seis anos, que nunca mereceu sua confiança nem nada que você faz por ele."
"Meu assunto com ele está encerrado."
"Seu assunto com ele está encerrado. Temo que isso seja verdade e você vá ter que deixar Fielding ir embora", diz Benton, como se a decisão já tivesse sido tomada,
como se não dependesse de mim. "Por que você se sente tão culpada?" Há alguma coisa em seu tom de voz, alguma coisa em seu comportamento. Não consigo reconhecer
o que é. "Lá atrás, em Richmond, quando você estava começando a trabalhar com ele. Por que a culpa?"
"Sinto muito ter causado tantos problemas." Eu me esquivo da pergunta. "Estou com a sensação de ter deixado todo mundo na mão. Desculpe por não estar aqui. Não consigo
expressar o quanto lamento. Assumo a responsabilidade por Jack e não vou mais permitir que isso aconteça."
"Você não pode assumir a responsabilidade por certas coisas. Certas coisas não são culpa sua e sempre vou te lembrar disso, mas você provavelmente vai continuar
acreditando que é culpada", diz meu marido, o psicólogo.
Não vou discutir o que é ou não culpa minha, pois não posso contar por que motivo sempre fui irracionalmente leal a Jack Fielding. Voltei da África do Sul e minha
penitência foi ele. Meu serviço público, o castigo que me dei. Eu estava desesperada para fazer justiça por Fielding, por estar convencida de ter prejudicado todos
os demais.
"Vou dar uma olhada." Estou me referindo ao que se encontra no bolso do casaco de Benton. "Sei como examinar uma carta sem comprometer o material e preciso ver o
que a sra. Donahue me escreveu."
Puxo o envelope segurando-o de leve pelas bordas e descubro que a aba está lacrada com fita adesiva cinza, que cobre parcialmente um endereço impresso em uma fonte
serifada em estilo antigo. Reconheço a rua em Beacon Hill, Boston, próxima ao jardim público, muito perto de onde Benton tem uma casa que está em sua família há
gerações. Na frente do envelope está escrito KAY SCARPETTA: CONFIDENCIAL, com letra elaborada, feita com caneta-tinteiro, e tenho o cuidado de não tocar mais nada
com as mãos nuas, especialmente a fita. É uma boa fonte de impressões digitais, DNA e materiais microscópicos. Impressões escondidas podem ser reveladas em superfícies
porosas tais como papel por meio de um reagente como a ninidrina.
"Tem uma faca?" Pouso o envelope no colo. "E preciso que me empreste suas luvas."
Benton estende o braço e abre o porta-luvas; no interior há um canivete multifuncional Leatherman, uma lanterna, uma pilha de guardanapos. Ele puxa um par de luvas
de camurça do bolso do casaco e minhas mãos se perdem dentro delas, mas não quero deixar impressões digitais nem apagar as de outra pessoa. Não acendo a luz interna
do carro, mas a visibilidade está ruim e continua a piorar. Iluminando com a lanterna, introduzo uma pequena lâmina em um dos cantos do envelope.
Corto ao longo do topo e extraio duas folhas dobradas de papel de carta amarelado de gramatura alta com uma marca d'água que não consigo entender claramente, mas
parece algum tipo de brasão ou insígnia de família. O cabeçalho é o mesmo endereço em Beacon Hill, e as duas páginas foram datilografadas em uma máquina de escrever
com fonte cursiva, que é algo que não vejo há muitos anos, talvez há pelo menos uma década. Leio em voz alta:
Kay Scarpetta,
Espero que desculpe o que tenho certeza de que deve parecer um gesto inconveniente e arrogante de minha parte. Mas sou uma mãe desesperada, tão desesperada quanto
é possível.
Meu filho Johnny confessou um crime que sei que ele não cometeu e que não poderia ter cometido. Ele decerto teve dificuldades ultimamente que resultaram em nossa
busca de tratamento, mas, mesmo assim, nunca manifestou problemas sérios de comportamento, nem mesmo quando comecou Harvard como um garoto introvertido e amedrontado
de quinze anos. Se era para ter um colapso nervoso, acho que teria sido nessa ocasião, quando saiu de casa pela primeira vez, sem possuir as habilidades para interagir
com as outras pessoas e fazer amigos. Ele se saiu extraordinariamente bem até o outono passado, em seu último ano, quando sua personalidade mudou de forma alarmante.
Mas ele não matou ninguém!
O dr. Benton Wesley, consultor do fbI e integrante da equipe do Hospital McLean, conhece bem o histórico e os obstáculos evolucionários, e talvez tenha a liberdade
de discutir esses detalhes com o senhor, visto que não pareceu inclinado a discuti-los com seu assistente, o dr. Fielding. A história de Johnny é longa e complexa,
e preciso que a ouca. Basta dizer que quando ele foi admitido no McLean, na segunda-feira passada, foi por ter sido considerado um perigo para si próprio. Ele não
havia ferido nenhuma outra pessoa, nem insinuado que poderia fazê-lo. Então, de repente, do nada, ele confessou esse crime odioso e terrível e foi rapidamente transferido
a uma ala trancada, para os clinicamente insanos. Pergunto ao senhor, como é possível que as autoridades tenham acreditado tão prontamente em suas histórias absurdas
e delirantes?
Preciso conversar com o senhor. Sei que sua instituicão realizou a autópsia do menino que morreu em Salem e creio que seja razoável solicitar uma segunda opinião.
É evidente que tem conhecimento da conclusão do dr. Fielding - que o assassinato foi premeditado, cuidadosamente planejado, uma execucão a sangue-frio, que foi uma
iniciacão para um culto satânico. Algo monstruoso assim é absolutamente inconsistente com qualquer coisa que meu filho poderia fazer a alguém, e ele nunca teve nada
a ver com cultos de qualquer espécie. É absurdo presumir que sua predilecão por livros e filmes de terror, sobrenaturais ou violentos o tenha influenciado dessa
maneira.
Johnny sofre da síndrome de Asperger. É espetacularmente dotado em certas áreas e completamente incompetente em outras. É obcecado por hábitos e rotinas muito rígidos,
e, em 30 de janeiro, estava tomando um brunch no Biscuit com a pessoa mais próxima dele, uma aluna de pós-graduacão de extremo talento chamada Dawn Kincaid, exatamente
como os dois fazem todas as manhãs de sábado das dez à uma da tarde. Ele não poderia, portanto, estar em Salem quando o menino foi morto, às três.
Johnny possui a extraordinária capacidade de lembrar e papagaiar os detalhes mais obscuros, e para mim está claro que o que disse às autoridades saiu direto do que
lhe contaram sobre o caso e do que apareceu nos noticiários. Ele realmente parece acreditar que é culpado (por motivos que não compreendo) e afirma até mesmo que
uma "perfuracão" em sua mão esquerda provém de um mau disparo da pistola de pregos quando ele a usou no garoto, o que é falso. O ferimento foi causado por ele mesmo,
uma perfuracão proveniente de uma faca e um dos muitos motivos por que o levamos ao McLean para início de conversa. Meu filho parece decidido a ser severamente punido
por um crime que não cometeu, e, da forma como as coisas estão caminhando, vai ter seu desejo realizado.
Abaixo estão meus números de contato. Espero que o senhor tenha compaixão e que eu receba notícias suas em breve.
Atenciosamente,
Erica
Erica Donahue
6
Devolvo as folhas do papel de carta grosso e firme ao envelope, em seguida embrulho tudo em guardanapos que encontrei no porta-luvas e coloco no compartimento com
zíper da minha bolsa. Uma das coisas que aprendi é que não é possível voltar atrás. Sempre que uma prova em potencial é cortada, contaminada ou perdida, é como a
espátula de um arqueólogo despedaçando um tesouro antigo.
"Ela não sabe que somos casados", comento enquanto as árvores se agitam ao vento ao longo da rodovia, a neve rodopiando lívida.
"Parece que não", retruca Benton.
"O filho dela sabe?"
"Não discuto você nem minha vida pessoal com os pacientes."
"Então ela não deve saber muita coisa sobre mim."
Tento imaginar como é possível que Erica Donahue não tenha dito ao motorista que a pessoa a quem ele deveria entregar a carta é uma loura miúda, não um homem alto
de cabelo grisalho.
"Ela usa máquina de escrever, supondo que tenha datilografado isso", continuo a deduzir. "Mas quem quer que se dê o trabalho de lacrar o envelope para garantir confidencialidade
provavelmente não vai deixar que outra pessoa datilografe a carta. Se ela ainda usa máquina de escrever, é pouco provável que utilize a internet ou o Google. O papel
com marca d'água, a caneta-tinteiro, a fonte manuscrita da máquina, talvez seja uma pessoa purista, muito precisa, alguém que tem uma maneira muito estabelecida
de fazer as coisas."
"Ela é uma artista", diz Benton. "Uma pianista clássica que não compartilha os interesses altamente tecnológicos do resto da família. O marido é físico nuclear.
O filho mais velho é engenheiro em Langley. E Johnny, como ela salientou, é incrivelmente talentoso. Em matemática, ciências. Ter escrito essa carta não vai ajudar
o filho. Eu gostaria que ela não tivesse feito isso."
"Você parece muito envolvido com ele."
"Detesto quando pessoas vulneráveis se tornam uma saída fácil para os outros. Só porque alguém é diferente e não age como o restante de nós deve ser culpado de alguma
coisa."
"Tenho certeza de que o promotor público de Essex não ficaria satisfeito ao ouvir você dizer isso." Parto do princípio de que foi ele quem contratou Benton para
avaliar Johnny Donahue, mas Benton não está agindo como consultor, e certamente não como consultor do gabinete do advogado distrital. Está agindo como outra coisa.
"Declarações enganosas, ausência de contato visual, confissões falsas. Um rapaz com Asperger e seu interminável isolamento e busca de amigos", diz Benton. "Não é
incomum que uma pessoa assim seja excessivamente influenciável."
"E por que alguém ia querer influenciar Johnny para que ele assumisse a culpa por um crime violento?"
"Tudo que é necessário é a sugestão de alguma coisa suspeita. Por exemplo, que estranha coincidência você falar nessa coisa de ir para Salem e depois aparecer um
menino assassinado lá. Tem certeza de que você se machucou quando prendeu a mão na gaveta, ou aconteceu de outro jeito e você não está lembrado? As pessoas veem
culpa, então Johnny também vê. Ele é levado a dizer o que acha que os outros querem ouvir e a acreditar no que acha que querem acreditar. Não tem nenhuma compreensão
das consequências do seu comportamento. Pessoas com síndrome de Asperger, em especial adolescentes, estão estatisticamente sobrerrepresentadas entre gente inocente
que é presa e condenada."
Os flocos de neve aumentam de repente e voam selvagemente como pétalas de corniso sob efeito do vento forte. Benton reduz a marcha no tiptronic e pisa de leve no
freio.
"Talvez seja melhor encostar." Não enxergo a rodovia; os faróis refletem a brancura que enxameia ao nosso redor.
"É só um foco de tempestade, como uma microprecipitação." Ele debruça-se sobre o volante, olhando direto para a frente, enquanto somos fustigados por rajadas de
vento ameaçadoras. "Acho que é melhor passar por isso."
"Talvez seja melhor parar."
"Estamos em uma via asfaltada. Estamos na pista. Não tem nada vindo." Ele checa os espelhos. "Nada atrás de nós."
"Espero que você esteja certo." Não me refiro apenas à neve. Tudo parece ameaçador, como se forças sinistras nos rodeassem, como se estivéssemos sendo advertidos.
"Não foi uma coisa inteligente. Foi bem-intencionada, mas não inteligente." Benton dirige bem devagar através da brancura caótica. "É uma opinião, mas não vai ser
útil. É melhor você não telefonar para ela."
"Vou ter que mostrar a carta à polícia", retruco. "Ou pelo menos contar a respeito, para eles decidirem o que querem fazer."
"Ela só piorou a situação." Ele diz isso como se fosse o responsável. "Não se envolva nisso, telefonando para ela."
"Além de tentar influenciar o serviço médico legal, de que forma ela piorou a situação?", pergunto.
"Vários pontos-chave estão incorretos. Johnny não lê terror, sobrenatural ou violento, nem assiste a filmes desse tipo, não que eu saiba, pelo menos, e esse detalhe
não vai ajudar. Além disso, Mark Bishop não foi assassinado às três. Foi por volta das quatro. A sra. Donahue pode não se dar conta do que acaba de insinuar a respeito
do filho", diz Benton à medida que a ventania branca termina de forma tão repentina quanto começou.
Os flocos estão outra vez pequenos e gelados, rodopiando como areia sobre o asfalto e formando pequenos montes na beira da rodovia.
"Johnny estava no Biscuit com a amiga, isso é verdade", prossegue Benton, "mas, segundo ele, ficou lá até as duas, não até uma. Aparentemente, os dois vão bastante
lá, mas não estou ciente de ter um sistema rígido de ir ao Biscuit todos os sábados com ela das dez à uma."
O Biscuit fica na Washington Street, a apenas quinze minutos de caminhada de nossa casa em Cambridge, e penso nos sábados em que Benton e eu entramos no pequeno
café com cardápio escrito no quadro-negro e bancos de madeira. Pergunto-me se Johnny e sua amiga alguma vez estiveram lá quando Benton e eu estávamos presentes.
"O que a amiga diz sobre a hora em que eles saíram do café?", pergunto.
"Ela alega que se levantou da mesa por volta da uma da tarde e saiu, deixando ele sentado lá porque estava agindo de forma estranha e se recusou a ir com ela. Segundo
a declaração dela à polícia, Johnny estava falando em ir até Salem para ler sua sorte, estava falando desenfreadamente nisso e continuava sentado à mesa quando ela
saiu."
Acho interessante que Benton tenha examinado uma declaração à polícia ou conheça os detalhes do que disse uma testemunha. Seu papel não é determinar culpa ou inocência,
nem se preocupar com isso, mas avaliar se o paciente está dizendo a verdade e está apto a ir a julgamento.
"Alguém com Asperger teria dificuldade diante do conceito de leitura de cartas ou qualquer coisa dessa natureza", Benton diz, e quanto mais ele relata, mais perplexa
fico.
Benton está falando comigo como se fosse um detetive e estivéssemos trabalhando juntos no caso, ainda que seja enigmático quando se trata de Jack Fielding. Não há
nada de casual nisso. Meu marido raramente deixa escapar informação, mesmo que aparente o contrário. Quando acha que devo tomar conhecimento de alguma informação
que não pode me contar, ele descobre um jeito de fazer com que eu descubra. Quando decide que é melhor que eu não saiba, ele não me ajuda. É dessa forma frustrante
que vivemos e posso ao menos dizer que nunca fico entediada com ele.
"Johnny não consegue pensar de forma abstrata, não consegue entender metáforas. Ele é muito concreto", diz Benton.
"E as outras pessoas no café?", pergunto. "Alguém poderia confirmar o que a amiga relatou ou o que Johnny afirma?"
"Nada mais conclusivo que ele e Dawn Kincaid terem ficado lá na manhã de sábado", responde Benton, e não me recordo de tê-lo visto tão preocupado com alguém que
avaliou. "Desconheço que isso fosse uma rotina semanal e, quando Johnny confessou, vários dias já haviam se passado. É incrível como as pessoas não se lembram das
coisas, e então começam a fazer suposições."
"Tudo que você tem é o que Johnny está dizendo e agora o que a mãe dele escreveu", reitero. "Johnny diz que saiu do Biscuit às duas, então não teria tempo de ir
até Salem e cometer o assassinato por volta das quatro. Mas a mãe dele diz que saiu à uma, e aí ele teria tempo suficiente."
"Como eu disse, isso não vai ajudar. O conteúdo da carta é muito ruim para ele. Até agora, o único álibi que mostraria que a confissão é conversa fiada é a cronologia.
Mas uma hora poderia fazer toda a diferença."
Imagino Johnny erguendo-se da mesa no Biscuit por volta da uma da tarde e dirigindo-se a Salem. Dependendo do tráfego e de quando ele de fato saiu de Cambridge ou
de Somerville e seguiu rumo ao norte pela I-95, pode ter chegado à casa dos Bishop por volta das duas, duas e meia.
"Johnny tem carro?", pergunto.
"Ele não sabe dirigir."
"Um táxi, o trem? Não a balsa nesta época do ano. Só começa a funcionar na primavera, e ele teria que embarcar em Boston. Mas você está certo. Sem carro, Johnny
levaria mais tempo para chegar lá. Uma hora faria diferença para alguém que precisava procurar transporte."
"Só não entendo onde ela conseguiu esse detalhe", diz Benton. "Bom, talvez através dele. Talvez ele tenha mudado a história novamente. Johnny disse que saiu do Biscuit
às duas, não à uma, mas talvez tenha alterado esse detalhe bastante decisivo porque acha que é o que alguém quer ouvir. Mas seria esquisito, muito esquisito."
"Você esteve com ele esta manhã."
"Eu não o influenciaria a alterar um detalhe."
Benton está dizendo que o detalhe é novo e que não acredita que Johnny tenha mudado sua história no que diz respeito à hora em que deixou o café. Parece que a sra.
Donahue simplesmente cometeu um engano, mas, quando tento imaginar a situação, parece estranho.
"De todo jeito, como ele teria chegado a Salem?", pergunto.
"Ele pode ter pegado um táxi ou o trem, mas também não existem provas de que tenha feito isso. Não foi visto por ninguém, não foram encontrados recibos, nada que
prove que já esteve em Salem ou que tinha alguma ligação com a família Bishop. Não há nada a não ser a confissão", diz Benton, enquanto seus olhos se deslocam para
o espelho retrovisor. "A história dele é exatamente o que tem saído nos noticiários, e Johnny modifica os detalhes conforme as notícias e teorias mudam. Essa parte
da carta da mãe está certa. Ele papagueia os detalhes palavra por palavra. Inclusive se alguém sugere um novo cenário ou informação - se o comanda, em outras palavras.
Sugestionabilidade, vulnerabilidade à manipulação, agir de forma a gerar desconfiança são sinais inconfundíveis da síndrome de Asperger." Ele torna a olhar de relance
para o espelho. "E atenção aos detalhes, a minúcias que podem parecer esquisitas para os outros. Como a hora. Ele sempre sustentou que saiu do Biscuit às duas da
tarde. Duas e três, para ser exato. Você pergunta a Johnny que horas são ou a que horas ele fez alguma coisa e ele vai informar com a precisão de segundos."
"Então por que mudaria esse detalhe?"
"Na minha opinião, não mudaria."
"Se ele realmente quer que as pessoas acreditem que assassinou Mark Bishop, parece que o melhor seria dizer que saiu mais cedo."
"Não é que queira que as pessoas acreditem nisso. É que ele acredita nisso. Não por causa daquilo que lembra, mas por causa do que não lembra e por causa do que
tem sido sugerido."
"Por quem? Parece que Johnny confessou antes mesmo de se tornar um suspeito e ser interrogado. Portanto, não foi induzido a uma falsa confissão pela polícia, por
exemplo."
"Ele não lembra. Está convencido de que sofreu um episódio dissociativo depois que saiu do Biscuit às duas da tarde, de alguma forma chegou a Salem e matou o garoto
com uma pistola de pregos..."
"Ele não fez isso", interrompo. "Garanto. Ele não matou Mark Bishop com uma pistola de pregos. Ninguém matou."
Benton nada diz à medida que acelera, os flocos de neve pequenos novamente, parecendo brita de encontro ao carro.
"Além disso, é evidente que a sra. Donahue interpretou mal a opinião médica de Jack." Falo com convicção enquanto outra parte minha não para de se preocupar com
a forma como devemos lidar com ela. Cogito fazer o que disse Benton e não telefonar. Em vez disso, vou pedir a meu assistente administrativo, Bryce, que faça contato
com ela cedo pela manhã para dizer que lamento, mas não estou autorizada a discutir o caso de Mark Bishop ou nenhum outro. É importante que Bryce não dê a impressão
de que estou muito ocupada, de que estou impassível diante da angústia da sra. Donahue, o que me faz pensar novamente na mãe do soldado de primeira classe Gabriel,
nas coisas dolorosas que ela me disse de manhã em Dover. "Imagino que você tenha examinado o relatório da autópsia", digo a Benton.
"Examinei."
"Então você sabe que não há nada no relatório de Jack que mencione uma pistola de pregos, só que ferimentos causados por pregos, que penetraram o cérebro, foram
a causa da morte." Concluo que não posso permitir que Bryce faça uma chamada como essa em meu nome. Eu mesma vou telefonar e pedir à sra. Donahue que não entre em
contato comigo novamente. Vou enfatizar que é para sua própria proteção. Então me sinto cheia de dúvidas, indo e voltando a respeito do que fazer, já não tão segura
de mim. Sempre tive confiança em minha capacidade de lidar com gente inconsolável, despojada e furiosa, mas não entendo o que aconteceu esta manhã. A sra. Gabriel
me chamou de preconceituosa. Ninguém nunca me chamou de preconceituosa.
"Uma pistola de pregos não foi descartada pelas pessoas que contam", informa Benton. "Inclusive Jack."
"Acho isso quase impossível de acreditar."
"Foi o que ele andou dizendo."
"É a primeira vez que ouço isso."
"Jack disse para todo mundo. Não me interessa o que está escrito no relatório dele, na papelada que você viu", repete Benton enquanto olha pelo retrovisor.
"Por que ele diria algo diferente dos relatórios?"
"Estou simplesmente retransmitindo a você que sei com certeza que ele andou dizendo que uma pistola de pregos foi a arma."
"Dizer que foi usada uma pistola de pregos é absolutamente contrário a provas científicas e médicas." No espelho lateral, vejo faróis atrás de nós. "Uma pistola
de pregos deixa marcas consistentes com um único golpe mecanizado, semelhante à impressão de um gatilho na cápsula de um cartucho. Em vez disso, o que temos nesse
caso são as marcas de um instrumento sobre pregos, que são consistentes com um martelo de mão, e havia marcas de martelo no couro cabeludo e no crânio do garoto,
além de contusões de padrão compatível. As pistolas de pregos muitas vezes deixam um resíduo semelhante ao de um tiro, mas os ferimentos de Mark Bishop deram negativo
para chumbo e bário. Não foi usada uma pistola de pregos e estou francamente surpresa se o que você está insinuando é que a polícia e o promotor acreditam no contrário."
"Não é difícil entender algumas coisas em que as pessoas optam por acreditar nesse caso", diz Benton e acelera, atingindo o limite de velocidade.
Torno a olhar para o espelho lateral e os faróis estão muito mais próximos. Luzes brilhantes branco-azuladas resplandecem. Um SUV grande, com faróis de xenônio e
de neblina. Marino, penso. E atrás dele, espero, está Lucy.
"E querem acreditar que a confissão de Johnny é verdadeira, como eu disse", prossegue Benton. "Querem achar que foi um ataque de surpresa, que Mark Bishop não imaginava
que isso ia acontecer, ou teria lutado. Ninguém quer pensar que uma criança foi subjugada e sabia o que ia acontecer enquanto alguém enfiava pregos em seu crânio
com um martelo, pelo amor de Deus."
"Ele não tinha nenhum ferimento de defesa, não havia evidências de luta ou de sujeição. Está no relatório de Jack. Tenho certeza de que você viu, e tenho certeza
que ele explicou tudo isso ao promotor, à polícia."
"Quem me dera você tivesse feito a autópsia." Benton desvia o olhar para os espelhos.
"O que exatamente Jack andou dizendo além do que li? Além da possibilidade da pistola de pregos?"
Benton não responde.
"Talvez você não saiba", acrescento então, mas acho que sabe.
"Ele disse que não podia descartar a pistola de pregos", esclarece Benton. "Disse que não é possível afirmar de forma definitiva. Disse isso depois que foi questionado
por causa do que Johnny alegou na confissão. Jack foi específica e diretamente questionado se uma pistola de pregos poderia ter sido usada."
"A resposta é definitivamente não."
"Ele garantiu que não era possível dizer de forma definitiva nesse caso. Que pode ter sido uma pistola de pregos."
"Estou te dizendo que não é possível, e que é possível afirmar de forma definitiva", retruco. "E essa foi a primeira vez que ouvi falar de uma pistola de pregos,
a não ser pelo que foi publicado na internet, que descartei, como descarto sempre, a menos que confie na fonte."
"Jack sugeriu que, se você pressionasse uma pistola de pregos contra a cabeça de alguém, obteria uma ferida de contato similar à produzida pelo disparo de uma arma
de fogo. E é possível que seja o que observamos no couro cabeludo e no tecido subjacente. E isso explicaria por que não há evidência de luta ou de que o garoto soubesse
o que estava acontecendo."
"Você não obteria uma ferida de contato similar ao disparo de uma arma de fogo e não é possível", retruco. "Os ferimentos que vi em fotografias são marcas de martelo,
e só porque não havia evidência de luta não significa que o menino não tenha sido de alguma forma coagido, persuadido ou manipulado no sentido de cooperar. Parece
que certas partes estão optando por ignorar as provas do caso por causa daquilo em que querem acreditar. Isso é extremamente perigoso."
"Acho que é Fielding quem está ignorando as provas do caso. Talvez intencionalmente."
"Meu Deus, Benton. Ele pode ser um monte de coisas..."
"Ou é negligência. Um ou outro", diz Benton e creio que ele tem alguma coisa em mente. "Escute. Você fez o melhor que pôde nos últimos seis meses."
"O que isso quer dizer?" Sei o que quer dizer. Exatamente o que temi todos os dias em que estive fora.
"Lembra quando ele era seu amigo na idade das trevas, em Richmond?" Benton está se aproximando de uma zona proibida, mesmo que não saiba disso. "Desde o primeiro
dia, ele não suportava trabalhar com crianças, isso é a mais absoluta verdade, como você já apontou. Quando entrava uma, ele desaparecia no ato, às vezes durante
dias seguidos. E você circulava de carro, tentando encontrar Jack, indo à casa dele, ao seu bar preferido, à academia ou ao tae kwon do, e ele bebia até cair ou
quase matava alguém de porrada. Não que algum de nós goste de lidar com crianças mortas, pelo amor de Deus, mas ele tinha um problema sério."
Eu deveria ter incentivado Fielding a ingressar na patologia cirúrgica, a trabalhar em algum laboratório hospitalar, fazendo biópsias. Em vez disso, fui sua mentora
e o promovi.
"Mas ele pegou o caso de Mark Bishop", diz Benton. "Poderia ter passado o garoto para um dos outros médicos. Só espero que ele não tenha mentido; acima de tudo,
realmente espero que ele não tenha feito isso." Mas Benton acha que Fielding está mentindo. Dá para notar.
"Acima do quê?", pergunto enquanto olho para o espelho lateral, perguntando-me por que Marino está colando no nosso para-choque.
"Espero que não tenha sido incentivado a sugerir a possibilidade da pistola de pregos quando ele sabe que é impossível." Benton tem o hábito de olhar para os espelhos
sem mover a cabeça. Devido a todos os anos de trabalho como agente secreto, vigiando as próprias costas. Certos hábitos nunca desaparecem.
"Quem?", pergunto.
"Não sei."
"Você parece saber. Mas não vai me dizer." Não adianta pressioná-lo. Se não diz, é porque não pode. Vinte anos dessa dança e nunca fica mais fácil.
"Os policiais querem o caso resolvido, isso é certo", diz Benton. "Querem que a pistola de pregos seja a arma porque foi o que Johnny confessou e porque é mais fácil
de lidar com essa ideia do que com a do martelo. Mas me preocupo com a influência sobre Jack."
"Você sabe que alguém o influenciou? Ou é só uma hipótese?"
"Acho que ele está influenciando as pessoas", diz Benton em seguida, e é isso o que realmente pensa.
"Queria que Marino saísse da nossa cola. Esses faróis estão me cegando. O que ele está fazendo?"
"Não é Marino", diz Benton. "Ele não tem faróis assim e tem placa dianteira. Esse carro não. É de um estado que não exige placa dianteira, ou então ela foi removida
ou coberta."
Viro-me para ver e os faróis ferem meus olhos. O utilitário está a pouca distância de nós.
"Talvez seja alguém tentando ultrapassar", reflito em voz alta.
"Vamos ver. Mas acho que não." Benton reduz a velocidade e o utilitário faz o mesmo. "Então vou te obrigar a nos ultrapassar, o que acha?" Ele está falando com o
motorista atrás de nós. "Pegue o número da placa traseira quando ele passar."
Quase paramos, e o utilitário também. Dá uma ré rápida e uma guinada de cento e oitenta graus, seguindo em sentido contrário, rabeando à medida que acelera noite
adentro na rodovia coberta de neve. Não consigo distinguir a placa na traseira nem qualquer detalhe do utilitário, exceto que é escuro e grande.
"Por que alguém estaria nos seguindo?", pergunto a Benton como se ele soubesse a resposta.
"Não faço ideia do que tenha sido isso."
"Alguém estava nos seguindo. Foi isso. Muito de perto por causa do tempo, porque a visibilidade está tão ruim que você tem que ficar perto ou pode perder a pessoa
de vista se ela fizer uma curva."
"Algum idiota", diz Benton. "Ninguém sofisticado. A menos que quisesse que a gente soubesse, ou tenha pensado que não íamos perceber."
"Como é possível? Acabamos de passar por uma nevasca. De onde esse carro saiu? Do nada?"
Benton pega seu telefone e tecla um número.
"Onde você está?", pergunta a quem quer que tenha atendido. Após uma pausa, acrescenta: "Um utilitário grande com faróis de neblina e xenônio, sem placa dianteira,
colado na gente. Isso mesmo. Fez a volta e disparou em sentido contrário. Isso, na Rota Dois. Algum carro assim passou por você? Bom, é estranho. Ele deve ter entrado
em algum desvio. Bom, se... Certo. Obrigado."
Benton recoloca o telefone no console e explica: "Marino está alguns minutos atrás de nós, e Lucy está logo atrás dele. O utilitário desapareceu. Se alguém foi idiota
o suficiente para nos seguir, vai tentar outra vez e vamos descobrir. Se o objetivo é nos intimidar, então quem quer que seja não conhece o alvo".
"Agora nós somos alvos."
"Alguém mais esperto não tentaria isso."
"Por sua causa."
Benton não responde. Mas o que eu disse é verdade. Quem sabe alguma coisa sobre Benton estaria ciente do quão imprudente é achar que ele pode ser intimidado. Sinto
sua rispidez, sua aura dura como aço. Sei o que ele é capaz de fazer quando ameaçado. Ele e Lucy são parecidos. Recebem com prazer o confronto. Benton só é mais
calmo, mais calculista e contido que minha sobrinha.
"Erica Donahue." É o primeiro pensamento que me vem à mente. "Ela já mandou uma pessoa nos interceptar e duvido que perceba quão perigoso é o bonito e charmoso psicólogo
de Harvard que atende o filho dela."
Benton não sorri. "Isso não tem lógica."
"Quantas pessoas sabem do nosso paradeiro?" Não faz sentido tentar aliviar o clima, que é tenso. Benton tem seu próprio esquema de vigilância. É diferente do esquema
de Lucy, e ele esconde muito melhor. "Ou do meu paradeiro. Quantas pessoas sabem?", continuo. "Não só a mãe ou o motorista. O que Jack fez?"
Benton torna a acelerar e não responde.
"Você não acha que Jack tem algum motivo para nos intimidar, não é? Ou tentar", digo então.
Benton não responde e seguimos em silêncio; não há sinal do utilitário com faróis de neblina e xenônio.
"Lucy acha que ele está bebendo muito." Benton por fim recomeça a falar. "Mas você deve ouvir isso dela. E de Marino." Seu tom de voz é monótono e percebo falta
de clemência nele. Não sente nada além de desprezo por Fielding, mesmo que silencie a respeito na maioria das vezes.
"Por que Jack ia mentir? Por que tentaria influenciar alguém?" Estou de volta a esse tópico.
"Aparentemente, ele tem chegado tarde e desaparecido, e está com problemas de pele outra vez." Benton não responde minha pergunta. "Espero que não esteja tomando
esteroides, especialmente na idade dele."
Abro mão da defesa habitual de que quando Fielding está intensamente estressado tem problemas de eczema e alopecia que não consegue evitar. Ele sempre foi obcecado
pelo próprio corpo, é um caso clássico de vigorexia ou transtorno dismórfico muscular, e muito provavelmente isso pode ser atribuído ao abuso sexual que sofreu quando
menino. Seria absurdo percorrer a lista, e não vou fazê-lo dessa vez. Para variar. Continuo a inspecionar o espelho lateral. Mas os faróis de xenônio e neblina se
foram.
"Por que ele ia mentir sobre esse caso?", torno a perguntar. "Por que ia querer influenciar qualquer um?"
"Não consigo imaginar como é possível fazer uma criança ficar parada para aquilo", diz Benton, e ele está pensando na morte de Mark Bishop. "A família estava em
casa e diz que não ouviu gritos, não ouviu nada. Eles alegam que Mark estava brincando num minuto e no outro estava caído de bruços no quintal. Estou tentando visualizar
o que aconteceu e não consigo."
"Tudo bem. Vamos conversar sobre isso, já que você não vai responder minha pergunta."
"Tentei imaginar o ocorrido, tentei reconstruir a situação e não consegui. A família estava em casa. Não é um quintal grande. Como é possível que ninguém tenha visto
uma pessoa ou ouvido alguma coisa?"
Seu rosto está sombrio quando passamos pelo Lanes & Games, onde Marino joga boliche. Como se chama a equipe? Não poupe ninguém. Seus novos amigos, policiais e militares.
"Pensei que já tivesse visto tudo, mas não consigo imaginar como aconteceu", Benton continua nesse assunto porque não pode ou não vai me falar o que de fato tem
em mente a respeito de Fielding.
"Uma pessoa que sabia exatamente o que estava fazendo." Visualizo a cena. Imagino em detalhes penosos o que o assassino executou. "Alguém que conseguiu deixar o
garoto à vontade, talvez o tenha seduzido para que fizesse o que pedia. Talvez Mark tenha pensado que aquilo fazia parte de um jogo, uma fantasia."
"Um estranho apareceu no quintal e fez com que o menino participasse de um jogo que envolvia ter pregos martelados em sua cabeça - ou fingir que isso estava ocorrendo,
o que é mais provável", reflete Benton. "Talvez. Mas um estranho? Não sei. Senti falta de conversar com você."
"Não foi um estranho, ou pelo menos não para Mark. Desconfio que tenha sido alguém de quem ele não tinha motivos para desconfiar - não importa o que a pessoa tenha
lhe pedido para fazer." Tomo por base o que sei a respeito de seus ferimentos ou da ausência deles. "O corpo não mostrava sinais de que ele estivesse aterrorizado
ou em pânico, de alguém tentando lutar ou fugir. Acho que é provável que estivesse familiarizado com o assassino e se sentisse inclinado a cooperar por algum motivo.
Também senti falta de conversar com você, mas estou aqui agora e você não está conversando comigo."
"Estou conversando com você."
"Um dia desses vou colocar pentotal sódico na sua bebida. E descobrir tudo que você nunca me contou."
"Se funcionasse, eu pagaria na mesma moeda. Mas então nós dois teríamos problemas sérios. Você não quer saber tudo. Ou não deve. E eu provavelmente também não."
"Quatro da tarde de 30 de janeiro." Estou pensando em quão escuro estava quando Mark foi assassinado. "A que horas o sol se pôs? Como estava o tempo?"
"Estava completamente escuro às quatro e meia, frio, nublado", diz Benton, que, se estivesse investigando o caso, teria se informado sobre esses detalhes antes de
qualquer outra coisa.
"Estou tentando lembrar se havia neve no chão."
"Não em Salem. Muita chuva por causa do porto. A água aquece o ar."
"Então ninguém recuperou pegadas no quintal dos Bishop."
"Não. Às quatro estava escurecendo e o quintal estava na sombra dos arbustos e árvores", informa Benton como se fosse o detetive no caso. "De acordo com a família,
a sra. Bishop, a mãe, saiu às quatro e vinte para chamar Mark para entrar e encontrou o menino caído de bruços em cima das folhas."
"Por que estamos supondo que ele tinha acabado de ser morto quando a mãe o encontrou? Os achados físicos com certeza não permitem precisar a hora da morte exatamente
às quatro da tarde."
"Pelo fato de que os pais se recordam de ter olhado pela janela aproximadamente às quinze para as quatro e terem visto Mark brincando", esclarece Benton.
"Brincando? O que isso quer dizer exatamente? Que tipo de brincadeira?"
"Não sei ao certo." Benton e sua atitude evasiva outra vez. "Eu gostaria de conversar com a família." Desconfio que já tenha conversado. "Há um monte de detalhes
faltando. Mas ele estava brincando sozinho no quintal e, quando a mãe olhou pela janela por volta das quatro e quinze, não viu o filho. Então saiu para chamar o
garoto e o encontrou. Tentou acordar o menino, depois o pegou e levou correndo para dentro. Ligou para a emergência exatamente às quatro e vinte e três, estava histérica,
disse que o filho não estava se mexendo nem respirando, que estava preocupada que ele estivesse engasgado."
"Por que ela achou que ele pudesse estar engasgado?"
"Aparentemente, antes de sair para brincar, ele enfiou no bolso algumas balas que tinham sobrado do Natal. Balas duras, e a última coisa que ela disse ao filho quando
ele saiu porta afora foi para não chupar enquanto estivesse correndo ou pulando."
Não posso evitar pensar que esse é o tipo de detalhe que Benton teria obtido dos Bishop em pessoa. Conversou com eles.
"E não sabemos do que estava brincando? Ele estava sozinho, correndo e pulando?", pergunto.
"Acabei envolvido nesse caso depois que Johnny confessou." Benton está sendo evasivo novamente. Por algum motivo, não quer conversar a respeito do que Mark estava
fazendo no quintal. "A sra. Bishop disse mais tarde à polícia que não viu ninguém na área, que não havia sinais de que tivesse entrado na propriedade e que não sabia,
até os médicos o examinarem, que ele tinha sido assassinado. Os pregos foram martelados até o fundo; o cabelo escondeu e não havia sangue. E os sapatos desapareceram.
Ele estava com tênis Adidas enquanto brincava no quintal. Eles sumiram e ainda não apareceram."
"Um menino brincando no quintal perto de escurecer. Mais uma vez, é difícil imaginar que fosse cooperar com um estranho. A menos que fosse alguém que representava
alguma coisa em que ele instintivamente confiava." Continuo a defender essa tese.
"Um bombeiro. Um policial. O cara que dirige o caminhão de sorvete. Esse tipo de coisa", Benton reflete com facilidade, como se fosse seguro conversar sobre isso.
"Ou pior. Um membro da própria família."
"Um membro da família mataria o garoto de forma tão sádica e depois tiraria seus sapatos? Tirar os sapatos dá a ideia de que o assassino queria uma lembrança."
"Ou queria que pensassem nisso", diz Benton.
"Não sou psicóloga forense", digo então. "Estou desempenhando seu papel e não devia fazer isso. Eu gostaria de ver onde aconteceu. Jack não foi à cena do crime e
devia ter feito uma visita retrospectiva." Meu humor piora quando digo isso. Ele não foi à cena de Mark Bishop e não foi a Norton's Woods.
"Ou outro garoto. Crianças jogando um jogo que acabou se tornando mortal", diz Benton.
"Se foi outro garoto", retruco, "estava muito bem informado em termos anatômicos."
Visualizo as fotografias da autópsia, a cabeça do garoto com o couro cabeludo iluminado por trás. Visualizo as tomografias computadorizadas, imagens tridimensionais
de quatro pregos de ferro de cinco centímetros penetrando o cérebro.
"Quem quer que tenha feito isso não podia ter escolhido posições mais letais para introduzir os pregos", explico. "Três atravessaram o osso temporal acima da orelha
esquerda e penetraram a ponte. Um foi pregado na parte posterior do crânio, direcionado para o alto, então lesionou a junção cérvico-medular, ou a medula cervical
superior."
"Em quanto tempo ele morreu?"
"Quase instantaneamente. Só o prego na parte posterior da cabeça o teria matado em minutos, tanto quanto uma pessoa leva para morrer quando não consegue mais respirar.
Lesões nos níveis C-1 e C-2 da medula espinhal interferem na respiração. A polícia, o promotor, um corpo de jurados, por sinal, teriam dificuldade em acreditar que
outra criança poderia ter feito isso. Parece que causar a morte, a morte quase imediata, era a intenção, e o ato foi premeditado, a menos que houvesse martelo e
pregos na cena do crime, no quintal ou na casa e, segundo todos os registros, não havia. Certo?"
"Havia um martelo. Mas que casa não tem um martelo? E as marcas da ferramenta não coincidem. Você sabe disso pelos relatórios do laboratório. Não havia pregos como
os que mataram o menino. Não foram encontrados na residência da família, nem uma pistola de pregos", informa Benton.
"Eram pregos em L, usados para pregar assoalhos."
"Segundo a polícia, nenhum prego desses foi encontrado na residência", repete ele.
"Ferro, não aço inoxidável." Prossigo com detalhes das fotografias, dos relatórios do laboratório, e simultaneamente ouço a mim mesma, estou ciente de que examino
o caso com Benton como se fosse meu. Como se fosse dele. Como costumávamos investigar casos no início do relacionamento. "Com traços de ferrugem apesar da camada
protetora de zinco, o que sugere que não eram novos", continuo. "Que talvez tivessem sido expostos a umidade, possivelmente água salgada."
"Não havia nada assim na cena do crime. Nenhum prego em L, absolutamente nenhum prego de ferro", diz Benton. "O pai andou espalhando o boato da pistola de pregos,
pelo menos publicamente."
"Publicamente. O que significa que ele contou à imprensa", presumo.
"Isso."
"Mas quando? Ele contou à imprensa quando? É isso que importa. De onde saiu o boato e quando. Sabemos que isso começou com o pai, e, se foi assim, é significativo.
Pode implicar que está oferecendo um álibi, sugerindo uma arma que não possui, que está tentando conduzir a polícia na direção errada."
"Concordo", diz Benton. "O sr. Bishop pode ter sugerido isso aos meios de comunicação, mas a questão é: alguém sugeriu isso a ele primeiro?"
Detecto mais sutilezas. Ocorre-me que Benton sabe como o boato da pistola de pregos começou. Sabe quem o originou e não é difícil adivinhar o que ele está insinuando.
Jack Fielding está tentando influenciar as pessoas sobre o caso. Talvez esteja por trás do boato que agora está em todos os noticiários.
"Devíamos fazer uma retrospectiva. Estou tentando lembrar o nome do detetive em Salem." Há tanto por fazer, tanta coisa que deixei escapar. Mal sei por onde começar.
"Saint Hilaire. James."
"Não conheço." Sou uma estranha em minha própria vida.
"Ele está convencido da culpa de Johnny Donahue e estou realmente preocupado que seja só uma questão de tempo até que Johnny seja acusado de assassinato em primeiro
grau. Precisamos agir rápido. Quando Saint Hilaire ler o que a sra. Donahue escreveu, as coisas vão piorar. Ele vai ficar mais convencido da culpa de Johnny. Temos
que fazer alguma coisa rápido", diz Benton. "Eu não devia me preocupar, mas me preocupo. Johnny não fez isso e nenhum júri vai gostar dele. Ele é inconveniente.
Interpreta mal as pessoas e elas o interpretam mal. Acham que é insensível e arrogante. Ri de coisas que não são engraçadas. É rude e obtuso, e não faz ideia disso.
A coisa toda é absurda. Uma caricatura. Provavelmente, um dos exemplos de confissão falsa mais claros que já vi."
"Então por que continua em uma unidade fechada no McLean?"
"Ele precisa de tratamento psiquiátrico, mas não, não devia estar trancafiado em uma unidade com pacientes psicóticos. Essa é minha opinião, mas ninguém me dá ouvidos.
Talvez você possa falar com Renaud e Saint Hilaire e eles te ouçam. Vamos até Salem e analisamos o caso com eles. Enquanto estivermos lá, damos uma olhada em tudo."
"E o colapso nervoso de Johnny?", pergunto. "Se acreditarmos na mãe, ele estava bem nos primeiros três anos em Harvard e de repente teve que ser hospitalizado. Quantos
anos Johnny tem?"
"Dezoito. Voltou a Harvard no outono passado para começar o último ano e estava visivelmente alterado", explicou Benton. "Verbal e sexualmente agressivo e cada vez
mais agitado e paranoico. Com o pensamento desorganizado e as percepções distorcidas. Sintomas semelhantes à esquizofrenia."
"Drogas?"
"Não existe absolutamente nenhuma evidência. Ele foi submetido a exames quando confessou o assassinato e deram negativo; até seu cabelo deu negativo para drogas
e álcool. Sua amiga da pós, Dawn Kincaid, está no MIT, e ela e Johnny estavam trabalhando juntos em um projeto. Ela ficou tão preocupada que por fim ligou para a
família dele. Isso foi em dezembro. Então, há uma semana, Johnny foi internado no McLean com uma facada na mão e disse ao psiquiatra que tinha assassinado Mark Bishop,
alegando que pegou o trem para Salem levando uma pistola de pregos na mochila. Disse que precisava de um sacrifício humano para se livrar de uma entidade maligna
que tinha assumido o controle de sua vida."
"Por que pregos? Por que não outra arma?"
"Tem alguma coisa a ver com os poderes mágicos do ferro. E grande parte disso apareceu no noticiário."
Eu me lembro de ter visto alguma coisa na internet sobre osso do diabo e menciono o fato.
"Exatamente. É como o ferro era chamado no antigo Egito", retruca Benton. "Vendem osso do diabo em algumas lojas em Salem."
"Dispostos em X. A pessoa carrega em uma bolsa de cetim vermelho. Já vi em algumas lojas de bruxaria. Mas não o mesmo tipo de pregos. Os das lojas de bruxaria parecem
mais cravos, têm que parecer antiguidade. E duvido que sejam tratados com zinco, que sejam galvanizados."
"Supostamente, o ferro protege contra espíritos malignos, daí a explicação dele para ter usado pregos de ferro. E a história não tem nada de original; como você
já sinalizou, foi uma das teorias que apareceram em todos os noticiários nos dias que antecederam a confissão dele do assassinato." Benton faz uma pausa, depois
acrescenta: "Sua própria repartição sugeriu a magia negra como motivador, aparentemente por causa da ligação com Salem".
"Não é nosso trabalho apresentar teorias. Nosso trabalho é sermos imparciais e objetivos, então não sei o que você está querendo dizer quando afirma que sugerimos
tal coisa."
"Só estou dizendo que isso foi discutido."
"Com quem?" Mas sei a resposta.
"Jack sempre foi irresponsável. Mas parece ter perdido o pouco controle que tinha", diz Benton.
"Acho que já constatei que Jack é um problema que não posso mais tentar resolver. Sobre o que era o projeto?" Volto ao que Benton mencionou a respeito da amiga de
Johnny Donahue no MIT. "E qual é o curso dele?"
"Ciências da computação. Desde o início do verão passado, ele estava estagiando na Otwahl Technologies em Cambridge. Como salientou a mãe, Johnny é excepcionalmente
talentoso em algumas áreas..."
"Fazendo o quê?" Visualizo a sólida fachada de concreto que se ergue como a represa Hoover a pouca distância do local por onde acabamos de passar, a parte de Cambridge
onde o utilitário com faróis de xenônio nos seguiu antes de desaparecer.
"Engenharia de software para UGVs e tecnologias relacionadas", informa Benton como se não fosse nada demais porque ele não sabe o que faço no que concerne aos UGVs.
Veículos terrestres não tripuláveis. Robôs militares como o protótipo MORT no apartamento do homem morto.
"O que está acontecendo aqui, Benton?", pergunto, carregada de sentimento. "Por Deus, o que está acontecendo?"
7
A tempestade aquietou, o vento está muito mais brando agora e a neve já tem vários centímetros de profundidade. O tráfego é constante na Memorial Drive, sendo o
clima de pouca importância para as pessoas acostumadas ao inverno de New England.
O telhado das repúblicas e os campos esportivos do MIT estão cobertos por um branco compacto no lado esquerdo da rodovia e, no outro lado, a neve flutua como fumaça
na ciclovia e no ancoradouro e desaparece no negrume gelado do Charles. Mais a leste, onde o rio deságua no porto, o horizonte de Boston exibe formas retangulares
fantasmagóricas e manchas de luz na noite leitosa; não há tráfego aéreo sobre Logan, nenhum avião à vista.
"Devíamos encontrar Renaud logo que possível - quanto mais cedo, melhor." Benton acha que o promotor distrital de Essex, Paul Renaud, deveria saber que talvez haja
algo mais na confissão de Johnny Donahue e que, de alguma forma, o aluno do último ano da Harvard e o morto em minha geladeira talvez estejam relacionados. "Mas
e se isso envolver a DARPA?", acrescenta Benton.
"A Otwahl é financiada pela DARPA. Mas não é a DARPA, não é o Departamento de Defesa. É civil, uma indústria privada internacional", respondo. "Mas é certo que está
intimamente ligada ao governo através de subvenções substanciais, dezenas de milhões, talvez muito mais que isso, desde a invenção dos MORT."
"A questão é no que mais eles estão concentrados, agora que podem ser importantes para essa história toda."
"Honestamente, não sei. Mas o óbvio vai dar para perceber só de olhar para o lugar." Se seguíssemos em direção a Hanscom, passaríamos a menos de dois quilômetros
da Otwahl Technologies e das instalações de teste em supercondutividade contíguas, um complexo gigantesco e autônomo com sua própria força policial particular. "Nêutrons,
muito provavelmente, e como se aplicam às novas tecnologias."
"A robótica", diz Benton.
"Robôs, nanotecnologia, engenharia de software, biologia sintética. Lucy sabe alguma coisa a respeito."
"Provavelmente mais que alguma coisa."
"Conhecendo minha sobrinha, sim. Muito mais que alguma coisa."
"Eles provavelmente estão criando humanoides, para nunca ficarmos sem soldados."
"Talvez estejam." Não estou brincando.
"E Briggs sabia sobre o robô no apartamento do sujeito." Benton está se referindo ao apartamento do morto. "Por causa dos vídeos? O que mais? Fico me perguntando
se ele disse alguma coisa a Jack, se telefonou e o alertou ao fazer perguntas."
Dou mais explicações, fazendo um relato detalhado do homem e das gravações que Lucy descobriu - gravações que Marino, de forma inapropriada, enviou a Briggs por
e-mail antes que eu tivesse a chance de examiná-las. Quando pude vê-las, foi apenas superficialmente, a caminho do Terminal Aéreo Civil em Dover. Conto a Benton
tudo a respeito do malfadado robô de seis pernas, o Transporte de Remoção Operacional Funerária, conhecido como MORT, perto da porta, e o faço recordar as controvérsias,
as desavenças que tive com alguns políticos e especialmente com Briggs sobre o uso da máquina para recuperar baixas no teatro de operações ou em qualquer outro lugar.
Descrevo a crueldade, o horror de uma estrutura de metal movida a combustível, que mais parecia uma motosserra, bamboleando através do terreno para recuperar seres
humanos feridos ou mortos, segurando-os com pegadeiras que lembravam a mandíbula de uma formiga-buldogue. "Pense na mensagem que isso transmite se você está morrendo
no campo de batalha e é essa máquina que seus companheiros enviam para te buscar", explico. "E aos conhecidos das vítimas que a veem no noticiário?"
"Você usou uma linguagem exaltada como essa quando testemunhou perante um subcomitê do Senado responsável pelas verbas de defesa", presume Benton.
"Não lembro o que disse exatamente."
"Tenho certeza de que não fez amigos na Otwahl. Provavelmente tem inimigos ali que nem conhece."
"Aquilo não teve nada a ver com a Otwahl nem com qualquer outra empresa de tecnologia. Tudo que fizeram foi criar um veículo robótico não tripulado. Foi o Pentágono
que propôs a máquina. Acho que, originalmente, o MORT foi criado para ser um packbot, mais nada. Eu nem lembrava que a Otwahl era a desenvolvedora até esta noite.
Eles nunca foram uma preocupação minha. Meu desentendimento foi com o Pentágono, e eu tinha que me manter firme." Quase digo dessa vez. Mas me seguro. Benton nada
sabe a respeito da vez em que não me mantive firme.
"Inimigos que não esqueceram. Esse tipo de inimigo nunca esquece. Lamento não ter participado de tudo isso quando estava acontecendo", desculpa-se Benton, pois não
estava presente quando fiz inimigos em Capitol Hill. Ele estava participando de um programa de proteção a testemunha e não podia me dar opiniões, conselhos ou mesmo
garantir que não estava morto. "Você deve ter arquivos sobre o assunto, registros da época."
"Por quê?"
"Eu queria dar uma olhada, para me inteirar da situação. Talvez explique certas coisas."
"Que coisas?"
"Eu queria dar uma olhada no que você tem sobre aquela época", repete Benton.
Transcrições do meu testemunho, gravações de vídeo dos segmentos que foram ao ar na C-SPAN: o que tenho estaria em meu cofre no nosso porão de Cambridge - junto
com certos itens que não quero que ele veja. Uma grossa pasta sanfonada cinza e fotografias que bati com minha própria câmera. Quadrados de cartolina branca manchados
de sangue, improvisados antes do dia dos kits de coleta de DNA nos cartões FTA, porque se o sangue seca ao ar pode durar para sempre e eu sabia para onde se encaminhava
a tecnologia. Envelopes brancos simples com pedaços de unha, pelos pubianos e cabelo. Esfregaços orais, anais e vaginais, calcinhas cortadas, rasgadas e ensanguentadas.
Uma garrafa de Chablis vazia, uma lata de cerveja. Materiais que contrabandeei de outro continente a meio mundo de distância mais de duas décadas atrás, provas que
não deveria possuir, itens que não deveria ter testado em particular, mas testei. Julgo seriamente que se Benton tivesse conhecimento dos casos da Cidade do Cabo,
talvez não se sentisse da mesma forma com relação a mim.
"Você conhece o ditado: a vingança é um prato que se come frio", continua ele. "Ferrou um projeto multimilionário gigantesco, uma joint venture entre o Departamento
de Defesa e a Otwahl Technologies, irritou muita gente e, ainda que alguns anos tenham se passado, desconfio que exista gente lá que não esqueceu, mesmo que você
tenha esquecido. E agora está aqui, trabalhando com o Departamento de Defesa no quintal da Otwahl. A oportunidade perfeita para planejar a vingança, para dar o troco."
"Dar o troco? Um homem que morre em Norton's Woods é o troco?"
"Só acho que devíamos saber com quem estamos lidando."
Então paramos de conversar, porque chegamos à ponte que liga Cambridge a Boston, a Mass Ave, a ponte de Harvard ou a ponte do MIT, como dizem os moradores, dependendo
de quem preferem. Logo adiante, meu centro de operações ergue-se como um farol, em forma de silo com uma cúpula de vidro no topo, sete andares ladeados por titânio
reforçado com aço. Na primeira vez que Marino viu o CFC, resolveu que parecia uma bala dundum e, na escuridão repleta de neve, acho que parece mesmo.
Saindo da Memorial Drive e nos afastando do rio, pegamos a primeira à esquerda e entramos na área de estacionamento, iluminada por lâmpadas solares de segurança
e circundada por uma cerca revestida de PVC preto que não pode ser escalada nem cortada. Retiro um controle remoto da bolsa, pressiono um botão para abrir o alto
portão e avançamos sobre marcas de pneus quase completamente cobertas de pó branco recente. Os carros de Anne e Ollie estão aqui, estacionados perto das vans de
carga e dos utilitários de tração integral. Deveria haver quatro, mas um deles está fora desde antes de começar a nevar, provavelmente o do investigador médico-legal
de plantão.
Pergunto-me quem está de serviço hoje e por que saiu em um de nossos veículos. Está em alguma cena de crime ou em casa? Para além da cerca, há prédios de laboratório
que pertencem ao MIT, em vidro e tijolo, com antenas e parabólicas de rádio no telhado, as janelas às escuras, exceto por algumas aleatórias que brilham fracamente,
como se alguém tivesse deixado uma luminária de mesa ou abajur aceso. A neve risca a noite e ressoa como chuva forte enquanto Benton para perto do meu prédio, no
espaço destinado ao diretor, próximo à vaga de Fielding, que está vazia e cheia de neve.
"Podemos parar na entrada de serviço", diz Benton, com ar esperançoso.
"Seria um pouco antipático, já que ninguém mais pode", retruco. "E não é permitido de qualquer forma. Só para coletas e entregas."
"Dover te estragou. Vou ter que bater continência?"
"Só em casa."
Saltamos; a neve chega aos tornozelos das minhas botas e não compacta embaixo delas porque faz muito frio; os flocos são miúdos e gelados. Insiro um código em um
teclado numérico ao lado de uma porta de enrolar automática, que começa a se erguer com ruído enquanto Marino e Lucy entram no estacionamento. A área de recebimento
parece um pequeno hangar pintado com tinta epóxi branca; o teto é equipado com um guindaste monotrilho, um levantador motorizado para deslocar corpos grandes demais
para tratamento manual. No interior, há uma rampa que conduz a uma porta de metal e, estacionada a um lado, acha-se nossa van branca para transporte de corpos, o
que em Dover chamamos de caminhão do pão, destinada a transportar até seis corpos em macas ou caixas de transporte e servir de laboratório criminal móvel quando
necessário.
Enquanto espero por Marino e Lucy, lembro que não estou vestida para New England. Minha jaqueta tática era perfeitamente adequada em Delaware, mas agora estou gelada.
Tento não pensar em como seria bom sentar diante da lareira com um uísque escocês single malt ou um bourbon de produção limitada para conversar com Benton sobre
outras coisas além de acontecimentos trágicos, traição e inimigos com boa memória. Para fugir de todos. Quero beber e conversar de forma honesta com meu marido,
deixar de lado os jogos e subterfúgios, sem ficar me perguntando o que ele sabe. Anseio por um período normal com ele, mas não sabemos o que é isso. Até mesmo quando
fazemos amor temos nossos segredos e nada é normal.
"Nenhuma novidade a não ser Lawless." Marino responde uma pergunta que ninguém fez enquanto a porta automática desce ruidosamente atrás de nós. "Ele enviou um e-mail
com fotos da cena - finalmente. Mas disse que não tiveram sorte com o cachorro. Ninguém ligou para dar parte de um galgo perdido."
"Que galgo?", pergunta Benton.
Estive ocupada demais descrevendo o MORT e não mencionei outras coisas que vi nos vídeos. Sinto-me ridícula. "Norton's Woods", respondo. "Um galgo preto e branco
chamado Sock que, ao que tudo indica, fugiu enquanto os paramédicos estavam ocupados com nosso caso."
"Como você sabe que o nome dele é Sock?"
Explico enquanto mantenho o polegar sobre o sensor de vidro da fechadura biométrica para que escaneie minha digital. Abrindo a porta que conduz ao nível inferior
do edifício, menciono que o cão talvez tenha um microchip que poderia fornecer informação útil sobre a identificação do proprietário. Alguns grupos de resgate colocam
microchips em antigos galgos de corrida antes de enviá-los para adoção, acrescento.
"Isso é interessante", diz Benton. "Acho que vi os dois."
"Ele olhou direto para você quando estava saindo da garagem por volta de três e quinze da tarde ontem", explica Lucy quando entramos na área de processamento, um
espaço aberto com um escritório de segurança, uma balança digital e uma parede com portas de aço inoxidável maciças que se abrem para compartimentos refrigerados
e um freezer grande.
"Do que você está falando?", pergunta Benton à minha sobrinha.
"Esse tempo todo no carro dirigindo em uma nevasca e você não colocou Benton a par das coisas?" Lucy dirige-se a mim e não é fácil estar por perto quando ela fica
desse jeito.
Sinto uma ponta de aborrecimento, mesmo que ela esteja certa. Lucy conhece você, começa minha mente. Ela conhece você tão bem quanto você a ela. Lucy sabe muito
bem quando estou silenciando alguma coisa que me incomoda e que estou tensa desde que deixei Dover. Foi idiotice minha não entrar no tipo de detalhe com o qual Benton
pode fazer alguma coisa. Não conheço ninguém mais perspicaz em termos psicológicos, e ele teria muito a dizer sobre as minúcias captadas pelos gravadores ocultos
nos fones de ouvido do morto.
Em vez disso, fiquei obcecada pela DARPA porque, na realidade, estava obcecada por Briggs. Não consigo superar o que aconteceu hoje mais cedo, o que aconteceu décadas
atrás, a forma como o que ele causou parece nunca terminar. Briggs conhece meu passado sombrio, um lugar ao qual não levo ninguém, e uma parte minha nunca vai perdoá-lo
por ter participado disso. Minha ida à Cidade do Cabo foi ideia dele. Foi a porra do plano brilhante dele.
"O cara e o galgo passaram direto pela sua garagem poucos minutos antes de ele morrer." Lucy está contando a Benton, mas olha fixo para mim. "Se não tivesse saído,
teria ouvido as sirenes. Provavelmente teria ido até lá para ver o que estava acontecendo e talvez tivesse alguma informação útil para nós."
Lucy me olha como se olhasse para meu passado. Não é possível que tenha conhecimento disso, então me tranquilizo. Nunca lhe contei, nunca contei a Benton, a Marino,
a ninguém. Os documentos foram destruídos, exceto pelo que tenho. Briggs prometeu isso décadas atrás, quando deixei o AFIP e me mudei para a Virginia, e eu já sabia
que faltavam relatórios sem ter sido informada disso. Lucy não possui a combinação do meu cofre, lembro a mim mesma. Nem Benton. Nem ninguém.
"Se você passar em meu laboratório", ela diz a Benton, "te mostro os vídeos."
"Você ainda não viu?", pergunto a Benton, porque não tenho certeza. Ele está agindo como se não tivesse visto, mas não sei se são só mais segredos.
"Ainda não", diz ele, e parece verdade. "Mas quero e vou."
"É estranho você estar nele", diz Lucy. "A casa de vocês estar nele. Muito estranho. Eu meio que pirei quando vi."
O segurança noturno está sentado atrás da janela de vidro e balança a cabeça em nossa direção, mas não se levanta da mesa. Seu nome é Ron, um sujeito grande, musculoso,
de pele escura, com cabelo cortado rente e olhos inamistosos. Parece ter medo de mim ou ser cético, e é evidente que foi instruído para se manter em seu posto, não
ser sociável, não importa de quem se trate. Só posso imaginar as histórias que ouviu e Fielding torna a entrar em meus pensamentos. O que aconteceu? Que problemas
causou? Que prejuízos trouxe a este lugar?
Vou até a janela do segurança e verifico o registro de entradas. Desde as três da tarde, três corpos chegaram: uma morte causada por um veículo, um homicídio por
arma de fogo e uma asfixia por saco plástico.
"O dr. Fielding está aqui?", pergunto.
Policial militar aposentado dos fuzileiros navais, Ron está sempre bem cuidado e imponente em seu uniforme azul-marinho com distintivos da bandeira americana e do
AFMES nos ombros e um emblema metálico de segurança do CFC preso à camisa. O rosto é desconfiado e nem um pouco amistoso por trás da divisória de vidro quando responde
que não viu Fielding. Ele comunica que Ollie e Anne estão aqui, mais ninguém. Nem mesmo o investigador de plantão. Janelle, informa ele em tom monótono, e toda segunda
palavra é senhora, o que me faz lembrar quão frio e condescendente senhora isso, senhora aquilo pode soar e o quanto me cansei de ouvir essa palavra em Dover. Janelle
está trabalhando em casa por causa do tempo, informa Ron. Aparentemente, Fielding disse que tudo bem, mesmo que não seja o caso. Vai contra as regras que estabeleci.
Investigadores de plantão não trabalham em casa.
"Vamos estar na sala de raios X", informo a Ron. "Se aparecer mais alguém, pode nos encontrar lá. Mas, a menos que seja o dr. Fielding, preciso saber quem é e dar
autorização. Na verdade, também quero saber se o dr. Fielding aparecer. Não importa quem seja, preciso ser informada."
"Se o dr. Fielding chegar, a senhora quer que eu avise", repete Ron como se não tivesse certeza de que foi o que eu quis dizer, ou talvez esteja argumentando.
"Isso", esclareço. "Ninguém deve simplesmente entrar, mesmo que trabalhe aqui. A menos que eu diga o contrário. Quero tudo controlado agora."
"Certo, senhora."
"Algum sinal da imprensa?"
"Estou alerta, senhora." Há monitores instalados em três paredes, cada um deles dividido em quadrantes que alternam constantemente as imagens captadas pelas câmeras
de segurança no exterior do edifício e áreas internas estratégicas, como entradas, corredores, elevadores, o saguão e todas as portas que conduzem ao prédio. "Sei
que existe certa preocupação com o homem que foi encontrado no parque." Ron olha para Marino atrás de mim, como se os dois tivessem um acordo.
"Bom, você sabe onde vamos estar por enquanto." Abro outra porta. "Obrigada."
Um longo corredor branco com piso de ladrilho cinza conduz a uma série de dependências situadas em uma ordem lógica que facilita o fluxo de nosso trabalho. A primeira
parada é ID, onde os corpos são fotografados, as impressões digitais colhidas e os objetos pessoais que não foram apreendidos pela polícia são removidos e guardados
em armários. Em seguida, há os raios X em grande escala, que inclui o scanner de tomografia computadorizada, depois a sala de autópsias, a sala de material em decomposição,
a antessala, os vestiários, a sala dos armários, o laboratório de antropologia, o laboratório de contenção Bio4, reservado para os casos suspeitos de doenças infecciosas
ou contaminação. O corredor perfaz um círculo que termina onde começou, na baia de recepção.
"O que Ron sabe sobre nosso paciente de Norton's Woods?", pergunto a Marino. "Por que acha que existe uma preocupação?"
"Eu não disse nada a ele."
"Estou perguntando o que ele sabe."
"Ron não estava de serviço quando saímos mais cedo. Eu ainda não o tinha visto hoje."
"Eu gostaria de saber o que foi que disseram a ele", repito em tom paciente, porque não quero brigar com Marino na frente dos outros. "Essa é uma situação muito
delicada, é claro."
"Dei a ordem antes de sair de que todos tinham que ficar atentos à imprensa", diz Marino, retirando a jaqueta de couro quando chegamos à sala de raios X, onde a
luz vermelha acima da porta indica que o aparelho se encontra em uso. Anne e Ollie não teriam começado sem mim, mas têm o costume de dissuadir as pessoas de entrar
em uma área onde há níveis de radiação muito mais altos do que é seguro para pacientes vivos. "Também não foi ideia minha que Janelle ou os outros trabalhassem em
casa", acrescenta Marino.
Não pergunto há quanto tempo isso vem acontecendo nem quem são os "outros". Quem mais tem trabalhado em casa? Esta é uma instituição do governo estadual, uma instalação
paramilitar, não uma indústria caseira, sinto vontade de dizer.
"O babaca do Fielding", resmunga Marino. "Ele está fodendo com tudo."
Não retruco. Agora não é hora de discutir o quanto tudo está fodido.
"Você sabe onde estou." Lucy afasta-se em direção ao elevador e, com o cotovelo, aperta um botão tão grande que dispensa o uso das mãos. Desaparece atrás de portas
de aço deslizantes enquanto passo o polegar sobre outro sensor biométrico e a fechadura se abre com um clique.
No interior da sala de controle, o radiologista forense dr. Oliver Hess está sentado em uma estação de trabalho atrás de vidro revestido de chumbo, o rosto sonolento
como se eu o tivesse tirado da cama. Para além dele, por uma porta aberta, vejo o Siemens Somatom Sensation branco e ouço o ventilador de seu sistema de refrigeração
a água. O scanner é uma versão modificada daquele empregado em Dover, equipado com suporte adaptável para a cabeça e correias de segurança, fiação subterrânea, seu
parâmetro selado, a mesa coberta por uma pesada capa de vinil para proteger o aparelho multimilionário de contaminantes, tais como fluidos corporais. Ligeiramente
inclinado em direção à porta para facilitar o deslizamento dos corpos para dentro e para fora, o scanner está pronto e a tecnóloga Anne Mahoney está aplicando marcadores
radiopacos de pele no morto de Norton's Woods. Tenho uma sensação estranha quando entro. O corpo é familiar, embora eu nunca o tenha visto, apenas partes dele nas
gravações a que assisti em um iPad.
Reconheço seu tom moreno de pele e as mãos afiladas, que se encontram ao lado do corpo em cima de um lençol azul descartável, os dedos longos e finos ligeiramente
curvados e rígidos devido ao rigor mortis.
Nos vídeos, ouvi sua voz e vislumbrei suas mãos, suas botas, suas roupas, mas não seu rosto. Não sei ao certo o que imaginei, mas fico vagamente perturbada pelas
feições delicadas e o cabelo castanho longo e encaracolado, pela sucessão de leves sardas nas faces lisas. Afasto o lençol e ele é muito magro. Tem cerca de um metro
e setenta e cinco e, se muito, cinquenta e oito quilos, deduzo, com muito pouco pelo. Poderia passar facilmente por um rapaz de dezesseis anos, o que me faz lembrar
Johnny Donahue, que não é muito mais velho. Jovens. Seria esse um denominador comum? Ou é a Otwahl Technologies?
"Alguma coisa?", pergunto a Anne, uma mulher de aparência simples na casa dos trinta, com cabelo castanho revolto e olhos sensíveis cor de avelã. Ela é provavelmente
a melhor pessoa em minha equipe, capaz de fazer qualquer coisa, quer se trate de diversos tipos de imagens radiográficas, de ajudar no necrotério, ou em cenas de
crime. Está sempre disposta.
"Isso. Notei quando tirei as roupas dele." Suas mãos cobertas por luvas de látex agarram o corpo pela cintura e pelo quadril, virando-o de lado para que eu veja
um defeito minúsculo no lado esquerdo das costas na altura dos rins. "Deve ter passado despercebido na cena porque não sangrou, pelo menos não muito. Você está sabendo
do sangramento, que eu mesma vi quando fui fazer os exames dele hoje cedo pela manhã? Que o corpo sangrou profusamente pelo nariz e pela boca depois que foi ensacado
e transportado?"
"É por isso que estou aqui." Abro uma gaveta para pegar uma lente de aumento e então Benton está a meu lado, usando máscara e avental cirúrgico e luvas. "Ele sofreu
algum tipo de ferimento", explico enquanto me debruço sobre o corpo e amplio uma lesão irregular que parece uma pequena casa de botão. "Definitivamente, não é a
entrada de um tiro. É uma facada produzida por uma lâmina muito estreita, como uma faca para desossar, mas com duas bordas. Alguma coisa parecida com um estilete."
"Um estilete nas costas derrubaria o cara?" O olhar de Benton acima da máscara é cético.
"Não. A menos que ele fosse esfaqueado na base do crânio e o ferimento rompesse a medula espinhal." Penso em Mark Bishop e nos pregos que o mataram.
"Como eu disse em Dover, talvez alguma coisa tenha sido injetada", propõe Marino ao entrar coberto da cabeça aos pés com vestimenta de proteção, inclusive viseira
e touca, como se estivesse preocupado com patógenos aéreos e esporos mortais, tal como o antraz. "Talvez algum tipo de anestesia. Uma injeção letal, em outras palavras.
Isso com certeza derrubaria alguém."
"Em primeiro lugar, uma anestesia como tiopental sódico é injetada na veia, assim como o brometo de pancurônio ou o cloreto de potássio." Coloco um par de luvas
de exame. "Não são injetadas nas costas da pessoa. A mesma coisa serve para o mivacúrio e a succinilcolina. Se você quer matar alguém de forma decisiva e rápida
com um bloqueador neuromuscular, o melhor é injetar por via intravenosa."
"Mas se eles fossem injetados no músculo ainda matariam, certo?" Marino abre um armário e pega uma câmera. Vasculha uma gaveta e encontra uma régua plástica de quinze
centímetros para uma referência das dimensões. "Durante as execuções, às vezes a injeção perde a veia e penetra no músculo, mas o preso ainda assim morre."
"Uma morte lenta e muito dolorosa", retruco. "Pelo que todos disseram, a morte desse homem não foi lenta e esse ferimento não foi provocado por uma agulha."
"Não vou dizer que os técnicos na prisão façam de propósito, mas acontece. Bom, provavelmente é de propósito. Alguns deles esfriam o coquetel para se certificar
de que o canalha sinta o rebote, a mão gelada da morte", diz Marino para Anne, que é veementemente contra a pena capital. Sua forma de flertar é chocá-la sempre
que possível.
"Que horror", diz ela.
"Ei. Eles não estão nem aí para as pessoas que matam, certo? Não se importam que sofram. O que vai, volta. Quem escondeu o etiquetador?"
"Fui eu. Fiquei acordada à noite tentando descobrir maneiras de irritar você."
"Ah, é? Por quê?"
"Só por ser você."
Marino procura em outra gaveta e encontra o etiquetador. "Ele parece muito mais jovem do que os paramédicos disseram. Alguém mais percebe isso? Você não acha que
ele parece ter menos de vinte?" Marino pergunta a Anne. "É um garoto."
"Que mal chegou à puberdade", concorda ela. "Mas, para mim, todos os universitários agora têm essa aparência. Parecem bebês."
"Não sabemos se ele era universitário", recordo a todos.
Marino descola o verso de uma etiqueta impressa com a data e o número do caso e prende-a na régua plástica. "Vou pesquisar a área perto do parque, ver se o síndico
de algum prédio reconhece o cara, e vou fazer isso sozinho para manter a indústria dos boatos em silêncio. Se ele mora por ali, o que certamente é o que parece com
base no que vimos nos vídeos, alguém vai ter que se lembrar dele e do galgo. Sock. Isso lá é nome para um cachorro?"
"Provavelmente não é o nome completo", diz Anne. "Cães de raça têm aqueles nomes muito elaborados, registrados em canis, como Sock it to Me, ou Darned Sock ou Sock
Hop."
"Vivo dizendo que ela devia ir a algum programa de perguntas e respostas", declara Marino.
"É possível que o nome esteja em algum registro", comento. "Alguma coisa com Sock, na hipótese de não termos sorte com um microchip."
"Isso se você encontrar o cachorro", diz Marino.
"Estamos correndo atrás das impressões digitais e do DNA do sujeito. Agora mesmo, espero." Benton fita atentamente o corpo, como se estivesse conversando com ele.
"Colhi as impressões esta manhã, mas não tivemos sorte; não tem nada no sistema de identificação de impressão digital. Vamos ter o DNA amanhã e passamos as informações
pelo sistema CODIS." As grandes mãos enluvadas de Marino posicionam a régua sob o queixo do homem. "Mas é meio estranho esse negócio do cachorro. Alguém tem que
estar com ele. Acho que a gente devia publicar informações na imprensa sobre um galgo perdido. Talvez as pessoas liguem."
"Não podemos nos identificar", retruco. "Vamos ficar longe da imprensa agora."
"Exatamente", diz Benton. "Não queremos que os bandidos saibam que estamos cientes do cachorro, muito menos procurando por ele."
"Bandidos?", pergunta Anne.
"O que mais?" Contorno a mesa, fazendo o que Lucy chama de "reconhecimento grosseiro", examinando atentamente o corpo da cabeça aos pés.
Marino está batendo fotografias e diz: "Antes de colocar o cara de volta na geladeira esta manhã, examinei as mãos em busca de resíduos. Coletei alguma coisa em
caráter preliminar, inclusive objetos pessoais".
"Você não me falou de objetos pessoais. Só que ele parecia não ter nenhum", contraponho.
"Um anel com uma insígnia, um relógio Casio de aço. Chaves em um chaveiro. Uma nota de vinte dólares. Uma caixinha de fumo vazia, mas colhi esfregaços em busca de
drogas. Era a caixinha de fumo que aparece no vídeo. Por um segundo, deu para ver o sujeito segurando a caixa pouco depois de chegar a Norton's Woods."
"Onde estava?", pergunto.
"No bolso dele. Foi onde a encontrei."
"Então ele tirou a caixa do bolso no parque e depois tornou a colocar antes do incidente." Recordo o que assisti no iPad, a caixinha sendo segurada pela luva preta.
"Devíamos procurar também inalação e fumo", diz Marino. "Aposto que era maconha. Não sei se você percebeu", continua ele, dirigindo-se a mim, "mas ele tinha um cachimbo
em um cinzeiro em cima da escrivaninha."
"Vamos ver o que aparece no exame toxicológico", retruco. "Vamos fazer um exame do teor alcoólico e agilizar a triagem de drogas. O pessoal lá em cima está ajudando?"
"Vou pedir a Joe para passar para a frente da fila." Anne está se referindo ao toxicologista-chefe, que eu trouxe de Nova York, roubando descaradamente do laboratório
de criminalística do departamento de polícia. "Você é a chefe. Tudo que precisa fazer é pedir." Ela me olha nos olhos. "Bem-vinda de volta."
"Que tipo de insígnia? E como é o chaveiro?", Benton pergunta a Marino.
"Um brasão, um livro aberto com três coroas", responde ele, e percebo que está gostando de Benton estar em desvantagem. O CFC é o território de Marino. "Não tem
nada escrito, nenhuma frase em latim, nada desse tipo. Não sei como são as insígnias do MIT e de Harvard."
"Não são o que você descreveu", diz Benton. "Tudo bem se eu usar isso?" Ele indica um computador em uma bancada.
"O chaveiro é uma daquelas argolas de aço presas a um laço de couro, como os que as pessoas prendem no cinto", continua Marino. "E, como todo mundo já sabe, ele
não levava carteira, nem mesmo um telefone celular. Acho isso incomum. Quem anda por aí sem celular?"
"Ele estava levando o cachorro para passear e ouvindo música. Talvez não estivesse planejando ficar muito tempo fora e não quisesse falar ao telefone", responde
Benton enquanto digita palavras para pesquisa.
Giro o corpo para o lado direito e olho para Marino. "Você quer me ajudar com isso?"
"Três coroas e um livro aberto", diz Benton. "Universidade da Cidade de San Francisco." Ele digita um pouco mais. "Uma universidade on-line especializada em ciências
da saúde. Esse tipo de universidade tem anéis de turma?"
"Os objetos pessoais dele estão em qual armário?", pergunto a Marino.
"Um. Tenho a chave se você quiser."
"Sim, por favor. Alguma coisa que o laboratório precise examinar?"
"Não vejo por quê."
"Então vamos guardar esses objetos até enviar para alguma casa funerária ou para a família quando descobrirmos quem ele é", anuncio.
"E além disso há Oxford", diz Benton em seguida, ainda pesquisando na internet. "Mas, se o anel que ele estava usando era de Oxford, teria os dizeres Universidade
de Oxford, e você disse que não havia nada escrito, nenhum lema."
"Não, nada escrito", retruca Marino. "Mas parece que alguém mandou fazer, sabe, ouro comum com a insígnia gravada, então talvez não seja o oficial, que você encomenda
na faculdade, e por isso não tem nenhum lema nem nada escrito."
"Pode ser", diz Benton. "Mas, se mandaram fazer o anel, acho difícil imaginar que tenha sido para Oxford; eu tenderia a pensar que, se alguém cursou uma faculdade
on-line, talvez tivesse mandado fazer um anel porque não há outro jeito de conseguir um, supondo que a pessoa queira dizer ao mundo que é ex-aluno de uma faculdade
on-line. Esse é o brasão da Universidade da Cidade de San Francisco." Benton se desloca para o lado para que Marino veja o que há na tela do computador, uma insígnia
elaborada com um manto azul e dourado e uma coruja dourada no topo, com três flores-de-lis douradas, então abaixo três coroas douradas e no meio um livro aberto.
Marino está segurando o corpo de lado; aperta os olhos em direção à tela do computador e dá de ombros. "Pode ser. Se foi gravado, se alguém mandou fazer, talvez
não seja tão detalhado."
"Vou olhar o anel", prometo enquanto examino o corpo externamente e faço anotações em uma prancheta.
"Não há motivos para pensar que ele tenha se envolvido em alguma briga; acho difícil a gente conseguir o DNA de um perpetrador ou alguma outra coisa a partir do
relógio ou seja o que for. Mas você me conhece." Marino retoma o que estava dizendo a respeito da verificação dos pertences do morto. "Colhi esfregaços de tudo mesmo
assim. Nada me pareceu fora do comum, a não ser o fato de que o relógio tinha parado, um daqueles automáticos que Lucy gosta, um cronógrafo."
"A que horas ele parou?"
"Eu anotei. Em algum momento depois das quatro da manhã. Cerca de doze horas depois que o cara morreu. Lembrando que esse sujeito tinha uma nove milímetros com dezoito
rodadas, mas não celular", diz Marino. "A menos que ele não tenha deixado o telefone em casa ou alguém levou. Como pode ter levado o cachorro. É isso que fico me
perguntando."
"Vi um telefone em cima de uma mesa nos vídeos", recordo. "Conectado a um carregador perto de um dos laptops. Perto do cachimbo que você mencionou."
"Não conseguimos ver tudo que ele fez lá antes de sair. Acho que pode ter pegado o telefone a caminho da porta", conjectura Marino. "Ou pode ter mais de um. Quem
vai saber?"
"Vamos saber quando encontrarmos o apartamento", diz Benton enquanto imprime o que descobriu na internet. "Eu gostaria de ver as fotos da cena."
"O que você está querendo dizer é quando eu encontrar o apartamento." Marino pousa a câmera em uma bancada. "Porque sou eu que vou investigar. Policiais fofocam
mais que velhas. Descubro onde o cara mora, depois peço ajuda."
8
Em um diagrama do corpo, anoto que às 23h15 o morto está completamente rígido e gelado devido à refrigeração. Apresenta um padrão vermelho-escuro de descoloração
e lividez postural que indica que estava deitado de costas com os braços estendidos ao lado do corpo, palmas das mãos para baixo, completamente vestido, usando um
relógio no pulso esquerdo e um anel no dedo mínimo esquerdo por pelo menos doze horas antes de morrer.
A hipóstase cadavérica, mais conhecida como lividez ou livor mortis, é um de meus indícios preferidos, embora muitas vezes seja mal interpretada, até mesmo por aqueles
que deveriam conhecê-la. Pode parecer com contusões decorrentes de trauma quando, na realidade, é causada pelo fenômeno fisiológico mundano do sangue não circulante
que se concentra nos pequenos vasos devido à gravidade. A lividez apresenta um tom vermelho-escuro, ou pode ser arroxeada, com áreas mais claras onde o corpo permaneceu
apoiado em uma superfície dura; independentemente das informações que recebo a respeito das circunstâncias de uma morte, o corpo em si não mente.
"Não vejo nenhum padrão secundário que indique que o corpo se moveu enquanto o livor ainda estava se formando", observo. "Tudo que estou vendo é consistente com
o fato de ele ter sido fechado dentro de um saco, colocado em uma bandeja e não ter se movido." Prendo um diagrama do corpo em uma prancheta e registro as marcas
produzidas por cós, cinto, joias, sapatos e meias, áreas claras na pele que indicam a forma de um elástico, de uma fivela, de um tecido ou padrão de costura.
"Isso com certeza sugere que ele não moveu nem os braços, não se debateu, o que é bom", conclui Anne.
"Exato. Se ele tivesse voltado a si, teria pelo menos movido os braços. Então isso é muito bom", concorda Marino, chaves tilintando enquanto uma imagem preenche
a tela do computador sobre uma bancada.
Faço uma anotação indicando que o homem não tinha piercings nem tatuagens no corpo e é limpo, com unhas bem aparadas e a pele macia de quem não faz trabalhos manuais
nem se dedica a atividades físicas que possam causar calos nas mãos ou nos pés. Apalpo a cabeça, tateando em busca de defeitos, como fraturas ou outras lesões, e
não encontro nada.
"Resta saber se ele caiu de bruços." Marino está examinando o que o investigador Lester Law enviou por e-mail. "Ou se está deitado de costas nestas fotos porque
os paramédicos mudaram o corpo de posição."
"Para fazer reanimação cardiopulmonar teriam que virar o corpo para cima." Chego perto para ver.
Marino clica em várias fotos, todas na mesma posição, mas a partir de perspectivas diferentes: o homem deitado de costas, a jaqueta verde-escura e a camisa de brim
abertas, a cabeça virada para o lado, os olhos parcialmente fechados; um close do rosto, detritos, que parecem partículas de folhas mortas, grama e brita, agarrados
aos lábios.
"Dê mais zoom nesta", peço a Marino e, a um clique do mouse, a imagem fica maior, o rosto infantil do homem preenchendo a tela.
Retorno ao corpo atrás de mim e procuro ferimentos no rosto e na cabeça, notando uma abrasão embaixo do queixo. Puxo o lábio inferior e encontro uma pequena laceração,
provavelmente produzida pelos dentes inferiores quando ele caiu e bateu com o rosto no caminho de cascalho.
"Isso não pode explicar todo o sangue que vi", diz Anne.
"Não, não pode", concordo. "Mas sugere que ele deu com a cara no chão primeiro, o que também sugere que caiu direto, não cambaleou nem tentou aparar a queda. Onde
está o saco em que ele chegou?"
"Estendi em uma mesa na sala de autópsias, porque imaginei que você fosse querer dar uma olhada", diz Anne. "E as roupas estão secando lá dentro. Quando as tirei,
coloquei tudo na estufa perto da sua estação. Estação um."
"Bom. Obrigada."
"Talvez alguém tenha dado um soco no sujeito", propõe Marino. "Talvez tenha distraído o cara com um soco ou uma cotovelada no rosto, depois lhe dado uma facada nas
costas. Só que provavelmente isso teria sido gravado, estaria nos vídeos."
"Ele teria mais do que só essa laceração se tivesse levado um soco na boca. Se olharem para os detritos no rosto dele e a localização dos fones de ouvido" - estou
de volta ao computador, clicando nas imagens para mostrar - "ele parece ter caído de bruços. Os fones de ouvido estão longe, a mais ou menos dois metros de distância
embaixo do banco, o que indica que o corpo caiu com força suficiente para atirar os fones a boa distância e desconectar o rádio via satélite, que acredito que estivesse
dentro de algum bolso."
"A não ser que alguém tenha deslocado os fones, talvez chutado para fora do caminho", diz Benton.
"Esse foi meu outro pensamento", retruco.
"Quer dizer, alguém que estava tentando ajudar o cara", diz Marino. "As pessoas se amontoaram ao redor dele e os fones de ouvido acabaram embaixo de um banco."
"Ou alguém fez isso deliberadamente."
Há outra coisa na qual reparo. Clicando nas imagens, paro em uma fotografia do pulso esquerdo do homem. Amplio o relógio de aço equipado com taquímetro, aproximo
o mostrador de fibra de carbono. A hora impressa na imagem é 17h17, que foi quando o oficial de polícia bateu a fotografia, no entanto o relógio marca 22h14, cinco
horas mais tarde.
"Quando recolheu o relógio esta manhã", pergunto a Marino, "você disse que ele parecia ter parado. Tem certeza de que não foi só a hora que era diferente da local?"
"Não. Ele tinha parado. Como eu disse, era um daqueles relógios automáticos e parou em algum momento na madrugada, por volta das quatro."
"Parece que ele estava ajustado cinco horas a mais que o horário da costa leste." Indico o que estou vendo na fotografia.
"Tudo bem. Então deve ter parado por volta das onze da noite pelo nosso horário", diz Marino. "Estava errado desde o início e depois parou."
"Talvez ele estivesse em outro fuso horário porque tinha acabado de chegar do exterior", sugere Benton.
"Assim que a gente terminar aqui, vou encontrar o apartamento dele", diz Marino.
Verifico os números de controle de qualidade no registro para me certificar de que o desvio padrão seja zero e o nível de ruído do sistema esteja dentro dos limites.
"Estamos prontos?", pergunto a todos.
Estou ansiosa para fazer a tomografia. Quero ver o que encontramos dentro dele.
"Vamos fazer um topograma, depois reunir o conjunto de dados antes de passar ao exame 3-D com pelo menos cinquenta por cento de sobreposição", digo a Anne enquanto
ela aperta um botão para que a mesa deslize para o interior do aparelho. "Mas vamos mudar o protocolo e começar pelo tórax, não pela cabeça, a não ser, é claro,
para usar a glabela como referência."
Eu me refiro ao espaço entre as sobrancelhas, acima do nariz, que usamos para orientação espacial.
"Um corte transversal do tórax exatamente correlato à área de interesse que você marcou." Percorro a lista enquanto retornamos à sala de controle. "Uma localização
in situ do ferimento; vamos isolar aquela área e qualquer lesão associada, qualquer pista no prolongamento da ferida."
Sento-me entre Ollie e Anne, e em seguida Marino e Benton puxam cadeiras atrás de nós. Pela janela de vidro, vejo os pés descalços do homem na abertura do túnel
do scanner.
"TM automática e inteligente, ruído dezoito. Rotação de zero vírgula cinco, configuração de detectores de zero vírgula seis", instruo. "Cortes bem finos de alta
resolução. Colimação de dez milímetros."
Ouço os ruídos eletrônicos pulsantes enquanto o detector começa a girar no interior do tubo de raios X. O primeiro exame dura sessenta segundos. Assisto a tudo em
tempo real na tela do computador, sem saber ao certo o que estou vendo, o que é incomum. O aparelho deve estar com defeito ou mostra o exame de algum outro paciente,
acessando o arquivo errado. O que estou vendo?
"Jesus", diz Ollie baixinho, olhando com ar carrancudo para as imagens em uma grade, estranhas imagens que devem ser um engano.
"Oriente no tempo e no espaço e vamos posicionar o ferimento de trás para a frente, da esquerda para a direita e para cima", comando. "Conecte pontos para obter
a penetração da ferida, assim como está. Existe um ferimento e depois ele desaparece? Não sei o que é isso."
"O que estamos vendo?", pergunta Marino, perplexo.
"Nada que eu já tenha visto, com certeza não em uma facada", respondo.
"Bom, em primeiro lugar, ar", anuncia Ollie. "Estamos vendo uma porrada de ar."
"Essas áreas escuras aqui, aqui e aqui." Mostro a Marino e a Benton. "Na TC, o ar aparece escuro. Em contraste com as áreas brancas brilhantes, que mostram densidade
mais alta. Os ossos e as calcificações são brilhantes. Dá para ter uma boa ideia das coisas pela densidade dos pixels."
Estendo a mão para o mouse e posiciono o cursor sobre uma costela para que vejam o que estou querendo dizer.
"A janela da TC é mil cento e cinquenta e um. Enquanto essa área aqui, não tão brilhante" - coloco o cursor sobre uma área de pulmão - "é quarenta. Isso é sangue.
Essas áreas escuras embaçadas que vocês estão vendo são hemorragia."
Recordo os tiros de alta velocidade que causam tremendas lacerações e rompimentos de tecido, semelhantes aos ferimentos causados pela onda de propulsão de uma explosão.
Mas esse não é um caso de ferimento a bala. Isso não se deve a algum dispositivo explosivo detonado. Não vejo como uma ou outra opção possa ser verdade.
"Algum tipo de ferimento que se desloca pelo rim esquerdo, no nível superior através do diafragma e do coração, causando profunda devastação ao longo do caminho.
E tudo isso", indico áreas escuras em torno de órgãos internos que estão deslocados e distorcidos, "é mais ar subcutâneo. Ar na musculatura próxima à coluna. Ar
retroperitonial. Como todo esse ar entrou nele? E aqui e aqui. Lesões nos ossos. Fratura de costela. Fratura da apófise transversa. Hemopneumotórax, contusão pulmonar,
hemopericárdio. E mais ar. Aqui, aqui e aqui." Toco a tela. "Ar em torno do coração e nas câmaras cardíacas, bem como nas artérias e veias pulmonares."
"E você nunca viu uma coisa assim?", pergunta Benton.
"Sim e não. Devastação semelhante causada por fuzis militares, canhões antitanque, algumas semiautomáticas que usam munição de alta velocidade e extremo choque de
fragmentação, por exemplo. Quanto maior a velocidade, mais energia cinética se dissipa no impacto e maior é o prejuízo, especialmente para os órgãos ocos, como os
intestinos e pulmões, e tecidos sem elasticidade, como os do fígado e dos rins. Mas, nesses casos, a gente espera uma trajetória clara do ferimento e um míssil,
ou fragmentos de um. Que não estamos vendo aqui."
"E o ar?", pergunta Benton. "Você vê esses bolsões de ar nesses casos?"
"Não exatamente", respondo. "Uma onda de propulsão pode causar embolia gasosa através da barreira sangue-ar. Em outras palavras, o ar acaba fora de lugar, mas isso
é muito ar."
"Uma porrada de ar", concorda Ollie. "E como a pessoa é atingida por uma onda de propulsão a partir de uma facada?"
"Faça um corte bem nessas coordenadas", peço a ele, indicando a área de interesse marcada por uma gota branca brilhante - o marcador de pele radiopaco de TC que
foi colocado perto do ferimento no lado esquerdo das costas do homem. "Comece por aqui e se desloque cinco milímetros para baixo e para cima da área de interesse
especificada pelos marcadores. Esse corte. Isso. E vamos reformatar para a versão 3-D de dentro para fora. Cortes finos, bem finos, de um milímetro. E o aumento
entre eles? O que você acha?"
"Zero vírgula setenta e cinco por zero vírgula cinco vai resolver."
"Tudo bem. Vamos ver que aparência tem isso quando seguimos virtualmente a trajetória do ferimento, seja ela qual for."
Os ossos parecem vívidos, como se estivessem expostos diante de nós, e órgãos e outras estruturas internas estão bem definidos em tons de cinza à medida que a parte
superior do corpo do morto, seu tórax, começa a girar devagar em três dimensões na tela de vídeo. Usando um software modificado, originalmente desenvolvido para
colonoscopias virtuais, penetramos no corpo através do minúsculo ferimento que parece uma casa de botão, viajando com uma câmera virtual como se nos encontrássemos
em uma nave espacial microscópica, voando lentamente através de nuvens de tecido acinzentadas e melancólicas para além do rim esquerdo rebentado como um asteroide.
Uma abertura irregular se patenteia à nossa frente e passamos através de um largo buraco no diafragma. Adiante há laceração, cisalhamento e contusão. O que aconteceu
com você? O que provocou isso? Não faço ideia. Dá uma sensação de impotência encontrar danos que parecem desafiar a física, um efeito sem causa. Não há nenhum projétil.
Não há fragmentos, nada metálico que eu consiga enxergar. Não há ferimento de saída, só na entrada em forma de casa de botão no lado esquerdo das costas do homem.
Estou pensando em voz alta, repetindo pontos importantes para me certificar de que todos entendam o que é incompreensível.
"Sempre esqueço que nada funciona aqui embaixo", comenta Benton com ar distraído enquanto examina seu iPhone.
"Nada saiu e não tem nada iluminado." Avalio o que deve ser feito a seguir. "Nenhum sinal de nada ferroso, mas precisamos ter certeza disso."
"Não faço a menor ideia do que pode ter causado", declara Benton quando se levanta da cadeira, produzindo um farfalhar à medida que desata o avental descartável.
"Vocês conhecem o velho ditado: nada se cria, tudo se transforma. Como muitos velhos ditados, acho que esse não é verdade."
"Isso é novo. Pelo menos para mim", retruco.
Ele se curva e retira a cobertura dos sapatos. "É sem dúvida um homicídio."
"A menos que tenha almoçado comida mexicana muito estragada", diz Marino.
Passa vagamente por meus pensamentos que Benton está agindo de forma suspeita.
"Um projétil de alta velocidade, mas não existe projétil. E se ele saiu do corpo, onde está o ferimento de saída?" Fico repetindo as mesmas coisas. "Onde está o
metal? Com o que ele foi atingido? Um projétil de gelo?"
"Vi alguma coisa a respeito no Caçadores de Mitos. Eles provaram que é impossível por causa do calor", responde Marino como se eu estivesse falando sério. "Mas não
sei. Me pergunto o que aconteceria se você carregasse a arma e guardasse no congelador até estar preparado para atirar."
"Talvez se você fosse um franco-atirador na Antártica", diz Ollie. "De onde saiu essa ideia afinal? De Dick Tracy? É uma pergunta séria."
"Acho que James Bond. Esqueci o filme."
"O ferimento de saída pode não ser óbvio", diz Anne, dirigindo-se a mim. "Lembra aquela vez que o cara foi atingido na mandíbula e a bala saiu pela narina?"
"Então onde está a trajetória do ferimento?", contraponho. "Precisamos de contraste melhor entre os tecidos, precisamos ter certeza de que não estamos deixando passar
nada antes que eu abra o sujeito."
"Se você precisar da minha ajuda, posso ligar para o hospital", diz Benton enquanto abre a porta. Percebo que ele está com pressa, mas não sei ao certo por quê.
O caso não é dele.
"Caso contrário, vou checar o que Lucy descobriu", diz Benton. "Dar uma olhada nos vídeos. Checar outras coisas. Você não se importa que eu use o telefone lá em
cima?"
"Eu ligo", Anne diz a Benton quando ele sai. "Deixo tudo ajeitado com o McLean e cuido do exame."
Era uma possibilidade teórica que esse dia chegasse, mas temos autorização da Secretaria de Saúde, de Harvard e do Hospital McLean, instituição afiliada à universidade
que possui quatro magnetos que abrangem densidade de fluxo de um vírgula cinco a nove teslas. Há muito tempo, certifiquei-me de que os protocolos estivessem em vigor
para realizar RMs em cadáveres no laboratório de neuroimagem do McLean, onde Anne trabalha meio período como técnica de RM para pesquisa psiquiátrica. Foi como a
consegui. Benton a conheceu primeiro e a recomendou. Ele escolhe bem, é um excelente avaliador de caráter. Eu deveria deixar que contratasse minha equipe. Gostaria
de saber quem ele ia chamar. Nem sei bem por que continua aqui.
"Se você quiser, podemos fazer isso agora", Anne está me dizendo. "Não deve ter nenhum problema, não vai haver ninguém por lá. Paramos direto na porta da frente
e entramos com ele e saímos."
A esta hora, os pacientes psiquiátricos do McLean não vão estar perambulando pelo campus. O risco de toparem com um cadáver sendo carregado para dentro ou para fora
do laboratório é pequeno.
"E se alguém atingiu o cara com um canhão de água?" Marino olha atônito para o tronco girando na tela de vídeo, as costelas encurvadas cintilando brancas em 3-D.
"Sério, sempre ouvi que esse era o crime perfeito. Você enche de água o cartucho de um fuzil e é como uma bala quando atravessa o corpo. Mas não deixa marcas."
"Nunca tive um caso assim", retruco.
"Mas pode acontecer", diz Marino.
"Teoricamente, no entanto, o ferimento de entrada não seria como esse", contesto. "Vamos lá. Quero esse sujeito transferido e fora dali antes que as pessoas comecem
a chegar para o trabalho." É quase meia-noite.
Anne clica no ícone FERRAMENTAS para fazer medições e me informa que a largura da trajetória do ferimento antes que este rebente através do diafragma é de zero vírgula
setenta e sete a um vírgula cinquenta e nove milímetros com quatro vírgula dois milímetros de profundidade.
"Então isso me mostra...", começo a dizer.
"Prefiro trabalhar com polegadas", Marino reclama.
"... algum tipo de objeto ou lâmina de dois gumes não muito mais larga que doze milímetros", explico. "E quando penetrou o corpo até a profundidade aproximada de
cinquenta milímetros, aconteceu outra coisa que causou danos internos profundos."
"O que quero saber é quanto da anomalia que estamos vendo é iatrogênica", diz Ollie. "Causada pelo trabalho dos paramédicos durante vinte minutos. Essa é provavelmente
a primeira pergunta que vão nos fazer. Temos que manter a mente aberta."
"De jeito nenhum. A menos que o King Kong tenha feito a reanimação", retruco. "Esse homem parece ter sido apunhalado com alguma coisa que lhe causou uma tremenda
pressão no peito e uma embolia grande de ar. Sentiu dor forte e morreu em alguns minutos, o que é compatível com o que foi descrito pelas testemunhas: que ele apertou
o peito e caiu."
"Então por que todo aquele sangue depois da ocorrência?", pergunta Marino. "Por que não teve a hemorragia instantaneamente? Como é possível que só tenha começado
a sangrar depois que foi declarado morto, a caminho daqui?"
"Não sei a resposta, mas ele não morreu na nossa geladeira." Disso, ao menos, tenho certeza. "Morreu antes de chegar aqui. Na cena."
"Mas vamos ter que provar que ele começou a sangrar depois de morto. E mortos não começam a sangrar como um porco no espeto. Como provamos que ele estava morto antes
de chegar aqui?", insiste Marino.
"Para quem precisamos provar isso?" Olho para ele.
"Não sei a quem Fielding contou, já que não temos ideia de onde ele está. E se tiver falado com alguém?"
Como você fez, penso, mas não digo. "É por isso que é preciso ter cuidado com a divulgação de detalhes quando não se tem toda a informação." Eu não poderia soar
mais controlada.
"Não tivemos escolha." Marino não vai dar o braço a torcer. "Agora temos que explicar por que motivo um morto começou a sangrar."
Pego meu casaco e digo a Anne: "Primeiro uma TC de corpo inteiro. E uma bobina de RM de corpo inteiro, cada centímetro dele. Faça um upload do que você encontrar.
Quero ver imediatamente".
"Eu dirijo", anuncia Marino.
"Bom, coloquem o corpo no compartimento de carga para ficar aquecido. Em uma das vans."
"Não queremos que ele fique aquecido. Na verdade, vou ligar o ar-condicionado no máximo."
"Então podem ir só os dois. Encontro vocês lá."
"É sério. Se ele aquecer, pode começar a sangrar de novo."
"Você tem assistido muito Saturday Night Live."
"Dan Aykroyd imitando Julia Child. Lembra? 'Você vai precisar de uma faca, uma faca bem, bem afiada.' E sangue jorrando para todo lado."
Os três estão brincando.
"Foi muito engraçado."
"Os antigos eram melhores."
"Nem fala. Roseanne Roseannadanna."
"Ah, meu Deus, adoro a Roseanne."
"Tenho todos em DVD."
Ouço-os rir enquanto me afasto.
Escaneando meu polegar, libero minha entrada à primeira parada depois da recepção, onde fazemos as identificações, uma sala branca com bancadas cinza que chamamos
simplesmente de ID.
Embutidos em uma parede, há armários de metal cinza numerados onde ficam guardadas as provas, e uso a chave que Marino me entregou para abrir o de cima à esquerda,
onde os objetos pessoais do morto foram guardados com segurança até passarmos uma nota a alguma funerária ou para a família quando por fim soubermos quem ele é e
quem deve reclamá-lo. No interior, há sacos de papel e envelopes primorosamente rotulados e, preso a cada um deles, um formulário que Marino preencheu e rubricou
para preservar a cadeia de custódia. Encontro o pequeno envelope em papel manilha que contém o anel de sinete, rubrico o formulário e anoto a hora que o retirei
do armário. Em uma estação de computador, acesso um protocolo e insiro a mesma informação, então me lembro das roupas do morto.
Eu deveria examinar tudo enquanto estou aqui embaixo, não esperar até ter feito a autópsia, daqui a algumas horas. Quero ver o orifício produzido pela lâmina que
penetrou a região lombar do homem e gerou tanta destruição dentro dele. Quero ver quanto ele pode ter sangrado devido ao ferimento e deixo a ID e percorro o corredor
de ladrilhos cinza, voltando atrás. Passo pela sala de raios X e, através da porta aberta, vejo de relance Marino, Anne e Ollie ainda ali, preparando o corpo para
transportá-lo ao McLean, brincando e rindo. Passo rapidamente sem que eles percebam e abro as portas duplas de aço que conduzem à sala de autópsias.
É um vasto espaço aberto pintado com tinta epóxi branca, ladrilhos brancos e trilhos de aço expostos e reluzentes, com luz fria filtrada que corre horizontalmente
ao longo da extensão do teto branco. Onze mesas de aço acham-se posicionadas ao lado de pias de aço instaladas na parede, todas com torneira acionada por pedal,
esguicho de alta pressão, triturador de resíduos, um recipiente para lavagem das amostras e outro para material cortante. As estações que cuidadosamente pesquisei
e mandei instalar são minicentros cirúrgicos modulados com sistemas de ventilação e exaustão que permuta o ar a cada cinco minutos, e há computadores, exaustores,
carrinhos de instrumentos cirúrgicos, luzes de halogênio em braços flexíveis, superfícies de dissecção com tábuas de corte, contêineres de formalina com torneira
e prateleiras de tubos de ensaio e frascos plásticos para histologia e toxicologia.
Minha estação, a estação do chefe, é a primeira e me ocorre que alguém a tem usado; então me sinto ridícula por pensar assim. É claro que as pessoas a usaram enquanto
estive fora. É claro que Fielding provavelmente usou. Não faz diferença e por que eu deveria me importar?, digo a mim mesma quando percebo que os instrumentos cirúrgicos
no carrinho não estão alinhados da forma ordenada que eu os teria deixado. Estão desordenadamente dispostos em um tabuleiro branco grande de polietileno para dissecção
como se alguém os tivesse lavado, mas não com cuidado. Retiro um par de luvas de látex de uma caixa e as coloco, porque não quero tocar em nada com as mãos descobertas.
Em geral não me preocupo com isso, não tanto quanto deveria, acho, pois descendo da escola antiga de patologistas forenses, que eram estoicos, marcados pelas cicatrizes
de batalha e tinham o orgulho perverso de não sentir medo nem repulsa diante de nada. Nem dos vermes, nem dos fluidos de purga, nem de carne putrefata inchada, esverdeada
e viscosa, nem mesmo da aids, pelo menos não as preocupações que temos hoje quando vivemos com fobias e regulamentos federais acerca de absolutamente tudo. Lembro
quando eu circulava sem roupas protetoras, fumando, bebendo café e tocando os pacientes mortos como qualquer médico faria, minha pele em contato com a deles enquanto
examinava um ferimento, avaliava uma contusão ou tirava uma medida. Mas nunca fui descuidada com minha estação de trabalho ou meus instrumentos cirúrgicos. Nunca
fui negligente.
Eu nunca devolveria nem mesmo uma agulha de exploração a um carrinho cirúrgico sem primeiro lavá-la com água quente e sabão, e o tamborilar da água quente na pia
de metal funda foi um som dominante nos necrotérios do meu passado. Já na minha época em Richmond - mesmo antes, quando estava só começando no Walter Reed -, eu
sabia sobre o DNA, que este estava prestes a ser aceito perante um tribunal e se tornar o padrão-ouro forense; desse ponto em diante, tudo que fazíamos nas cenas
de crime, no seguimento da autópsia e nos laboratórios seria questionado no banco das testemunhas. A contaminação estava prestes a se tornar o castigo supremo e,
embora não tivéssemos o hábito de esterilizar nossos instrumentos cirúrgicos em autoclave no CFC, certamente não lhes dávamos uma enxaguada superficial sob a torneira
para depois atirá-los em uma tábua de corte que tampouco estava limpa.
Pego uma faca de dissecção de quarenta e cinco centímetros e reparo em vestígios de sangue seco no cabo de aço inoxidável entalhado e que a lâmina de aço está arranhada,
rombuda e manchada em lugar de afiada e resplandecente como prata polida. Encontro sangue na lâmina serrilhada de um serrote de ossos, manchas de sangue seco no
carretel de um cadarço encerado de cinco fios e em uma agulha de dupla curva. Pego fórceps, tesoura, a tesoura de cortar costelas, cinzel e uma sonda flexível e
fico consternada diante das más condições em que tudo se encontra.
Vou enviar a Anne uma mensagem para que dê uma arrumada em minha estação e lave todos os instrumentos antes de realizarmos a autópsia do homem de Norton's Woods.
Vou mandar limpar toda a sala de autópsias do teto ao chão. Vou mandar inspecionar todos os sistemas antes que minha primeira semana aqui tenha transcorrido, decido
enquanto puxo um novo par de luvas e me encaminho a uma ampla bancada onde um grande rolo de papel branco - que chamamos de papel parafinado - se acha afixado a
um porta-papel instalado na parede. O papel produz um ruído alto quando rasgo um pedaço e cubro uma mesa de autópsia na metade da sala, que pelo menos parece mais
limpa que a minha.
Cubro meus trajes do AFMES com um avental descartável, sem me preocupar com as longas tiras de amarrar, então retorno à minha estação desordenada. Encostada à parede,
há uma estufa branca grande de polipropileno sobre rodízios de borracha vulcanizada com porta dupla em acrílico transparente, que destravo ao inserir um código no
teclado digital. Pendurados no interior, há uma jaqueta de náilon verde com colarinho de lã preta, uma camisa azul de brim, uma calça cargo preta, uma cueca boxer,
cada qual em seu próprio cabide de aço inoxidável; a bandeja na parte inferior contém botas de couro marrom surradas e, ao lado delas, um par de meias cinza de lã.
Reconheço algumas peças de roupa dos vídeos a que assisti e sinto inquietação. O ventilador de centrifugação e os filtros HEPA de exaustão da estufa produzem seu
zumbido baixo enquanto examino as botas e meias pegando uma a uma, sem encontrar nada de extraordinário. A cueca é de algodão branco com braguilha sobreposta e cós
de elástico, e não noto nada fora do comum, nem uma mancha.
Abrindo o casaco sobre a mesa coberta por papel parafinado, enfio as mãos nos bolsos para me certificar de que nada restou dentro deles; pego um diagrama de vestuário
e uma prancheta e começo a tomar notas. O colarinho de pele sintética espessa está coberto de terra, areia e pedaços de folhas secas que aderiram a ele quando caiu
no chão; os grossos punhos de malha também estão sujos. O revestimento em náilon verde é um material muito resistente, que parece à prova de rompimentos e impermeável,
com isolante de fibra preta, nenhum dos quais facilmente penetrável, a menos que a lâmina fosse forte e muito afiada. Não encontro evidência de sangue no forro do
casaco, nem mesmo ao redor da pequena abertura na parte de trás, mas o revestimento externo, os ombros, as mangas e as costas estão enegrecidos e duros do sangue
que se acumulou no fundo do saco depois que o zíper foi fechado e o homem foi transportado ao CFC.
Não sei por quanto tempo ele pode ter sangrado enquanto estava no interior do saco e depois dentro da geladeira, mas não sangrou do ferimento. Quando abro a camisa
de brim de mangas longas, um tamanho masculino pequeno, que ainda cheira de leve a colônia ou loção pós-barba, encontro somente uma mancha escura de sangue que secou
e endureceu ao redor da fenda produzida pela lâmina. O que Marino e Anne relataram parece estar correto: que o homem começou a sangrar pelo nariz e pela boca enquanto
estava completamente vestido dentro do saco, a cabeça voltada para o lado, provavelmente o mesmo lado para o qual estava virada quando o examinei na sala de raios
X. O sangue deve ter gotejado com regularidade de seu rosto para o interior do saco, empoçando e vazando, e verifico facilmente isso quando em seguida o examino,
um receptáculo para transporte de cadáveres adultos, típico daqueles usados pelos serviços de remoção, preto com zíper de náilon. Nas laterais há alças confeccionadas
com correias presas com rebites, e é muitas vezes aí onde ocorre o problema de vazamento, supondo que o saco esteja intacto, sem rasgos nem defeitos nas junturas
seladas a calor. O sangue goteja pelos rebites, especialmente se o saco for muito barato, e este deve ter cerca de vinte e cinco dólares de PVC resistente.
Quando recordo o que acabei de ver na TC e me dou conta da rapidez com que os danos ocorreram no que foi claramente um ataque repentino, o sangramento não faz o
menor sentido. Faz ainda menos sentido do que quando Marino me contou em Dover. A destruição maciça dos órgãos internos do homem teria resultado em hemorragia pulmonar,
que teria provocado sangramento pelo nariz e pela boca. Mas isso teria acontecido quase instantaneamente. Não entendo por que ele não sangrou na cena do crime. Quando
os paramédicos estavam trabalhando para ressuscitá-lo, ele deveria ter sangrado pelo rosto e isso teria sido uma clara indicação de que não caíra devido a arritmia.
Quando deixo a sala de autópsias para me dirigir aos andares superiores, torno a visualizar os vídeos e me recordo de ter pensado sobre as luvas pretas e o motivo
por que ele as colocou quando entrou no parque. Onde estão elas? Não vi as luvas. Não estavam no armário de provas nem na estufa, e verifiquei os bolsos do casaco
e não as encontrei. Com base no que vi nas gravações efetuadas em segredo pelos fones de ouvido do homem, ele vestia luvas quando morreu e visualizo o que acompanhei
no iPad de Lucy quando estava na van a caminho do Terminal Aéreo Civil. A mão colocando a luva preta invadiu a imagem como se o homem estivesse golpeando alguma
coisa, então houve um baque quando a mão atingiu os fones de ouvido e ele deixou escapar: "O que...? Ei...!". Depois árvores nuas girando no alto, então lascas de
ardósia se aproximando no chão e a pancada provocada pela queda; em seguida a bainha de um longo casaco preto farfalhando de passagem. Silêncio, depois as vozes
das pessoas ao redor, que gritavam que ele não estava respirando.
A porta da sala de raios X está fechada quando chego e verifico o interior, mas todos se foram, a sala de controle está vazia e silenciosa, o scanner de TC reluz
branco sob a luz fraca no outro lado do vidro revestido de chumbo. Dou uma parada para tentar o telefone lá dentro, na esperança de que Anne atenda o celular, mas
se ela já estiver no McLean e no laboratório de neuroimagem vai ser impossível alcançá-la através das grossas paredes de concreto do local. Fico surpresa quando
ela atende.
"Onde você está?", pergunto e ouço música ao fundo.
"Estacionando", responde ela, que deve estar dentro da van com Marino na direção e o rádio ligado.
"Quando tirou as roupas dele", pergunto, "você viu um par de luvas pretas? Ele devia estar usando luvas pretas grossas."
Uma pausa; ouço-a perguntar alguma coisa a Marino, em seguida ouço a voz dele, mas não entendo o que estão dizendo. Então ela responde: "Não. E Marino disse que
quando levou o corpo para a ID não viu luva nenhuma".
"Me conte exatamente o que aconteceu ontem pela manhã."
"Fique aqui um instante", ouço-a dizer a Marino. "Não, ali ainda não, ou eles vão sair. Os caras da segurança. Espere aqui", pede Anne. "Tudo bem", diz ela, agora
se dirigindo a mim. "Pouco depois das sete ontem de manhã, o dr. Fielding foi até a sala de raios X. Como você sabe, Ollie e eu sempre chegamos cedo, por volta das
sete; mas ele estava preocupado por causa do sangue. Tinha percebido gotas no chão fora da geladeira e também dentro dela. Percebeu que o corpo estava sangrando
ou tinha sangrado. Tinha muito sangue no saco."
"O corpo ainda estava completamente vestido."
"Estava. O fecho do casaco estava aberto e a camisa tinha sido cortada, os paramédicos fizeram isso, mas ele estava vestido quando chegou e nada foi feito até o
dr. Fielding ir até lá para preparar o sujeito para nós."
"Como assim?"
Fielding nunca prepara um corpo para autópsia, nem se dava o trabalho de transferi-lo da geladeira para a sala de raios X ou a sala de autópsias, pelo menos não
desde os velhos tempos, quando ainda estava em treinamento. Ele deixa o que considera tarefas mundanas para aqueles a quem continua a chamar de servos e a quem chamo
de técnicos.
"Só sei que ele encontrou o sangue e então correu para nos chamar porque atendeu a ligação da polícia de Cambridge e, como você sabe, a hipótese era de que o homem
tinha sofrido morte súbita natural, como uma arritmia, um aneurisma ou coisa parecida."
"E depois?"
"Depois Ollie e eu examinamos o corpo, chamamos Marino, ele chegou, viu, e decidimos não fazer os exames nem o resto."
"Ele foi deixado na geladeira?"
"Não. Marino quis passar com ele pela ID primeiro, para colher digitais e material para os exames de laboratório, para poder ativar a identificação das impressões,
do DNA e qualquer coisa que nos ajude a descobrir quem ele é. Não havia luvas naquela hora, porque Marino teria precisado tirar do corpo para colher as impressões."
"Então onde elas estão?"
"Ele não sabe, eu também não."
"Pode colocar Marino na linha, por favor?"
Ouço Anne entregar o telefone a Marino, e ele diz: "Foi isso. Abri o zíper do saco, mas não retirei o corpo; tinha muito sangue lá dentro, como você já sabe".
"E você fez o que exatamente?"
"Colhi as impressões com ele dentro do saco. Se ele estivesse usando luvas, eu com certeza teria visto."
"É possível que os policiais tenham removido as luvas na cena do crime, colocado dentro do saco e você não tenha percebido? E então de alguma forma elas se extraviaram?"
"Não. Eu procurei por objetos pessoais, como já disse. O relógio, o anel, o chaveiro, a caixinha de fumo, a nota de vinte dólares. Tirei tudo dos bolsos dele e sempre
olho dentro do saco exatamente pelo motivo que você acabou de mencionar. Caso a polícia ou o serviço de remoção enfie alguma coisa ali, como um chapéu, óculos de
sol ou qualquer outra coisa. Os fones de ouvido e o rádio via satélite estavam em um saco e chegaram junto com o corpo."
"E a polícia de Cambridge? Sei que o investigador Lawless levou a Glock."
"Ele passou recibo pela arma para o laboratório de armas de fogo por volta das dez da manhã. Só levou isso."
"E quando Anne guardou as roupas na estufa, bom, é óbvio que ela não tinha as luvas, se você está dizendo que não estavam lá desde o início."
Ouço Marino dizer alguma coisa e então Anne volta ao telefone para explicar. "Não. Não vi as luvas quando guardei tudo na estufa. Isso foi por volta das nove da
noite, há quase quatro horas, quando retirei as roupas para preparar o corpo para o exame, pouco antes de você chegar ao CFC. Limpei a estufa para me certificar
de que estivesse esterilizada antes de colocar as roupas dele lá dentro."
"Fico satisfeita que alguma coisa esteja esterilizada. Precisamos limpar minha estação."
"Tudo bem, tudo bem", diz ela, mas não se dirigindo a mim. "Espere. Jesus, Pete. Só um minuto."
Em seguida a voz de Marino soa em meu ouvido: "Houve outros casos".
"Como é que é?"
"Tivemos outros casos ontem de manhã. Então talvez alguém tenha removido as luvas, mas não faço a mínima ideia do motivo. A menos que tenham sido pegas por engano."
"Quem trabalhou nos casos?"
"O dr. Lambotte, o dr. Booker."
"E Jack?"
"Dois casos além do cara de Norton's Woods", diz Marino. "Uma mulher atingida por um trem e um velho que não estava sob cuidados médicos. Jack não fez merda nenhuma,
desapareceu", continua Marino. "Ele não se preocupa com a cena do crime e terminamos com um corpo que começa a sangrar na geladeira. Agora precisamos provar que
o cara estava morto."
9
A direção do que oficialmente se chama Centro Forense e Necrotério de Cambridge fica no último andar, e descobri que é difícil explicar às pessoas como me encontrar
quando um edifício é redondo.
O melhor que fui capaz de fazer nas raras ocasiões em que estive no prédio foi instruir os visitantes a saltar do elevador no sétimo andar, virar à esquerda e procurar
pelo número cento e onze. Fica uma porta antes do cento e um, e compreender que cento e um é o número de sala mais baixo neste andar e que o cento e onze é o mais
alto requer certa imaginação. As salas que abrigam meu escritório, portanto, ocupariam a extremidade de um longo corredor se houvesse extremidades e corredores longos,
mas não há. Aqui em cima existe apenas um grande círculo com seis escritórios, uma sala de reuniões ampla, a sala de leitura para reconhecimento de voz, a biblioteca,
a sala de descanso e, no centro, um refúgio sem janelas onde Lucy optou por instalar o computador e os documentos duvidosos do laboratório.
Passando pelo escritório de Marino, paro diante do cento e onze, o que ele chama de COMCENT, ou Comando Central. Tenho certeza de que Marino propôs essa denominação
pretensiosa não por me considerar sua comandante, mas por pensar em si mesmo obedecendo a uma ordem superior patriótica análoga a uma vocação religiosa. Sua veneração
pelo militarismo é nova. É só mais um de seus paradoxos, como se Peter Rocco Marino precisasse de mais um paradoxo para definir sua natureza incoerente e conflituosa.
Preciso me acalmar com ele, digo a mim mesma enquanto destranco a pesada porta com camada de titânio de meu escritório. Ele não é tão ruim e não fez nada de tão
terrível. É previsível, e eu não deveria estar nem um pouco surpresa. Afinal, quem o entende melhor que eu? A pedra de Roseta para Marino não é Bayonne, em New Jersey,
onde cresceu como lutador de rua que se tornou boxeador e depois policial. A chave, no caso dele, não é nem mesmo o pai alcoólatra e imprestável. Marino pode ser
explicado acima de tudo pela mãe e pela namorada de infância, Doris, agora sua ex-esposa, duas mulheres aparentemente dóceis, subservientes e carinhosas, mas não
inofensivas. Longe disso.
Aperto botões para acender as luzes embutidas nos suportes da cúpula geodésica de vidro energeticamente eficiente que me faz lembrar de Buckminster Fuller sempre
que olho para cima. Se o famoso arquiteto e inventor continuasse entre os vivos, aprovaria meu prédio e possivelmente a mim, mas não nossa mórbida raison d'être,
desconfio, embora, no estágio em que as coisas estão, eu também lhe fizesse algumas críticas. Por exemplo, não concordo com sua crença de que a tecnologia possa
nos salvar. É certo que ela não está nos tornando mais civilizados; na realidade, acho que o oposto é verdadeiro.
Paro sobre o carpete cor de bronze atrás da porta como se aguardasse permissão para entrar, ou talvez hesite porque me apropriar deste espaço é abraçar uma vida
que adiei por boa parte de dois anos. Para ser honesta, eu diria que a venho adiando há décadas, desde meus primeiros dias no Walter Reed, onde cuidava da minha
própria vida em uma sala abarrotada e sem janelas na sede do AFIP quando Briggs entrou sem bater e deixou cair um envelope cinza de vinte por vinte e sete em minha
mesa no qual estava impresso CONFIDENCIAL.
Quatro de dezembro de 1987. Eu me lembro de modo tão vívido que posso descrever o que estava vestindo, o tempo e o que comi. Sei que tinha fumado muito naquele dia
e tomado várias doses de uísque puro, porque estava agitada e amedrontada. O caso de todos os casos e o Departamento de Defesa queria a mim, tinha me escolhido entre
todos os outros. Ou, mais precisamente, Briggs. Na primavera do ano seguinte, fui dispensada prematuramente pela Força Aérea, não por bom comportamento, mas porque
a administração Reagan me queria longe, e saí sob certas condições escandalosas que ainda hoje me atormentam. É cármico que eu me encontre em um prédio circular.
Nada terminou ou começou em minha vida. O que estava distante está bem ao meu lado. De alguma forma, é tudo a mesma coisa.
A indicação mais gritante de meus seis meses de ausência de um cargo que preciso de fato ocupar é que o escritório administrativo de Bryce, vizinho ao meu, acha-se
confortavelmente atravancado, ao passo que o meu é desabitado e austero. A sensação é de desamparo e solidão; minha pequena mesa de reuniões em aço escovado está
vazia, sem um vaso de plantas sequer, e quando habito um espaço há sempre plantas. Orquídeas, gardênias, plantas carnívoras e árvores para ambientes internos, tais
como a areca e o sagueiro, pois quero vida e fragrâncias. Mas o que eu tinha aqui quando cheguei desapareceu e veio desaparecendo devido ao excesso de água e fertilizantes.
Dei a Bryce instruções detalhadas e três meses para matar tudo. Ele levou menos de dois.
Não há quase nada em minha mesa, uma estação de trabalho modular arqueada, montada em aço calibre vinte e dois com superfície laminada preta e um jogo compatível
de gavetas de arquivo e prateleiras livres entre as amplas janelas com vista para o Charles e o horizonte de Boston. Uma bancada de granito preto atrás de minha
cadeira Aeron estende-se ao longo do comprimento da parede e é o lugar do meu Sistema Leica de Microdissecção a Laser, seus monitores de vídeo e acessórios, e, ao
lado, da minha fiel Leica auxiliar para uso diário e de um microscópio de pesquisa laboratorial mais básico que posso operar com uma das mãos e sem software ou seminário
de treinamento. Não há muito mais que isso, nenhuma pasta de arquivo à vista, nenhum atestado de óbito nem outros documentos para examinar e rubricar, nenhuma correspondência
e muito poucos objetos pessoais. Concluo que não é bom ter um escritório tão perfeitamente arrumado, tão imaculado. Eu preferia um depósito de lixo. É estranho que
o fato de ser confrontada com um espaço de trabalho vazio me faça sentir tão oprimida e, enquanto lacro a carta de Erica Donahue em um saco plástico, finalmente
me dou conta do motivo por que não sou fã de um mundo que está rapidamente se livrando do papel. Gosto de ver o inimigo, as pilhas do que devo vencer, e extraio
conforto das resmas de amigos.
Estou trancando a carta em um armário quando Lucy se apresenta, silenciosa como uma aparição, no grosso jaleco branco que usa para se aquecer e para esconder coisas
dentro, além de sua predileção pelos bolsos amplos. O casaco grande demais a faz parecer enganosamente inofensiva e muito mais jovem que seus trinta e poucos anos,
segundo ela, mas para mim Lucy vai ser sempre uma garotinha. Eu me pergunto se as mães sempre se sentem assim com relação às filhas, mesmo quando elas já são mães
ou, como no caso de Lucy, andam armadas e são perigosas.
Lucy talvez tenha uma pistola enfiada na parte posterior do cós de sua calça cargo, e me dou conta do quanto me sinto egoisticamente feliz pelo fato de ela estar
em casa. Lucy está de volta à minha vida, não na Flórida ou com pessoas das quais preciso me forçar a gostar, como a promotora pública de Manhattan, Jaime Berger.
Enquanto vejo minha sobrinha, minha filha única substituta, entrar em meu escritório, não posso evitar uma verdade que não vou lhe contar. Estou satisfeita que ela
e Jaime tenham terminado a relação. Esse foi de fato o motivo por que não indaguei a respeito.
"Benton ainda está com você?", pergunto.
"Está no telefone." Lucy fecha a porta atrás de si.
"Com quem ele está conversando a esta hora?"
Lucy pega uma cadeira, puxa as pernas para cima do assento e as cruza nos tornozelos. "Com o pessoal dele", responde, como se insinuasse que Benton está conversando
com colegas do McLean, mas não é isso. Anne está lidando com o hospital, e ela e Marino estão lá, iniciando o exame. Por que Benton estaria conversando com eles
ou com qualquer outra pessoa no McLean?
"Somos só nós três então", comento em tom incisivo. "Além de Ron, imagino. Mas, se você quiser a porta fechada, acho que tudo bem." É meu jeito de deixá-la saber
que seu comportamento hipervigilante e dissimulado não me passou despercebido e quero que ela o explique. Eu gostaria que explicasse por que considera necessário
ser evasiva, quando não ostensivamente insincera comigo, sua tia, quase sua mãe, e agora sua chefe.
"Eu sei." Ela retira uma pequena caixa de provas do bolso do casaco.
"Você sabe? O que você sabe?"
"Que Anne e Marino foram ao McLean porque você quer uma RM. Benton me contou. Por que você não foi?"
"Não sou necessária e não seria particularmente útil, já que os exames de RM não são minha especialidade." Não há scanner de RM no necrotério de Dover, onde a maioria
é de mortos de guerra cujo corpo contém metal. "Pensei em cuidar de algumas coisas e, quando estiver convencida de que sei o que estou procurando, vou começar a
autópsia."
"É meio que um jeito inverso de ver as coisas quando você para e pensa", reflete Lucy, os olhos verdes fixos em mim. "Antes você fazia a autópsia para saber o que
estava procurando. Agora ela é só uma confirmação do que você já sabe e um meio de coletar provas."
"Não exatamente. Ainda tenho surpresas. O que tem nessa caixa?"
"Falando no diabo..." Ela faz a caixinha branca deslizar sobre a superfície desobstruída de minha mesa ridiculamente limpa. "Pode tirar da caixa e não precisa de
luvas. Mas tome cuidado com isso."
Dentro da caixa, sobre uma camada de algodão, encontra-se o que parece a asa de um inseto, talvez uma mosca.
"Vá em frente, pegue", encoraja Lucy, inclinando-se para a frente na cadeira, o rosto radiante de entusiasmo, como se estivesse me vendo abrir um presente.
Sinto a rigidez dos suportes de arame e uma fina membrana transparente, alguma coisa parecida com plástico. "Artificial. Interessante. O que é exatamente, e onde
você conseguiu isso?"
"Você conhece o Santo Graal dos flybots?"
"Confesso que me deu um branco."
"Anos e anos de pesquisa. Milhões e milhões de dólares de pesquisa gastos na construção do flybot perfeito."
"Não estou muito informada a respeito. Na verdade, acho que não sei do que você está falando."
"Equipado com microcâmeras e transmissores para vigilância dissimulada, literalmente para grampear pessoas. Ou para detectar substâncias químicas, explosivos ou
até possíveis riscos biológicos. O trabalho vem sendo feito em Harvard, no MIT, em Berkeley e em vários outros locais aqui e no exterior, antes mesmo dos ciborgues,
aqueles insetos com sistemas microeletromecânicos embutidos, com interface máquina-inseto. Que então se difundiram para fazer merdas como esta para outros seres
vivos, como tartarugas e golfinhos. Não foi o auge da DARPA, se você me perguntar."
Devolvo a asa ao quadrado de algodão. "Vamos voltar um pouco. Comece por onde você conseguiu isso."
"Estou preocupada."
"Você e eu, nós duas estamos."
"Quando Marino estava com o cara na ID esta manhã" - Lucy está se referindo ao morto de Norton's Woods - "eu quis contar a ele sobre o sistema de gravação que descobri
nos fones de ouvido. Ele estava colhendo as digitais do corpo e reparei no que de relance parecia uma asa de mosca grudada no colarinho do casaco do morto junto
com outros detritos, como terra e pedaços de folhas mortas."
"Ela não foi desalojada pelos paramédicos", comento. "Quando abriram o casaco dele."
"Não. Estava presa no colarinho de pele falsa", diz Lucy. "Fiquei impressionada com aquilo, sabe, tive uma sensação estranha e dei uma olhada mais de perto."
Retiro uma lupa da gaveta em minha mesa, acendo uma luminária de exame e, sob a luz forte, a asa aumentada já não parece natural. O que se presumiria que fosse a
base da asa, onde esta se ligaria ao corpo, é na verdade uma espécie de articulação dobrável, e as veias que correm através do tecido da asa são brilhantes como
fios.
"Provavelmente um composto de carbono, e são quinze articulações em cada unidade de asa, o que é incrível." Lucy descreve o que estou vendo. "A asa em si é uma estrutura
de polímero eletroativo, que responde a sinais elétricos que fazem com que as asas batam tão rápido quanto as verdadeiras, as da mosca doméstica comum. Historicamente,
um flybot decola na vertical como um helicóptero e voa como um anjo, o que tem sido um dos principais obstáculos do projeto. Isso e a invenção de uma coisa micromecânica
que é autônoma, mas não volumosa - em outras palavras, biologicamente inspirada para que tenha a energia necessária para se deslocar livremente em qualquer ambiente
em que seja colocada."
"Biologicamente inspirada, como as invenções conceptuais de Da Vinci." Eu me pergunto se ela está lembrada da exposição a que a levei em Londres e se reparou no
pôster na sala do apartamento do morto. É claro que reparou. Lucy repara em tudo.
"O pôster em cima do sofá", diz ela.
"É, eu vi."
"Em um dos vídeos, quando ele estava colocando a coleira no cachorro. Não é assustador?", pergunta Lucy.
"Não tenho certeza se sei por que motivo é assustador."
"Bom, pude me dar o luxo de examinar as gravações com mais cuidado que você." O comportamento de Lucy outra vez, as nuances que consigo reconhecer de forma tão segura
quanto detecto mudanças sutis em um tecido ao microscópio. "É da mesma exposição a que você me levou no Courtauld, tem a data daquele mesmo verão", diz ela em tom
tranquilo e com determinado objetivo em mente. "A gente pode ter visitado ao mesmo tempo, supondo que ele tenha visitado."
É isso o que Lucy acha. Que há uma ligação entre o morto e nós.
"Ter o pôster não significa que ele foi até lá", continua ela. "Sei disso. Não se sustentaria em um tribunal", acrescenta com uma ponta de ironia, como se estivesse
dando uma alfinetada em Jaime Berger, a promotora com quem desconfio que ela não esteja mais.
"Lucy, você tem alguma ideia de quem é esse homem?", adianto-me e pergunto.
"Só acho estranho pensar que ele talvez estivesse naquela galeria quando nós estivemos. Mas com certeza não estou afirmando isso. Não mesmo."
Não é o que ela de fato pensa. Vejo isso em seus olhos, ouço em sua voz. Lucy desconfia que o sujeito esteve lá quando estivemos. Como concluiu tal coisa a respeito
de um morto cujo nome desconhecemos?
"Você não está dando uma de hacker outra vez, não é?", digo sem meias palavras, como se perguntasse sobre fumar, beber ou algum outro hábito prejudicial à saúde.
Já pensei mais de uma vez que Lucy pode ter encontrado um jeito de rastrear os arquivos de vídeo gravados em segredo até um computador pessoal ou servidor em algum
lugar. Para ela, um firewall e outras medidas de segurança para proteger dados reservados nada mais são que lombadas em seu caminho para obter o que quer.
"Eu não sou hacker", declara ela com simplicidade.
Isso não é resposta, penso, mas não digo.
"Só acho uma coincidência incrível", continua ela. "E acho provável que ele tenha esse pôster por causa de alguma ligação com aquela exposição. Agora você pode comprar
essas imagens. Eu chequei. Quem teria um pôster desse, a não ser que tivesse ido até lá ou tivesse alguém chegado que foi até lá?"
"A menos que seja muito mais velho do que parece, ele era uma criança na época", observo. "Foi no verão de 2001."
Lembro que o relógio dele estava cinco horas adiantado. Estava ajustado ao fuso horário do Reino Unido e a exposição havia sido em Londres. Isso não prova nada.
Uma consistência, mas não uma prova, digo a mim mesma.
"Aquela exposição era exatamente o tipo de coisa que um inventorzinho precoce ia adorar", comenta Lucy.
"Assim como você", retruco. "Acho que foi quatro vezes. E comprou a série de palestras em CD, de tão fascinada."
"É uma ideia e tanto. Um garotinho na galeria no momento exato em que estávamos lá."
"Você fica dizendo isso como se fosse um fato." Continuo a bater na mesma tecla.
"E quase uma década mais tarde eu estou aqui, você está aqui, e o cadáver dele está aqui. Nem me fale em seis graus de separação."
Fico perturbada ao ouvir Lucy se referir a outra coisa que andei pensando mais cedo. Primeiro a exposição de Londres, agora a imensa teia constituída por todos nós,
a forma como as vidas ao redor do planeta se interconectam de alguma forma.
"Na verdade, eu nunca me acostumei com isso", ela diz. "Ver uma pessoa e então, mais tarde, ela é assassinada. Não que eu consiga visualizar o cara quando menino
na galeria em Londres, não que veja algum rosto de criança na mente. Mas posso ter estado ao lado dele ou até ter conversado com ele. Em retrospecto, é sempre difícil
entender que, se soubesse o que vinha mais à frente, você talvez pudesse ter mudado o destino de alguém. Ou o seu."
"Benton te contou que o homem de Norton's Woods foi assassinado ou você soube disso por outra pessoa?"
"Colocamos a fofoca em dia."
"E você mencionou o flybot enquanto colocavam a fofoca em dia há um instante no seu laboratório." Não é uma pergunta.
Tenho certeza de que Lucy contou a Benton sobre a asa de mosca robótica e qualquer outra coisa que julgue que ele deveria saber. Ela foi enfática há pouco no helicóptero
sobre ele ser a única pessoa em quem realmente confia agora além de mim. Embora eu não me sinta exatamente confiável. Tenho a sensação de que ela está peneirando
informação e sendo seletiva quanto ao que oferece quando não desejo que esconda nada. Não desejo que seja evasiva ou minta. Mas uma coisa que aprendi acerca de Lucy
é que desejar não torna as coisas verdadeiras. Posso desejar o que for e isso não vai mudar seu comportamento. Não vai mudar o que ela pensa ou faz.
Apago a luminária e devolvo a caixinha branca. "O que você quis dizer com 'voa como um anjo'?"
"Aquelas reproduções artísticas de anjos pairando. Sei que você já viu algumas." Lucy pega um bloco e uma caneta primorosamente dispostos ao lado do telefone. "Os
corpos ficam na vertical, como o de alguém com um jato nas costas, ao contrário dos insetos e pássaros, cujo corpo fica na horizontal durante o voo. Esses flybots
pequenos voam na vertical, como anjos, e essa é uma de suas falhas, isso e o tamanho. A busca de uma solução é como a do Santo Graal. Já frustrou os melhores e mais
brilhantes."
Ela faz um esboço para me mostrar, um boneco de palitinhos que parece uma cruz voando pelos ares.
"Se você quiser que um inseto como a mosca doméstica comum seja literalmente uma mosca na parede realizando vigilância dissimulada", continua ela, "deve parecer
com uma mosca, não com um corpo minúsculo com asas na vertical. Se eu estivesse em uma reunião com Ahmadinejad no Irã e alguma coisa passasse voando na vertical,
então pousasse na vertical no peitoril da janela como uma Sininho minúscula, acho que eu perceberia e ficaria meio desconfiada."
"Se você fosse a uma reunião com Ahmadinejad no Irã, eu ficaria muito desconfiada por várias razões. Esquecendo por que motivo meu paciente tinha a asa de uma dessas
coisas no casaco, supondo que essa asa faça parte de um flybot completo...", começo a dizer.
"Não exatamente um flybot", interrompe ela. "Também não é necessariamente um spybot. É aonde estou querendo chegar. Acho que isso é o Santo Graal."
"Então, seja o que for, para que ele teria sido usado?"
"A imaginação é o limite", responde ela. "Eu poderia fazer uma boa lista, mas não dá para saber de forma definitiva, não a partir de uma asa, embora eu possa dizer
algumas coisas importantes. Infelizmente, não consegui encontrar o resto do objeto."
"Você está querendo dizer no corpo, no casaco? Encontrar o resto onde?"
"Na cena do crime."
"Você foi a Norton's Woods."
"Com certeza", diz ela. "Assim que percebi a origem da asa. É claro que fui direto para lá."
"Passamos várias horas juntas." Lembro Lucy que poderia ter me contado antes. "Só você e eu naquela cabine a viagem inteira desde Dover."
"É engraçado esse sistema de comunicação interna. Mesmo quando tenho certeza de que está desligado lá atrás, não me sinto segura. Não se é alguma coisa que não posso
me permitir que alguém ouça. Marino não deve tomar conhecimento disso." Ela aponta para a caixinha branca que contém a asa.
"Por que exatamente?"
"Acredite em mim, você não quer que ele saiba porra nenhuma sobre isso. É uma peça muito pequena de alguma coisa muito maior em mais de um sentido."
Ela continua a me assegurar que Marino nada sabe a respeito de sua ida a Norton's Woods. Desconhece a existência da pequena asa mecânica ou que há um fator motivador
no fato de ela tê-lo encorajado a me buscar em Dover mais cedo, para me escoltar em segurança no helicóptero. Lucy não mencionou nada disso até agora, continua a
explicar, porque não confia em ninguém no momento. A não ser em Benton, acrescenta. E em mim, acrescenta. E está sendo muito cuidadosa com os locais onde tem certas
conversas, e todos nós deveríamos ser.
"A menos que a área esteja liberada", diz ela, e o que tem em vista é vasculhado; a implicação disso é que meu escritório é seguro ou não estaríamos tendo esta conversa
nele.
"Você verificou meu escritório à procura de dispositivos de vigilância?" Não estou chocada. Lucy sabe vasculhar um local à procura de gravadores escondidos porque
sabe espionar. O melhor ladrão é o chaveiro. "Quem você acha que estaria interessado em grampear meu escritório?"
"Não sei bem quem está interessado no quê ou por quê."
"Não Marino", digo então.
"Bom, isso seria fácil de descobrir. Mas é claro que não. Não estou preocupada que ele faça alguma coisa assim. Só me preocupa que não consiga ficar de boca fechada",
retruca Lucy. "Pelo menos não quando se trata de certas pessoas."
"Você conversou sobre o MORT no helicóptero. Não ficou preocupada com o sistema de comunicação interna nem com Marino quando fez referência ao MORT."
"Não é a mesma coisa. Não chega nem perto", diz ela. "Não importa se Marino abrir a boca para certas pessoas a respeito de um robô no apartamento do cara. Outras
pessoas já têm conhecimento disso, pode ter certeza. Não posso correr o risco de ter Marino falando da minha amiguinha aqui." Ela olha para a caixinha branca. "E
ele não teria em vista nada de ruim. Mas não entende certas realidades sobre certas pessoas. Especialmente o general Briggs e a capitã Avallone."
"Eu não imaginava que você soubesse alguma coisa sobre ela." Nunca mencionei Sophia Avallone a Lucy.
"Jack mostrou as instalações quando ela esteve aqui. Marino comprou almoço, ficou lambendo o rabo uniformizado dela. Ele não entende gente assim, não entende a porra
do Pentágono. Simplesmente assume que todo mundo é como a gente."
Fico aliviada que Lucy perceba isso, mas não quero incentivá-la a desconfiar de Marino, nem de leve. Ela passou por muita coisa com ele e os dois são finalmente
amigos de novo, tão chegados quanto quando Lucy era criança e ele lhe ensinou a dirigir sua caminhonete e a atirar e ela o irritava para valer, o que era recíproco.
Lucy recebeu de minha genética a ciência, mas recebeu dele sua afinidade pela matéria policial, como ela diz. Foi ele o detetive importante e durão em sua vida enquanto
criança prodígio sabe-tudo e difícil, e ele a amou e a odiou em tantas ocasiões diferentes quanto Lucy o amou e o odiou. Mas os dois são amigos e colegas agora.
Faço tudo para que continuem assim. Tenha cuidado com o que diz, previno a mim mesma. Deixe que a paz perdure.
"De onde concluo que Briggs não tem conhecimento disso." Indico a caixinha branca em cima de minha mesa. "Nem a capitã Avallone."
"Não vejo como."
"Meu escritório tem alguma escuta agora?"
"Nossa conversa é completamente segura", declara ela, o que não é uma resposta.
"E Jack? É possível que ele saiba sobre o flybot? Bom, você não contou a ele."
"De jeito nenhum."
"Então, só se alguém tiver ligado procurando pelo objeto. Ou talvez pela asa do objeto."
"O que você está querendo dizer é: só se o assassino tiver telefonado para cá à procura de um flybot desaparecido", diz Lucy. "E vou chamar assim para simplificar,
embora isso não seja um flybot comum. Isso seria uma idiotice. Indicaria que o autor da ligação tinha alguma coisa a ver com o homicídio do sujeito."
"Não podemos descartar nada. Às vezes os assassinos fazem coisas idiotas", retruco. "Quando estão muito desesperados."
10
Lucy se levanta e entra em meu banheiro privativo, onde há uma máquina de café sobre uma bancada. Ouço-a encher o reservatório com água da torneira e verificar o
pequeno refrigerador. É quase uma da manhã e a neve não diminuiu, está caindo com força e rápido, e quando os pequenos flocos são soprados de encontro às janelas
o som parece o de areia explodindo contra o vidro.
"Leite desnatado ou creme?", chama Lucy do que deveria ser meu vestiário particular, que inclui um chuveiro. "Bryce é uma ótima esposa. Encheu sua geladeira."
"Ainda bebo café preto." Começo a abrir as gavetas em minha mesa, sem saber ao certo o que estou procurando.
Penso em minha estação de trabalho suja na sala de autópsias. Penso nas pessoas usando o que não deveriam usar.
"Bom, então por que você tem leite e creme?" É a voz alta de Lucy. "Green Mountain ou Black Tiger? Também tem com avelã. Desde quando você bebe café sabor avelã?"
As perguntas são retóricas. Ela sabe as respostas.
"Desde nunca", resmungo, vendo lápis, canetas, adesivos Post-it, clipes e, na gaveta de baixo, chiclete de hortelã.
A embalagem está pela metade e não masco chiclete. Quem gosta de chiclete de hortelã e teria motivos para usar minha escrivaninha? Não Bryce. Ele é pretensioso demais
para mascar chiclete e, se eu o apanhasse fazendo isso, desaprovaria, pois considero uma grosseria mascar chiclete na frente de outras pessoas. Além disso, Bryce
não fuçaria minha mesa, não sem permissão. Ele não se atreveria.
"Jack gosta de hortelã, baunilha francesa, essas merdas, e bebe café com leite desnatado, a não ser que esteja fazendo uma das dietas ricas em proteína e gordura
dele", continua Lucy de dentro do banheiro. "Aí usa creme de verdade, creme gordo como esse aqui. Imagino que, se você tivesse visita, ou estivesse esperando alguma,
teria creme."
"Não quero nada com sabor e, por favor, prepare o café forte."
"Ele é um superconsumidor, exatamente como você", soa a voz de Lucy. "As digitais dele estão em todas as fechaduras deste lugar, tanto quanto as suas."
Ouço o esguicho de água quente através da embalagem de K-Cup e recebo a interrupção com alegria. Recuso-me a me engajar na especulação venenosa de que Jack Fielding
esteve em meu escritório durante minha ausência, de que talvez o tenha usado enquanto bebia café, mascava chiclete ou sabe-se lá o que mais. Mas, quando olho ao
redor, não parece possível. Meu escritório dá a sensação de não habitado. Certamente não parece que alguém andou trabalhando por aqui.
"Fui a Norton's Woods antes da polícia de Cambridge. Marino pediu a eles que voltassem por causa do número de série apagado da Glock. Mas cheguei lá primeiro." Lucy
continua a falar alto de dentro do banheiro. "Mas tive a desvantagem de não saber exatamente onde o cara caiu, onde foi esfaqueado, como agora sabemos. Sem as fotografias
da cena, é impossível conseguir a localização exata, só uma estimativa, então vasculhei todas as trilhas do parque."
Ela surge com café fumegante em canecas pretas com a insígnia pouco comum do AFMES, a mão de pôquer de cinco cartas composta por ases e oitos, conhecida como a mão
do homem morto, o que Wild Bill Hickok estava segurando quando foi morto a tiros.
"Foi como procurar agulha em palheiro", continua ela. "O flybot tem provavelmente a metade do tamanho de um clipe de papel pequeno, é mais ou menos do tamanho de,
bom, de uma mosca. Não encontrei nada."
"Só porque você encontrou uma asa não significa que o resto estava lá", lembro quando ela deposita o café a minha frente.
"Se estiver, está mutilado." Lucy retorna à sua cadeira. "Debaixo de neve enquanto conversamos e sem uma asa. Mas muito possivelmente ainda vivo, sobretudo quando
exposto à luz, supondo que não tenha sofrido outras avarias."
"Vivo?"
"Não literalmente. Provavelmente alimentado por micropainéis solares, em vez de uma bateria, que já estaria inativa. A luz bate no objeto e abracadabra. É para onde
tudo está se encaminhando. E o nosso amiguinho, onde quer que esteja, é futurista, uma obra-prima da microtecnologia."
"Como você pode ter tanta certeza se não conseguiu encontrar a maior parte dele? Só tem uma asa."
"Não uma asa qualquer. O ângulo e as juntas flexíveis são engenhosos e sugerem um plano de voo diferente. Não mais o voo de um anjo. Mas horizontal, como o de um
inseto de verdade. O que quer que seja essa coisa e qualquer que seja sua função, estamos falando de um objeto extremamente avançado, que eu nunca vi. Nada foi publicado
a respeito, porque recebo praticamente todas as revistas técnicas on-line. Além disso, andei fazendo pesquisas a respeito, sem sucesso. Ao que tudo indica, é um
projeto sigiloso, altamente secreto. Espero que o resto dele esteja lá no chão em algum lugar, coberto de neve e a salvo."
"O que isso estava fazendo em Norton's Woods para início de conversa?" Visualizo a mão enluvada invadindo a imagem da câmera de vídeo escondida, como se o homem
estivesse golpeando alguma coisa.
"Sim. E era dele ou de outra pessoa?" Ela sopra o café, segurando a caneca com ambas as mãos.
"Tem alguém procurando por isso? Alguém acha que está aqui ou que sabemos onde está?", torno a perguntar. "Alguém te contou que as luvas dele desapareceram? Você
reparou nisso lá embaixo enquanto Marino estava colhendo as digitais do corpo? Parece que a vítima colocou um par de luvas pretas quando chegou ao parque, o que
achei estranho quando assisti aos vídeos. Imagino que ele tenha morrido de luvas, então onde elas estão?"
"Interessante", diz Lucy, e não consigo perceber se já sabia que as luvas desapareceram.
Não consigo descobrir o que ela sabe e se está mentindo.
"Elas não estavam no parque quando andei por lá ontem de manhã", informa. "Eu teria visto um par de luvas pretas se tivesse sido acidentalmente deixado pelos técnicos,
pelo serviço de remoção ou pelos policiais. É claro que elas podem ter sido recolhidas por alguém que passou por ali."
"No vídeo, alguém usando um casaco preto longo passa pouco depois que o homem cai no chão. É possível que quem matou o sujeito tenha parado só o tempo suficiente
para pegar as luvas?"
"O que você tem em mente é se elas são luvas de dados ou luvas inteligentes, do tipo que é usado em combate, luvas com sensores para sistemas de computadores portáveis,
a robótica portável", diz Lucy como se fosse normal deliberar sobre um par de luvas desaparecido.
"Só estou querendo saber por que as luvas são tão importantes para que alguém tenha se dado o trabalho de pegar, se é que foi o que aconteceu", retruco.
"Se elas forem munidas de sensores e era assim que ele estava controlando o flybot, supondo que o flybot seja dele, então as luvas seriam extremamente importantes",
diz Lucy.
"E você não perguntou sobre as luvas quando esteve lá embaixo com Marino? Não pensou em examinar todas as roupas à procura de sensores?"
"Se eu estivesse com as luvas, teria muito mais chance de encontrar o flybot quando voltei a Norton's Woods", declara Lucy. "Mas elas não estão comigo nem sei onde
estão, se é o que está perguntando."
"Estou perguntando porque seria adulteração de provas."
"Não fiz isso. Prometo. Não sei com certeza se são luvas de dados, mas faz sentido se levarmos em conta outras coisas. Como o que ele diz no vídeo pouco antes de
morrer", acrescenta ela com ar pensativo, refletindo, ou talvez já tenha refletido, mas esteja me levando a crer que o que está dizendo é um raciocínio novo. "O
homem fica repetindo 'Ei, rapaz'."
"Pensei que ele estivesse falando com o cachorro."
"Talvez sim. Talvez não."
"E ele disse outras coisas que não consegui entender", recordo. "'E para você' ou 'Você manda um', alguma coisa assim. Uma mosca robótica consegue entender comandos
de voz?"
"É completamente possível. Essa parte foi abafada. Também ouvi e achei confuso", diz Lucy. "Mas talvez não se ele estivesse controlando um flybot. Ele pode ter emitido
algum comando numérico ou de direção. Vou escutar outra vez com som mais alto."
"Mais?"
"Já apliquei um pouco. Não ajudou. Ele pode ter dado coordenadas de GPS ao flybot, o que seria um comando comum para um dispositivo que responde à voz - se você
estiver dizendo a ele aonde ir, por exemplo."
"Se conseguisse entender alguma coordenada de GPS, talvez você encontrasse o lugar, descobrisse onde ele está."
"Sinceramente, duvido. Se o flybot era controlado pelas luvas, controlado pelo menos em parte por sensores nela, e quando a vítima acenou com a mão, talvez no momento
em que foi esfaqueada?"
"O quê?"
"Não sei, mas não tenho o flybot e não tenho as luvas", diz Lucy me encarando com ar sério, os olhos direto nos meus. "Não encontrei nenhum deles, mas com certeza
gostaria de ter encontrado."
"Marino comentou que alguém pode ter seguido Benton e eu depois que saímos de Hanscom?", pergunto.
"Procuramos o SUV grande com faróis de xenônio e de neblina. Não estou dizendo que signifique alguma coisa, mas Jack comprou em outubro um Navigator azul-escuro.
Usado. Você não estava aqui, então acho que não viu."
"Por que Jack nos seguiria? E não, não sabia que ele tinha comprado um Navigator. Pensei que tivesse um jipe Cherokee."
"Ele trocou, acho." Lucy bebe o café. "Eu não disse que ele seguiria vocês. Ou que seria idiota o suficiente para colar no seu para-choque. A não ser em uma nevasca
ou um nevoeiro, quando a visibilidade é muito ruim, alguém bastante inexperiente pode seguir muito de perto se não souber para onde o alvo está indo. Não vejo por
que Jack se daria esse trabalho. Ele não imaginaria que você estava a caminho daqui?"
"Você tem ideia do motivo por que alguém se daria esse trabalho?"
"Se alguém sabe que o flybot está desaparecido", responde Lucy, "com toda certeza está procurando por ele e possivelmente não pouparia nada para encontrar o objeto
antes que caia nas mãos erradas. Ou nas mãos certas. Dependendo de com quem ou o que estamos lidando. Posso dizer isso com base em uma asa. Se foi por isso que vocês
foram seguidos, fico menos propensa a desconfiar que quem matou o sujeito tenha encontrado o flybot. Em outras palavras, o dispositivo pode muito bem estar desaparecido.
Provavelmente não preciso te dizer que uma invenção técnica patenteada ultrassecreta como essa pode valer uma fortuna, especialmente se alguém roubar a ideia e levar
o crédito por ela. Se essa pessoa está procurando pelo dispositivo e tem motivos para temer que ele tenha vindo para cá junto com o corpo, talvez quisesse ver aonde
vocês estavam indo, o que estavam fazendo. Ele ou ela poderia pensar que o flybot está aqui no CFC ou que você o guardou em algum outro lugar. Inclusive em casa."
"Por que estaria na minha casa? Ainda não fui para casa."
"Pessoas sob pressão não têm lógica", responde Lucy. "Se eu fosse a pessoa que está procurando, talvez imaginasse que você instruiu seu marido, que já pertenceu
ao FBI, a esconder o flybot em casa. Poderia imaginar todo tipo de coisas. E se o flybot ainda está à solta, continuaria a procurar."
Recordo as exclamações do homem, ouço sua voz em minha imaginação. "O que...? Ei...!" Talvez a reação assustada não se devesse unicamente à dor aguda repentina na
região lombar e à tremenda pressão no peito. Talvez alguma coisa tenha voado de encontro ao seu rosto. Talvez ele estivesse usando luvas de dados e sua reação de
surpresa tenha ocasionado a avaria no flybot. Imagino o minúsculo dispositivo a meio voo, sendo atingido pela mão enluvada do homem e esmagado contra o colarinho
do casaco.
"Se alguém está de posse da luva de dados e procurou pelo flybot antes da neve começar, é realmente possível que não tenha encontrado o dispositivo?", pergunto à
minha sobrinha.
"É claro que é possível. Depende de uma série de coisas. Do quanto ele está avariado, por exemplo. Houve muita atividade ao redor do homem depois que ele caiu. Se
o flybot estava por ali, no chão, pode ter sido esmagado ou ainda mais danificado e parou completamente de responder. Ou pode estar embaixo de alguma coisa, em alguma
árvore, no meio do mato ou em qualquer lugar lá fora."
"Imagino que um inseto robótico possa ser usado como arma", sugiro. "Já que não faço ideia do que causou as lesões internas desse homem, preciso pensar em todas
as possibilidades imagináveis."
"Esse é o problema", diz Lucy. "Hoje, quase tudo que você imaginar é possível."
"Benton contou o que vimos na TC?"
"Não vejo como um inseto micromecânico possa ter causado danos internos assim", responde Lucy. "A menos que tenham injetado alguma coisa na vítima com um dispositivo
microexplosivo."
Minha sobrinha e suas fobias. Sua obsessão por explosivos. Sua grave desconfiança do governo.
"E com certeza espero que não", continua ela. "Na verdade, estaríamos falando em nanoexplosivos quando se trata de um flybot."
Minha sobrinha e suas teorias; recordo o comentário de Jaime Berger da última vez que a vi no dia de Ação de Graças, quando estávamos todos em Nova York, jantando
em sua cobertura. "O amor não vence tudo", disse Berger. "É impossível", disse ela, bebendo muito vinho e passando tempo demais na cozinha discutindo com Lucy a
respeito do Onze de Setembro, a respeito de explosivos usados em demolições, nanomateriais pintados em infraestruturas que causariam uma terrível destruição se sofressem
o impacto de grandes aviões repletos de combustível.
Já desisti de argumentar com minha fóbica e cínica sobrinha, que é inteligente demais para seu próprio bem e não me ouve. Para ela, não importa que simplesmente
não haja fatos suficientes que confirmem aquilo de que está convencida, apenas alegações sobre resíduos encontrados na poeira logo depois que as torres desabaram.
Então, semanas mais tarde, mais poeira foi coletada, contendo os mesmos resíduos de óxido de ferro e alumínio, um nanocompósito usado na produção de fogos e explosivos.
Admito que foram escritos artigos a respeito em revistas científicas dignas de crédito, mas não o suficiente, e eles nem mesmo começam a provar que nosso próprio
governo ajudou a planejar o Onze de Setembro como desculpa para dar início a uma guerra no Oriente Médio.
"Sei o que você pensa sobre teorias da conspiração", diz Lucy. "Essa é uma grande diferença entre nós. Já vi o que os supostos mocinhos são capazes de fazer."
Ela nada sabe sobre a África do Sul. Se soubesse, perceberia que não há diferença entre nós duas. Sei muito bem o que os supostos mocinhos são capazes de fazer.
Mas não o Onze de Setembro. Eu não iria tão longe e penso em Jaime Berger e imagino o quanto devia ser difícil para a poderosa e consagrada promotora pública de
Manhattan ter Lucy como companheira. O amor não vence tudo. É realmente verdade. Talvez a paranoia de Lucy acerca do Onze de Setembro e o país em que vivemos a tenha
reconduzido a um isolamento social que historicamente nunca é interrompido por muito tempo. Achei que Jaime fosse de fato a pessoa certa, que ia durar. Agora tenho
certeza de que não. Quero dizer a Lucy que sinto muito por isso, que sempre vou estar presente e conversar sobre tudo que ela quiser, mesmo que vá de encontro a
minhas crenças. Agora não é o momento.
"Acho que precisamos levar em conta que talvez estejamos lidando com algum cientista renegado, talvez mais de um, que não está tramando nada de bom", diz Lucy em
seguida. "É esse o ponto importante que estou tentando avaliar. E estou me referindo a coisas ruins, muito ruins, tia Kay."
Sinto alívio ao ouvir Lucy me chamar de tia Kay. Sinto que está tudo bem conosco quando ela me chama assim, o que raras vezes faz agora. Não consigo lembrar quando
tinha sido a última vez. Quando sou sua tia Kay, quase consigo ignorar o que é Lucy Farinelli, um gênio sociopata limítrofe, diagnóstico que Benton ridiculariza,
gentil mas firmemente. Ser sociopata limítrofe é como estar meio grávida ou meio morta, diz ele. Amo minha sobrinha mais do que minha própria vida, mas vim a aceitar
que, quando ela se comporta bem, é um ato de vontade ou simplesmente lhe convém. A moralidade tem muito pouco a ver com isso. Tudo está relacionado ao fim justificando
os meios.
Analiso Lucy com cuidado, embora não tenha esperança de entender o que existe ali. Seu rosto nunca revela informação que possa de fato machucá-la.
"Preciso fazer uma pergunta", digo.
"Pode fazer mais de uma." Ela sorri e parece incapaz de ferir alguma coisa ou alguém, a menos que a pessoa reconheça a força e a agilidade em suas mãos serenas e
as rápidas mudanças em seus olhos à medida que os pensamentos lampejam por trás deles como relâmpagos.
"Você não está envolvida no que quer que seja isso?" Eu me refiro à caixinha branca e à asa do flybot dentro dela. Refiro-me ao morto que está fazendo uma ressonância
magnética no McLean - alguém que talvez tenha cruzado nosso caminho em uma exposição de Da Vinci em Londres meses antes do Onze de Setembro, que Lucy incrivelmente
acredita ter sido orquestrado pelo nosso próprio governo.
"Não." Ela responde sem afetação, não hesita e não parece nem um pouco constrangida.
"Porque agora você está aqui." Lembro Lucy de que ela trabalha para o CFC, ou seja, de que trabalha para mim, e estou sujeita ao governador de Massachusetts, ao
Departamento de Defesa e à Casa Branca. Estou sujeita a muita gente. "Não posso ter..."
"É claro que não. Não vou criar problemas."
"Não é mais só você..."
"Não precisamos ter essa conversa", ela torna a interromper, e seus olhos chispam. São tão verdes que não parecem reais. "De qualquer forma, ele não tem lesões térmicas,
certo? Nenhuma queimadura."
"Nada que eu tenha visto até agora. Isso é certo", respondo.
"Tudo bem. Então e se alguém espetou o cara com uma arma subaquática modificada? Sabe, um daqueles arpões com alguma coisa parecida com um cartucho de espingarda
na ponta? Só que, nesse caso, uma carga muito pequena, minúscula, contendo nanoexplosivos?"
Aperto o botão liga/desliga para acionar meu computador de mesa. "Não teria a aparência do que acabei de ver. Ia parecer o ferimento provocado por um disparo de
contato, menos a abrasão típica produzida pelo cano da arma. Mesmo que estivéssemos falando do uso de nanoexplosivos em oposição a algum tipo de munição de arma
de fogo na ponta de uma lança ou de alguma coisa parecida com uma lança, você está certa, veria lesões térmicas. Haveria queimaduras na entrada e no tecido subjacente.
Imagino que esteja sugerindo que alguma coisa como um flybot poderia ser usado para lançar nanoexplosivos. É o que teme que esse suposto cientista renegado, ou mais
de um, esteja fazendo?"
"Lançar. Detonar. Nanoexplosivos, drogas, venenos. Como eu disse, a imaginação é o limite do que um dispositivo desses é capaz de fazer."
"Preciso dar uma olhada na filmagem de segurança que mostra o vazamento do saco contendo o corpo", digo, enquanto procuro arquivos em meu computador. "Não vou ter
que procurar Ron para isso, vou?"
Lucy contorna a mesa e começa a digitar em meu teclado, inserindo sua senha do administrador do sistema, que confere total acesso aos meus domínios.
"Moleza." Ela pressiona uma tecla para abrir um arquivo.
"Ninguém pode entrar nos meus arquivos sem seu conhecimento."
"Não no ciberespaço. Mas não sei se alguém esteve no seu espaço físico, principalmente porque não fico aqui o tempo todo; na verdade, não fico aqui nem a maior parte
do tempo, porque trabalho à distância sempre que posso", diz ela, mas não estou convencida de que não saberia.
Na realidade, não acredito nisso.
"Mas não existe a menor possibilidade de que alguém tenha entrado nos seus arquivos protegidos por senha", continua ela, e nisso eu acredito. Lucy não permitiria.
"Você pode monitorar as câmeras de segurança de qualquer lugar, por sinal. Até do seu iPhone, se quiser. Tudo de que precisa é acesso à internet. Encontrei isso
mais cedo e salvei como arquivo. Cinco e quarenta e dois da tarde. Que foi a hora de ontem em que as imagens foram captadas por uma câmera de segurança na recepção."
Lucy clica no play, aumenta o volume e vejo dois atendentes vestindo casaco de inverno empurrando uma maca que conduz um saco preto ao longo do corredor de ladrilho
cinza no andar de baixo.
As rodas estalam quando eles estacionam a maca em frente à geladeira e agora vejo Janelle, gorducha e com cabelo castanho curto, com ar agressivo e uma quantidade
surpreendente de tatuagens, tão bem quanto a recordo. Alguém que Fielding encontrou e contratou.
Janelle abre a maciça porta de aço e ouço a precipitação do golpe de ar.
"Coloque isso..." Ela aponta e noto que está usando uma jaqueta escura com PERÍCIA em grandes letras amarelas brilhantes na parte de trás. Ela veste o uniforme externo,
inclusive o boné de beisebol do CFC, como se fosse sair no frio ou tivesse acabado de entrar.
"Naquela bandeja ali?", um dos atendentes pergunta enquanto ele e o companheiro retiram da maca o saco contendo o corpo. O saco se dobra à vontade enquanto eles
o carregam, o corpo em seu interior tão flexível quanto em vida. "Merda, ele está pingando. Droga. É bom que não tenha aids nem nada parecido. Na minha calça, na
porra do meu sapato."
"Na mais baixa." Janelle guia os dois homens até uma bandeja no interior da geladeira, saindo do caminho e nem um pouco interessada no sangue que goteja do saco
e mancha o chão cinza. Ela parece não notar.
"Janelle, a maravilhosa", comenta Lucy, quando a gravação de vídeo termina de repente.
"Você tem os registros do IML?" Quero ver a que horas o investigador médico-legal - em outras palavras, Janelle - chegou e saiu ontem. "É óbvio que ela estava de
plantão durante a noite."
"Ela fez dois turnos no domingo, maníaca por trabalho do jeito que é", diz Lucy. "Substituiu Randy, que estava escalado para as noites do fim de semana, mas pediu
dispensa por estar doente. O que significa que ficou em casa para assistir ao Super Bowl."
"Espero que não."
"E o fresco do Randy não está aqui agora por causa do tempo. Supostamente, está de plantão em casa. Deve ser bom ter um utilitário para levar embora e ser pago para
ficar em casa", diz Lucy, e ouço o desprezo em seu tom áspero e o vejo na dureza em seu rosto. "Acho que você já percebeu onde está metida. Supondo que tenha desistido
de arranjar desculpas para as pessoas."
"Não arranjo desculpas para você."
"Isso porque não precisa."
Examino os registros que Janelle deixou ontem, um documento-padrão em minha tela de vídeo com muito poucos campos preenchidos.
"Não pretendo explicar o que é evidente como o nariz no meu rosto, mas você sabe muito pouco sobre o que acontece por aqui", diz Lucy. "Não conhece os detalhes do
dia a dia neste lugar. E como poderia?" Ela volta para o outro lado da mesa e pega seu café, mas não torna a se sentar. "Nunca está aqui. Desde que começamos a funcionar."
"É só isso? Esse é o registro inteiro do dia de ontem?"
"É isso aí. Janelle chegou às quatro. Se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro." Lucy continua de pé bebendo o café e me observando. "E ela anda
com uma quadrilha e tanto, por sinal. Os merdas dos amigos forenses dela. A maioria policiais, alguns da área de processamento de dados ou gente de escritório. Qualquer
pessoa para quem ela possa posar de heroína. Sabia que faz parte de um time de queimada? Que tipo de pessoa joga queimada? Alguém com finesse."
"Se ela entrou às quatro, por que está vestindo o uniforme externo, inclusive a jaqueta? Como se tivesse acabado de chegar do frio?"
"Como eu disse, se é que dá para acreditar no que ela anotou no registro."
"E David estava de serviço antes disso e também não respondeu?", pergunto. "Jack podia ter mandado David a Norton's Woods. Ele estava aqui à toa, então por que Jack
não pediu que fosse até a cena? Fica a uns quinze minutos daqui."
"E você não sabe disso também." Lucy entra no banheiro e enxágua sua caneca. "Você não sabe se David estava aqui à toa", diz enquanto torna a sair e se põe a circular
perto da porta fechada do escritório. "Não quero ser eu a te contar..."
"Parece que você é a única. Ninguém me conta porra nenhuma", retruco. "O que está acontecendo por aqui? As pessoas só aparecem quando sentem vontade?"
"Praticamente. Os outros legistas, os investigadores, todos entram e saem ao seu bel-prazer. Isso vem de cima."
"Vem de Jack."
"Ao menos por esse lado. Os laboratórios são outra história, porque ele não está interessado neles. A não ser o de armas de fogo." Ela se apoia na porta fechada,
enfiando as mãos nos bolsos do jaleco.
"Ele devia estar no comando na minha ausência. Jack é codiretor de todo o necrotério do CFC." Não consigo afastar de minha voz o tom de queixa, de indignação.
"Jack não se interessa pelos laboratórios e, de qualquer forma, os pesquisadores não prestam a menor atenção nele. A não ser o de armas de fogo, como eu já disse.
Você conhece Fielding com revólveres, facas, balestras, arcos. Nunca encontrei uma arma que ele não adorasse. Então se mete no laboratório de armas e marcas e já
conseguiu ferrar com eles também. Encheu a paciência de Morrow até ele ficar à beira da demissão. Sei que está procurando outro emprego. E não existe nenhum bom
motivo para que o laboratório dele não terminasse com a Glock do morto. O número de série apagado. Merda. Ele se mandou hoje de manhã e nem se preocupou."
"Ele se mandou hoje de manhã?"
"Estava saindo de carro quando voltei de Norton's Woods. Por volta das dez e meia."
"Você falou com ele?"
"Não. Talvez ele não estivesse se sentindo bem. Não sei, mas não entendi por que não se certificou de que alguém se encarregasse da Glock. Usar ácido em um número
de série apagado? Quanto tempo leva para pelo menos tentar? Ele devia saber que era importante."
"Talvez não soubesse", retruco. "Se o detetive de Cambridge foi o único a falar com ele, por que ia achar que a Glock era importante? Na ocasião, ninguém fazia ideia
de que é um homicídio."
"Bom, acho que esse é um ponto relevante. Morrow provavelmente nem sabe que fomos te buscar, que você voltou de Dover. Fielding também desapareceu, quando sabia
muito bem que havia um problema grave que a maioria das pessoas com um cérebro na cabeça ia concluir que era culpa dele. Foi Fielding que recebeu a chamada sobre
o cara em Norton's Woods. Foi ele que deixou de ir até a cena do crime e não garantiu que alguém fosse. O motivo por que Janelle está toda vestida para sair, na
minha opinião? Ela não chegou aqui às quatro, na hora em que anotou no registro. Chegou a tempo de fazer os atendentes entrarem, registrar a entrada do corpo e depois
deu meia-volta e saiu. Posso descobrir. Existe um registro de quando ela desativou o alarme para entrar no prédio. Depende de você querer tornar isso um caso federal."
"Estou surpresa que Marino não tenha se certificado de que eu tomasse conhecimento da extensão dos problemas." É só no que consigo pensar para dizer. O interior
da minha cabeça está vazio.
"Na verdade é a história de Pedro e o lobo", diz Lucy e é verdade.
Marino reclama tanto de tantas pessoas que mal ouço. Agora de volta às minhas falhas. Não prestei atenção. Não escutei. Talvez não escutasse independentemente de
quem tivesse contado.
"Tenho que cuidar de algumas coisas. Você sabe como me encontrar", diz Lucy, abrindo a porta e a deixando aberta depois que saiu.
Pego o telefone e torno a ligar para Fielding. Não deixo mensagem nenhuma dessa vez e me passa pela cabeça que sua mulher também não atende o telefone de casa. Ela
veria o nome e o número de meu escritório no identificador de chamadas. Talvez seja por isso, por saber que sou eu. Ou talvez a família tenha ido a algum lugar,
saído da cidade. Em uma segunda-feira à noite, no meio de uma tempestade de neve, quando ele sabe muito bem que voltei de Dover às pressas para cuidar de um caso
de emergência?
Saio e digitalizo o polegar para destrancar a porta à direita da minha. Entro no escritório do meu sub e o examino devagar, como se fosse a cena de um crime.
11
Escolhi o escritório de Fielding, tendo insistido em um tão bom quanto o meu, bem grande, com chuveiro privativo. Ele tem vista do rio e da cidade, embora as venezianas
estejam baixadas, o que acho inquietante. Ele deve ter fechado quando ainda estava claro lá fora, e não sei por que faria isso. Não por um bom motivo, penso. É um
mau presságio, independentemente de qualquer coisa.
Circulo pelo aposento, abro todas as venezianas e, através das amplas vidraças refletivas em tons de cinza, distingo as luzes embaçadas do centro de Boston e ondas
crescentes de umidade congelada, uma neve frígida que clica e fere como dentes. O topo dos arranha-céus, as torres Prudential e Hancock estão encobertos e as rajadas
de vento gemem em tons baixos ao redor da cúpula sobre minha cabeça. Abaixo, a Memorial Drive está movimentada devido ao tráfego, mesmo a esta hora, e o Charles
parece amorfo e negro. Eu me pergunto quantos centímetros de neve temos até agora e quanto vamos ter antes que se desloque para o sul. Eu me pergunto se Fielding
nunca mais vai voltar à sala que projetei e mobiliei para ele, e por algum motivo sinto que não, mesmo que não existam provas de que ele se foi para sempre.
A maior diferença entre nossos espaços de trabalho é que o dele está repleto de lembretes do ocupante, seus vários diplomas, certificados e condecorações, suas peças
de coleção em prateleiras, bolas e bastões de beisebol autografados, troféus e placas de tae kwon do, maquetes de aviões de guerra e um pedaço de um de verdade que
caiu. Vou até sua mesa e examino relíquias da Guerra Civil: uma fivela de cinto, um balde de cacarecos, um polvorinho, algumas balas Minié que recordo que ele colecionava
em nosso início na Virginia. Mas não há fotografias e isso me deixa triste. Em alguns locais, vejo o que desapareceu nos espaços vazios na parede onde ele não se
deu o trabalho de preencher os orifícios diminutos deixados pelos ganchos que removeu.
Dói que ele não mais exponha as fotografias rotineiras, batidas quando ele era meu colega na patologia forense, fotos inocentes nossas no necrotério ou de nós dois
em cenas de morte com Marino, o principal detetive de homicídios da polícia de Richmond no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando tanto Fielding quanto
eu estávamos apenas começando, ainda que de maneiras completamente diferentes. Ele era o médico bem aparentado em início de carreira, ao passo que eu estava mudando
para o setor privado, em transição para a vida civil e o papel de chefe, fazendo o possível para não olhar para trás. Talvez Fielding não olhe para trás, embora
eu não saiba por quê. Seu passado foi bom comparado ao meu. Ele não ajudou a ocultar um crime. Nunca precisou se esconder de nada semelhante a isso. Não que eu saiba,
mas gostaria de saber. O que mais sei?
Não muito, exceto pela sensação de que ele se livrou de mim, talvez tenha se livrado de todos nós. Parece que se livrou de mais coisas do que realmente fez. Estou
convencida disso sem saber bem por quê. Seus objetos pessoais certamente continuam aqui, suas roupas de chuva Gore-Tex em um cabide, suas botas de neoprene, sua
bolsa com o equipamento de mergulho e o estojo com instrumentos de trabalho guardados em um armário, e sua coleção de emblemas da polícia e moedas de torneios policiais
e militares. Eu me lembro de tê-lo ajudado a se mudar para este escritório. Ajudei meu sub a arrumar até os móveis, nós dois nos queixando, rindo e então reclamando
mais um pouco enquanto deslocávamos a escrivaninha, depois a mesa de reuniões, e então trocávamos tudo de lugar novamente.
"O que é isso? O Gordo e o Magro?", perguntou ele. "A próxima coisa que você vai empurrar escada acima é uma mula?"
"Você não tem escada."
"Estou pensando em comprar um cavalo", disse ele enquanto deslocávamos cadeiras que antes havíamos transferido para outro local. "Tem um haras a um quilômetro e
meio de casa. Posso hospedar o cavalo lá e quem sabe vir trabalhar a cavalo ou cavalgar até as cenas dos crimes."
"Vou acrescentar isso ao manual do funcionário. Nada de cavalos."
Brincamos e provocamos um ao outro, e ele me pareceu bem naquele dia - animado e otimista, seus músculos deformando as mangas curtas do jaleco. Exibia uma boa forma
e uma aparência saudável inacreditáveis na ocasião, o rosto ainda infantilmente bonito, o cabelo louro-escuro despenteado, e fazia vários dias que não se barbeava.
Ele era atraente e divertido, e recordo os sussurros e risinhos de algumas das funcionárias quando passavam pela porta aberta de seu escritório, procurando desculpas
para olhar para ele. Fielding parecia muito feliz por estar aqui comigo e me lembro de nós dois arrumando fotografias e recordando nosso início juntos - fotos que
agora desapareceram.
Em seu lugar há outras das quais não me lembro. As fotos estão arrumadas nas prateleiras e paredes, em locais de destaque, poses formais com políticos e altas patentes
militares, uma com o general Briggs e até mesmo a capitã Avallone, talvez procedente da visita de que eu agora sabia. Ele parece rígido e entediado. Em uma foto
sua vestindo as roupas brancas do tae kwon do, a meio voo e chutando um inimigo imaginário, parece zangado, com o rosto vermelho e cheio de ódio. Enquanto examino
retratos recentes de família, concluo que tampouco ali ele parece satisfeito, nem mesmo quando está segurando suas duas filhinhas ou tem os braços ao redor da mulher,
Laura, uma loura delicada cuja beleza está se desgastando, como se a vida difícil estivesse mapeando seu curso, gravando linhas e rugas em uma topografia antes graciosa
e elegante.
Ela é a terceira mulher de Fielding, e rastreio o declínio dele ao examinar esses momentos captados em ordem cronológica. Quando se casou com ela, ele parecia bem-disposto,
sem sinais de erupções cutâneas e não apresentava os trechos inconvenientes de calva. Paro para admirar quão incrível ele estava, sem camisa e com o corpo rijo como
pedra nos shorts de corrida, lavando seu Mustang 67 vermelho-cereja com as listras de Le Mans no centro do capô. Então recentemente, no outono passado, o espessamento
na região da cintura; a pele coberta de manchas e avermelhada; os fios de cabelo penteados para trás e mantidos no lugar com gel para esconder a alopecia. Em uma
competição de artes marciais há menos de um mês, ele não parece em boas condições físicas nem espiritualmente equilibrado em seu uniforme de mestre faixa-preta.
Não parece encontrar alegria nem na boa forma nem na técnica. Não tem a aparência de quem reverencia as outras pessoas, possui autocontrole ou respeita qualquer
coisa. Parece desregrado. Meio perturbado. Completamente infeliz.
Por quê?, pergunto em um sussurro à foto inicial com seu adorado carro, quando ele estava deslumbrante de ver, com ar despreocupado e vigoroso, o tipo de homem por
quem seria fácil se apaixonar, colocar no comando ou confiar a própria vida. O que mudou? O que te deixou tão infeliz? O que foi desta vez? Ele detesta trabalhar
para mim. Detestou da última vez, em Watertown, onde não ficou muito tempo, e agora no CFC, que detesta ainda mais, isso é óbvio. Foi no final do verão passado,
quando ele começou a ficar tão mal que finalmente abrimos nossas portas à justiça penal, recebendo casos. Mas eu nem mesmo estava em Massachusetts na ocasião, passei
só o feriado do Dia do Trabalho. Não pode ser culpa minha. A culpa sempre foi minha. Sempre me culpei pelas quedas de Fielding, que foram em número maior do que
estou disposta a contar.
Faço com que se recupere e ele torna a cair, de forma cada vez mais séria. Cada vez mais feia. Cada vez mais sangrenta. Vezes sem conta. Como uma criança que não
consegue andar e não vou aceitar até que ela esteja ferida para além de qualquer conserto. O drama que vai sempre terminar de forma previsível, como Benton descreveu.
Fielding não deveria ser patologista forense e é por minha causa que exerce a profissão. Ele estaria melhor se não tivesse me conhecido na primavera de 1988, quando
não tinha certeza do que queria da vida e eu lhe disse que sabia o que deveria fazer. Eu mostro. Eu ensino. Se não tivesse ido a Richmond, ele não teria esbarrado
em mim e talvez tivesse escolhido uma maneira condizente de passar seus dias. Sua carreira e sua vida teriam a ver consigo mesmo, e não comigo.
Este é sem dúvida o ponto principal: Fielding faz o melhor possível em um ambiente totalmente destrutivo para ele e por fim não suporta mais, descompensa, se desintegra
e lembra por que ele é o que é e quem o formou; então assomo como um imenso outdoor em sua vida desprezível. Sua reação a essas crises é sempre a mesma. Desaparecer.
Um dia ele simplesmente some do radar e o que encontro em seu rastro é horrível. Casos com os quais lidou de forma inapropriada ou negligenciou. Memorandos que demonstravam
sua falta de controle e uma capacidade de julgamento perigosa. Mensagens de voz ofensivas que ele não se preocupou em apagar porque queria que eu ouvisse. E-mails
e outros comunicados prejudiciais que esperava que eu encontrasse. Sento na cadeira em sua mesa e começo a abrir as gavetas. Não preciso vistoriar por muito tempo.
A pasta de arquivo não está etiquetada e contém quatro folhas impressas às oito e três de ontem, 8 de fevereiro, com um discurso que, com base em outras informações
no cabeçalho e na seção de notícias, procede do site do Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança. Um instituto de pesquisas inglês centenário
com filiais em locais estratégicos em todo o mundo, o RUSI dedica-se a inovações avançadas em segurança nacional e internacional, e não consigo imaginar o interesse
de Fielding. Não compreendo sua preocupação com um discurso programático proferido por Russell Brown, o secretário de Estado de Defesa, com suas opiniões a respeito
do "debate de defesa". Passo os olhos pelos comentários não tão surpreendentes do membro conservador do Parlamento de que a constante participação do Reino Unido
em uma aliança não é um axioma e que o impacto econômico da guerra é catastrófico. Brown faz repetidas alusões à desinformação metodicamente propagada, que é o mais
próximo que o respeitável membro do Parlamento vai chegar de acusar francamente os Estados Unidos de orquestrar a invasão do Iraque e arrastar o Reino Unido nessa
jornada.
Como seria de esperar, o discurso é político, como quase tudo agora na Inglaterra, que organiza eleições gerais para daqui a três meses. Seiscentos e cinquenta cadeiras
estão em disputa e uma questão importante de campanha são as mais de dez mil tropas britânicas que estão combatendo o Talibã no Afeganistão. Fielding não é militar,
nunca prestou muita atenção a questões ou eleições estrangeiras, e não sei por que motivo teria o menor interesse no que está ocorrendo no Reino Unido. Sequer me
lembro de ele já ter ido ao Reino Unido. Ele não é do tipo que se interesse por eleições gerais nesse país, nem pelo RUSI, nem por grupos de pesquisa, e conhecendo-o
bem como conheço, desconfio que pretendia que eu encontrasse essa pasta. Queria que eu a visse depois que realizou outro de seus truques de desaparecimento. O que
ele quer que eu saiba?
Por que está interessado no RUSI? E ele mesmo encontrou o discurso na internet ou alguém o enviou? Se o material foi enviado, por quem? Penso na possibilidade de
pedir a Lucy que entre no e-mail de Fielding, mas não estou preparada para pegar tão pesado e não quero ser pega. Posso trancar a porta, mas ainda assim meu sub
poderia entrar, pois não confio que Ron ou qualquer outra pessoa vá mantê-lo na área de segurança se ele aparecer. Não levo a menor fé que Ron, que sempre foi hostil
e parece ter pouca consideração por mim, vá deter Fielding ou tentar me contatar para pedir sua liberação. Não acredito que minha equipe seja leal a mim, nem que
se sinta segura comigo ou siga minhas ordens, e Fielding pode reaparecer a qualquer momento.
Isso tem tudo a ver com ele. Desaparecer sem aviso, então aparecer da mesma forma inesperada e me pegar em flagrante, sentada em sua mesa, vasculhando seus arquivos
eletrônicos. É só mais uma coisa que ele vai usar contra mim, e já usou muitas assim ao longo dos anos. O que Fielding andou aprontando pelas minhas costas? Vejamos
o que mais descubro, e então vou saber o que fazer. Presto atenção mais uma vez à hora impressa no documento e o imagino sentado nesta mesma cadeira às oito e três,
imprimindo o discurso enquanto todos - Lucy, Marino, Anne e Ollie - estavam alvoroçados devido ao conteúdo da geladeira no térreo.
Estranho Fielding permanecer aqui no escritório enquanto isso estava acontecendo, e me pergunto se chegou a se importar com a possibilidade de um homem ter sido
trancado em nossa geladeira ainda vivo. É claro que Fielding teria que se importar. Como não se importaria? Se o pior se revelasse verdadeiro, ele seria responsabilizado.
No fim das contas, seria eu a aparecer em todos os noticiários e provavelmente perder o emprego, mas ele afundaria comigo. Ainda assim, estava aqui, no sétimo andar,
em seu escritório e longe da confusão, como se já tivesse tomado uma decisão, e me ocorre que seu desaparecimento pode estar relacionado a outra coisa. Reclino-me
na cadeira, olho em volta e minha atenção pousa em um bloco e uma caneta esferográfica perto do telefone. Reparo nas marcas leves na folha de papel no topo.
Acendendo uma luminária, pego o bloco e o seguro em vários ângulos, tentando decifrar as marcas de escrita deixadas como pegadas quando alguém faz uma anotação na
primeira folha, que foi arrancada. Uma das características de Fielding é não ter o toque leve, não quando empunha um bisturi, digita em um teclado ou escreve alguma
coisa. Para um devoto das artes marciais, ele é surpreendentemente bruto, fica facilmente frustrado e se inflama rápido. Tem um jeito infantil de segurar o lápis
ou a caneta, com dois dedos em cima em vez de um, como se estivesse usando pauzinhos orientais. Costuma quebrar grafite e ponta de lápis e é um inferno com marcadores
de texto.
Não preciso de um detector eletrostático, de um Docustat, de uma caixa de vácuo nem de uma unidade de recuperação de escrita para detectar o que consigo enxergar
à moda antiga com luz indireta e meus próprios olhos. Os garranchos quase ilegíveis de Fielding. O que parecem duas anotações separadas. Uma delas é um número de
telefone com código de área quinhentos e oito e MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8. Então a segunda: U DE SHEFFIELD HOJE WHITEHALL. CÂMBIO E DESLIGO. Torno a olhar
para me certificar de ter lido as últimas palavras de forma correta. Câmbio e desligo. O fim de uma transmissão de rádio, como em Roger Wilco câmbio e desligo, mas
também a canção interpretada por uma banda heavy metal que Fielding costumava colocar para tocar o tempo todo no carro quando chegou a Richmond. "Câmbio e desligo.
Todo cão tem seu dia." O que ele cantava para mim quando ameaçava sair, quando estava farto ou me provocando, flertando, fingindo estar de saco cheio. Ele escreveu
câmbio e desligo no bloco de notas pensando em mim ou por alguma outra razão?
Encontro um bloco tamanho ofício em uma gaveta, escrevo o que descobri por intermédio das marcas no bloco de notas e começo a fazer o melhor que posso para entender
o que Fielding estava fazendo e pensando a respeito do que deseja que eu saiba. Se entrasse aqui para bisbilhotar, eu encontraria o material impresso e as marcas
das anotações. Ele me conhece. Pensaria dessa forma porque sabe muito bem como funciona minha mente. A Universidade de Sheffield é uma das principais instituições
de pesquisa do mundo, e Whitehall é onde está sediado o RUSI, literalmente no antigo palácio de Whitehall, a localização original da Scotland Yard.
Entro no Intelliquest, o programa de busca que Lucy criou para o CFC, e digito RUSI, a data de 8 de fevereiro e Whitehall. O que surge é o título de um discurso,
"Colaboração entre civis e militares", a palestra que Fielding deve ter consultado e que foi proferida no RUSI às dez da manhã pelo horário do Reino Unido, o que
para mim agora é a manhã de ontem. O orador foi o dr. Liam Saltz, o controverso ganhador do Nobel cujas opiniões apocalípticas a respeito da tecnologia militar o
tornaram um inimigo natural da DARPA. Eu não sabia que ele pertencia ao corpo docente da Universidade de Sheffield. Pensei que estivesse em Berkeley. Ele passou
por Berkeley e agora está na Sheffield, leio na internet enquanto penso, um tanto impressionada, na exposição da Courtauld no verão anterior ao Onze de Setembro,
onde Lucy e eu assistimos à palestra do dr. Saltz. Pouco depois disso, assim como eu, o dr. Saltz foi um eloquente crítico do MORT.
Reflito sobre o título da palestra que proferiu nem vinte e quatro horas atrás. "Colaboração entre civis e militares". Parece muito brando para o incitador dr. Saltz,
que é chocante como uma sirene de ataque aéreo em suas advertências de que a destinação de mais de duzentos bilhões de dólares por parte dos Estados Unidos para
futuros sistemas de combate - especificamente veículos não tripulados - nos colocaram na estrada da aniquilação total. Os robôs talvez pareçam fazer sentido quando
se cogita enviá-los ao campo de batalha, censura ele, mas o que acontece quando voltam para casa como jipes e outros acessórios militares usados? Com o tempo, abrem
caminho rumo ao mundo civil, e o que vamos ter é mais policiamento e vigilância, mais máquinas insensatas realizando o trabalho de seres humanos, só que essas máquinas
vão estar armadas e equipadas com câmeras e dispositivos de gravação.
Ouvi o dr. Saltz nos noticiários, pintando cenários aterrorizantes de "policiais-robôs" respondendo por cenas de crime e "carros-robôs" não tripulados perseguindo
veículos a fim de multar os ocupantes por infrações de trânsito, parando gente com mandatos de prisão ou, Deus nos livre, recebendo mensagens de seus sensores para
usar a força. Robôs dando choques. Robôs atirando para matar. Robôs que parecem insetos enormes arrastando mortos e feridos para fora do campo de batalha. O dr.
Saltz testemunhou perante o mesmo subcomitê do Senado diante do qual testemunhei, mas não ao mesmo tempo. Ambos causamos estragos a uma empresa de tecnologia chamada
Otwahl, da qual havia me esquecido por completo até poucas horas atrás.
Encontrei-o apenas uma vez quando, por coincidência, estávamos os dois na CNN, e ele apontou para mim e brincou: "Robotópsias".
"Como?", retruquei, desprendendo meu microfone enquanto ele se encaminhava ao set.
"Autópsias robóticas. Um dia eles vão tomar o seu lugar, minha boa doutora, talvez mais cedo do que pensa. Devíamos sair para beber alguma coisa depois do programa."
Ele era um homem de olhos brilhantes, que parecia um hippie perdido, com seu longo rabo de cavalo grisalho e rosto desgastado e a eletricidade de um condutor carregado.
Isso ocorreu há dois anos e eu deveria ter esperado perto da CNN e aceitado o convite. Deveria ter tomado uma bebida com ele. Deveria ter me informado melhor sobre
aquilo em que ele acredita porque nem tudo é loucura. Não o vi mais desde então, embora não possa escapar de sua presença na imprensa e tento lembrar se por algum
motivo já fiz alguma referência a ele junto a Fielding. Acho que não. Não consigo imaginar por que faria isso. Conexões. Onde estão elas? Pesquiso um pouco mais.
A Universidade de Sheffield, em South Yorkshire, possui uma excelente faculdade de medicina, isso eu já sei. Rerum Cognoscere Causas, seu lema, descobrir as causas
das coisas, é muito apropriado, muito irônico. Preciso de causas. Clico em PESQUISAR. Aquecimento global, degradação global do solo, repensando a engenharia com
softwares pioneiros, novas descobertas nas alterações de DNA de células-tronco embrionárias humanas. Volto às marcas das anotações na folha de bloco.
MAV18/8/DIÁRIO MIN. DEF. RU 2/8.
MAV é nossa abreviatura para morte por acidente com veículo motorizado e dou outra busca, dessa vez explorando o banco de dados do CFC. Insiro MAV, a data, 18 de
agosto do verão passado, e um arquivo retorna, o caso de um inglês de vinte anos chamado Damien Patten, morto em um acidente com táxi em Boston. Fielding não realizou
a autópsia, que foi feita por um de meus outros legistas, e na narrativa reparo que Damien Patten era um anspeçada do 14o Regimento Signal, estava de férias e tinha
ido a Boston para se casar quando morreu no acidente. Tenho uma sensação estranha. Alguma coisa se encaixa.
Realizo outra busca usando as palavras-chaves 8 de fevereiro e Diário do Ministério da Defesa RU. Acabo no blog oficial da instituição e uma entrada lista os soldados
britânicos mortos ontem no Afeganistão. Percorro a lista de baixas, procurando qualquer coisa que tenha algum significado para mim. Um anspeçada do 1o Batalhão dos
Guardas de Coldstream. Um sargento temporário do 1o Batalhão dos Guardas de Grenadier. Um soldado do 2o Batalhão do Regimento do Duque de Lancaster. Depois há um
sapador, ou engenheiro militar, com a Força-Tarefa de Dispositivos Explosivos Anti-improvisados, que foi morto em terreno montanhoso no noroeste do Afeganistão.
Na província de Badghis. Onde meu paciente, o soldado de primeira classe Gabriel, foi morto no domingo, 7 de fevereiro.
Faço outra busca, apesar de saber sem ter que procurar quantos soldados da Otan morreram no Afeganistão em 7 de fevereiro. Em Dover, sempre sabemos. É tão rotineiro
quanto se preparar para as tempestades, um informe mórbido e depressivo que controla nossa vida. Nove baixas, e quatro delas foram americanos mortos pelo mesmo dispositivo
explosivo improvisado na beira da estrada que transformou o Humvee do soldado de primeira classe Gabriel em um alto-forno. Mas, novamente, isso aconteceu no dia
7, não no dia 8. Ocorre-me que o soldado britânico que morreu no dia 8 talvez tenha se ferido no dia anterior.
Verifico e estou certa. O sapador Geoffrey Miller tinha vinte e três anos, era recém-casado e foi ferido em um atentado a bomba na província de Badghis domingo cedo,
mas morreu no dia seguinte em um centro médico militar na Alemanha. Possivelmente o mesmo atentado à beira da estrada que matou os americanos de quem cuidamos em
Dover ontem pela manhã - na realidade, provavelmente. Pergunto-me se o sapador Miller e o soldado de primeira classe Gabriel se conheciam e, como o inglês morto
no táxi, Damien Patten, pode estar relacionado a eles. Patten foi apresentado a Miller e Gabriel no Afeganistão, mas o que Fielding tem a ver com tudo isso? Como
o dr. Saltz, o MORT ou o rapaz de Norton's Woods estão relacionados, ou não estão?
O corpo de Miller vai ser repatriado nesta quinta-feira, porque sua família vive em Oxford, na Inglaterra, continuo a ler, mas não descubro mais nada a seu respeito,
embora certamente consiga obter mais informações sobre um soldado inglês morto se necessário. Posso ligar para Rockman, o assessor de imprensa. Posso ligar para
Briggs, e de qualquer forma preciso fazer isso, recordo. Briggs me pediu - na realidade, ordenou - que eu o mantivesse informado a respeito do caso de Norton's Woods,
acordando-o se necessário no instante em que tiver informações. Mas não vou fazer isso. De jeito nenhum. Não agora. Não sei ao certo em quem posso confiar e, enquanto
esse pensamento persiste, dou-me conta da encrenca em que estou metida.
O que diz o fato de não poder pedir ajuda às pessoas com quem trabalha? Tudo, e é como se o chão estivesse se abrindo sob meus pés e eu estivesse resvalando para
o desconhecido, um espaço frio, escuro, vazio, onde já estive. Briggs quis passar por cima de mim, usurpar minha autoridade e transferir o caso de Norton's Woods
para Dover. Fielding andou se esgueirando por aí na minha ausência, metendo-se em assuntos que não são da conta dele, até mesmo usando meu escritório, e agora está
fugindo de mim, ou pelo menos espero que seja só isso. Minha equipe está se amotinando e algumas pessoas, que me são estranhas, parecem conhecer os detalhes de meu
regresso para casa.
São quase duas da manhã e me sinto tentada a discar o número de telefone que Fielding rabiscou na folha de bloco, surpreender quem quer que atenda, acordar a pessoa
e, quem sabe, conseguir uma pista do que está acontecendo. Em vez disso, faço uma pesquisa no computador da polícia para ver a quem ou a que o número com o código
de área quinhentos e oito pertenceria. A informação sumária me choca e por um instante fico completamente imóvel e tento me acalmar. Tento afastar as muralhas do
horror e da confusão que abrem caminho e me oprimem.
Julia Gabriel, mãe do soldado de primeira classe Gabriel.
Na tela à minha frente estão os endereços de casa e do trabalho, seu estado civil, o salário que recebe como farmacêutica em Worcester, Massachusetts, e nome e idade
de seu único filho, que morreu no Afeganistão no domingo, aos dezenove anos. Permaneci ao telefone com a sra. Gabriel durante quase uma hora antes de fazer a autópsia,
tentando explicar, da forma mais delicada possível, a impossibilidade de coletar o esperma dele enquanto ela levantava a voz, gritava e me acusava de fazer escolhas
pessoais que não deveria fazer, não fiz e nunca faria.
Recolher esperma de mortos e usá-lo para engravidar vivos envolve um dilema moral. Não tenho opiniões pessoais acerca do que é, na realidade, uma questão médica
e legal, não religiosa ou ética, e certamente os envolvidos deveriam optar, não o médico. O que me interessa é que o procedimento, que se tornou cada vez mais popular
por causa da guerra, seja realizado de forma correta e legítima e, de qualquer forma, minhas supostas opiniões sobre os direitos póstumos de reprodução eram controversas
no caso do soldado de primeira classe Gabriel. Seu corpo estava queimado e se decompondo, sua pélvis, tão carbonizada que os testículos haviam desaparecido e o canal
deferente contendo o sêmen, sumido junto com eles, e eu não ia dizer isso à sra. Gabriel. Fui o mais compassiva e delicada possível e não levei para o lado pessoal
o fato de ela descarregar sua dor e sua raiva no último médico que seu filho veria nesta terra.
Peter tinha uma namorada que estava disposta a ter os filhos dele, assim como seu amigo, era um pacto, continuou a sra. Gabriel, e eu não fazia ideia de a que amigo
e a que exatamente ela estava se referindo. O amigo de Peter havia mencionado outro amigo que tinha morrido no dia do casamento no verão anterior, só que a sra.
Gabriel não se referiu a Damien Patten pelo nome, o inglês morto no táxi em 18 de agosto passado. "Agora os três estão mortos, três rapazes bonitos mortos", disse
a sra. Gabriel ao telefone, e eu não fazia ideia do que ela estava falando. Agora acho que sei. Ela com certeza estava se referindo a Patten, o amigo do amigo com
quem o soldado de primeira classe Gabriel tinha uma espécie de pacto. Eu me pergunto se o amigo de Patten é a outra vítima a quem Fielding parece ter me conduzido,
Geoffrey Miller, o sapador.
Agora os três estão mortos.


x
x
x
                                    CONTINUA
x
x
x


Teria Fielding discutido o caso de Patten com a sra. Gabriel, e com quem ela falou primeiro, com Fielding ou comigo? Ela telefonou para Dover por volta de sete e quarenta e cinco. Sempre preencho um registro de chamadas e me lembro de ter anotado a hora quando me sentei em meu pequeno escritório no necrotério de Dover, examinando as tomografias e suas coordenadas, que me ajudariam a localizar, com a precisão de um GPS, o fragmento e outros objetos que haviam penetrado o corpo muito queimado de seu filho. Com base no que me contou, enquanto tento agora reconstruir a conversa, ela provavelmente falou primeiro com Fielding. Isso talvez explique suas repetidas referências a "outros casos".


x
x
x

x
x


Alguém havia colocado em sua cabeça uma ideia do que fazemos em outros casos. Ela estava com a clara impressão de que extraíamos sêmen das vítimas de forma rotineira e que, na realidade, encorajávamos isso, e lembro-me de ter ficado surpresa, pois o procedimento precisa ser aprovado e está repleto de complicações legais. Eu não imaginava o que lhe havia dado essa ideia e poderia ter feito perguntas se ela não estivesse tão ocupada em me criticar e xingar. Que espécie de monstro impediria uma mulher de ter os filhos do namorado morto ou proibiria que a mãe de um filho morto se tornasse avó? Nós fazemos isso em outros casos, por que não no do filho dela? "Não tenho mais ninguém", gritou. "Isso é burocracia sem sentido, admita", vociferou ela. "Burocracia sem sentido para encobrir mais um crime motivado por preconceito."
"Tem alguém em casa?" É Benton no vão da porta.
A sra. Gabriel me chamou de militar preconceituosa. "Você faz para os outros, contanto que sejam brancos", disse ela. "Você cuidou daquele outro rapaz que morreu em Boston e ele nem era um soldado americano, mas não do meu filho, que morreu por seu país. Imagino que tenha a cor errada", continuou ela e eu não fazia ideia do que estava querendo dizer ou no que estava baseando tal acusação. Não tentei descobrir porque me pareceu histeria, nada mais, e a perdoei no mesmo instante. Ainda que aquilo obviamente tenha me magoado muito e eu não tenha conseguido...

 

 

                                                                  

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades