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NEM SÓ DE CAVIAR VIVE O HOMEM / J. M. Simmel
NEM SÓ DE CAVIAR VIVE O HOMEM / J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NEM SÓ DE CAVIAR VIVE O HOMEM

Primeira Parte

 

Durante a minha carreira como oficial do Deuxième Bureau (Serviço Secreto francês) e dos Serviços Especiais, carreira essa que foi longa, conheci vários homens fora do comum. De uma forma geral, um agente não é um homem como qualquer outro. É preciso que ele tenha, antes de mais nada, uma boa dose de inteligência e também uma dose, não menor, de coragem - sem ser, necessariamente, um valentão, pois um agente não é um brigão. Ele precisa, também, ter uma boa estrela, sem a qual o mais inteligente e o mais corajoso pode ver seus planos fracassarem, mesmo em se tratando de um agente ”contra a vontade”, como foi o caso de Thomas Lieven, cujo pseudônimo famoso eu respeitarei.

De todos os homens que me foi dado conhecer quando nossos caminhos se cruzaram, Thomas Lieven é, de longe e sem a menor dúvida, o ”ser mais extraordinário” que conheci, e se esse retrato pode parecer com o que Grimmelshausan pintou em seu tempo, de forma magistral, é que Thomas Lieven nada fica a dever ao seu herói Simplicissimus, o qual, durante a Guerra dos Cem Anos, não andava às voltas com serviços secretos.

Thomas Lieven, o Simplicissimus dos tempos modernos?... Deixe que eu me explique: aventureiro, na acepção mais completa, isto é, além de qualquer dimensão - e a vida não é sempre uma aventura para qualquer um, mesmo quando é uma aventura banal e sem relevo? -, Lieven, espírito crítico, e dando às agitações dos homens o valor
restritivo dos verdadeiros filósofos, vê-se arrastado, pelas circunstâncias, a mil aventuras e delas sai são e salvo, o que já é uma proeza.

Oriundo de família da alta burguesia alemã e ”ariano” - termo que para ele nada significava a não ser o seu completo desacordo com o Weltanschauung de Rosemberg - cresceu numa Alemanha duramente castigada pela derrota de 1918 e que procurava reequilibrar-se e aonde chegavam rumores de que Paris vivia em festa. Astucioso, quebrador de galhos, ajudado pela abastança que seu pai soubera conservar e sabendo, ele próprio, ganhar dinheiro sem capital, iniciou a vida entrando em Paris, em 1924, em um imenso automóvel Daimler-Benz conversível que adquirira a preço vil. Em Paris fez sensação com o seu chofer, um negro retinto, fardado de branco, sentado no banco posterior. O patrão, com vinte e dois anos, está ao volante. É Thomas Lieven.

Janeiro de 1965. Estou sentado em um albergue da velha Munique, o Hundskugel, encostado ao monumental aquecedor de faiança, de cores suaves, que ronca suavemente. Através das janelas, cujos vidros, como velhos vitrais, são circundados de tiras de chumbo, vejo turbílhonar grandes flocos de neve.

Em frente a mim e tendo diante de si um canecão de cerveja espumante, está sentado Thomas Lieven. Não o estou revendo pelo fato de ele ter-se tornado célebre, graças ao best seller escrito por Mario Simmel e que foi levado para o cinema. Vejo-o porque depois dessa guerra de 39-45 o reencontro sempre com prazer e curiosidade.

Condenado à morte, por contumácia, pelos nazistas, desde antes da guerra; condenado à morte, por contumácia, pelos meus compatriotas, em 1946, Thomas Lieven, escapando de todos os naufrágios políticos, apolíticos, militares, sociais e ”associais”, teve sempre o meu reconhecimento. Tendo sido um grande aventureiro, em nenhuma circunstância traiu os que nele confiavam - nem mesmo os que não confiavam -, e é por esses fatos que, de uma vez por todas, formei o meu juízo sobre o homem.

Vinte anos antes eu o tirara, meses após a libertação de Paris, de uma cela de condenado à morte em um dos fortes dos arrabaldes parisienses. Condenado à morte por instigação de um serviço secreto ao qual eu pertencia então e por motivos sem qualquer fundamento. Retirá-lo de lá fora um golpe de força, mas eu estava disposto a afrontar todos os serviços secretos do mundo para salvar esse homem que, aprisionado pela Gestapo, em 1944, e que esperava um campo de concentração, ou talvez mesmo o machado do carrasco nazista, não denunciou nenhum dos nossos oficiais do Serviço de Informações cujas atividades na Resistência ele conhecia muito bem e pelos quais o Sicherheitsdienst1 tinha grande interesse. Pela sua inteligência e astúcia soube virar a situação a seu favor, e será preciso maior prova de sua lealdade que o fato de, uma semana após sair de uma cela, ser ele engajado, com pleno conhecimento de causa, é evidente, com a graduação de segundo tenente temporário pelo Serviço de Procura de Criminosos de Guerra nazistas da DGSS?

Que ele tenha sido condenado à morte por um tribunal de exceção, um ano apenas depois da extinção desse Serviço, não é nada de admirar para quem sabe das reviravoltas políticas conforme os homens que estão no poder. Felizmente para ele, Lieven estava em segurança na Baviera de sua infância mas acredito que, ainda uma vez, esse homem prodigioso, à sua maneira, teria escapado, sem um arranhão, caso estivesse em nosso país de liberdade, de igualdade - eu ia escrevendo ”de legalidade” - e de fraternidade.

Sem estar sequer grisalho, o olhar sempre vivo e alerta, Lieven não parece sentir o correr dos anos. Sua cabeça é, como sempre, a de um Arsène Lupin tal como, sem esforço, podemos imaginar ao ler as suas aventuras. Algumas serão um pouco forçadas, mas todas refletem, fielmente, a personagem de múltiplos aspectos que era Thomas Lieven, espião contra a vontade. Contra a vontade?... Sem dúvida. Mas podemos estar certos - e não será ele quem o negará

 

1 Serviço de Segurança. (N. do E.)

 

- de que, se lhe oferecêssemos a oportunidade de recuar na idade, de reviver essa vida cheia de imprevistos e perigos reais, à qual poucas poderão ser comparadas, ele fatalmente responderia: ”Aceito... Estou pronto a recomeçar”.

Jacques Abtey

antigo oficial do Deuxième Bureau e dos Serviços Especiais

 

- Nós, alemães, cara Kitty, somos capazes de fazer um milagre em matéria de economia, mas não uma salada - disse Thomas Lieven à rapariga de cabelos castanhos e de formas agradáveis.

- Sim, senhor - disse Kitty.

Ela falava com a voz um pouco embargada, porque estava terrivelmente caída pelo seu sedutor patrão. Os olhos enamorados fitavam Thomas Lieven a seu lado, na cozinha.

Por cima do seu smoking - azul-escuro e de lapelas estreitas - usava um avental de cozinha. Na mão tinha um guardanapo. No guardanapo estavam as folhas tenras de dois pés de alface.

”Que homem!”, pensava Kitty, com os olhos brilhantes. O fato de seu patrão, que morava numa casa com muitos aposentos, saber agir com tanta competência em seu reino, a cozinha, tinha sem dúvida contribuído para atiçar o seu amor.

- A arte de preparar uma salada está praticamente esquecida.- disse Thomas Lieven. - Na Alemanha central botam-lhe açúcar e ela tem gosto de bolo velho; na Alemanha do sul, ela é amarga como erva silvestre; e na Alemanha do norte as donas-de-casa chegam ao cúmulo de usar linhaça. Por Lúculo! Esse óleo é feito para botar em fechaduras, mas não em salada!

- Sim, senhor - disse Kitty, sempre sem fôlego. Ao longe ouviram-se soar os sinos de uma igreja. Eram dezenove horas do dia 11 de abril de 1957.

Esse 11 de abril parecia um dia como qualquer outro.
Não para Thomas Lieven, que pensava poder, nesse dia, terminar com um passado de tumultos e delitos.

Nesse 11 de abril de 1957, Thomas Lieven, que acabava de entrar no seu quadragésimo nono ano de vida, habitava uma casa alugada na parte mais elegante da Avenida Cecile, em Düsseldorf. Tinha um saldo respeitável no Banco do Reno e do Meno, bem como um luxuoso carro alemão, que lhe custara trinta e dois mil marcos.

Aproximando-se dos cinqüenta anos, Thomas Lieven estava extraordinariamente bem conservado. Esbelto, alto e bronzeado, tinha olhos inteligentes, algo melancólicos, uma boca que denotava sensibilidade e rosto magro. Os cabelos negros e curtos começavam a ficar grisalhos, nas têmporas.

Thomas Lieven era solteiro. Os vizinhos o consideravam um homem tranqüilo e muito bem-educado. Tomavam-no por um respeitável homem de negócios da Alemanha Federal, mas sentiam um certo despeito por não saber nada de positivo a seu respeito.

- Cara Kitty - disse Thomas Lieven -, você é bonita e jovem. Tem ainda muito que aprender. Quer aprender alguma coisa em minha escola?

- Com muito prazer - disse Kitty, quase sem fôlego.

- Muito bem. Vou ensinar a você a arte e a maneira de tornar a alface saborosa. Que fizemos, até agora?

Kitty fez uma reverência. - Há duas horas, senhor, nós lavamos dois pés de alface de tamanho médio. Depois jogamos fora as folhas externas e ficamos com as folhas mais tenras...

- E que fizemos em seguida? - perguntou ele.

- Colocamos num guardanapo e amarramos as quatro pontas. Depois, o senhor balançou o guardanapo...

- Balancei, não, Kitty. Sacudi para retirar toda a umidade. É indispensável que as folhas estejam bem secas. Agora vamos dar toda a atenção ao preparo do molho. Dê-me uma saladeira e um talher de salada.

Kitty teve um arrepio ao roçar, sem querer, a mão fina e longa de seu patrão.

”Que homem!”, pensou ’ela...

Que homem - eis o que haviam pensado inúmeras pessoas que conheceram Thomas Lieven no decorrer de vários anos anteriores. Que tipo de pessoa? A resposta nos será dada se inventariarmos as coisas que Thomas Lieven amava e as que ele detestava.

Thomas Lieven amava: mulheres bonitas, roupas elegantes, móveis antigos, carros velozes, bons livros, cozinha requintada e o bom senso.

Thomas Lieven detestava: os uniformes, os políticos, a guerra, a insensatez, a força das armas e, também, a mentira, a falta de educação e a grosseria.

Tempo houve em que Thomas Lieven representava o protótipo do bom cidadão, avesso a intrigas e inclinado a levar uma vida estável, calma e confortável.

Foi justamente esse homem que um estranho destino - que será explicado com detalhes - arrancou da vida cômoda que ele havia planejado.

Como conseqüência de vários acontecimentos, violentos e grotescos, o bom cidadão Thomas Lieven foi obrigado a tapear as seguintes organizações: a Abwehr1 e a Gestapo alemãs, o Serviço Secreto britânico, o Deuxième Bureau francês, o FBI americano e a Segurança soviética.

No decorrer de cinco anos de guerra e de doze anos do após-guerra, Thomas Lieven foi obrigado a usar dezesseis passaportes falsos, de nove diferentes países.

Durante a guerra, Thomas Lieven provocou encrencas monumentais para os altos comandos alemães e aliados. Assim procedendo ele não se sentia à vontade.

Uma vez terminada a guerra, teve, durante algum tempo - como todos nós -, a impressão de que o delírio em que vivera, e que o fizera viver, era um capítulo encerrado.

Puro engano.

Os homens que vivem ocultos, à sombra, não queriam deixá-lo em paz. Mas ele vingou-se dos seus perseguidores. Explorou os ricaços do tempo da ocupação, as hienas da reforma monetária e os novos-ricos do ”milagre econômico”.

Para Thomas Lieven, a cortina de ferro não existia. Ele traficava tanto a leste como a oeste. As autoridades tremiam diante dele.

 

1 Serviço de contra-espionagem do Estado-Maior alemão de 1925 a 1944. (N. do E.)

 

Vários deputados das províncias e membros do Parlamento Federal ainda tremem, nos dias de hoje, porque Thomas Lieven está bem vivo e sabe certas coisas a respeito de certos bancos, certas empreitadas de construções, sem falar das encomendas feitas pelo novo Exército alemão...

É evidente que o seu verdadeiro nome não é Thomas Lieven.

Em vista das circunstâncias, ele certamente nos perdoará havermos trocado o seu nome e endereço. Mas a história do homem que foi, outrora, um pacato cidadão, que ainda hoje é um apaixonado pela cozinha e que, sem o querer, tornou-se um dos maiores aventureiros de nossos tempos, essa é absolutamente verídica.

Nós a começamos na noite de 11 de abril de 1957, no momento histórico em que Thomas Lieven dá uma aula erudita sobre o modo de preparar o tempero para uma salada de alface.

Voltemos, pois, à cozinha da villa!

- A salada não deve, nunca, ter contato com metal - disse Thomas Lieven.

Fascinada pelas mãos finas de seu patrão, Kitty sentia novos arrepios ao ouvir as suas explicações.

- Para fazer o molho - disse Thomas Lieven - usaremos uma pitada de pimenta-do-reino, uma pitada de sal e uma colher, das de café, de mostarda forte. Agora, um ovo duro bem picado. Muita salsa. Muita cebolinha. Quatro colheres, das de sopa, de verdadeiro azeite italiano. Kitty, o azeite, por favor.

Kitty, ruborizada, entregou a garrafa.

- Depois do azeite, um quarto de litro de creme fresco, ou azedo, é uma questão de gosto. Eu prefiro o creme azedo.

Nesse momento, a porta da cozinha foi aberta e apareceu um gigante. Trajava calça listrada de cinzento e preto, uma jaqueta listrada de azul e branco, uma camisa branca e gravata, também branca. Cabelos cortados à escovinha cobriam-lhe a cabeça. Caso fosse careca, seria uma segunda edição, algo hipertrofiada, de Yul Brinner.

- Que há, Bastian? - perguntou Thomas Lieven. A voz do empregado tropeçava, um pouco, nas palavras. O sotaque francês era evidente.

 

                       MENU

       SOPA LADY CURZON FRANGO COM PÁPRICA

       ARROZ MAÇAS CRIVADAS DE AMÊNDOAS E

       MOUSSE DE VINHO TORRADAS COM QUEDO

 

11 de abril de 1957

Este jantar deu um lucro de 717 850 francos suíços.

Sopa Lady Curzon - Lady Curzon era a esposa do vice-rei das Índias, lorde Curzon. Seu marido escrevia livros sobre política. Ela elaborava receitas culinárias.

Para a sopa de tartaruga a ilustre senhora recomendava as patas dianteiras do saboroso animal, pois nelas está a melhor carne. Para temperar use estragão, toucinho, gengibre, nozmoscada, cravos-da-índia e curry. Acrescente à sopa um cálice de xerez e - se possível - ovos de tartaruga e pequenas salsichas feitas com tripas de tartaruga recheadas com pequenos pedaços da carne do animal. Se isso parecer muito complicado, o recurso é comprar uma lata de sopa de tartaruga no supermercado, mas não se esqueça de acrescentar uma boa dose de xerez e uma xícara de creme fresco...

Frango com páprica - Asse um frango bem tenro com manteiga mas não o deixe tostar demais. Corte o frango em quatro ou seis pedaços, conforme o tamanho, e conserve-o quente. Usando a mesma manteiga empregada para assar o frango, refogue uma cebola bem picada e uma colher, das de café, de páprica. Adicione um pouco de água, ou de consommé e deixe ferver algum tempo. Junte uma generosa porção de creme azedo misturado com um pouco de maisena. Salgue a seu gosto e acrescente, se for necessário,, mais um pouco de páprica. Para realçar a cor avermelhada, acrescente um pouco de massa de tomate ao molho, mas evite que o gosto de tomate venha a predominar. Envolva os pedaços de frango nesse molho e deixe que eles fiquem bem embebidos.

Arroz - O arroz tem, freqüentemente, a consistência de uma papa. Entretanto, é fácil fazer um arroz bem solto. Lave bem os grãos e cozinhe-os em muito pouca água, durante dez ou quinze minutos. Coloque o arroz num escorredor e derrame sobre ele água fresca. Graças a esse pequeno artifício a farinha colante desaparece totalmente. Pouco antes de servir o arroz, aqueça-o colocando o escorredor sobre uma panela com água em ebulição. A manteiga, o sal ou, se for desejado, o açafrão, o curry ou a pimenta-do-reino, só devem ser acrescentados quando o arroz estiver na travessa para ser servido. Maçãs crivadas de amêndoas e mousse de vinho - Descasque maçãs iguais e bem maduras. Cozinhe-as em calda de açúcar com baunilha - em fogo brando tendo cuidado para que não se desmanchem. Retire-as do fogo e coloque-as num escorredor. Enquanto isso, faça torrar, em forno quente, algumas amêndoas descascadas.

Uma vez escorrida a calda em que foram cozinhadas as maçãs, molhe-as com licor, conhaque ou rum. Arranje-as num prato e sirva-as com a mousse de vinho, que se prepara assim:

Bata duas gemas com cem gramas de açúcar, dissolva vinte gramas de maizena em meia xícara de água e junte um quarto de litro de vinho branco; misture tudo com as gemas batidas e leve ao fogo brando, mexendo constantemente para reduzir o volume. Bata as duas claras de ovos até que fiquem firmes e junte-as à mousse. Pode-se, também, perfumar com rum, conhaque, argnac ou outras bebidas aromáticas.

Torradas ao queijo - Corte pão de forma - descascado - em pequenos pedaços e aplique uma generosa porção de manteiga no meio de cada um deles. Coloque uma fatia de queijo (de preferência Emmental ou Edam) sobre cada pedaço de pão e leve ao forno bem quente durante cinco minutos, até que as torradas fiquem douradas. Sirva bem quente.

- Herr Schallenberg acaba de chegar - disse ele.

- Com pontualidade - disse Thomas. - Eis aí um homem com quem se pode trabalhar.

Lieven retirou o avental.

- Iremos jantar dentro de dez minutos. Bastian servirá. Quanto a você, menina, tem a noite livre.

Enquanto Thomas Lieven lavava as mãos no banheiro ladrilhado de preto, Bastian escovou o casaco do smoking.

- Que tal a aparência do senhor diretor? - perguntou Thomas Lieven.

- O tipo usual - respondeu o gigante. - Gordo e sério. Pescoço de touro e pança de proprietário. O provinciano típico.

- Retrato simpático.

- Ele tem duas cicatrizes no rosto.

- Nesse caso, retiro o que disse.

Thomas vestiu o casaco do smoking. Olhando para a bandeja de bebidas disse, em tom de reprovação:

- Bastian, mais uma vez você disse bom-dia à garrafa de conhaque!

- Só uma gota. Estava um pouco nervoso.

- Então chega. Se acontecer alguma coisa quero que você esteja com as idéias claras. Como poderá dar uns tabefes no senhor diretor se tomar um pileque?

- Aquela massa de toucinho? Mesmo que eu esteja de porre ele é sopa para mim.

- Está bem. Você entendeu bem a combinação sobre os toques de campainha?

- Sim.

- Então repita, para eu ver.

- Um toque: trago o prato seguinte. Dois toques: trago as fotocópias. Três toques: apareço com um porrete.

- Então faça o favor de não confundir.

- Excelente sopa - disse Herr Schallenberg, empertigando-se e tocando os lábios com o guardanapo adamascado.

- Lady Curzon - disse Thomas ao mesmo tempo que tocava, uma vez, o botão da campainha oculta sob a mesa.

- Lady o quê?

- Curzon... é o nome da sopa. Sopa de tartaruga ao xerez e creme.

- Ah, sim, evidentemente.

A chama das velas que ornavam a mesa vacilaram. Era a entrada silenciosa de Bastian, que vinha servir o frango com páprica.

As chamas voltaram à calma. A sua luz, amarela e quente, caía sobre o tapete azul-escuro, a grande e antiga mesa flamenga, as confortáveis cadeiras e o grande aparador, também flamengo.

O frango fez renascer o entusiasmo de Herr Schallenberg.

- Delicioso. Simplesmente delicioso! Quanta amabilidade, senhor, convidando-me à sua casa simplesmente para uma conversa de negócios...

- Uma boa refeição facilita qualquer entendimento, senhor diretor. Sirva-se de um pouco mais de arroz, aí está ele.

- Obrigado. Diga-me agora de que espécie de negócio se trata.

- Mais um pouco de salada?

- Não, obrigado. E então?

- Muito bem - disse Thomas Lieven. - O senhor é o proprietário de uma grande fábrica de papel.

- É exato. Duzentos empregados. Só havia ruínas: reconstruí tudo.

- Uma verdadeira façanha. A sua saúde! - disse Thomas Lieven erguendo o copo.

- A sua saúde.

- Eu sei, cavalheiro, que o senhor fabrica um papel filigranado de alta qualidade.

- Perfeitamente.

- Entre vários outros o senhor fornece o papel filigranado para as novas ações da Deutsche Stahlunion.

- É verdade, as ações da desu. Exigências e controles que não acabam mais. Certamente para que os meus empregados não tenham a idéia de imprimir algumas ações por sua própria conta.

- Ah, ah, ah! Eu desejo, cavalheiro, encomendar-lhe cinqüenta folhas, formato grande, desse papel.

- O senhor deseja... quê?

- Encomendar cinqüenta folhas, formato grande. Como chefe da empresa o senhor poderá, facilmente, evitar os controles.

- Mas, pelo amor de Deus, que pretende fazer com essas folhas?

- Imprimir ações da desu, evidentemente. Que pensa?

Herr Schallenberg dobrou o guardanapo, olhou com pesar para o prato ainda meio cheio e disse:

- Creio que sou obrigado a retirar-me, agora.

- De maneira alguma. Teremos ainda maçãs com mousse de vinho e torradas com queijo.

O diretor levantou-se.

- Esquecerei, cavalheiro, que alguma vez estive nesta casa.

- Tenho as minhas dúvidas - disse Thomas, servindo-se novamente de arroz. - Por que está de pé, Herr Wehrwirtschajtsführer1? Sente-se, por favor.

O rosto de Schallenberg ficou vermelho-escuro.

- Que disse o senhor? - perguntou em voz baixa.

- Eu disse: sente-se. O frango está esfriando.

- O senhor disse Wehrwirtschaftsjührer?

- Certo. É o que o senhor era, muito embora isso lhe tenha escapado à memória quando preencheu, o seu questionário, em 1945. Aliás, para que recordar tais coisas? O senhor tinha conseguido novos documentos e um novo nome. Como Wehrwirtschajtsführer o seu nome era Mack.

- O senhor é um louco!

- Nada disso. O senhor era Wehrwirtschaftsführer no Distrito de Wartha. O seu nome ainda figura na lista de pedidos de extradição do governo polonês. Sob o nome de Mack, é claro, e não Schallenberg.

Schallenberg desmoronou-se sobre a vetusta cadeira flamenga, enxugou a testa com o guardanapo e disse, num fio de voz:

- Não sei, verdadeiramente, por que devo escutar as suas maluquices.

Thomas Lieven suspirou.

- Veja bem, senhor, eu também tive um passado movimentado. Gostaria de desfazer-me dele. Para isso, preciso do seu papel. Imitá-lo levaria muito tempo. Em compensação, conheço impressores de toda confiança... não está se sentindo bem? Vejamos, vejamos!... Tome um gole de champanha, é tonificante... retomemos o fio: naquela época, depois de terminada a guerra, eu tinha acesso a todos os processos confidenciais. O senhor acabara de se esconder em Miesbach...

- Mentira!

- Perdão, eu queria dizer Rosenheim. No Lindenhof. À guisa de protesto, Schallenberg fez um gesto desanimado.

- Eu sabia que o senhor estava escondido lá. Exercendo determinadas funções, eu poderia tê-lo mandado prender. Mas, perguntei a mim mesmo: que interessa isso?

 

1 Wehrwirtschaftsführer ou W.W.F., dirigente da economia do Exército. (N. do E.)

 

Ele será preso e em seguida extraditado. E depois? - Thomas Lieven começou a comer uma perna de frango, com grande apetite. - Em compensação, dizia eu para mim mesmo, se você o deixar em paz, esse cavalheiro virá novamente à tona. A raça não se perde, volta sempre à superfície...

- Moleque - coaxou uma voz que vinha da cadeira flamenga.

-...e, nessa ocasião, ele lhe será muito mais útil. Eis o meu raciocínio naquela época. Agi de acordo com ele e, em verdade, fiz muito bem.

Schallenberg aprumou-se com dificuldade.

- Agora vou direto à polícia apresentar queixa.

- O telefone está na sala vizinha - sob a mesa, Thomas apertou, duas vezes, o botão da campainha.

As chamas das velas vacilaram novamente com a entrada silenciosa de Bastian. Trazia ele uma bandeja de prata sobre a qual havia algumas fotocópias.

- Sirva-se à vontade - disse Thomas. - Entre outras, há uma cópia de um retrato do senhor diretor em uniforme, vários decretos assinados pelo senhor diretor entre 1941 e 1944 bem como cópia de um recibo do tesoureiro-geral do Partido Nacional Socialista referente a um donativo de cem mil marcos para as SA e as SS.

Herr Schallenberg voltou a sentar-se.

- Pode retirar tudo, Bastian. O senhor diretor já terminou.

- Muito bem, senhor.

- Além do mais - disse Thomas após a saída de Bastian -, eu lhe ofereço uma participação de cinqüenta mil. Acha suficiente?

- Eu não cedo à chantagem.

- Não é verdade que o senhor fez donativos importantes durante a última campanha eleitoral? Como é mesmo o nome da revista noticiosa hebdomadária que se interessa por esse gênero de coisas?

- O senhor está completamente louco! Pretende imprimir ações falsas? Acabará na cadeia, e eu também. Se eu lhe der esse papel serei um homem liquidado.

- Não irei para a cadeia. E o senhor não será um homem liquidado, a não ser que não me forneça o papel.

Thomas apertou uma vez a campainha. - O senhor vai comer uma sobremesa de que vai gostar.

- Não comerei mais nada nesta casa de chantagista. - Quando posso contar com o papel, cavalheiro?

- Nunca! - berrou Schallenberg. - O senhor jamais terá uma única folha!

Era quase meia-noite. Thomas Lieven e o seu empregado Bastian estavam no salão diante da lareira, onde ardia o fogo. Vermelhos e dourados, azuis, brancos, amarelos e verdes, os dorsos de centenas de livros da biblioteca luziam na penumbra. Suavemente, saíam da vitrola as notas do Concerto nº 2, de Rachmaninoff.

Thomas Lieven ainda vestia o seu smoking impecável. Bastian tinha o colarinho desabotoado e as pernas sobre uma cadeira; tivera o cuidado, depois de olhar o patrão de soslaio, de proteger o móvel com um jornal.

- Schallenberg entregará o papel dentro de uma semana - disse Thomas. - Quanto tempo levarão os seus amigos com o trabalho de impressão?

- Mais ou menos dez dias - respondeu Bastian, levando à boca um copo com conhaque.

- Então eu partirei para Zurique no dia 1º de maio. É uma bela data o Dia do Trabalho. - Entregou uma ação e uma lista a Bastian. - Aqui está o modelo a ser copiado e também a lista dos números que eu desejo que figurem nas ações.

- Se eu ao menos soubesse o que você está cozinhando - murmurou a cabeça de pêlos de vassoura, com um tom de admiração.

Bastian só tratava o patrão por ”você” quando certo de estar só com ele. Conhecia Thomas há dezessete anos e a sua carreira anterior não era, certamente, a de um empregado doméstico.

Bastian se ligara a Thomas na época em que se conheceram em casa de uma gangster, uma mulher de Marselha. Além disso, ele e Thomas haviam partilhado da mesma cela de prisão. Esse gênero de coisas cria laços fortes entre as pessoas...

- Tommy, você não quer dizer o que está preparando?

- Trata-se, meu caro, de uma coisa muito bela e perfeitamente legal: uma maneira de merecer a confiança de outros. A minha trapaça na Bolsa será algo muito requintado. De fato, vamos bater na madeira, ninguém saberá que se trata de uma trapaça. Todos ganharão dinheiro e todos ficarão contentes.

Thomas Lieven sorriu beatificamente e tirou do bolso um relógio de repetição, de ouro. Esse relógio fora de seu pai. Relógio delgado, com tampa de mola, que o acompanhara através de todas as vicissitudes da existência: perigos, fugas, perseguições. Thomas sempre conseguira escondê-lo, preservá-lo ou reavê-lo. Ele apertou o botão e um argentino e suave carrilhão soou a hora.

- Não consigo entender nada dessa história - disse Bastian meio triste. - Uma ação representa uma parte de uma grande empresa. Os cupons, destacados, dão direito, a prazo determinado, a um dividendo que é a parte que lhes corresponde dos lucros da empresa.

- E então, meu garoto?

- Mas, com mil raios, não há um só banco do mundo onde você possa apresentar os cupons das suas ações falsas. Os seus números são os mesmos de outras ações verdadeiras e que pertencem a um pacato cidadão qualquer. O golpe vai pifar logo de cara.

- É evidente - disse Thomas levantando-se - que os cupons nunca serão apresentados.

- E então? Qual é o truque?

- Espere calmamente pela surpresa - disse Thomas, dirigindo-se para o cofre de parede. Manipulou o segredo e abriu a pesada porta. O cofre continha dinheiro, algumas barras de ouro com chumbo por dentro (e cuja história era divertida) e três caixinhas com pedras preciosas, umas soltas e outras montadas. Na parte da frente havia uma pilha de passaportes.

- Para maior segurança - disse Thomas, pensativo - será preferível que eu vá à Suíça com um outro nome. Vejamos o que nos resta em matéria de passaportes, alemães. - Sorriu ao ler os nomes. - Meu Deus!... quantas recordações: Jacques Hauser... Peter Scheuner... barão Ludwig von Trendelenburg... Wilfried Ott...

- Foi Trendelenburg que arranjou aquela encrenca com os Cadillacs no Rio - disse Bastian pensativo. - No seu lugar, eu deixaria de lado o barão. Hauser também. Eles ainda o estão procurando, na França.

- Queira sentar-se, Herr Ott. Em que lhe podemos ser úteis? - perguntou o diretor dó departamento de títulos, deixando cair sobre a mesa o cartão de visitas: ”Wilfried Ott, industrial, Düsseldorf”. O diretor do departamento de títulos chamava-se Jules Vermont e a sua sala ficava no primeiro andar do edifício do Banque Centrale Suisse, em Zurique.

- O senhor é francês? - perguntou Thomas Lieven, que, momentaneamente, se chamava Wilfried Ott.

- Por parte de mãe.

- Então, falemos em francês - sugeriu Thomas Lieven, aliás Wilfried Ott, falando nessa língua e sem qualquer sotaque.

O rosto de Jules Vermont irradiou contentamento.

- Posso abrir uma conta anônima em seu banco?

- Certamente, monsieur.

- Acabo de adquirir algumas ações novas da desu. Gostaria de deixá-las na Suíça, mas não quero depositá-las em meu nome.

- Compreendo perfeitamente - disse Vermont, piscando o olho. - O danado do fisco alemão, hein?

Os depósitos de valores pertencentes a estrangeiros não eram nenhuma novidade para ele. Em 1957, o total dos depósitos de estrangeiros, na Suíça, elevava-se a cento e cinqüenta milhões de francos.

- Ah, ia-me esquecendo. Quer fazer o favor de destacar os cupons de 1958 e 1959? Não sei quando voltarei a Zurique e prefiro levá-los comigo para receber os dividendos nas épocas próprias. Isso evitará trabalho ao seu banco. - ”É a mim”, pensou ele, ”os trabalhos forçados...”

A transação foi rapidamente concluída. Em seu bolso tinha agora Thomas Lieven um recibo de depósito do que Centrale Suisse, atestando que Herr Wilfried Ott, industrial de Düsseldorf, Alemanha Federal, havia depositado ações novas da desu no valor nominal de um milhão de marcos.

No seu carro esporte, que chamava a atenção mesmo em Zurique, voltou ao Hotel Baur au Lac. No hotel, todo o pessoal o estimava. É verdade que ele era estimado pelo pessoal de todos os hotéis onde se hospedava. Isso se devia à sua gentileza, às suas opiniões democráticas e às suas gorjetas.

Tomou o elevador e foi para o seu apartamento. Dirigiu-se, logo, ao banheiro e confiou os cupons destacados, dos anos-1958 e 1959, aos bons cuidados e à eficiência da descarga do vaso sanitário. Assim, não haveria nenhuma surpresa desagradável. A sala do apartamento dava para um terraço. Thomas sentou-se numa banqueta colorida, contemplou, com prazer, os pequenos barcos que vagavam nas águas cintilantes do lago e ficou meditando. Depois, usando a sua lapiseira de ouro e o papel timbrado do hotel, redigiu o seguinte anúncio:

INDUSTRIAL ALEMÃO

Procura financiamento na Suíça, prazo de dois anos, juros elevados e garantia de primeira ordem. Somente as ofertas absolutamente sérias e com referências bancárias serão levadas em consideração.

Este anúncio apareceu, dois dias mais tarde, bem visível, nas páginas de publicidade da Neuen Zürcher Zeitung. No decorrer dos três dias seguintes quarenta e seis cartas foram entregues ao jornal com o número indicado.

Sentado no terraço, de onde se via um céu radioso, Thomas examinava, atentamente, as respostas. Elas se dividiam em quatro categorias: Dezessete eram de agências imobiliárias, de antiquários, de joalheiros e de vendedores de automóveis. Não ofereciam dinheiro mas gabavam a qualidade de suas mercadorias.

Dez cartas eram de cavalheiros que não tinham dinheiro mas se ofereciam para facilitar encontros com outros cavalheiros que, supostamente, o tinham.

Onze cartas, acompanhadas ou não de fotografias, eram de senhoras que não ofereciam dinheiro mas, em compensação, ofereciam o seu charme, ou a falta dele.

E, enfim, oito cartas eram de pessoas que ofereciam dinheiro.

Thomas Lieven rasgou, em pedacinhos, as trinta e oito cartas das primeiras categorias. Dentre as restantes, duas despertaram o seu interesse por serem de tipos inteiramente contraditórios.

A primeira fora escrita numa máquina de má qualidade, em papel de má qualidade e num estilo duvidoso. O signatário propunha ”... mediante juros que me interessem, soma até 1.000.000 de francos suíços”. A oferta estava assinada: Pierre Muerrli, negociante de imóveis.

A outra carta era bem redigida, a mão, em letra pequena e graciosa. O papel de melhor qualidade, ligeiramente amarelado, era encimado por uma pequena coroa dourada.

O texto era o seguinte:

Chateau Montenac,

8 de maio de 1957 Prezado Senhor:

Com relação ao vosso anúncio na Neuen Zürcher Zeitung, ser-me-ia agradável receber a vossa visita. Peço a fineza de avisar-me, por telefone, dia e hora que melhor convierem. Queira aceitar...

  1. de Couville.

Thomas colocou uma ao lado da outra essas duas cartas tão diferentes e contemplou-as pensativo. Sempre pensativo, tirou do bolso do colete o relógio de ouro e fez soar o carrilhão de som argentino: uma, duas, três... depois mais duas pancadas: três horas e meia.

”Pierre Muerrli”, pensou Thomas, ”é sem dúvida um homem bastante rico, embora avarento.” Ele comprava papel de má qualidade e usava uma velha máquina de escrever.

Esse H. de Couville escrevia a mão mas em papel de luxo. Um conde? Um barão?

Vamos ver a cara do cliente...

O Chateau Montenac erguia-se no meio de um parque imenso, na encosta sul do Monte Zurique. Uma estrada de cascalho, em ziguezague, levava a um pequeno palácio, de paredes rebocadas de amarelo e janelas verdes. Thomas parou o carro diante de uma larga escadaria.

Um empregado, excepcionalmente arrogante, apareceu subitamente.

- M. Ott? Queira seguir-me.

Levou-o através de várias peças luxuosas até um living-room igualmente luxuoso.

Uma mulher, jovem, fina e elegante, de uns vinte e oito anos, levantou-se da cadeira junto a uma secretária de formas graciosas. Os cabelos castanhos e ondulados chegavam-lhe quase aos ombros. A boca, grande, tinha um brilho rosa-claro. Os olhos eram castanhos e amendoados; as maçãs, salientes. Essa senhora tinha, ainda, cílios longos e sedosos e uma pele de veludo e ouro.

Thomas recebeu um choque. As mulheres tinham sempre exercido uma ação devastadora em sua vida.

”Esse gênero”, pensou ele, ”aparenta sempre a mesma atitude: indiferença, frieza e arrogância. Mas, quando a intimidade é maior... cuidado com o vulcão!”

A jovem senhora olhou-o com ar sério:

- Bom dia, Herr Ott. Nós nos falamos ao telefone. Queira sentar-se, por favor.

Ela sentou-se e cruzou as pernas. A saia subiu, ligeiramente, deixando ver o joelho.

”Até as pernas são bonitas”, pensou Thomas.

- O senhor procura um financiamento e fala em garantias de primeira ordem. Posso saber de que se trata?

”Ela está indo um pouco longe”, pensou Thomas. Respondeu friamente.

- Não me parece útil importuná-la com detalhes.

Gostaria que fizesse a fineza de prevenir M. de Couville de que aqui estou. Ele escreveu-me.

- Fui eu que escrevi. Sou Hélène de Couville. Trato dos negócios do meu tio - explicou a jovem senhora, ainda mais friamente. - Portanto, Herr Ott, qual é a sua garantia de primeira ordem?

Thomas inclinou-se, sorrindo.

- Novas ações da desu depositadas no Banque Centrale Suisse. Valor nominal: um milhão. Cotação das ações antigas: duzentos e dezessete.

- Que juros oferece o senhor?

- Oito por cento.

- E que soma deseja?

- Setecentos e cinqüenta mil francos suíços.

- Como?

Thomas Lieven viu, com surpresa, que Hélène de Couville perdera, subitamente, a calma. Umedecia os lábios com a língua. As pálpebras batiam.

- Não acha tal soma... bem... um pouco elevada, Herr Ott?

- Mas, por quê? Com a cotação atual?

- Evidentemente sim... mas... - levantou-se. - Lamento, mas creio que terei mesmo que ir chamar o meu tio..Queira desculpar-me, é um instante.

Ele levantou-se. Ela desapareceu. Ele tornou a sentar. Pelo seu relógio, esperou oito minutos. Seu instinto, adquirido durante vários anos de atividades ilegais, dizia: ”Algo não está certo aqui, mas, que será?”

A porta se abriu e a jovem entrou. Estava acompanhada por um homem alto, magro, de rosto queimado pelo sol e com um queixo forte. Seus cabelos eram curtos e de um grisalho cor de aço. Vestia paletó sobre uma camisa de náilon.

Hélène fez as apresentações.

- Meu tio, o barão Jacques de Couville.

Os dois homens apertaram-se as mãos. ”Uma munheca de cowboy!”, pensou Thomas, cada vez mais desconfiado. ”E uma queixada de quem não pára de mascar chicletes. E um sotaque... Se esse tipo é um aristocrata francês, eu sou o papa.”

Tinha decidido abreviar o assunto.

- Barão, creio que assustei a sua sobrinha. Esqueçamos esse negócio. Tive muita honra em conhecê-lo.

- Espere um pouco, M. Ott. Por favor, não tenha tanta pressa. Sentemo-nos. - O barão também estava nervoso. Tocou a campainha. - Bebamos algo e conversemos calmamente.

Quando o empregado arrogante trouxe os copos, o uísque era bourbon, e não escocês.

”Este Couville me agrada cada vez menos”, pensava Thomas.

O barão voltou ao assunto. Confessou que, na verdade, pensara numa soma muito menor... talvez cem mil?

- Barão, não pensemos mais no caso - disse Thomas.

- Ou talvez cento e cinqüenta mil...

- Realmente, barão!

- Talvez mesmo duzentos mil... - O tom era quase suplicante.

Subitamente, o empregado arrogante apareceu e anunciou um chamado telefônico internacional. O barão e a sobrinha saíram da sala.

Essa nobre família começava a divertir Thomas. Após uns dez minutos o barão voltou só. Estava lívido e suava em bicas. Thomas ficou com pena do coitado, mas despediu-se imediatamente.

Encontrou Hélène, no saguão.

- Já de partida, monsieur?

- Eu já os importunei demais - disse Thomas, beijando-lhe a mão. Sentindo o seu perfume e o contato com sua pele, prosseguiu: - A senhora me daria um grande prazer se quisesse jantar comigo no Baur au Lac, ou onde

preferir. Aceita?

- Herr Ott - disse Hélène; dir-se-ia que era uma estátua de mármore que falava -, ignoro quanto o senhor bebeu mas julgo que é esta a sua desculpa. Adeus.

A esterilidade da conversa com o barão de Couville contrastou com a rapidez com que foi fechado o negócio com o negociante de imóveis Pierre Muerrli. De volta ao hotel, Thomas chamou-o pelo telefone e, em poucas palavras, disse-lhe que queria um empréstimo de setecentos e cinqüenta mil francos, dando em garantia um love de ações da desu.

- Não deseja mais? - perguntou Pierre Muerrli, num suíço-alemão gutural.

- Não, senhor, é suficiente - disse Thomas, que pensava: ”É bom não exagerar”.

O negociante veio ao hotel. Era um homem robusto e avermelhado que sabia o valor do tempo. No outro dia, o seguinte contrato foi lavrado perante um notário:

Herr Wilfried Ott, industrial de Düsseldorf, assume o compromisso de pagar os juros anuais de oito por cento sobre o empréstimo que recebeu, no montante de setecentos e cinqüenta mil francos. Este empréstimo será pago até a meia-noite de 9 de maio de 1959.

Até a referida data, Herr Pierre Muerrli, negociante de imóveis em Zurique, assume o compromisso de não alienar as ações que Herr Ott lhe entregou como garantia. No caso de o empréstimo não ser liquidado até a data convencionada, Herr Muerrli fica com o pleno direito de dispor das ações, como lhe aprouver.

Cada um com a sua cópia do contrato no bolso, Thomas e Muerrli foram ao Banque Centrale. A autenticidade do recibo do depósito das ações foi confirmada. No escritório de Pierre Muerrli foi entregue a Thomas um cheque, ao portador, na importância de setecentos e dezessete mil, oitocentos e cinqüenta francos suíços, representando o montante do empréstimo, menos os juros e despesas.

Thomas conseguira, pois, graças a um passe de mágica, setecentos e dezessete mil, oitocentos e cinqüenta francos suíços. Ele tinha a intenção e a possibilidade de fazer trabalhar esse capital durante dois anos. Não lhe restava mais que pagar o empréstimo, na data do vencimento, em 1959, e recuperar as ações falsas, rasgá-las em pedacinhos e fazê-las desaparecer nos lavatórios. Todos ganhariam dinheiro, ninguém teria prejuízo. E o que é mais: ninguém saberia a verdade sobre esse golpe de astúcia. Pronto, era simples. Quando se quer, a coisa funciona mesmo!...

Quando Thomas Lieven, aliás Wilfried Ott, entrou, algumas horas mais tarde, no saguão do hotel, viu Hélène de Couville em uma poltrona.

- Você veio! Que alegria!

Depois de um tempo enorme Hélène levantou os olhos do jornal de modas que folheava. Quando falou, havia um tom de tédio em sua voz:

- Ah... bom dia.

O tempo estava fresco e ela usava um casaco de vison canadense sobre o vestido castanho-escuro. Os olhares masculinos a seguiam constantemente.

- A senhora está um pouco atrasada - disse Thomas -, mas estou feliz por ter podido vir.

- De uma vez por todas, não estou aqui para vê-lo. Vim ver uma amiga que mora aqui.

- Se não é possível hoje, então talvez amanhã, para

um aperitivo matinal.

- Amanhã eu parto para a Cote d’Azur.

- Que coincidência - disse Thomas, batendo as mãos surpreso. - Eu também vou amanhã para a Cote d’Azur. Irei buscá-la. Digamos, às onze horas?

- Absolutamente não. Eis a minha amiga - disse ela, levantando-se. - Passe bem, se puder.

No dia seguinte, às onze horas e sete minutos, Hélène de Couville saía do parque do castelo num pequeno carro tipo esporte, e passou diante de Thomas. Ele curvou-se e ela virou os olhos para o lado. Ele entrou em seu carro e seguiu-a.

Até Grenoble não houve nada de especial. Ao sair de Grenoble o carro de Hélène parou e ela saltou. Ele parou ao lado.

- O motor - disse ela.

Ele examinou o motor sem descobrir a causa do enguiço.

Entrementes, Hélène foi a uma casa próxima para telefonar para uma garagem. Pouco depois chegou um mecânico que informou que a bomba estava inutilizada. Seria necessário rebocar o carro e o conserto levaria, no mínimo, dois dias.

Thomas estava seguro de que o mecânico mentia para poder aumentar a conta, mas também contentíssimo por encontrar um mentiroso. Convidou Hélène para prosseguir a viagem em seu carro.

Depois de muito hesitar ela aceitou, dizendo: - É muito amável de sua parte, Herr Ott.

As malas foram mudadas. O mecânico mentiroso recebeu, escondido, uma gorjeta de príncipe.

No decurso dos cem quilômetros seguintes, ela só pronunciou uma palavra: tendo Thomas espirrado, disse ”saúde”.

Depois dos outros cem quilômetros disse que ia encontrar o noivo em Monte Cario.

- Coitado - disse Thomas. - Não terá muitas alegrias.

Chegando a Monte Cario ele levou Hélène, como ela pedira, ao Hotel de Paris. Havia um recado na recepção para ela. Seu noivo estava retido em Paris e não podia vir.

- Eu ficarei com o apartamento desse senhor - disse Thomas.

- Muito bem, monsieur - disse o chefe da recepção, embolsando a nota de cinco mil francos.

- Mas, se o meu noivo conseguir vir...

- Nesse caso ele terá que procurar outra acomodação. - Levou Hélène para um lado e lhe disse ao ouvido: - Além do mais, esse homem não é para você. Não está vendo nisso a mão da Providência?

A jovem, subitamente, riu às gargalhadas. Eles passaram dois dias em Monte Cario, depois foram a Cannes e se hospedaram no Carlton. Thomas gostava dessa vida. Levou Hélène a Nice, Saint-Raphael, Saint-Maximo e Saint-Tropez. Juntos banhavam-se no mar. Ele alugou uma lancha e juntos esquiaram. Juntos ficaram dourados pelo sol das praias.

Hélène ria-se das mesmas coisas que ele, gostava dos mesmos pratos, dos mesmos livros e dos mesmos quadros.

Quando, ao fim de sete dias de sonho, ela se tornou sua amante, ele constatou que eles se entendiam sob todos os aspectos. Depois veio o acontecimento: na primeira hora do oitavo dia.

Com os olhos úmidos, Hélène estava deitada no leito de seu quarto. Thomas estava sentado ao seu lado. Ambos fumavam. Thomas acariciava os seus cabelos.

Trechos de uma música distante entravam pela janela. Apenas um abajur de cabeceira estava aceso.

Hélène suspirou, espreguiçando-se:

- Will, eu estou tão feliz... - Ela o chamava Will. Julgava ”Wilfried” wagneriano demais.

- Eu também meu amor, eu também.

- De verdade?

Eis novamente esse olhar preocupado nos olhos amendoados. Olhar que Thomas não podia explicar.

- De verdade, querida.

Subitamente virou-se para o lado de maneira que Thomas não via mais que o seu magnífico dorso bronzeado e com reflexos dourados. Com um frenesi assustador, ela soluçava sobre os travesseiros.

- Eu lhe menti. Sou má, muito má.

Ele deixou-a soluçar algum tempo, depois disse, com moderação:

- Se é a respeito do seu noivo... Ela se atirou, de costas, e gritou:

- Noivo coisa alguma. Não tenho noivo! Ah! Thomas, Thomas!

- Que é que você acaba de dizer?

- Eu não tenho noivo.

- Não, não foi isso. - Ele sentiu um nó na garganta. - Você acaba de dizer ”Thomas”?

- Sim - soluçou ela, e grandes lágrimas corriam pela sua face, desciam para o pescoço e o peito. - Sim, certamente que eu disse ”Thomas”. Pois esse é o seu nome, meu Thomas Lieven, meu pobre querido... Por que o encontrei? Nunca em minha vida amei alguém como amo você... - Novos sobressaltos, nova crise de lágrimas. - E é a você que eu faço isso, a você...

- Que me faz você?

- Eu trabalho para o FBI - gemeu Hélène.

Thomas nem reparou que a brasa do seu cigarro estava quase chegando aos seus dedos. Ficou em silêncio por muito tempo. Depois suspirou profundamente:

- Meu Deus, será que tudo vai recomeçar?

- Eu não queria lhe dizer... - balbuciou Hélène. - Eu não tenho o direito de lhe dizer... Eles vão me mandar embora... mas era preciso que eu contasse tudo, depois do que aconteceu esta noite... Eu estava sufocando...

- Devagar - disse Thomas, que pouco a pouco recuperava o sangue-frio. - Comecemos pelo princípio. Você é agente americana?

- Sim.

- E o seu tio?

- É o meu chefe, o coronel Herrick.

- E o Chateau Montenac?

- Alugado. Os nossos homens na Alemanha anunciaram que você preparava um grande golpe. Depois veio a Zurique. Quando o seu anúncio foi publicado, fomos autorizados a oferecer até cem mil francos.

- Para quê?

- O anúncio cheirava a golpe. Não sabíamos qual, mas iríamos descobrir. Se tudo desse certo, o teríamos seguro. O FBI quer pegá-lo por qualquer meio. É uma idéia fixa!

Ela recomeçou a chorar. Thomas enxugou-lhe as lágrimas.

- Depois, você pediu setecentos e cinqüenta mil. Nós chamamos Washington a toda pressa. Eles responderam que setecentos e cinqüenta mil era uma loucura. Não queriam correr risco tão grande. Assim, eu fui encarregada do caso...

- Encarregada do caso - repetiu ele, como um débil papagaio.

-... e parti. Era tudo cinema. O mecânico de Grenoble...

- E eu, grande cretino, ainda lhe dei uma gorjeta.

-...o noivo... tudo uma farsa! E agora... agora estou apaixonada por você e sei que eles serão capazes até de o matar, se não quiser trabalhar para nós.

Thomas levantou-se.

- Fique comigo.

- Volto já, querida - disse ele pensativo. - É preciso que eu reflita com tranqüilidade. Quero que saiba que tudo isso já me aconteceu antes...

Deixou-a chorando, atravessou a sala e entrou em seu quarto. Sentou-se à janela e contemplou longamente a noite. Depois apanhou o telefone, esperou a resposta da mesa e disse:

- Ligue-me com o chefe da cozinha... Não, é importante... acorde-o...

Cinco minutos depois soava a campainha do telefone.

Thomas pegou o fone.

- Gaston? Ott falando. Acabo de receber um golpe duro. Gostaria de comer algo leve e tonificante. Faça-me um coquetel de tomate e alguns croquetes de sardinha...

Obrigado.

Recolocou o fone no gancho.

”Pois é”, pensou ele, ”não há escapatória. Eles me têm seguro, em 1957, como já me tiveram em 1939!”

Através da porta aberta do terraço, Thomas Lieven contemplou a Corniche d’Or deserta e as estrelas inacessíveis e indiferentes que brilhavam sobre o Mediterrâneo. Do seio das trevas aveludadas pareciam surgir, de repente, os homens e as mulheres de seu passado, deslizando em sua direção... cada vez mais próximos: belezas fascinantes, aventureiras frias como gelo, magnatas poderosos, negociantes desonestos, assassinos sem escrúpulos, chefes de bandos, grandes capitães.

Era toda a sua vida que perpassava, essa vida desregrada e aventurosa que agora completava um círculo que começara num belo dia do mês de maio de 1939...

 

No dia 24 de maio de 1939, às dez horas menos dois minutos da manhã, um conversível Bentley, preto, parou diante da porta do nº 122 da Lombard Street, no coração do distrito bancário, em Londres.

Um homem, jovem e elegante, saltou. O bronzeado de sua pele, a sua desenvoltura e os seus cabelos castanhos, ondulados e indisciplinados, contrastavam, de maneira singular, com a elegância, quase pedante, do seu modo de trajar. Sua calça, listrada de cinzento e preto, tinha um vinco impecável. Seu casaco, curto e cruzado, era preto. Também preto o colete, onde luzia uma corrente de ouro. A camisa era branca e de colarinho postiço; a gravata, cinza-pérola.

Antes de fechar o carro, o moço enfiou o braço no interior e de lá retirou um chapéu coco, um guarda-chuva e dois jornais: o Times e a edição em papel cor-de-rosa do Financial Times.

Assim preparado, Thomas Lieven, de trinta anos de idade, entrou no prédio em cujo portal havia uma placa de mármore negro com os seguintes dizeres:

MARLOCK & LIEVEN DOMINION AGENCY

Thomas Lieven era o mais jovem dos chamados banqueiros privados de Londres, o que não lhe impedira o sucesso. Devia ele a sua carreira ultra-rápida à sua inteligência, à faculdade de parecer sério e ao talento de ser capaz de viver, simultaneamente, duas vidas totalmente diferentes.

Na Bolsa, as suas atitudes eram da mais perfeita correção. Fora daquele recinto sagrado, ele voltava a ser o simpático conquistador que adorava as saias. Ninguém desconfiava - a não ser os que estivessem mais diretamente interessados - que nos seus períodos favoráveis não lhe era difícil manter até quatro ligações amorosas ao mesmo tempo. Ele era tão valente quanto discreto.

Thomas Lieven podia comportar-se com mais aprumo que o mais esnobe dos gentlemen da City, mas uma vez por semana ia dançar num dos cabarés mais alegres e agitados do Soho. Duas vezes por semana freqüentava, em segredo, aulas de judô.

Thomas Lieven amava a vida e esta parecia corresponder-lhe o afeto. Tudo era fácil, contanto que dissimulasse a sua pouca idade...

Robert E. Marlock, seu sócio, estava na sala onde havia os guichês para o público. Thomas Lieven entrou, erguendo circunspectamente o chapéu coco.

Marlock, quinze anos mais velho que o sócio, era alto e magro. Seus olhos esbranquiçados tinham um modo pouco simpático de evitar o olhar dos que para ele olhavam.

- Bom dia - disse ele, olhando, como de costume, em outra direção.

- Bom dia, Marlock - disse Thomas em tom sério. - Bom dia, senhores.

Sentados às suas mesas os seis funcionários responderam ao cumprimento com o mesmo tom sério. ~~ Marlock estava junto a uma coluna de metal sobre a qual, protegido por uma campanula de vidro, o aparelho registrador das cotações da Bolsa vomitava uma fita, aparentemente sem fim, com informações do que estava acontecendo a distância.

Thomas aproximou-se de seu sócio e examinou os algarismos da fita. As mãos de Marlock tremiam ligeiramente. Um observador atento diria que tais mãos eram as de um trapaceiro. Até o momento, entretanto, a desconfiança não penetrara na alma serena de Thomas Lieven.

- Quando é que você vai a Bruxelas? - perguntou Marlock, algo nervoso.

- Esta noite.

- É mais que tempo. Veja como as cotações estão baixando! São as conseqüências desse maldito Pacto de Aço. Você já leu os jornais, Lieven?

- Certamente - disse Thomas. Ele achava mais correto responder ”certamente” que com um simples ”sim”.

Os jornais dessa manhã de 24 de maio de 1939 anunciavam a assinatura de um tratado de aliança entre a Alemanha e a Itália. Esse tratado recebera o nome de Pacto de Aço.

Atravessando a sala dos guichês, meio escura e antiquada, chegou à sua sala, também antiquada e pouco clara. Marlock o seguira e sentou a sua magra carcaça numa das poltronas de couro, em frente à grande mesa de trabalho.

Os dois sócios discutiram, preliminarmente, sobre os títulos que Thomas deveria adquirir no continente e sobre os que deveria vender. Marlock & Lieven tinha uma sucursal em Bruxelas. Thomas, por sua vez, tinha uma participação num banco particular de Paris.

Quando acabaram de falar sobre negócios, Marlock, quebrando o seu velho hábito, olhou de frente para o sócio.

- Escute, Lieven, quero pedir-lhe um favor pessoal. Suponho que você se recorde de Lúcia...

Thomas lembrava-se muito bem de Lúcia. Era uma bela loira, de Colônia, que fora durante anos a amiguinha de Marlock, em Londres. Algo de sério acontecera - ninguém sabia exatamente o que fora - pois Lúcia voltara subitamente para a Alemanha.

- Peço desculpas por caceteá-lo com essa história - disse Marlock, que continuava, com esforço, a olhar de frente para o jovem sócio. - O fato é que eu pensei que, tendo que ir a Bruxelas, você poderia ir até Colônia para falar com Lúcia.

- A Colônia? Por que não vai você mesmo? Você também é de nacionalidade alemã...

- Eu iria de boa vontade até Colônia - disse Marlock -, mas a situação internacional... Além do mais eu ofendi profundamente a Lúcia, naquela ocasião. Eu sou absolutamente franco. - Marlock dizia freqüentemente e sem motivo que era absolutamente franco... - Sim, absolutamente franco. Houve uma outra mulher. Lúcia tinha toda a razão de deixar-me. Diga-lhe que peço perdão... Que saberei reparar meu erro... Gostaria que ela voltasse...

Sua voz tinha o mesmo timbre de emoção que a dos políticos quando falam de seus anseios pela paz.

Na manhã do dia 26 de maio de 1939 Thomas Lieven chegava a Colônia. Grandes bandeiras com a cruz gamada flutuavam sobre o Dom Hotel. Bandeiras com a cruz gamada flutuavam sobre toda a cidade. Festejava-se o Pacto de Aço. Thomas via uniformes por toda parte. No saguão do hotel os tacões das botas estalavam como tiros de pistola. Um retrato do Führer estava entronizado sobre a mesa do seu quarto. Thomas prendeu na moldura o seu bilhete de volta. Em seguida tomou um banho quente, vestiu-se e telefonou para Lúcia Brenner.

Quando atenderam o telefone ouviu-se um estalo ao qual Thomas não prestou atenção. Em 1939 o superagente de 1940 ainda ignorava todos os métodos de escuta secreta.

- Aqui fala Lúcia Brenner.

Era a mesma voz excitante e enrouquecida pelo fumo que ele tão bem conhecia.

- Frãulein Brenner, quem fala é Thomas Lieven. Acabo de chegar a Colônia e... - parou de falar, pois, embora não tivesse ouvido um novo estalo na linha, ouviu perfeitamente o grito surdo de sua interlocutora.

- Foi um grjto de alegria? - indagou com um sorriso nos lábios.

- Meu Deus! - exclamou ela. Novo estalinho.

- Marlock pediu que eu a visitasse, senhorita.

- O canalha!

- Mas não é bem assim, senhorita...

- O horrível canalha!

- Por favor, ouça-me, senhorita! Marlock encarregou-me de pedir-lhe perdão por ele. Posso ir procurá-la?

- Não!

- Mas eu prometi...

- Desapareça, Herr Lieven. Tome o primeiro trem. O senhor não sabe o que se passa aqui...

A linha fez craque outra vez, mas Lieven não prestou atenção.

- Mas não, senhorita, a senhorita é que não sabe o que se passa...

- Herr Lieven...

- Fique em casa. Chegarei dentro de dez minutos. Desligou e endireitou o laço da gravata. Sentia um grande desejo de agir.

Um táxi levou Thomas, de chapéu coco e guardachuva impecavelmente enrolado, à residência de Lúcia Brenner. Fez soar a campainha da porta do apartamento no segundo andar. Ouviu vozes murmurantes do lado de dentro. Uma voz de mulher e uma voz de homem. Não sendo normalmente desconfiado, Thomas ficou apenas ligeiramente intrigado.

A porta foi aberta e Lúcia apareceu. Vestia um robe de chambre que aparentemente nada tinha por baixo. Estava nervosíssima.

- Você é um biruta - gemeu ela ao reconhecer Thomas.

Depois, tudo se passou vertiginosamente. Por trás de Lúcia apareceram dois homens. Vestiam casacos de couro e pareciam açougueiros. Um deles empurrou Lúcia bruscamente e o outro agarrou Thomas pela manga.

Adeus fleuma, calma e prudência! Com as duas mãos Thomas segurou o pulso do açougueiro e girou para o lado, como se executasse um passo de bailado. O açougueiro, assombrado, pendia do flanco direito de Thomas Lieven.

Uma espécie de reverência brusca e uma articulação estalou. Com um berro estridente, o açougueiro voou pelos ares e estatelou-se no chão, torcendo-se em dores. ”Às lições de judô”, pensou Thomas, ”foram um bom emprego de capital.”

- E agora você - disse ele avançando para o segundo açougueiro.

A loira Lúcia desandou a berrar. O segundo açougueiro recuou gaguejando:

- C-cavalheiro, não ca-cavalheiro. N-não faça isso... - Sacou um revólver do bolso. - Eu o previno. Seja razoável.

Thomas parou. Só um imbecil ataca, desarmado, a um açougueiro com um revólver.

- Em nome da lei - disse o açougueiro, temeroso -, eu o prendo!

- Quem me prende?

- Gestapo.

- Diabos! - disse Thomas Lieven. - Quando eu contar esta história no clube...

Thomas Lieven gostava do seu clube em Londres e o clube gostava dele. Todas as quintas-feiras havia reunião e diante da lareira crepitante, fumando seus cachimbos, os sócios contavam histórias, algumas delas bastante aloucadas.

”Quando eu voltar”, pensava Thomas, ”terei uma história nada má.”

Não, a história não era má e, dentro em pouco, ficaria ainda melhor. Mas, quando chegaria o dia de Thomas contar a história no clube? Quando voltaria ele a ver o seu clube?

Nesse dia de maio de 1939, sentado numa sala da seção especial D do quartel-general da Gestapo, em Colônia, ele ainda estava otimista. ”Evidentemente tudo não passa de um mal-entendido”, pensava; ”dentro de meia hora estarei livre.”

O comissário que recebeu Thomas chamava-se Haffner, um homem gordo com olhos porcinos e ardilosos. Um homem cuidado. Limpava constantemente as unhas com palitos que substituía freqüentemente.

- Acabo de saber que você agrediu a um colega - disse Haffner em tom rancoroso. - Você terá motivos para arrepender-se, Lieven.

- Herr Lieven, para o senhor. Que desejam comigo? Por que fui preso?

- Violação da lei sobre divisas. Há muito tempo eu o espero.

- Eu?

- O senhor ou o seu sócio Marlock. Desde que essa Lúcia Brenner voltou de Londres ela tem sido vigiada. Dizia, para mim mesmo: ”Mais cedo ou mais tarde um desses salafrários dará as caras por aqui. E nesse dia: zás”. - Haffner empurrou uma pasta que estava sobre a mesa.

- É melhor que eu mostre os documentos que o incriminam. Depois disso, o senhor fechará a sua grande boca.

Cheio de curiosidade, Thomas começou a folhear o volumoso processo. Depois de algum tempo, não pôde conter o riso.

- Que é tão engraçado? - perguntou Haffner.

- Ouça, esta história é simplesmente incrível.

Os documentos mostravam que o banco particular de Londres Marlock & Lieven havia cometido, havia alguns anos, uma falcatrua tremenda contra o Terceiro Reich. Para conseguir seus desígnios dolosos, valera-se do fato de que, devido à situação política,’ os títulos hipotecários alemães eram negociados, há anos, na bolsa de Zurique, pela quinta parte de seu valor nominal.

Em janeiro, fevereiro e março de 1936, Marlock & Lieven, ou alguém operando acobertado por essa firma, comprara, em Zurique, um certo número dos tais títulos, pagando-os com marcos ilegalmente transferidos. Depois, um testa-de-ferro de nacionalidade suíça foi encarregado de comprar algumas obras de ”arte decadente”, sem valor na Alemanha, mas apreciadíssimas no resto do mundo. As autoridades nazistas permitiram a exportação dos quadros. Isso as desembaraçava de peças de arte ”indesejáveis” e fazia entrar as divisas tão necessárias ao rearmamento. Tanto mais que o testa-de-ferro teve que pagar trinta por cento do valor em francos suíços.

É verdade que os outros setenta por cento foram pagos

- os nazistas só o verificaram muito mais tarde - com os títulos hipotecários alemães que, voltando à mãe-pátria, readquiriram o seu valor nominal -, isto é: cinco vezes mais do que Marlock & Lieven pagaram por eles em Zurique.

”Não fui eu que inventei essa marmelada”, disse Thomas Lieven para si mesmo, enquanto estudava os documentos. ”Portanto, só pode ter sido Marlock. Ele deve ter tido conhecimento de que os alemães o procuravam e que Lúcia Brenner estava sob vigilância. Sabia, portanto, que eu seria preso e que não acreditariam numa só palavra do que eu dissesse. Tudo isso para ficar livre de mim e com o banco só para ele. Raios o partam, traidor de uma figa!”

- Bem - disse o comissário, satisfeito -, isto tapa definitivamente a sua boca, não é verdade? - Pegou um novo palito e começou a limpar os dentes.

”Que fazer?”, pensou Thomas. Uma idéia surgiu. Não muito boa, mas não havia outra melhor...

- Posso telefonar?

Haffner semicerrou os olhos porcinos:

- Com quem quer falar?

”Agora ou nunca”, pensou Thomas, ”só me resta jogar tudo por tudo.”

- Ao barão von Wiedel.

- Não conheço.

- Sua Excelência o barão von Wiedel - berrou Thomas, subitamente -, embaixador extraordinário, no Ministério das Relações Exteriores! Não o conhece?

- Eu... eu...

- Retire o palito da boca quando fala comigo.

- Que deseja você com o barão? - balbuciou Haffner, que só estava acostumado a lidar com burgueses intimidados. Não sabia como tratar detentos que berravam e que conheciam sujeitos importantes.

Thomas continuou a bradar.

- O barão é o meu melhor amigo.

Thomas conhecera Von Wiedel, bem mais velho que ele, em 1929, numa associação de estudantes, onde não havia duelos. Wiedel apresentara Thomas em alguns círculos aristocráticos e Thomas, por sua vez, pagara alguns títulos que o barão, por desleixo, deixara ir a protesto. Tudo isso os aproximara, num plano humano, até o dia em que o barão aderiu ao Partido. Thomas e ele romperam, então, relações, depois de um bate-boca tremendo.

Ao mesmo tempo que gritava: ”Mande fazer imediatamente a ligação ou então pode procurar outro emprego a partir de amanhã”, Thomas torcia para o que o barão tivesse boa memória.

A pobre telefonista foi quem pagou o pato. O comissário Haffner agarrou o telefone e começou, também, a berrar:

- Ligue para o Ministério das Relações Exteriores, em Berlim. E ande depressa, sua idiota.

”Isso é absolutamente fantástico”, pensou Thomas, quando, um minuto mais tarde, ouviu a voz do seu antigo camarada que dizia:

- Aqui fala Von Wiedel.

- Bom dia, Bodo, aqui fala Lieven. Thomas Lieven. Lembra-se de mim?

Um riso homérico soou no telefone.

- Thomas, meu velho. Que surpresa! Há tempos você me fez um bruto discurso e agora é da Gestapo.

Diante de um mal-entendido tão fantástico, Thomas fechou os olhos. O barão continuava a gritar alegremente.

- É engraçado. Ribbentrop, ou Schacht, dizia-me, há dias, que você tinha um banco na Inglaterra!

- É exato. Escuta, Bodo...

- Ah, sim, serviço exterior. Eu compreendo. Camuflagem, hein? Como estou me divertindo. Acabou por compreender que eu tinha razão naquela ocasião?

- Bodo...

- Onde é que você está? Devo chamá-lo de comissário?

- Bodo...

- Comissário-chefe?

- Quer escutar-me, afinal? Eu não trabalho na Gestapo! Fui preso pela Gestapo.

Do lado de Berlim fez-se silêncio, por algum tempo.

Haffner estalou os lábios com satisfação, prendeu o fone auxiliar entre a orelha e o ombro e prosseguiu na limpeza da unha do polegar esquerdo.

- Bodo. Você compreendeu ou não?

- Sim, sim. De que... de que o acusam? Thomas contou de que era acusado.

- Isso, meu caro, é uma coisa muito séria. Não posso meter-me nisso. Vivemos num regime de legalidade. Se você é realmente inocente, nada tem a temer. Felicidades. Heil Hitler.

- O seu melhor amigo, hein? - resmungou Haffner.

Retiraram-lhe os suspensórios, a gravata, os cordões dos sapatos, o seu querido relógio de repetição e o trancafiaram numa cela. Ali Thomas passou o resto do dia e depois a noite. Seu cérebro funcionava febrilmente. Devia haver um meio, mas não o encontrava.

No dia 27, pela manhã, Thomas Lieven foi novamente levado para interrogatório. Entrando na sala do comissário Haffner viu que ele estava em companhia de um comandante da Wehrmacht1, um homem pálido e de fisionomia preocupada. Haffner parecia contrafeito. Os dois homens deveriam ter tido uma discussão.

- Aí está o seu homem - disse o comissário em tom irritado. - Cumprindo ordens, deixo-os a sós.

O comissário retirou-se. O oficial apertou a mão de Thomas.

- Sou o comandante Loos, da circunscrição militar de Colônia. O barão von Weidel telefonou-me, pedindo que me ocupasse do senhor.

- Ocupar-se de mim?

- Sim. É claro que o senhor está inocente. Foi o seu sócio que o meteu nisso.

- Estou encantado, comandante, que o senhor tenha chegado a essa conclusão. Então estou livre?

- Livre de ir para onde? O seu destino é ir para os trabalhos forçados.

Assombrado, Thomas sentou-se.

- Mas, se eu sou inocente!

- Vá explicar isso à Gestapo. Pode acreditar, o seu sócio previu tudo.

- Hum - resmungou Thomas. Fitou o comandante e calculou que havia bicho na toca.

E havia.

- Veja, Herr Lieven, haveria certamente uma maneira. O senhor é cidadão alemão, é um homem viajado e culto. O senhor fala fluentemente o francês e o inglês. Nos dias que correm há necessidade de homens como o senhor.

- Mas quem tem necessidade?

- Nós. Eu. Sou oficial da contra-espionagem, Herr Lieven. Posso tirá-lo daqui, contanto que se comprometa a trabalhar para a Abwehr. Além do mais, o senhor será bem remunerado.

 

1 Forças armadas alemãs de terra, mar e ar, de 1935 a 1945. (N. do E.)

 

O comandante Fritz Loos foi o primeiro membro de um serviço de informações que Thomas conheceu pessoalmente. Muitos outros se seguiriam, ingleses, franceses, poloneses, espanhóis, americanos e russos.

Dezoito anos após esse encontro, no dia 18 de maio de 1957, na calma da noite, em um apartamento de luxo, em Cannes, Thomas Lieven pensou: ”No fundo, todos esses homens se parecem muito. Todos parecem tristes, amargurados, decepcionados. A vida forçara-os a sair dos caminhos normais, todos parecem estar doentes. São todos um tanto tímidos e, por isso, cercam-se dos seus cômicos atributos de poder, dos seus segredos e do seu potencial de terror. São todos atores de uma comédia permanente e sofrem, todos, de um profundo complexo de inferioridade”.

Thomas Lieven sabia tudo isto na bela noite de maio de 1957. Em 27 de maio de 1939 ele ainda nada sabia. Ficara simplesmente encantado quando o comandante Loos o convidou para que trabalhasse para a Abwehr alemã. ”É a única maneira de sair da merda”, pensara ele, sem saber até que ponto já estava nela atolado...

Quando o avião da Lufthansa furava as nuvens baixas acumuladas sobre Londres, o passageiro da poltrona nº 17 deixou escapar um som bizarro.

A aeromoça correu até ele.

- Não se sente bem, cavalheiro? - perguntou solicitamente. Depois ela verificou que o nº 17 ria.

- Estou muito bem - disse Thomas Lieven. - Peço desculpas, mas eu estava pensando em uma coisa engraçada.

Estava relembrando a cara decepcionada do homem que devolvera os seus pertences no quartel-general da Gestapo, em Colônia. O sujeito teve que fazer um enorme esforço para devolver o relógio de ouro, de repetição.

Thomas retirou o relógio do bolso e acariciou, amorosamente, a tampa delicadamente cinzelada. Ao fazer isso, notou que havia um pouco de tinta sob a unha do polegar. Riu, novamente, ao pensar que as suas impressões digitais estavam num fichário secreto, com a sua fotografia e sua ficha pessoal.

Um tal John Smythe (com y e the) deveria visitá-lo dois dias depois, para examinar o seu aquecedor de água. O comandante Loos fizera-o ver que deveria obedecer cegamente a Smythe.

”Esse Smythe”, pensava Thomas, ”vai ter uma surpresa. Se ele me chatear demais eu o jogo pela porta afora.”

O avião começava a perder altura. Rumando para sudoeste, atravessava o Tâmisa em direção ao aeródromo de Croydon.

Thomas recolocou o relógio no bolso e esfregou as mãos. Com uma sensação de bem-estar, estirou as pernas. Ah, eis a Inglaterra. A liberdade! A segurança. Uma corrida no Bentley, um banho quente, um scotch, uma cachimbada e os amigos do clube. E a grande história das suas aventuras.

Depois, evidentemente, uma conversinha com Marlock.

Era tão grande a satisfação de estar de volta que quase toda a cólera estava esquecida. Seria realmente necessário romper com Marlock? Talvez houvesse uma explicação plausível. Era possível que Marlock tivesse aborrecimentos sérios. De qualquer forma, era necessário ouvir o que ele teria a dizer...

Cheio de ânimo, Thomas desceu do avião poucos minutos depois e pisou o cimento molhado do aeroporto. Protegendo-se com o guarda-chuva, dirigiu-se, assobiando, para o saguão da saída. Aí, havia dois corredores formados por cordas esticadas. Acima do corredor à direita havia uma tabuleta: British Subjects; acima do outro, estava escrito: Foreigners1.

Sempre assobiando, Thomas seguiu à esquerda e aproximou-se da grande mesa do Immigration Officer.

O funcionário, um homem de meia-idade e com um bigode de foca manchado de nicotina, segurou sorrindo o passaporte alemão que Thomas lhe estendeu. Depois de examiná-lo, levantou a cabeça e disse:

- Lamento, mas o senhor não pode entrar em território britânico.

- Que significa isso?

 

1 Em inglês no original, respectivamente: ”cidadãos britânicos” e ”estrangeiros”. (N. do E.)

 

- A sua ordem de deportação foi assinada hoje, Mr. Lieven. Queira seguir-me, dois cavalheiros o esperam - disse ele.

Os dois homens levantaram-se quando Thomas entrou na saleta onde estavam. Tinham o aspecto de funcionários preocupados, dispépticos e mal dormidos.

- Morris - disse um deles.

- Lovejoy - disse o outro.

”Esses sujeitos fazem-me lembrar alguém”, pensou Thomas, sem conseguir recordar quem. Estava encolerizado, muito encolerizado, mesmo. Fez um esforço para apresentar, pelo menos, um semblante de cortesia.

- Cavalheiros, que significa tudo isto? Resido neste país há mais de sete anos. Ignoro ter cometido qualquer irregularidade.

O homem que atendia pelo nome de Morris mostrou um jornal indicando um cabeçalho em três colunas:

BANQUEIRO LONDRINO PRESO EM COLÔNIA!

- E daí? Isso foi anteontem. Hoje aqui estou. Os alemães me soltaram.

- E por que motivo, faz favor? - perguntou Morris. - Por que razão a Gestapo libera um homem que acaba de prender?

- Provei que era inocente.

- Ah, ah! - fez Lovejoy.

- Ah, ah! - fez Morris.

Os dois homens trocaram olhares cheios de significação. Depois, Morris falou em tom de superioridade:

- Somos do Serviço Secreto, Mr. Lieven. Recebemos informações de Colônia. É inútil faltar-nos com a verdade.

”Agora sei quem é que vocês me fazem lembrar”, pensou Thomas subitamente. ”É aquele pálido comandante Loos. A mesma comédia. As mesmas maneiras.”

- Cavalheiros - disse ele encolerizado -, tanto melhor se pertencem ao Serviço Secreto. Talvez lhes interesse saber que a Gestapo me soltou pela simples razão de que eu aceitei trabalhar para a Abwehr alemã.

- Mr. Lieven, pensa que somos ingênuos?

- É a pura verdade - disse Thomas, impaciente.

- A Abwehr obrigou-me a aceitar mas eu não me sinto preso pela promessa que fiz. Quero viver aqui e viver em paz.

- O senhor não pense que depois de semelhante confissão nós o deixaremos ficar no país. Oficialmente o senhor é indesejável, porque entrou em conflito com a lei, e nós expulsamos todos os estrangeiros nessas condições.

- Mas eu sou completamente inocente. O meu sócio é que fez uma trapaça contra mim. Permitam, ao menos, que eu o procure. Os senhores mesmos verificarão que estou dizendo a verdade.

Morris e Lovejoy trocaram olhares significativos.

- Por que razão, senhores, esses olhares que não compreendo?

- Mr. Lieven - disse Lovejoy -, o senhor não poderá ver o seu sócio.

- Mas, por quê?

- Porque ele - disse Morris - deixou Londres por seis semanas.

- Lon-Lo-Londres? - disse Thomas empalidecendo. - Par-partiu?

- Sim. Informaram-nos que ele foi para a Escócia, mas ninguém sabe exatamente para que ponto.

- Com mil diabos, que vou fazer, agora?

- Volte para a sua pátria.

- Para ser metido imediatamente no xadrez? Mas eu não estou dizendo que só me soltaram com a condição de eu vir fazer espionagem na Inglaterra?

Os dois homens trocaram olhares. Thomas sentiu que havia mouro na costa. E havia mesmo.

- Ao que eu saiba - disse Morris em tom frio -, só há uma solução, Mr. Lieven: trabalhar para nós!

”Essa agora”, pensou Thomas Lieven, ”se a contasse no clube! Ninguém acreditaria!”

- Se o senhor ficar do nosso lado, contra a Alemanha, nós o deixaremos ficar na Inglaterra e o ajudaremos contra Marlock. Nós o protegeremos.

- Mas quem me protegerá?

- O Serviço Secreto.

Thomas não pôde conter um breve acesso de riso. Depois puxou o colete, ajeitou a gravata e empertigou-se.

O momento de confusão e de desânimo havia passado. Percebeu que aquilo que lhe parecera uma grande farsa passara a ser assunto muito sério. Era preciso lutar. Não receava lutar. Não poderia assistir, passivamente, à ruína de sua vida.

- Cavalheiros - disse Thomas -, recuso a oferta. Vou para Paris e lá contratarei o melhor advogado francês para processar o meu sócio e também o governo britânico.

- No seu lugar eu não faria isso, Mr. Lieven.

- Apesar disso, é o que vou fazer.

- O senhor se arrependerá.

- Isso é o que veremos. Recuso-me a acreditar que o mundo inteiro seja uma casa de loucos!

Um ano mais tarde ele não se recusava mais a acreditar.

Dezoito anos depois, revendo em sua mente, no hotel de Cannes, o filme de sua vida, ele estava definitivamente convencido.

O mundo inteiro era um manicômio: eis a única conclusão a que se podia chegar num século de demência coletiva.

No dia 28 de maio de 1939, pouco depois da meianoite, um homem jovem e elegante encomendava uma ceia no célebre restaurante Chez Pierre, na Place Graillon, em Paris.

- Émile, gostaríamos que nos servisse uns horsd’oeuvres; depois uma sopa de caudas de lagostim; em seguida, um lombo de vitela com cogumelos. Como sobremesa, uma coupe Jacques.

Émile, o velho maitre tf hotel, olhava com simpatia para o seu freguês.

Conhecia Thomas Lieven há vários anos. Ao lado de Thomas, estava uma bonita rapariga de lustrosos cabelos castanho-escuros. Dois olhos de boneca maliciosa animavam o oval de seu rosto. Chamava-se Mimi Chambert.

- Estamos com fome, Émile. Estivemos no teatro, vendo Jean-Louis Barrault numa peça de Shakespeare.

- Nesse caso, senhor, recomendaria umas croustades quentes, em vez dos hors-d’oeuvres frios. Shakespeare é cansativo.

Riram todos e o velho maitre dirigiu-se à cozinha.

O restaurante era uma longa sala, escura, fora de moda, mas muito agradável. Quanto à companheira de Thomas, nada tinha de ”fora de moda”.

Seu vestido, de seda branca, era justo e com decote generoso. A jovem atriz era pequena, graciosa e sempre animada, mesmo de manhã, ao acordar.

Thomas a conhecia há dois anos. Sorriu-lhe e respirou profundamente:

- Ah, Paris! É a única cidade onde ainda se pode viver, mon petit chou. Vamos divertir-nos durante algumas semanas.

- Estou contente por você estar de bom humor, chéri. Estava tão agitado esta noite... Falava em três línguas ao mesmo tempo e eu só entendi o francês... Há alguma encrenca com o seu passaporte?

- Por quê?

- Você falava, sem parar, de expulsão e de licença de permanência... Há muitos alemães em Paris que têm complicações com passaportes...

Ele beijou-lhe os dedos, com ternura.

- Não se preocupe. Aconteceu-me uma história muito besta. Nada realmente de sério (falava com calma e convicção e acreditando no que estava dizendo). Fui vítima de uma injustiça, sabe? Fui roubado. Uma injustiça poderá, talvez, durar muito tempo, mas não para sempre. Agora tenho um advogado formidável. Muito em breve estará tudo esclarecido e me pedirão desculpas. Até lá espero descansar em sua companhia.

Um garçom aproximou-se da mesa.

- Dois cavalheiros desejam vê-lo, M. Lieven. Thomas ergueu a cabeça, sem a menor desconfiança.

Vestindo capas impermeáveis um tanto amarfanhadas, dois homens o cumprimentaram, da entrada, parecendo um tanto embaraçados.

- Estarei de volta em um minuto, ma petite - disse Thomas levantando-se. Caminhou para a entrada.

- Em que lhes posso servir, cavalheiros?

Os dois homens de capa amarrotada cumprimentaram com uma inclinação. Um deles disse:

- Monsieur, já estivemos em casa de Mile Chambert. Somos da polícia. Lamentamos, mas somos obrigados a prendê-lo.

- Mas, que fiz eu? - perguntou Thomas, em voz baixa. Realmente, tinha vontade de rir.

- O senhor o saberá.

”O pesadelo continua”, pensou. Respondeu amavelmente:

- Cavalheiros, os senhores são franceses. Sabem que é um pecado interromper uma boa refeição. Posso pedirlhes que suspendam a minha prisão até que eu termine?

Os dois policiais hesitaram.

- Podemos telefonar ao nosso chefe? - perguntou um deles.

Thomas concordou e o homem dirigiu-se a uma cabina donde voltou pouco depois.

- Está combinado, cavalheiro, mas o chefe pede um obséquio.

- Qual?

- Ele gostaria de cear com o senhor. Isso facilitaria a conversa.

- Está certo. Mas quem é o seu chefe, se não sou indiscreto?

Eles disseram quem era.

Thomas voltou à mesa e fez um sinal para o maitre d’hotel.

- Émile, espero um convidado. Faça o favor de mandar botar mais um lugar.

- Quem é esse convidado? - perguntou Mimi, sorrindo.

- Um tal coronel Siméon.

- Ah - fez Mimi, que, contrariando o seu hábito, não acrescentou outras palavras.

O coronel Jules Siméon era um homem simpático. Tinha um bigode bem tratado, um nariz romano e o olhar espirituoso e irônico. Parecia-se, em tamanho maior, com o ator Adolphe Menjou1. Cumprimentou Thomas com deferência e Mimi como a uma velha conhecida, o que não deixou de inquietar a Thomas.

A roupa azul-marinho de Siméon era, sem dúvida, de um bom alfaiate, mas os cotovelos e as costas do casaco estavam reluzentes. Usava uma pérola na gravata e abotoaduras de ouro, mas os saltos dos sapatos precisavam de conserto.

Enquanto tomavam a sopa e atacavam o hors-d’oeuvre, falaram sobre Paris. Com a chegada do lombo de vitela, o coronel entrou no assunto.

- M. Lieven, lamento incomodá-lo no meio da noite, e, ainda mais, durante uma refeição. Deliciosas e sequinhas essas batatas fritas, não acha? Recebi ordens de cima. Estivemos todo o dia à sua procura.

Pareceu a Thomas que, de muito longe, ele ouvia a voz de Jean-Louis Barrault que ele vira, nessa noite, no papel de Ricardo In, no drama de Shakespeare. Parecia-lhe ouvir, vagamente, um dos versos da peça. Mas ainda não o compreendia.

- Ah - fez ele. - As batatas fritas estão notáveis, coronel. A dupla fritura, eis aí o segredo. Sim, sim... a cozinha francesa...

Thomas pôs a mão no braço de Mimi. O coronel sorriu. ”Esse coronel é realmente simpático”, pensou Thomas.

- Não é somente a boa cozinha que o traz a Paris - disse o coronel. - Nós também temos os nossos homens em Colônia e em Londres. Sabemos o que lhe aconteceu com esse caro comandante Loos. Continua sofrendo do fígado?

Novamente pareceu a Thomas que ouvia a voz de Jean-Louis Barrault; novamente teve a impressão de ouvir um verso de Shakespeare. Mas não conseguia, ainda, entendê-lo.

E por que estava Mimi sorrindo? Por que sorria ela com ar angelical?

 

1 Ator norte-americano (1890-1963). Filmes: Adeus às armas, Os três mosqueteiros, Glória feita de sangue. (N. do E.)

 

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           SOPA DE CAUDAS DE LAGOSTIM

           CROUSTADES DE SALMÃO DEFUMADO

           LOMBO DE VITELA COM COGUMELOS

           BATATA PALHA COUPE JACQUES

 

28 de maio de 1939

Durante essa refeição, Thomas Lieven tornou-se um agente secreto.

Sopa de caudas de lagostim - Para quatro pessoas, use uma dúzia de lagostins, que se cozinham durante quinze minutos em caldo de carne. Quebre as garras e as caudas dos lagostins para retirar a carne. Quebre as carcaças (em pedaços graúdos) e leve-as ao fogo com cento e vinte e cinco gramas de manteiga até que esta comece a ferver e a tomar uma cor avermelhada. Adicione uma colher - das de sopa - de farinha de trigo e deixe cozinhar algum tempo. Adicione um litro de caldo de carne e coe usando uma peneira recoberta com tecido fino. Leve novamente ao fogo para nova fervura e só então junte as caudas dos lagostins.

Essa sopa não deve ser muito espessa, como, aliás, é de regra para as sopas servidas em jantares de certa cerimonial. Croustades de salmão defumado - Molhe, com leite, fatias finas de pão de forma; cubra-as com pedaços de tamanho idêntico de salmão defumado previamente dessalgado em leite e cubra com outra fatia de pão umedecido com leite. Cubra com queijo ralado e ponha, por cima, pequenos montinhos de manteiga. Leve ao forno numa assadeira untada com manteiga.

Lombo de vitela com cogumelos - Frite fatias de lombo - dos dois lados - numa frigideira (com manteiga) e sirva-as com a seguinte guarnição: frite ligeiramente uma cebola em caçarola com manteiga e depois cozinhe-a em um quarto de litro de vinho branco. Junte três gemas, uma colher de sopa de manteiga, o suco de meio limão, sal e pimenta-do-reino. Acrescente mais vinho e leve a banho-maria até que a massa fique espessa. Separadamente, coloque em panela coberta os cogumelos e alho-porro’ com manteiga e um copo de vinho branco e deixe cozinhar algum tempo. Prepare, também, um velouté com uma colher de sopa de manteiga, uma

 

1 Sendo difícil encontrar lagostins no Brasil, experimente essa receita substituindo-os pelos deliciosos cavaquinhos do Rio de Janeiro. (N. do T.)

 

colher de sopa de farinha de trigo e meio litro de caldo de carne. Junte os cogumelos ao molho preparado e cozinhe tudo por algum tempo.

Coupe Jacques - Coloque em cada taça um pouco de sorvete de creme, ou de nata, e cubra com creme batido. Coloque por cima uma camada de salada de frutas maceradas em marasquino durante meia hora. Coloque, por cima, uma camada de sorvete de morangos e guarneça com cerejas cristalizadas.

- M. Lieven, permita que eu o assegure da minha simpatia. O senhor gosta da França. O senhor gosta da cozinha francesa. Mas tenho minhas ordens. Sou obrigado a expulsá-lo, M. Lieven. O senhor é demasiado perigoso para o meu pobre país ameaçado. Ainda esta noite o senhor será levado até a fronteira. Não poderá, nunca mais, voltar à França...

Thomas não conseguiu conter o riso.

Mimi fitou-o e, pela primeira vez desde que se conheciam, não riu com ele. Ele se conteve.

- A menos - disse o coronel servindo-se novamente de cogumelos -, a menos que o senhor queira mudar de campo e concorde em trabalhar para nós, isto é, para o Deuxième Bureau.

Thomas teve um sobressalto. ”Será possível que eu esteja bêbado a tal ponto?”, pensou. A sua resposta foi em voz baixa.

- O senhor está-me propondo trabalhar para o Serviço Secreto francês, na presença de Mile Chambert?

- Por que não, mon chéri? - disse ela carinhosamente e beijando-lhe o rosto. - Eu sou da casa.

- Você é... - Thomas engasgou.

- No primeiro degrau da escada, mas é verdade. Ganho uns cobrinhos com isto. Está zangado?

- Mile Chambert - disse o coronel - é a mais encantadora patriota que eu conheço.

De repente, a voz que se tornara uma obsessão para Thomas Lieven, a voz do ator Jean-Louis Barrault, tornouse clara em sua memória e Thomas compreendeu, então, as palavras de Ricardo In:

”Por esse motivo - não podendo, nos belos dias que correm, ser um amante feliz - estou resolvido a tornar-me um celerado”.

  1. Lieven - perguntou o coronel, com o copo de vinho tinto na mão -, quer trabalhar para nós?

Thomas olhou para Mimi, a doce e carinhosa Mimi. Olhou para o coronel Siméon, esse homem que sabia viver. Olhou para a boa ceia.

”Parece não haver outro caminho”, pensou Thomas Lieven. ”A imagem que eu me fazia do mundo era totalmente falsa. É preciso que eu mude de vida, imediatamente, se não quiser perecer nessa torrente de loucuras.”

A voz de Mimi soava em seus ouvidos:

- Seja bonzinho, chéri. Fique conosco. Levaremos uma vida formidável, você verá.

A voz de Siméon soava em seus ouvidos:

- Chegou, a uma decisão, monsieur?

A voz de Jean-Louis Barrault troava em seus ouvidos: ”... estou resolvido a tornar-me um celerado”.

- Estou resolvido - disse Thomas Lieven em voz branda.

Primeiro a Abwehr alemã, depois o Serviço Secreto inglês e, agora, o Deuxième Bureau. Tudo no espaço de noventa e seis horas. Há quatro dias eu vivia em Londres. Era um homem bem considerado, um banqueiro em pleno sucesso. Quem engolirá esta história? Quem vai me acreditar, no clube?

- A minha situação - disse Thomas Lieven, passando a mão aristocrática nos cabelos castanhos e curtos - parece sem saída, mas não muito séria. Bem alimentado, aqui estou sobre os escombros de minha vida burguesa. É um momento histórico, Émile!

O velho mcâtre d’hotel acorreu solícito.

- Temos razões para uma celebração. Traga champanha, por favor.

Mimi beijou carinhosamente o amante.

- Não acha que ele é um verdadeiro amor? - perguntou ao coronel.

- Monsieur, aprovo a sua atitude. Estou encantado que tenha resolvido trabalhar conosco.

- Eu não resolvi coisa alguma. Simplesmente não tinha outra escolha.

- Vem a dar no mesmo.

- Fica bem entendido que o senhor só poderá contar comigo enquanto durar o meu processo. Quando eu o ganhar quero voltar a viver em Londres. Está bem claro?

- Perfeitamente claro, monsieur - disse o coronel Siméon, com um sorriso enigmático, como se já adivinhasse que Thomas Lieven, mesmo depois de uma guerra mundial, ainda não teria ganho o seu processo e que não viveria mais em Londres.

- Além do mais - disse Thomas -, eu me pergunto em que campo eu lhe poderei ser útil.

- O senhor é banqueiro.

- E daí?

- A senhorita informou-me - disse Siméon piscando um olho - que o senhor era muito talentoso.

- Mas Mimi - disse Thomas à atriz -, que falta de discrição!

- Madame só fez isto pensando na causa nacional. Ela é uma criatura absolutamente encantadora.

- Suponho, coronel, que o senhor fala com conhecimento de causa.

Mimi e o coronel começaram a falar ao mesmo tempo.

- Dou minha palavra de oficial...

- Mas, chéri, foi muito antes de você.

Pararam subitamente de falar e estouraram de rir. Mimi aconchegou-se a Thomas. Tinha um sentimento verdadeiro por esse homem de aparência séria, e que podia ser tão pouco sério; esse homem que parecia o protótipo dos banqueiros ingleses e, ao mesmo tempo, era o homem mais agradável para compartilhar a vida e que tinha mais imaginação que todos os homens que ela conhecia. E ela conhecia um bom número deles.

- Muito antes de mim - disse Thomas Lieven. - Bem... bem... Se eu entendi bem as suas palavras, coronel, devo considerar-me como consultor financeiro do Serviço Secreto francês?

- Exatamente, monsieur. Ser-lhe-ão confiadas missões especiais.

- Antes da chegada do champanha permita-me dizer algumas coisas, com toda a sinceridade. Apesar da minha relativa mocidade, já adotei um certo número de princípios. Caso eles estejam em conflito com a minha futura atividade, eu pediria, apesar de tudo, que levasse avante a minha expulsão.

- Voilà, seus princípios, monsieur?

- Recuso-me a vestir um uniforme, coronel. Além disso... pode parecer-lhe incompreensível... não dou tiros em ninguém. Não aterrorizo ninguém, não prendo ninguém.

- Mas, monsieur, por favor. O senhor nos é precioso demais para tratar de tais insignificâncias.

- Além do mais eu não leso ninguém, não furto de ninguém, salvo nos limites permitidos pela minha profissão e somente quando estou seguro de que o sujeito o merece.

- Não se preocupe, monsieur, pode respeitar os seus princípios. O que realmente nos interessa é o seu cérebro.

Émile chegou com o champanha. Beberam e o coronel continuou:

- Em compensação, sou obrigado a pedir-lhe que participe de um estágio de treinamento para agentes secretos. É o regulamento. Há muitos meandros e certos assuntos que o senhor, por enquanto, nem imagina. Providenciarei para que o senhor siga, o mais rapidamente possível, para um dos nossos campos especiais.

- Mas não esta noite, Jules - disse Mimi acariciando a mão de Thomas Lieven. - Por esta noite basta...

Cedo, na manhã do dia 30 de maio de 1939, dois homens vieram buscar Thomas Lieven em casa de sua amiguinha. Usavam ternos de confecção barata e as suas calças tinham saliências nos joelhos. Eram subagentes, sub-remunerados.

Com ar sério, fizeram Thomas subir num caminhãofurgão. Quando quis olhar para fora, verificou que as portas traseiras estavam hermeticamente fechadas.

Ao fim de cinco horas, estava todo doído. Quando, finalmente, o caminhão parou e os dois homens permitiram que descesse, Thomas se viu envolvido por uma paisagem melancólica. Era uma planura, quase uma charneca, com vaiados, semeada de grandes pedras e cercada de arame farpado. Mais atrás, diante de um bosque escuro, Thomas percebeu uma construção escura, marcada pelo tempo. Um militar, fortemente armado, guardava a entrada.

Os dois homens mal vestidos dirigiram-se à sentinela que os observava com olhar hostil. Apresentaram muitos documentos, que o soldado examinou com atenção.

Um velho camponês apareceu na estrada, com uma carrocinha cheia de lenha.

- É longe a sua casa, vovô? - perguntou Thomas.

- Com os diabos, é, sim. Mais três quilômetros até Saint-Nicholas!

- E onde fica isso?

- Lá longe. Na estrada de Nancy.

- Ah, bom - disse Thomas Lieven. Os dois homens voltaram.

- Deve desculpar-nos por tê-lo fechado no caminhão - explicou um deles. - As ordens são estritas. Do contrário o senhor poderia talvez reconhecer a região. O senhor não pode, de forma alguma, saber onde está.

- Ah, perfeitamente - disse Thomas.

O velho casarão tinha o conforto de um hotel de terceira categoria. ”Algo miserável”, pensava Thomas Lieven. ”Os meus amigos não parecem muito ricos. Esperemos, ao menos, que não haja percevejos. A vida é cheia de situações inacreditáveis.”

Além de Thomas, mais vinte e sete agentes faziam parte do grupo a ser treinado. Na sua maioria eram franceses, mas havia, também, dois austríacos, cinco alemães, um polonês e um inglês.

Os cursos eram dirigidos por um homem magro e pálido, de aspecto doentio e que tinha os mesmos modos misteriosos, deprimidos, vaidosos e tímidos de seu colega alemão, o comandante Loos, que Thomas conhecera em Colônia.

- Senhores - disse essa personagem ao grupo de agentes, reunido pela primeira vez -, eu sou Júpiter. Durante o estágio cada um dos senhores adotará uma identidade falsa. Têm meia hora para inventar um falso curriculum vitae apropriado. Essa identidade falsa deve ser mantida, em qualquer circunstância, a partir de agora. Eu e os meus colegas faremos todo o possível para provar que não são quem pretendem ser. Devem, por conseguinte, adotar uma personalidade que resista a todos os nossos ataques.

Prosaicamente, Thomas resolveu chamar-se Adolf Meier. Não tinha o hábito de empregar sua imaginação em tentativas sem qualquer esperança.

À tarde, recebeu uma roupa cinzenta, de algodão, com o falso nome bordado no peito. Os outros alunos receberam o mesmo uniforme de trabalho.

A comida era má. O quarto designado para Thomas era horrível e a roupa de cama algo úmida. Antes de dormir, fez soar, nostalgicamente e várias vezes, o seu querido relógio de repetição. Fechou os olhos e imaginou estar em sua bela cama em Londres. Seriam quatro horas da manhã quando um terrível berreiro o acordou.

- Lieven! Lieven! Responda, em nome de Deus! Banhado de suor e sobressaltado, Thomas mal pôde

responder: - Pronto, estou aqui. - No mesmo instante recebeu dois sonoros bofetões. Diante de sua cama estava Júpiter, que lhe disse, com um riso demoníaco:

- Eu pensei que o seu nome fosse Meier, Herr Lieven! Se lhe acontecesse a mesma coisa durante uma missão o senhor seria um homem morto. Boa noite. Durma bem.

Thomas não dormiu bem. Refletia sobre a maneira de evitar futuras bofetadas. No decorrer das noites que se seguiram, Júpiter berrou à vontade. Todas as vezes Thomas saía lentamente do sono e aferrava-se à sua falsa identidade: ”Que querem de mim? Chamo-me Adolf Meier!”

Júpiter simplesmente ignorava que Thomas tinha dois bons chumaços de algodão nas orelhas...

Júpiter estava entusiasmado. Que extraordinário controle sobre si mesmo!

Os estagiários aprenderam a lidar com venenos, explosivos, metralhadoras portáteis e revólveres. Thomas deu dez tiros e verificou, estupefato, que oito haviam atingido a mosca do alvo.

- É um puro acaso - disse ele assombrado -, eu nunca soube atirar.

Júpiter cacarejou, satisfeito.

- Não sabe atirar, Meier? Então eu digo que é um dom natural!

Em nove dos dez tiros seguintes atingiu a mosca e Thomas disse, impressionado: ”O homem é um enigma para si mesmo”. Ele aprendeu o código Morse, aprendeu a redigir em código secreto e a decifrar códigos secretos. Para tal fim, Júpiter distribuiu exemplares, muito usados, do Conde de Monte Cristo.

- O sistema - disse ele - é o que há de mais simples. Quando em missão os senhores levarão um livro idêntico. Recebem uma mensagem em código. A mensagem começa por três algarismos que são mudados cada vez. O primeiro algarismo é a página do romance que deve ser utilizada; o segundo indica a linha da página e o terceiro, a letra da mesma linha. Essa letra é o ponto de partida. Daí por diante é só contar até achar a próxima letra conforme os algarismos indicados pelo código...

Júpiter distribuiu folhas de papel com mensagens cifradas.

A metade dos alunos acertou perfeitamente. A outra metade, onde estava Thomas Lieven, falhou redondamente. Os seus esforços para decifrar o código tinham chegado à seguinte frase: ”Twmxdtrrre illd m ionteff”.

- Vamos tentar novamente - disse Júpiter.

A nova tentativa deu o mesmo resultado, meio a meio.

- Mesmo que tenhamos que ficar a noite inteira!... - disse Júpiter.

E passaram a noite inteira.

Já pela madrugada verificaram que estavam usando duas edições diferentes: a segunda e a quarta. A quarta fora revista e, por conseguinte, tinha paginação diferente...

- Uma coisa semelhante é impossível na prática - disse Júpiter, lívido mas convencido do que dizia.

- Evidentemente - disse Thomas Lieven.

Júpiter promoveu uma grande festa, com bebidas em abundância. Um dos alunos, de olhar de brasas e com uma tez de lírios e rosas, chamado Hans Nolle, bebeu demais.

No dia seguinte, foi excluído do estágio. O polonês e um dos austríacos deixaram a concentração na mesma ocasião. A noite havia revelado que não eram dignos de ser agentes secretos.

No decorrer da quarta semana a classe foi levada para uma floresta inóspita onde, em companhia do professor, passou oito dias.

Dormiam no chão e ficavam expostos as intempéries. Ao fim de três dias acabaram-se as provisões - conforme previsto - e os alunos deveriam aprender a viver comendo frutos do mato, cascas, raízes, folhas e qualquer animal capturado, por mais nojento que parecesse. Thomas Lieven não aprendeu. Prevendo alguma eventualidade desse gênero, tinha conseguido introduzir na escola, às escondidas, uma provisão de conservas. No quarto dia ainda se deliciava com foie gras belga. Quando os seus colegas já brigavam por um pedaço de rato do mato, dava-se ao luxo de aparentar uma calma estóica, que lhe valeu elogios de Júpiter:

- Sigam o exemplo de Meier, senhores! Posso dizêlo: aí está um homem.

Durante a sexta semana Júpiter levou a classe até a borda de um profundo abismo. O fundo era coberto por uma espécie de gaze. Os alunos recuaram assustados - todos menos Thomas. Empurrando os colegas e gritando ”hurra”, tomou impulso e saltou no precipício. Numa fração de segundo raciocinara que o governo francês teria poucos motivos para gastar grandes quantias no seu treinamento físico e moral com o único objetivo de levá-lo ao suicídio. A gaze rompeu-se e Thomas caiu sobre um lençol de borracha que amorteceu, suavemente, a queda.

- Meier, o senhor é o meu melhor homem. Algum dia o mundo falará do senhor.

E o futuro lhe daria razão.

Apenas uma vez Thomas foi repreendido por seu professor. Foi na ocasião em que este, ensinando a maneira de escrever com tinta invisível, declarou que só era preciso ter uma pena, suco de cebola e um ovo duro. Ávido de aprender, Thomas perguntou:

- A quem devemos nos dirigir, numa prisão da Gestapo, para pedir cebolas, pena e ovos duros?

O final dos cursos consistiu num ”grande interrogatório”.

Em plena noite os alunos foram brutalmente arrancados de suas camas e levados perante um tribunal da Abwehr alemã. Os juizes eram professores e o presidente era Júpiter. Os instrutores, todos já muito conhecidos pelos alunos, estavam sentados atrás de uma longa mesa e vestiam uniformes alemães. Júpiter tinha uma farda de coronel. Os professores, disfarçados, berravam como possessos e obrigaram os alunos a fitar fortes refletores. Além do mais, ficaram toda a noite sem alimentação, o que, aliás, não era muito grave, porque todos haviam jantado muito bem.

Júpiter foi particularmente violento com Thomas. Deu-lhe várias bofetadas e obrigou-o a ficar de nariz contra a parede e com um cano de revólver na nuca.

- Confesse - berrou ele -, você é um espião francês!

- Nada tenho a dizer - foi a heróica resposta de Thomas.

Em vista disso, aplicaram-lhe algemas com torniquetes e começaram a apertar. Quando ele sentiu um pouquinho de dor, fez: ”ai-ai!” e, imediatamente, desapertaram as algemas. Cerca de seis horas da manhã, ele foi condenado à morte, por espionagem.

Júpiter intimou-o, mais uma vez, a trair segredos militares, prometendo que teria a vida salva.

Thomas cuspiu aos pés do presidente do tribunal e gritou:

- Prefiro a morte!

O seu desejo foi atendido. Ao clarear do dia, foi levado a um pátio sujo, empurraram-no contra o muro frio e o fuzilaram sem honras militares mas, em compensação, com tiros de pólvora seca. Nada de balas.

Depois do fuzilamento, todos foram comer.

É desnecessário acrescentar que terminou o seu estágio obtendo a menção ”muito bem”. Entregaram-lhe os documentos sobre a conclusão do curso, bem como um passaporte francês, falso, com o nome de Jean Leblanc. Júpiter tinha lágrimas nos olhos.

- Boa sorte, camarada! Orgulho-me de um aluno como você.

- Diga-me, Júpiter, agora que me deixa partir, não receia que, se eu cair nas mãos dos alemães, possa revelar o que aprendi aqui?

- Haverá pouca coisa a contar, meu velho - respondeu Júpiter, sorrindo. - Todos os serviços secretos do mundo usam os mesmos métodos de treinamento. Estão todos no mesmo nível e empregam os mais recentes conhecimentos da medicina, da psicologia e da técnica.

No dia 16 de julho de 1939, Thomas Lieven regressou a Paris, onde foi recebido por Mimi, que se portou como se lhe tivesse permanecido fiel durante seis semanas.

No dia 1º de agosto, Thomas Lieven conseguia, graças à intervenção do coronel Siméon, um confortável apartamento no Bois de Boulogne e que ficava a apenas quinze minutos, de automóvel, do seu banco nos Champs Elysées.

No dia 20 de agosto, Thomas conseguiu convencer o coronel Siméon de que, apesar da situação internacional, ele merecia umas férias em Chantilly, em companhia de Mimi, a fim de repousar de todas as canseiras.

A 30 de agosto a Polônia decretava a mobilização geral.

Na tarde seguinte, Thomas e Mimi foram ver os açudes de Commelle e o Çhâteau de Ia Reine Blanche.

Quando regressaram à cidade, caía a tarde e o céu tinha tons avermelhados. De braço dado, passaram pelas villas estilo fim do século e, pisando as velhas e gastas pedras das ruas, dirigiram-se para o Hotel du Pare, na Avenue du Marechal Joffre.

O porteiro fez um sinal para Thomas, logo que entraram no saguão e disse: - Chamado telefônico de Belfort para M. Lieven.

Pouco depois Thomas ouvia a voz do coronel Siméon ao telefone:

- Lieven, até que enfim o encontro - o coronel falava em alemão, e explicou, imediatamente, por que o fazia:

- Não posso correr o risco de alguém, aí no hotel, compreender o que digo. Escute, Lieven, o negócio vai começar.

- A guerra?

- Sim.

- Quando?

- Nas próximas quarenta e oito horas. Tome o primeiro trem para Belfort, amanhã. Vá para o Hotel du Tonneau d’Or. O porteiro está a par do assunto. Trata-se de...

Nesse momento a ligação foi cortada. Thomas sacudiu o gancho do fone:

- Alô! Alô!

Uma voz severa de mulher falou:

- M. Lieven, a ligação foi cortada. O senhor falava em língua estrangeira.

- Isso é proibido?

- Sim, desde as dezoito horas de hoje. As conversas interurbanas só podem ser em francês.

A voz calou-se. A linha estava morta.

Quando Thomas Lieven saiu da cabina o porteiro olhou-o de forma esquisita. Somente às cinco da manhã, quando bateram na porta de seu quarto, é que ele recordou o tal olhar...

Mimi dormia, toda encolhida, como uma gatinha. Thomas não tivera coragem de contar-lhe o que sabia.

O dia já raiara e uma quantidade de pássaros chilreava nas velhas árvores.

Bateram, novamente, e com mais insistência. ”É impossível”, pensou Thomas, ”que já sejam os alemães.” Decidiu não reagir.

- M. Lieven - disse uma voz -, abra imediatamente ou arrombaremos a porta.

- Quem está aí?

- Polícia.

Thomas levantou-se, suspirando. Mimi acordou assustada.

- Que está acontecendo, querido?

- Calculo que venham prender-me novamente.

A suposição estava certa. À porta estavam um tenente de polícia e dois gendarmes.

- Vista-se e venha conosco.

- Mas, por quê?

- Você é um espião alemão.

- Por que o senhor imagina isso?

- Ontem você teve uma conversa telefônica suspeita. O serviço de vigilância nos avisou. O porteiro observou tudo. É inútil negar.

- Peço que faça sair os seus homens - disse Thomas ao oficial. - Tenho algo a dizer.

Os gendarmes saíram.

Thomas mostrou o cartão e o passaporte que recebera de Júpiter.

- Trabalho para o Serviço de Informações da França.

- Não encontrou nada melhor para dizer? Com esses reles documentos falsos? Vamos, vista-se depressa.

Ao cair da tarde de 31 de agosto de 1939, Thomas chegava, como sempre bem vestido, à velha fortaleza de Belfort. A corrente de ouro de seu velho relógio luziu sobre o seu colete. Tomou um táxi e foi imediatamente para o Tonneau d’Or.

O coronel Siméon esperava-o no saguão do hotel. Apesar de estar uniformizado, não parecia menos simpático que à paisana.

- Meu caro Lieven, estou desolado com a atitude daqueles gendarmes cretinos. Quando Mimi conseguiu, finalmente, falar-me ao telefone, passei um bruto sabão nos responsáveis. Mas venha agora, o general Effel está à nossa espera. Não percamos tempo. É o seu batismo de fogo, meu amigo.

Um quarto de hora mais tarde, Thomas Lieven estava sentado no gabinete de trabalho do general, no edifício do Estado-Maior francês.

O gabinete era de uma simplicidade espartana. As quatro paredes estavam literalmente cobertas com mapas do Estado-Maior representando a França e a Alemanha.

Louis Effel era alto e magro. Tinha os cabelos brancos. Com as mãos nas costas, andava de um lado para outro diante de Thomas Lieven e Siméon.

- M. Lieven - disse o general com voz sonora -, o coronel Siméon falou-me do senhor. Sei que é um dos nossos melhores homens.

O general parou diante da janela e errou os olhos pelo belo vale que separa os Vosges do Jura.

- Não tenhamos ilusões. Hitler abriu as hostilidades. A nossa declaração de guerra será entregue dentro de poucas horas. Mas... - o general girou nos calcanhares

- a França não está preparada para esta guerra, M. Lieven. E nós, do Serviço Secreto, ainda menos que todos... Temos problemas que se enquadram na sua profissão. Diga-lhe, coronel.

Siméon engoliu a saliva e, depois, disse:

- É que estamos sem vintém, meu velho.

- Quebrados?

O general concordou com veemência:

- Sim. Praticamente sem meios. Reduzidos a uma verba ridícula que nos dá o ministério. Completamente impossibilitados de agir na grande escala que as atuais circunstâncias exigem. Amordaçados. Impotentes.

- Que horror! - disse Thomas, quase sem poder reprimir uma monstruosa vontade de rir. - Peço desculpas, meu general, mas quando um país não tem dinheiro, não seria melhor desistir inteiramente de manter um serviço secreto?

- O nosso país teria o suficiente para estar preparado para uma agressão alemã. Infelizmente, há na França grupos que se opõem a todo imposto suplementar: aproveitadores e açambarcadores que não hesitam, mesmo na situação atual, em tirar partido das infelicidades da pátria

- o general empertigou-se todo. - Bem sei que estou apelando para o senhor na undécima hora. Sei que estou pedindo o impossível. Entretanto, eu pergunto: acredita o senhor que possamos rapidamente, o mais rapidamente possível, obter somas consideráveis de dinheiro, digo consideráveis, a fim de que estejamos preparados para trabalhar?

- Deixe-me pensar, meu general. Mas não aqui. - Thomas dirigiu olhares para a decoração marcial das paredes. - Aqui o meu cérebro não funciona de maneira satisfatória - o seu semblante se desanuviou. - Se os senhores estiverem de acordo, irei para o hotel preparar um jantar durante o qual poderemos retomar o fio da conversa.

- O senhor fala em cozinhar, num momento como este? - disse o general, estupefato.

- Sim, meu general, com a sua permissão. É na cozinha que me ocorrem, sempre, as melhores idéias.

O memorável jantar realizou-se na noite de 31 de agosto, em um salão privado, do melhor hotel da cidade.

- Verdadeiramente magnífico - disse o general, passando o guardanapo nos lábios, após o prato principal.

- Fantástico - disse o coronel.

- O melhor foi a sopa de escargots - disse o general. - Nunca tive ocasião de saborear uma tão boa.

- Uma informação confidencial, meu general - disse Thomas: - só empregue escargots grandes e de carapaça cinzenta.

Os copeiros trouxeram a sobremesa. Thomas levantou-se.

- Obrigado, eu me encarrego disso - declarou acendendo um fogareiro de álcool. - Vou preparar uma mousse de limão com cerejas flambadas.

Retirando as cerejas de uma taça, colocou-as numa frigideira de cobre que levou a aquecer no fogareiro. Em seguida, molhou as cerejas com conhaque e com um líquido transparente. Os convidados olhavam fascinados. O coronel Siméon chegou a erguer-se da cadeira.

- Que negócio é esse? - perguntou o general apontando o líquido transparente.

- Álcool de farmácia, muito puro. Uso-o como combustível,, para ter melhor chama. - Com um gesto hábil, Thomas aproximou as cerejas da chama. Uma chama azulada ergueu-se, chiando, da frigideira, vacilou e extinguiuse. Thomas espalhou as frutas quentes sobre a mousse.

- E agora, vejamos o nosso problema. Creio que há uma solução.

A colher do general caiu sobre o prato.

- Puxa! Diabo, conte-nos isso!

- Esta tarde, meu general... boas estas cerejas, não?...o senhor deplorou a atuação de certos elementos que não hesitam em explorar as infelicidades da França. Esses sujeitos querem ganhar dinheiro, seja de que forma for. Quando as coisas vão mal, eles pegam o seu dinheiro e azulam. Os pequenos é que ficam. - Thomas provou uma colherada de mousse. - Talvez um pouco ácida, não? É uma questão de gosto. Por Deus, cavalheiro, acredito que poderemos encher as arcas do Serviço Secreto francês à custa dessa quadrilha de abutres impatrióticos.

- Mas como? De que precisa o senhor para isso?

- De um passaporte diplomático americano, um passaporte belga e uma ação rápida do senhor ministro das Finanças - disse Thomas em tom modesto.

Ele dizia isso na noite de 31 de agosto de 1939. No dia 10 de setembro de 1939 a imprensa e o rádio anunciavam a assinatura do seguinte decreto:

PRESIDÊNCIA DO CONSELHO

Decreto proibindo ou regulando, em tempo de guerra, a saída de capitais, as operações de câmbio e o comércio do ouro.

Artigo 1º - À saída de capitais é proibida, sob qualquer forma, salvo quando autorizada pelo ministro das Finanças.

Artigo 2º - Todas as operações cambiais autorizadas deverão ser efetuadas por intermédio do Banco da França ou de estabelecimento bancário autorizado, para tal fim, pelo ministro das Finanças.

Seguiam-se outras decisões sobre o ouro e as divisas, bem como o enunciado das severas penas que ameaçavam os contraventores.

No dia 12 de setembro de 1939 um jovem diplomata americano seguia de Paris para Bruxelas, pelo expresso das oito e trinta e cinco. Vestia-se como um banqueiro londrino e levava uma grande mala de mão, preta, de couro de porco.

Na fronteira franco-belga a fiscalização era severíssima. Pelo seu passaporte diplomático, que se abria como uma sanfona, os funcionários franceses e belgas identificaram o elegante jovem como um certo William S. Murphy, correio diplomático da embaixada americana em Paris. A sua bagagem passou sem qualquer inspeção.

Em Bruxelas, o correio diplomático americano - que na verdade era alemão e se chamava Thomas Lieven - dirigiu-se ao Hotel Royal. No balcão da recepção apresentou um passaporte belga, com o nome de Armand Deeken.

No dia seguinte, Deeken, aliás Murphy, aliás Lieven, adquiriu dólares até o montante de três milhões de francos franceses. Esses três milhões ele os tirou de sua mala e substituiu pelos dólares.

Esse capital inicial de três milhões provinha do pequeno banco parisiense de Thomas Lieven. Ele achou que era seu dever fazer esse adiantamento ao Deuxième Bureau...

Em conseqüência dos acontecimentos, a cotação do franco caíra vinte por cento. Na França, os que tinham dinheiro, apavorados com a idéia de uma desvalorização crescente, procuravam, por todos os meios, adquirir dólares. Dessa forma, a cotação do dólar subiu astronomicamente em algumas horas.

O mesmo não acontecia em Bruxelas. Podiam-se comprar dólares muito mais barato porque o medo da guerra, que assustava os franceses, não havia contaminado os belgas. Acreditavam cegamente em sua neutralidade. Uma segunda invasão alemã estava fora de cogitação.

Tendo o governo francês decidido, de forma brutal, impedir a saída de capitais, os mercados estrangeiros não estavam inundados de francos. Por esse motivo, tal como previra Thomas Lieven, o franco conservava, apesar de tudo, um valor relativamente estável. Tal estabilidade representava, por assim dizer, o pivot de toda a operação.

Thomas Lieven regressou a Paris com a mala cheia de dólares, sempre sob a identidade de William S. Murphy. Em poucas horas os ricaços, que tinham em mente o único objetivo de abandonar a pátria e botar as suas fortunas em segurança, arrancaram-lhe das mãos os preciosos dólares. O medo e a cupidez custaram-lhes o dobro ou o triplo.

A primeira viagem deu um lucro de seiscentos mil francos. De novo William S. Murphy voltou a Bruxelas, levando em sua bagagem diplomática cinco milhões de francos. O mesmo processo foi repetido. A margem dos lucros aumentou. Uma semana mais tarde, quatro cavalheiros, todos portadores de passaportes diplomáticos, iam e vinham constantemente de Paris a Bruxelas e de Paris a Zurique. Exportavam francos e importavam dólares. Duas semanas mais tarde havia oito viajantes.

Thomas Lieven dirigia as operações. Graças às suas relações e ligações, conseguia refazer as reservas de Bruxelas e de Zurique. A operação, agora, passara a dar lucros de milhões.

Ao passo que aumentavam de volume as operações de Thomas Lieven, um raio de esperança e uma expressão de gratidão, ainda um pouco incrédula, iluminaram os olhares dos oficiais do Serviço Secreto francês.

Entre 12 de setembro de 1939 e 10 de maio de 1940, dia em que os alemães invadiram a Bélgica, o total de negócios de Thomas Lieven chegou a oitenta milhões de francos. Como recebia dez por cento para despesas e comissões e como invertia em dólares os seus lucros pessoais, restaram-lhe vinte e sete mil setecentos e trinta dólares. Não houve nenhuma irregularidade, mas um simples e pequeno incidente...

No dia 2 de janeiro de 1940, Thomas Lieven voltava, pela enésima vez, de Bruxelas para Paris, pelo expresso noturno. Na estação fronteiriça de Feignes o trem fez uma parada maior que a usual. Um tanto inquieto, Thomas já se dispunha a indagar a causa quando a porta do seu compartimento foi aberta e apareceu a cabeça do chefe da polícia francesa da fronteira, um homem de alta estatura, que Thomas já vira por diversas vezes.

- Cavalheiro - disse o policial em tom positivo -, o senhor deveria deixar este trem, beber um trago comigo e tomar o trem seguinte.

- E por que isso?

- Este trem está à espera do embaixador dos Estados Unidos em Paris. Sua excelência teve um pequeno acidente que avariou o seu automóvel. Reservaram-lhe o compartimento vizinho ao seu. Ele está acompanhado por três membros da embaixada... O senhor deveria, sem dúvida, tomar o trem seguinte. Permita que eu carregue a sua pesada mala.

- Como é que o senhor sabia? - perguntou Thomas, cinco minutos mais tarde.

 

                 MENU

         SOPA DE ESCARGOTS

         CHUCRUTE COM FAISÃO E OSTRAS

         MOUSSE DE LIMÃO COM CEREJAS FLAMBADAS

 

31 de agosto de 1939

Este menu levou a confusão à política monetária da França

Sopa de escargots - Ferva os escargots durante uma hora em água e sal e retire-os das carapaças. Polvilhe-os com sal para retirar a gosma, lave-os três ou quatro vezes e esprema para retirar toda a água. Faça cozinhar uns quarenta escargots em caldo de carne, até que fiquem bem cozidos. Retire do caldo e pique, bem fino, dois terços dos escargots. Frite-os na manteiga e junte caldo de carne até obter a quantidade de sopa que desejar. Faça ferver várias vezes, juntando noz-moscada e três gemas de ovos (para ligar) e sirva com fatias de pão torrado e os escargots que ficaram inteiros. Chucrute com faisão e ostras - Prepare um faisão como para assar. Esprema, ligeiramente, um quilo de chucrute e coloque em uma caçarola. Adicione água e vinho branco até cobrir o chucrute. Deixe cozinhar durante uma hora. Junte o faisão ao chucrute e deixe no fogo mais uma hora. Retire o faisão quando já estiver cozido e acrescente um pouco de bechamel ao chucrute.

Tire as ostras das cascas, seque-as com um pano e, uma a uma, salgue e ponha um pouco de pimenta-do-reino. Em seguida, cubra com farinha de trigo, ovo e farinha de rosca. Frite, rapidamente, na manteiga até que as ostras adquiram um tom castanho-claro.

Corte o faisão em pedaços e coloque numa travessa cercado de uma coroa de chucrute e outra de ostras.

Mousse de limão com cerejas flambadas - Para quatro pessoas use quatro limões cortados em rodelas grossas que se cozinham em água e açúcar. Junte um pouco de fécula para engrossar e passe na peneira quando frio. Acrescente cinco claras de ovos batidas em neve e sirva em taças.

Aqueça cerejas cristalizadas, molhe-as com Kirsch, ou conhaque, e acenda-as. Depois de flambadas coloque as cerejas sobre a mousse, nas taças.

- Mas, meu caro senhor - disse o grande policial, com um gesto que indicava estar enunciando o que era evidente. - O coronel Siméon nos avisa cada vez que o senhor vai passar, recomendando que o protejamos!

- Que posso oferecer-lhe? - perguntou Thomas pegando na carteira.

- Por favor, não, cavalheiro! É um serviço de amigo. Não se recebe dinheiro por isto. Por outro lado... somos dezesseis homens neste posto e já estamos quase sem café e cigarros...

- Na minha próxima viagem a Bruxelas...

- Um momento, cavalheiro. A coisa não é tão simples. Não teria graça ver aqueles sujeitos da Alfândega ficarem com a muamba para eles! A próxima vez que o senhor vier, mas somente se for pelo noturno rápido, vá para a plataforma dianteira do carro da primeira classe. Um dos meus homens subirá para receber o embrulho.

E assim foi feito, duas ou três vezes por semana. O posto fronteiriço de Feignes tornou-se o mais bem abastecido da França. - Gente modesta, gente boa - dizia Thomas Lieven.

O general Effel quis condecorá-lo, mas Thomas recusou:

- Eu sou um civil por convicção, meu general. Realmente não aprecio essas coisas.

- Então peça-me outra coisa, M. Lieven.

- Eu gostaria muito de ter uma certa quantidade de passaportes franceses, meu general. Com os carimbos competentes. Muitos alemães serão forçados a tornarem-se clandestinos se, por desgraça, os nazistas chegarem a Paris. Eles não teriam dinheiro suficiente para fugir. Gostaria de ajudar a esses pobres-diabos.

O general ficou em silêncio por alguns momentos.

- Não será fácil, monsieur, mas respeito os motivos que ditaram o seu pedido e vou satisfazê-lo.

Muitas pessoas foram procurar Thomas em seu belo apartamento do Bois de Boulogne. Ele não pedia dinheiro a ninguém. Os falsos passaportes eram entregues aos que, se capturados pelos nazistas, estariam em perigo de ir para a prisão ou... para a morte.

Thomas chamava a isso ”brincar de cônsul”. Ele tinha real prazer em brincar de cônsul. Tendo tirado, dinheiro dos ricos, era, para ele, um prazer dar uma pequena ajuda aos pobres.

Os alemães pareciam indiferentes à guerra na frente oeste. ”Drôle de guerre1”, diziam os franceses.

Thomas Lieven continuou as suas viagens a Bruxelas e a Zurique. Em março de 1940 voltou, certa vez, mais cedo que o previsto.

”Vou fazer uma surpresa a Mimi”, pensou Thomas. Realmente a surpreendeu... nos braços do coronel Siméon.

- Monsieur - disse o coronel, atarefado com os seus numerosos botões -, assumo inteira responsabilidade. Eu subornei Mimi. Traí a sua confiança. Escolha as armas.

- Trate de dar o fora e que eu não o veja mais em minha casa!

Siméon ficou vermelho como um morango, mordeu os lábios e retirou-se.

- Você foi bastante grosseiro - disse Mimi com timidez.

- Então você o ama?

- Eu amo aos dois. Ele é tão valente e tão romântico! E você é tão inteligente e tão divertido!

- Minha pobre Mimi, que vou fazer de você? - disse Thomas, abatido, sentando-se à beira da cama. Subitamente, sentia que estava muito preso àquela jovem...

A ofensiva alemã foi desencadeada no dia 10 de maio. Os belgas tinham se equivocado. O seu país, apesar de neutro, foi invadido pela segunda vez.

Os alemães lançaram cento e noventa divisões na batalha. A elas se opunham: doze divisões holandesas, vinte e três divisões belgas, dez divisões britânicas, setenta e oito divisões francesas e uma divisão polonesa. Os aliados dispunham de oitocentos e cinqüenta aviões, parte dos quais já obsoletos, para combater os quatro mil e quinhentos aparelhos alemães.

A débâcle veio com uma rapidez incrível. O pânico

 

1 Em francês no original: ”Que guerra mais esquisita”. (N. do E.)

 

generalizou-se. Dez milhões de franceses empreendiam uma horrível migração.

Em Paris, Thomas Lieven procedia com calma ao fechamento de sua residência. Os últimos passaportes falsos foram entregues a seus compatriotas quando já se ouvia o surdo troar dos canhões.

Empacotou cuidadosamente os seus francos, os seus dólares e as suas libras e colocou-os em uma valise com fundo falso. Mimi o ajudava. Ela não tinha boa aparência, ultimamente. Thomas mantinha-se algo distante, embora sempre amável. Ainda não tinha conseguido digerir o coronel.

Exteriormente, mantinha as aparências.

- Segundo as últimas informações, os alemães estão avançando do norte em direção leste. Por conseguinte, vamos comer algo e partir em direção sudoeste. Temos gasolina suficiente. Passaremos por Mans e prosseguiremos em direção a Bordeaux e... (ele parou de falar). Você está chorando?

- Vai levar-me com você?

- Mas é claro que sim. Eu não poderia, evidentemente, deixá-la aqui.

- Mas eu o enganei...

- Minha queridinha, para enganar-me - disse ele com ar digno - seria necessário que você tivesse dormido, pelo menos, com Winston Churchill!

- Ah, você é maravilhoso, querido. E a ele, você perdoa também?

- Mais facilmente que a você. Compreendo perfeitamente que ele goste de você.

- Thomas...

- Sim?

- Ele está no jardim.

- Como? - disse Thomas estupefato.

- Ele está desesperado. Não sabe mais o que fazer. Quando voltou da última missão não encontrou mais ninguém. Agora está só, sem carro e sem gasolina...

- Como é que você sabe?

- Ele... ele me contou... Esteve aqui há uma hora. Prometi falar com você.

- Agora - disse Thomas - já vi tudo! - começando a rir até as lágrimas.

Na tarde de 13 de junho de 1940, um pesado Chrysler preto atravessou Saint-Cloud em direção ao sudoeste. O carro avançava lentamente, porque inúmeros outros veículos, transportando fugitivos de Paris, se amontoavam na estrada.

Do lado direito do Chrysler tremulava uma pequena bandeira dos Estados Unidos da América. Uma bandeira estrelada, de dimensão média, recobria o teto do carro. Nos pára-choques havia escudos americanos e uma placa, bem polida, com as letras cd.

Thomas Lieven estava no volante e Mimi Chambert a seu lado. No assento de trás, entre malas e caixas de chapéus, estava o coronel Siméon, que trajava o seu terno azul-marinho de corte elegante mas já um tanto gasto. Usava as suas abotoaduras e o seu alfinete de gravata, de ouro. Siméon olhava para Thomas com um misto de gratidão, vergonha e extrema confusão.

Thomas fazia o possível para desanuviar a atmosfera dizendo palavras encorajadoras.

- A nossa boa estrela nos protegerá - olhava para a bandeirola junto ao radiador. - Ou melhor, as nossas quarenta e oito estrelas.

- Fugir como um covarde - disse o coronel - quando deveria ficar e combater!

- Mas Jules - disse Mimi em tom amistoso -, há muito tempo que a guerra está perdida. Se eles o pegam você será fuzilado.

- Seria mais honroso.

- E mais tolo - disse Thomas. - Estou curioso por saber como toda essa loucura vai acabar. Enormemente curioso.

- Se os alemães o pegarem - opinou o coronel -, você também será encostado à parede.

Thomas freou para entrar numa estrada secundária que atravessava um bosque.

- Os alemães cercaram três quartas partes de Paris. A quarta parte, ainda livre, está situada, grosso modo, entre Versalhes e Corbeil. É justamente onde estamos.

- E se os alemães já chegaram até aqui?

- Tenham confiança em mim. Nesta estrada sem interesse estratégico e neste setor não há alemães. Não há um único.

Chegaram ao fim do bosque e avistaram a planície. Uma longa coluna de carros blindados alemães, ostentando a cruz gamada, rodava sobre a estrada sem interesse estratégico e vinha diretamente sobre eles.

Mimi deu um grande grito.

O coronel gemeu, desanimado.

- Mas, que fazem eles aqui? - disse Thomas Lieven. - Certamente erraram o caminho...

- Está tudo perdido - disse o coronel, branco como o linho.

- Não recomece as suas trapalhadas. Você acaba por me enervar.

- Na minha pasta - disse o coronel Siméon em voz rouca - estão documentos secretos e listas com os nomes e endereços de todos os agentes franceses.

Thomas quase sufocou.

- Você ficou gira ou coisa que o valha? Por que trouxe essa papelada?

- O general Effel - gritou o coronel - ordenoume que a entregasse, a qualquer custo, a uma determinada pessoa.

- Você não podia ter contado isso antes? - berrou Thomas.

- E você me traria, se eu tivesse contado? Thomas foi obrigado a rir.

- É. Acho que você tem razão.

Um minuto mais tarde estavam face à coluna alemã.

- Tenho um revólver - sussurrou o coronel. - Enquanto eu estiver com vida ninguém tocará nesta pasta.

- Esses cavalheiros - disse Thomas parando o motor - esperarão os poucos minutos que você tem de vida.

Soldados alemães, empoeirados, aproximaram-se, curiosos. Um tenente, magro e louro, saltou de um carropatrulha e dirigiu-se para o Chrysler; fez continência e disse:

- Bom dia. Posso ver os seus documentos?

Mimi parecia paralisada. Não podia, sequer, pronunciar uma palavra. Os soldados, agora, rodeavam o carro por todos os lados.

- It is okay - disse Thomas Lieven, com desdém. - We are americans, see?1

- I can see the flag. - disse o tenente em excelente inglês. - And now I want to see your papers2.

- Here you are3 - disse Thomas, apresentando um documento.

O tenente Fritz Egmont Zumbusch desdobrou o passaporte diplomático americano, feitio sanfona, estudou-o de sobrecenho cerrado e depois olhou para o homem infinitamente blasé e indiferente que estava na direção do grande carro preto.

- Your name is William S. Murphy?4 - perguntou Zumbusch.

- Yes - respondeu o jovem, levando a mão disfarçadamente à boca, para dissimular um bocejo.

O tenente, meio contrafeito, devolveu delicadamente o passaporte. É verdade que nesse dia quente de 13 de junho de 1940 os Estados Unidos ainda mantinham a sua neutralidade. É também verdade que Zumbusch não desejava meter-se em encrencas a vinte e um quilômetros de Paris. Mas, não sendo feliz no casamento, ele gostava da vida militar. Assim sendo, prosseguiu como mandavam os seus deveres:

- O passaporte da senhora, por favor.

Sem compreender as palavras, a morena Mimi adivinhou o que ele queria. Abriu a bolsa e apresentou o documento pedido. Aos soldados que estavam em volta do carro ela ofereceu um sorriso que logo provocou um murmúrio de admiração.

- My secretary5 - explicou Thomas ao tenente. ”Por enquanto, tudo vai às mil maravilhas”, pensou Thomas Lieven.

 

1 Está tudo certo. (...) Nós somos americanos, não vê? (N. do E.)

2 O que eu vejo é a bandeira. (...) E agora quero ver os seus documentos. (N. do E.)

3 Aqui os tem. (N. do E.)

4 O seu nome é William S. Murphy? (N. do E.)

5 Minha secretária. (N. do E.)

 

”Agora só falta o Siméon e estaremos salvos.” A catástrofe ocorreu logo a seguir.

O tenente Zumbusch enfiou a cabeça pela janela, para devolver o passaporte de Mimi e, depois, virou-se para Siméon, sentado ao fundo entre maletas e caixas de chapéus, com a pasta preta sobre os joelhos.

Talvez Zumbusch tivesse estendido a mão com demasiada rapidez. O caso é que o coronel Siméon teve um brusco movimento de recuo quando a mão teutônica dele se aproximou e apertou contra o peito a pasta preta tendo no olhar a expressão fanática dos primeiros mártires cristãos.

- Olá, que há aí dentro? Deixe-me ver.

- Não, não, não! - gritou o coronel.

Thomas, querendo intervir, fez um movimento e bateu com a boca no cotovelo de Zumbusch. Afinal, um Chrysler não é do tamanho de um campo de futebol.

Mimi desatou a gritar. Zumbusch bateu com o crânio no teto do carro e começou a praguejar. E quando Thomas virou-se para o lado a alavanca do câmbio de velocidade bateu-lhe num local sensível. O joelho.

”Heróis cretinos”, pensou Thomas, furioso. Depois, com indizível susto, viu surgir na mão de Siméon um revólver militar francês. O coronel, em péssimo alemão, arquejava:

- Tire as mãos ou eu atiro.

- Espécie de asno - gritou Thomas, batendo de baixo para cima na mão de Siméon, com tal força que quase lhe deslocou o ombro. O tiro partiu com enorme ruído. A bala atravessou o teto do carro.

Thomas arrancou a arma das mãos de Siméon e disse, em francês:

- Com você só se arranjam encrencas.

O tenente Zumbusch abriu violentamente a porta e berrou em alemão para Thomas: - Fora!

Thomas desceu do carro, com um sorriso condescendente nos lábios. O tenente também tinha, agora, um revólver na mão. Em volta, os soldados estavam prontos para atirar. Subitamente, fez-se um completo silêncio.

Thomas atirou num campo de trigo o revólver de Simeon e ergueu as sobrancelhas ao deparar com quinze pistolas apontadas em sua direção.

”Não há nada mais a fazer”, pensou Thomas. ”Tentemos apelar para o respeito que os alemães têm pela autoridade.” Procurou respirar normalmente.

- Este senhor e esta senhora estão sob a minha proteção - gritou Thomas, na falta de melhor idéia. - Este veículo é extraterritorial. Os seus ocupantes estão em solo americano!

- Não estou ligando para isso...

- Okay, okay, o senhor quer provocar um incidente internacional! Foi um caso semelhante que nos fez entrar na Primeira Guerra Mundial.

- Eu não quero provocar coisa alguma. Estou cumprindo o meu dever. Este homem talvez seja um agente secreto francês.

- Se isso fosse verdade, o senhor pensa realmente que ele se teria portado como um imbecil?

- Basta. Quero ver o que está na pasta.

- Ela faz parte de bagagem diplomática, protegida por imunidade internacional. Eu apresentarei queixa a seu superior.

- O senhor vai ter oportunidade para fazer isso.

- Que quer dizer?

- O senhor virá conosco.

- Para onde?

- Para o quartel-general do Exército. Mesmo um cego veria que há algo de anormal por aqui. Tome a direção e faça meia-volta. À primeira tentativa de fuga faremos fogo. E não atiraremos nos pneus.

Ele disse isso entre os dentes.

Suspirando melancolicamente, Thomas Lieven examinou o quarto, decorado em vermelho, branco e ouro. O quarto fazia parte do apartamento 107. O 107 era um dos quatro mais luxuosos apartamentos do Hotel Georges V. O Georges V era um dos quatro mais luxuosos hotéis de Paris. Havia algumas horas que a bandeira da cruz gamada flutuava sobre o seu telhado. Havia algumas horas ouvia-se o ressoar das lagartas dos pesados blindados que passavam pela porta. No pátio estava estacionado um Chrysler preto.

No quarto de dormir do apartamento 107 estavam Thomas Lieven, Mimi Chambert e o coronel Jules Simeon.

Eles tinham acabado de passar vinte e quatro horas verdadeiramente loucas. Com um carro blindado à retaguarda, haviam tentado descobrir onde estava o quartelgeneral do Exército. O tenente Zumbusch tentara, inutilmente, um contato pelo rádio. O avanço alemão, entretanto, era tão rápido que não havia, aparentemente, um quartelgeneral fixo. Só depois que Paris foi ocupada, sem resistência, é que o general encontrou, afinal, um lugar onde permanecer: o Hotel Georges V.

Pesadas botas alemãs pisavam os corredores. Caixas, metralhadoras portáteis e cabos telefônicos espalhavam-se pelo saguão do hotel. Linhas de comunicação estavam sendo instaladas. A confusão era tremenda.

Um quarto de hora antes, o tenente Zumbusch levara seus três prisioneiros ao quarto de dormir do apartamento

  1. Depois desaparecera. Sem dúvida para fazer um relatório ao general. A pasta de couro preto estava nos joelhos de Thomas, que se apoderara dela antes de fechar, a chave, o automóvel negro. Acreditava que, assim, em seu poder, ela estaria mais segura.

Subitamente, gritos de cólera atravessaram a grande porta, artisticamente trabalhada, que comunicava para o salão. A porta foi aberta por um oficial de grande estatura.

- O general von Felseneck pede-lhe a fineza de entrar, Mr. Murphy - disse ele.

”Portanto”, pensou Thomas Lieven, ”eu ainda sou um diplomata americano. Vamos...”

Levantou-se lentamente e, com a pasta preta debaixo do braço, passou diante do ajudante-de-ordens e entrou no salão.

O general Erich von Felseneck era um homem corpulento, de cabelos grisalhos curtos, e óculos de aro de ouro.

Thomas avistou uma pequena mesa, sobre a qual havia talheres e dois recipientes de metal prateado. O general, era evidente, havia sido incomodado durante uma rápida refeição; aproveitando a ocasião, Thomas demonstrou a sua educação cosmopolita.

- General, lamento muito interromper a sua refeição.

- Sou eu, Mr. Murphy - disse o general apertando a mão de Thomas -, que devo lamentar o ocorrido.

Thomas quase teve uma vertigem quando o general lhe entregou o falso passaporte diplomático e os falsos passaportes de Mimi e de Siméon.

- Os seus documentos estão em ordem. Queira desculpar a iniciativa do tenente. Pode-se compreender que o comportamento do seu companheiro tenha despertado suspeitas. Mas é fora de dúvida que ele foi além das suas atribuições.

- São coisas que acontecem, general... - murmurou Thomas.

- São coisas que não devem acontecer, Mr. Murphy. O Exército alemão sempre age com correção. Respeitamos as praxes diplomáticas. Não somos salteadores de estrada.

- Certainly not.. -1

 

1 É claro que não... (N. do E.)

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       COZIDOS DIVERSOS

 

15 de junho de 1940

Graças aos cozidos, Thomas conquistou a amizade de um general alemão.

Goulasch com batatas - Refogue as cebolas, salgue bem o tempero com páprica. Junte a carne cortada em pequenos cubos. Antes que a carne esteja cozida, acrescente batatas igualmente cortadas em cubos. Não esquecer que as quantidades de carne e de cebola devem ser idênticas quanto ao peso. Junte, então, orégão e, se possível, cornichons.

Risi-bisi - Misture arroz já cozido com petit-pois, frescos ou em conserva, junte manteiga ou gordura, sobras de carne ou salsichas Frankfurt cortadas em pequenos pedaços e leve ao fogo brando, por pouco tempo. Tempere a seu gosto - o curry é ótimo para isso - e sirva depois de polvilhar com queijo ralado.

Cozido à irlandesa (Irish Stew) - Com esse nome há várias maneiras de preparar um excelente cozido de carneiro com repolho branco. A receita de Mecklenburg é uma das melhores. Eis a maneira de proceder: corte a carne de carneiro em pequenos quadrados, salgue e cozinhe em água durante uma hora ou hora e meia. Desfolhe o repolho, jogando fora as folhas externas. Cozinhe as folhas durante quinze minutos e depois seque-as espremendo fortemente num pano. Forre uma grande panela (de preferência de barro) com fatias finas de toucinho ou bacon.

Coloque uma camada de folhas de repolho e sobre ela alguns pedaços de carne de carneiro, cebola picada, cenoura, sal, pimenta-do-reino e um cravo-da-índia. Continue” a colocar novas camadas na mesma ordem, terminando com uma de folhas de repolho. Molhe tudo com o caldo - filtrado - onde foi cozido o carneiro e leve ao fogo brando durante aproximadamente uma hora. Sirva em uma terrina.

- Mr. Murphy, serei franco. Tive grandes aborrecimentos na semana passada. Quase que o assunto chegou aos ouvidos do Führer. Perto de Amiens, dois dos meus homens prenderam e revistaram dois membros da missão diplomática sueca. Uma encrenca dos diabos. Tive que apresentar desculpas pessoais. Aprendi a lição. Isso não me acontecerá a segunda vez. Já almoçou, Mr. Murphy?

- N-não.

- Então permita que eu o convide a comer algo antes da sua partida. A alimentação é frugal mas, guerra é guerra, não é? A cozinha do hotel ainda não está funcionando. E o Prunier, ah, ah, ah, certamente não está aberto hoje.

- Ah, ah, ah.

- Bem. Então? Uma amostra da cozinha de campanha alemã?

- Não desejaria incomodá-lo, general.

- Ao contrário, o prazer é todo meu. Kogge, mais um talher. E mande levar alguma coisa à senhora e ao cavalheiro que estão ao lado...

- Perfeitamente, general. Cinco minutos mais tarde...

- Um tanto monótona esta comida, não acha, Mr. Murphy?

- Oh, no. Dadas as circunstâncias, está deliciosa... - disse Thomas, que começava a readquirir seu sangue-frio.

- Não sei por que, mas esses tipos não sabem fazer um cozido - disse o general.

- General - disse Thomas Lieven com suavidade -, para agradecer a sua amabilidade permita que eu lhe ensine uns truques culinários...

- Puxa, Mr. Murphy, fala extraordinariamente bem o alemão!

”Elogio mortal”, pensou Thomas que logo baixou o plano dos seus conhecimentos lingüísticos: - Thank you, general. Tivemos uma babá, natural de Mecklenburg. Sua especialidade era o cozido à moda de Mecklenburg...

- Interessante, hein? - disse o general a seu ajudante-de-ordens.

- Sim, meu general. É uma infelicidade - explicou Thomas, tendo o maior cuidado com o sotaque americano e maltratando a sintaxe alemã - que o cozido esteja, hoje em dia, tão abandonado. Eu explicarei como se faz um cozido à moda de Mecklenburg. Até mesmo um goulasch de batatas pode ser delicioso. - Thomas baixou a voz. - Antes, porém, uma pergunta que me preocupa há algum tempo, general: é verdade que misturam... hum... brometo à comida dos soldados alemães?

- É um boato muito espalhado. Não posso responder porque realmente não sei. É verdade que os homens ficam em campanha por vários meses, longe de suas mulheres, longe de... Preciso elucidar mais?

- Absolutamente, general. De qualquer forma, as cebolas são de grande utilidade.

- Cebolas?

- As cebolas, general, representam o alpha e o omega de um goulasch de batatas. E não há falta de cebolas na França! É muito simples: use a mesma quantidade de cebolas que de carne de vaca, tempere com orégão e cornichons picados, depois...

- Um momento, Mr. Murphy, por favor. Tome nota disso, Kogge. Quero mandar a receita ao subchefe do Estado-Maior.

- Muito bem, general... Refogue as cebolas, salgue bem e tempere com páprica... - Enquanto ele ditava, bateram à porta. Um ordenança entrou. Houve uma troca de palavras, sussurradas, entre o general e o ordenança e logo a seguir, saíram ambos da sala.

Thomas continuou a ditar sua receita de cozido. Dois minutos depois o general regressou.

- Há pouco - disse o general em voz baixa e tom glacial - repreendi o tenente Zumbusch. Ele não gostou e telefonou para a embaixada americana. O nome de Murphy é completamente desconhecido. Pode explicar isso, Mr. Murphy?

Os panzers e os veículos militares continuavam a passar em frente ao hotel. Nos ouvidos de Thomas, o estalido das esteiras metálicas e o ronco dos motores assumiram sonoridade quase intolerável.

Um gesto involuntário fê-lo tirar do bolso o seu relógio de repetição. A campainha soou doze vezes e depois mais duas. O general, imóvel, esperava. Enquanto soavam os leves toques argentinos o cérebro de Thomas funcionava a toda velocidade. ”Não há nada a fazer”, pensou ele, ”é preciso jogar tudo por tudo...”

- Muito bem. Não tenho alternativa. Sou obrigado a infringir as ordens mais estritas... General, peço uma conversa a sós com o senhor.

Ele agora falava alemão fluente e sem qualquer sotaque.

- Ouça-me com atenção, Mr. Murphy ou qualquer nome que o senhor tenha: eu o previno. Uma corte marcial pode ser reunida em poucos momentos.

- Cinco minutos a sós, general.

Thomas Lieven fez o possível para assumir uma atitude grave.

O general pensou longamente e depois, com um movimento de cabeça, mandou sair o ajudante-de-ordens.

Logo que ficaram a sós, Thomas pôs-se a falar com a rapidez de uma metralhadora:

- General, solicito oficialmente que guarde em absoluto segredo tudo que vou dizer. Queira dar a sua palavra de oficial que nada dirá...

- Nunca vi uma audácia como a sua.

- O almirante Canaris...

- Ca-Canaris?

- O almirante Canaris, pessoalmente, deu-me ordens para não abandonar, em qualquer circunstância, a minha identidade de diplomata americano. As circunstâncias obrigam-me a dizer-lhe a verdade. Aqui está! - Com um grande gesto Thomas desabotoou o colete e retirou um documento de um bolso interno. - Queira tomar conhecimento, general.

Felseneck leu.

Estava em suas mãos uma carteira autêntica da Abwehr alemã, assinada por um certo comandante Fritz Loos, oficial da Abwehr na circunscrição de Colônia. Thomas havia guardado esse documento movido por uma convicção íntima de que algum dia poderia precisar dele.

- O senhor... o senhor é membro da Abwehr? - disse assombrado o general.

- Como o senhor vê. - Thomas agora estava animado e a todo pano. - Se o senhor duvida das minhas palavras sugiro que peça uma ligação urgentíssima para Colônia.

”Se ele telefonar, estou frito. Se não telefonar, estou salvo.”

- Escute... o senhor tem que admitir que... ”Aparentemente estou salvo”, pensou Thomas. Pôs-se a gritar:

- O senhor sabe quem são as pessoas que nos esperam no quarto ao lado? São pessoas que ocupam posiçõeschave no Serviço Secreto francês. E estão decididas a trabalhar para nós - bateu sobre a pasta preta. - Aqui dentro estão as fichas e as listas de todos os membros do Deuxième Bureau. Talvez agora o senhor comece a entender o alcance desse trabalho.

O general von Felseneck estava transtornado. Tamborilava com os dedos sobre a secretária. Thomas Lieven pensava: ”Fichas, listas, nomes dos agentes; se os meus compatriotas alemães pegarem estas listas liquidarão os agentes franceses. Correrá sangue. Muito sangue. Mas, por outro lado, se eles não se apoderarem das listas? Então esses agentes franceses irão fazer o possível para matar alemães. Qualquer das duas hipóteses me é desagradável. Odeio a violência e a guerra. Por conseguinte, devo refletir maduramente sobre o destino desta pasta preta. Pensarei mais tarde. No momento, o que interessa é sair daqui...”

- Mas... mas - gaguejou o general -... se essas pessoas querem trabalhar para nós por que tanto mistério? É incompreensível.

- O senhor verdadeiramente não me compreende, general? A contra-espionagem francesa está em nosso encalço. O atentado pode acontecer a qualquer momento. Foi por isso que o almirante teve a idéia de transportar essas pessoas sob a proteção diplomática de uma potência neutra e escondê-las em um casarão, perto de Bordeaux, até a assinatura do armistício. - Thomas sorriu amargamente. - Infelizmente, não imaginamos a possibilidade de um tenente alemão, cioso de seus deveres, vir a fazer fracassar o nosso plano! - Sacudiu a cabeça com ar grave. - Perdemos tempo. Tempo terrivelmente precioso! General, se este homem e esta mulher forem capturados pelos franceses as conseqüências internacionais serão simplesmente incalculáveis. Peço a fineza de chamar Colônia imediatamente!

- Mas, desde que eu acredite no que diz...

- Ah, o senhor acredita? É muito amável de sua parte. Neste caso permita que eu fale com Colônia para explicar o contratempo e o atraso.

- Depois das encrencas que já tive? Será realmente necessário?

- Que significa ”será necessário”? Não podemos continuar nas mesmas condições. Se eu partir imediatamente não quero continuar a correr o risco de ser preso na primeira esquina por um de seus homens cheios de zelo e disciplina.

- Eu lhe darei um salvo-conduto - disse o general com voz implorante. - Ninguém o prenderá. Nunca mais.

- Está bem - disse Thomas. - Há outra coisa, general: não repreenda o tenente Zumbusch. Ele cumpriu o seu dever. Imagine só se eu fosse um agente francês e ele me tivesse deixado passar.

Quando o Chrysler preto, com a bandeira estrelada, saiu do pátio do Georges V, duas sentinelas alemãs fizeram continência. Thomas Lieven, aliás William S. Murphy, correspondeu, cortesmente, levando a mão à aba do chapéu preto.

A cortesia de Thomas acabou aí. Passou, imediatamente, a descompor o coronel Siméon, que ouviu sem replicar.

Após quarenta e seis horas de viagem reencontraram o caminho da fuga planejada.

- Afinal - perguntou Thomas -, quem é o destinatário da pasta preta?

- O comandante Débras.

- Quem é ele?

- O número 2 do Deuxième Bureau. Ele levará os documentos para a Inglaterra ou para a África.

”E depois?”, pensou Thomas angustiado. ”E depois? Como seria belo o mundo sem serviços secretos!”

- Esse comandante está em Toulouse?

- Não tenho a menor idéia - respondeu o coronel. - Ignoro quando chegará e como chegará. As minhas ordens são para entrar em contato com a nossa caixa postal, em Toulouse.

- Que caixa postal? - perguntou Thomas.

- Chamamos de caixa postal a uma pessoa que recebe ou transmite informações.

- Ah...

- É um homem da mais absoluta confiança. Chama-se Gabriel Perrier e é garagista...

Eles passaram vários dias nas estradas entupidas de refugiados e de tropas. O salvo-conduto do general Felseneck operou milagres. Os controles alemães foram de uma cortesia exemplar. Por fim, Thomas chegou até a utilizar gasolina da Wehrmacht. Em Tours, um amável capitão entregou-lhe cinco latões.

Antes de Toulouse, Thomas parou o carro e fez um certo número de modificações. Desaparafusou a placa cv e retirou a flâmula americana do radiador, bem como a bandeira que recobria a capota. Prevendo uma eventual utilização, guardou esses acessórios na mala do carro, de onde tirou duas placas de matrícula francesa.

- Peço que não esqueçam que, de agora em diante, não me chamo mais Murphy, mas sim Jean Leblanc - disse ele a Mimi e a Siméon. Era esse o nome que constava no falso passaporte que lhe fora entregue por Júpiter, seu ex-instrutor na escola de espionagem de Nancy...

Em tempo de paz, Toulouse era uma cidade de duzentos e cinqüenta mil habitantes. No momento, mais de um milhão lá viviam. A cidade tinha o aspecto de uma praça de feira, mas o ambiente era febril e trágico. Imensos grupos de refugiados acampavam ao ar livre, debaixo das velhas árvores das praças da Rue des Changes e em SaintSernin. Os carros com que Thomas cruzava nas ruas tinham placas de todas as partes da França e de quase metade dos países da Europa. Viu um ônibus da ratp 1 ainda com a indicação de destinar-se ao Arco do Triunfo

 

1 Sigla que designa, em francês, a Administração Autônoma dos Transportes de Paris. (N. do E.)

 

e um caminhão de entregas com a indicação: ”Sodas e Águas Minerais, Alois Schildhammer & Filho, Viena XIX, Krottenbachstrasse 32”.

Enquanto o coronel procurava a sua ”caixa postal”, Mimi e Thomas tentavam arranjar quartos.

Andaram por todos os hotéis, pensões e centros de abrigo. Nada escapou. Não havia um só quarto livre em Toulouse. Nos hotéis, famílias inteiras dormiam nos saguões, nas salas de refeições, nos bares e até nos toaletes. Os quartos abrigavam o dobro, ou o triplo, de sua capacidade normal.

Com os pés doridos, Mimi e Thomas voltaram ao automóvel, depois de horas e horas de buscas inúteis. O coronel estava sentado no estribo do carro. Parecia preocupado. A pasta preta estava sob seu braço.

- Que aconteceu? - perguntou Thomas. - Você não encontrou a garagem?

- Encontrei - disse Siméon com ar cansado. - Mas não encontrei o Perrier. Ele morreu. Só há uma meiairmã, que se chama Jeanne Perrier e mora na Rue des Bergères, número

- Entremos no carro e vamos até lá. Talvez ela tenha alguma notícia do comandante Débras.

A Rue des Bergères ficava num dos velhos bairros da cidade, que quase não haviam mudado desde o século XVIII. Velhas ruas e vielas, calçadas com pedras irregulares e com suas casas pitorescas. Ouviam-se a algazarra das crianças e os sons de aparelhos de rádio. Das cordas, estendidas de um lado a outro, pendia a roupa lavada e multicor.

Na Rue des Bergères, com os seus bistrots, seus minúsculos restaurantes e seus pequenos bares, viam-se muitas raparigas bonitas. Exageradamente maquiladas e com vestidos curtos e apertados, andavam de um lado para outro, como que esperando que algo acontecesse.

O número 16 era um pequeno hotel envelhecido, em cujo andar térreo havia um restaurante com rachaduras nas paredes.

Uma tabuleta de cobre representando uma silhueta feminina pendia sobre a entrada. Nela se lia: CHEZ JEANNE

Num cubículo sombrio estava o porteiro, com cabelos cheios de brilhantina. Uma escada muito íngreme levava ao primeiro andar do hotel. O porteiro disse que a patroa não demoraria. Solicitou que os cavalheiros fossem para o salão.

No salão havia um lustre, muito veludo, pequenos sofás, plantas empoeiradas, um fonógrafo e um grande espelho que cobria toda uma parede. No ar sentia-se um misto de perfume, de pó-de-arroz e de tabaco.

- Meu Deus - disse Mimi meio assustada. - Estaremos num...

- Hum-hum! - fez Thomas.

- Vamos embora - disse o coronel, movido por seus princípios puritanos.

Uma bela mulher, de seus trinta e cinco anos, entrou na sala. Seus cabelos avermelhados eram curtos. Estava maquilada com apuro. Tinha um ar enérgico. Era uma mulher que conhecia a vida e apreciava o seu lado cômico. A mulher também tinha curvas que imediatamente despertaram o interesse de Thomas Lieven. A voz era ligeiramente rouca.

- Bom dia, minha senhora, bom dia, cavalheiros. Estão juntos os três? Como é encantador! Meu nome é Jeanne Perrier. Posso apresentar minhas amiguinhas?

Ela bateu as mãos.

Uma porta coberta de seda vermelha abriu-se e entraram três raparigas, uma das quais mulata. Todas três eram bonitas. Todas três estavam nuas. Sorrindo, dirigiram-se para o grande espelho e fizeram um giro completo.

- Aí está - disse a mulher interessante de cabelos fulvos. - Da esquerda para a direita temos Sônia, Bebê, Jeannette...

- Madame - interrompeu o coronel em voz débil.

-...Jeannette é de Zanzibar, ela...

- Madame - interrompeu o coronel em voz mais forte.

- Monsieur?

- Há um mal-entendido. Nós queremos falar-lhe a sós. - O coronel levantou-se e, chegando-se a Jeanne Perrier, perguntou em voz baixa: - Que disse a formiga à cigarra?

Jeanne apertou os olhos e respondeu no mesmo tom baixo: - Agora dance. - Depois, batendo novamente as mãos, disse às três uvinhas: - Vocês podem sair.

As três garotas saíram, rindo disfarçadamente.

- Perdoem-me, mas não tinha a menor idéia... - Jeanne começou a rir, olhando para Thomas. Parecia que ele lhe agradava. Uma ruga de cólera surgiu na testa de Mimi. - Dois dias antes de morrer - disse Jeanne - meu irmão inteirou-me de tudo. Ensinou-me, também, as palavras da senha. - Virou-se para Siméon. - Então o senhor é o homem que deveria trazer a pasta. Acontece que a pessoa que deve vir procurar a pasta ainda não deu sinal de si.

- Então será preciso que eu o espere. Isso pode levar algum tempo. A situação desse homem é extremamente perigosa.

”A situação do homem será ainda mais perigosa”, pensou Thomas, ”quando ele aparecer. Isto porque ele não vai receber a pasta preta. O Siméon não a terá por muito tempo em seu poder. Disso me encarrego eu. Farei tudo para impedir novas desgraças e mais derramamento de sangue... Vocês deveriam ter-me deixado tranqüilo, todos vocês. Agora é tarde. Vou jogar o jogo, mas à minha moda.”

- Madame - disse ele a Jeanne -, a senhora bem sabe que a cidade está mais cheia que um ovo. Não poderia alugar-nos dois quartos?

- Aqui? - disse Mimi, com um sobressalto.

- Querida, não vejo outra solução - sorriu graciosamente para Jeanne. - Por favor, madame!

- Em princípio só alugo meus quartos por hora...

- Vejamos, madame, permita que eu insista apelando para o seu coração de patriota.

Jeanne pensou, com ar sonhador:

”Que locatário simpático!” - Pois bem, concordo.

O comandante Débras fez-se esperar. Passou uma semana, depois mais outra, sem que aparecesse. ”Como seria bom”, pensava Thomas, aliás Jean, ”se ele não chegasse nunca.”

Ele começava a instalar-se confortavelmente em Chez Jeanne. Sempre que dispunha de tempo colocava-se à disposição da apetitosa hoteleira de cabelos avermelhados.

- Jean - explicou Jeanne a seu locatário germânico, que ela tomava por parisiense da gema e que chamava pelo nome de batismo desde o segundo dia -, o meu cozinheiro fugiu. E os abastecimentos são cada vez mais difíceis. Imagine o que eu poderia estar ganhando se o restaurante funcionasse...

- Jeanne - respondeu Thomas, que tratava a sua hospedeira pelo nome de batismo, desde o segundo dia -, vou fazer-lhe uma proposta honesta: eu me encarrego da cozinha e das compras. Os lucros nós dividiremos meio a meio, concorda?

- Você resolve tudo assim depressa?

- Isso a perturba?

- Pelo contrário, Jean, pelo contrário! Estou ansiosa por conhecer todos os seus talentos ocultos...

Durante os preparativos para reabrir o restaurante de Jeanne, Simeon acabou por demonstrar que tinha, apesar de tudo, os dotes de um verdadeiro agente secreto. Depois de ausentar-se por dois dias, ele, orgulhosamente, fez o seu relatório a Mimi e a Thomas.

- Os dois mecânicos nada me quiseram dizer mas, revistando a garagem, encontrei vários indícios. Uma chave. Um mapa de estradas. Um desenho. Descobri que o velho Perrier tinha um depósito de gasolina escondido.

- Não diga! Onde?

- Num bosque, perto de Villefranche-de-Lauragais. A cinqüenta quilômetros daqui. É uma reserva subterrânea. Acabo de chegar de lá. Há, pelo menos, uma centena de latões.

Mimi deu um salto e pendurou-se ao pescoço do coronel.

”Isto resolve o problema do combustível para a cozinha”, pensou Thomas. Fez justiça a Siméon: - Minhas felicitações, coronel.

- Ah, meu caro amigo, se soubesse como estou feliz por ter, finalmente, feito alguma coisa de útil e sensato.

”Se o céu tivesse dado a todos os agentes secretos o mesmo discernimento!”, pensava Thomas.

Foram buscar a gasolina escondida na floresta. Thomas guardou o Chrysler numa garagem e empregou uma pequena parte dos seus vinte e sete mil, trezentos e setenta dólares na compra de um pequeno Peugeot, que consumia muito menos gasolina.

Muito em breve Thomas tornou-se uma figura familiar nas estradas, meio esburacadas, dos arredores de Toulouse. Todos os camponeses o cumprimentavam, sorriam e mantinham as bocas caladas. Primeiro porque Thomas pagava bem e, segundo, porque ele lhes obtinha algumas mercadorias raras que trazia da cidade.

Thomas começou a assar, grelhar e a fazer massas à vontade. Jeanne o ajudava.

Na cozinha fazia calor. Jeanne se defendia eliminando, tão radicalmente quanto possível, as peças de vestuário. Era uma sociedade feliz: os sócios se admiravam mutuamente. Mimi, por seu lado, fazia longos passeios em companhia de Siméon.

Todos os dias havia no restaurante um cartaz que dizia: ”Complet”. A clientela era quase exclusivamente masculina: refugiados de todos os países que Hitler ocupara. A cozinha de Thomas Lieven era muito variada. Os refugiados estavam satisfeitíssimos, porque, além do mais, os preços eram muito razoáveis.

Ainda mais encantadas estavam as jovens pensionistas da casa. Por sua elegância, desenvoltura, amabilidade e sabedoria, o jovem e sedutor cozinheiro tinha conquistado a estima e a amizade de todas elas. Ele as tratava sempre como se fossem senhoras da sociedade e evitava trivialidades.

Muito em breve era, ao mesmo tempo, confessor, banqueiro, consultor jurídico e médico. Sempre que necessário, ouvia com paciência quando aqueles corações femininos abriam-lhe os recônditos mais secretos.

Jeannette tinha um bebê com uma ama, no campo. Os camponeses aumentavam suas pretensões despudoradamente. Thomas os dissuadiu disso.

Sônia tinha uma herança que um advogado desonesto recusava-se a entregar. Thomas o persuadiu.

Bebê tinha um amante brutal que a surrava freqüentemente. Fazendo delicadamente alusão a certos regulamentos policiais e usando um delicado golpe de judô, Thomas o levou a uma conduta melhor.

O amante chamava-se Alphonse e, no futuro, causaria muitos aborrecimentos a Thomas.

Entre os freqüentadores do restaurante havia um banqueiro chamado Lindner. Hitler o havia forçado a fugir, primeiro de Viena e depois de Paris.

Lindner, que durante a fuga se vira separado da mulher, esperava-a em Toulouse, onde haviam combinado encontrar-se na hipótese de uma separação forçada, tal como acontecera.

Walter Lindner simpatizara muito com Thomas. Quando soube que ele também era banqueiro, fez-lhe a seguinte proposta: - Venha comigo para a América do Sul. Partirei logo que minha mulher chegar. Tenho uma fortuna por lá. Você será meu sócio - e mostrou um extrato de conta, recente, do Banco do Rio da Prata, confirmando depósitos no valor de mais de um milhão de dólares.

Foi nesse momento que Thomas, a despeito de tudo que já lhe sucedera, retomou coragem e voltou a acreditar na razão e no bom senso. Ainda poderia haver um futuro melhor.

Ainda faltava concluir, da melhor maneira possível, o ”caso da pasta preta”. Abwehr ou Deuxième Bureau, nenhum dos dois teria os documentos.

Depois disso, então, adeus Europa. Velha Europa sanguinária e podre. Um mundo novo abria-lhe os braços. Voltar a ser banqueiro, bom cidadão e homem honesto! Que sonho!

Este sonho nunca passaria de um simples sonho. Muito em breve Thomas seria libertado do remorso de trabalhar para os franceses contra os alemães. Breve ele trabalharia para os alemães contra os franceses. Depois, novamente para os franceses. Depois contra os ingleses. Depois para os ingleses. Depois para os três. Depois contra os três. A loucura estava apenas principiando. O homem virtuoso que havia em Thomas Lieven, o homem que amava a paz e detestava a violência, simplesmente ignorava o que lhe reservava o futuro.

Junho terminou, depois julho. Havia quase dois meses que estavam instalados em Toulouse. Numa manhã bastante quente, Siméon, Thomas e Mimi reuniram-se em ”conselho de guerra”.

Siméon estava um tanto agitado, mas Thomas só se apercebeu disso depois de algum tempo.

- Caro amigo - disse o coronel -, precisamos aumentar o nosso raio de ação. Mme Perrier encontrou um novo bom fornecedor para você. - Apontou para um mapa que desdobrara. - Veja, é aqui, a mais ou menos cento e cinqüenta quilômetros a noroeste de Toulouse, no vale do Dordogne, perto de Sarlat.

- Trata-se de um pequeno castelo - explicou Jeanne, que fumava nervosamente, o que no momento também escapou a Thomas - nos limites da Comuna de Castelnau-Fayrac. Há uma fazenda, vacas, porcos, tudo enfim...

Três horas mais tarde o pequeno Peugeot saltitava sobre as poeirentas estradas, em direção noroeste. Nas margens do Dordogne a paisagem era romântica. Romântico também era o aspecto do Castelo Les Milandes, alva e alta construção do século XV, com duas torres maiores e duas menores, dominando toda a cadeia de colinas e cercado por um velho parque a que se seguiam prados e pastagens.

Thomas deixou o carro perto do portão do parque e chamou, diversas vezes, elevando cada vez mais a voz. Ninguém respondeu.

Chegou até uma grande esplanada, coberta de cascalho. Ao alto da escadaria uma enorme e magnífica porta de carvalho estava entreaberta.

- Olá - gritou Thomas ainda uma vez.

Um riso estridente e agudo fê-lo sobressaltar-se. O que ouvia não parecia riso humano.

No instante seguinte um pequeno macaco castanho surgiu da porta e, sempre aos gritinhos, desceu vertiginosamente a escadaria e como ginasta perfeito escalou o corpo de Thomas Lieven. Antes que este pudesse recompor-se do susto, já o bichinho estava no seu ombro e beijava-lhe o rosto.

Uma voz feminina fez-se ouvir: - Glou-glou, onde você está, Glou-glou? Qual é a nova travessura?

A porta de carvalho abriu-se e, por ela emoldurada, apareceu uma mulher de beleza radiosa e de pele bronzeada. Vestia calças brancas, justas, e uma blusa chemisier branca e folgada. Braceletes de ouro tiniam em seus pulsos finos. Sua negra cabeleira estava partida ao meio e penteada em bandós.

Thomas custou a retomar o fôlego. Conhecia aquela mulher e a admirava há anos. A surpresa impedia-o de falar. Poderia esperar tudo, menos encontrar face a face, nessa época de loucura, no centro de uma França convulsionada pela guerra e pela derrota, um dos ídolos de todo o mundo e a mais perfeita encarnação da beleza exótica. Em resumo: a célebre dançarina negra, Josephine Baker.

- Bom dia - disse ela com um sorriso de maravilhosa doçura. - Queira perdoar esta estranha recepção. Glou-glou parece ter gostado do senhor.

- Madame... a senhora é... a senhora tem... a senhora mora aqui?

- Aluguei o castelo, sim. Em que lhe posso ser útil?

- Chamo-me Jean Leblanc. Parece que vim aqui na intenção de comprar víveres. A sua presença, entretanto, atrapalha a minha memória - disse Thomas.

Sempre com o macaquinho encarapitado no ombro ele subiu a escadaria, inclinou-se diante de Josephine e beijou-lhe a mão. - Pouco importa, aliás, o motivo da minha vinda até aqui, se isso me dá a felicidade de encontrar uma das maiores artistas de nosso tempo.

- O senhor é demasiado gentil, M. Leblanc.

- Tenho todos os seus discos. Tenho mesmo três exemplares de J’ai deux amours. Assisti a todas as suas apresentações...

Thomas Lieven olhou, com veneração, para a Vênus Negra. Sabia que ela nascera nos Estados Unidos, em Saint-Louis. Sabia que o início de sua carreira fora muito difícil. A fama mundial ela conquistara em Paris, onde, vestida apenas com pencas de bananas, executava danças frenéticas diante de um público delirante de entusiasmo.

- É de Paris, monsieur?

- Sou um refugiado, sim...

- Quero que me conte tudo. Gosto tanto de Paris! É o seu carro que lá está, perto do portão?

- Sim.

- O senhor está só?

- Sim. Por quê?

- Por nada. Quer acompanhar-me, M. Leblanc? O castelo era muito velho. Thomas logo verificou

que abrigava toda uma coleção zoológica. Além do macaquinho Glou-glou, veio a conhecer mais os seguintes hóspedes do castelo: Mica, um babuíno de ar circunspecto; Gugusse, um macaquinho bigodudo e de movimentos rápidos como raios; Bongo, um píton preguiçoso que se enroscava no saguão, diante de uma lareira sem fogo; Hannibal, o papagaio; e, por fim, dois ratinhos que Josephine apresentou como Senhorita Papelote e Senhorita Ponto de Interrogação.

Todos esses animais viviam na mais perfeita paz. Bongo estava espichado no tapete e deixava que Senhorita Ponto de Interrogação dançasse sobre seu focinho. Mica e Hannibal jogavam futebol com uma bola de papel prateado.

- Que mundo feliz - disse Thomas.

- Os animais sabem viver em paz - disse Josephine Baker.

- Os homens, infelizmente, não.

- Eles acabarão por aprender, algum dia - disse a vedete. - Mas, agora, fale-me sobre Paris.

Thomas contou tudo que sabia. Estava de tal forma fascinado que perdera a noção do tempo. Finalmente, e com remorso, olhou para o relógio.

- Meu Deus! Já são seis horas!

- Passei uma tarde muito agradável. Não quer ficar e jantar comigo? Infelizmente tenho pouca coisa em casa. Não esperava visitas. Minha empregada saiu...

- Então posso realmente ficar? - disse Thomas com um entusiasmo verdadeiramente juvenil. - Nesse caso permita que eu cozinhe. Com poucos ingredientes podemse fazer coisas muito boas.

-- É verdade - disse Josephine. - Nem só de caviar vive o homem.

A cozinha era enorme, e instalada à moda antiga.

Em mangas de camisa, Thomas começou a trabalhar com entusiasmo. Fora, caía o sol atrás das colinas, ao longo do rio, as sombras se alongavam, chegara a noite.

Josephine, sorridente, olhava-o trabalhar, manifestando especial interesse pelos ovos pochés que preparava.

- É uma receita minha, madame! Em sua honra vou batizá-la: ”Ovos à Josephine”.

- Obrigada. Agora vou deixá-lo para trocar de roupa. Até já... - ela saiu. Thomas ocupou-se, alegre e satisfeito, com seus trabalhos culinários. ”Que mulher!”, pensava ele.

Quando terminou, lavou as mãos no banheiro e dirigiu-se para a sala de jantar. Doze velas ardiam em dois candelabros. Josephine Baker tinha um vestido verde, muito colante. Estava de pé ao lado de um homem alto e forte, trajando roupa escura. O homem tinha o rosto queimado pelo sol e seus cabelos branqueavam, nas têmporas. Os olhos e a boca denotavam caráter. Josephine Baker dava-lhe a mão.

- Peço desculpas por esta surpresa, M. Leblanc - disse ela -, mas sou obrigada a ser muito prudente.

Virou-se para o homem de têmporas grisalhas:

- Maurice, gostaria de apresentar um amigo.

O homem de roupa escura estendeu a mão para Thomas.

- Thomas Lieven, estou encantado por conhecê-lo, afinal. Tenho ouvido falar muito sobre o senhor.

Thomas ficou gelado e imóvel ao ouvir, assim de chofre, pronunciar o seu verdadeiro nome. ”Que loucura!”, pensou ele. ”Acabei, mesmo, caindo na esparrela!”

- Que distração a minha - disse Josephine. - O senhor não conhece ainda Maurice! Aqui está Maurice Débras, M. Lieven, o comandante Débras, do Deuxième Bureau.

”Com todos os demônios”, pensava Thomas Lieven. ”Não conseguirei, nunca, sair desta ronda infernal? Adeus noite agradável e só para dois.”

- O comandante Débras é um dos meus amigos - declarou Josephine.

- Homem feliz - disse Thomas mal-humorado. Olhou para o comandante. - Há semanas que o coronel Siméon o espera em Toulouse.

- Só ontem consegui chegar. Tive grandes dificuldades em escapar, M. Lieven.

- Maurice não pode aparecer em Toulouse - disse Josephine. - Sua fisionomia é por demais conhecida. A cidade é um formigueiro de agentes alemães e colaboradores franceses.

- Muitíssimo contente por sabê-lo, madame - disse Thomas.

- M. Lieven, compreendo perfeitamente o que quer dizer com isso - disse o comandante emocionado. - O senhor é uma das pessoas que mais se arriscaram a serviço da França. Quando eu chegar a Londres, saberei contar ao general de Gaulle a sua ação de louca temeridade quando salvou a pasta preta das garras de um general alemão.

A pasta preta...

Há quantas noites a pasta preta perturbava o sono de Thomas?

- A pasta está em Toulouse, com o coronel Siméon.

- Não, não está - disse o comandante, em tom amigável. - A pasta está na sacola de ferramentas, na mala do seu carro.

- Do meu...

- Sim, do seu pequeno Peugeot, que está junto à escadaria da entrada. Vamos logo buscá-la, antes de irmos para a mesa.

”Desta vez eles me pegaram”, pensou Thomas, com raiva. ”Siméon, Mimi e Jeanne me embrulharam. Que fazer agora? É bem verdade que eu não queria que o Serviço Secreto alemão se apoderasse da pasta. Mas também não quero que os franceses a tenham. O único resultado seria derramamento de sangue... Sangue francês ou sangue alemão, eu não quero ver correr nenhum dos dois. Eu era um homem pacato. Quiseram fazer de mim um agente secreto. Antes me tivessem deixado tranqüilo... Vocês vão ver o que ganharão por não me terem deixado em paz.”

Sentado à esquerda de Josephine e em frente ao comandante Débras, Thomas pensava nessas coisas enquanto beliscava, sem prazer, as rodelas de paio recheadas que ele próprio preparara.

A pasta preta estava, agora, sobre o grande aparador, perto da janela. Encontraram-na, realmente, na mala do carro. Débras, comendo com apetite, explicou toda a história.

- Ontem telefonei a Siméon, M. Lieven. Perguntei como poderia ter em minhas mãos a pasta preta. Ele respondeu-me: ”Você não pode vir a Toulouse, seria reconhecido; mas temos esse maluco Thomas Lieven, esse tipo extraordinário que vem percorrendo a região em todos os sentidos à procura de mantimentos. Ninguém estranhará ao vê-lo nas estradas. Ele pode levar a pasta preta”. - Débras aspirou o aroma que vinha do seu prato. - Formidável, este recheio. Como é feito?

- Cebolas, tomates e salsa. Mas por que todo esse mistério, comandante? Siméon deveria ter-me posto a par de tudo.

- Foi obedecendo a minhas ordens que ele não o fez. Afinal de contas eu não o conhecia...

- M. Lieven, um pouco mais de paio, por favor - Josephine sorriu radiosamente para Thomas. - Creio que foi melhor proceder assim. Além do mais, a pasta chegou sem tropeços a seu destino.

- Assim foi, não há dúvida - disse Thomas. Olhou para a pasta preta idiota, cheia de listas idiotas e que poderia custar a vida de centenas de pessoas. Estava sobre o aparador. Arrancada a grande custo aos alemães, tinha vindo aterrar entre os franceses.

”É pena”, pensou Thomas. ”Sem política, nem serviços secretos, nem violência, nem perigo de morte, poderíamos passar uma noite muito agradável.”

Uma cópia da Ópera dos três vinténs veio-lhe à memória:

Porque, ai de mim, neste planeta Os meios são precários e os homens brutais. Quem não gostaria de viver tranqüilo? Mas as condições não o permitem, jamais.

”Com efeito”, pensou Thomas, ”as condições e as circunstâncias não são favoráveis.” Eis por que as palavras que pronunciou, a seguir, não tinham, realmente, nenhuma ligação com os seus pensamentos.

Thomas Lieven disse:

- Agora permitam-me que eu sirva uma especialidade que batizei de ”Ovos à Josephine”, em homenagem a nossa anfitriã.

Enquanto isto, ele pensava: ”Débras não deve ficar com a pasta. Simpatizo com ele. Simpatizo com Josephine. Não quero prejudicá-los. Mas não posso nem devo ajudálos neste caso”.

O comandante estava encantado com a cozinha de Thomas.

- Excelente, monsieur, o senhor é um grande homem.

- Botou noz-moscada? - perguntou Josephine.

- Pouquíssima, madame. O essencial é começar por um roux claro.

Thomas Lieven pensava: ”Compreendo Josephine, compreendo Débras. O seu país está em perigo, nós o atacamos, querem se defender e não ser aniquilados por Hitler. Mas eu não quero ter sangue nas mãos”.

Thomas disse:

- Só se junta o leite depois, mexendo sempre até que o molho fique espesso.

Thomas pensava: ”Aquele livro que me deram naquela escola imbecil de espionagem, perto de Nancy, como se chamava mesmo? Ah, sim, O Conde de Monte Cristo. Em última análise, o herói estava na mesma situação que eu...”

- O senhor vai à Inglaterra de que modo? - perguntou Thomas, com voz angelical. - Qual será o seu itinerário?

- Irei via Madri e Lisboa.

- É bastante perigoso, não?

- Tenho um passaporte falso.

- Apesar disso, e como madame disse há pouco, o país está cheio de colaboradores e informantes. Se encontrarem essa pasta com o senhor.

 

               MENU IMPROVISADO

       RODELAS DE PAIO RECHEADAS

       OVOS À JOSEPHINE SALADA DE FRUTAS GELADA

 

19 de agosto de 1940

Os ovos que Thomas preparou maravilharam

a Vênus Negra.

Rodelas de paio recheadas - Use um tipo de paio que possa ser cortado em fatias espessas e sólidas. Corte fatias de um centímetro de grossura sem retirar a pele. Coloque as rodelas numa frigideira com gordura bem quente e aguarde que elas tomem a forma arredondada de uma cúpula. Retire-as rapidamente do fogo, coloque numa travessa metade das rodelas e encha a parte côncava de outra metade com o seguinte recheio: raiz-forte em raspas, maçã raspada, vinagre e sal. Recheie a outra metade com alho refogado com tomate, salsa e azeite de oliva. Sirva acompanhado de pão integral.

Ovos à- Josephine - Prepare primeiramente um bechamel com cento e dez gramas de manteiga, cinqüenta gramas de farinha de trigo e um quarto de litro de leite ao qual se adicionam, quando pronto, duas gemas. É importante misturar a farinha à manteiga derretida de forma que a mistura fique com um tom dourado. Junte o leite, mexendo sem cessar e acrescente as gemas depois de retirar a panela do fogo; adicione uma pitada de noz-moscada. A mistura deve ficar espessa. Complete o bechamel com presunto bem picado e queijo parmesão ralado. Cubra os ovos pochés com a massa, polvilhe-os com mais queijo ralado, coloque sobre eles alguns pedaços de manteiga e leve-os ao forno para gratinar, durante cinco minutos.

Pequeno truque para fazer bons ovos pochés: O ovo poché deve ser mole mas com bastante consistência para não se desmanchar. Para obter tal consistência é preciso - uma vez quebrada a casca - colocá-lo, com cuidado, na água fervente à qual se adicionou um pouco de vinagre. Deixe cozinhar durante três minutos, retire com uma escumadeira e coloque em água fria; depois que o ovo estiver frio, seque-o, com grande cuidado, com um pano fino.

Quando adquirir noz-moscada verifique se são pesadas e oleosas. As leves e secas já perderam o aroma e se esfarinham ao ralar. A leve camada branca que cobre a noz-moscada É um depósito da água de cal em que são lavadas para preservá-las dos insetos.

Salada de frutas gelada - Adquira uma lata de frutas misturadas, gele bem, molhe com rum e acrescente muito creme fresco.

- Sou forçado a correr o risco. Precisam de Siméon em Paris. É essencial que ele volte. Não tenho ninguém mais.

- Tem sim.

- Quem?

- Eu.

- O senhor?

”Para o inferno com todos os serviços secretos do mundo”, pensou Thomas que respondeu com ênfase:

- Sim, eu! Não suporto a idéia de os alemães se apoderarem desses documentos. - ”Também não posso suportar a idéia de que vocês os tenham”. - O senhor agora me conhece e sabe que pode confiar em mim. - ”Se soubesse o quanto não deve confiar!” - Além do mais isso me diverte. Estou viciado no jogo. - ”Miséria! Quando poderei voltar a ser um cidadão pacato?”

- Maurice - disse Josephine tirando o olhar de seu prato -, M. Lieven tem razão. Para os alemães e seus espiões você é como o pano,vermelho que se agita para um touro.

- Claro, chérie! Mas como proteger essa pasta contra a Abwehr?

”Contra a Abwehr e contra todos os outros”, pensou Thomas.

- Em Toulouse - disse ele -, conheci um banqueiro chamado Lindner. Espera pela esposa e depois partirá para a América do Sul. Ele me propôs uma sociedade. Viajaremos juntos e passaremos por Lisboa.

- Vocês poderão encontrar-se em Lisboa - disse Josephine a Débras.

- E por que quer fazer tudo isto? - perguntou Débras.

”Por convicção”, pensou Thomas.

- Por convicção - respondeu ele.

- Eu lhe ficarei devedor de um grande favor - disse Débras com ar pensativo. - ”Esperemos a continuação”, pensou Thomas. - Além do mais essa viagem dupla nos ofereceria possibilidades interessantes. - ”A mim, certamente”, pensou Thomas. - Se eu atrair a atenção dos interessados sobre a minha pessoa, o senhor estará livre de perseguição. - ”Absolutamente exato”, pensou Thomas.

- Muito bem. Tomarei, portanto, o trem para Madri. Quanto ao senhor, com o seu visto de trânsito, poderá ainda tomar um avião em Marselha.

”Vocês são pessoas de bem”, pensou Thomas. ”Honestos e cheios de projetos. Espero que, mais tarde, não me venham a odiar. Mas, na minha situação, um homem honesto poderá fazer coisa diferente? Não quero ver morrer agentes franceses mas também não quero ver morrer agentes alemães! Nem todos são nazistas, em minha terra.”

- É uma simples questão de bom senso, comandante - disse Thomas. - Toda a matilha está no seu encalço. Eu, por outro lado, creio que não estou nas listas da Abwehr.

Por um desses caprichos insondáveis do acaso, nessa mesma noite, mais ou menos à mesma hora, o general Otto von Stülpnagel, governador militar na França, erguia a sua taça de champanha, no Hotel Majestic, sede do Estado-Maior alemão em Paris, para saudar a dois homens. O primeiro era o almirante Wilhelm Canaris, chefe da Abwehr. O segundo era o baixote e grisalho comandante do corpo de carros blindados, o general Erich von Felseneck.

As taças de cristal tiniram ao serem chocadas. Diante de um grande retrato de Napoleão I, esses cavalheiros bebiam às respectivas saúdes. Os uniformes das diversas armas formavam um conjunto multicor. As condecorações cintilavam.

- Aos heróis invisíveis e desconhecidos da sua organização, almirante - disse o general von Stülpnagel.

- À glória infinitamente maior dos vossos soldados, cavalheiro.

O general von Felseneck, já um pouco avinhado, sorriu com ar de sabido.

- Deixe de falsa modéstia, almirante. Os seus homens são uns sabidões - Estava de excelente humor. - Infelizmente eu não lhe posso contar o caso, Stülpnagel. Prometi guardar segredo. Pode, entretanto, acreditar no que digo, o nosso Canaris não tem o cérebro oco.

Beberam.

Os generais von Kleist e Reicherian aproximaram-se do grupo e levaram com eles o seu colega Stülpnagel.

Canaris examinou o general von Felseneck com súbito interesse. Ofereceu-lhe um charuto.

- A que estava o senhor aludindo, Von Felseneck? - perguntou o almirante, em tom muito natural.

- Ora, Herr Canaris - disse Felseneck com uma risadinha. - Jurei manter segredo. Não me arrancará uma única palavra.

- Mas quem impôs silêncio tão absoluto? - perguntou Canaris.

- Um dos seus homens. Um sujeito verdadeiramente incrível. O máximo. - Canaris sorriu, mas o seu olhar era sério.

- Vamos, conte-me. Estou curioso por saber qual dos nossos pequenos passes de mágica o deixou tão impressionado.

- Está bem. É verdade que seria uma idiotice não contar ao senhor. Basta que eu lhe diga duas palavras: a pasta preta.

- Ah. Sim, sim. - Canaris sacudiu a cabeça num gesto amável. - Certamente, a pasta preta.

- Sim senhor, que tipo, almirante! A maneira de apresentar-se como diplomata americano! Que sangue-frio! Aquela calma absoluta quando um dos meus homens o prendeu! - Von Felseneck ria alegre. - Um sujeito que nos traz dois espiões franceses e mais todos os documentos do Deuxième Bureau e que ainda tem tempo para me explicar como se prepara um goulasch com batatas. Estou sempre pensando nesse camarada. Gostaria de ter um como ele no meu Estado-Maior.

- Em verdade - disse o almirante -, temos alguns rapazes muito espertos em nossa organização. Lembro-me desta história... - É claro que não tinha a menor idéia desta história. Seu instinto lhe dizia que algo de monstruoso havia acontecido. Mantendo um ar quase indiferente, ele fingiu refletir. - Espere um momento, como se chamava mesmo o rapaz?

- Lieven, Thomas Lieven. Circunscrição de Colônia. Ele acabou mostrando seu documento. Thomas Lieven. Aí está um nome que nunca esquecerei.

- Ah. Certamente. Lieven. O senhor tem razão, é um nome que é preciso não esquecer.

Canaris fez um sinal a um ordenança e apanhou duas taças de champanha da pesada salva de prata. - Venha, general, bebamos mais uma taça e sentemo-nos neste canto. Quero que me conte, com detalhes, o seu encontro com nosso amigo Lieven. Fico sempre feliz quando tenho ocasião de orgulhar-me de meus homens...

A campainha do telefone soou sem piedade.

Banhado em suor, o comandante Fritz Loos deu um pulo na cama. - Raio de profissão!

Às apalpadelas, encontrou o interruptor da lâmpada de cabeceira e apanhou o fone, dizendo com voz rouca: - Aqui fala Loos.

A linha estalava e zumbia: - Uma comunicação urgente de Paris. O almirante Canaris vai falar.

Ao ouvir a última palavra uma dor violenta atravessou o corpo do comandante. ”É a vesícula”, pensou ele, desanimado. ”Puxa! Só me faltava isso.”

- Comandante Loos? - perguntou uma voz conhecida.

- Almirante?

- Ouça. Houve aqui uma trapalhada dos diabos.

- Trapalhada, almirante?

- Você conhece um tal Thomas Lieven?

O fone escapou da mão do comandante e caiu sobre a cama. O fone coaxava. Loos apanhou-o novamente e levou-o ao ouvido.

- Sim, almirante - gaguejou ele. - Conheço o... o nome.

- Portanto conhece o indivíduo. Foi você quem lhe forneceu uma carteira da Abwehr?

- Sim, almirante.

- Por quê?

- Eu o... Eu recrutei esse Lieven para trabalhar conosco. Mas... mas não deu certo. Ele desapareceu. Tenho-me preocupado com isso.

- Com toda a razão, comandante, com toda a razão. Tome o primeiro trem ou o primeiro avião.

Estou à sua espera no Hotel Lutetia. Quanto mais depressa melhor, entendeu?

O Hotel Lutetia, no Boulevard Raspail, era o quartelgeneral da Abwehr em Paris.

- Às suas ordens, almirante - disse o comandante Loos com resignação. - Tomarei a primeira condução. Posso saber o que fez esse homem?

Canaris contou-lhe o que o homem havia feito. Loos empalidecia à medida que ouvia. Finalmente, fechando os olhos, pensou: ”Não, não e não, é impossível! E tudo por culpa minha...”

A voz que lhe chegava de Paris soava como trombeta de Jericó. -...ele tem as listas com os nomes, os endereços e as senhas de reconhecimento de todos os agentes franceses! Sabe o que isto significa? Esse homem está na posse de documentos que podem ser vitais ou mortais para nós. Precisamos alcançá-lo a qualquer preço!

- Certamente, almirante. Levarei, comigo, os meus melhores homens. - Deitado na cama o comandante Loos tentou assumir uma atitude marcial, mas o efeito foi estragado pela camisola que vestia. - Nós pegaremos essas listas. Faremos com que esse energúmeno não nos possa mais prejudicar. Eu o matarei com as minhas mãos...

- Você ficou maluco, ou coisa que o valha, comandante? - falou suavemente a voz que vinha de Paris. - Eu o quero vivo. Ele é demasiado precioso para ser fuzilado.

20 de agosto 1940, 02h45.

- Atenção assunto interesse serviços segurança - urgência um romano - expedidor chefe Abwehr - destinatários todos serviços polícia militar na França - procuramos cidadão alemão Thomas Lieven - trinta anos - magro - rosto fino - olhos escuros - cabelos castanhoescuros, curtos - traje civil elegante - fala correntemente alemão, francês, inglês - possui carteira autêntica Abwehr, assinada comandante Loos, centro recrutamento Colônia

- passaporte autêntico alemão número 543231-1 série C

- falso passaporte diplomático americano nome William S. Murphy - pessoa procurada deixou Paris 15 junho 1940 num Chrysler preto com escudos e bandeira americanos na capota - possuía salvo-conduto expedido general Erich von Felseneck - viajava companhia jovem francesa e um francês - pessoa procurada tem seu poder documentos inimigos maior importância - dirigir imediatamente informações e relatórios negativos ao comandante Fritz Loos, chefe grupo especial - quartel-general polícia militar Paris - em caso de prisão só usar armas caso necessidade absoluta - fim.

Thomas Lieven ignorava que a Wehrmacht e a Abwehr do Grande Reich estavam encarniçadamente à sua procura. Assim sendo, estava bastante satisfeito quando Walter Lindner, vermelho e sem fôlego, precipitou-se, dois dias mais tarde, na cozinha de Jeanne. Thomas estava ocupado no preparo de uma sopa de cebola.

Lindner deixou-se cair num banco, derrubando um frasco de cornichons, e gritou:

- Minha mulher... minha mulher... Encontrei minha mulher.

- Onde? Como?

- Aqui, em Toulouse. - Lindner ria e chorava ao mesmo tempo. Parecia que o casal era feliz. - Vamos depressa ao consulado - exclamou ele. - Agora podemos partir, Herr Lieven. Uma nova vida nos espera. Se soubesse como estou feliz!

”E eu, então”, pensava Thomas.

Os futuros sócios de um futuro banco sul-americano atiraram-se com entusiasmo aos preparativos de viagem. Nessa época, nenhum dos países limítrofes da França concedia vistos de entrada. Um visto de trânsito era o melhor que se podia conseguir. Mas, para isso, era preciso ter um visto de imigração de um país de além-mar.

Quando Walter Lindner provou ao cônsul da Argentina que tinha depositado, no Banco do Rio da Prata, um milhão de dólares, obteve sem dificuldade o visto para ele e sua mulher. Lindner declarou a sua intenção de levar consigo para Buenos Aires, como seu sócio, M. Jean Leblanc. Em vista disso, recebeu o visto de imigração autêntico o passaporte falso que esse M. Jean Leblanc recebera das mãos de um certo Júpiter, na escola de espionagem de Nancy. No dia 26 de agosto todos os três obtinham o visto de trânsito português. Nada mais impedia a sua partida.

Thomas Lieven preparou um horário rigoroso para o seu plano. Esse horário tinha que ser respeitado, pois muitas coisas dele dependiam, inclusive a sua vida. Após uma última conversa telefônica com o comandante Débras, que se achava em Milandes, o itinerário ficou organizado da seguinte forma:

28 de agosto: partida de Thomas Lieven e do casal Lindner para Marselha.

29 de agosto: partida para Lisboa, pela estrada de ferro, do comandante Débras, que passaria por Perpignan, Barcelona e Madri.

30 de agosto: partida de Thomas Lieven e do casal Lindner, pelo avião de Marselha para Lisboa.

10 de setembro: partida de Thomas Lieven e do casal Lindner de Lisboa para Buenos Aires pelo navio português General Carmona.

A partir de 3 de setembro, o comandante Débras e Thomas Lieven combinaram encontros permanentes, todas as noites às dez horas, no Cassino do Estoril, para a entrega da fatal pasta preta. Entre 30 de agosto e 3 de setembro Thomas Lieven esperava ter tempo para proceder a algumas modificações no conteúdo da pasta.

Na manhã de 29 de agosto um homem, jovem e elegantemente vestido, entrou na loja da companhia americana de aviação Rainbow Airways à Rue de Rome, em Marselha. Erguendo o chapéu preto e com um sorriso comunicativo, aproximou-se do guichê das reservas e disse em francês impecável:

- Bom dia, monsieur, chamo-me Leblanc. Venho buscar a minha passagem para Lisboa e também as de M. e Mme Lindner.

- Um momento, por favor. - O empregado percorreu as suas listas. - Perfeitamente, amanhã às quinze horas e quarenta e cinco minutos. - Começou a preencher os bilhetes.

Um pequeno carro parou à porta da agência. Dois pilotos e uma aeromoça saltaram e entraram na agência.

Pelo que diziam, Thomas percebeu que acabavam de aterrar e que partiriam, novamente, no dia seguinte às quinze horas e quarenta e cinco minutos.

A inspiração veio imediatamente.

A aeromoça, que teria, no máximo, seus vinte e cinco anos, ocupava-se em retocar a maquilagem. Tinha as linhas de um iate de corrida, olhos amendoados, maçãs salientes e uma tez de ouro bronzeado. Uma mecha ondulada de soberbos cabelos castanhos caía-lhe sobre a testa. Ostentava um ar distante e reservado. Uma gazela...

Thomas conhecia o tipo. Sabia perfeitamente com quem teria que se haver. Quando esse tipo de iceberg começava a derreter, não parava mais. Durante alguns segundos Thomas pensou nas despedidas emocionadas de Mimi, Siméon e Jeanne e das senhoras da Rue des Bergères. Todas o tinham beijado, como também o coronel, que exclamara: ”Viva a liberdade, meu caro camarada”. Quando o táxi partia Jeanne começou a soluçar. Ah, o lindo e comovente quadro de família!

Os poucos segundos se escoaram. As circunstâncias não permitiam maiores divagações.

A gazela continuava a refazer a maquilagem. A gazela deixou cair o seu batom.

”Os meus objetivos são os mais nobres”, pensou Thomas, que desejava basear suas intenções em princípios morais. Em seguida, apanhou o batom e devolveu-o à gazela tímida e de olhos castanhos onde brilhavam palhetas douradas.

- Muito obrigada - disse a gazela.

- Podemos partir, agora? - perguntou Thomas.

- Não compreendo.

- Se ainda tem algo a fazer aqui, não me importa esperar. Pensava que poderíamos, primeiro, tomar um aperitivo no Grand Hotel, onde estou. Para almoçar seria melhor irmos ao Guido, na Rue de Ia Paix. Depois do almoço poderíamos ir nadar.

- Escute...

- Não quer tomar banho? Muito bem, iremos descansar no hotel.

- Nunca me aconteceu nada parecido.

- Senhorita, farei todo o possível para que diga a mesma coisa amanhã! - Thomas tirou do bolso do colete o relógio de repetição e fê-lo soar. - Onze horas e meia. Vejo que a minha presença a põe nervosa. Bem sei a que ponto as mulheres se impressionam comigo. Bem, espero-a no bar do Grand Hotel. Digamos, ao meio-dia?

A gazela fez um movimento altivo com a cabeça e afastou-se com dignidade.

Thomas foi para o Grand Hotel, sentou-se no bar e pediu um uísque. A gazela chegou ao meio-dia e três minutos. Tinha trazido uma roupa de banho.

Ao lado do gorducho casal Lindner, Thomas Lieven - terno de flanela cinza, camisa branca, gravata azul, sapatos pretos, chapéu preto de aba levantada e guardachuva - atravessava a pista, ao lado dos outros passageiros, em direção ao avião que os esperava.

No alto da escada, à entrada da cabina, estava Mabel Hastings, a aeromoça. O seu aspecto, apesar de um certo cansaço, exprimia satisfação.

- Olá - disse Thomas subindo a escada.

- Olá - disse Mabel. As palhetas douradas brilhavam nos seus olhos.

Aconteceu que ela realmente nunca havia conhecido nada parecido com Thomas Lieven. Depois do almoço, no Guido, acabaram por desistir do banho e foram repousar no hotel. Por coincidência, ambos estavam no mesmo.

Na manhã de 30 de agosto, quando ajudava Mabel Hastings a arrumar a valise, ela lhe prestou - sem o saber, é bem verdade - um novo favor, intimamente relacionado com uma certa pasta preta...

O aparelho rolou para a pista de decolagem, passando em frente ao edifício do aeroporto. Pela janela, Thomas via o gramado bem tratado onde pastava um rebanho de carneiros. ”Carneiros”, pensou ele, ”dão sorte.” Depois viu um carro parar junto ao edifício. Um homem vestindo capa impermeável amarrotada e roupa azul, também amarrotada, desceu do carro. O suor escorria em seu rosto. Ele agitava os braços.

 

”Que falta de sorte”, pensou Thomas. ”O avião vai partir e esse pobre-diabo vai perdê-lo.”

O piloto acelerava os motores, fazendo o último controle antes de decolar.

Subitamente, Thomas sentiu um gelo na espinha. Aquele homem que gesticulava... ele conhecia aquela cara, já a tinha visto...

De repente, Thomas lembrou-se de onde tinha visto aquela cara: no quartel-general da Gestapo, em Colônia. O homem era um oficial do Serviço de Informações da Alemanha e chamava-se comandante Loos!

”Dir-se-ia que eles estão no meu encalço”, pensou Thomas. ”Mas evidentemente existe um bom Deus. Vou escapar, mais uma vez, do comandante Loos. O avião vai partir dentro de cinco segundos, e então...”

O avião não partiu. O ronco dos motores diminuiu e cessou. A porta da cabina de comando foi aberta e apareceu Mabel Hastings com seu ar distante, dizendo com voz aveludada:

- Senhoras e senhores, não há nada para inquietar. O rádio acaba de informar que um passageiro está; atrasado mas não pode perder o avião, sob nenhum pretexto. Vamos esperá-lo e partiremos dentro de alguns minutos.

O comandante Fritz Loos entrou no avião, alguns minutos depois, e pediu desculpas, em mau inglês, aos outros passageiros, pelo inconveniente que lhes causara. Ao passar por Thomas Lieven inclinou-se mas este prestou-lhe tanta atenção como se fosse de vidro transparente.

Lisboa! Estreito promontório de liberdade e de paz, numa Europa devastada, cada vez mais, pela guerra e pela barbárie.

Lisboa!

Paraíso fantasmagórico da riqueza, da abundância, da beleza e da elegância no meio de um mundo cheio de desespero e miséria.

Lisboa!

Eldorado dos serviços secretos, teatro de intrigas tão monstruosas quanto monstruosamente ridículas.

Desde a aterragem, Thomas Lieven viu-se metido em complicações. Perseguido pelo comandante Loos, que estava quase exausto - ele chegara a dormir durante o vôo, com a boca aberta e estertorando -, Thomas Lieven foi submetido a uma inspeção alfandegária surpreendentemente severa. Despiram-no completamente, viraram a sua bagagem de pernas para o ar e examinaram todos os seus bolsos. O Serviço de Segurança português aparentemente recebera alguma informação.

Estranhamente, não encontraram em seu poder nem a quantidade considerável de dólares que possuía nem uma certa pasta preta. Os inspetores deixaram-no livre, depois de algumas palavras corteses. Os Lindner, há muito, tinham ido para o hotel.

Thomas dirigiu-se para o guichê dos passaportes. O comandante Loos vinha logo atrás. Thomas encaminhou-se para o ponto de táxis do aeroporto. O comandante Loos vinha atrás. Nem uma palavra foi trocada entre os dois.

”Agora, meu velho”, disse Thomas para si mesmo, ”vou lhe proporcionar um pouco de movimento.” Tomou um táxi. Loos pulou noutro. Os dois táxis partiram vertiginosamente em direção ao centro da cidade das sete colinas. Umas férias maravilhosas, de seis semanas, gozadas anteriormente, haviam familiarizado Thomas com a imponente capital de Portugal.

Na Praça Dom Pedro fez parar o táxi e desceu. O táxi do comandante Loos também parou. Os terraços dos cafés que circundam a grande praça estavam repletos de portugueses e de imigrados, todos discutindo animadamente. De passagem, Thomas ouviu falar quase todos os idiomas europeus.

Misturou-se com a multidão, seguido do comandante Loos, que fazia esforços desesperados para não perdê-lo de vista.

”Agora, meu velho”, pensou Thomas, ”vamos fazer uma caminhada a pé. É ótimo para a saúde.”

Com passo rápido, Thomas desceu as ruas estreitas e angulosas próximas do mar, subiu novamente as íngrimes artérias principais, entrou em passagens e arcadas, quebrou várias esquinas mas teve sempre o cuidado de não obrigar o comandante a um esforço sobre-humano.

Queria que o comandante lhe rogasse pragas mas não que o perdesse de vista.

Thomas prolongou a brincadeira de ladrões e policiais por mais de uma hora e depois tomou um táxi, sempre seguido pelo comandante, e rumou para o porto de pesca de Cascais, perto da luxuosa estação balneária do Estoril. Ali ele conhecia um elegante restaurante com terraço.

Um sol avermelhado preparava-se para mergulhar no mar. Uma brisa cálida anunciava o anoitecer. A pequena aldeia de pescadores, situada numa enseada da embocadura do Tejo, era o lugar mais pitoresco dos arredores de Lisboa. Thomas Lieven se encantava com o espetáculo da volta da flotilha de barcos de pesca. Ele, agora, poderia ver tal espetáculo todas as noites.

Desceu do táxi à porta do restaurante. O antiquado carro do comandante Loos também parou. O oficial saltou, ainda ofegante, e com o aspecto de quem não está bem de saúde.

Thomas decidiu acabar com a brincadeira cruel. Dirigiu-se para Loos, ergueu o chapéu e falou-lhe gentilmente, como quem fala a uma criança perdida:

- Vamos descansar um pouco, aqui. Estes últimos dias devem ter sido muito fatigantes para o senhor.

- O senhor é quem o diz. - O comandante fazia esforços para manter a fama da sua profissão. - Não me escapará, Lieven - disse ele em tom cortante -, mesmo que vá ao fim do mundo.

- Mas não, velhinho, absolutamente não. Isto aqui não é Colônia. Aqui, um comandante alemão não vale muita coisa.

O oficial a paisana engoliu em seco.

- Faça o favor de chamar-me por Lehmann, M. Leblanc.

- Agora sim. Prefiro este tom. Queira sentar-se, Herr Lehmann. Olhe: não é magnífico?

Lá embaixo, um formigueiro de barcos com velas latinas, parecendo um enorme bando de borboletas, retornava à embocadura do Tejo. Como já o faziam mil anos antes, os pescadores alçavam seus barcos para a praia, sobre rolos de madeira. Mulheres e crianças ajudavam e fogos se acendiam por toda parte nos pequenos fogões de barro da praia já escura.

- Como conseguiu encontrar-me? - perguntou Thomas fixando a praia.

- Seguimos a sua pista até Toulouse. Tiro-lhe o chapéu. As raparigas da casa da Mme Jeanne foram impecáveis. Nem promessas nem ameaças arrancaram uma só palavra.

- Quem me traiu?

- Um cafajeste... Chama-se Alphonse... O senhor certamente lhe fez alguma.

- Sim, sim. Por causa daquele pobre Bebê - Thomas sonhou um instante com suas lembranças. Depois olhou fixamente o comandante. - Portugal é um país neutro, Herr Lehmann. Saberei defender-me. Fique avisado.

- Mas, meu caro Herr Liev..., perdão, M. Leblanc, o senhor está completamente enganado com respeito à situação. Fui encarregado, pelo almirante Canaris, de garantir-lhe a mais absoluta impunidade caso volte para a Alemanha. Além do mais, tenho ordens para comprar-lhe a pasta preta.

- Ah!

- Quanto quer? - O comandante debruçou-se sobre a mesa. - Eu sei que o senhor ainda tem as listas.

Thomas baixou o olhar. Depois levantou-se pedindo desculpas e dizendo que precisava telefonar.

Não falou do aparelho do restaurante. Em vista das circunstâncias, isto lhe parecia pouco prudente. Desceu alguns passos pela rua e foi até uma cabina de telefone público. Chamou o Hotel Palácio, do Estoril-Parque. Pediu que chamassem Miss Hastings. A aeromoça atendeu, sem demora.

- Jean, o que você está fazendo? Estou ansiosa por vê-lo.

- Creio que chegarei bastante atrasado. Um encontro de negócios. Escute, Mabel, esta manhã, em Marselha, eu coloquei por engano uma pasta preta na sua mala. Por favor, entregue-a ao porteiro. Mande guardá-la no cofre.

- Certamente, querido... e não chegue muito tarde. Sigo para Dakar, amanhã.

Enquanto falava, Thomas teve a intuição de que alguém estava de ouvido grudado à porta da cabina.

Empurrou a porta violentamente e um homem muito magro soltou um grito e recuou trôpego, levando as mãos à testa machucada.

- Oh! perdão - disse Thomas Lieven.

Depois, sorrindo resignadamente, ergueu as sobrancelhas. Conhecia aquele homem, que se poderia tomar por um parente próximo do comandante Loos. Encontrara-o no aeroporto de Londres, em maio de 1939, no dia em que fora expulso da Inglaterra por esse mesmo homem.

 

”Não resta dúvida”, pensou Thomas Lieven, ”perdi definitivamente a razão.”

”Este homem, em cuja testa acabei de bater com a porta da cabina telefônica, parece-me ser um tal Mr. Lovejoy, do Serviço Secreto britânico. Trata-se, evidentemente, de uma cisma de maluco. É claro que esse homem não pode ser Lovejoy. Por que cargas d’agua Lovejoy sairia de Londres para vir passear nos arrabaldes de Lisboa? Quem faria semelhante coisa?”

Thomas decidiu fazer uma experiência, como último recurso. ”Vou chamar a esse fantasma”, disse consigo mesmo, ”de ’Lovejoy’. Assim ficarei sabendo, de uma vez por todas, se estou realmente louco.”

- Como vai, Mr. Lovejoy? - disse Thomas Lieven erguendo as sobrancelhas.

- Não tão bem quanto o senhor, Mr. Lieven - respondeu prontamente a personagem macilenta. - O senhor acha que foi um prazer andar correndo atrás do senhor por toda Lisboa? E agora, esta porta para coroar tudo! - Lovejoy enxugou com o lenço o suor que lhe banhava a nuca. O galo que tinha na testa crescia lentamente mas crescia sempre.

”Então não sou eu que estou louco”, pensou Thomas Lieven. ”É o mundo em que vivo. E a loucura continua. Até parece que ela se está organizando cada vez melhor.”

Respirou profundamente, encostou-se à cabina telefônica e disse:

- Que o traz a Lisboa, Mr. Lovejoy?

O representante dos interesses britânicos fez uma careta e disse:

- Ficaria grato se o senhor me chamasse de Ellington. É o meu nome em Portugal.

- Uma mão lava a outra. Portanto, o senhor me chamará de Leblanc. É o nome que uso em Portugal. Mas tudo isso não responde a minha pergunta.

- O senhor continua a julgar que nós, do Serviço Secreto, somos uns imbecis? - perguntou irritado o homem que, no momento, chamava-se Ellington.

- Peço dispensar-me de responder a esta pergunta puramente retórica - replicou delicadamente o homem que momentaneamente se chamava Leblanc.

O agente britânico chegou bem perto de Thomas.

- Pensa que não sabemos que o próprio almirante Canaris está no seu encalço? Pensa que em Londres não são ouvidas as mensagens do rádio alemão?

- Pensei que elas fossem enviadas em código.

- Nós conhecemos o código deles.

- E os alemães conhecem o seu - disse Thomas começando subitamente a rir alegremente - Vocês deveriam juntar-se todos e brincar juntos... de chicote queimado ou de pique.

- Bem sei - disse o inglês ferozmente - que o senhor é um cínico sem coração. Sei que para o senhor não há nada sagrado. Formei a minha opinião há tempos, no aeroporto de Londres. O senhor é um indivíduo sem honra, sem moral, sem pátria, sem escrúpulos...

- Lisonjeiro.

- Foi por isso que eu disse: ”Deixem-me negociar com esse tipo. Ele só compreende uma linguagem, esta”. - Lovejoy esfregou o polegar contra o indicador.

- Um instante, por favor. Cada assunto em seu devido tempo. Diga-me, afinal, o que veio fazer aqui.

Lovejoy disse. A acreditar nele - e forçoso era acreditar -, o Serviço de Informações britânico captara todas as mensagens expedidas pelo comandante Loos para encontrar Thomas Lieven. A última mensagem trouxera a boa notícia de que Loos estava prestes a partir para Lisboa, em perseguição à caça.

-...para Lisboa - concluiu Lovejoy. -

Tomei imediatamente um avião especial. Cheguei duas horas antes do senhor. Do aeroporto segui-os, o senhor e o cavalheiro que lá está sentado no terraço do restaurante. Suponho que seja o comandante Loos.

- Que perspicácia! O senhor ainda não conhece o comandante?

- Não.

- Neste caso venha comigo. Eu os apresentarei. Jantaremos juntos. É claro que comeremos mexilhões; em Cascais é preciso comer mexilhões...

- Pare com as suas besteiras. Nós sabemos que o senhor joga um jogo duplo.

- Ah!

- O senhor tem uma pasta contendo as listas dos principais agentes franceses na França e na Alemanha. Eu não permitirei que o senhor venda esses documentos ao tal Loos. Ele vai propor pagar bem, certamente oferecerá muito dinheiro...

- Que os céus o ouçam!

-...mas eu ofereço o mesmo, ofereço até mais. - Lovejoy riu com desprezo. - Isso porque sei que o senhor só se interessa pelo dinheiro. Não conhece nem rei nem lei, nem consciência nem remorso; nenhum ideal, nenhuma decência...

- Muito bem - disse Thomas, com calma. - Agora chega disto. Feche imediatamente a boca. Quem me impediu de voltar à Inglaterra e viver como um pacato cidadão? Quem contribuiu para arruinar a minha vida? Vocês e os seus miseráveis serviços secretos, que o diabo os leve. Acredita que eu tenha alguma simpatia pelo senhor?

”Agora vocês vão jealmente ter trabalho comigo, bando de macacos”, disse para si próprio. ”Todos vocês!”

- Queira desculpar a interrupção - disse Thomas Lieven quando, três minutos depois, voltou para onde estava o comandante Fritz Loos, que, realmente, poderia ser tomado como parente próximo do seu homólogo anglosaxão.

- Encontrou um amigo, heim? Vi quando conversava com ele perto da cabina telefônica.

- Sim, um velho conhecido e um concorrente seu, Herr Lehmann.

Agora, dezenas de lampiões iluminavam o terraço do restaurante. Lá embaixo, na praia, soava o cântico rouco e solene dos pescadores. Uma leve brisa de sudoeste soprava da foz do Tejo. O crepúsculo dava ao rio tons de nácar esfumaçado.

- Um concorrente? - repetiu Loos, nervosamente.

- O cavalheiro trabalha para o Serviço Secreto britânico.

O comandante, perdendo o sangue-frio, deu um murro na mesa.

- Seu safado! - gritou ele.

- Vejamos, Lehmann, vejamos! - disse Thomas em tom reprobatório. - Se não pode ter boas maneiras eu o deixo.

O comandante fez um esforço para se dominar.

- O senhor é alemão - disse ele. - Apelo para o seu patriotismo...

- Lehmann, pela última vez, veja como se porta.

- Volte comigo para a Alemanha. Dou-lhe a minha palavra de oficial de que nada lhe acontecerá. Não se tem o direito de duvidar da palavra de um oficial...

- Portanto, é melhor nela não acreditar de todo - disse Thomas serenamente.

O comandante engoliu em seco.

- Então, entregue-me a pasta preta. Ofereço-lhe três mil dólares por ela.

- O cavalheiro de Londres já me ofereceu o dobro.

- E quanto o senhor quer?

- Pergunta ridícula. O máximo possível.

- O senhor é um bandido sem escrúpulos.

- Sim, o seu confrade fez, há pouco, a mesma constatação.

A expressão do rosto do comandante mudou. -- É realmente uma pena - murmurou com admiração - que não queira trabalhar para nós...

- Vamos, Lehmann, quanto oferece?

- Eu não... É preciso que eu fale com Berlim, pedindo novas instruções.

- Peça, Lehmann. Peça e ande depressa. O meu navio parte dentro de poucos dias.

- Diga-me somente uma coisa: como conseguiu fazer passar a pasta apesar de os funcionários da alfândega portuguesa o terem revistado até deixá-lo em pêlo?

- Recorri a uma ajuda exterior. - Thomas pensava, reconhecido, em sua gazela tímida. - Sabe, Lehmann, esse tipo de manobra é muito simples. Por outro lado, - é preciso um certo charme e não está ao seu alcance nem dos seus semelhantes.

- O quê?

- O senhor me detesta, não?

- Herr Lehmann, eu levava uma vida feliz, tinha tudo que desejava. Se hoje estou aqui é por sua culpa e por culpa de seus colegas ingleses e franceses. Ainda julga que devo gostar do senhor? Não fui eu que quis ter negócios com gente como vocês. Agora, arranje-se como puder. Onde está hospedado?

- Casa Nossa Senhora de Fátima.

- Eu estou no Palácio Estoril-Parque. O cavalheiro de Londres também. Pergunte ao seu patrão quanto a pasta preta vale para ele. O seu colega telegrafará a mesma pergunta esta noite... Bem... Eu gostaria, afinal, de poder comer!

A noite foi quente.

Thomas Lieven voltou a Lisboa num táxi descoberto. À luz do luar ele viu as ondas espumantes quebrarem nas areias; viu as residências luxuosas ao longo da auto-estrada, os escuros pinheirais e as palmeiras. Nas colinas de suave declive, viu as tavernas românticas. Percebeu o riso das mulheres e os sons de música.

O táxi atravessou o Estoril, balneário da moda, passou pelo cassino brilhantemente iluminado e pelos dois grandes hotéis.

A Europa tombava em ruínas e em cinzas mas aqui ainda se vivia num paraíso. Paraíso envenenado, pensava Thomas, éden mortal onde se tocaiavam, para se devorarem uns aos outros, os répteis de todas as nações. A capital portuguesa era o ponto de convergência.

Era lá que se reuniam em massa, para bancar os importantes e para urdir as suas tramas, os cavalheiros das quintas-colunas, esses fantoches do demônio...

Thomas fez parar o táxi no coração de Lisboa, na magnífica Praça Dom Pedro, calçada de mosaico branco e preto. Os jardins-terraços dos cafés em torno da imensa praça continuavam cheios de portugueses e de estrangeiros.

Os sinos das igrejas, nos arredores, batiam onze horas da noite. Os sinos ainda ecoavam quando Thomas viu, estupefato, levantarem-se e correr para.o lado mais baixo da praça centenas de portugueses e de refugiados austríacos, alemães, poloneses, franceses, belgas, dinamarqueses, tchecoslovacos e holandeses. Thomas foi com a multidão.

Num extremo da praça erguia-se o grande edifício de um jornal. Logo abaixo do telhado um cartaz luminoso dava as últimas notícias. Milhares de olhares fascinados fixavam as telas brilhantes, cujas mensagens significavam, para muitos, sentença de vida, ou de morte.

Thomas leu:

... (dnb) no Castelo de Belvedere, em Viena, Von Ribbentrop e Ciano, ministros das Relações Exteriores da Alemanha e da Itália, resolveram definitivamente o problema da nova fronteira húngaro-romena por meio de uma arbitragem germano-italiana. (up) A Luftwaffe prosseguiu em seus ataques em massa às Ilhas Britânicas. Houve grandes perdas materiais e de vidas humanas em Liverpool, Londres, Weybridge e Felixtown.

(ins) Ataque maciço de bombardeiros italianos a Malta. Ataque de depósitos britânicos na África do Norte.

Thomas Lieven correu o olhar sobre as fisionomias na multidão. Viu poucos indiferentes. A maioria espelhava tortura de alma, angústia, obsessão da morte, desesperança total.

A caminho do hotel, Thomas foi quatro vezes abordado por mulheres jovens e bonitas, sendo uma vienense, outra de Praga e outra parisiense. À mais jovem, quase uma criança, com ar de madona, ele ofereceu dinheiro e disse palavras de encorajamento.

Ela contou que fugira da Espanha de Franco.

As flores dos jardins do Estoril-Parque exalavam delicioso perfume. O saguão também parecia um mar de flores exóticas. Thomas o atravessou sob dezenas de olhares, atentos, dissimulados, desconfiados ou assustados.

Como na grande praça, ouviu falar todas as línguas da Europa.

Os indivíduos que aqui estavam, entretanto, não eram os torturados, os ansiosos e os desesperados. Aqui estava a multidão dos agentes e das agentes exercendo a sua baixa e inepta profissão, no luxo e na opulência, em nome de seus respectivos países.

Quando Thomas entrou em seu apartamento, dois braços carinhosos enlaçaram-lhe o pescoço e ele sentiu o perfume de Mabel Hastings. A jovem aeromoça tinha um colar de pérolas no pescoço, sandálias de salto alto e... mais nada.

- Jean! Até que enfim! Esperei tanto...

Ele a beijou carinhosamente e perguntou, em tom calmo.

- Onde está a pasta preta?

- No cofre do hotel como você pediu.

- Muito bem, querida - disse Thomas Lieven. - Então só nos resta falar de amor.

Cerca de oito e trinta da manhã seguinte, Mabel Hastings, fatigada, mas de excelente humor, levantava vôo para Dakar. Às dez horas, Thomas Lieven, de excelente humor e nada fatigado, preparava-se, depois de um reforçado café, para acertar suas contas, antes de deixar a Europa, com os seus verdugos dos serviços secretos alemão, francês e inglês.

Na maior livraria da cidade, na Avenida da índia, na manhã de 31 de agosto, um homem elegantemente vestido procurava plantas de cidades alemãs e francesas. Teve a felicidade de encontrá-las, bem como um Baedeker1 do ano de 1935.

 

1 Conceituadíssimo guia turístico da Europa editado na Alemanha por Karl Baedeker (1801-59) e seus sucessores. (N. do E.)

 

A seguir, Thomas Lieven foi ao Correio Geral. Uma funcionária de certa idade não resistiu à sua amabilidade e à sua força de persuasão. Listas telefônicas de cinco cidades alemãs e catorze cidades francesas foram postas a sua disposição durante uma hora. Os correios de Lisboa tinham uma coleção completa de todas as listas telefônicas da Europa.

Thomas recolheu um total de cento e vinte nomes e endereços. Na Rua Augusta comprou uma máquina de escrever e papel. Em seguida voltou ao hotel, retirou a pasta preta do cofre e foi para o seu apartamento. A temperatura era fresca e agradável. Diante das janelas estendia-se um parque com plantas e árvores de contos de fada, fontes e papagaios multicores.

Para clarear o espírito, bebeu um coquetel de tomate que pedira a um empregado solícito e depois começou a trabalhar.

Abriu a pasta preta. Ela continha toda a sua fortuna em dinheiro. Continha, também, seis listas datilografadas em espaço um, bem como planos recentes relativos à construção de tanques pesados, de lança-chamas e de caçabombardeiros.

”O melhor”, pensou Thomas, ”seria jogar toda essa porcaria na latrina. Mas é fora de dúvida que Débras sabe da existência dos desenhos e que notaria a sua falta. Os senhores Lovejoy e Loos, em compensação, nada sabem e só se interessam pelas listas. E listas eles vão receber.”

Examinou as seis páginas escritas a máquina. Mencionavam os nomes dos oficiais e agentes civis do Deuxième Bureau, os dos agentes franceses na Alemanha e os dos contatos na Alemanha e na França. Ao todo, cento e dezessete nomes.

Depois de cada nome havia o endereço. Depois do endereço havia duas frases. A primeira servia de apresentação ao agente. A segunda era a sua resposta. Só depois dessa troca de senha é que poderia haver a certeza de não se estar tratando com pessoa errada.

Thomas Lieven leu, por exemplo:

Willibald Lohr, Düsseldorf, Sedanstrasse 34; 1) ”O senhor teria visto um caniche miniatura cinzento e uma coleira vermelha?”

2) ”Não, mas em Lichtenbroich ainda vendem mel.”

Adolf Kunze-Wilke, Berlin-Grunewald, Bismarckalle

145; 1) ”Aqueles pombos, sobre o telhado de cobre do quiosque, são seus?” 2) ”Não desvie a conversa. A sua braguilha está aberta.”

E assim por diante.

Thomas sacudiu a cabeça e suspirou. Depois introduziu uma folha de papel na máquina nova e desdobrou o mapa de Frankfurt-sobre-o-Reno. Na lista telefônica de Munique ele escolhera, entre outros, o nome de Friedrich Kesselhuth.

Escreveu esse nome e, depois, olhou para o mapa.

Tomemos a Erlenstrasse, disse para si mesmo. Era uma rua próxima da Estrada de Mainz. Rua curta. Thomas verificou a escala da planta: 1:16000.

”Quantas casas poderá ela ter? Trinta. Quarenta. Certamente menos de sessenta. De qualquer forma é melhor tomar todas as precauções.”

Escreveu:

Friedrich Kesselhuth, Frankfurt-sobre-o-Reno. Erlenstrasse

 

1) ”A pequena vendedora da casa Fechenheim é loura ou morena?”

2) ”Acabe depressa de comer esse queijo Livarot, ele está empestando o ambiente.”

 

Pronto. Passemos ao seguinte.

Thomas escreveu o nome de um tal Paul Giggenheimer, de Hamburg-Altona, em Düsseldorf no número 51 da muito curta Rubensstrasse. E em seguida:

 

1) ”John Galsworthy completou sessenta e seis anos.”

2) ”Precisamos reaver nossas colônias.”

 

”Já tenho dois”, pensou Thomas. ”Só me faltam cento e quinze. E será preciso que eu bata essas cretinices três vezes. Para Lovejoy, para Loos e para Débras. Que trabaIheira! Mas será bem paga.”

Continuou a bater a máquina. Ao fim de meia hora sentiu uma grande depressão se apoderar dele. Foi até a janela e olhou para o parque.

”Com mil raios!”, pensou ele. ”Não conseguirei o que pretendo, se continuar assim. Resolvi fazer desaparecer as verdadeiras listas porque elas só podem causar novas desgraças. Por outro lado, quero vingar-me de todos esses cretinos que escangalharam a minha vida. Mas estarei realmente me vingando? Impedirei realmente que novas desgraças venham a ocorrer?

”Quando os franceses e os ingleses quiserem utilizar as minhas listas falsas constatarão simplesmente que tudo é falso. Até aí está certo.

”Imaginemos, entretanto, que Friedrich Kesselhuth, de Munique, tenha um homônimo em Frankfurt, mas que esse último não tenha telefone. Imaginemos que a Erlenstrasse tenha sido prolongada e que exista, atualmente, o número 77! A Gestapo prenderá todos que se chamem Kesselhuth. Serão torturados, mortos...

”E tudo isto a respeito de um só nome, um só endereço. Há mais de cem outros nas listas.

”É possível que os homens dos três serviços secretos descubram que os enganei e que joguem fora as listas. É possível que sejam bastante inteligentes para agir dessa forma. Mas, depois de tudo que já passei e já vi, não me posso fiar nisso.

”Acontece que Débras chega no dia 3 de setembro e quererá a pasta. Que posso fazer?

”Como é simples trair e matar pessoas, mas como é difícil evitar desgraças, perseguições e mortes.”

A campainha do telefone soou.

Sobressaltado, Thomas interrompeu as más reflexões e pegou o fone. Ouvindo uma voz bem conhecida, cerrou os olhos.

- Aqui fala Lehmann. Entrei em contato com a pessoa em questão. Vamos a seis mil dólares.

- Não - disse Thomas.

- Como, não? - Percebia-se um início de pânico na voz do homem de Colônia. - O senhor já vendeu?

- Não.

- E então?

Thomas olhou tristemente para o papel na máquina.de escrever.

- Estou prosseguindo minhas negociações - disse ele. - Vou anotar a sua oferta. Telefone amanhã. - Desligou sem mais uma palavra.

”Fritz Loos”, disse a si mesmo, encolerizado, ”aí está um nome que eu deveria pôr nas minhas listas.” A seguir, Thomas recolocou os papéis na pasta e levou-a à portaria, onde a fecharam no cofre.

Thomas tencionava fazer um pequeno passeio para pensar melhor. Devia haver uma solução para o seu problema.

Lovejoy estava sentado no saguão. Um enorme galo ainda ornava a sua testa. Ele saltou da cadeira e aproximou-se, com um olhar de cobiça.

- A pasta, hein? Eu a vi perfeitamente. Então?

- Estou prosseguindo minhas negociações. Vê-lo-ei amanhã.

- Escute. Eu ofereço mais que o seu nazista. Em qualquer hipótese.

- Perfeitamente, perfeitamente - disse Thomas prosseguindo a caminhar. Mergulhado em seus pensamentos, chegou à rua ensolarada. Mergulhado em seus pensamentos, caminhou ao acaso pela cidade. Na Avenida da Liberdade foi obrigado a parar. Um cortejo fúnebre passava, sob as palmeiras, e a polícia bloqueava o trânsito. O português falecido fora, aparentemente, personagem conhecida, porquanto centenas de homens e mulheres, vestidos de preto, o seguiam emocionados ao cemitério. Muitos choravam. Os transeuntes descobriam as cabeças. Rezavam alto e o ar estava impregnado de incenso.

Subitamente, umas vozes irritadas fizeram-se ouvir, dominando o triste murmurar das orações. Uma imperdoável falta de educação fora cometida por um homem jovem e bem vestido que, distraído, não tirara o chapéu.

- Estrangeiro porco - disse uma velha cuspindo no chão.

- Tem razão, vovó, tem razão - disse Thomas Lieven.

Com o guarda-chuva ao ombro dirigiu-se à estação da estrada de ferro, que ficava bem próxima.

No saguão havia uma grande banca de jornais onde se vendiam jornais e revistas de toda parte. Churchill, Hitler, Goering e Roosevelt estavam pacificamente lado a lado, acompanhados de mulheres seminuas, de rapazes musculosos e de grandes cabeçalhos marciais, em muitas línguas diferentes.

- Quero jornais, por favor - disse Thomas ofegante, ao velho vendedor de rosto enrugado. - Todos os jornais franceses e todos os jornais alemães.

- Mas, eles são de anteontem.

- Isso não tem a menor importância. Dê-me o que tiver. Mesmo os da semana passada ou da anterior.

- O senhor está bêbado?

- Estou perfeito, vovô. Vamos, ande.

O velho deu de ombros e depois começou a apanhar todos os encalhes que havia na banca.

Thomas voltou ao hotel, com um grande maço de jornais velhos sob o braço e trancou-se em seu apartamento. Começou a estudar os velhos jornais empoeirados mas somente as últimas páginas, onde apareciam os convites para enterros e missas. Muita gente morria diariamente em Paris, em Colônia, em Toulouse, em Berlim, no Havre e em Munique. A Gestapo nada podia fazer contra os mortos.

Thomas Lieven começou a escrever a máquina. Agora, podia utilizar endereços verdadeiros sem o menor remorso.

No dia 2 de setembro, Thomas Lieven comprou duas pastas pretas numa casa especializada da Avenida Duarte Pacheco. Com uma dessas pastas na mão entrou, logo ao início da tarde, nos elegantes salões do sr. Gomes dos Santos.

O sr. Santos, um dos melhores alfaiates de Lisboa, o acolheu pessoalmente, com um sorriso amável. O sorriso lhe dava um ar de opulência pois exibia muitos dentes de ouro.

Em uma das cabinas de prova, com paredes forradas de seda rosa-pálida, Thomas encontrou o comandante Loos, que trajava elegante roupa nova, de flanela escura.

- Graças a Deus - disse Loos com alívio, logo que viu Thomas.

Havia três dias que esse Lieven escangalhava os seus nervos. Encontrava-o constantemente, nos bares, no saguão do hotel ou na praia. E cada vez o sujeito o fizera esperar: ”Ainda não posso decidir em definitivo, tenho que falar novamente com o inglês”.

Thomas Lieven procedera da mesma forma com Lovejoy. Tapeara-o sempre, observando que o seu concorrente oferecia mais, cada vez mais. Dessa forma, conseguiu que os dois cavalheiros chegassem a ofertas de dez mil dólares cada um. Thomas decidiu que era o bastante.

- Até o dia de sua partida - dissera ele, em tom muito sério, a cada um dos dois homens - é preciso esconder, a todo preço, que foi ao senhor que eu vendi a pasta. A sua vida corre perigo se o segredo transpirar. Por conseguinte, a transação tem que ser feita em local muito discreto.

Loos escolheu uma cabina de provas no estabelecimento do sr. Santos.

- Formidável, esse alfaiate - disse ele a Thomas. - Faz uma roupa em três dias e com a melhor fazenda inglesa. - Bateu na manga do casaco. - Toque só nisto!

- É verdade, material excelente.

- Todos nós fazemos roupas aqui.

- Todos? Que ”todos”?

- Todos os agentes que estão em Lisboa.

- E é um lugar destes que o senhor chama de ”discreto”?

- Mas é justamente por isso - disse Loos entusiasmado com a própria astúcia. - Não compreende? Nenhum dos meus queridos colegas teria a idéia de que eu vim aqui para tratar de negócios.

- Ah!

- Além do mais, dei cem escudos ao José.

- Quem é o José?

- O cortador. Ninguém nos incomodará aqui.

- Trouxe o dinheiro?

- Certamente. Aqui está o envelope. E as listas?

- Aqui na pasta.

O comandante examinou seis listas contendo cento e dezessete endereços e Thomas, por seu lado, um envelope com duzentas notas de cinqüenta dólares. Um e outro pareciam satisfeitos.

- O meu avião parte dentro de uma hora - disse o comandante, apertando a mão de Thomas. - Felicidades, seu bandido. Confesso que acabei simpatizando com você. Talvez venhamos a nos reencontrar.

- Espero, sinceramente, que não.

- Tanto pior. Bem, então Heil Schicki - disse Loos levantando o braço direito.

- Como disse?

- É a fórmula usada pelos sujeitos da nossa missão militar em Portugal. Parece que esse Adolf tinha o sobrenome de Schicklgruber... São todos bons rapazes os que estão aqui. O senhor gostaria de conhecê-los.

- Não, não, muito obrigado.

- Eles não são nada nazistas.

- É claro que não - disse Thomas Lieven. - Boa viagem, Herr Lehmann. Queira transmitir meus cumprimentos ao almirante, embora eu não tenha tido a honra de conhecê-lo pessoalmente.

Tendo em vista a posição especial de Portugal na política mundial, não exibiremos filmes de atualidades.

Era o que informava um cartaz na sala de espera do Cinema Odeon, em Lisboa.

Em compensação, o Odeon exibia o filme alemão Batismo de Fogo.

No decorrer da sessão das quatro horas, Thomas Lieven encontrou o agente inglês Lovejoy num camarote. Enquanto, na tela, os Stukas alemães se encarniçavam sobre Varsóvia, uma pasta preta e dez mil dólares trocavam, mais uma vez, de mãos. Enquanto explodiam bombas, casas voavam pelos ares e retumbava uma marcha militar, Lovejoy inclinou-se até o ouvido de Thomas, para poder dominar o alarido da batalha.

- Escolhi propositadamente este cinema - gritou ele. - Podemos falar sem receio. Ninguém nos poderá ouvir. Astuto, hein?

- Muito astuto.

- O seu nazista vai estourar de raiva.

- Quando volta para Londres?

- Esta noite.

- Neste caso, boa viagem.

- Como?

- Boa viagem - berrou Thomas.

As listas autênticas, não é necessário esclarecer, já haviam desaparecido, há muito tempo, feitas em pedacinhos, no vaso sanitário do apartamento de Thomas. Na verdadeira pasta preta, que estava no cofre do hotel, a terceira série de listas falsas, com os nomes de cento e dezessete agentes, esperava pelo comandante Débras.

Débras estava em Madri e deveria chegar a Lisboa no dia 3 de setembro. Conforme já combinado, a partir de 3 de setembro, todas as noites, um deveria esperar pelo outro, das dez da noite em diante, na sala de jogo do cassino do Estoril.

Na noite de 3 de setembro, Thomas tomou um táxi para o Estoril. ”Ainda falta esse comandante”, pensava ele. ”Depois iremos para uma pequena pensão familiar, até o dia 10 de setembro.”

Era a data da partida do seu navio, o General Carmona. Seria mais prudente tornar-se invisível até então. As suas trapaças, era de presumir, seriam rapidamente descobertas, pelo menos em Berlim.

Era pouco provável que Débras percebesse qualquer coisa. Ele deveria seguir, sem demora, para Dakar. ”Mais dia, menos dia, ele também terá uma enorme decepção comigo. Coitado, gosto dele mas, honestamente, que poderia eu fazer? Na minha situação ele teria tido, é fora de dúvida, a mesma idéia. Quanto a Josephine, ela é mulher. Compreenderá.”

- Senhoras e senhores, façam o jogo.

A roleta girava lentamente. Com um gesto elegante o crupiê fez a bolinha de marfim girar, veloz, em sentido contrário.

Como que fascinada, a senhora de vestido vermelho seguia o giro da bolinha. Estava sentada bem ao lado do crupiê. Suas mãos tremiam segurando uma pequena pilha de fichas. Era muito pálida e muito bonita. Deveria ter seus trinta anos. Partidos ao meio, seus cabelos escuros aderiam à cabeça como se fossem um gorro. A senhora tinha uma boca com curvas sensuais e olhos negros, brilhantes. Tinha um ar reservado e aristocrático. Mas a roleta a tinha escravizado.

Havia uma hora que Thomas Lieven a observava. Tomava o seu uísque sentado no magnífico bar do imenso salão de jogo. A luz dos lustres batia sobre preciosos quadros pendentes das paredes, espelhos monumentais com molduras em branco e ouro, tapetes macios, empregados calçando escarpins, os homens trajando smoking, as espáduas nuas das mulheres, as roletas girando e as bolinhas em movimento.

Clique.

- Zero - gritou o crupiê ao lado da dama de vermelho. Ela perdera. Fazia uma hora que estava perdendo. Thomas a vira perder uma fortuna. Começava, também, a perder, cada vez mais, a calma. Com a mão trêmula acendeu um cigarro. Suas pálpebras batiam. Abriu uma pequena bolsa, bordada a ouro, retirou algumas notas que atirou ao crupiê. Este trocou-as por fichas e a senhora continuou a jogar.

Havia muitas mesas de roleta. Jogava-se também o chemin de fer. A sala estava cheia de mulheres bonitas. Thomas Lieven, porém, só tinha olhos para uma: a dama de vermelho. Aquele misto de reserva e de exaltação, de boas maneiras e de paixão, o interessava e o excitava. Essa combinação sempre o exaltara.

- Vermelho, vinte e sete - anunciou o crupiê.

A dama de vermelho perdera mais uma vez. Thomas viu que o barman sacudia a cabeça. Ele, também, observava a senhora.

- Que azar - disse ele, penalizado.

- Quem é ela?

- Uma escrava da roleta. O senhor não calcula quanto ela já perdeu.

- Como se chama ela?

- Estrella Rodrigues.

- Casada?

- Viúva. O marido era advogado. Ela é conhecida como a ”consulesa”.

- Por quê?

- Porque ela é consulesa. De uma republiqueta qualquer.

- Ah...

- Vermelho, cinco.

A consulesa perdera novamente e só restavam, à sua frente, sete pequenas fichas.

Thomas percebeu, de repente, que alguém lhe falava em voz baixa: - M. Leblanc?

Virou-se lentamente. Um homem baixo e gordo estava diante dele. Estava vermelho e suando de nervosismo.

- O senhor é mesmo M. Leblanc, não é? - perguntou o homem, em francês.

- Sim.

- Venha encontrar-me no lavatório.

- Por quê?

- Porque é necessário que eu lhe fale.

”Com mil bombas, as minhas listas! Alguém descobriu a trapaça. Mas quem? Lovejoy ou Loos?” Thomas fez um gesto de recusa.

- O senhor pode falar aqui.

- O comandante Débras - sussurrou o homenzinho - está em dificuldades, em Madri. Tomaram-lhe o passaporte. Ele não pode sair da Espanha. Mandou pedir-lhe que envie um passaporte falso, o mais rapidamente possível.

- E onde irei buscar tal passaporte?

- O senhor tinha muitos, em Paris.

- E os dei todos.

O gorducho parecia não entender.

- Acabei de colocar um envelope em seu bolso - disse em tom apressado. - Encontrará fotografias de Débras e o meu endereço em Lisboa. É onde o senhor me entregará o passaporte.

- Se eu conseguir arranjar um.

O gordote espiou nervosamente para os lados.

- Preciso ir-me embora. Faça o que puder, lelefone-me. - E saiu às pressas.

- Escute aqui, espere... - chamou Thomas. O gorducho já tinha desaparecido. Pronto. As encrencas continuavam.

”Que fazer agora? O Débras é um sujeito decente. Os meus princípios obrigam-me a fazer-lhe uma falseta, mas quanto a deixá-lo em má situação, isso nunca. Como conseguir que ele saia da Espanha? Como arranjar rapidamente um passaporte?”

O olhar de Thomas percebeu a dama de vermelho. Ela deixava a roleta, pálida e agitada. Aparentemente perdera tudo que tinha.

Uma idéia súbita ocorreu a Thomas.

Dez minutos mais tarde, ele ocupava, em companhia da consulesa Estrella Rodrigues, a melhor mesa do elegante restaurante do cassino. Uma pequena orquestra feminina seguia laboriosamente o seu caminho através de uma partitura de Verdi. Três garçons executavam um verdadeiro ballet em torno da mesa. Estavam ocupados em servir o prato principal: fígado de vitela à portuguesa.

- Excelente este molho de pimentão - disse Thomas em tom de aprovação. - Verdadeiramente excelente, não acha?

- Está muito bom.

- Graças ao suco, minha senhora. O suco de tomate... Há algo errado?

- Por quê?

- A senhora acaba de olhar-me de maneira tão bizarra... tão severa.

- Monsieur, não quero que o senhor se equivoque de nenhuma maneira. Não estou acostumada a aceitar convites de estranhos.

- Toda a explicação é supérflua. Um homem bemeducado sabe reconhecer uma senhora da sociedade. Não esqueçamos que fui eu que praticamente a forcei a aceitar esta pequena ceia.

A consulesa suspirou e o seu olhar severo tornou-se, subitamente, sentimental. ”Há quanto tempo terá morrido esse sr. Rodrigues?”, perguntou Thomas a si próprio, e logo continuou:

 

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         TORRADAS COM SARDINHAS

         FÍGADO DE VITELA À PORTUGUESA

         MELÃO AO CHAMPANHA

 

3 de setembro de 1940

Depois dessa refeição, a bela consulesa tornou-se mais acessível.

Torradas com sardinhas - Empregue sardinha em azeite, da melhor qualidade, sem pele e sem espinhas. Frite-as rapidamente, no próprio azeite. Coloque-as sobre torradas quentes cercadas de rodelas de limão. No momento de servir molhe com limão, salpique com pimenta-doreino.

Como se trata de um horsd’oeuvre, não sirva mais de duas torradas por pessoa, pois este prato é para abrir o apetite, e não para satisfazê-lo. Fígado de vitela à portuguesa - Para cada pessoa use uma fatia de fígado, que se polvilha com farinha de trigo. Não esqueça que o fígado só deve ser salgado depois de cozido. Descasque e descaroce meio quilo de pimentões e corte em pedaços finos e curtos.

Amasse meio quilo de tomates descascados e esprema o suco. Pique duas cebolas grandes. Refogue as cebolas em meia xícara de azeite até que fiquem douradas. Junte o pimentão e, depois, os tomates esmagados.

Quando o pimentão já estiver cozido, junte o suco dos tomates e deixe ferver mais cinco minutos.

Passe a massa obtida por uma peneira fina, junte um pouco de creme fresco e reaqueça. Adicione sal e pimenta-do-reino. Frite as fatias de fígado, cubra-as com o molho já feito e guarneça o prato com azeitonas sem caroço. Sirva com arroz branco. Melão ao champanha - Corte a parte superior de um bom melão, de forma que se possa retirar a polpa da parte maior. Retire a polpa, deixando uma camada de cerca de um centímetro. Corte a polpa em cubos e recoloque dentro do melão. Adicione champanha seco até cobrir os cubos, mas sem que eles flutuem. Cubra com a tampa, que foi inicialmente cortada, e leve ao refrigerador. Sirva muito frio.

Os gourmets preferem esse modo de preparar o melão ao champanha, pois consideram-no o que melhor ressalta o aroma natural do fruto.

- Nos momentos de grande tensão nervosa e depressão psíquica é preciso sempre aumentar as reservas de calorias. A senhora... ah... perdeu muito?

- Muito. Realmente muito.

- A senhora não deveria jogar. Mais algumas azeitonas? Uma mulher com a sua beleza só pode perder, é apenas justiça.

- Oh! - o belo decote da consulesa traiu a sua agitação íntima. - O senhor não joga?

- Na roleta, não.

- Feliz mortal.

- Sou banqueiro. Todo jogo que não depende da inteligência me aborrece.

Com uma rapidez fulminante a morena Estrella retomou seu ar de feroz severidade.

- Detesto a roleta - disse ela. - Detesto-a e detesto a mim mesma quando estou jogando.

Thomas Lieven começava a sentir que essa mulher mexia com os seus sentidos. Essa mulher que da doçura de um cordeiro se transformava, subitamente, em tigre feroz... ”Preparemo-nos para algo inesperado”, disse a si mesmo. ”Mas vai ser formidável.”

- Há duas coisas no mundo que eu detesto.

- Quais são?

- A roleta e os alemães - disse Estrella com tal raiva que parecia cuspir as palavras.

- Ah!

- O senhor é francês, cavalheiro. Sei que me compreende, pelo menos no que diz respeito aos alemães.

- Perfeitamente, senhora, perfeitamente. Ah... por que o ódio pelos alemães?

- Meu primeiro marido era alemão.

- Eu compreendo.

- E ainda por cima, era diretor de cassino. Preciso explicar melhor?

”A conversa está-se desviando completamente”, pensou Thomas Lieven. Por isso, foi dizendo:

- Certamente, não. Entretanto, eu gostaria de que a senhora me proporcionasse um grande prazer...

- Qual?

- Gostaria de ser o comandatário do seu jogo esta noite.

- Cavalheiro!

- Se a senhora ganhar, dividiremos.

- É impossível... absolutamente impossível... além do mais eu nem o conheço. - Foram esses os argumentos iniciais da consulesa.

Pequeno intervalo. Dez minutos mais tarde:

- Bem - disse ela -, já que o senhor insiste... Mas com a condição de dividirmos meio a meio se eu ganhar.

Os olhos de Estrella começaram a brilhar, sua respiração ofegava, suas faces ficavam rosadas.

- Por que demoram com a sobremesa? Estou tão nervosa. Sinto que vou ganhar, ganhar o que quiser...

Uma hora mais tarde a dama impetuosa, que detestava os alemães e a roleta, tinha perdido vinte mil escudos. Abatida e parecendo uma Madalena, veio ao encontro de Thomas no bar.

- Meu Deus, que vergonha!

- E por que motivo, por favor?

- Como poderei devolver-lhe o dinheiro? Eu... eu estou um pouco atrapalhada neste momento.

- Considere isto como um presente.

- Nem pense nisso! - Retomou o seu aspecto de anjo vingador, talhado no mármore. - Por quem me toma o senhor? Tenho a impressão de que errou o endereço, cavalheiro.

O quarto estava na penumbra. Somente duas pequenas lâmpadas brilhavam em um abajur cor-de-rosa. A fotografia de um senhor de óculos e com nariz avantajado estava sobre uma cômoda. Em formato reduzido e enquadrado em prata, o sr. Pedro Rodrigues, defunto há mais de um ano, olhava para a sua viúva Estrella.

- Oh! Jean, Jean, como estou feliz...

- Eu também, Estrella, eu também. Cigarro?

- Dê-me uma tragada do seu.

Ele entregou-lhe o cigarro e olhou pensativo para a noite. Reinava silêncio na grande casa da consulesa. Os empregados dormiam.

Ela aninhou-se junto a ele e o acariciou.

- Estrella, minha querida.

- Sim, meu coração?

- Você tem muitas dívidas?

- Muitíssimas... A casa está hipotecada... botei parte de minhas jóias no prego... É que espero sempre ter sorte e recuperar tudo.

Thomas olhou para a fotografia.

- Ele lhe deixou muito dinheiro?

- Uma fortuna modesta... Como eu detesto aquela infame roleta!

- E os alemães?

- Os alemães também.

- Diga-me, querida. Você é consulesa de que país?

- Da Costa Rica. Por quê?

- Já expediu algum passaporte costarriquenho?

- Não, nunca.

- Mas o seu marido, certamente?

- Ele, sim. Mas, se quer saber, ninguém mais apareceu aqui desde o início da guerra. Acredito, mesmo, que não haja nenhum costarriquenho em Portugal.

- Mas, meu anjo, você ainda deve ter vários passaportes em branco, não?

- Não tenho a mínima idéia... Depois da morte de Pedro eu mandei colocar toda a papelada e os carimbos numa mala que fiz levar para o sótão... Isso pode interessar para alguma coisa?

- Eu queria um passaporte, minha gatinha.

- Um passaporte?

- Ou vários - disse ele, em voz açucarada e pensando na triste situação financeira da senhora.

-- Jean! - Ela estava apavorada. - Isto é uma brincadeira?

- Falo muito seriamente.

- Mas que espécie de homem é você?

- O fundo é bom.

- Mas... que faríamos nós com esses passaportes?

- Poderíamos vendê-los, minha beleza. Não faltam compradores por aqui. Eles pagariam bom preço. E com esse dinheiro você poderia... Preciso continuar?

- Oh!

Estrella respirou profundamente. Respirar profundamente tornava-a ainda mais atraente. Estrella calou-se. Estrella refletiu longamente. Depois, saltou da cama e correu para o banheiro. Quando voltou trazia nas mãos um roupão.

- Vista isto.

- Aonde você quer ir, meu tesouro?

- Ao sótão, evidentemente - gritou ela. Meio tropeçando, com os saltos de suas sandálias de seda, ela já corria para a porta.

O sótão era grande e estava atravancado. Havia um cheiro de serragem e naftalina. Estrella segurava uma lâmpada elétrica enquanto Thomas fazia esforços para retirar uma velha mala que estava por baixo de um grande tapete enrolado. Bateu com a cabeça numa viga e soltou um palavrão. Estrella ajoelhou-se a seu lado. Com esforço, os dois juntos conseguiram levantar a tampa que rangia. Na mala, formulários, livros e passaportes. Dúzias de passaportes.

Com os dedos febris Estrella começou a folhear os documentos. Examinou um, dois, cinco, catorze passaportes. Todos eram velhos e maculados. Tinham fotografias de desconhecidos; inúmeros carimbos cobriam as páginas. Só havia passaportes com prazo esgotado e sem valor.

Vencidos... esgotados... sem valor.

Estrella levantou-se profundamente decepcionada.

- Nem um só passaporte novo. Tudo velho. Sem qualquer utilidade.

- Ao contrário - disse Thomas Lieven baixinho e beijando-a. - Os velhos passaportes, com prazo vencido, são os melhores.

- Eu não entendo.

- Vai entender num instante - prometeu alegremente Thomas Lieven, aliás Jean Leblanc.

Ele não sentiu, naquele momento, o sopro glacial do destino que, por trás dele, tal o gênio da garrafa do conto oriental, estava prestes a lançá-lo, novamente, num turbilhão de aventuras e perigos.

Com passo calmo, uma grande sacola de couro na mão, um homem jovem e de muito boa aparência caminhava, no dia 4 de setembro, cerca de meio-dia, pelos labirintos de Alfama, o velho bairro de Lisboa.

Nos meandros das pequenas ruas, com seus palácios do século XVIII, com rachaduras nas fachadas e suas casas burguesas com janelas e portas coloridas, brincavam crianças descalças, discutiam homens de pele bronzeada e circulavam mulheres que iam ao mercado, levando à cabeça cestos de frutas ou de peixes.

Roupa lavada, branca como neve, pendia de inúmeras cordas. Grades escuras, de ferro, reluziam diante das janelas mouriscas. Árvores, curiosamente retorcidas, cresciam das fendas das escadas de pedra. Portões nos muros davam para o rio muito próximo.

O jovem elegante entrou num açougue onde comprou um filé de vitela, de bom tamanho. Na loja vizinha, comprou uma garrafa de vinho Madeira, várias garrafas de vinho tinto, azeite, farinha de trigo, ovos, açúcar e diversos temperos. Finalmente, na praça do mercado, que brilhava multicor, comprou meio quilo de cebolas e dois belos pés de alface.

Despediu-se da vendedora erguendo o chapéu e inclinando-se com um sorriso amável.

Depois dirigiu-se para a estreita e sombria Rua do Poço dos Negros e entrou no pátio de uma casa quase em ruínas.

Viu, logo, as instalações sanitárias do prédio, que consistiam em guaritas de madeira alinhadas numa estreita varanda. Um emaranhado de canos proveniente das guaritas prendia-se à parede. ”Dir-se-iam”, pensou Thomas, ”as ramificações genealógicas de um certificado de arianismo.”

Um velho cego estava sentado num canto ensolarado do pátio. Dedilhando uma guitarra, cantava em voz fina e fraca:

O destino me persegue, nunca me deixa em paz. Não conheço senão o luto pois foi criado para mim, e eu para ele.

Thomas Lieven botou uma moeda no chapéu do cantor e falou-lhe, em português:

- Diga-me, por favor, onde mora Reinaldo, o pintor.

- Vá pela segunda porta. Reinaldo mora lá em cima, na mansarda.

- Muito obrigado - disse Thomas Lieven, erguendo novamente o chapéu, se bem que o ceguinho não o pudesse ver.

A escada da segunda porta estava escura. Mas, de andar em andar, aumentava a claridade. Thomas percebia o rumor de muitas vozes. Aquilo cheirava a azeite e a miséria. No último andar só havia duas portas. Uma delas dava para o sótão. Na outra estava escrito, em grandes letras vermelhas:

REINALDO PEREIRA

Thomas bateu. Nada. Bateu mais fortemente. Nada ouviu. Girou a maçaneta e a porta se abriu, rangendo.

Atravessando um vestíbulo sombrio, Thomas entrou em um grande atelier de pintor. Havia muita luz. A luz intensa do sol entrava por uma imensa janela e iluminava dúzias de telas, um tanto incoerentes, uma mesa sobrecarregada de tubos de tinta, de pincéis e de frascos, cinzeiros supercheios e, finalmente, um homem de seus cinqüenta anos que dormia, completamente vestido, em um sofá.

O homem tinha uma espessa cabeleira castanho-escura. Sua face, magra e pálida, não estava barbeada. Ele roncava sonora e ritmadamente. Uma garrafa de conhaque, vazia, estava no chão, perto do sofá.

- Pereira! - gritou Thomas. O barbudo não se mexeu. - Ei! Pereira! - O barbudo resfolegou forte e virou-se para o lado. - Bem - murmurou Thomas Lieven -, neste caso, vamos tratar do almoço. - O pintor Reinaldo Pereira acordou uma hora mais tarde.

Havia três motivos para isso: o sol batia-lhe diretamente no rosto; havia barulho de panelas na cozinha; um forte aroma de sopa de cebolas se espalhara no atelier.

- Juanita? - chamou ele, com voz pastosa. Ainda meio tonto, levantou-se, ergueu as calças, enfiando as fraldas da camisa, e dirigiu-se trôpego para a cozinha. - Juanita, meu coração, minha vida, você voltou?

Abriu a porta da cozinha. Protegido por um velho avental, um homem que ele nunca vira estava atarefado junto ao fogão.

- Bom dia - disse o desconhecido com um largo sorriso. - Dormiu bem?

O pintor foi subitamente acometido por tremores convulsivos. Às apalpadelas, encontrou uma cadeira e nela deixou-se cair.

- Porcaria de álcool... - gemeu ele. - Agora pronto. Chegamos ao fim.

Thomas Lieven encheu um copo com vinho tinto e ofereceu-o ao homem desanimado, colocando-lhe a mão no ombro.

- Acalme-se, Reinaldo, ainda não é o delírio. Sou de carne e osso. Meu nome é Jean Leblanc. Beba um gole, que lhe fará bem. Depois vamos almoçar.

O pintor bebeu e enxugou os lábios.

- Que faz o senhor na minha cozinha? - perguntou numa voz que mal se ouvia.

- Uma sopa de cebolas, médaillons de vitela ao molho madeira...

- O senhor é louco...

-... e para a sobremesa pensei numas panquecas. Sei que deve estar com fome. Será preciso que tenha a mão firme.

- Para fazer o quê?

- Para fazer-me um passaporte, depois do almoço

- disse Thomas com sua voz suave.

Reinaldo levantou-se e agarrou uma grande frigideira.

- Fora daqui, seu espião da polícia, ou eu lhe arrebento o crânio!

- Calma, calma. Tenho uma carta para o senhor.

- Thomas limpou as mãos no avental e tirou do bolso do casaco um envelope. Entregou-o a Reinaldo, que dele retirou um papel que leu com atenção.

Depois de um momento ergueu os olhos.

- Como é que conhece Luís Tamiro?

- Nossos caminhos se cruzaram ontem, no Cassino. O gordote, quero dizer, Luís, informou-me que um dos meus amigos estava em dificuldades em Madri. Tiraram-lhe o passaporte. Portanto, ele precisa de um novo. E com a maior rapidez. Tamiro pensa que o senhor é o homem de que precisamos. Um verdadeiro artista. Superiormente dotado, experimentado e com todos os demais requisitos.

- Sinto muito - disse Reinaldo sacudindo a cabeça -, não é mais possível. Foi o que disse a Juanita. Juanita é a minha mulher, sabe...

-... e ela o abandonou porque você está sem vintém. Luís contou-me tudo. Você não deve lamentar o que aconteceu. Uma mulher que abandona um homem sob o pretexto de que ele está liso não vale realmente nada. Você vai ver como ela voltará, correndo, quando você tiver novamente dinheiro.

- Que dinheiro?

- O meu, para principiar.

Reinaldo passou a mão na face barbuda e, novamente, sacudiu a cabeça. Começou a falar como um professor que se dirige a um menino atrasado.

- Escute aqui. Há uma guerra. É impossível falsificar um passaporte sem ter papel especial, filigranado. E esse papel tem que ser do tipo exato empregado pelo país donde supostamente provém o passaporte...

- Você não está dizendo nenhuma novidade.

- Então, deve saber que esse tipo de papel não se encontra em tempo de guerra. Por conseguinte, não se podem mais forjar passaportes. Assim sendo, só se poderiam alterar passaportes já existentes. E como fazer isto?

- De um modo geral - disse Thomas saboreando o molho madeira -, suponho que embebedando sujeitos, dando-lhes uma cacetada na cabeça, para deixá-los indefesos e tirando-lhes o passaporte para, então, alterá-lo.

- Exatamente. Eu não gosto desse sistema. Nada disso, para mim. Se não posso trabalhar honestamente, nada feito. Sou um pacifista, entende?

- Justamente como eu. Veja o que há na sacada da janela.

É um presente para você. - Reinaldo, ainda meio bambo das pernas, caminhou para a janela.

- Que é?

- Quatro passaportes, com prazo esgotado. Da Costa Rica. Três serão seus se você modificar o quarto, para mim.

O falsificador segurou um dos passaportes, respirou fundo e olhou para Thomas com um misto de receio e admiração.

- Donde saíram estes passaportes?

- Eu os achei. A noite passada.

- O senhor achou quatro passaportes da Costa Rica a noite passada?

- Não.

- Ah!

- Na noite passada não encontrei quatro passaportes da Costa Rica, mas sim quarenta e sete - disse Thomas Lieven, enquanto retirava a sopa gratinada do forno. - O almoço está pronto, Reinaldo.

”Que sorte ter a minha bela consulesa conservado tantos belos passaportes velhos!”

”E agora”, pensou ele, ”vim aterrar em casa de um sr. Pereira, na Rua do Poço dos Negros. Preparo-me para aprender a maneira profissional de falsificar passaportes. Eu, eu que já fui o mais jovem banqueiro de Londres. Ah, meus antepassados. E pensar que não posso contar nada disso lá no clube!

Os quatro passaportes estavam abertos sobre a grande mesa de trabalho, perto da janela. Tinham as fotografias de quatro diferentes cidadãos costarriquenhos: um era velho e gordo, o outro jovem e magro, o terceiro usava óculos e o quarto tinha bigode.

Ao lado dos quatro passaportes estavam arrumadas quatro fotografias do comandante Débras, oficial do serviço francês de informações e que, em Madri, ansiosamente esperava por socorro. As fotografias tinham sido entregues a Thomas pelo baixote Luís Tamiro, no cassino do Estoril.

O almoço havia terminado.

 

                           MENU

         SOPA DE CEBOLAS GRATINADA

         MÉDAILLON DE VITELA AO MADEIRA

         PANQUECAS FLAMBÉES

 

4 de setembro de 1940

Esse menu fez com que um falsário atingisse o ápice de sua habilidade.

Sopa de cebolas gratinada - Refogue uma grande quantidade de cebolas em rodelas finas (não deve picá-las) em manteiga ou azeite. Adicione água quente um pouco mais que o necessário para a sopa, cozinhe durante quinze minutos e salgue. Pode-se usar caldo de carne em vez de água. Enquanto cozinha a sopa, corte fatias de pão de forma ou pão com bastante miolo e coloque-as (fora do fogo) sobre a sopa. Polvilhe com uma camada espessa de queijo, tipo gruyère, bem ralado. Leve ao forno quente, para gratinar. A apresentação desta sopa em terrinas individuais, de barro, é mais agradável.

Médaillon de vitela ao madeira - Corte fatias espessas de vitela (de preferência o filé) e bata para que se afinem um pouco. Frite ligeiramente dos dois lados de forma a que o interior fique rosado. Salgue somente depois de fritar.

Antes de fritar a vitela faça um refogado em manteiga ou azeite com meia cebola cortada em fatias finas, cinco ou seis amêndoas e um punhado de cogumelos. Adicione um grande copo de vinho Madeira e leve ao fogo, em panela coberta, durante quinze minutos. Salgue e adicione pimenta-do-reino.

Derrame esse molho sobre os médaillons de vitela e sirva com batatas fritas e uma salada verde.

Panquecas flambées - Prepare panquecas comuns mas não muito finas e do tamanho dos pratos em que serão servidas. Polvilhe-as com açúcar. Na hora de servir ponha uma boa porção de rum de boa qualidade sobre cada panqueca, acenda e enrole-a enquanto flamba. Molhe com suco de limão.

Com o seu avental branco de trabalho, Reinaldo Pereira adquirira o jeito de um cirurgião célebre, de um Ambroise Pare1 da falsificação, que se preparasse, com concentração e sobriedade, para começar uma operação difícil.

- O senhor conhece, pessoalmente, o homem de Madri - disse ele com voz sóbria. - Sabe qual o seu aspecto. Leia as descrições e diga-me qual a que mais se aproxima do seu amigo. Eu prefiro, evidentemente, escolher o passaporte que necessite o menor número de modificações.

- Parece-me que é este aqui - disse Thomas apontando para o segundo, a partir da esquerda. O documento trazia o nome de um tal Rafaelo Puntareras.

Expedido em 8 de fevereiro de 1934, esse passaporte perdera a validade em 7 de fevereiro de 1939. Continha um grande número de selos e de vistos de entrada e saída. Restavam poucas páginas em branco. Por esse motivo, sem dúvida, é que o negociante preferira tirar um novo, por intermédio do falecido cônsul Rodrigues.

- A descrição se aproxima do meu amigo, exceto que ele tem cabelos castanhos e olhos azuis.

- Então será preciso corrigir a cor dos cabelos e dos olhos, trocar as fotografias, reproduzir o carimbo sobre a fotografia do seu amigo, modificar as datas de validade, bem como as datas dos vistos anteriores a este período.

- Eo nome Puntareras?

- O seu amigo pretende ficar em Lisboa?

- Não, ele tomará, imediatamente, o avião para Dakar.

- Então podemos deixar o mesmo nome.

- Mas ele precisará de um visto de trânsito para Lisboa e um visto de entrada para Dakar.

- E daí? Tenho um armário cheio de carimbos. Provavelmente a maior coleção da Europa. Não, não, esta parte será canja.

- Então, o que viria a ser um caso difícil?

- Um passaporte onde tudo tenha que ser alterado e no qual, para cúmulo, a fotografia tenha um carimbo em relevo. Para um trabalho desse tipo eu precisaria de dois dias.

 

1 Ambroise Pare (1509-90) tornou-se famoso no mundo inteiro, conhecido como o ”Pai da Cirurgia Moderna”. (N. do E.)

 

- E para o sr. Puntareras?

- Levando em conta o meu estado psíquico, a minha perturbação moral, as minhas infelicidades conjugais, o senhor terá a sua muamba... apesar de tudo isso... dentro de sete horas, no máximo.

Calmo, cantarolando, Reinaldo começou a trabalhar. Segurou uma ferramenta com ponta cônica, de metal e cabo de madeira, uma espécie de sovela de sapateiro e a introduziu no primeiro ilhós que prendia a fotografia, de sorte a ficar bem firme. Depois, com um pequeno canivete, começou a levantar as bordas viradas do ilhós.

O mestre explicou que ”é necessário começar, sempre, pela fotografia, para não danificar os sinais do carimbo com um movimento em falso durante o trabalho”. (Ele arrotou discretamente.) ”Notável a sua sopa de cebolas.”

Thomas estava imóvel junto à janela. Não respondeu, temendo perturbar a concentração do mestre.

A fotografia de Rafaelo Puntareras estava segura por dois ilhoses. Decorridos três quartos de hora, o mestre tinha’ levantado, completamente, as bordas. Com cuidado, retirou os pequenos tubos de metal, usando a ponta da sovela.

A seguir, ligou um fogareiro elétrico, cobriu-o com uma velha capa de livro e sobre ela colocou o passaporte.

Disse o mestre:

- Dez minutos de aquecimento. Chamamos a isso ”fazer reviver o passaporte”. O papel fica mais macio, mais elástico, mais próprio para receber os líquidos e melhor para todas as outras fases do trabalho.

Depois de ter fumado um cigarro, Pereira pegou novamente o passaporte. Com uma pequena pinça, segurou a borda da fotografia do sr. Puntareras, tendo o cuidado de escolher um ponto não atingido pelo carimbo, e levantou-a cerca de um milímetro. A seguir molhou um pequeno pincel num líquido de cheiro forte que estava num pequeno frasco.

Disse o mestre:

- Só se devem usar pincéis com cerdas de blaireau, como os pincéis de barba, ou de marta, da melhor qualidade e de tamanho zero.

Com cuidado, foi introduzindo o líquido entre a fotografia e o papel e levantando, devagar, com a pinça. A cola dissolvia-se.

Cinco minutos depois, o mestre retirou a fotografia e foi colocá-la numa prateleira afastada, para evitar acidentes.

Voltando para perto da mesa, cerrou os olhos, flexionou os dedos e ficou pensativo e recolhido.

Disse o mestre:

- Para conhecer bem o meu passaporte começo por uma alteração insignificante: faço desaparecer um ponto.

Colocou o documento sob uma lente grande e fixa. Tomou um outro pincel muito fino e molhou-o num líquido transparente. Ao molhar um ponto no passaporte, apertou o botão de um cronômetro.

Esperou que o ponto estivesse quase completamente apagado e, com a rapidez de um raio, retirou o resto do líquido com a ponta de um papel mata-borrão.

- Três segundos. Agora temos uma indicação certa. Tendo como referência o tempo necessário para um ponto podemos atacar as partes finas, os traços delgados das letras.

Fez desaparecer todos os traços finos das letras de uma página, aplicando o líquido, como se fossem pontos. Depois atacou os traços mais cheios e grossos, pincelando-os com o líquido misterioso, de um lado e de outro, sempre em direção ao eixo. - Em nosso ramo - disse ele - chamamos a isto ”trabalhar em direção ao núcleo”.

Depois de duas horas de ”trabalho em direção ao núcleo”, seguindo o mesmo processo que fora usado para o ponto, tudo que era preciso inutilizar havia desaparecido, bem como as datas demasiado antigas dos vistos e dos prazos de validade.

O mestre, depois dessa tarefa, descansou durante meia hora. Dançou um pouco para relaxar os músculos.

Thomas fez um café. Antes de tomá-lo, Pereira quebrou um ovo e colocou a clara num prato de mesa. - É necessário que haja uma grande superfície em contato com o ar - disse ele. - Nós dizemos ”deixar em repouso”.

Dez minutos mais tarde e com enorme cuidado, encheu as pequenas ranhuras e depressões - causadas pelo mordente, apesar de todas as precauções - com a clara de ovo que colava e secava rapidamente. A superfície do papel estava de novo perfeitamente lisa. Ele agora vaporizou o papel com um fixador incolor e sem brilho.

Apanhou a fotografia do negociante Puntareras e envolveu-a em papel de seda diáfano que colou à fotografia para que não escorregasse. Com um instrumento com ponta de ágata traçou sobre o papel os contornos do carimbo da fotografia.

A seguir, cortou uma das quatro fotografias do comandante Débras de sorte que ficasse uma fração de milímetro maior que a de Puntareras. Colocou-a sobre um papel carbono com a cor exata da tinta do carimbo. Destacou da velha fotografia o papel de seda, colocou-o sobre o carbono e colou novamente ao verso da fotografia de Débras. Uma vez mais, retraçou os contornos com a ponta de ágata.

Cuidadosamente, retirou o papel e o carbono. A fotografia de Débras tinha, agora, o carimbo.

O mestre, rapidamente, aplicou um fixador à sua obra que, de outra forma, corria o risco de se apagar.

Com um furador de ponta fina perfurou a fotografia de Débras em dois pontos exatamente calculados e a fixou ao passaporte com goma arábica e dois ilhoses de sapateiro. Com uma pinça fixou, com perfeição, os rebordos dos ilhoses.

Depois escreveu, com nanquim, sobre toda a superfície rasurada. Instruções do mestre: - Devemos transformar, se possível, os antigos algarismos por outros que se aproximem quanto à forma, quer dizer, o 3 em 8, o 1 em 4...

Depois de seis horas e meia de trabalho, Pereira colocou no passaporte um visto de trânsito português e um visto de entrada em Dakar. Preencheu, à mão, os espaços adequados dos carimbos.

- Acabado.

Thomas aplaudiu com entusiasmo. O mestre inclinouse com ar digno.

- Sempre à sua disposição. Thomas apertou-lhe a mão.

- Eu não ficarei aqui para aproveitar o seu talento excepcional. Mas isso não faz mal, Reinaldo. Vou mandar-lhe uma bela cliente com a qual, estou certo, você vai entender-se às mil maravilhas.

Praça Dom Pedro IV. As últimas notícias corriam, em letras luminosas, no alto da fachada do grande edifício do jornal. Com atenção e angústia mil pares de olhos acompanhavam as letras cintilantes.

(up) Madri - Há rumores persistentes a respeito de pretensas negociações secretas franco-espanholas - A Wehrmacht estaria exigindo passagem livre para atacar Gibraltar e fechar o Mediterrâneo - Franco decidido a permanecer neutro - Advertência severa à Espanha por parte do embaixador britânico - Demonstrações antibritânicas em Barcelona e Sevilha.

Diante de seus copos de Pernod, dois homens estavam sentados à mesa de um café, numa das calçadas da praça. O baixote Tamiro folheava o passaporte fabricado aquela tarde.

- Realmente, um belo trabalho - murmurou com admiração.

- Quando sai o seu avião?

- Dentro de duas horas.

- Cumprimente Débras por mim. Diga-lhe que venha depressa. O meu navio parte daqui a cinco dias,

- Espero que ele o consiga.

- Que quer dizer?

Luís Tamiro aspirou preocupado a fumaça de um pequeno charuto brasileiro.

- Na aparência, os espanhóis são neutros. Isso não os impede de dar cobertura ao trabalho dos agentes alemães. Em Madri, três turistas alemães seguem, passo a passo, o comandante Débras, dia e noite. Cada um o vigia durante oito horas. Ele o sabe, mas nada pode fazer para se desembaraçar. Eles se chamam Lõffler, Weise e Hart. Estão no mesmo hotel que o comandante, o Palace Hotel.

- Que pretendem eles?

- Depois que lhe confiscaram o passaporte, o comandante não tem o direito de sair de Madri. Os três alemães sabem quem ele é mas não podem provar. Querem saber, também, o que ele está tramando em Madri. Por outro lado, se ele sair da cidade a polícia espanhola terá um pretexto para trancafiá-lo. Uma vez na prisão, poderão dar um jeito para transportá-lo para a Alemanha sem que isso cause muita complicação.

- Por conseguinte, é preciso que ele se veja livre dos três tipos.

- Sim, mas como? Eles o espreitam sem cessar para avisar a polícia na primeira tentativa de fuga.

Thomas Lieven fixou o baixote com curiosidade.

- Qual é a sua profissão, Tamiro? O gorducho suspirou e fez uma careta.

- Criado para todo serviço, para tudo que é proibido. Contrabando de armas, de homens e de mercadorias proibidas. Por dinheiro. Já fui joalheiro em Madri.

- E então?

- Fiquei arruinado com a guerra civil. Meu estabelecimento foi bombardeado, saqueado. Ainda por cima tive aborrecimentos políticos. Não, não, para mim chegou. Para mim, hoje em dia, cada coisa tem seu preço. Eles que se lixem com seu idealismo.

- Você conhece outras pessoas, em Madri, que pensem da mesma forma?

- Muitos.

- E você afirmou que cada coisa tem o seu preço?

- Exatamente.

Thomas relanceou um olhar para o jornal luminoso e sorriu.

- Diga-me, Luís, qual seria o preço, de amigo, de um pequeno levante popular espontâneo?

- Em que está pensando?

Thomas disse-lhe em que estava pensando.

Madri, 5 de setembro de 1940. Relatório confidencial do comissário Filippo Aliados, da polícia secreta do Estado, ao seu superior:

Urgente. Hoje às catorze horas e três minutos recebi um chamado telefônico do responsável pelo décimo quarto setor da polícia urbana. Avisa-me que umas cinqüenta pessoas estavam reunidas à frente do edifício da embaixada da Grã-Bretanha, na Rua Fernando ei Santo, e promoviam uma manifestação antiinglesa.

Acompanhado de cinco homens fui imediatamente à embaixada, onde constatei que os manifestantes pertenciam à classe menos favorecida da população. Essas pessoas invectivavam a Inglaterra. Quatro vidraças foram quebradas e três vasos de flores foram arrancados da entrada do edifício. Obedecendo ordem de S. Exa. o embaixador da Grã-Bretanha, o adido comercial descera à rua para acalmar os manifestantes.

Quando cheguei o senhor adido comercial britânico, que estava muito agitado, disse-me o seguinte: ”Estes homens admitiram que a manifestação foi paga pelos alemães”.

Enquanto a maioria dos manifestantes fugia, graças à rápida intervenção da polícia, conseguimos prender três homens: os denominados Luís Tamiro, Juan Moreira e Manuel Passos.

Os indivíduos em questão repetiram, na minha presença, que haviam sido pagos por agentes alemães. Eles deram os nomes desses agentes: 1. Helmuth Lõffler. 2. Thomas Weise. 3. Jakob Hart, residentes, todos os três, no Palace Hotel.

O senhor adido comercial britânico insistiu para que fosse aberto um inquérito imediatamente e anunciou que o seu governo apresentaria um protesto diplomático.

Tendo recebido repetidas instruções superiores para zelar pela neutralidade de nosso país, dirigi-me, incontinenti, ao Palace Hotel, onde efetuei a prisão dos mencionados turistas alemães. Tendo os três indivíduos tentado resistir, foi necessário algemá-los para conduzi-los à prisão.

No decorrer do interrogatório os três cidadãos alemães negaram peremptoriamente haver subvencionado a manifestação. Uma acareação com os três manifestantes presos em nada resultou. Em vista disso, mandei soltar os manifestantes, contra os quais foi instaurado processo por distúrbios na via pública.

O nosso serviço conhece os três alemães. São agentes da Abwehr e é evidentemente muito possível que tenham instigado a manifestação.

Os três alemães estão presos, com sentinela à vista, em minha repartição.

Peço instruções, sem demora, pois o adido comercial tem telefonado de hora em hora, para saber que medidas irei tomar.

Assinado: Filippo Aliados Comissário.

Um punho alemão bateu com estrondo sobre uma mesa de carvalho alemão. A mesa estava numa sala de um edifício situado à margem do Tirpitz, em Berlim. O punho pertencia ao almirante Canaris, que estava de pé atrás da mesa. Diante dela estava o ictérico comandante Fritz Loos, de Colônia.

O rosto do comandante estava lívido. O rosto do almirante estava vermelho. O comandante estava em absoluto silêncio. O almirante estava muito barulhento.

- O nosso serviço já é motivo de chacota, comandante. Três dos nossos homens expulsos da Espanha. Protestos do governo britânico. A imprensa inimiga está-se babando de gozo. Enquanto isto o seu Lieven, esse sujeitinho, está morrendo de tanto rir, em Lisboa.

- Almirante, eu não vejo o que uma coisa tenha a ver com a outra.

- Enquanto os nossos homens ficavam detidos várias horas em Madri - disse Canaris com azedume - o comandante Débras saiu do país. Evidentemente, com passaporte falso. Ele chegou sem empecilhos a Lisboa. E sabe a quem ele beijou publicamente nas duas faces, no cassino do Estoril? Ao seu amigo Lieven. E sabe com quem ele comeu, depois, um grande jantar? Com seu amigo Lieven.

- Não... Meu Deus! Não... É impossível.

- Não só é possível como é verdade. Nossos homens assistiram a esse comovente reencontro. Que podiam eles fazer? Nada!

O comandante sentia as vísceras em chamas e a se retorcerem de uma maneira terrível. ”A minha vesícula”, pensou ele, desesperado. ”Esse canalha do Lieven. Por que diabo o fiz sair de uma prisão da Gestapo?”

- Sabe qual é o seu apelido, comandante? ”Loos sem medula”.

- Peço desculpas, almirante, mas acho isto injusto.

- Injusto! O senhor paga dez mil dólares a esse indivíduo por listas com os nomes dos principais agentes franceses e, em troca, tivemos o direito de verificar que só se tratava de cadáveres! O senhor tinha ordens para trazêlo de volta.

- Mas Portugal é um país neutro, almirante.

- E eu com isto! Já estou mais que cheio. Quero ver esse Lieven. Aqui, nesta sala! E vivo. Compreende?

- Às suas ordens, almirante.

Seis de setembro de 1940, vinte e duas horas e trinta minutos.

Uma conferência tem lugar na Casa Nossa Senhora de Fátima, a confortável residência do chefe do serviço de informações da embaixada da Alemanha. O dono da casa mandara embora a sua encantadora amiga Dolores, uma dançarina de pernas admiráveis e tez morena. Saboreando uma garrafa de champanha ele estava em companhia do adido naval e do adido da Aeronáutica da embaixada. Eles também haviam dispensado, essa noite, as respectivas amiguinhas.

- Cavalheiros - disse o chefe do Serviço de Informações -, não há tempo a perder. Berlim reclama Lieven, e com pressa. Aguardo as suas sugestões.

- Eu sugiro dopá-lo - disse o adido da Aeronáutica - e mandá-lo de avião para Madri. De lá para Berlim usaremos um avião especial.

- Sou contra - disse o adido naval. - Acabamos de ter aborrecimentos em Madri. Sabemos que o aeroporto é um formigueiro de agentes ingleses e americanos. Não podemos correr o risco de novas complieações diplomáticas em Madri.

- Estou inteiramente de acordo - disse o chefe do Serviço de Informações.

- Assim sendo - disse o adido naval -, proponho raptá-lo e levá-lo em um submarino. Entremos em contato, pelo rádio, com o contratorpedeiro Werner. O Werner tem contato permanente com o comandante da frota de submarinos e pode saber, com facilidade, a localização de cada unidade. Ele poderá requisitar a qualquer momento, e pelo meio mais rápido, um submarino para uma área determinada, fora das águas territoriais portuguesas.

- E como levaremos Lieven até o submarino?

- Fretaremos um barco de pesca.

- E como o levaremos até o barco?

- Tenho uma idéia.

O adido naval explicou a sua idéia.

Um velho andava pelo restaurante do aeroporto, tentando vender bonecas em trajes típicos. Estava sem sorte. Era quase meia-noite de 11 de setembro de 1940 e apenas uma dúzia de passageiros sonolentos aguardava a partida de seus aviões.

O velho aproximou-se de uma mesa perto de uma janela. Dois homens estavam sentados, bebendo uísque.

- Bonecas típicas: ciganas, espanholas, portuguesas...

- Não, obrigado - disse Thomas Lieven.

- É mercadoria de antes da guerra.

- Ainda assim, muito obrigado - disse o comandante Débras, que se chamava, no momento, Rafaelo Puntareras.

O velho seguiu o seu caminho. Lá fora, o aparelho que iria transportar Débras de Lisboa a Dakar estava sendo abastecido de gasolina.

- Nunca esquecerei o que fez por mim - disse o comandante a Thomas Lieven, com olhar emocionado.

- Não falemos mais nisso - disse Thomas. ”Quando você perceber”, pensou ele, ”que eu falsifiquei as suas listas, certamente nunca esquecerá.”

- E onde estão as listas?

O comandante piscou um olho e disse: - Aprendi com você e fiz camaradagem com a aeromoça; as listas estão em sua mala.

- Atenção, por favor - gritou o alto-falante. - Pedimos aos passageiros do vôo 324, com destino a Dakar, que se apresentem para o controle de passaportes e bagagens. Senhoras e senhores, desejamos boa viagem.

Débras esvaziou o copo e levantou-se.

- Chegou a hora, meu amigo. Mais uma vez obrigado! E até breve.

- Queira transmitir meus respeitos a Mme Josephine Baker - disse Thomas. - Passe muito bem, comandante. Nunca mais nos veremos.

- Quem sabe.

- Meu navio parte depois de amanhã para a América do Sul. Jamais voltarei à Europa - disse ele. Não se opôs aos abraços repetidos do comandante.

Momentos mais tarde ele o viu atravessar a pista em direção ao aparelho. Thomas acenou com a mão. Débras fez o mesmo e desapareceu no interior do avião.

Thomas pediu outro uísque. Quando o aparelho rodou para a pista de decolagem, ele se sentiu muito só. Momentos depois pagava a conta e partia.

Havia pouca iluminação na esplanada do aeroporto. Eram poucas as lâmpadas acesas. Um grande carro alcançou Thomas e parou.

- Táxi, senhor? - disse o motorista pela janela. O local era deserto.

- Sim - disse Thomas, imerso em seus pensamentos. O motorista desceu e abriu a porta, inclinando-se. Neste momento, Thomas percebeu que o táxi tinha

um aspecto muito esquisito. Fez meia-volta, mas já era tarde.

O motorista atingiu-o com um pontapé nas pernas. Thomas foi precipitado no interior do carro. Quatro mãos musculosas o seguraram e atiraram ao chão. A porta foi fechada. O motorista pulou para o volante e partiu velozmente.

Um chumaço de pano úmido, impregnado de um líquido adocicado e nauseante, foi apertado contra o rosto de Thomas. ”Clorofórmio”, pensou ele, sufocando.

Com uma nitidez anormal, ouviu uma voz que dizia: ”Tudo perfeito. Agora vamos para o porto”.

Depois o sangue começou a zumbir-lhe nas têmporas. Sinos soavam em seus ouvidos e ele mergulhou na inconsciência, cada vez mais profunda, como se fosse num poço de Veludo.

Pouco a pouco Thomas voltou a si. Sua cabeça parecia querer estourar. Tinha náuseas e sentia frio. ”Os mortos”, pensou ele, ”não se sentem mal nem têm frio. Por conseguinte, ainda estou vivo.” Thomas abriu, prudentemente, o olho direito. Estava deitado na proa de um barco de um só mastro e que cheirava mal. Ouvia o ronco nervoso do motor.

Um português, com blusão de couro, boné à cabeça, um cachimbo apagado nos dentes, segurava o timão. As luzes do porto dançavam às costas do piloto. O mar estava bravio. Jogando e sacudindo, o barco dirigia-se para o largo. Com um suspiro, Thomas abriu o olho esquerdo.

Perto dele, dois gorilas estavam sentados num banco. Ambos vestiam capa de couro preto e tinham aspecto feroz. Ambos tinham pesados e feios revólveres em suas grandes e feias mãos.

Thomas Lieven soergueu-se.

- Bom dia, senhores - disse ele com grande esforço, mas de forma inteligível. - Ainda há pouco, no aeroporto, não tive a oportunidade de cumprimentá-los. Em parte a culpa é dos senhores. Não deveriam ter tido tanta pressa em me agredir e cloroformizar.

Disse o primeiro gorila, com sotaque hamburguês:

- Fique prevenido, Thomas Lieven: ao primeiro gesto de reação nós o matamos.

Disse o segundo gorila, com sotaque da Saxônia:

- As férias acabaram, Lieven. Agora vamos voltar para casa.

- Você é de Dresden? - perguntou Thomas, interessado.

- Não, de Leipzig. Por quê?

- Simples curiosidade. Nada tenho contra esse barco de pesca, cavalheiros, mas o caminho para a mãe-pátria é bastante longo, por mar. Chegaremos até lá?

- Sempre um grande tagarela, hein? - disse o homem de Hamburgo. - Não se preocupe Lieven, Este troço só serve para sairmos das águas territoriais.

- Até o quadrilátero 135 - acrescentou o homem de Leipzig.

Thomas verificou que o barco navegava sem qualquer espécie de luz. Nem mesmo tinha os fogos de navegação.

O mar estava cada vez mais agitado. Thomas também. Procurava dissimular seu nervosismo.

- E que acontecerá no quadrilátero 135, senhores?

- Um submarino virá à superfície dentro de um quarto de hora. Tudo vai funcionar perfeitamente, verá. Zás-trás.

- Organização alemã - opinou Thomas, delicadamente.

- Já saímos das águas territoriais - disse o pequeno piloto, em português. - Onde está meu dinheiro?

O homem de Leipzig levantou-se e meio cambaleante aproximou-se do piloto, entregando-lhe um envelope. O pescador amarrou o timão com um cabo e contou as notas. O resto foi muito rápido.

Thomas foi o primeiro a perceber a grande sombra, pois só ele olhava em direção à popa. Sem qualquer advertência a escura aparição surgiu da noite, dirígjndo-se, velozmente, sobre o barco sacudido pelas ondas. Thomas teve ímpetos de gritar mas, no último instante, cerrou a boca, trincando a língua. ”Não”, disse ele para si mesmo, ”nada de gritos agora. Silêncio, silêncio...” Projetores riscaram a escuridão. Uma sirena urrou, uma, duas, três vezes. A sombra se havia transformado em um iate de corridas que estava perto, muito perto, mortalmente perto. O piloto português soltou um brado e virou o leme. Tarde demais. Com um ruído de fazer parar o coração, o iate abalroou a pequena embarcação em ângulo agudo, a bombordo. O cavalheiro de Hamburgo perdeu seu revólver. O cavalheiro de Leipzig estatelou-se.

Seguiu-se um pandemônio, enquanto o barco de pesca virava e a proa do iate rasgava-lhe o costado. Como que atingido pelo punho de um gigante invisível, Thomas sentiu-se projetado no mar e depois mergulhou nas águas negras e glaciais.

Percebeu um alarido de vozes: gritos, imprecações e ordens. A sirena do iate urrou sem cessar.

Thomas engoliu água do mar, afundou, voltou à tona tentando respirar e viu, voando em sua direção, um salvavidas preso a um cabo.

O anel branco bateu na água. Thomas segurou-o. Ao mesmo tempo o cabo estirou e ele foi puxado para o iate.

Piscando, conseguiu ler a inscrição no salva-vidas que indicava o nome da embarcação: ”Baby Ruth”, leu Thomas.

”Puxa”, pensou ele, ”se eu contar esta história no clube, vão dizer que estou mentindo.”

- Uísque ou rum?

- Uísque, por favor.

- Com gelo e soda?

- Só com gelo, por favor - disse Thomas Lieven. - Pode encher metade do copo. Eu me resfrio com facilidade.

Um quarto de hora tinha decorrido, um quarto de hora dos mais movimentados.

Quinze minutos antes, prisioneiro da Abwehr, depois, náufrago no meio do Atlântico, e agora, envolto em quentes cobertores e sentado numa cama admiravelmente macia de uma admirável cabina de luxo. Um homem que nunca vira antes estava atarefado diante de um pequeno bar, preparando-lhe uma bebida. ”São os caprichos da sorte”, disse Thomas a si mesmo, ainda um tanto estonteado.

O homem trouxe o scotch para Thomas. Ele também se servira de uma dose bem avantajada. Ergueu o copo, sorrindo:

- Cheerio.

- Cheerio - disse Thomas e sorveu um grande trago. ”Isto vai tirar o infame gosto de clorofórmio que tenho na boca”, pensou. Um berreiro tremendo começou, do lado de fora.

- Que é isto?

- O nosso piloto e o seu; uma conversa de peritos em relação ao problema das responsabilidades - disse o desconhecido, que trajava impecável roupa azul e usava óculos de intelectual com aro de tartaruga. - É claro que é o seu piloto o culpado. Onde se viu navegar sem uma luz!

- Quer mais gelo?

- Não, obrigado. Onde estão meus dois companheiros?

- No porão. Suponho que isto esteja de acordo com seus desejos.

”Nada feito”, pensou Thomas. ”Parece que o melhor é pegar o touro a unha.” Portanto:

- Eu agradeço. O senhor salvou-me da morte. E não é à morte por afogamento que me estou referindo.

- A sua saúde, Negociante Jonas!

- Como disse?

- Para nós o senhor é ”Negociante Jonas”. Ignoramos, ainda, sua verdadeira identidade. - ”Graças a Deus”, pensou Thomas. - Além do mais, o senhor certamente não a revelará...

- Certamente não. - ”Que sorte ter deixado todos os meus documentos no cofre da consulesa. Eu tinha um pressentimento constante de que algo parecido poderia acontecer.”

- Eu compreendo muito bem. É claro que não poderá falar senão a superiores! Um homem como o senhor! Um vip!

- Um quê, por favor?

- Um Very Importam Person1.

- Eu? Eu sou uma pessoa importante?

- Mas vejamos, Negociante Jonas, um homem para quem a Abwehr mobiliza um submarino? Não calcula a trabalheira que houve, por sua causa, nas últimas quarenta e oito horas. Os preparativos! Monstruosos. Abwehr Berlim! Abwehr Lisboa! Submarino no quadrilátero 135 Z. Os alemães pareciam loucos, o rádio não parava. Há meses que tal coisa não acontecia, Negociante Jonas... Trazer a qualquer preço o Negociante Jonas para Berlim... E agora o senhor pergunta por que é um vip? Essa é muito boa. Que está acontecendo, Negociante Jonas?

- Posso... posso tomar outro uísque?

Mais um uísque foi servido a Thomas. Uma dose das grandes. O homem de óculos de tartaruga também encheu o copo, dizendo:

- Por cinco mil dólares Baby Ruth pode muito bem nos oferecer uma garrafa de scotch.

- Que Baby Ruth? Que cinco mil dólares?

 

1 Em inglês no original: pessoa muito importante. (N. do E.)

 

- Negociante Jonas - disse o homem de óculos, sorrindo -, o senhor já compreendeu, suponho, que eu faço parte do Serviço Secreto britânico.

- Já o compreendi, sim.

- Trate-me por Roger. Não é o meu nome, evidentemente. Mas um nome falso serve como qualquer outro, não acha?

”Com mil raios, vai começar tudo outra vez”, disse Thomas para si mesmo. ”Prudência, prudência. Escapei dos alemães, agora preciso livrar-me dos ingleses. Ganhemos tempo. Pensemos. Tenhamos cuidado onde vamos pisar.”

- O senhor tem toda a razão, Mr. Roger - disse ele. - Repito a minha pergunta: que cinco mil dólares? Que Baby Ruth?

- Logo que nós percebemos a histeria telegráfica dos alemães - quando digo ”nós” refiro-me ao Serviço Britânico de Contra-Espionagem em Lisboa - avisamos imediatamente a M15, em Londres...

- Quem é M15?

- O chefe da contra-espionagem.

- Ah! - disse Thomas e bebeu um gole. ”Este jardim da infância europeu”, pensou ele, ”é uma instituição mortífera. Como ficarei feliz quando abandonar este continente grotesco e mortal.”

- E M15 telegrafou: sinal verde.

- Eu compreendo...

- Nós reagimos sem demora.

- Certamente.

- Seria inadmissível que esse Negociante Jonas caísse nas garras dos alemães. Ah, ah, ah! Tome outro scotch, bebamos à saúde de Baby Ruth?

- Afinal de contas, o senhor não me quer dizer quem é Baby Ruth?

- Mrs. Ruth Woodhouse. Sessenta e cinco anos. Quase surda. Sobreviveu a duas apoplexias e a cinco maridos.

- Meus parabéns.

- Então nunca ouviu falar nos aços Woodhouse? Nos carros blindados Woodhouse? Nas metralhadoras Woodhouse?

Uma das mais antigas dinastias americanas de vendedores de canhões! Nunca ouviu falar?

- Para dizer a verdade, não.

- Mas olhe aqui, isto é uma lacuna em sua educação.

- O senhor acaba de preencher a lacuna. Obrigado.

- De nada. Acontece que essa senhora é a proprietária do iate. Atualmente ela está vivendo em Lisboa. Quando descobrimos a história do submarino, fomos procurá-la. Ela pôs imediatamente o iate à nossa disposição, mediante cinco mil dólares. - O homem que se dizia Roger voltou ao bar. - Tudo funcionou às mil maravilhas, Negociante Jonas. Zás-trás.

”Eu já ouvi isto esta noite mesmo”, pensou Thomas Lieven.

- Organização britânica - disse ele, cortesmente. Roger atirou-se à reserva de bebidas alcoólicas da

rainha americana do aço qual um lobo sanguinário sobre um rebanho de carneiros. O que não o impedia de continuar a sua alegre narrativa.

- Nós o seguimos passo a passo, Negociante Jonas; o senhor está sob constante observação. Eu fiquei navegando no quadrilátero 135 Z. Fui avisado, pelo rádio, de que o senhor tinha sido atacado e raptado pelos alemães, no aeroporto, e depois que o barco de pesca tinha partido. Ah, ah, ah!

- E agora?

- Tudo azul. É claro que vamos dar queixa contra o piloto do pesqueiro. Negligência perfeitamente caracterizada. Não há a menor dúvida de que ele foi o responsável pelo acidente, já informamos as autoridades pelo rádio. A guarda costeira deverá aparecer a qualquer instante e tomará conta do piloto e dos seus dois amigos.

- Que acontecerá a eles?

- Nada. Já explicaram que estavam simplesmente fazendo um passeio.

- Eeu?

- Tenho ordens de protegê-lo, mesmo com o risco da minha carcaça, se necessário for, e levá-lo à residência do chefe do Serviço de Informações britânico em Portugal.

A não ser que prefira seguir em companhia dos seus amigos alemães...

- Absolutamente não, Mr. Roger, absolutamente não - disse Thomas fazendo uma careta que pretendia ser um sorriso.

Durante todo esse tempo ele se perguntava: ”O que escorre da minha testa é água do mar ou suor frio?”

Os alemães haviam levado Thomas Lieven de Lisboa em uma arcaica limousine; os ingleses o trouxeram de volta num Rolls-Royce novinho. Noblesse oblige1.

Envolto num roupão de seda azul, com dragões bordados a ouro, e calçando chinelos combinando com o roupão, Thomas Lieven estava sentado no banco traseiro do carro. Era a indumentária que puderam encontrar no Baby Ruth. O terno e a roupa de baixo de Thomas, completamente molhados, estavam ao lado do chofer. Ao lado dele estava Roger, com uma metralhadora portátil sobre os joelhos.

- Não tenha receio, Negociante Jonas - disse ele, entre dentes. - Nada lhe acontecerá. As chapas do carro são blindadas e os vidros à prova de balas. Ninguém nos pode atingir aqui dentro.

- E em caso de necessidade - perguntou Thomas -, como poderia o senhor atirar para fora? - O agente britânico não deu a resposta.

Atravessando as ruas adormecidas do Estoril, o carro dirigia-se para leste, onde começava a raiar o sol, em toda sua glória. Céu e mar tinham tons iridescentes de nácar. Muitos navios estavam ancorados no porto. ”Hoje é dia 9 de setembro”, pensou Thomas Lieven; ”amanhã o General Carmona parte para a América do Sul. Chegarei a tempo para pegar o navio?”

A confortável casa do chefe do Serviço de Informações britânico era cercada de palmeiras. Era em estilo mourisco e pertencia a um dono de loja de penhores, chamado Álvares, que possuía duas outras semelhantes. Uma alugada ao chefe do Serviço de Informações da embaixada alemã e a outra a seu homólogo da embaixada americana.

 

1 Em francês, no original. A expressão significa: ”Quem é nobre deve proceder como tal”. (N. do E.)

 

No frontispício da casa britânica havia uma inscrição em letras douradas: ”Casa do Sul”. Um mordomo trajando calça listrada e colete de veludo verde abriu a pesada porta de ferro forjado. Ergueu as sobrancelhas brancas e inclinou-se diante de Thomas, sem proferir palavra. Em seguida, trancou a porta e precedeu os dois visitantes através de um grande saguão onde havia uma lareira, uma grande escadaria e os retratos de família do sr. Álvares. Conduziu-os, em seguida, à biblioteca.

Ali, diante de estantes coloridas, esperava-os um gentleman de meia-idade, de maneiras magnificamente britânicas, como só se pode ver nas revistas inglesas de modas masculinas. Sua elegância, seu porte militar, sua impecável roupa de flanela cinza e o seu cuidado bigode de oficial colonial provocaram sincera admiração em Thomas Lieven.

- Missão cumprida, senhor - disse Roger.

- Bravos, Jack - disse o cavalheiro de cinzento, apertando a mão de Thomas. - Seja bem-vindo ao solo inglês. Eu o esperava com impaciência. Aceita um uísque para se refazer?

- Eu nunca bebo antes do almoço, sir.

- Compreendo. Um homem de princípios. Isso me agrada. Agrada muito. - O cavalheiro de cinzento dirigiuse a Roger. - Vá ver Charley lá em cima. Ele deve entrar em contato com M15. Código Cícero. Mensagem: ”O sol levanta-se no oeste”.

- Muito bem, senhor. - Roger saiu. O cavalheiro de cinzento disse a Thomas:

- Chame-me de Shakespeare, Negociante Jonas.

- Com prazer, Mr. Shakespeare.

”Por que não? Na França tive que chamar um dos seus colegas de Júpiter”, pensava Thomas. ”Se isso o diverte...”

- O senhor é francês, não é, Negociante Jonas?

- Ah, oh... sim.

- Foi o que pensei imediatamente. O olho profissional, sabe? Não há nada como a experiência. Viva a França, monsieur.

- O senhor é muito amável, Mr. Shakespeare.

- M. Jonas, qual é o seu verdadeiro nome?

”Se eu lhe digo, adeus meu navio”, pensou Thomas»

- Lamento - respondeu ele - mas a minha situação é demasiado perigosa. Sou obrigado a calar minha verdadeira identidade.

- Monsieur, garanto sob a minha honra que nós o encaminharemos a Londres, com absoluta segurança, se consentir em trabalhar para o meu país. Não esqueça que o tiramos das garras dos nazistas.

”Que vida!”, pensou Thomas.

- Estou literalmente esgotado, Mr. Shakespeare. Eu... eu não agüento mais. É preciso que durma um pouco, antes de tomar qualquer decisão.

- De acordo, monsieur. Um quarto de amigo está à sua disposição. Considere-se como nosso hóspede.

Meia hora mais tarde, Thomas Lieven estava deitado numa cama macia e confortável num quarto agradável e tranqüilo. O sol tinha-se levantado, pássaros cantavam no parque. Raios de luz atravessavam as venezianas das janelas. A porta estava trancada, pelo lado de fora. ”A hospitalidade inglesa é famosa no mundo inteiro”, pensava Thomas. ”Ela não tem rival.”

”Vamos dar a hora certa: ao soar o gongo serão oito horas! Bom dia, senhores, bom dia, senhoras. Rádio Lisboa apresenta o seu segundo boletim informativo. Londres: como todas as noites, fortes concentrações da Luftwaffe prosseguiram em seus ataques maciços contra a capital britânica...”

Torcendo as mãos agitadamente, Estrella Rodrigues, a morena e bela consulesa, andava, rapidamente, de um lado para outro em seu quarto. Parecia esgotada. Sua boca sensual tremia. Estrella estava quase tendo uma crise de nervos. Não dormira a noite toda. Vivera horas terríveis. Jean, o seu querido Jean, não voltara para casa. Ela sabia que ele havia acompanhado ao aeroporto um misterioso amigo, aquele comandante francês. Telefonara ao aeroporto. Nada sabiam sobre um certo M. Leblanc.

Em pensamento, Estrella via o seu amante raptado, prisioneiro e torturado pelos alemães. Seu colo arfava ao ritmo das emoções violentas. Ela pensou que ia morrer...

Subitamente, percebeu que o rádio continuava a falar. Parou para ouvir a voz do locutor.

”... do iate americano Baby Ruth que esta madrugada abalroou e fez virar um barco de pesca português, nos limites das águas territoriais. A tripulação do iate recolheu vários náufragos. À mesma hora as nossas unidades de guarda costeira descobriram um submarino que logo mergulhou e desapareceu. O capitão Edward Marks, comandante do Baby Ruth, apresentou queixa contra o piloto do barco de pesca, por negligência grave. Os três passageiros do pesqueiro, dois alemães e um francês...”

Estrella deu um grito.

”...recusaram-se a dar qualquer explicação. Há suspeita de que esse fato esteja ligado a uma fracassada tentativa de rapto, na qual estariam implicados, pelo menos, dois serviços secretos estrangeiros. Um inquérito está sendo procedido. O Baby Ruth foi colocado sob seqüestro até mais amplas informações. O iate pertence à milionária americana Ruth Woodhouse que reside, há algum tempo, no Hotel Aviz. Acabaram de ouvir as últimas notícias. Para os dias de hoje e amanhã, as previsões meteorológicas...”

A consulesa saiu do seu estado de estupor. Desligou o rádio. Jean... seus pressentimentos não a haviam enganado. Algo de odioso, algo de terrível havia acontecido. Como era o nome daquela milionária?

Woodhouse. Ruth Woodhouse. Hotel Aviz.

Erguendo as espessas sobrancelhas brancas o mordomo entrou na biblioteca da luxuosa Casa do Sul.

- A sra. Rodrigues chegou, sir - anunciou com voz sonora ao chefe do Serviço Secreto britânico em Portugal.

O homem que se fazia chamar Shakespeare levantouse. Com passo elástico caminhou em direção à bela consulesa, cujas formas, ao mesmo tempo esbeltas e cheias, estavam moldadas por um vestido de linho branco com pássaros e flores, em cores vivas e pintadas a mão. Ela estava um pouco exageradamente maquilada e tinha o aspecto de uma corça perseguida.

Shakespeare beijou-lhe a mão. O mordomo retirou-se.

O chefe do Serviço Secreto inglês ofereceu uma cadeira.

Sem fôlego, os seios palpitantes, ela deixou-se cair sobre uma cadeira de aito preço. A agitação a emudecia, o que nela era coisa muito rara.

- Há meia hora - disse a ela, em tom apiedado, o homem que usava o nome do maior poeta inglês - falei com Mrs. Woodhouse. Sei, minha senhora, que a foi procurar.

Ainda incapaz de dizer uma palavra, Estrella sacudiu a cabeça...

-...Mrs. Woodhouse é... ah, ah, ah... uma das nossas boas amigas. Ela me disse que a senhora estava preocupada com o que estava acontecendo a uns dos seus... ah... ah... bons amigos.

- Sim, sim, é Jean, meu pobre Jean!

- Jean?

- Jean Leblanc. Um francês. Ele desapareceu desde ontem. Estou quase louca de preocupação. O senhor pode ajudar-me? Sabe de alguma coisa? Diga a verdade, pelo amor de Deus.

Shakespeare sacudiu a cabeça de modo significativo.

- O senhor está ocultando alguma coisa - gritou a consulesa. - Eu o sinto! Eu o sei! Fale, senhor, por piedade! O meu pobre Jean terá caido nas mãos dos boches? Está morto?

Shakespeare ergueu a mão fina, branca e aristocrática:

- Nada disso, cara senhora, nada disso. Creio que tenho boas notícias para a senhora...

- Será verdade, minha Santa Virgem de Bilbao?

- O acaso, hum... faz muitas coisas. Um cavalheiro veio até nós, há algumas horas, que pode muito bem ser quem a senhora procura.

- Meu Deus, meu Deus, meu Deus!

- O mordomo foi acordá-lo. De um momento para outro... - Bateram à porta. - Ei-lo. Entre.

A porta foi aberta. O arrogante mordomo apareceu. Passando por ele, Thomas Lieven entrou na biblioteca. Calçava chinelos e vestia o roupão oriental encontrado a bordo do Baby Ruth.

- Jean!

O grito de Estrella cortou o ar. Ela precipitou-se para o amante, imobilizado pela surpresa, e atirou-se para ele, abraçando-o, acariciando-o e beijando-o.

- Oh, Jean, Jean - disse ela com voz entrecortada -, meu querido, meu tesouro... você está vivo! Estou louca de alegria.

Shakespeare, com um sorriso compreensivo, inclinou-se.

- Eu o deixo com a senhora - disse ele discretamente. - Até breve, M. Leblanc.

Thomas Lieven fechou os olhos. ”Tudo acabado”, pensou ele desesperado, enquanto Estrella o cobria de beijos. ”Tudo terminado. Estou frito. Adeus liberdade. Adeus General Carmona. Adeus bela América do Sul.”

Charley, o telegrafista, estava instalado numa sala da Casa do Sul. Diante da janela as palmeiras agitavam suas folhas ao toque da brisa matinal. Charley estava cortando as unhas quando Shakespeare embarafustou-se pela sala.

- Rápido. Uma mensagem urgente para M15: ”Verdadeiro nome do Negociante Jonas é Jean Leblanc. Ponto. Pedimos instruções”.

Charley passou a mensagem para o código, ligou o seu aparelho e começou a transmitir.

Entrementes, Shakespeare sentara-se junto a um grande alto-falante. Apertou um botão correspondente a uma placa com a inscrição ”Microbiblioteca”.

O alto-falante deu alguns estalos e, depois, Shakespeare ouviu o seguinte diálogo, entre Thomas e Estrella:

-...mas como foi que o coloquei em perigo, meu querido? Por quê?

- Você nunca deveria ter vindo aqui.

- Mas eu estava enlouquecendo de preocupações e nervosa. Pensei que ia morrer...

- Nunca deveria ter pronunciado o meu nome! - Os finos lábios de Shakespeare esboçaram um sorriso.

- Mas por que não? Por que razão?

- Porque ninguém deve saber o meu nome.

- Mas você é francês! Arnigo dos ingleses... um aliado.

- Apesar de tudo. Cale-se, agora. - Som de passos. - Certamente há um desses negócios aqui. Ah, aqui está ele, por baixo da mesa.

O alto-falante emitiu um assobio agudo, seguido de estalos sinistros. A comunicação estava interrompida.

- Espertinho, aquele camarada - disse Shakespeare, com admiração. - Encontrou o microfone e o arrancou!

Minutos depois ele viu que o radioperador recebia, com rapidez, uma mensagem. Seria a resposta de M15? Tão depressa?

Charley acenou com a cabeça. Decifrou a mensagem de Londres. Seu rosto sadio de adolescente mudou de cor.

- Com mil diabos! - disse ele empalidecendo.

- Que é? - Shakespeare arrancou-lhe o papel das nãos e leu:

M15 para Shakespeare Lisboa pretenso Jean Leblanc chama-se realmente Thomas Lieven e é agente da Abwehr - acaba de nos tapear com lista falsa do Serviço Secreto francês - retenha esse homem a qualquer preço - agente especial segue por avião – siga as suas instruções - terminado - terminado.

Com um palavrão enfático, Shakespeare precipitou-se da mansarda, descendo, de dois em dois degraus, a escada, em direção da biblioteca.

No saguão deparou com um espetáculo aterrador. A pesada porta de entrada estava aberta. Aberta, também, a porta da biblioteca. Entre as duas portas estava estendida, com a cara num magnífico tapete oriental, a forma imóvel do mordomo impecável.

Shakespeare correu até a biblioteca. Estava vazia. Um leve perfume pairava no ar. Shakespeare correu até o parque. Um táxi vermelho arrancava violentamente na rua, com o motor rugindo. Sempre correndo, Shakespeare voltou para o saguão. O elegante mordomo havia voltado a si. Sentado no tapete, ele gemia, esfregando o pescoço.

- Como aconteceu isto?

- Esse homem é um mestre de judô, sir. Eu o vi saindo da biblioteca com a senhora. Procurei impedir. Depois tudo aconteceu muito rapidamente. Caí e perdi os sentidos, sir...

A campainha do telefone soou, soou, soou.

Sempre de chinelos e roupão, Thomas Lieven correu para o quarto de Estrella. No decorrer do último quarto de hora o chofer do táxi, numerosos transeuntes e a empregada de Estrella ficaram surpresos com o seu estranho vestuário. Mas Thomas Lieven, que toda a vida se vestira com apuro, pouco estava se incomodando! Sabia que a própria cabeça estava em jogo.

- Alô! - disse, mal tirara o fone do gancho. Depois sorriu, aliviado, pois reconheceu a voz que lhe respondia. Pertencia a um amigo, o último amigo que lhe restava.

- Leblanc? Lindner falando...

- Graças a Deus, Lindner, eu ia chamá-lo. Onde está você?

- No hotel. Escute, Leblanc, há horas que estou tentando falar com você.

- Sim, sim, eu sei. Tive uma aventura desagradável, várias aventuras desagradáveis. Lindner, preciso de seu auxílio. É preciso que eu me esconda até a partida do navio...

- Leblanc!

-... é preciso que não me vejam, eu...

- Leblanc. Deixe-me falar, afinal.

- Faça o favor.

- O navio não vai partir.

Thomas deixou-se cair sobre a cama da consulesa que, por trás dele, apertava a mão fechada contra a boca sensual.

- Que está você dizendo? - gemeu Thomas.

- O navio não vai partir.

Gotas de suor apareceram na testa de Thomas,

- Que aconteceu?

A voz do banqueiro vienense tinha algo de histérica.

- Há vários dias eu comecei a desconfiar. Na companhia de navegação havia um ambiente estranho. Não disse nada a você para não inquietá-lo. Hoje de manhã soube...

- Soube o quê?

- O navio foi aprisionado pelos alemães. Thomas fechou os olhos.

 

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         TORRADAS COM COGUMELOS

         LECSO HÚNGARO

         PERAS COM QUEIJO

 

9 de setembro de 1940

A cozinha húngara é boa conselheira.

Torradas com cogumelos - Corte em fatias finas cogumelos frescos, que devem ser pequenos e de consistência firme. Coloque-os, com manteiga, em uma panela e cubra com a tampa. Em poucos minutos estarão cozidos. Salgue, adicione um pouco de pimenta-do-reino e coloque sobre torradas de pão de forma (sem casca) que se fritam dos dois lados em manteiga. Molhe com suco de limão e salpique com salsa, bem picadinha. Sirva em pratos aquecidos.

Uma excelente variante pode ser feita, refogando os cogumelos com cebolinhas picadas e adicionando, em seguida, creme fresco. Polvilham-se as torradas com queijo ralado, levando-as ao forno para gratinar rapidamente. NB - Thomas Lieven escolheu o primeiro método de preparação porque, sendo o prato principal bastante consistente, ele não quis servir mais que um aperitivo.

Lecso húngaro - Corte em fatias finas duzentos e cinqüenta gramas de cebolas. Corte em forma de cubos cem gramas de toucinho magro (quanto menos gordura melhor), cem gramas de paio e, em pedaços maiores,

meio quilo de carne de carneiro. Limpe um quilo de pimentões verdes, corte-os em tiras do tamanho e da largura de um dedo e descasque meio quilo de tomates.

Junte em uma panela a cebola, o toucinho e o paio e cozinhe-os somente até dourar. Acrescente agora a carne até que comece a assar de todos os lados. Junte os pimentões e, um pouco mais tarde, os tomates.

Com a panela coberta, deixe em fogo brando até que tudo esteja bem cozido.

Meia hora antes de servir acrescente meia xícara de arroz que serve apenas para ligar melhor o molho. Não bote arroz em demasia pois isso engrossaria demais o molho.

Tempere com sal e pimenta-do-reino.

Peras com queijo - Descasque peras de consistência firme e sirva-as acompanhadas de queijo pouco fermentado do gênero Port-Salut ou Gervais.

Depois de uma refeição pesada e condimentada, a mistura de fruta fresca e queijo é uma sobremesa agradável e de fácil digestão.

- Que está... que está acontecendo? - gritou trêmula, a pobre consulesa.

- E... e um outro navio? - gemeu Thomas.

- Completamente impossível. Tudo tomado. E por vários meses. Não nos iludamos, Leblanc, estamos bloqueados em Lisboa... alô... você ouviu, Leblanc?

- Ouvi tudo - disse Thomas. - Eu o chamarei depois. Passe bem, se as circunstâncias o permitirem.

Desligou e segurou a cabeça entre as mãos. Sentiu, novamente, o cheiro de clorofórmio. Novamente sentiu náuseas. A cabeça girava. Era o fim.

Que fazer agora?

A armadilha se fechara sobre ele. Seria impossível escapar a todos que havia ludibriado: alemães, franceses, ingleses.

- Jean! Jean! - A voz da consulesa finalmente chegou a seus ouvidos. Ergueu a cabeça. Tremendo e soluçando, ela estava ajoelhada junto a ele. - Fale. Diga alguma coisa. Conte à sua pobre Estrella o que aconteceu.

Ele fitou-a, algum tempo. Depois sua fisionomia se desanuviou.

- Dispense a empregada por hoje, querida - disse com doçura.

- A empregada...

- Quero ficar a sós com você.

- Mas o almoço...

- Cozinharei eu mesmo - disse Thomas. Levantou-se como se levanta para o round seguinte um boxeador rudemente castigado mas que está longe do nocaute. - Preciso pensar em tudo isso. As melhores idéias sempre me ocorrem quando estou cozinhando.

Preparou lecso húngaro. Pensativo, cortou em finas fatias cento e vinte e cinco gramas de cebolas. Com ar modesto, e em silêncio, limpou um quilo de pimentões verdes.

A consulesa não tirava os olhos de cima dele. Nervosamente, apertava com os dedos a pulseira, jóia de ouro, pesada e valiosa, onde havia engastados brilhantes da melhor água.

- Você tem uma calma! - exclamou a consulesa sacudindo a cabeça. - Como pode cozinhar num momento como este?

Ele sorriu levemente. Seu olhar fixou a larga pulseira cujas pedras cintilavam sob a luz, brancas, azuis, verdes, amarelas e vermelhas.

Ele cortou os pimentões em tiras.

- Por que não me diz nada, Jean?

- Porque estou pensando, meu bem.

- Jean, você nunca vai confiar em mim? Não quer dizer a verdade? Por que está ameaçado de todos os lados? Por que tem medo, até dos ingleses?

Ele começou a descascar os tomates.

- A verdade é tão terrível, meu amor, que não a posso confiar a ninguém, nem mesmo a você.

- Oh! - Ela fazia girar a pulseira que cintilava e lançava faíscas. - Mas eu quero ajudá-lo, protegê-lo! Tenha confiança em mim, Jean. Faria qualquer coisa por você.

- Qualquer coisa? De verdade?

- Absolutamente qualquer coisa, meu amor.

Ele deixou cair o tomate que tinha na mão; sua fisionomia tomou uma expressão de profunda ternura e de tranqüila confiança.

- Meu bem - disse Thomas Lieven em tom amistoso. - Nesse caso faremos uma pequena sesta, depois do almoço e, em seguida, você me denunciará.

Quem duvidará do efeito tremendo dessas palavras?

Estrella, a bela mulher, ficou sem voz. Com os olhos arregalados e a boca aberta ela olhava fixamente para Thomas Lieven.

- Que foi que você disse? - balbuciou, quando recuperou o uso da palavra. - Que devo fazer? Denunciá-lo? Onde? A quem?

- À polícia, minha querida.

- Mas, em nome do céu, por quê?

- Porque eu a furtei, querida - respondeu Thomas Lieven. - Mas onde está aquele paio com alho?

 

9 de setembro de 1940.

Extrato de registro de ocorrências do comissariado de polícia, 17º setor, Avenida D. Duarte Pacheco, Lisboa:

15h22: chamada telefônica proveniente de uma casa na Rua Marquês da Fronteira, 45. Uma voz feminina pedia socorro contra um ladrão. Os sargentos Alcântara e Branco seguiram imediatamente para o local, na viatura do posto.

16h07: volta dos sargentos Alcântara e Branco em companhia de:

  1. a) Estrella Rodrigues, religião católica romana, viúva, nascida a 27 de março de 1905, nacionalidade portuguesa, consulesa da Costa Rica, domiciliada à Rua Marquês da Fronteira, número 45;
  2. b) Jean Leblanc, religião protestante, nascido a 2 de janeiro de 1910, nacionalidade francesa, banqueiro, sem domicílio fixo (refugiado, com visto de trânsito português).

No seu depoimento, Estrella Rodrigues declarou o seguinte: ”Fui roubada por Jean Leblanc e peço a sua prisão. Conheço Jean Leblanc há duas semanas e ele visitou-me, várias vezes, em minha casa. Há cinco dias notei a falta de uma pesada pulseira de ouro (dezoito quilates, articulações de acabamento esmerado, cento e cinqüenta gramas, com pequenos e grandes brilhantes), fabricada pelo ourives Miguel da Foz, Rua Alexandre Herculano. Valor comercial: cerca de cento e oitenta mil escudos. Acusei Leblanc do furto e ele o admitiu. Dei-lhe um prazo para devolver a jóia, marcando o dia de hoje, às doze horas, como último limite para a devolução do objeto que me pertence. Ele não o fez”.

Interrogatório do estrangeiro Jean Leblanc.

”Eu não roubei a pulseira. Ela me foi confiada pela sra. Rodrigues para ser vendida. Não encontrando comprador, devolvi, há bastante tempo, a pulseira à referida senhora.”

Pergunta: ”A sra. Rodrigues declara que o objeto não está mais em seu poder. Pode mostrar o objeto ou dizer onde está?”

Resposta: ”Não, porque a sra. Rodrigues o escondeu com a intenção de prejudicar-me. Ela quer que eu seja preso”.

Pergunta: ”Por que razão?”

Resposta: ”Por ciúmes”.

Observação: no decorrer do interrogatório o estrangeiro Leblanc causou uma impressão pouco favorável. Seu procedimento é impertinente e arrogante. De vez em quando faz ameaças veladas. Suas palavras ofendem a honra feminina da acusadora e ele insulta, grosseiramente, o comissário que o interroga. Para terminar, simula alienação mental, ri, pronuncia palavras sem nexo e canta canções satíricas francesas.

Declaração dos sargentos Alcântara e Branco:

O estrangeiro resistiu à prisão fisicamente. Foi necessário algemá-lo. Durante sua transferência para o comissariado, notamos a presença de vários tipos suspeitos diante da casa da acusadora e que observavam atentamente os nossos atos.

Observação: é de presumir, que o estrangeiro Leblanc mantenha relações com os meios do crime de Lisboa. Ele está preso e passará a noite no comissariado. Amanhã será transferido para a chefatura de polícia e posto à disposição da delegacia de roubos.

Eram quase seis horas da tarde quando a muito bela, se não muito inteligente, Estrella Rodrigues, consulesa e germanófoba convicta, voltou à Rua Marquês da Fronteira. Fatigadíssima e enervada, tomara um táxi. Ofegante, com os olhos brilhantes e as faces febris, encolheu-se um pouco no fundo do carro.

Tudo correra como Jean desejava e previra. ”Mas santo Deus, em que situação se mete este homem imprevisível, maravilhoso e misterioso!

”Eles o detiveram. Na prisão ele está ao abrigo dos seus perseguidores. Mas por que o perseguem? Ele não me disse. Beijou-me e pediu que tivesse confiança nele.

”Que outra coisa poderia eu ter feito? Eu o amo tanto! É um francês cheio de bravura. Certamente está encarregado de uma missão ultra-secreta. Sim, quero confiar nele e seguir todas as suas instruções: deixar a pulseira na adega, ir ao porto todos os dias e tentar conseguir-lhe uma passagem para a América do Sul, não falar a ninguém sobre ele. Se eu conseguir a passagem deverei ir correndo comunicar ao juiz criminal que encontrei a pulseira, mostrando-a, e declarando que retiro a queixa. Ah... quantos dias e quantas noites irei passar sem ele, sem Jean, o meu amante querido!”

O táxi parou. A consulesa desceu e pagou a corrida. Ao se aproximar da casa, um homem pálido e preocupado, vestindo uma roupa amarrotada, surgiu de trás de uma palmeira. O indivíduo cumprimentou Estrella erguendo o seu surrado chapéu e dirigiu-lhe a palavra, em mau português:

- Sra. Rodrigues, peço que me conceda, com a máxima urgência, uma entrevista.

- Não, não - exclamou a voluptuosa consulesa, recuando.

- Sim, sim - insistiu ele, seguindo-a. - Trata-se de Jean Leblanc - disse ele baixando a voz.

- Quem é o senhor?

- Chamo-me Walter Lewis. Acabo de chegar de Londres. - Era certo que ele chegara de Londres. Seu avião aterrara uma hora antes. Mas seu nome não era Walter Lewis. Chamava-se Peter Lovejoy, enviado de Londres, por M15, seu chefe, para acabar com as diabruras do denominado Thomas Lieven...

- Que quer de mim, Mr. Lewis?

- Quero saber onde está Jean Leblanc.

- E de que forma isto pode interessá-lo?

O homem que no momento se dizia Lewis tentou hipnotizar Estrella com um olhar sem brilho e melancolicamente embaciado por anos e anos de falta de dinheiro e de má alimentação.

- Ele me furtou, ele furtou o meu país. É um patife...

- Cale-se!

-...um indivíduo sem moral, senhora, sem escrúpulos...

- Suma daqui ou eu grito por socorro!

- Como pode a senhora ajudar a um alemão? Quer que Hitler ganhe a guerra?

- Hit... - a palavra ficou presa à garganta da apaixonada, mas infeliz, jogadora de roleta. - Que disse o senhor?

- Como pode ajudar a um alemão?

- Um alemão? Não! Não! - A consulesa segurou a cabeça com as mãos. - O senhor mente.

- Não minto, não, senhora! Esse miserável fascista chama-se Thomas Lieven!

Completamente tonta, Estrella tentou raciocinar. ”Jean, um alemão? Impossível. Inadmissível. Depois de tudo que passamos juntos. Aquele encanto. Aquela ternura. Aque... Não, ele só pode ser francês!”

- É impossível! - gemeu Estrella.

- Senhora, ele lhe mentiu, como mentiu a mim, como mentiu a todos. O seu Jean Leblanc é um agente alemão.

- Isto é horrível!

- É preciso esmagar essa serpente.

A consulesa ergueu a sua bela cabeça. O seu belo corpo se empertigou.

- Acompanhe-me, Mr. Lewis. Mostre-me as suas provas. Quero os fatos, somente os fatos indispensáveis. Se o senhor tiver tais provas, então...

- Então, senhora?

- Então eu me vingarei. Nenhum alemão zombará de mim! Jamais!

”Amanhã”, esta a palavra que Thomas Lieven ouviu com mais freqüência, durante as semanas em que esteve preso. ”Amanhã”, prometiam os guardas, ”amanhã,” prometia o juiz criminal.

”Amanhã” era a palavra que consolava os outros presos que aguardavam uma medida qualquer que lhes interessava.

Nada acontecia. Talvez amanhã algo viesse a acontecer. Guardas, juiz criminal e presos erguiam os ombros com fatalismo, sorriam com ar significativo e mencionavam um provérbio que poderia servir de axioma a todo criminalista dos países meridionais: ”Eh, eh, até amanhã!” O que se pode interpretar como: ”Amanhã é amanhã e amanhã pode acontecer alguma surpresa agradável”.

Quando foi preso, Thomas foi primeiramente levado à prisão criminal situada no Torel, uma das sete colinas sobre as quais está construída Lisboa. A prisão estava com excesso de presos.

Por esse motivo, depois de alguns dias, Thomas foi transferido para o Aljube, um palácio medieval de cinco andares situado na mais antiga parte da cidade. As armas do arcebispo Dom Miguel de Castro encimavam o portal. Tendo permanecido neste vale de lágrimas - como o sabem todas as pessoas instruídas - de 1568 a 1625, ele decretara que o velho e feíssimo casarão serviria de prisão para os eclesiásticos culpados de ações repreensíveis.

Durante as formalidades de seu registro, Thomas refletiu que o clero português do século XVI deveria ter um elevado número de ovelhas desgarradas, porque o Aljube era uma prisão monumental.

Era nessa prisão que a polícia detinha os indiciados, dentre eles um grande número de estrangeiros. Ali estava, também, um bom número de cavalheiros que tinham violado artigos inteiramente apolíticos do código português. Tanto os detidos preventivamente como os já condenados ocupavam seja celas comuns, seja celas individuais ou então celas destinadas a ”pessoas com meios”.

Estas últimas estavam situadas nos últimos andares e tinham instalações mais confortáveis. Todas as janelas davam para o pátio. No prédio vizinho, um tal Teodoro dos Repôs dedicava-se ao fabrico de malas e valises, ocupação indissoluvelmente associada a certos cheiros desagradáveis, que, especialmente nos dias quentes, incomodavam muito os detentos ”sem meios” que ocupavam os andares inferiores.

Em cima, os ”com meios” levavam vida muito melhor. Pagavam, semanalmente, o aluguel de suas celas, como se estivessem num hotel. O montante do aluguel era calculado tomando por base a caução fixada pelo juiz criminal. O aluguel era caro. Mas tal como num hotel, os detentos endinheirados tinham o melhor tratamento possível. Os guardas procuravam satisfazer todos os seus desejos. É claro que havia cigarros e jornais, é claro que os detentos tinham de encomendar refeições nos restaurantes vizinhos, recomendados pelos guardas.

Thomas, que depositara na administração certa quantia de dinheiro - pois já previa esses costumes camaradas - organizou o problema de sua alimentação da seguinte forma: pela manhã, chamava o gordo cozinheiro Francisco e com ele discutia, em detalhe, o cardápio do dia. Depois disso, Francisco mandava seu ajudante ao mercado. O cozinheiro estava entusiasmado com o ”M. Jean”: o cavalheiro da cela 519 era uma mina de novas receitas e de truques culinários.

Thomas Lieven passava muito bem. Considerava a sua permanência na prisão como uma cura de repouso, bem merecida, antes da partida para a América do Sul.

O fato de Estrella não dar notícias não o preocupava absolutamente. A doce criatura certamente estaria passando todo o tempo tentando conseguir passagem num navio.

Uma semana depois de seu encarceramento, Thomas ganhou um companheiro de cela. Foi o amável guarda Julião, que Thomas enchia de gorjetas, que trouxe o novato no dia 21 de setembro.

Thomas deu um pulo no catre. Em toda a sua vida nunca vira um homem mais feio.

O novato era o retrato de Quasimodo, o sineiro de Notre Dame. Era pequeno. Tinha uma corcunda. Era coxo. Completamente calvo. O rosto tinha uma palidez cadavérica, mas com as bochechas bem cheias de um hamster. Um tique nervoso retorcia-lhe os lábios.

- Bom dia - disse o corcunda fazendo uma careta à guisa de sorriso.

- Bom dia - disse Thomas, em voz surda.

- Chamo-me Alcoba. Lázaro Alcoba. - O novato estendeu para Thomas uma garra peluda.

Thomas apertou-a com pavor e nojo. Mal poderia ele supor que Lázaro Alcoba entrava em sua vida como um verdadeiro amigo - um coração de ouro. Enquanto arrumava suas coisas no segundo catre, Lázaro Alcoba disse, com voz rouca e rascante:

- Esses porcos me engaiolaram por contrabando, mas desta vez eles nada podem provar. Terão que soltarme mais dia, menos dia. Não tenho pressa... Eh, eh... até amanhã! - Sorriu novamente, fazendo uma careta.

- Eu também sou inocente - começou Thomas, mas Lázaro o interrompeu com um gesto delicado:

- Sim, sim, acusam-no de haver afanado uma pulseira de brilhantes. Pura calúnia, hein? Ah, ah, como há gente maldosa.

- Como sabe?

- Estou a par de tudo a seu respeito, menino. Pode tratar-me por ”você”. - O corcunda coçou-se todo. - Você é francês. É banqueiro. A pequena que o fez prender é consulesa e se chama Estrella Rodrigues. Você gosta de cozinhar...

- Como sabe tudo isso?

- Porque eu o escolhi, garoto.

- Escolheu?

- Claro! - Lázaro estava radiante. A sua horrível cara parecia ter dobrado de largura. - O único homem interessante nesta joça. Mesmo entre as grades a gente gosta de cultivar o espírito, não é? - Inclinou-se para Thomas e tocou-lhe o joelho com o dedo. - Uma pequena informação para o futuro, Jean: a próxima vez que o meterem em cana, a primeira coisa a fazer é apresentar-se ao chefe dos guardas. Eu o faço todas as vezes.

- Por quê?

- Ofereço-me para manter os seus registros em dia. Eles são sempre preguiçosos. Dessa forma vejo todos os processos e, ao fim de alguns dias, sei de cor a ficha de todos os detentos. Isto me facilita escolher um bom companheiro de cela.

Thomas começava a achar interessante a companhia do corcunda. Ofereceu-lhe um cigarro.

- E por que você escolheu a mim?

- Você é um tipo da alta, um grã-fino. Infelizmente, mas sabe se comportar. Um banqueiro. Talvez me dê alguns palpites para a Bolsa. Gosta muito de cozinhar. Aí, também posso aprender alguma coisa. Sabe, tudo que se aprende na vida pode ter utilidade...

- Sim - disse Thomas pensativo -, é exato. Quanta coisa já aprendi depois que o destino me arrancou à minha vida pacata. Quem sabe o que ainda me espera. Onde estão a minha segurança, a minha vida burguesa, meu clube em Londres e o meu belo apartamento em Mayfair? Desapareceram num mar de nuvens longínquas...

- Quero fazer-lhe uma proposta - disse Lázaro. - Vamos dividir fraternalmente. Você me ensina tudo que sabe e eu faço o mesmo. Topa?

- Topo, e com prazer - disse Thomas, entusiasmado. - Que gostaria de comer no almoço?

- Tenho uma idéia, mas não sei se conhece a receita. Aquele cretino do cozinheiro certamente não conhece.

- Mas que é?

- Eu tenho trabalhado em quase todos os países da Europa. Confesso que gosto de comer. Prefiro a cozinha francesa, mas nada tenho contra a alemã. Certa vez, estive em Münster onde aliviei os bolsos de alguns cavalheiros. Foi lá que comi um carré de porco recheado. Um carré de porco que só de pensar fico com a boca cheia de água. Ainda sonho com ele! - Rolou os olhos e estalou os lábios.

- Só isso? - disse Thomas calmamente.

- Você conhece?

- Eu também trabalhei na Alemanha - disse Thomas, tocando na madeira da porta. - Portanto, carré de porco recheado. Muito bem. Vamos ter um dia de cozinha alemã. Talvez uma sopa de quenelles de fígado, para começar e depois, hum, castanhas com creme chantilly.

Julião, o guarda camarada, espiou pela porta entreaberta.

- Diga ao cozinheiro para vir falar comigo - disse Thomas, metendo-lhe na mão uma nota de cem escudos. - Preciso dele para combinar o menu do dia.

 

                           MENU

     SOPA DA SUABIA COM QUENELLES DE FÍGADO

     CARRÉ DE PORCO RECHEADO À MODA DE VESTFÁLIA

     CASTANHAS À MODA DE BADEN COM CREME CHANTILLY

 

21 de setembro de 1940

A cozinha burguesa dá forças para o aprendizado do crime.

Sopa da Suábia com quenelles de fígado - Aqueça, ligeiramente, sessenta gramas de manteiga e bata até ficar quase líquida; junte duzentos gramas de fígado moído de boi (ou de vitela), três ovos, um pequeno pão molhado e depois espremido, cinqüenta gramas de farinha de rosca, cinco gramas de orégão, sal e pimenta-do-reino. Misture bem até formar uma pasta. Passe em peneira e forme pequenos bolinhos ou, se preferir, rolinhos alongados com a forma de macarrão.

Ponha em água a ferver, durante dez a quinze minutos, até que as quenelles venham à tona. Retire com uma escumadeira e sirva dentro de um bom consommé.

Carré de porco recheado à moda de Vestfália - Use um bom carré de porco desossado. Corte maçãs em pequenas fatias, misture com ameixas já ligeiramente cozidas, adicione casca de limão ralada, um cálice de rum e um pouco de farinha de rosca.

Coloque esse recheio no carré desossado, salgado e ligeiramente polvilhado com pimenta-do-reino. Com uma agulha apropriada, cosa em toda a volta.

Numa panela, ou frigideira, leve ao fogo até que a carne comece a assar de todos os lados. Quando a carne adquirir alguma cor, leve ao forno para terminar de assar. Sirva com purê de batatas.

Castanhas à moda de Baden com creme chantilly - Use castanhas grandes e de consistência firme. Faça um corte, em cruz, na parte arredondada e leve ao forno apenas o tempo necessário para que a casca se destaque facilmente. Uma vez descascadas, ponha-as em água fervendo até que a pele interior saia com facilidade.

Agora, cozinhe as castanhas em leite com açúcar, acrescentando antes um pedaço de fava de baunilha. As castanhas devem ficar amolecidas, mas não demais. Passe no moedor (fino) diretamente sobre o prato de servir, a fim de conservar a consistência leve.

Cubra o creme de castanhas com creme chantilly e enfeite com cerejas cristalizadas perfumadas com conhaque.

- Então, estava bom? - perguntou Thomas Lieven quatro horas mais tarde.

O corcunda e ele estavam na cela, sentados face a face, diante de uma mesa farta. O corcunda limpou a boca e deu uns gemidos de entusiasmo.

- Pra lá de bom, menino, pra lá de bom. Depois de um carré de porco como este, eu seria capaz de surripiar a carteira do venerável presidente Salazar em pessoa.

- O cozinheiro deveria ter posto um pouco mais de rum.

- Esses sujeitos preferem bebê-lo - disse Lázaro. - Para agradecer a boa gororoba vou lhe dar uma primeira informação.

- É muito amável de sua parte, Lázaro. Mais um pouco de purê de castanhas?

- Com prazer. Você sabe, nós somos ricos, temos grana. Assim, não há problema para ter o prato cheio. Mas que se pode fazer quando se vai em cana e não se tem arame? A coisa mais importante quando se está nas grades é comer bem. E você será bem alimentado se tiver diabete.

- Mas como é que se fica diabético?

- É justamente o que vou explicar - disse Lázaro estufando as bochechas de hamster. - Para começar, você vai sempre à ”visita médica”. Está sempre sentindo um troço. No momento exato surripia uma seringa do médico. Depois, procura fazer camaradagem com o cozinheiro. Para você, por exemplo, isto seria fácil. Arranje com ele um pouco de vinagre, dizendo que é para temperar a bóia. Depois, peça um pouco de açúcar para o café.

- Estou compreendendo - disse Thomas. Bateu na porta e o guarda apareceu. - Pode tirar os pratos e trazer a sobremesa, por favor - disse Thomas Lieven.

Lázaro esperou que Julião saísse com a louça.

- Você mistura uma parte de vinagre com duas de água e satura a solução com açúcar. Depois espeta dois centímetros cúbicos na coxa.

- Intramuscular?

- Sim, mas devagar, muito devagar, senão arranja um abscesso de primeira.

- Compreendi.

- Espete hora e meia antes de ir à visita médica. Não mije até então. Morou?

- Morei.

Julião trouxe a sobremesa, recebeu a sua parte e retirou-se, satisfeito.

- No consultório do médico - concluiu Lázaro, comendo as castanhas com creme batido - você se queixa de uma terrível sede todas as noites. Ele manda você mijar num frasco. Você mija. A análise mostra tudo cheio de açúcar. Ordenam uma dieta: grelhados, manteiga, leite, pão branco. É a recompensa da sua pequena manobra.

Foi isso que Thomas aprendeu no seu primeiro dia em companhia de Lázaro, o corcunda. No decorrer dos dias e das semanas que se seguiram, aprendeu mais. Recebeu um verdadeiro curso sobre o crime e a vida na prisão. Com grande precisão o seu cérebro ia registrando cada ensinamento e cada informação que recebia.

Por exemplo: como conseguir uma febre alta, rapidamente, para ser transferido para a enfermaria, de onde a evasão é mais fácil?

Resposta: raspe miúdo um pouco de sabão tipo Marselha. Uma hora antes da visita médica, engula três colheres, das de café. O resultado será uma forte dor de cabeça e a temperatura elevar-se-á a quarenta e um graus durante a hora que se segue. É verdade que o acesso dura apenas uma hora. Se quiser febre mais prolongada engula alguns pedacinhos de sabão.

Ou como simular uma icterícia?

Junte uma colher, das de café, de fuligem e duas colheres de açúcar. Misture e junte água. Deixe-a repousar durante uma noite e beba, de manhã. Os sintomas de icterícia aparecem dois ou três dias depois.

- Sabe, Thomas, estamos vivendo numa época desgraçada. Talvez você precise ou queira, algum dia, evitar a morte no campo de batalha. Morou?

- Morei - disse Thomas.

Foram semanas felizes. Lázaro tornou-se um perfeito cozinheiro. Thomas, um perfeito simulador de moléstias. Aprendeu, também, a gíria do crime e uma infinidade de ”golpes” interessantes e chamados pelos nomes pitorescos de: ”colete branco”, ”empréstimo”, ”golpe do carro”, ”rasgão do guarda-chuva”, e muitos outros.

Ele sentia (santo Deus, que decadência!) que todos esses conhecimentos científicos lhe seriam, algum dia, muito úteis. Esse sentimento provou mais tarde ser absolutamente verdadeiro.

Ao mesmo tempo professores e alunos, Thomas e Lázaro viveram em paz e entenderam-se muito bem até a manhã do pavoroso, do terrível dia 5 de novembro de 1940.

Na manhã de 5 de novembro de 1940, Thomas Lieven - pela primeira vez depois de muito tempo - foi à presença do juiz criminal. O magistrado chamava-se Eduardo Baixa. Sempre vestido de preto, dos pés à cabeça, usava pince-nez preso a uma fita negra. O juiz Baixa era um homem culto. Conversava sempre em francês com Thomas. Nesta manhã também o fez.

- Então, monsieur, está finalmente resolvido a confessar?

- Nada tenho a confessar. Sou inocente.

- Neste caso - disse Baixa limpando o pince-nez com o lenço -, o senhor provavelmente ficará muito, muito tempo no Aljube. Transmitimos sua ficha com fotografias e impressões digitais a todos os postos de polícia de Portugal. Agora terá que esperar.

- Esperar por quê?

- Ora, ora, pelas respostas. Ignoramos os outros crimes que tenha cometido no país.

- Não cometi crime algum! Sou inocente.

- Sim, sim, certamente... Apesar de tudo, M. Leblanc, teremos que esperar. Acontece que o senhor é estrangeiro... - Baixa folheou o processo. - Uma estranha pessoa, hum! devo dizê-lo.

- Mas quem?

- A acusadora, sra. Rodrigues.

Um formigamento de mau presságio correu pela espinha de Thomas.

- Por que estranha, senhor juiz? - perguntou, com a boca seca.

- Ela não comparece.

- Não estou entendendo.

- Eu a convoquei. Ela, entretanto, não comparece.

- Meu Deus - disse Thomas -, espero que nada lhe tenha acontecido.

”Só faltaria isso”, pensou ele.

Voltando à cela, mandou logo chamar Francisco, o gordo cozinheiro.

Este chegou, com fisionomia alegre.

- Que iremos preparar para hoje, sr. Jean? Thomas sacudiu a cabeça.

- Não se trata de comida. Preciso de um favor seu. Pode sair durante uma hora?

- Posso, sim.

- Leve este dinheiro. Compre umas vinte rosas vermelhas, tome um táxi e vá ao endereço que anotei. Lá reside a sra. Estrella Rodrigues. Estou preocupado por causa dela. Talvez esteja doente. Peça notícias e pergunte se pode ser útil em alguma coisa.

- Tudo entendido, sr. Jean. - O gordo saiu. Francisco voltou ao fim de uma hora. Tinha um ar aborrecido, quando entrou na cela com um magnífico ramo de rosas cor de sangue. Thomas ficou logo sabendo que algo de terrível tinha acontecido.

- A sra. Rodrigues partiu - disse o cozinheiro. Thomas caiu sentado sobre o catre.

- Partiu? Partiu como?

- Partiu porque partiu, bolas - respondeu o cozinheiro. - Viajou. Desapareceu. Não está mais lá.

- Quando partiu? - perguntou Thomas.

- Há cinco dias, sr. Jean. - O mestre-cuca olhou para Thomas com ar penalizado. - A senhora parece que não pretende voltar. Pelo menos, tão cedo.

- Por que você diz isso?

- Porque ela levou todos os vestidos, todas as jóias, o dinheiro...

- Ela não tinha dinheiro!

- O cofre estava aberto.

- O cofre? - Thomas sentiu que cambaleava. - Como você pôde chegar perto do cofre?

- A empregada deixou-me visitar toda a casa. Uma mestiça. Muito jeitosa, por sinal. Que olhos! - O cozinheiro fez, sobre o peito, um gesto indicando curvas.

- É Carmem - murmurou Thomas.

- Isso mesmo, chama-se Carmem. Vou levá-la ao cinema esta noite. Ela mostrou-me tudo. O guarda-roupa, os armários, tudo vazio, o quarto de dormir, o cofre aberto e vazio...

- Completamente vazio? - gemeu Thomas.

- Completamente. A única coisa que vi foi uma calcinha de seda preta, pendurada na porta. Que há, sr. Jean, não se sente bem? Água... beba um pouco de água.

- Deite-se de costas, e fique parado - aconselhou Lázaro.

Thomas deixou-se cair sobre a cama.

- Todo o meu dinheiro estava naquele cofre - balbuciou ele. - Tudo que tinha. Toda a minha fortuna...

- As mulheres - rosnou Lázaro com raiva. - A única coisa que sabem fazer é encrencar a nossa vida. E com essa história ficamos sem almoço.

- Mas por quê? - balbuciou Thomas. - Por quê? Eu nada lhe fiz... Que disse Carmem? Ela sabe onde está a patroa?

- Carmem disse que ela tomou o avião para a Costa Rica.

- Santo Deus! - gemeu Thomas.

- Carmem disse que a casa está à venda.

- Pare de sacudir estas porcarias de rosas perto do meu nariz - berrou Thomas, num súbito e terrível furor. Mas dominou-se. - Desculpe, Francisco. São os nervos. E... nenhum recado para mim? Nenhuma carta? Nada?

- Sim, senhor. - O cozinheiro tirou dois envelopes do bolso. O primeiro era de seu amigo vienense, o banqueiro Walter Lindner:

Lisboa, 29 de outubro de 1940 Caro M. Leblanc,

Escrevo estas linhas às pressas e muito inquieto. São onze horas e é preciso que eu vá para bordo, pois o meu navio parte dentro de duas horas. Até agora nenhum sinal seu. Onde está o senhor, meu Deus? Ainda estará vivo?

Nada sei, a não ser o que me contou a sua infeliz amiga, a senhora consulesa, isto é, que o senhor saiu depois da nossa conversa telefônica do dia 9 de setembro, e que nunca mais voltou.

Pobre Estrella Rodrigues. Aí está uma pessoa que o ama de verdade. A tristeza, a angústia dessa mulher! Eu a vi, diariamente, desde que consegui reservar para nós três passagens para a América do Sul. Dia após dia, esperávamos, em vão, por uma notícia sua.

Estou escrevendo da casa de sua bela e desesperada amiga. Ela está a meu lado, em prantos. Mesmo hoje, o último dia - nada de notícias.

Escrevo na esperança de que ainda esteja vivo e que um dia volte a esta casa, para perto dessa mulher que tanto lhe quer. Se o céu permitir, encontrará, então, a minha carta.

Vou rezar pelo senhor e esperar que, apesar de tudo e de todos, um dia nos reencontremos.

Muito cordialmente, seu Walter Lindner

Assim era a primeira carta.

Thomas a deixou cair. Sufocava. Sua cabeça parecia querer estourar.

”Por que Estrella não disse ao meu amigo onde eu me encontro? Por que não me veio retirar daqui conforme combinado? Por que fez isto? Por quê?”

A segunda carta esclarecia tudo:

Moleque sujo!

Agora o seu amigo Lindner deixou o país. Agora não há mais ninguém que o possa ajudar. Agora vou terminar a minha vingança.

Nunca mais você me tornará a ver. Dentro de poucas horas um avião me levará para a Costa Rica.

Seu amigo escreveu uma carta. A minha vai junto. Um dia qualquer o juiz criminal mandará procurarme. Você receberá, então, as duas cartas.

Admitindo que o juiz leia as cartas, o que É provável, declaro mais uma vez:

Você me roubou, canalha.

E digo também (isto lhe interessará sem dúvida, senhor juiz) que eu o abandono para sempre porque soube que você é um alemão, um agente secreto alemão, um sujo moleque alemão, sem escrúpulo, cínico e cúpido. Ah, como o odeio, miserável!

E.

- Ah, como eu ainda o amo, canalha! - gemeu a apaixonada Estrella Rodrigues, de formas da deusa Juno.

No momento em que Thomas Lieven lia, na cela do Aljube, a sua carta de despedida, com uma sensação de frio glacial no estômago, do outro lado da terra, a morena e bela consulesa estava sentada na sala do mais caro apartamento do mais caro hotel de San José, capital da República de Costa Rica.

Estrella tinha os olhos vermelhos. Abanava-se com um leque. Seu coração batia forte, sua respiração era angustiada.

- Jean, Jean, não paro de pensar em você. Seu nome é Thomas Lieven, canalha. Você mentiu, salafrário... Meu Deus, como eu o amo!

Diante de tão trágicas circunstâncias, a consulesa atacou, com a coragem do desespero, uma dose dupla de conhaque costarriquenho. Trêmula, fechou os olhos. Trêmula, relembrou o passado recente.

Uma vez mais reviu, em pensamento, o agente britânico que lhe havia contado a verdade sobre Thomas Lieven. E depois, a si mesma quando o inglês se foi: uma mulher prostrada, quebrada, aniquilada...

Foi nesse estado de abatimento que Estrella se arrastou, na noite de 9 de setembro de 1940, até o grande cofre do quarto de dormir. Chorando, conseguiu acertar a combinação. Tremendo, abriu a pesada porta. A fortuna daquele canalha estava diante de seus olhos: marcos, escudos, dólares. Desesperada e quase cega pelas lágrimas, a mulher traída fez um inventário.

Nessa noite, os freqüentadores do cassino do Estoril tiveram ocasião de assistir a um espetáculo sensacional.

Mais bela que nunca, mais pálida que nunca, mais decotada que nunca, Estrella Rodrigues chegou dispondo de um capital de vinte mil dólares. Ela, a eterna perdedora, de quem os próprios empregados e crupiês tinham pena, ganhou, naquela noite. Ganhou, ganhou e ganhou.

Como em transe, jogava com o dinheiro de Thomas Lieven. Jogava, sempre, a parada máxima. Jogou no 11, o 11 deu três vezes seguidas. Jogou no 29 e deu o 29. Jogou no 23, no vermelho, no ímpar e na segunda dúzia, sempre o máximo. Deu o 23.

Estrella jogava e onde jogava ganhava.

Seus belos olhos estavam marejados de lágrimas. Os cavalheiros de smoking e as senhoras com suas preciosas estolas de vison observavam, com curiosidade, aquela estranha favorita da sorte que soluçava cada vez que ganhava.

Os jogadores abandonavam as outras mesas do salão, vinham de todos os lados e aglomeravam-se para olhar fixamente a mulher de vestido vermelho que ganhava, ganhava sem cessar e ao mesmo tempo demonstrava estar desesperada.

”A senhora é bela demais. A senhora é muito feliz no amor. Seria injusto que também tivesse sorte no jogo.” Estas palavras ditas por Thomas Lieven na noite em que se conheceram queimavam a memória de Estrella como uma brasa candente. Muita sorte no amor, por isso sempre perdera, e agora, e agora...

”Vermelho, vinte e sete!” Houve uma exclamação da multidão.

Estrella soluçou. Havia ganho, uma vez mais, o máximo que se pode ganhar de uma só vez no cassino do Estoril, quando dá o ”vermelho vinte e sete”.

- Eu... eu não posso mais - gemeu a bela mulher. Dois empregados, solícitos e calçando escarpins, ampararam-na até o bar. Foi preciso o auxílio de dois empregados munidos de caixas de madeira para levar até o guichê do trocador a montanha de fichas que ela havia ganho. O montante do seu lucro ascendia a oitenta e três mil, setecentos e trinta e quatro dólares e vinte e seis centavos. Quem disse que a fortuna mal adquirida nunca traz sorte?

Estrella pediu que lhe pagassem com cheque, o que, minutos depois, foi feito. No fundo da bolsa, bordada de ouro, ela encontrou uma ficha de dez mil escudos. Do bar, atirou-a por cima das cabeças dos jogadores, sobre o pano verde.

A ficha caiu no vermelho. ”Em homenagem aos amores traídos”, gritou soluçante.

Deu vermelho.

Deu o vermelho, lembrou-se Estrella, no dia 5 de novembro de 1940, com os olhos cheios de lágrimas, na sala do apartamento mais caro do hotel mais caro de San José Em San José eram nove e meia da manhã segundo o fuso horário costarriquenho. Em Lisboa era meio-dia e meia segundo o fuso horário português. Em Lisboa, Thomas Lieven tomava o seu primeiro conhaque duplo1 para se refazer das terríveis emoções. Em San José, a consulesa já estava no segundo conhaque duplo do dia. O primeiro ela tomara logo após o café da manhã.

Havia já dias que ela bebia cada vez mais cedo e cada vez com mais vontade. Sentia terríveis palpitações. Precisava beber.

Quando não bebia, a lembrança de Jean, do seu querido amor, Jean, seu tesouro maravilhoso, Jean, aquele bandido, tornava-se insuportável. Só o conhaque lhe dava algum alívio.

Com os dedos trêmulos, Estrella tirou um frasco da bolsa de crocodilo e destampou-o. Com dedos trêmulos tornou a encher o copo. E enquanto as lágrimas lhe corriam pela face ela gritou, na luxuosa sala deserta: - Nunca esquecerei esse homem.

- Nunca - disse Thomas Lieven -, nunca esquecerei essa mulher!

O cair da tarde envolvia Lisboa em um crepúsculo nacarado. Thomas Lieven andava de um lado para o outro, em sua cela, como um tigre furioso.

Ele havia contado toda a verdade a Lázaro. Este sabia, agora, o verdadeiro nome de Thomas e estava a par das suas estrepolias. Sabia o que lhe aconteceria se caísse nas mãos dos serviços secretos alemão, inglês ou francês.

Fumando um cigarro, o corcunda, com ar preocupado, olhava para seu amigo.

- Não há nada pior que uma mulher histérica - disse ele. - Nunca se pode saber o que lhe passa na cabeça.

Thomas interrompeu a sua maratona.

- Justamente - disse ele. - Nada impede que essa senhora escreva amanhã ao chefe de polícia acusando-me de um assassinato ainda não esclarecido.

- Ou vários.

- Como?

- Ou vários assassinatos.

- Ah, sim... De qualquer forma a minha situação é desesperada. É evidente que ela levou consigo aquela maldita pulseira. Nunca a acharão. Só me resta ficar mofando aqui.

- Você tem razão - disse Lázaro. - É por isso que deve ir embora o mais depressa possível.

- Sair daqui?

- Antes que ela arranje novas encrencas.

- Mas Lázaro, isto aqui é uma prisão!

- E daí?

- Com muralhas, grades e portas blindadas. Com juizes, guardas e cães policiais.

- É exato. Será mais difícil sair do que foi entrar.

- Mas ainda assim há um meio? - perguntou Thomas, sentando-se na cama.

- Certamente. Será simplesmente preciso apelar para as ”meninjas”, dar tratos à bola. Você não me disse que tinha aprendido a fabricar passaportes falsos?

- Aprendi, sim.

- Hum! Há uma tipografia no subsolo da prisão. É lá que imprimem todos os formulários para os tribunais. Havemos de dar um jeito para conseguir o carimbo de que precisamos. Na verdade, garoto, tudo depende unicamente de você.

- De mim? Por quê?

- Será preciso que você se transforme.

- Em que sentido?

- No meu sentido - disse Lázaro com um sorriso melancólico. - Você vai ter que diminuir. Vai ter que mancar. E ter uma corcunda, bochechas caídas e um tique nervoso. E, está claro, uma cabeça calva como uma bola de bilhar. Eu o assusto, garoto?

- Ah! Absolutamente - mentiu corajosamente Thomas. - O que não se faria para ganhar a liberdade!

- É o nosso bem mais precioso - declarou Lázaro. - Agora abra bem os ouvidos e escute o que vou dizer.

Ele disse.

E Thomas Lieven abriu os ouvidos.

- Evidentemente - disse o corcunda -, é mais fácil aterrar na prisão que decolar. Mas é possível sair.

- Folgo em sabê-lo.

- Temos sorte de estar em cana em Portugal e não no seu país. Lá não haveria jeito. É tudo bem organizado.

- Ora, ora. Se estou compreendendo bem, você quer dizer que as prisões alemãs são as melhores do mundo?

- Quem lhe fala já esteve duas vezes na Moabit. - Lázaro bateu com a mão no joelho. - Posso afirmar: os portugueses não são do mesmo time. Eles deixam a vida correr. Falta-lhes o sentido prussiano do dever, a disciplina alemã.

- É verdade.

O corcunda bateu na porta da cela e o guarda Julião, cheio de gorjetas, apareceu logo, como se fosse garçom de um bom hotel.

- Diga ao cozinheiro para vir até cá, meu velho - disse Lázaro. Julião inclinou-se e desapareceu.

- Isto é porque toda evasão começa pela cozinha...

- Escute - disse um pouco mais tarde o corcunda a Francisco, o gorducho cozinheiro -, existe mesmo uma tipografia no subsolo, não é?

- Existe, sim. Imprime todos os formulários para a administração judiciária.

- Mesmo os alvarás de soltura da magistratura?

- Certamente.

- Você conhece algum preso que trabalhe lá?

- Não. Por quê?

- Temos necessidade de uma ordem de libertação.

- Vou arranjar as informações - disse o cozinheiro.

- Arranje as informações. Para quem nos prestar este serviço - disse Thomas Lieven - haverá oito dias de boa comida, de graça.

O cozinheiro voltou dois dias mais tarde.

- Encontrei o sujeito de que precisamos, mas ele quer comida de graça durante um mês.

Não é possível - disse Lázaro, com frieza. - Duas semanas será o máximo.

Então falarei novamente com o tipo - disse o cozinheiro.

Quando ele saiu, Thomas disse ao corcunda:

. Não seja tão duro. Afinal, o dinheiro é meu.

- É uma questão de princípio - replicou o corcunda. - Não quero que você estrague os preços. E outra coisa: espero que seja mesmo verdade que você sabe imitar um carimbo.

- O carimbo, com ou sem relevo, que eu não possa reproduzir, não existe - disse Thomas. - Fiz a minha aprendizagem com o melhor falsário do país. - ”Que coisa monstruosa”, pensou ele, ”a decadência de um homem; agora sinto orgulho de tal coisa.”

No dia seguinte o cozinheiro voltou:

- O sujeito concorda - disse ele.

- Onde está o formulário?

- Ele diz que quer primeiro os seus quinze dias de boa bóia.

- Toma lá, dá cá - resmungou Lázaro. - Ou ele nos entrega o formulário imediatamente ou pode esquecer o negócio.

Uma hora mais tarde recebiam o formulário.

Desde que fora preso, Lázaro ia diariamente à sala do chefe dos guardas, para manter os registros em dia e dar conta do expediente diário. Batia dúzias de cartas a máquina enquanto o chefe dos guardas lia tranqüilamente o seu jornal.

Dessa forma, o corcunda não teve dificuldade em bater a máquina uma ordem de soltura em seu nome. Escreveu o seu nome, a data do nascimento e o número do seu processo. Datou o documento de 15 de novembro de 1940 embora estivessem no dia 8. Lázaro e Thomas precisavam de uma semana para os preparativos. Seria necessário mais um dia para que o documento transitasse pelas diversas seções da prisão. Portanto, se tudo corresse bem, Thomas poderia estar livre no dia 16 de novembro. O dia 16 caía num sábado e o sábado era o dia de descanso do bom guarda Julião e... mas sigamos as coisas pela ordem.

Para terminar, Lázaro acrescentou à ordem de libertação a assinatura do procurador-geral da República, que ele copiou facilmente de uma circular colada à parede da sala.

- Você fez o seu trabalho? - perguntou a Thomas quando voltou.

- Estive ensaiando toda a tarde.

Estava combinado que Thomas se apresentaria em vez de Lázaro, logo que a ordem de livramento chegasse à secretaria da prisão e chamassem o ”detento Alcoba”. Para isso era necessário que Thomas ficasse parecendo, o mais possível, com Lázaro, tarefa difícil, levando em conta o aspecto físico do corcunda. Assim sendo, Lázaro exigia ensaios diários.

Thomas colocou bolinhas de pão entre as gengivas e as bochechas, o que lhe deu a aparência de um hamster. Depois ensaiou o tique de torcer a boca. Atrapalhado pelo pão, tentava imitar a voz do corcunda.

- Pare de balbuciar, menino! E que espécie de tique é esse? Está levantando demais os cantos da boca. - Lázaro apontou para a sua própria boca. - O meu tique é assim. Não levanto tanto os lábios!

- É impossível. - Thomas tentava imitar o tique retorcendo a boca. - Estes raios de bolinhas de pão estão atrapalhando!

- Sem pão não há bochechas caídas. Faça um esforço e conseguirá o tique certo.

Thomas enxugou o suor da testa.

- Não tenho sorte com essa sua papa dentro da boca.

- É preciso um pouco de paciência, você está apenas começando a tentar! Agora vamos flambar os seus cabelos.

- Flambar?

- Você pensa que vão nos emprestar tesoura e navalha, aqui na prisão?

- Mas eu não agüentarei isso - gemeu Thomas.

- Não diga bobagens. Vamos, ensaie! Faça-se menor! Vista a minha capa para ver quanto deve curvar os joelhos. Pegue este travesseiro. Fabrique uma corcunda razoável. E não me incomode mais, preciso obter informações.

- Para quê?

- Para saber quem tem uma carta do procurador da

República, a fim de que possa imitar o carimbo.

Enquanto Thomas vestia a velha capa do corcunda e tentava aprender a coxear, com os joelhos dobrados, andando de um lado para outro da cela, Lázaro começou a bater na parede com um sapato. Usava o mais simples dos códigos: a, uma pancada; b, duas pancadas; c, três pancadas; depois d, quatro pancadas; e, cinco pancadas; f, seis pancadas; depois g, sete pancadas; h, oito pancadas; i, nove pancadas, e assim por diante.

Lázaro bateu a sua pergunta e depois esperou a resposta enquanto olhava para Thomas, que ensaiava a voz, o tique e o andar com os joelhos dobrados.

Uma hora depois o detento da cela vizinha começou a bater na parede. Lázaro ouviu a mensagem e sacudiu a cabeça.

- No terceiro andar há um sujeito chamado Maravilha. Tem uma carta do procurador negando um pedido de liberdade provisória. Ele a guarda como lembrança. A carta tem um carimbo.

- Ótimo. Ofereça-lhe uma semana de boa comida - balbuciou Thomas, torcendo a boca para aprender o tique.

O mês de novembro de 1940 foi muito quente. Podia-se tomar banho de mar no Atlântico e bronzear a pele no Estoril - contanto que vestido com a decência prescrita pelas autoridades portuguesas. Para os homens a polícia exigia calção e camisa, para as mulheres as exigências eram ainda mais severas.

No dia 9 de novembro de 1940, cerca do meio-dia, um cavalheiro de aspecto taciturno e pernas curvas como sabres turcos alugou, na praia, um aparelho chamado ”gaivota” e que consistia em dois flutuadores ligados levando no meio um assento e dois pedais, que acionam uma roda de pás. Fazendo força com as pernas, o homem pedalou para o largo.

Esse cavalheiro, que andava pelos cinqüenta anos, vestia uma roupa de banho escura e usava chapéu de palha. Depois de pedalar durante um quarto de hora, avistou ao longe uma outra ”gaivota” que as ondas do Atlântico faziam balançar.

Rumou para ela. Mais um quarto de hora fazendo força nos pedais e já se aproximara o suficiente para reconhecer o tripulante da segunda ”gaivota”, que se parecia com ele como se fosse um parente próximo.

- Até que enfim - disse o outro cavalheiro, que vestia roupa de banho preta. - Pensei que não viria mais.

O cavalheiro de castanho-escuro encostou a sua ”gaivota” à outra.

- Pelo telefone o senhor disse que se tratava de uma questão de vida ou de morte. Foi por isso que vim.

- Não tenha receio, comandante Loos - disse o homem de preto -, ninguém pode ouvir a nossa conversa. Aqui não há microfones. Idéia genial a minha, hein?

O cavalheiro de castanho o olhou friamente.

- Genial. Que quer de mim, Mr. Lovejoy?

- Fazer-lhe uma proposta - disse suspirando o agente do Serviço Secreto britânico. - Trata-se desse Thomas Lieven...

- Foi exatamente o que pensei! - O oficial da Abwehr sacudiu, com raiva, a cabeça.

- O senhor o persegue - disse Lovejoy. - Ele o embrulhou. Eu também fui embrulhado... Somos inimigos, é verdade. Supostamente devemo-nos detestar um ao outro. Apesar disso, comandante, proponho que cooperemos neste caso particular.

- Cooperemos?

- Comandante, exercemos a mesma profissão. Faço um apelo à nossa solidariedade profissional. O senhor não concorda que é o cúmulo aparecer um amador, sem experiência, um impertinente que prejudica os preços, nos torna ridículos e age como se fôssemos zeros à esquerda?

- Estou arriscado a ser demitido por causa desse tipo - disse o comandante, com ar sombrio.

- E eu? - disse Lovejoy com raiva. - Se eu não o levar para Londres, serei transferido para a guarda territorial. O senhor sabe o que isto significa? Tenho mulher e filhos, comandante. O senhor também, certamente.

- Minha mulher pediu divórcio.

- É verdade que não ganhamos grande coisa, mas devemos deixar que esse indivíduo estrague as nossas carreiras?

. Se ao menos eu o tivesse deixado nas garras da Gestapo, naquela ocasião! Agora ele desapareceu.

. Ele não desapareceu.

- Quê?

Ele está na prisão.

- Mas...

Eu explicarei. Ele não ficará preso eternamente.

Dei uma gorjeta a um funcionário da administração para que me previna logo que ele seja solto. - Lovejoy ergueu os braços para o ar. - Mas que acontecerá então? Será a eterna história que recomeçará, entre mim e o senhor. São os iates, os submarinos, o clorofórmio e os revólveres! Comandante, comandante, vou ser absolutamente franco com o senhor: eu não agüento mais este gênero de vida.

- E acredita que ela seja boa para o meu fígado?

- Daí a minha proposta: colaboremos. Logo que ele sair da cadeia sofrerá um acidente. Tenho um homem à espera para... o senhor bem sabe... este serviço sujo. Dessa forma poderei dizer em meu país que foram os alemães os responsáveis e o senhor dirá ao seu almirante que os ingleses é que fizeram a limpeza. O senhor não será chamado para o front nem eu para a guarda territorial. Que pensa o senhor?

- Está bom demais para ser verdade... - O comandante suspirou profundo. Subitamente:

- Tubarões! - disse ele, quase sem voz.

- Não!

- Lá adiante. - Loos ficou estático. Cortando as águas azuis, duas nadadeiras dirigiam-se rapidamente para eles. Depois três. Depois cinco.

- Estamos perdidos - disse Lovejoy.

- Tenha calma - ordenou o comandante. - Fique imóvel.

O primeiro peixe os alcançou, passando sob as ”gaivotas” e levantando-as como se fossem um brinquedo. As ”gaivotas” saltaram para o ar e caíram na água, os flutuantes estalando e jogando violentamente. Um outro animal aProximou-se e os ergueu novamente.

O comandante, atirado ao ar, fez um belo vôo.

Afundou, voltou à superfície e tratou de flutuar de costas Com a boca escancarada, um grande peixe passou perto dele sem prestar atenção. Versado em zoologia, o comandante fez uma constatação tranqüilizadora.

Depois, ouviu um grande berro e viu o seu colega britânico voar pelos ares e amerissar ao seu lado.

- Escute aqui, Lovejoy, não são tubarões, são golfinhos.

- Gol... gol... gol...

- Sim. Estamos no meio de um cardume... Os golfinhos não atacam os homens, só querem é brincar.

Foi realmente o que fizeram. Com enorme rapidez traçavam círculos em volta dos dois homens, saltando por cima deles e fazendo jorrar jatos de água e espuma.

Os agentes inimigos agarraram-se a um dos flutuadores da ”gaivota” virada de Lovejoy e tentaram dirigir-se para a praia.

- Não posso respirar - arquejou Lovejoy. - Que me estava dizendo, Loos?

Um enorme golfinho ergueu-se por trás do comandante e saltou elegantemente por cima dele, mergulhando-o num pequeno dilúvio. O comandante cuspiu uma boa quantidade de água salgada.

- Eu dizia - gritou ele ao ouvido de Lovejoy - que eu tenho grande vontade de liquidar, pessoalmente, aquele sujo, quando ele sair.

Em Portugal come-se pouca batata. Entretanto, Francisco arranjou algumas magníficas para os ricos detentos Leblanc e Alcoba que queriam batatas en robe de chambre para o almoço do dia 15 de novembro.

De acordo com as ordens recebidas, Francisco cozinhou as batatas com casca, até que estivessem meio cozidas. Levou-as, bem quentes, ao quinto andar, onde as serviu aos senhores Leblanc e Alcoba juntamente com sardinhas portuguesas com azeite e vinagre. Seguindo as instruções dos detentos, cortou as batatas ao meio, com uma afiada faca.

Uma vez sós, os dois homens não prestaram atenção à comida. Thomas tinha trabalho a fazer. Sobre uma pequena mesa junto à janela colocou, lado a lado, a ordem de livramento batida a máquina por Lázaro e a carta dirigida ao detento Maravilha. Esta última tinha o carimbo do procurador da República.

Sob os olhares interessados do corcunda, Thomas começou a trabalhar, lembrando-se das lições preciosas de Reinaldo Pereira, pintor e falsário.

Thomas pegou uma metade de batata, ainda quente, e colocou-a sobre o carimbo da justiça. Depois de um quarto de hora retirou a batata, que tinha, ao inverso, a cópia exata do carimbo.

- O mais difícil ainda está por fazer. - Por força do hábito disse isto meio balbuciante e com os cantos da boca repuxados por um tique nervoso. Havia dois dias que não controlava os seus reflexos. Não se pode balbuciar e torcer a boca impunemente durante uma semana. - Dê-me a vela, Lázaro.

De sua enxerga o corcunda retirou uma vela e uma caixa de fósforos que roubara do escritório do chefe dos guardas. Vela e fósforo ainda serviriam para fazer desaparecer os cabelos de Thomas.

Lázaro acendeu a vela. Com os dentes, Thomas cortou, com grande cuidado, a parte inferior da batata. Depois passou a batata sobre a chama para reaquecê-la.

- É o que os especialistas chamam ”fazer o molde”

- explicou Thomas a Lázaro, que estava cheio de admiração. - Macacos me mordam! Terei algum dia a ocasião de contar isto no meu clube? A batata está reaquecendo. Veja como a marca do carimbo está novamente úmida. Diz-se que ela ”torna a viver”. Mais alguns segundos e agora... - Com gesto hábil Thomas colocou o lado da batata que continha o ”molde” sobre a ordem de livramento, no local exato destinado ao carimbo. Mantendo uma ligeira pressão com os dedos, deixou que a batata esfriasse, durante um quarto de hora. Depois, retirou-a. O documento ostentava uma réplica exata do carimbo.

- Fantástico - disse Lázaro.

- Agora vamos comer, depressa - disse Thomas.

- Depois nos ocuparemos do resto.

O resto foi o seguinte: trabalhando na sala dos chefes dos guardas, Lázaro, no decorrer da manhã, abrira vários envelopes provenientes de diversos departamentos judiciários.

Era o que fazia todos os dias. Nessa manhã ele abrira, com a maior cautela, um envelope que não estava bem colado. Conseguira, assim, um envelope em perfeito estado. Levou consigo o envelope e um tubo de cola.

Depois do almoço, Thomas dobrou, cuidadosamente a ordem de livramento de Lázaro Alcoba e colocou-a no envelope verde, que tinha o carimbo dos correios com a data da véspera, e colou novamente o envelope. Durante a tarde ’Lázaro enfiou o envelope entre os outros que chegaram com a entrega vespertina de correspondência destinada ao chefe dos guardas.

- O negócio começou a correr, meu garoto - disse o corcunda a Thomas, quando regressou à cela. - O chefe dos guardas já mandou a minha ordem de livramento ao encarregado dos registros. Amanhã eles prepararão o boletim competente e, segundo a minha velha experiência, virão procurar-me por volta de onze horas. Isto significa que é preciso fazer, esta noite, a operação nos seus cabelos.

A operação de queima dos cabelos durou apenas meia hora - é verdade que foi a pior meia hora da vida de Thomas Lieven. Com a cabeça abaixada, sentou-se diante de Lázaro, que lhe flambou o crânio como quem sapeca uma ave depenada. Com a mão direita, Lázaro segurava a vela cuja chama destruía os cabelos até perto das raízes. Com a mão esquerda, empunhava um pano molhado. Rápido como um raio, aplicava o pano à pele, para evitar queimaduras. Muitas vezes, porém, a própria velocidade do raio foi pequena...

Thomas gemia de dor.

- Tenha cuidado, imbecil!

- Quem quer a liberdade deve fazer por merecê-la - replicou Lázaro, aludindo a um velho ditado português.

Afinal, a sessão de tortura acabou.

- Agora estou com cara de quê? - perguntou Thomas, exausto.

- Com pão nas bochechas e um bom tique, você parece ser meu irmão - disse Lázaro, cheio de orgulho.

Na manhã seguinte um guarda desconhecido trouxe o café.

Era sábado, dia 16, e, como já o dissemos, o sábado era o dia de folga do bom Julião.

O corcunda apanhou, perto da porta, a bandeja com o café. Thomas roncava, com a cabeça coberta.

Depois do café, Lázaro engoliu três comprimidos brancos e foi deitar-se na cama de Thomas. Thomas vestiu a capa do corcunda e, das oito às dez, procedeu a um ensaio geral privado. Depois disso conservou definitivamente os pedaços de pão na boca e o travesseiro entre as costas e a camisa. O travesseiro estava bem amarrado para impedir que escorregasse. Enquanto esperava ia treinando o tique dos lábios...

O guarda desconhecido voltou às onze horas. Lázaro dormia, com a cabeça debaixo da coberta. O guarda tinha na mão um boletim de livramento.

- Lázaro Alcoba!

Thomas levantou-se, mantendo os joelhos vergados, piscou, e retorceu a boca.

- Presente - balbuciou.

O guarda examinou-o, com atenção. Thomas sentia o suor escorrer.

- Lázaro Alcoba é você?

- Sim.

- Por que é que seu companheiro está roncando tanto?

- Ele passou mal a noite - disse Thomas com voz pouco inteligível. - De que se trata, chefe?

- Você está solto.

Thomas levou a mão ao coração, gemeu e caiu sentado sobre o catre. Parecia estonteado.

- Eu sempre soube que a justiça acabaria vencendo - balbuciou ele.

- Não comece a fazer cenas e acompanhe-me. Vamos!

O guarda puxou-o para que se erguesse. Quase que Thomas se ergueu demais. Rapidamente, curvou os joelhos. ”Puxa, como isto dói e é incômodo. Felizmente não vai durar muito.” Ao longo dos compridos corredores, seguiu o guarda até a ala da prisão onde estava a administração. Antes e depois de sua passagem abriam-se e fechavam-se pesadas grades de ferro.

”O tique vai bem, virou automático, mas os joelhos dobrados... Deus queira que eu não tenha uma câimbra e que não caia de cara no chão Subir escadas, descer escadas, eu não agüento mais.” Mais corredores. O guarda fitou-o.

- Você está com calor, Alcoba? Está suando. Tire essa capa, homem.

- Não, não, obrigado. É... é o nervoso. Eu estou é com frio.

Chegaram finalmente à sala de registro das entradas e saídas da prisão. Uma balaustrada de madeira dividia a sala em duas partes. Atrás da balaustrada estavam três funcionários. Diante da balaustrada estavam dois outros presos que também iam sair. Thomas fez duas constatações: os funcionários eram indolentes e do outro lado da balaustrada não havia onde sentar. ”Isto está prometendo”, pensou ele, angustiado. Um relógio, na parede, indicava a hora: onze e dez.

Faltavam cinco minutos para o meio-dia e os funcionários ainda não tinham terminado com os outros dois detentos. Thomas sentia como se rodas de fogo girassem diante de seus olhos. Os joelhos lhe doíam tanto que sentia que ia desmaiar, a qualquer momento. E não eram somente os joelhos que doíam: as pernas, as coxas, os tornozelos e os quadris doíam terrivelmente. Discretamente, apoiou um cotovelo sobre a balaustrada, depois o outro. ”Deus, que alívio, que volúpia!”

- Eh! - gritou o mais baixo dos funcionários. - Você aí. Tire os braços da balaustrada. Não pode ficar numa posição decente, por alguns minutos? Súcia de vagabundos.

- Peço perdão, cavalheiro - disse Thomas humildemente. Retirou os braços do balaústre. De repente caiu no chão. ”Não perder os sentidos”, pensou ele desesperado, ”não perder os sentidos. Se isso acontecer eles me retirarão a capa e descobrirão tudo: as pernas, a corcova.”

Não perdeu os sentidos. Como julgassem que a fraqueza súbita do pobre detento fosse causada pelo seu estado de nervos, deram-lhe mesmo uma cadeira. Sentou-se, pensando: ”Poderia ter tido esse negócio antes. Sou um cretino!”

Ao meio-dia e meia, dois dos funcionários foram alnoçar.

O terceiro ocupou-se, finalmente, de Thomas. Meteu um formulário na máquina de escrever.

- Uma simples formalidade - disse ele delicadamente. - Sou obrigado a anotar os seus sinais característicos. Para evitar confusões.

”Preste muita atenção”, pensava Thomas. Depois que se sentara, sentia-se melhor e mentalmente alerta. Declarou tudo sobre o seu amigo, conforme decorara: Alcoba, Lázaro, solteiro, católico, nascido em Lisboa no dia 12 de abril de 1905...

- Último domicílio?

- Rua da Pampulha, 51.

O funcionário comparou esses dados com os que figuravam num outro impresso e continuou a escrever: cabelos grisalhos, muito ralos.

- Você ficou calvo muito moço.

- Tenho tido muitos aborrecimentos.

- Hum. Olhos castanho-escuros. Altura? Levante-se. Thomas ergueu-se, mantendo os joelhos dobrados. O

funcionário o examinou.

- Sinais especiais?

- A corcunda e, além disso, no rosto... -- Sim, sim, está bem. Hum. Pode sentar-se.

O funcionário escreveu. Depois levou-o a uma sala anexa e entregou-o ao encarregado dos objetos pessoais. Como um simples indiciado, haviam permitido que ele conservasse a roupa que vestia e seu querido relógio de repetição. Agora, entregaram-lhe o passaporte e os documentos de identidade do seu amigo, bem como o dinheiro, o canivete e a maleta de Lázaro.

- Assine o recibo - disse o encarregado. Com mão desajeitada Thomas assinou: ”Lázaro Alcoba”.

”Agora, todo o meu dinheiro e o meu belo passaporte falso, com o nome de Jean Leblanc, foram para o inferno”, pensou ele, com tristeza. ”É preciso que o meu amigo, o pintor, fabrique um novo passaporte.”

Às catorze horas e quinze minutos Thomas se felicitava de haver, finalmente, terminado com os seus tremendos esforços, mas estava enganado.

Através de infindáveis corredores, levaram-no ao capelão da prisão. O velho padre falou-lhe com muito sentimento e ficou emocionado quando o preso liberado pediu - visivelmente transtornado para ouvi-lo ajoelhado. Mais morto que vivo Thomas Lieven arrastou-se, às três menos dez, hora portuguesa, e cambaleante atravessou o pátio da prisão onde se espalhava o odor fétido do curtume vizinho. Na porta, teve que mostrar, mais uma vez, os documentos. Seu tique nervoso era assustador. Sua corcunda desenhava um ângulo agudo sob a capa surrada.

- Felicidades, meu velho - disse o homem que abriu a pesada porta de ferro. Thomas passou por ela e tomou cambaleante o caminho de uma liberdade mais que incerta. Teve forças para dobrar a primeira esquina. Depois, caiu novamente no chão, e, engatinhando, alcançou um portão e sentou-se num degrau de escada. A raiva e o esgotamento fizeram-no chorar desabaladamente. Não tinha mais passaporte. Não tinha mais dinheiro. Não tinha mais fortuna. O navio já partira.

A evasão do detento Jean Leblanc foi descoberta na mesma noite. Na cela, o guarda só encontrou o detento Lázaro Alcoba, que dormia sono de chumbo.

Um médico, chamado às pressas, verificou que Alcoba não estava fingindo dormir, mas que lhe haviam dado um forte soporífero. O diagnóstico estava certo, apenas o próprio Lázaro é que havia tomado, voluntariamente, três comprimidos que subtraíra à enfermaria...

Com algumas injeções e xícaras de café forte conseguiram despertá-lo, até certo ponto, e interrogá-lo. Que se tratava de Alcoba e não de qualquer outro ficou patenteado quando despiram o homenzinho: a corcunda era a prova cabal.

- Esse canalha do Leblanc - disse Alcoba - botou alguma droga no meu café. Estava mesmo com um gosto meio amargo. Senti dores de cabeça, tive vertigens e, depois, não sei mais nada. Tinha contado a ele que seria liberado hoje. Foi o chefe dos guardas, para quem trabalho, que me deu a notícia.

 

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           PÃO MOSAICO

           TOMATES RECHEADOS

 

16 de novembro de 1940

Pratos frios para ânimo esquentado.

Pão mosaico - Use um pão de forma, misto ou branco. Corte-o ao meio, no sentido longitudinal, e retire todo o miolo, usando para isso um garfo e tendo todo o cuidado de não estragar a casca ou côdea.

Para o recheio, empregue: cento e vinte e cinco gramas de manteiga, cem gramas de presunto, dez gramas de língua de boi (já cozida), uma gema de ovo duro, setenta e cinco gramas de queijo, meia colher das de café de alcaparras, vinte e cinco gramas de pistache, algumas anchovas, mostarda, sal e pimenta-do-reino.

Bata a manteiga, esmague a

gema, pique os pistaches e as alcaparras, corte o resto em pequenos cubos, junte os temperas e misture tudo. Ponha a massa dentro do pão cortado, apertando bem. Leve o pão recheado ao refrigerador, deixe durante várias horas e depois corte em fatias finas e sirva num prato enfeitado com tomates recheados a fim de realçar, ainda mais, o colorido. Tomates recheados - Retire a polpa de bons tomates, polvilhe o interior com queijo ralado e coloque, em cada um, meio ovo duro. Junte sal, pimentão doce e cubra com salsa e cebolinha bem picadinhas.

- Mas eu falei com você - gritou o guarda de dia, quando acareado com Alcoba - quando trouxe o café da manhã. E, mais tarde, foi você que eu vim buscar.

- Se você me tivesse vindo buscar esta manhã

disse Alcoba, com um raciocínio que impressionou aos que o inquiriam - eu não estaria aqui esta noite.

Tornou-se evidente que Jean Leblanc se evadira sob a identidade de Alcoba. Este último, que ainda bocejava violentamente com o efeito da droga ingerida, prosseguiu no seu raciocínio com uma lógica implacável.

- A ordem de livramento é para mim. Quero ser solto imediatamente.

- Sim, hum! certamente, mas enquanto durar o inquérito...

- Escutem aqui - gritou Alcoba -, ou me soltam amanhã de manhã ou vou queixar-me ao procurador sobre o que se passa aqui.

- Pereira! Eh, Pereira! - gritava Thomas, batendo à porta do atelier de seu amigo, o falsário. Nada de resposta.

”Ou ele está bêbado ou não está em casa”, pensou Thomas que já estava quase restabelecido do seu ataque de fraqueza. Lembrou-se de que o pintor boêmio nunca fechava a porta a chave. Girou a maçaneta e a porta se abriu. Entrou no atelier onde a enorme janela deixava entrar os últimos raios de sol do dia. As mesmas horríveis telas estavam espalhadas por toda parte. Ninguém havia feito uma limpeza no local. Cinzeiros cheios, tubos de tinta, pincéis, penas e palhetas feriam os olhos pela multiplicidade de cores.

Thomas foi até a cozinha. O barbudo também não estava ali. Logo, não estava em casa e deveria estar bêbado em qualquer lugar.

Era um transtorno. Durante quanto tempo Pereira ficava bêbado? Uma noite? Dois, três dias? Pelo que Thomas sabia do pintor, devia esperar o pior. Um bom porre costuma durar muito.

”Sou obrigado a esperar pelo Pereira”, raciocinou Thomas. ”Talvez já tenham descoberto a minha fuga; não posso aparecer na rua.” Subitamente, levou a mão ao estômago.

Estava com fome. A fase pior da sua depressão parecia haver passado. Riu de sua própria sorte. Ao fazer isso notou que o tique de torcer os lábios ainda continuava. Seus joelhos ainda doíam. ”Não pensemos mais nessas coisas, e preciso não pensar mais. Vejamos o que há na cozinha do Pereira. Pão, tomates, ovos, presunto, língua, pistaches, alcaparras, pimentões, pimenta-do-reino e anchovas.”

As cores dos comestíveis estimularam a imaginação de Thomas. ”Vou fazer um pão mosaico e tomates recheados. Haverá bastante para o Pereira. Quando ele voltar, terá necessidade de comer...”

Thomas começou a trabalhar. Quando picava pistaches e alcaparras, teve um gesto violento batendo, com toda a força, com a faca sobre a tábua. Subitamente, ele pensara em Estrella. ”Essa estúpida! Essa feiticeira! Essa diaba!” Picando pistaches, Thomas estava em pensamento decapitando Estrella.

O avermelhado da pimenta-do-reino aumentou-lhe a cólera. ”O mundo inteiro está coligado contra mim. Só tenho inimigos. Que fiz eu para isso? Eu era um homem honesto, um bom cidadão. E agora... Botemos pimentado-reino, muita pimenta. Quero que fique queimando como o ódio que está dentro de mim.

”Ah, senhores agentes secretos, súcia de cafajestes! A que me reduziram vocês? Fui para a cadeia. Fugi da cadeia. Sei falsificar documentos. Sei usar veneno, revólver, tinta invisível. Sei atirar, ler o código Morse, sei judô, boxe, luta, aprendi a correr, saltar, camuflar microfones, simular icterícia, febre, diabete. Serão estes os conhecimentos de que se possa orgulhar um banqueiro?

”Nada de piedade por pessoas nem por coisa nenhuma. Agora terminou. Agora estou cheio. Agora vocês vão ver. Todos. O mundo inteiro.

”Cairei sobre vocês como um lobo esfaimado e com a minha ciência de criminoso. Agora eu é que farei as falsificações, que enviarei mensagens pelo rádio, que ocultarei microfones. Eu é que os ameaçarei, eu é que abusarei de vocês como vocês abusaram de mim e me ameaçaram. É a minha guerra pessoal. A guerra de um homem contra todos. Não haverá tréguas, nem tratados, nem alianças... com ninguém.

”Mais pimenta-do-reino, mais pimentão.. Um pouco mais de sal. E agora vou amassar tudo como gostaria de fazer com vocês todos, seus sujos...”

A porta do atelier bateu.

”Chegou o Pereira”, disse Thomas a si mesmo, saindo das suas divagações.

- Venha até aqui - gritou ele. - Estou na cozinha.

Uma pessoa apareceu à porta. Não era o pintor barbudo e beberrão. Não era nem mesmo um homem. Era uma mulher.

Ela vestia um casaco de couro vermelho, tinha sapatos vermelhos e um gorro vermelho do qual saíam cabelos escuros, com reflexos azulados. A boca da jovem mulher era grande e vermelha, os olhos, grandes e negros. A cor do rosto era muito clara. Com as mãos metidas nos bolsos ela examinou Thomas com atenção. Sua voz tinha um timbre metálico e um pouquinho de vulgaridade:

- Boa noite, Pereira. Não me conhece?

- Eu... - começou Thomas, mas ela o interrompeu com um movimento-autoritário de cabeça que fez sacudir seus lindos cabelos.

- Fique tranqüilo. Não sou ”tira”. Ao contrário. ”Ela está pensando que sou o Pereira”, disse Thomas

para si mesmo.

- Quem... - gaguejou ele - lhe deu o endereço?

- Que há com você? Nervos? Cocaína? Bebida?

- Por que diz isto, por favor?

- Você tem um focinho que dança shimmy!

- Isto vai passar. Acon... acontece algumas vezes, à noite. Perguntei quem lhe deu o endereço.

A mulher de vermelho veio para muito perto dele. O seu perfume era muito bom. E ela era muito bonita.

- O endereço - disse ela em voz baixa - foi um certo M. Débras que me deu.

”O comandante Maurice Débras, do Deuxième Bureau”, pensou Thomas, apavorado. ”Só faltava isso. Minha terceira vítima. Evidentemente isso teria que acontecer. Agora são três a me perseguir: francês, inglês e alemão. Sou um homem liquidado. É uma questão de horas...”

Thomas teve, subitamente, a impressão de que a voz da mulher de vermelho vinha de muito longe. Seus olhos viam apenas uma silhueta indistinta. E a pergunta seguinte confirmou os seus piores temores.

- Conhece um certo Jean Leblanc?

Thomas fez uma barulheira com frigideiras e talheres. Depois, murmurou de forma quase inteligível:

- Jean Leblanc? Não conheço.

- Não me venha contar histórias, Pereira. É evidente que conhece. - A bela morena sentou-se num banco da cozinha e cruzou as pernas longas e finas. - Você não se vai sujar de medo, não é?

”Como esta mulher está me tratando”, pensou Thomas. ”Minha situação é humilhante, terrivelmente humilhante. Terei eu merecido isto? Eu, o mais jovem banqueiro de Londres? Eu, sócio de um dos mais seletos clubes ingleses? Eu, um homem honrado, bem-educado e de boas maneiras... Aqui estou, numa suja cozinha portuguesa, permitindo que uma rapariga muito bonita diga que eu não devo sujar as calças. Você não perde por esperar.”

- Pare com essa matraca, boneca - disse o homem de boas maneiras -, e trate de cair fora se não quiser ter encrencas!

Segundos depois a cena mudou completamente. Soaram passos e um homem barbudo, vestindo calça de veludo coberta de manchas e suéter preto todo deformado, apareceu na cozinha. O homem estava completamente embriagado. Mas logo que viu Thomas a sua grande cara de bêbado iluminou-se num sorriso.

- Que seja bem-vindo à minha modesta casa! Mas, meu amigo, que fizeram com os seus cabelos?

Reinaldo, o pintor, tinha voltado para casa.

Subitamente, havia três pessoas falando ao mesmo tempo na cozinha. A mulher de vermelho levantou-se, com um salto, e olhou fixamente para Thomas.

- Como? - gritou ela. - Então você não é o Pereira?

- Claro que ele não é o Pereira - exclamou, por sua vez, o artista beberrão. - Você está de pileque ou coisa parecida? Pereira sou eu! Ele é...

- Feche o bico!

-... meu velho amigo Leblanc.

- Ah!

- E você... hic... bela mulher, quem é?

- Chamo-me Chantal Tessier - disse a mulher, sem tirar os olhos de Thomas. Seu olhar felino tinha uma expressão de grande interesse. - M. Jean Leblanc, em pessoa? - disse ela lentamente. - Que feliz coincidência!

- Que quer você de mim?

- Certa vez você arranjou um passaporte falso para o seu amigo Débras. Foi ele que me disse: ”Se algum dia você precisar de um passaporte falso, procure o Reinaldo Pereira, Rua do Poço dos Negros, e diga que vem da parte de Jean Leblanc...”

- Foi isso que disse o seu amigo Débras?

- Foi o que disse o meu amigo Débras.

- E foi apenas isso que ele disse?

- Disse mais, que você era um sujeito formidável e que lhe tinha salvo a vida.

”Bom”, pensou Thomas, ”as coisas não estão tão más quanto eu pensava.”

- Quer jantar conosco, Mile Tessier? - perguntou amavelmente. - Permita que eu tire a sua capa.

- Para você o nome é Chantal! - O rosto felino sorria, deixando ver uma bela dentadura de animal carnívoro. Chantal Tessier tinha altivez, astúcia e cabeça fria. Mas, visivelmente, não estava acostumada a que um homem a ajudasse a tirar a capa.

O animal carnívoro vestia uma saia preta, muito justa, e uma blusa branca. ”Oba, oba!”, pensava Thomas, ”que silhueta! Aí está uma que não molha os pés quando chove.”

O momento de perigo havia passado. Thomas voltava a ser ele mesmo. Quer dizer: bem-educado e cavalheiresco com as mulheres. Com qualquer tipo de mulher.

Sentaram-se ao lado do beberrão, que já havia começado a comer, com as mãos, e falava com a boca cheia.

- Se eu soubesse pintar como você sabe cozinhar, o Goya não seria, em comparação, mais que um simples borrador de telas (arrotou). Você botou pis... pistaches nesse negócio?

- Botei. E também alcaparras. Você poderia pôr a mão diante da boca!

Então você precisa de um passaporte, Chantal?

Não. - Neste momento os seus olhos pareciam ligeiramente embaciados e a narina esquerda tinha um leve tremor. Este fenômeno lhe sucedia habitualmente. - Não é de um passaporte que eu preciso, mas de sete passaportes.

- Posso fazer uma observação? - perguntou o pintor barbudo, falando com a boca cheia.

- Engula antes de falar - disse Thomas, severamente. - E acabe com essas interrupções a toda hora. Trate de melhorar, um pouco, da bebedeira. E para quem perguntou à bela gata - precisa você de sete passaportes, Chantal?

- Para dois alemães, dois franceses e três húngaros.

- Você parece ter relações muito cosmopolitas.

- Não é nada de admirar - disse Chantal, sorrindo -, porque a minha profissão é servir de guia a estrangeiros.

- E para onde leva os seus passageiros?

- Da França para Portugal, passando pela Espanha. É um trabalho que rende.

- Quantas viagens faz?

- Uma por mês. Viajamos em grupos. Eles têm passaporte ou não têm, depende...

- Por falar em passaporte... - disse o pintor. Mas Thomas fez sinal com a cabeça para que se calasse.

- Só aceito clientes ricos - explicou Chantal. - Cobro caro. Em compensação, ninguém que viajou em minha companhia foi preso. Conheço a fronteira palmo a palmo. Conheço todos os guardas das alfândegas. Bem. Na última fornada trouxe sete tipos que precisam de passaportes. - Ela empurrou o pintor com o cotovelo. - É a ocasião de ganhar uma boa erva, papai.

- Eu também preciso de um passaporte -- disse Thomas.

- Santa Virgem! - exclamou o pintor. - Justamente quando não os tenho.

- Dos trinta e sete que eu trouxe... - disse Thomas encolerizado.

- Trouxe? Trouxe, quando? Há seis semanas. Que está pensando! Ao fim de quinze dias não tinha mais nenhum.

Sinto muito, mas não tenho nem um pedacinho de passaporte. Nem um único. É o que estava tentando explicar, ainda há pouco.

As Pastelarias Marques tinham várias pequenas casas de chá, muito freqüentadas pelas senhoras, no Largo do Chiado. Uma praça agradável, ladeada de árvores centenárias. Os seus doces eram muito afamados. Na tarde de 16 de novembro de 1940 dois homens estavam sentados num recanto da Confeitaria Caravela. Um bebia um uísque, o outro saboreava um sorvete com creme chantilly. O bebedor de uísque era o agente britânico Peter Lovejoy. O que tomava o sorvete, um gigante, gordo e com uma cara rosada de criança, chamava-se Luís Gusmão.

Peter Lovejoy e Luís Gusmão já se conheciam havia dois anos. Várias vezes tinham cooperado com bom êxito...

- Chegou o momento - disse Lovejoy. - Soube que ele conseguiu evadir-se, hoje.

- Então temos que andar depressa se quisermos pegá-lo ainda em Lisboa - disse Gusmão.

Levou uma colherada à boca e estalou os lábios. Ele adorava sorvete com chantilly e nunca tomava tanto quanto gostaria.

- Justamente - disse Lovejoy, em voz baixa -, como pretende agir?

- Um revólver com um silenciador, creio eu. E o dinheiro? Trouxe-o com você?

- Sim. O senhor receberá cinco mil escudos agora e outros cinco mil quando... isto é, depois.

Lovejoy sorveu um grande gole de uísque. ”Ele me deu cinco mil escudos. Participa do negócio, esse Loos, esse ”belo” oficial. Mas quando chegou a hora de falar com o Gusmão, esquivou-se. Para isso ele é demasiado importante.”

Lovejoy fez diminuir a raiva que tinha do alemão metido a escrupuloso sorvendo mais um bom gole de uísque.

- Preste atenção, Gusmão - disse ele a seguir. - Para fugir da prisão Leblanc disfarçou-se num tal Lázaro Alcoba.

O Alcoba é corcunda, pequeno e quase completamente calvo.

Lovejoy fez uma detalhada descrição de Alcoba, tal como lhe havia transmitido o seu homem de confiança da prisão.

- Leblanc sabe que os ingleses e os alemães estão no seu encalço. É evidente que tentará achar um esconderijo.

- E onde poderá ser?

- Ele tem um amigo, uma espécie de pintor beberrão, que mora na Rua do Poço dos Negros, 16, na cidade velha. Aposto que irá para lá. Ou continuará disfarçado em corcunda, porque tem medo de nós, ou então volta a transformar-se em Jean Leblanc, com medo da polícia.

- E qual é o aspecto de Jean Leblanc?

Lovejoy descreveu Jean Leblanc, com a máxima exatidão.

- E o verdadeiro corcunda?

- Não se preocupe com ele, continua nas grades. Se você encontrar na Rua Poço dos Negros um corcunda quase sem cabelos e que tenha qualquer reação ao ouvir o nome de Leblanc, não será necessário fazer qualquer pergunta mais...

No dia 17 de novembro de 1940, poucos minutos depois das oito da manhã, Lázaro Alcoba, onze condenações, solteiro e nascido em Lisboa, no dia 12 de abril de 1905, foi levado à presença do diretor da prisão do AIjube.

- Alcoba - disse o diretor, um homem alto e magro -, segundo ouvi, você ontem à noite pronunciou algumas ameaças.

Enquanto respondia, a boca do pequeno corcunda era repuxada pelo tique nervoso.

- Apenas reclamei os meus direitos, senhor diretor, quando me disseram que eu não seria solto, sob a alegação de que tinha alguma culpa na evasão desse Jean Leblanc.

- Eu tenho a convicção de que você realmente tem alguma culpa. Segundo ouvi, você pretenderia dirigir-se ao procurador da República?

- Somente no caso de não me soltarem, senhor diretor.

Afinal de contas, não foi por minha culpa que esse Leblanc evadiu-se usando meu nome!

- Escute aqui, Alcoba, você será posto em liberdade hoje... não porque tenhamos medo do que possa fazer, mas porque existe, de fato, uma ordem de livramento. Você terá que se apresentar, diariamente, ao comissário do distrito onde estiver morando e não poderá sair de Lisboa.

- Perfeitamente, senhor diretor.

- E pare de rir como um idiota, Alcoba. Você é um caso perdido. Estou certo de que muito breve estará aqui de volta. Seria bem melhor que não saísse da prisão. O lugar de um homem como você é atrás das grades.

A hora da sesta tornava silenciosas as vielas emaranhadas da cidade velha.

Pela grande janela do atelier, Thomas Lieven contemplava o panorama do rio. Chantal Tessier estava a seu lado. Ela voltara à Rua do Poço dos Negros para despedir-se. Tinha que voltar para Marselha. Insistia para que Thomas fosse com ela.

Chantal demonstrava uma estranha agitação e a sua narina esquerda voltara a tremer. Ela colocou a mão no braço de Thomas Lieven.

- Venha comigo, seremos sócios. Tenho várias coisas que você pode fazer: não se trata do negócio de turistas. Aqui você está frito. Mas em Marselha... Poderemos trabalhar em grande escala.

Thomas sacudiu a cabeça, sem tirar os olhos das águas do Tejo. Lenta e preguiçosamente, elas iam em direção ao Atlântico. Ao longe, perto da foz, estavam ancorados muitos navios prestes a zarpar para portos longínquos, prontos para levar os perseguidos, os humilhados, os angustiados, para países livres e distantes. Esses navios eram para os que tinham passaporte, vistos e dinheiro.

Thomas não tinha mais passaporte. Não tinha nenhum visto consular. Não tinha dinheiro. Tinha a roupa que estava sobre o corpo. Nem mais, nem menos.

Sentia-se, subitamente, cansado, infinitamente cansado. Sua existência estava confinada em um círculo infernal e sem saída.

Sinto-me honrado com a sua oferta, Chantal. Você é uma bela mulher e, sem dúvida, uma maravilhosa amiga.

Olhou-a, sorrindo, e a mulher que, pelos seus gestos, parecia um gato selvagem, corou como uma menina apaixonada. Ela bateu com o pé, mal-humorada.

- Pare com essa conversa chocha - murmurou ela.

- Você tem um grande coração - insistiu ainda Thomas. - Mas veja, houve tempo em que fui um banqueiro. Gostaria de tornar a ser banqueiro.

Reinaldo Pereira estava sentado junto à mesa coberta de bisnagas de tinta, de pincéis, de cinzeiro e de garrafas. Estava, no momento, inteiramente sóbrio e trabalhava pintando um de seus péssimos quadros.

- Jean - disse ele -, a oferta de Chantal tem muitos aspectos bons. Com ela, você tem a certeza de chegar são e salvo a Marselha. Em Marselha será mais fácil conseguir um passaporte falso que aqui, onde a polícia o procura. Sem falar nos seus outros amigos.

- Mas, que poderei eu conseguir em Marselha, meu Deus! Teriam sido completamente inúteis todos os esforços que tenho feito?

- Se você não quer ver as coisas como elas são - disse Chantal, com agressividade - é porque não passa de um boboca sentimental. Você teve uma maré de azar. E daí? Isso acontece a todo mundo. Não existem duas maneiras: antes de mais nada, é preciso arranjar grana e depois fortificar a carcaça.

Thomas pensou: ”Se eu não tivesse tido as lições particulares de Alcoba, em nossa cela, não entenderia o que esta senhora está dizendo”.

- Com a ajuda de Pereira - disse ele com ar triste - conseguirei um passaporte aqui mesmo em Lisboa. Quanto ao dinheiro, tenho um amigo na América do Sul. Vou escrever-lhe. Não, não, deixem-me agir, acabarei por...

Não concluiu a frase porque dois estampidos surdos perturbaram o silêncio da hora da sesta.

Chantal conteve um grito. Pereira teve um sobressalto e derrubou um pote de tinta. Entreolharam-se assustados. Passaram três segundos...

Depois, ouviram-se vozes assustadas de homens.

Mulheres começaram a gritar estridentemente. Crianças berravam.

Thomas precipitou-se para a cozinha e abriu a janela. Debruçou-se e olhou para o velho pátio. Embaixo, homens, mulheres e crianças corriam para formar um círculo em volta de uma forma estendida sobre as pedras sujas, uma forma pequena, retorcida pela dor, uma forma corcunda.

- Lázaro, Lázaro, está-me ouvindo?

Thomas estava ajoelhado perto do homenzinho estendido no chão. Atrás, comprimia-se uma multidão de desconhecidos. O sangue escorria, sem parar, dos ferimentos de Alcoba. As balas o haviam atingido no peito e no ventre. Estava imóvel e de olhos fechados. O ricto da boca havia desaparecido.

- Lázaro... - gemeu Thomas Lieven.

O pequeno corcunda abriu os olhos. As pupilas já estavam meio opacas, mas Lázaro reconheceu o homem que se debruçava sobre ele.

- Dê o fora - disse com esforço. - Dê o fora imediatamente, Jean. Era a você que queriam pegar... - uma golfada de sangue saiu-lhe da boca.

- Não fale, Lázaro - suplicou Thomas. Mas o corcunda balbuciou: - O sujeito gritou ”Leblanc” antes de... tomou-me por você...

Thomas estava com os olhos cheios de lágrimas, lágrimas de raiva e de tristeza.

- Você não deve falar, Lázaro... O médico já vai chegar... Eles o operarão...

- é tarde demais... - O corcunda olhou para Thomas. Subitamente, sorriu com ar zombeteiro. - É pena, garoto... nós dois teríamos arranjado uns planos e tanto. - O sorriso apagou-se. Os olhos ficaram vidrados.

Quando Thomas levantou-se para voltar ao atelier, as pessoas que estavam em volta afastaram-se e ficaram em silêncio. Todas viam que ele chorava.

Através da cortina de lágrimas, Thomas distinguiu Chantal e Pereira, que se mantinham afastados da multidão excitada. Cambaleando, aproximou-se deles. Se o pintor não o tivesse amparado, teria caído ao chão.

Vindo da rua, dois policiais e um médico entraram correndo nopátio. Enquanto o médico examinava o corpo, os dois policiais eram literalmente submersos pela algazarra de muita gente querendo falar ao mesmo tempo. A multidão de curiosos crescia a cada instante. O som das vozes e dos gritos aumentava e enchia todo o pátio.

Thomas enxugou as lágrimas e olhou para Chantal. Sabia que se perdesse um minuto seria tarde demais. Numa fração de segundo, num piscar de olhos, ele decidiu a sua sorte...

Dois minutos mais tarde os agentes chegaram à conclusão, pelas explicações agitadas das testemunhas, de que um desconhecido se havia preocupado com o moribundo e teria sido a última pessoa a falar com ele.

- Onde está ele?

- Foi para lá - gritou uma velha. Apontando com o dedo ossudo, ela indicava a segunda entrada. Pereira lá estava. Agora, estava só.

- Eh, você aí! - gritou um dos policiais. - Onde está o homem que falou com a vítima?

- Não tenho a menor idéia - disse Pereira.

O médico fechou os olhos do morto. O feio rosto do defunto Lázaro Alcoba apresentava um ar de grande dignidade.

Nos Pireneus, fazia frio. Um vento leste, glacial, varria as serras de terras vermelhas e ingratas que separam o Aragão espanhol do sul da França.

Ao clarear do dia 23 de novembro, dois viajantes solitários, uma mulher e um homem, ambos jovens, caminhavam em direção ao norte, para o desfiladeiro de Rocenvaux. Ambos calçavam botas de montanha, usavam chapéu de feltro e casaco acolchoado. Cada um carregava às costas um pesado saco. A mulher caminhava na frente. Atravessando capoeirões e matas espessas o homem seguia, sempre subindo, a sua companheira.

Jamais, em toda a sua vida, Thomas Lieven tinha usado botas com pregos na sola nem casacos acolchoados. Jamais havia subido atalhos de montanha, íngremes e perigosos.

Essa hora da madrugada em que seguia, com dificuldade, os passos de Chantal Tessier, em direção à fronteira francesa, com os calcanhares e as plantas dos pés cobertos de bolhas de água, parecia-lhe tão envolta na mesma irrealidade, com seu nevoeiro e suas sombras cinzentas, como os acontecimentos dos últimos cinco dias.

Chantal Tessier tinha uma personalidade marcante. Uma incomparável companheira de viagem. Isto ele pudera verificar no decorrer desses cinco dias. Ela conhecia Portugal e Espanha, palmo a palmo, os agentes aduaneiros, as patrulhas policiais que fiscalizavam os trens, os campônios que abrigavam e alimentavam um estrangeiro sem fazer perguntas.

As calças, o casaco, as botas e o chapéu que usava fora Chantal que comprara para ele. O dinheiro que tinha no bolso era dela. Ela lhe dera o dinheiro... ”adiantara”, como dizia.

Tinham ido de Lisboa até Valencia, de trem. Houve dois controles. Com o auxílio de Chantal, Thomas conseguira escapar. Durante a noite atravessaram a fronteira espanhola, seguiram caminho passando por Vigo, Leão e Burgos. Na Espanha havia mais controles e muito mais polícia. Graças a Chantal, tudo correra bem.

Faltava uma última fronteira e, depois, estariam na França. As correias do saco feriam as costas de Thomas Lieven, doíam-lhe todos os ossos. Estava meio morto de fadiga. Enquanto seguia os passos de Chantal, os seus pensamentos, meio confusos e incertos, erravam à solta.

”Pobre Lázaro Alcoba... Quem o matou? Quem mandou matá-lo? Os ingleses? Os alemães? O assassino será encontrado, algum dia? Um outro assassino irá encontrarme? Quanto tempo ainda me resta de vida? Eu, que caminho através desta sombria floresta, como um contrabandista, como um criminoso... Tudo isto é loucura, pura loucura! É um delírio, um pesadelo extravagante, insensato e grotesco e, entretanto, é a realidade com tudo que tem de horrível.”

O atalho tornou-se plano, a floresta era menos densa, chegavam a uma clareira. Havia um celeiro em muito mau estado de conservação.

Seguindo a infatigável Chantal, Thomas chegava, trôpego, perto do celeiro quando três tiros, em rápida sucessão, soaram, muito próximos.

Com a rapidez de um raio Chantal fez meia-volta e chegou perto de Thomas. A sua respiração soprava-lhe o rosto.

- Entra aí.

Ela empurrou-o, com violência, para dentro do celeiro onde se atiraram sobre o feno. Olharam-se, ofegantes.

Um novo tiro soou e, logo depois, mais outro. O vento fez chegar até eles os sons de uma voz masculina, mas não podiam entender as palavras.

Silêncio! - sussurrou Chantal. - Não façamos nenhum movimento. Talvez sejam os guardas da alfândega.

”Talvez sejam outras pessoas”, pensou Thomas com pessimismo. ”É bem.provável. Não seria preciso muito tempo para aqueles cavalheiros de Lisboa verificarem que cometeram um erro. Um erro que pode ser reparado...”

Thomas sentia a presença de Chantal a seu lado. Ela não se movia, mas Thomas podia sentir a tensão nervosa que lhe provocava o esforço de ficar imóvel.

Tomou, imediatamente, uma decisão. Ele não tinha o direito de pôr em perigo uma outra vida humana. Sabia que a morte do pobre Lázaro pesaria, para sempre, na sua consciência.

”Terminemos com isto. Não estou mais brincando. Mais vale uma morte horrível que um horror sem fim. Parem de me perseguir, assassinos imbecis. Eu me entrego, mas não arrastem outros inocentes para o seu jogo infecto...”

Desvencilhou-se, rapidamente, das correias que sustentavam o saco e levantou-se. Chantal deu um salto. No seu rosto pálido os olhos soltavam chispas.

- Fique deitado - sibilou ela -, você está gira? Com todas as suas forças, tentou retê-lo.

- Sinto muito, Chantal - murmurou Thomas aplicando-lhe um golpe de judô que sabia ser o bastante para fazê-la perder os sentidos durante alguns minutos. Ela soltou um gemido e caiu, de costas.

Thomas saiu do celeiro.

Eles vinham sobre ele. Dois homens com espingardas Chegavam pela clareira, pisando a erva escassa e através do nevoeiro. Eles chegavam.

Dirigiu-se para eles. Com um grotesco sentimento de triunfo ele disse a si mesmo: dessa forma não poderão atingir-me pelas costas ”quando tentava fugir”.

Os dois homens o avistaram e levantaram as armas. Aproximaram-se, abaixando o cano das armas. Thomas nunca os vira antes. Tal como ele, vestiam calças de veludo côtelé, chapéus, capas impermeáveis e botas de montanha. Ambos eram fortes e baixos. Um deles tinha bigodes. O outro usava óculos. Estavam bem perto. Pararam. O homem de óculos ergueu o chapéu.

- Bom dia - disse ele amavelmente, em espanhol.

- O senhor o viu? - perguntou o homem de bigodes.

Tudo pareceu girar em torno de Thomas: os homens, a clareira, os campos, as árvores, tudo.

- Quem? - perguntou ele, quase sem voz.

- O veado - disse o homem de óculos.

- Eu o atingi - disse o de bigodes. - Estou certo de que acertei: eu o vi cair. Depois conseguiu levantar-se.

- Não pode estar longe - disse o outro.

- Eu nada vi - disse Thomas em seu mau espanhol.

- Ah, um estrangeiro! Um refugiado lá de longe, sem dúvida - disse o homem de óculos.

Thomas só teve forças para acenar com a cabeça. Os dois espanhóis trocaram olhares.

- Nós esqueceremos que o vimos - disse o homem de bigodes. - Até a vista e boa viagem. - Ambos ergueram os chapéus. Thomas também se descobriu. Os caçadores seguiram seu caminho e desapareceram na floresta.

Por alguns momentos, Thomas ficou respirando profundamente. Depois voltou ao celeiro. Chantal estava sentada sobre o feno e gemia, esfregando o pescoço. A pele estava vermelha e machucada. Thomas sentou-se a seu lado.

- Peço desculpas pelo que aconteceu há pouco - disse ele -, mas eu não queria... Eu não queria que você - começou a gaguejar e terminou encabulado: - eram apenas caçadores.

Subitamente ela o apertou violentamente em seus braços. Rolaram sobre o feno.

Você queria me proteger - sussurrou ela debruçada sobre ele. - Não queria que eu corresse perigo. Pensou em mim. - Suas mãos acariciavam, com ternura, o rosto de Thomas. - Nenhum homem fez isto... em toda minha vida.

- Fez o quê?

- Pensou em mim - sussurrou Chantal.

Na doçura e na violência dos seus beijos, Thomas perdeu toda a noção de todas as misérias, de todas as angústias do passado, do sombrio porvir.

Em 1942, seis mil soldados alemães cercaram o velho bairro do porto de Marselha e obrigaram os habitantes - cerca de vinte mil pessoas - a abandonar suas casas dentro de duas horas. Cada pessoa poderia levar no máximo, trinta quilos de bagagem. Mais de três mil delinqüentes foram presos. Todo o velho bairro foi minado e destruído. Assim desapareceu o quartel-general do vício, um dos mais pitorescos da Europa e a mais perigosa sementeira de organizações criminosas.

No decorrer dos anos de 1940 a 1941, entretanto, o velho bairro do porto viveu o período de maior movimento. Nas sombrias casas por trás do edifício da prefeitura habitavam homens oriundos de todos os países: refugiados, traficantes do mercado negro, assassinos procurados pela polícia, falsários, conspiradores políticos e uma legião de mulheres de vida airada.

A polícia era impotente e evitava, o mais possível, aparecer no Vieux Quartier. Os potentados desse sombrio reino eram os chefes de várias quadrilhas que se combatiam mutuamente numa guerra sem quartel. Entre os membros dessas gangs havia franceses, norte-africanos, armênios e um grande número de corsos e espanhóis.

Os chefes das quadrilhas eram personagens conhecidas. Não andavam pelas estreitas e coloridas vielas sem os seus capangas. Em fila indiana, dois ou três cavalheiros iam à direita do patrão, dois ou três iam à esquerda, todos com a mão no bolso e dedo no gatilho.

O Estado possuía um Serviço de Controle Econômico cujos funcionários tinham a missão de combater o mercado negro que estava muito florescente. A maioria dos funcionários designados para tal serviço revelou-se venal. Outros eram simplesmente covardes. Chegada a noite, não ousavam aparecer na rua. A estas horas é que começavam a rodar de uma casa para outra os grandes queijos e que os quartos de boi, provenientes de matadouros clandestinos, eram entregues aos restaurantes.

O soberbo pernil de cordeiro, a manteiga, as vagens e os demais ingredientes usados por Thomas para preparar uma excelente refeição na cozinha de Chantal Tessier, na noite de 23 de novembro, provinham todos dessas fontes obscuras.

Chantal morava na Rue Chevalier à la Rose. Das janelas podiam-se ver as águas sujas do velho porto quadrangular e as inúmeras luzes dos cafés próximos.

Thomas ficara surpreendido com o tamanho e a decoração do apartamento de Chantal. Várias coisas o chocaram. Os lustres modernos e caros, por exemplo, nada tinham a ver com os móveis antigos autênticos. Era evidente que Chantal crescera, como uma flor selvagem, sem receber, sequer, um verniz de cultura.

Nessa noite, trajava um vestido elegante, quase sem decote, de seda da China bordada, e muito colante. Mas, de forma muito singular, havia completado a indumentária com um cinto de couro, muito largo. Mostrava, curiosamente, predileção pelo couro cru e até pelo seu cheiro.

Delicadamente, Thomas não fazia qualquer crítica às extravagâncias de Chantal em matéria de gosto. Ele próprio vestia pela primeira vez em sua vida uma roupa que não tinha sido feita sob medida, mas que, apesar disso, caía-lhe muito bem.

Logo que chegaram ao apartamento, Chantal abrira um grande armário cheio de roupas masculinas: camisas, roupas íntimas, gravatas e ternos.

- Pegue o que quiser, Pierre era do seu tamanho.

Muito contra a vontade, Thomas escolheu o que precisava. Na realidade, precisava de tudo, pois não tinha nada. Quando procurou saber mais alguma coisa sobre Pierre, Chantal respondeu secamente: ”Não faça perguntas. Era meu amigo. Estamos separados há um ano. Ele não voltará mais...

Estranhamente, Chantal estava agindo muito friamente para com ele, no decorrer das últimas horas. Parecia que os momentos de loucura, perto da fronteira, nunca tinham existido. Mesmo agora, durante o jantar, ela estava em silêncio, perdida em divagações sombrias. Enquanto comia os mexilhões, olhava para Thomas. Quando chegaram ao pernil de carneiro, a sua narina esquerda começou a tremer. Quando chegaram à sobremesa, um relógio de parede soou as dez horas.

Subitamente, Chantal cobriu o rosto com as mãos e balbuciou palavras ininteligíveis.

- Que há, querida? - perguntou Thomas, que estava ultimando o preparo das frutas ao caramelo.

Ela ergueu o rosto. A narina tremia, mas o resto do belo rosto era uma máscara imóvel.

- Dez horas - disse ela. Sua voz estava clara e calma.

- E então?

- Eles estão perto da porta. Logo que eu ligar o fonógrafo para tocar J’ai deux amours, eles subirão.

- Quem vai subir? - perguntou ele.

- O coronel Siméon e os seus homens.

- O coronel Siméon? - repetiu ele, quase sem voz.

- O Deuxième Bureau, sim. - A narina fremia. - Eu o vendi. Sou a rainha da sujeira.

Houve um silêncio.

- Quer mais um pêssego? - disse afinal Thomas.

- Jean! Não fique assim! Não posso suportar. Grite. Quebre-me a cara. Faça alguma coisa!

- Chantal - disse ele invadido pelo desânimo e pela fadiga -, por que você fez isso?

- Estou nas mãos da polícia. É uma história suja dos tempos de Pierre. Fraude, etc. Apareceu o coronel Siméon, que disse: ”Se você nos entregar o Leblanc poderemos conseguir o arquivamento do processo”. Que faria você em meu lugar, Jean? Eu mal o conhecia então.

”E assim é a vida”, pensou Thomas. ”A mesma história se repete e continua. Um caça o outro. Um trai o outro. Um mata o outro, para não ser ele mesmo morto.”

- Que quer Siméon comigo? - perguntou em voz suave.

- Ele recebeu ordens... Parece que você o tapeou com uma história de listas. É verdade?

- Sim, é verdade.

Ela levantou-se, aproximou-se dele e colocou a mão no seu ombro.

- Eu queria chorar, mas não tenho lágrimas. Bata em mim. Mate-me. Faça alguma coisa, Jean. Não me olhe assim.

Imóvel, Thomas pensava.

- Diga novamente o nome do disco que deve tocar - perguntou ele em voz baixa.

- J’ai deux amours - respondeu ela. Subitamente, um estranho sorriso iluminou a palidez do rosto de Thomas. Levantou-se. Chantal fez um movimento de recuo. Mas ele não a tocou. Foi à sala contígua, onde estava o fonógrafo. Vendo a etiqueta do disco, sorriu novamente. Ligou o aparelho e colocou a agulha sobre o disco. A música soou e a voz de Josephine Baker cantou J’ai deux amours.

Ouviram-se passos, do lado de fora. Cada vez mais próximos. Muito próximos. Chantal estava em pé diante de Thomas. Uma respiração rouca saía-lhe dos lábios abertos. O seu peito arfava sob a fina seda da túnica chinesa.

- Fuja! - disse ela com voz sibilante. - Ainda há tempo... a janela do quarto de dormir dá para um telhado plano...

Thomas fez que não, com a cabeça, e sorriu. Ela teve um acesso de raiva.

- Imbecil. Eles vão fazê-lo virar escumadeira! Daqui a dez minutos será um cadáver boiando no velho porto.

- Teria sido amável de sua parte se tivesse pensado nisso um pouco antes, meu coração.

Com um gesto frenético ela levantou o braço como se fosse bater.

- Pare com o deboche - gritou ela, sem fôlego. - Logo agora. - Ela começou a soluçar.

Bateram na porta.

- Abra - disse ele com aspereza. Chantal apertava o punho contra a boca, mas não se mexeu.

 

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       E BATATAS DAUPHINE, FRUTAS AO CARAMELO

 

25 de novembro de 1940

Com um pernil, Thomas Lieven consegue destravar uma língua de mulher.

Mexilhões marinière - Depois de limpar os mexilhões, coloque-os numa panela onde já deve estar fervendo uma mistura (em partes iguais) de água e vinho branco. Cubra a panela e deixe ferver, sacudindo de vez em quando, até que os mariscos se abram. Despeje numa passadeira e retire os mariscos das cascas, guardando o caldo.

Enquanto cozinham os mariscos, prepare um Roux branco, farinha e manteiga (use trezentos gramas de farinha de trigo e duzentos e cinqüenta gramas de manteiga pura que se levam ao fogo durante cinco minutos, mexendo constantemente com uma espátula) e junte ao caldo da cozedura dos mariscos. Faça ferver um pouco. Acrescente mais um pouco de vinho branco e tempere com sal, pimenta-doreino e sumo de limão. Junte uma gema para ligar. Misture, agora, os mariscos e a salsa picada bem fina ao molho já preparado. Conserve quente - sem deixar ferver - até o momento de servir. Pernil de cordeiro assado com vagens e batatas dauphine - Use um pernil de cordeiro bem macio. Faça um corte junto ao osso e enfie um dente de alho

entre o osso e a carne. Coloque o pernil num panelão com bastante manteiga, virando-o sempre até que comece a assar. Salgue e salpique pimenta-do-reino. Leve agora o pernil ao forno, para acabar de assar, tendo o cuidado de molhá-lo repetidamente com o próprio suco e a manteiga que já estava no panelão. Prepare as vagens, que devem ser bem frescas, limpando-as e cozinhando-as em pouca água. Depois de escorrer bem, aqueça em manteiga derretida. Salgue na hora de servir. Esprema as batatas cozidas e amasse juntando ovos (clara e gema) e temperando com um pouco de noz-moscada. Faça pequenas bolas e frite-as em gordura muito quente até que cresçam e tomem cor. Frutas ao caramelo - Leve ao fogo uma panela com açúcar. Mexa constantemente até que a calda (caramelo) tome uma cor amarelo-clara. Adicione água e deixe cozinhar. Descasque peras e maçãs, corte em quatro e junte ao caramelo acrescentando algumas uvas. Cubra a panela e deixe algum tempo. Depois de fria, sirva a compota em taças com um pouco de creme batido e amêndoas picadas.

Bateram novamente, com mais força. Josephine Baker continuava cantando.

- Abram ou atiramos na fechadura! - gritou uma voz masculina, conhecida de Thomas.

- Esse bom Siméon - murmurou Thomas. - Sempre o mesmo simplório.

Deixou Chantal, que tremia dos pés à cabeça, e dirigiu-se para a entrada. A porta da entrada estremecia com os golpes. A corrente de segurança estava colocada. Thomas fez girar a maçaneta. A porta foi aberta com brutalidade, mas só até onde o permitia a corrente de aço. Um sapato foi enfiado pela abertura. Um revólver também. Thomas pisou, com toda a força, no sapato e desviou o cano da arma.

- Faça o favor de retirar esses dois objetos, coronel - disse ele.

- Só faltava isso - gritou Siméon do outro lado da porta. - Abra imediatamente ou as coisas vão esquentar.

- Neste caso, terão que esquentar - disse Thomas calmamente. - Enquanto o senhor tiver a mão e o pé na porta eu não poderei retirar a corrente.

Depois de uma pequena hesitação, o coronel se submeteu ao que mandava Thomas. O sapato e o revólver desapareceram. Thomas abriu. Um instante depois, o cano do revólver comprimia seu estômago e ele estava diante do heróico Jules Siméon, com o bigode eriçado e a nobre cabeça de nariz romano erguida impavidamente.

”Coitado”, pensou Thomas, ”não fez fortuna nos últimos meses, ainda usa a velha e surrada gabardina.”

- Que prazer, coronel - disse Thomas Lieven. - Como vai de saúde? E como vai a nossa bela Mimi?

- Acabou-se a brincadeira, seu vendido - disse o coronel, com desprezo.

- Seria incômodo apoiar o cano do seu revólver em algum outro lugar, no meu peito, por exemplo? Eu acabo de comer, compreende?

- Dentro de meia hora você não terá mais problemas de digestão, seu sujo - respondeu Siméon com violência.

Um outro homem entrou no saguão. Era alto, elegante, tinha as têmporas grisalhas, olhos inteligentes, a gola do sobretudo levantada, as mãos nos bolsos e um cigarro no canto da boca.

Maurice Débras.

- Boa noite - disse Thomas -, eu pensei que o senhor não estaria longe logo que Chantal me disse o nome do disco. Como vai o senhor, comandante Débras?

- Coronel Débras - disse Siméon com voz sibilante.

Débras não respondeu. Com a cabeça fez um ligeiro, mas autoritário, sinal em direção à porta.

Neste momento ouviu-se um grito de raiva. Os três homens viraram-se. Como uma fera prestes a dar o bote, Chantal apareceu na porta da sala, com um grande punhal recurvado na mão.

- Fora! - rosnou ela furiosa. - Senão eu rasgo a barriga de vocês dois. Deixem-no em paz.

Assustado, Siméon recuou dois passos. ”Meu Deus”, pensou Thomas, ”já não sou mais o herói amalucado da época da tomada de Paris.”

- Pare com estas tolices, Chantal - disse ele a seguir, em tom peremptório. - Afinal de contas, você tinha prometido ao coronel que me trairia.

- Pode ser que sim - disse ela com voz rouca. - Eu procedi como uma miserável, mas ainda posso consertar tudo...

- Pode uma ova - disse Thomas. - A única coisa que você pode conseguir é ir para o xadrez.

- Pois que me prendam. Para mim nada importa... eu nunca traí ninguém. Venha para trás de mim, Jean. Depressa, vamos para o quarto.

Ela estava, agora, perto dele. Thomas suspirou e sacudiu a cabeça. Subitamente, seu pé direito voou e atingiu Chantal no pulso. Com um grito de dor ela soltou o punhal que voou e foi ficar cravado no alizar da porta.

Thomas apanhou o chapéu e o sobretudo, arrancou o punhal da porta e o entregou a Débras.

- Os senhores não podem calcular como me repugna atacar uma mulher. Mas, com Mile Tessier a brutalidade parece ser a única maneira... Vamos indo?

Sem dizer palavra, Débras fez que sim, com a cabeça. Siméon empurrou Thomas para o patamar.

A fechadura da porta estalou. Chantal estava só. Sacudida por câimbras, rolou no tapete, soluçando e gritando. Afinal, conseguiu arrastar-se até a sala. O disco havia terminado e a agulha fazia um barulhinho ritmado. Levantando o fonógrafo, Chantal o atirou contra a parede, quebrando-o, com estrondo.

Nesta noite, a pior de sua vida, não conseguiu dormir. Agitada e com terrível sentimento de culpa, virava de um lado para outro, na cama. Tinha traído o seu amante. A sua morte era um peso na consciência. Ela sabia que Siméon e Débras iam matá-lo.

Só de madrugada mergulhou num sono agitado.

Uma voz cantando alto e desafinada arrancou-a do sono. Deu um salto na cama. Tinha dor de cabeça e suas pernas e braços pareciam ser de chumbo. A voz do homem podia ser ouvida claramente: ”Vai deux amours...”

”Loucura”, pensou ela, ”fiquei louca. Estou ouvindo a sua voz, a voz de um morto. Meu Deus, perdi a razão...”

- Jean - gritou ela. Nenhuma resposta.

Levantou-se, cambaleante. De camisola correu do quarto. ”Fugir... é preciso fugir...”

Subitamente, ficou imóvel. A porta do banheiro estava aberta. Thomas Lieven estava sentado na banheira.

Chantal fechou os olhos. Chantal abriu os olhos. Thomas continuava sentado na banheira.

- Jean - gemeu ela.

- Bom dia, sujeira - disse ele.

Mais morta que viva, ela arrastou-se até perto dele e caiu sentada na borda da banheira.

- Como? Que faz aí? - balbuciou ela.

- Estou tentando ensaboar as costas. Seria um favor se você se encarregasse desse serviço.

- Mas, mas, mas...

- Que foi?

- Mas eles o liquidaram... você está morto...

- Se eu estivesse morto - disse ele em tom de reprovação - não estaria mais tentando ensaboar as costas. Que bobagem. Você deveria agir mais calmamente. Não está numa casa de loucos nem na selva. Pelo menos agora, não está mais.

Ele entregou-lhe um pedaço de sabonete. Ela segurou-o e, depois, o atirou na água.

- Diga-me, imediatamente, o que aconteceu - gritou com voz estridente.

- Apanhe o sabão - respondeu Thomas em voz baixa, como que tendo dificuldade em conter-se. - Imediatamente. Daqui a pouco você levará uma sova. Juro que nunca bati em uma mulher. Mas, com você, vou abandonar os meus mais sagrados princípios. Vamos, esfregue-me as costas, e é para já.

Chantal mergulhou o braço na água, encontrou o sabão e fez o que ele pedia. Contemplava-o com um misto de admiração e receio.

- Estou começando a compreender como você deve ser tratada - disse ele, com ar feroz.

- Mas que aconteceu, Jean? - perguntou ela com voz rouca. - Conte...

- A maneira de dizer é: conte, por favor...

- Por favor, Jean, por favor.

- Assim é melhor - resmungou ele, espichando-se voluptuosamente. - Mais para cima. Mais para a direita. Com mais força. Bem: quando chegamos à rua, aqueles dois levaram-me, ao porto...

Siméon e Débras levavam Thomas para o porto. Um vento glacial assobiava nas ruas estreitas do Vieux Quartier. Cães ladravam para a lua. Estava tudo deserto.

Débras dirigia o velho Ford. Siméon, sempre com o revólver na mão, estava no banco de trás, ao lado de Thomas. Ninguém abria a boca.

O carro chegou ao porto. Nos bistrots do mercado negro, à beira do cais, ainda havia luzes. Chegando à altura do Departamento Sanitário, Débras virou à direita pelo cais da Tourette, passou velozmente pela velha catedral e dirigiu-se para o norte, até a Place de Ia Joliette. Passando pelo Boulevard de Dunquerque, contornou a massa gigantesca e negra da estação marítima. Depois, chegaram novamente à beira da água, perto do ancoradouro da estação marítima. Aos pinotes, o Ford atravessou os trilhos da estrada de ferro e finalmente parou à entrada do sombrio molhe A.

- Fora - disse Siméon.

Thomas Lieven obedeceu. O sopro gelado do mistral bateu-lhe no rosto, como uma chicotada. O lugar cheirava terrivelmente a maresia. Os raros lampiões do molhe dançavam furiosamente na tempestade. Em algum lugar urrava a sirena de um navio. Débras empunhava também um revólver de calibre grosso. Com o queixo, fez um gesto significativo.

Resignado, Thomas começou a caminhar pelo molhe deserto. O sorriso que tinha nos lábios começava a ficar fixo, como que congelado.

A água refletia a pálida luz da lua. Sobre as pequenas ondas dançavam coroas de espuma. O cheiro de maresia era cada vez mais forte. Thomas continuava andando. Atrás dele ouviu Siméon tropeçar e praguejar. ”Que horror”, pensou Thomas, ”ele certamente está com o dedo no gatilho. Espero que não tropece outra vez. Uma desgraça pode acontecer.”

O coronel Débras ainda não havia pronunciado uma só palavra. Eles agora estavam longe, longe da vida, longe dos homens.

”Quem cair na água neste lugar, só muito mais tarde será encontrado. Principalmente se tiver algumas balas na barriga.”

O fim do molhe apareceu, subitamente: uma lista de cimento e depois a água. A água negra.

- Alto - disse Siméon.

A voz de Débras soou, pela primeira vez.

- Vire-se.

Thomas virou-se. Face a face com Débras e Siméon, ouviu o som fraco e longínquo de relógios marselheses que marcavam três quartos de hora. Logo depois, ouviu a voz de Siméon, que em tom inquieto dizia:

- Já são onze menos um quarto, chefe. É preciso andar depressa. Temos que levá-lo à casa de madame, às onze horas.

Thomas respirou novamente. O seu sorriso congelado descontraiu-se e ele tossiu discretamente ao ouvir um coronel dizer ao outro: ”Grande imbecil!”

- Não lhe queira mal - disse Thomas a Débras. - Ele estragou a sua cena? A mim, também, ele colocou em situação muito embaraçosa na presença de um tenente alemão. Mas é um homem decente. - Bateu no ombro de Siméon, que estava morrendo de vergonha.

Débras botou o revólver no bolso e virou o rosto. Não queria que Siméon ou Thomas o vissem sorrir.

- Além do mais, cavalheiros - prosseguiu Thomas -, pensei imediatamente que o que desejavam, principalmente, era dar-me um grande susto e, sem dúvida, convencer-me a trabalhar para os senhores.

- Como é que podia saber isso? - gaguejou Siméon.

- Ao ouvir o disco de Josephine Baker, adivinhei que M. Débras não estaria longe. Disse, para mim mesmo, que se o comandante, perdão, o coronel - minhas sinceras felicitações -, saiu de Casablanca não seria com o único fito de assistir à minha morte inglória. Estarei enganado?

Débras fez meia-volta e acenou com a cabeça.

- Boche danado! - disse ele.

- Neste caso-, deixemos este local pouco hospitaleiro. Este cheiro está-me incomodando. Além do mais, não temos o direito de fazer madame esperar. E eu gostaria de passar pela estação.

- Por que a estação? - perguntou Siméon com os olhos esbugalhados.

- Porque lá há uma casa de flores que fica aberta à noite - explicou-lhe Thomas amavelmente. - Preciso comprar algumas orquídeas...

Josephine Baker pareceu a Thomas estar mais bela que nunca. Recebeu-o na sala do seu apartamento no Hotel de Noailles, na Cannebière.

Seus cabelos negro-azulados formavam uma coroa brilhante sobre a cabeça. Enormes brincos brancos em forma de anel ornavam-lhe as orelhas. Sua pele escura tinha tons de veludo. Quando beijou a mão dessa mulher que admirava, os olhos de Thomas foram ofuscados pelo brilho iridescente de um grande anel com uma rosácea de brilhantes.

Com ar sério ela recebeu a caixa de celofane com três orquídeas cor-de-rosa. Com ar sério, disse:

- Obrigada, Herr Lieven. Queira sentar-se. Quer abrir o champanha, Maurice?

Eles eram três porque, num acesso de impaciência, Débras tinha mandado Siméon para casa.

Thomas Lieven examinou o salão com um olhar. Havia um grande espelho e também um piano coberto de partituras. Thomas viu também um cartaz:

ÓPERA DE MARSELHA JOSEPHINE BAKER em LA CREOLE

Opereta em Três Atos de JACQUES OFFENBACH

Primeira Recita

24 de dezembro de 1940

O coronel Débras encheu as taças de cristal.

- Bebamos em homenagem à mulher a quem o senhor deve a vida, Herr Lieven.

Thomas inclinou-se profundamente diante de Josephine.

- E sempre tive a esperança, madame, de que compreenderia o meu comportamento. A senhora é mulher. Certamente detesta a violência e a guerra, o sangue e o assassinato ainda mais do que eu.

- Sem dúvida - disse a bela mulher -, mas também amo a minha pátria. O senhor nos causou um grande prejuízo destruindo as listas verdadeiras.

- Madame - respondeu Thomas -, o prejuízo não teria sido muito maior se eu, ao invés de destruir as listas, as tivesse entregado aos alemães?

- É exato - disse Débras. - Não falemos mais nisso. Além do mais, foi o senhor quem me tirou de Madri. O senhor é um caso especial, fora de série. Posso, entretanto, jurar-lhe o seguinte: na próxima vez que o senhor nos embrulhar não haverá mais champanha, qualquer que seja a capacidade de Josephine para compreender o seu comportamento. Na próxima vez o senhor não voltará do molhe.

- Escute, Débras. Eu gosto muito do senhor. Sinceramente, também gosto da França. Mas eu também vou jurar uma coisa: se me obrigarem a trabalhar para vocês, eu os embrulharei mais uma vez, porque não quero fazer mal a nenhum país, nem mesmo ao meu.

- E a Gestapo? - perguntou Josephine, em voz baixa.

- Perdão?

- Teria também escrúpulos em prejudicar a Gestapo?

- Ao contrário, minha senhora, seria para mim um prazer.

O coronel Débras levantou a mão.

- O senhor sabe que em colaboração com os ingleses estamos preparando, tanto na zona ocupada quanto na zona não ocupada, um novo serviço de informações e uma organização de resistência.

- Eu sei.

- Dos seus novos chefes, em Paris, o coronel Siméon recebeu ordens para atraí-lo a Marselha e liquidá-lo. Mas ele falou sobre o assunto com Josephine e ela pediu-me que intendesse...

- Madame - disse Thomas -, permita que eu sirva mais um pouco de champanha.

- Lieven, eu preciso voltar a Casablanca. Josephine irá dentro de poucas semanas. Recebemos instruções de Londres. Siméon ficará sozinho aqui. Que pensa o senhor de Siméon?

- Não me force a mentir - disse Thomas delicadamente.

- É um coração de ouro -- disse Débras suspirando. - Um patriota fervoroso.

- Um soldado heróico - acrescentou Thomas.

- Um impetuoso - completou Josephine.

- Sim, sim - disse Débras. - Infelizmente, faltalhe algo. Todos nós sabemos o que é, não é necessário dizê-lo.

Thomas Lieven sacudiu a cabeça aquiescendo.

- Não se demonstra coragem unicamente com os punhos. É preciso, também, uma cabeça. Herr Lieven e o coronel Siméon, a cabeça e os punhos, formariam uma magnífica equipe ,

- Por si só, ele não estaria à altura da tarefa.

- Que tarefa?

- A situação é séria, Lieven - disse Débras, mordendo os lábios. - Nem todos os meus compatriotas merecem elogios. Entre nós também há sujeitos ordinários.

- Há em toda parte - disse Thomas

- Esses franceses safados colaboram com os nazistas nas duas zonas. Atraiçoam os nossos homens. Vendem o seu país. São franceses miseráveis, pagos pela Gestapo. Eu disse Gestapo, Herr Lieven.

- Eu entendi - disse Thomas.

- O senhor é alemão. Conhece os métodos alemães. Ao mesmo tempo, pode passar por um francês nato.

- Vai recomeçar tudo!

- Esses homens não se contentam em trair a pátria. Eles a saqueiam, também. Veja só, há poucos dias aqui chegaram, vindos de Paris, dois traficantes de ouro e de divisas.

- Franceses?

- Franceses que trabalham por conta da Gestapo.

- Como se chamam eles?

- Jacques Bergier e Paul de Lesseps. Thomas refletiu demoradamente, em silêncio.

- Concordo, Débras - disse por fim. - Eu o ajudarei a achar os seus traidores. Mas o senhor promete que me deixará livre, depois?

- Para onde quer ir?

- Para a América do Sul, o senhor bem o sabe. Um amigo está à minha espera, o banqueiro Lindner. Eu não tenho mais dinheiro, mas ele tem...

- Lieven...

-... um milhão de dólares. Se o senhor me der um passaporte eu conseguirei um visto com a garantia dele...

- Lieven, escute-me...

- Se eu tiver um visto, arranjarei um navio... - Thomas parou de falar. - Que há?

- Acredite que estou desolado, Lieven, mas receio que nunca mais verá o seu amigo Lindner.

- Que quer dizer isso? Conte-me tudo, sem ocultar coisa alguma. De qualquer forma eu me assemelho, cada vez mais, com o falecido Jó. Que aconteceu ao meu amigo Lindner?

- Ele morreu.

- Morreu? - repetiu Thomas. Mudou de cor e ficou lívido. - Walter Lindner morreu. A minha última esperança. Meu último amigo. Minha última chance de deixar este continente enlouquecido...

- O senhor não poderia sabê-lo - disse Débras -, estava na prisão. No dia 3 de novembro de 1940, o navio de Lindner bateu numa mina flutuante perto das Bermudas. Afundou em vinte minutos. Não houve quase sobreviventes. De qualquer forma, Lindner e sua esposa não estavam entre eles.

Meio encolhido, Thomas Lieven fazia girar a taça de champanha entre os dedos.

- Se o senhor tivesse tomado aquele navio - observou Débras - estaria, sem dúvida, morto, também.

- Sim - disse Thomas -, aí está um pensamento bastante confortador.

Foi um Thomas Lieven silencioso e pensativo que deixou, às primeiras horas da madrugada de 26 de novembro de 1940, o Hotel de Noailles, para voltar ao Vieux Quartier, ou mais exatamente, a um apartamento no segundo andar do prédio da Rue Chevalier à la Rose. Ele tinha bebido muito, em companhia de Josephine e de Débras, enquanto discutiam as medidas a serem tomadas no futuro imediato.

Durante alguns segundos, teve a tentação de acordar Chantal, que dormia na cama desfeita, aplicando-lhe um bom corretivo. Decidiu que primeiramente tomaria um banho quente. Foi na banheira que o descobriu a sua bela amiga, despertada pelos seus exercícios vocais.

Enquanto Chantal o ensaboava e esfregava, ele contou-lhe algumas circunstâncias do seu misterioso salvamento, mas apenas o estritamente necessário, porque a confiança que nela depositava estava, agora, bastante diminuída.

- Eles me soltaram porque precisam de mim. Deram-me uma missão. Para essa missão eu, por minha vez, preciso de você. Nessas condições será, talvez, possível uma reconciliação.

Os olhos de Chantal, até então cheios de humildade, começaram a brilhar:

- Você me perdoa?

- Sou forçado a isto, porquanto preciso de você...

- Pouco importa o motivo, contanto que me perdoe - disse ela, abraçando-o. - Farei tudo que você quiser. Que precisa?

- Alguns lingotes de ouro.

- Lin... lingotes... de ouro? Quantos?

- Aproximadamente entre cinco e dez milhões de francos.

- De ouro puro?

- Claro que não: com a parte interna de chumbo.

- Se é só isso que dará prazer a você...

- Mulher ordinária - disse ele. - Sua suja. Por sua causa estou novamente metido em encrencas. Pare de esfregar com tanta força!

Ela esfregou com mais força.

- Estou tão contente que não o tenham liquidado!

- Pare de esfregar, já disse!

Rindo, ela começou a fazer-lhe cócegas.

- Pare, ou cuidado com as suas calças. 1

- Não há perigo, eu estou sem elas.

- Espere um pouco.

Segurou-a. Ela gritou e a água espirrou. Estava deitada sobre ele, na água morna e cheia de espuma da banheira, gritando, rindo, cuspindo e, por fim, silenciosa em seus braços.

Na quarta-feira, 4 de dezembro de 1940, um almoço vegetariano reunia três cavalheiros numa sala particular do Hotel Bristol, na Cannebière. Um dos três organizara o menu com o cuidado de um verdadeiro gourmet. Além disso, ele próprio tinha fiscalizado, na cozinha do hotel, a preparação dos pratos.

Os três cavalheiros chamavam-se Jacques Bergier, Paul de Lesseps e Pierre Hunebélle.

Magro, reservado e de traços agudos, Paul de Lesseps poderia ter uns trinta e sete anos.

Jacques Bergier era mais velho, mais rosado e mais gordo.

Vestido um tanto exageradamente, seus gestos eram afetados, sua voz fina e seu andar algo ondulante. Vestia roupa azul-marinho e usava colete de veludo vermelhoescuro. Usava perfume pouco discreto.

Quanto a Pierre Hunebelle, o homem que organizara o almoço, parecia-se com Thomas Lieven como se fosse seu irmão. Não havia nenhum milagre nisso, a não ser que ele agora se chamava Hunebelle e não Leblanc. O amável leitor perceberá logo o motivo desta troca de identidade: Thomas tinha no bolso um novo passaporte falso do Serviço Secreto francês.

Era a primeira vez que os senhores Bergier e De Lesseps encontravam M. Hunebelle, e Bergier, especialmente, parecia ter cada vez mais prazer em contemplar o simpático jovem. Seus olhares langorosos não o deixavam. Thomas convidara os dois para almoçar depois de ter se apresentado a M. Bergier, advogado, mencionando uma possibilidade de negócio em comum.

- Almocemos juntos para falar de nossos negócios

- sugeriu ele, ao telefone.

- Com prazer, M. Hunebelle - respondeu, com sua voz de falsete o eclético Bergier -, mas nada de carne, por favor.

- O senhor é vegetariano?

- Cem por cento. Também não fumo nem bebo. ”Quanto às mulheres”, pensou Thomas, ”também não

lhes deve dar muita importância, meu engraçadinho. Mas trabalhar para a Gestapo isso, homem, juro, isso pode ser, pode ser.”

Durante o hors-d’oeuvre - salsão à moda de Genève

- os homens começaram a falar.

- Uma maravilha, M. Hunebelle! - disse o janota Bergier. - Uma verdadeira maravilha! Os pedaços derretem na boca.

- Deve ficar assim - disse Thomas com ar sério. - Escolha sempre salsões muito bons, mas não muito grandes.

- Ah, não muito grandes - disse Bergier, devorando Thomas com os olhos.

- Lave-os bem, e esfregue com uma escova; cozinhe em água com sal, mas não ponha muito sal.

- Mas não muito sal - repetiu o advogado, cujo perfume chegava às narinas de Thomas.

- Gostaria que me desse a receita, monsieur. - Suas mãos bem cuidadas exibiam quatro anéis com pedras de cor. Lançava sobre Thomas olhares emocionados.

”Esse sujeito será fácil de lidar, não me dará muito trabalho. Mas esse Lesseps deve ser mais duro de roer.”

- E de que maneira lhe poderemos ser úteis? - perguntou justamente Lesseps interrompendo a conversa culinária.

- Marselha é uma pequena cidade, cavalheiros; sabe-se que os senhores aqui estão para concluir certos negócios.

Um velho garçom trouxe o prato principal, e Thomas parou de falar. O advogado examinou o prato.

- Mas eu havia dito claramente: nada de carne - lamentou ele.

Lesseps cortou-lhe a palavra.

- Que negócios, M. Hunebelle?

- Bem! hum... de divisas e de ouro. Dizem que esses artigos interessam aos senhores.

Lesseps e Bergier trocaram olhares. Durante alguns instantes reinou silêncio na sala. Por fim Lesseps - acusado de colaboração pelo governo francês, e condenado em

1947 - disse, em tom frio:

- É o que dizem, hein?

- É o que dizem, sim. Sirva-se de um pouco de molho de soja, M. Bergier.

- Meu amigo - disse o advogado olhando para os olhos de Thomas -, estou sensibilizado. Este prato que eu pensei que fosse carne e não é carne tem um sabor delicioso. De que é feito?

- M. Hunebelle - disse Lesseps, secamente -, nós falávamos de ouro e divisas. E se o assunto verdadeiramente nos interessasse?

- São escalopes de cogumelos - disse Thomas a Bergier. - Excelentes, não? - Virou-se para Lesseps: -

Eu teria ouro para vender.

- O senhor tem ouro? - incrédulo.

- Sim, tenho.

- Qual a proveniência? perguntou Lesseps em tom

 

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           SALSÃO RÁBANO À MODA DE GENÊVE

           ESCALOPES DE COGUMELOS

           PERAS BELLE-HÉLÈNE

 

14 de dezembro de 1940

Um escalope insólito faz lucrar milhões.

Salsão rábano à moda de Genève - Nota: este prata não é fácil de preparar no Brasil. Somente em São Paulo e, raramente, no Rio poder-se-ia encontrar o tipo de salsão com tubérculo comestível, chamado salsão rábano, ou salsão-de-cabeça. Na Europa é bastante comum. Eis a receita: use as batatas de salsão, de tamanho médio. Lave-as escovando energicamente. Cozinhe em água e sal. Descasque e corte em fatias finas. Coloque em prato de ir ao forno, untado com manteiga, camada por camada, sobre as quais se colocam pedaços de manteiga; e polvilhe com queijo ralado. Uma vez cheio o prato e polvilhada a última camada com queijo ralado, leve a banho-maria durante uma hora.

Escalopes de cogumelos - Lave meio quilo de cogumelos frescos, limpe-os e corte em quatro partes. Corte em fatias finas duas grandes cebolas, pique uma boa porção de salsa. Leve tudo ao fogo até que os cogumelos comecem a frigir. Junte miolo de pão, molhado e espremido, e deixe no fogo até que o pão comece a tomar cor. Passe a massa obtida por um moedor acrescehtando-lhe, ao final da moagem, uma batata seca. Misture bem a massa e, quando ela esfriar, acrescente um ovo. Se a consistência estiver mole, junte um pouco de farinha de rosca.

O tempero deve ser bastante forte: um pouco de pasta de anchova, algumas gotas de molho picante de soja ou de algum extrato à base de lêvedo. Não empregue molho à base de carne.

Somente ao final da preparação é que se deve salgar e juntar pimenta-do-reino.

Faça os escalopes de espessura média, cubra com farinha de trigo, ovo e farinha de rosca, e frite em manteiga.

Como guarnição, use rodelas de limão e alcaparras.

Peras belle Hélène - Coloque uma generosa porção de sorvete de creme, ou de nata com baunilha, em taças de tamanho grande. Sobre o sorvete coloque duas metades de pêra em conserva. Cubra com uma calda de chocolate, bem quente, e sirva imediatamente.

Como preparar a calda: cem gramas de chocolate em barra, amargo, que se deixa derreter, com um pouco de água, em banho-maria. Nunca rale ou esfarinhe o chocolate. Junte o leite, ou o creme, suficiente para obter uma calda espessa.

- Que importância tem isto? - disse Thomas com altivez. - Eu perguntei por conta de quem os senhores estão trabalhando?

Lesseps fitava-o com olhos de tubarão.

- Que quantidade pode entregar?

- Depende da quantidade que os senhores quiserem.

- Tenho as minhas dúvidas de que o senhor possa ter reservas de tal monta.

- Isto porque - disse o advogado mimoso sorrindo - somos compradores até um total de duzentos milhões.

”Puxa!”, disse Thomas para si mesmo, ”é uma história de dinheiro à beça.”

”Puxa!”, disse consigo mesmo o velho garçom, que tinha a orelha grudada à porta da sala particular, ”é uma história de dinheiro à beça!” Estalando a língua, dirigiuse para o pequeno bar do hotel, quase deserto àquela hora. Um tipo grande e espadaúdo, com os cabelos cortados como uma escova, bebia um Pernod no balcão.

- Eh, Bastian! - disse o garçom.

O homem levantou a cabeça. Tinha olhinhos de elefante e as grandes mãos de um trabalhador em mudanças.

- De que estão falando? - perguntou ele.

O garçom contou-lhe a conversa que ouvira na sala particular. O homem, que se chamava Bastian Fabre, assobiou entre os dentes.

- Duzentos milhões! Minha mãe do céu! - Ele enfiou uma nota na mão do garçom. - Preste muita atenção. Guarde cada palavra. Eu voltarei.

- Está certo, Bastian - disse o velho garçom. Bastian (ele usava uma jaqueta de couro, uma boina

basca e calças cinzentas) saiu do bar, montou numa velha bicicleta e pedalou ao longo do velho porto até o Quai des Beiges. Aí estavam os dois cafés mais afamados da cidade: o Cintra e o Brúleur de Loup. Nestes dois estabelecimentos era decidida toda sorte de transações ilegais. O Cintra era mais moderno e reunia uma clientela mais abastada, de ricos negociantes gregos, turcos, holandeses e egípcios.

Bastian entrou no Brúleur de Loup, mais velho e menor. A sala com lambris escuros tinha espelhos embaciados que mal refletiam a luz acinzentada que vinha da rua. Era freqüentado por uma clientela local, cuja maioria bebia a essa hora o seu pastis, que custava naquela época dez francos, em vez de dois, como em 1939.

Esse encarecimento era causa de uma permanente indignação por parte de todos os patriotas marselheses.

Ali estavam negociantes de vinho, falsários, imigrados e traficantes. Bastian conhecia um grande número deles. Cumprimentou e foi cumprimentado. No fim da sala havia uma porta; uma tabuleta de ”reservado” estava pendurada na maçaneta.

O gigante bateu quatro vezes, espaçadas, e depois duas vezes seguidas. A porta foi aberta e Bastian entrou na sala.

A luz estava acesa, porque não havia janelas. Um denso nevoeiro de fumaça de cigarros saturava o ar. Quinze homens e uma mulher estavam sentados em torno de uma longa mesa. Os homens tinham modos audaciosos; alguns usavam barba e outros tinham nariz partido e cicatrizes. Entre eles havia africanos, armênios e corsos.

A mulher estava sentada ao fim da mesa. Usava uma boina vermelha da qual jorrava a cabeleira negro-azulada. Tinha calça e jaqueta de couro cru. Um observador imparcial teria verificado, com um só golpe de vista, que Chantal Tessier era o chefe absoluto desse estranho ajuntamento de criminosos: uma loba solitária, uma rainha sem piedade.

- Por que está atrasado? - gritou ela a Bastian, que a fitava com olhos de culpado. - Há meia hora que estamos esperando.

- Aqueles três é que me atrasaram... O advogado chegou tarde.

- Quando é que você vai resolver comprar outra boina? - interrompeu Chantal com voz peremptória. - Vocês estão mesmo é me chateando. Parece que todos querem mostrar que saíram do esgoto!

- Peço desculpas, Chantal - disse Bastian, bonachão e procurando esconder a boina. Depois contou o que ouvira do garçom do Bristol. Quando ele falou nos duzentos milhões uma onda de agitação invadiu a sala. Alguns dos cavalheiros assobiaram, um deu um murro na mesa e todos falaram ao mesmo tempo.

- Calem-se! - A voz glacial de Chantal dominou a balbúrdia. Fez-se o silêncio. - Vocês falarão quando eu fizer perguntas. Compreenderam?

- Chantal encostou-se à cadeira. - Cigarro - ordenou ela.

Dois homens apressaram-se a atendê-la. Chantal soltou uma baforada. - Escutem bem, todos vocês. Vou explicar o que é preciso fazer.

Chantal Tessier, chefe da gang e apreciadora de couro cru, explicou. E todos a ouviram com atenção.

Chegara o dia 5 de dezembro de 1940, uma quintafeira. O frio tornara-se forte em Marselha. Dois homens estavam junto ao balcão de uma casa de ferragem da Rue de Rome.

-- Por favor, menina bonita, eu quero quatro formas, das compridas, para bolo.

O primeiro homem, um gigante musculoso com cabelos avermelhados curtos, chamava-se Bastian Fabre, seu verdadeiro nome.

O outro homem, bem vestido, tinha maneiras distintas. Momentaneamente chamava-se Pierre Hunebelle. Antes chamava-se Jean Leblanc, mas seu nome verdadeiro era Thomas Lieven.

Pagando o preço exagerado dos tempos de guerra, os dois homens compraram sete formas de folha de ferro. Parecia, entretanto, que não tinham a intenção de fazer doces. Isso porque, em vez de manteiga, de açúcar, de açafrão e de farinha de trigo, compraram, numa pequena loja da Rue Mazagran, nove quilos de chumbo, uma grande placa de schamotte (argila cozida empregada pelos ceramistas) e um botijão de gás liqüefeito.

Dirigiram-se, depois, para o Vieux Quartier. Quase não se falaram, pois se conheciam há poucos momentos.

”Aqui estou eu”, pensou Thomas Lieven, ”pronto para, em companhia deste orangotango, fabricar lingotes de ouro falso. Idéia monstruosa. O pior é que estou realmente curioso para conhecer o verdadeiro processo profissional.”

Com relação ao comportamento de Chantal, absolutamente não compreendia nada. Isto porque, quando falou nos dois compradores, ela foi logo dizendo: - Formidável, querido. A minha organização está ao seu dispor. Quinze especialistas de primeira ordem. Vamos embrulhar esses dois sujos da Gestapo e também o seu coronel Siméon.

Venderemos as listas a quem der mais.

- Não, o coronel não. Prometi ajudá-lo.

- Você está bom da cabeça? É esse o idealismo alemão? Vai-me fazer chorar. Então faça o negócio sozinho. Fabrique a sua muamba sozinho. Não terá a ajuda de nenhum dos meus homens.

Tal era a situação três dias antes. Mas, depois, Chantal pareceu ter mudado completamente de opinião. Estava mais carinhosa e apaixonada que nunca.

- Você tem razão - dissera ela na noite anterior, nos braços de Thomas, durante um dos poucos minutos de calmaria. - Deve manter a sua promessa.. - um beijo. - Anote ainda mais: porque você é honesto... - dois beijos. - Eu lhe dou Bastian.. Dou todos os meus homens.

Ao lado do gigantesco Bastian Fabre, que empurrava um carrinho de mão com os artigos que tinham comprado, Thomas caminhou pelas vielas sujas do Vieux Quartier. ”Poderei confiar nessa canalha da Chantal?”, perguntavase ele. ”Ela já me mentiu e me enganou. Ela tem algum plano na cabeça. Mas que plano será?”

Bastian poderia dar uma resposta completa a esta pergunta. Enquanto empurrava o carrinho, ao lado da fina e elegante silhueta de Thomas Lieven, ele pensava: ”Não gosto desse janota. Mora com Chantal. Nem é preciso perguntar. Não é o primeiro que mora com ela. Mas esse Pierre Hunebelle, parece que a patroa está completamente caída por ele. Ela obedece a ele, raios o partam!”

Bastian lembrava-se das palavras de Chantal sobre o janota durante uma reunião no Brúleur de Loup.

- Um cérebro genial. Nenhum de vocês chega aos calcanhares dele.

- Ora, ora! - ousara intervir Bastian. Chantal tinha explodido como uma bomba:

- Feche essa porcaria de boca! A partir de hoje você fará tudo que ele mandar!

- Um momento, Chantal.

- Feche essa boca, já disse! É uma ordem, entendeu?

Você irá com ele à casa do Boule para fabricar os lingotes falsos. E vocês, quero que se revezem para vigiá-lo, dia e noite.

- Quanto às noites, você é que sabe o que ele faz.

- Mais uma besteira assim e eu lhe sapeco um bofetão. É o meu homem, pronto! Só tem um defeito: é honesto demais. Neste negócio nós é que temos que pensar por ele. Ele não sabe o que é bom para si próprio.

Isto é o que pensava Bastian. Mas nada dizia.

- Chegamos ao lugar - disse ele. Parou diante da casa número 16 da Rue d’Aubagne. À direita da porta uma placa de esmalte, muito descascada, tinha a inscrição:

RENÉ BOULE CIRURGIÃO-DENTISTA

Das 9 às 12 e das 15 às 18

Entraram na casa e tocaram a campainha. A porta foi aberta.

- Enfim, chegaram - disse o dr. René Boule. Era o homem menor e o mais gracioso que Thomas Lieven vira em toda a sua vida. Usava um avental branco, um pince-nez com aro de ouro e tinha uma dentadura postiça tão alva que chegava a cintilar. - Entrem, meus filhos.

O doutor pendurou na porta um pequeno cartaz que dizia:

NÃO HAVERÁ CONSULTAS HOJE

Depois fechou a porta e levou-os, através da sala de consultas com as cadeiras giratórias e instrumentos brilhantes, a um laboratório que dava para uma pequena cozinha. Bastian fez rapidamente a apresentação.

- O doutor - esclareceu ele a Thomas - trabalha sempre para nós. Ele tem um contrato de exclusividade com a patroa.

- Mas somente para os lingotes falsos - resmungou o homenzinho. - Quando têm dor de dentes procuram outro. - Olhou para Thomas. - Como se explica que nunca nos tenhamos visto? Você é novo na turma?

Thomas assentiu, com a cabeça.

- Ele acaba de sair da prisão - disse Bastian. - A patroa está caída por ele. Este negócio é por conta dele.

- Nada tenho contra isso. Trouxeram as formas? Muito bem, muito bem. Assim poderei fundir sete lingotes de uma vez sem ter que esperar que essa porcaria esfrie. - O doutor desembrulhou as sete formas para bolo e colocou-as uma ao lado da outra. - Para o comprimento serve - disse ele. - Vocês querem barras de um quilo, suponho eu? Se isto lhe interessa pode ficar vendo, rapaz. Nunca se sabe se algum dia não terá utilidade.

- O senhor tem razão - disse Thomas, levantando para o céu um olhar de auto-acusação.

- Eu já vi isto cem vezes - resmungou Bastian. - Ao invés de ficar aqui, vou arranjar alguma coisa para comer.

- Algo fortificante - disse o dentista. - Este trabalho de fundição é exaustivo.

- Quem paga é a patroa. Que quer comer?

- O Henry, no andar térreo, recebeu alguns patos de uma granja. Ele os vende no mercado negro enquanto os sujeitos do Controle Econômico não lhe caem em cima. São uns patinhos lindos - disse o dentista, estalando a língua. - Pouca gordura e ossos muitos macios. Quilo e meio no máximo.

- Muito bem - disse Bastian. - Vou arranjar dois para nós.

- Na fabricação de lingotes falsos - disse o dr. René Boule -, a dificuldade consiste em que o ouro e o chumbo têm ponto de fusão e peso específico muito diferentes. O chumbo começa a fundir a trezentos e vinte e sete graus. O ouro somente aos mil e sessenta e três. A forma de bolo não suportaria tal temperatura. É necessário revesti-la com schamotte.

O homenzinho mediu as formas com exatidão, depois riscou os contornos dos fundos e dos lados sobre a placa de schamotte. Limou um sulco sobre as linhas e quebrou a chapa em pedaços, exatamente como os desenhos. Continuando a trabalhar, prosseguiu dando a aula:

- Agora vamos fabricar formas de gesso, parecidas com tijolos, que terão as dimensões exatas para entrar na forma de bolo guarnecida de schamotte, deixando um espaço de três milímetros de cada lado.

Antes que o gesso endureça colocaremos quatro pequenos pés, espetando fósforos na massa... não quer tomar nota?

- Tenho boa memória.

- Sim? Tanto melhor... Quando o tijolo de gesso estiver colocado na forma fundiremos o ouro num cadinho.

- Como consegue temperatura tão elevada?

- Com um maçarico e o botijão de propano que vocês trouxeram, meu rapaz.

- E que tipo de ouro emprega?

-- De vinte e dois quilates, é claro.

- E onde o obtém?

- De várias refinarias. Acumulo reservas de fragmentos de ouro que troco por metal de vinte e dois quilates. Quando o ouro está fundido, nós enchemos o espaço entre as placas de schamotte e o gesso e deixamos esfriar naturalmente. Sobretudo, nunca use água fria. Você deveria tomar nota. Em seguida, retiro o tijolo de gesso e tenho uma cuba de ouro, fina, com as dimensões exatas do lingote. Esta cuba, ou molde, eu a encho com chumbo.

- Um momento - disse Thomas. - O chumbo pesa menos que o ouro.

- Rapaz, um quilo é um quilo. O peso é exato. Somente o volume varia. E eu me permito pequenas variações na largura. Para lingotes de refinaria isso não tem nada de extraordinário.

Bastian voltou. Trazia dois pequenos patos e um quilo de castanhas. Dirigiu-se para a cozinha.

Por alguns momentos, Thomas observou o talentoso dentista, que fazia tijolos de gesso. Depois foi ver o que estava acontecendo na cozinha. A revolta fê-lo ficar imóvel. Nada entendia de falsificação de lingotes de ouro. Quanto a patos, ele sabia muita coisa. E o que estavam fazendo a um dos patos era um insulto à sua dignidade de gourmet. Sacudindo a cabeça, aproximou-se de Bastian que, de mangas arregaçadas, estava perto da janela. Ele já tinha limpado o pato e estava salgando a carne, por fora e por dentro.

- Que está fazendo? - perguntou Thomas Lieven, com severidade.

- Está na cara, não é? - rosnou Bastian irritado. - Vou assar um pato. O cavalheiro está incomodado com alguma coisa?

- Destruidor.

- Que foi que disse? - o gigante engoliu em seco.

- Eu disse: destruidor. Suponho que você pretende grelhar este pato.

- Exatamente.

- Pois isto é que eu chamo um massacre.

- Ora vejam! - Bastian pôs as mãos nas cadeiras, esqueceu-se das ordens de Chantal, ficou rubro de cólera e começou a berrar. - Que entende o senhor de cozinha, seu sabe-tudo?

- Entendo um pouco - disse Thomas, com dignidade. - O bastante, em todo o caso, para saber que você está-se preparando para cometer um crime.

- Já fui cozinheiro de bordo durante muito tempo. Toda a minha vida preparei patos. Grelhados.

- Pois então você passou a vida cometendo crimes. No último instante, Bastian lembrou-se das ordens de

Chantal e fez um enorme esforço para se conter. Levou as enormes mãos às costas, para evitar que elas, contra a sua vontade, praticassem algo irreparável.

- E qual seria, M. Hunebelle, a sua maneira especial de preparar um pato? - disse ele meio estrangulado de raiva.

- A maneira chinesa, é claro...

- Ah...

-... porque só a preparação com abacaxi e temperos conserva, ou antes, faz realçar o sabor especial da carne.

- Simplesmente grotesco - disse o gigante. - A grelha. Só a grelha é que presta.

- Porque você desconhece a verdadeira arte de cozinhar - disse Thomas. - As pessoas de bom gosto preferem o pato à chinesa.

- Escute aqui, seu pequenote de uma figa, se pretende insinuar que... - começou Bastian, mas foi interrompido pelo pequeno dentista, que o puxou pela manga.

- Que há, Bastian? Para que brigar? Temos dois patos.

Experimentem as duas maneiras, grelhado e à chinesa. Ainda tenho algumas horas de trabalho.

- Um concurso? - rosnou Bastian.

- Exatamente - disse o homenzinho, estalando novamente os lábios. - Eu serei o árbitro.

A fisionomia de Bastian desanuviou-se.

- Está de acordo? - perguntou ele a Thomas.

- Certamente. Mas eu preciso de ingredientes: cogumelos, abacaxi, tomates, arroz...

- Desça até o Henry - disse o dentista rindo. - O Henry tem de tudo. - Bateu alegremente as mãos. - Estou começando a gostar desta história. Eu lhes ensinarei alguma coisa! Vocês vão-me ensinar outras coisas! Avante, pessoal!

Depois dessa decisão, teve início uma atividade febril tanto na cozinha quanto no laboratório do dr. René Boule.

Enquanto Bastian esfregava alho no seu pato, salpicava-o com temperos aromáticos e colocava-o de peito para baixo, sobre a grelha do forno, Thomas desossava o seu pato, picava os ossos e os miúdos para fazer um caldo. Enquanto esperava que o caldo evaporasse o suficiente para chegar à quantidade que desejava, foi ao laboratório para apreciar o trabalho do pequeno artista.

Entrementes, usando as sete formas de bolo, o dr. Boule tinha fabricado sete finas cubas de ouro. Encheu a primeira com chumbo derretido e explicou:

- Espere que o chumbo esfrie. Agora só falta completar um lado do lingote de ouro. Coloque sobre o chumbo uma placa de schamotte para evitar que o chumbo derreta ao contato com a última camada de ouro fundido. Só assim se podem evitar variações da cor do ouro, que qualquer entendido consideraria suspeitas.

Thomas voltou à cozinha para cuidar do seu consommé. Cortou a carne do pato em pedaços e voltou ao laboratório para observar os lingotes.

O dr. Boule fundira o ouro num cadinho e o derramou na forma, sobre a placa de schamotte.

- Espere que a espuma desapareça. O ouro, por si mesmo, baixa um pouco no centro, e fica com um ligeiro rebordo mais elevado nos lados. O mesmo acontece com o sabão escuro, quando esfria.

 

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             PATO À CHINESA COM ARROZ

             PATO GRELHADO COM CASTANHAS

             DELICIA DOS DEUSES

 

5 de dezembro de 1940

Thomas Lieven inicia uma amizade legendária.

Pato à chinesa - Limpe e desosse um pato que não seja muito gordo. Quebre bem os ossos, misture com os miúdos e faça um caldo bem concentrado. Corte a carne em pedaços, polvilhe com farinha de trigo e cozinhe levemente em uma caçarola, até que comece a tomar cor. Junte o caldo e acrescente um tomate descascado, alguns cogumelos picados e quatro gramas de glutamate (que se encontra nas mercearias sob o nome de Agi-no-moto e que serve para realçar o paladar de carnes e peixes). Deixe, em fogo brando, durante meia hora. Junte pedaços de abacaxi e deixe cozinhar mais um quarto de hora. Sirva com arroz bem solto.

Pato grelhado com castanhas - Limpe e prepare um pato novo e não muito gordo. Esfregue sal na parte externa. Se assim desejar, pode esfregar a parte interna com alho e introduzir ervas aromáticas. Coloque o pato, com o peito para baixo, na grelha do fogão, tendo por baixo um tabuleiro de assar com um pouco de água. Grelhe a fogo médio

e molhe, seguidamente, com a gordura que escorre para o tabuleiro com a água. O tempo para grelhar varia de uma a uma hora e meia, conforme o tamanho da ave. Quando faltarem vinte minutos para terminar o grelhado, vire o pato de peito para cima. Quando o pato estiver assado, passe água fria na pele e grelhe por mais cinco minutos, em fogo forte. A pele fica ainda mais gostosa e crocante.

Sirva com uma guarnição de castanhas cozinhas (em água e sal), que devem ficar inteiras e que se cobrem com manteiga fresca.

Delícia dos deuses - Esfarinhe pão preto e com ele cubra o fundo de uma compoteira de vidro. Umedeça com conhaque ou Kirsch. Coloque, por cima, uma camada de cerejas em conserva previamente secas. Cubra com creme chantilly. Nova camada de pão, de cerejas e de creme, de sorte que a última camada seja de creme. Polvilhe com chocolate ralado e enfeite com cerejas.

Leve ao refrigerador para esfriar e macerar.

E agora, rapidamente, antes que o metal esfrie, vem o mais importante: o punção.

- Quê?

- O punção. O estampado de controle que garante a autenticidade e a pureza do ouro. - O dr. Boule elevou a voz: - Que punção vamos usar, Bastian?

- Refinaria de Lyon! - gritou o gigante da cozinha. Ele esfregava o seu pato com a gordura que dele escorria.

- Muito bem - disse o dr. Boule. - Devo dizer que tenho os punções de muitas refinarias e bancos. - Mostrou-os a Thomas. - Recortei-os em linóleo e colei sobre pedaços de madeira. Olhe com atenção.

Apanhou o punção desejado e molhou-o em azeite de oliva. Em seguida, apoiou o punção sobre a superfície, ainda mole, do primeiro lingote. A camada de azeite queimou-se, chiando. O dr. Boule retirou rapidamente o punção antes que o calor do metal destruísse o linóleo. O breve contato fora suficiente. O lingote tinha a marca de punção tal como se tivesse sido martelado sobre o metal sólido.

- As asperezas, as cinzas e os pequenos rebordos devem ser deixados. Os lingotes verdadeiros também não sofrem limpeza.

- E as probabilidades de ser descoberta a falsificação?

-- São praticamente inexistentes - disse o doutor, sacudindo a cabeça. - O núcleo de chumbo está recoberto, por todos os lados, por uma camada de três milímetros de ouro. O comprador faz o seu controle com uma pedra de toque e ácido clorídrico. Com a pedra, ele arranha um pouco o bordo do lingote. Obtém, assim, um traço de ouro sobre a pedra. Passa sobre esse traço diversas concentrações de ácidos correspondentes ao teor, em quilates, do ouro. Se o traço não desaparece é que se trata de ouro de vinte e dois quilates. E, no nosso caso, o ouro é realmente de vinte e dois quilates. - O dentista, subitamente, começou a aspirar o ar. - Nossa Senhora, que aroma delicioso. É o seu pato, ou o dele?

A refeição foi servida uma hora depois. Os três homens comeram sem falar. Começaram pelo pato grelhado e, depois, passaram para o pato à chinesa. Na sala ao lado esfriavam os três primeiros lingotes. Reinava um silêncio quase religioso na pequena sala de jantar do dr. René Boule.

Por fim, Bastian limpou a boca, semicerrou os olhos e olhou para o dentista.

- Então, René, qual dos dois estava melhor? Com ar infeliz o dr. Boule deixou errar o olhar de um cozinheiro para outro: de Thomas para Bastian, de Bastian para Thomas. As enormes mãos de Bastian abriamse e fechavam-se, nervosamente.

- Meu caro Bastian - balbuciou o pequeno doutor -, é difícil dizer em poucas palavras... De um lado, o seu pato... mas de outro lado, sem dúvida...

- Sim, sim, sim - disse Bastian. - Você tem medo de que eu lhe chute as nádegas, hein? Então serei eu o árbitro. O chinês estava melhor. - Bastian sorriu e bateu nas costas de Thomas com tal força que este se engasgou. - Eu sou o mais velho, acho eu. Pode me tratar por você, depois deste pato. O meu nome é Bastian.

- Trate-me por Pierre.

- Fui um cretino, toda a minha vida, com o meu pato grelhado. Pierre, meu rapaz, gostaria de tê-lo encontrado antes. Você sabe outras receitas?

- Algumas - disse’ Thomas com modéstia, Bastian estava radiante. Subitamente passara a ter respeito e simpatia por Thomas. A gulodice vencera o ciúme.

- Sabe uma coisa, Pierre? Creio que vamos ser bons camaradas.

Bastian estava com a razão. Em 1957, na casa da Avenida Cecile, em Düsseldorf, esta amizade ainda tinha a mesma força e a mesma sinceridade que tivera no primeiro dia. Durante o decorrer desses dezessete anos, muitos poderosos da Terra aprenderam a temer essa amizade...

- O seu pato também não estava mau - disse Thomas. - Sinceramente. Agora me lembro: preparei uma Delícia dos Deuses para a sobremesa. Sirvam-se. Eu não agüento mais. Se comer mais uma garfada caio morto...

A propósito de morte...

Colônia, 4 de dezembro de 1940 Exp: Abwehr Colônia Dest: Chefe Abwehr Berlim Confidencial 135892/VC/LU

De regresso de Lisboa, informo que morreu o traidor e agente duplo Thomas Lieven, também chamado Jean Leblanc.

O supracitado foi morto a bala, no dia 17 de novembro de 1940 às nove horas e trinta e cinco minutos (hora local), no pátio do prédio sito à Rua do Poço dos Negros, 16.

No momento de sua morte, Thomas Lieven vestia a roupa e tinha a aparência exterior de um certo Lázaro Alcoba, seu ex-companheiro de cela na prisão.

Embora as autoridades portuguesas tenham feito, como é fácil de entender, todo o possível para abafar o incidente e camuflar as circunstâncias como ocorreu, consegui averiguar, sem qualquer possibilidade de dúvida, que Lieven foi liquidado por um assassino pago, por ordem do Serviço Secreto britânico. O senhor não ignora, almirante, que Lieven também vendeu aos ingleses suas listas falsas com os nomes e endereços dos agentes franceses.

Lamentei imensamente ter ficado na impossibilidade de executar as suas instruções de trazer de volta, e vivo, Thomas Lieven. Em compensação, o seu merecido fim representa uma preocupação a menos para os nossos serviços.

Heil Hitler

Fritz Loos

Comandante e chefe de comando.

Na tarde de 6 de dezembro de 1940, os senhores Hunebelle e Fabre foram ao Hotel Bristol encontrar o rosado e gordo advogado Bergier, que os recebeu na sala do seu apartamento. O comprador francês da Gestapo vestia um roupão de seda azul, tinha um lenço de seda no bolso e exalava o perfume de uma refrescante água de toalete.

Ele começou por protestar contra a presença de Bastian.

- Como, M. Hunebelle? Eu não conheço este cavalheiro. Só quero tratar do assunto com o senhor.

- Este cavalheiro é um amigo. Carrego uma mercadoria algo valiosa. Prefiro sentir-me em segurança.

O advogado cedeu. Contemplou a elegante silhueta de Thomas com o olhar de uma solteirona ofendida.

- O meu amigo De Lesseps - declarou a seguir o vegetariano, não fumante e misógino - infelizmente não está aqui. Que falta de sorte!

”Que sorte!”, disse Thomas a si mesmo.

- E onde está ele?

- Em Bandol. - Bergier espremeu os lábios como se fosse assobiar. - Foi buscar um love importante na região. O senhor compreende: ouro e divisas.

- Compreendo. - Thomas fez sinal a Bastian. Este ergueu uma maleta, colocou-a sobre a mesa e abriu a fechadura. No interior havia sete lingotes de ouro.

Bergier examinou atentamente os lingotes. Decifrou a marca do punção. Hum, hum, Refinaria de Lyon. Muito bem.

Disfarçadamente Thomas fez outro sinal a Bastian.

- Posso ir lavar as mãos? - perguntou Bastian.

- O banheiro é ali.

Bastian foi ao banheiro onde havia uma quantidade de vidros e potes. ”Que homem bem cuidado, esse advogado Bergier!” Bastian abriu uma torneira, saiu silenciosamente para o corredor, retirou a chave da porta do quarto, abriu uma velha caixinha de ferro cheia de cera que estava em seu bolso, apertou os dois lados da chave de encontro à cera, recolocou a caixa no bolso e a chave na porta.

No salão, o advogado examinava ainda cuidadosamente os lingotes. Procedeu exatamente como havia previsto o pequeno dentista, empregando uma pedra de toque e diversas concentrações de ácido clorídrico.

- Tudo em ordem - disse, depois de examinar os sete lingotes. Depois olhou para Thomas com ar pensativo. - Que vou fazer com o senhor?

- Como? - Thomas respirou porque Bastian voltava à sala.

- O senhor compreende, devo explicar aos meus superiores todas as circunstâncias de cada compra. Nós... nós temos listas dos nossos correspondentes...

Listas! Thomas sentiu o coração saltar. Eram justamente listas o que ele procurava. Listas com os nomes e endereços de colaboradores na zona não ocupada, pessoas que vendiam a sua pátria à Gestapo e, algumas vezes, os seus compatriotas também.

- É claro - disse Bergier muito calmamente - que não obrigamos ninguém a nos dar indicações. Como poderíamos nós? - Ele riu. - Mas se deseja continuar a fazer negócios conosco seria, sem dúvida, útil que eu fizesse algumas anotações... estritamente confidenciais, é claro...

”Estritamente confidenciais para a Gestapo”, pensava Thomas Lieven.

- Como quiser - disse ele. - Espero ter a oportunidade de lhe fornecer outros lotes de mercadoria. Divisas, também.

Com modos afeminados ele entrou no quarto de dormir.

- Você tem o molde da chave? - perguntou Thomas.

- Claro - Bastian sacudiu a cabeça. - Diga-me uma coisa, este sujeitinho não será...

- Não se pode esconder nada de você.

Bergier voltou, trazendo uma pasta que tinha quatro fechos e que ele abriu com dificuldade. Retirou várias listas que tinham muitos nomes e endereços. Pegou uma caneta de ouro. Thomas Lieven deu nome e endereço falsos. Bergier os anotou.

- Agora, o dinheiro - disse Thomas.

- Não tenha receio, vem já. Posso pedir que me acompanhe até o quarto...

No quarto de dormir havia três enormes malas-armário. Numa delas o advogado abriu uma gaveta que estava cheia, até em cima, de notas de mil e de cinco mil francos. Thomas compreendia perfeitamente que os senhores Bergier e De Lesseps fossem obrigados a transportar grandes quantias em dinheiro. Sem dúvida as outras gavetas das malas também continham dinheiro. Thomas prestou a maior atenção ao lugar onde Bergier colocou a pasta com as listas...

Bergier pagou trezentos e sessenta mil francos por lingote, ou dois milhões quinhentos e vinte mil pelos sete.

Enquanto colocava os pacotes de notas diante de Thomas, Bergier tentava captar o seu olhar com um sorriso adulativo e cheio de promessas. Mas Thomas contava os francos...

- Quando o reverei, caro amigo? - perguntou por fim Bergier.

- Por quê? - perguntou surpreso Thomas. - O senhor não está regressando a Paris?

- Eu não. Somente De Lesseps. Ele passará por Marselha amanhã à tarde, pelo rápido das quinze horas e trinta minutos.

- De passagem, somente?

- Sim. Ele leva a mercadoria de Bandol para Paris. Eu lhe entregarei o seu ouro na estação. Mas depois poderíamos jantar juntos, que acha, meu caro amigo?

- Quinze horas e trinta minutos - disse Thomas, uma hora mais tarde, num antigo e espaçoso apartamento do Boulevard de la Corderie. O apartamento pertencia a um M. Jacques Cousteau, que muitos anos mais tarde tornar-se-ia famoso como explorador submarino e autor do livro e do filme O mundo do silêncio. Em 1940 esse antigo comandante de artilharia da Marinha era um elemento importante do Serviço Secreto francês, um serviço que renascia: um jovem cheio de energia, cabelos e olhos castanhos, em plena forma e com aspecto esportivo.

Cousteau estava sentado numa velha cadeira na biblioteca e fumava um cachimbo abastecido com um pouco do fumo que lhe restava.

O coronel Siméon estava sentado perto dele. Sua roupa surrada brilhava nos cotovelos e nos joelhos. Quando cruzava as pernas via-se que o sapato esquerdo tinha um furo na sola.

”Pobre, ridículo e lamentável Serviço Secreto francês”, pensava Thomas. ”Eu, um simples amador, obrigado a trabalhar como agente, sou, neste momento, mais rico que todo o Deuxième Bureau.”

Elegante e bem cuidado, tinha a seu lado a maleta que servira para transportar os lingotes de ouro para Bergier. Agora ela continha dois milhões, quinhentos e vinte mil francos.

- Será preciso ter a maior atenção à chegada do trem - disse Thomas. - Verificarei o horário: a parada é de apenas oito minutos.

- Estaremos atentos - disse Cousteau. - Não se preocupe, M. Hunebelle.

Siméon puxava o seu bigode à Menjou.

- O senhor acredita que De Lesseps leva consigo uma grande quantidade de mercadoria? - disse ele com um olhar de cobiça.

- Segundo Bergier, uma enorme quantidade de ouro, divisas e outros valores. Ele está comprando há vários dias. Deve ter reunido muita coisa, senão não iria a Paris. Bergier vai entregar-lhe os meus sete lingotes. Penso que o melhor seria prender os dois nessa ocasião...

- Está tudo organizado. Demos a informação a alguns amigos da polícia.

- Mas, como conseguirá apoderar-se das listas? - perguntou Siméon.

- Não se preocupe com isso, Siméon - disse Thomas sorrindo. - Preciso de um favor seu: tenho necessidade de três empregados com o uniforme do Hotel Bristol.

Siméon arregalou os olhos e abriu a boca. Via-se que ele pensava com concentração.

- É possível - disse Cousteau, antes que as reflexões de Siméon chegassem a termo. - Toda a roupa do Bristol vai para a Lavanderia Salomon. Eles também se encarregam da limpeza dos uniformes. O vice-diretor da lavanderia é um dos nossos.

- Perfeito - disse Thomas.

Olhou para o magro Siméon com sua roupa surrada e seu sapato furado. Olhou para Cousteau que fumava parcimoniosamente o seu velho cachimbo para economizar o pcuco tabaco que lhe restava. Olhou para a sua maleta e, depois, teve um gesto que provava o seu bom coração e também que ele não se acomodara às regras egoístas do mundo egoísta aonde a sorte o precipitara...

Meia hora mais tarde, quando deixou a casa do Boulevard de Ia Corderie, viu uma sombra que saía de um desvão num muro e que o seguira nas frígidas trevas. Thomas virou uma esquina e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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